UA 17-05-2015 PDM Performance Ensaio

6

Click here to load reader

description

Prova de admissão para o Programa Doutoral em Música da Universidade de Aveiro (2015)

Transcript of UA 17-05-2015 PDM Performance Ensaio

  • Universidade de Aveiro Seleo de Doutorado em Msica 2015

    Prova escrita de acesso ao ramo Performance

    Candidato: Daniel Lemos Cerqueira Instrumento: Piano

    A interpretao musical uma das atividades mais complexas realizadas pelo ser humano. Ela envolve mutuamente diversos aspectos, abordando a msica como um tipo de linguagem com seu prprio vocabulrio de significantes e significados. Destaca-se, assim, este carter complexo da linguagem musical tal qual pontuado por Borges Neto (2005), fato que justifica o uso de metforas para descrever ideias musicais a partir da linguagem verbal (MR, 2004).

    Sob o ponto de vista do intrprete, a linguagem musical assim como qualquer outro tipo de linguagem possui significantes e significados prprios, preestabelecidos socialmente atravs da histria e da cultura. Esta dimenso externa da interpretao musical dialoga com a dimenso interna do intrprete, na qual o mesmo deve conhecer os signos da linguagem musical e construir um discurso sonoro coerente onde tambm seja possvel revelar sua identidade artstica.

    Durante o percurso da construo do discurso musical pelo intrprete o estudo do instrumento propriamente dito diversos aspectos devem estar presentes simultaneamente para tornar possvel o resultado artstico. nesta temtica que se pretende focar este breve ensaio, relacionando-o aos conceitos apresentados de contextualizao e coativao.

    Conforme o modelo de ensino e aprendizagem da performance musical proposto por Cerqueira et al (2012), so trs os aspectos centrais da construo do discurso musical para os intrpretes: 1) movimento, que envolve os aspectos fsicos e motores da execuo instrumental; 2) memria, que contempla o armazenamento de todos os tipos de informaes; e 3) conscincia, que trata da aquisio e produo de conhecimento, bem como da reflexo e interveno nos processos de construo dos outros dois aspectos. Segundo os autores, estes

  • trs aspectos so indissociveis e esto presentes durante todo o tempo em qualquer ao relacionada performance musical, seja de forma planejada pelo intrprete ou no.

    Diversas pesquisas recentes na rea de performance musical tem focado em aspectos especficos do modelo apresentado, contribuindo para o enriquecimento cientfico sobre o processo de construo do discurso musical pelo intrprete. Chaffin et al (2002) focam na importncia da memria, baseando-se tanto em relatos sobre a experincia prtica de intrpretes renomados quanto em pesquisa prtica com enfoque na memorizao de aspectos relacionados interpretao tanto a partitura quando respiraes musicais, sees da pea, tipos de ataque ou at mesmo um movimento corporal desenvolvendo o conceito de guias de execuo (performance cues) como pontos de referncia para a memorizao. Assim, o ato de memorizar no se restringe somente partitura ou a dedilhados, mas a todos os tipos de informao que o intrprete pode abstrair de sua performance. De forma semelhante, Gordon (2006) menciona a complexidade das informaes que o intrprete pode encontrar nas obras, oferecendo vrias estratgias de estudo com base em anlise musical e definio de pequenos trechos para repetio, favorecendo uma memorizao eficiente e segura. J Chang (2009) menciona o conceito de memria manual (hand memory) para se referir ao armazenamento especfico das informaes de movimento.

    Outros trabalhos que focam na memria para a performance musical provm de abordagens interdisciplinares, especialmente no campo da Psicologia Cognitiva e da Neurocincia. Aqui, procura-se investigar como funciona o mecanismo de armazenamento das informaes no crebro, e a partir disto, desenvolver estratgias de estudo mais eficientes para o intrprete. Tanto Sprenger (1999) quanto Chang (2009) afirmam que o crebro armazena informaes atravs de associao de informaes. Assim, quanto maior conhecimento o intrprete puder obter de sua obra, mais slida ser a memorizao, pois o crebro estabelecer um emaranhado de informaes que se reforam. Esse fato justifica, inclusive, que conhecimentos de Histria da Msica, Anlise e Composio contribuem diretamente para melhorias no processo de memorizao do intrprete. interessante observar que Franois Couperin, to cedo quanto 1716, j apontava para essa questo em LArt de

  • Toucher le Clavecin (2008), afirmando que conhecer os encadeamentos harmnicos funcionam como uma espcie de memria paralela que traz mais segurana para o cravista.

    Com relao dimenso fsica da performance musical que envolve corpo e movimento possvel encontrar diversas pesquisas recentes. Fink (1995) aborda exclusivamente os movimentos da execuo pianstica nos diversos segmentos do corpo: dedos, mos, pulso, antebrao, brao, tronco e corpo, propondo formas de otimizar a utilizao muscular para obter melhores resultados sonoros com o menor esforo fsico possvel. Chang (2009) tambm trata do assunto, afirmando que qualquer movimento, por mnimo que seja, envolve necessariamente todo o corpo. Tal fato interessante para que o intrprete esteja sempre atento aos movimentos de seu corpo como um todo, pois direcionar sua ateno apenas para os dedos e as mos pode fazer com que ombros, costas e at mesmo a mandbula fiquem ativadas de forma no-consciente, causando tenso.

    Abordagens interdisciplinares sobre movimento corporal tambm so encontradas nos estudos sobre a preparao da performance musical, em especial provenientes da Psicologia Cognitiva e da Educao Fsica, tendo grande importncia nesta ltima os estudos sobre performance motora. possvel estabelecer estratgias diferenciadas de estudo para cada faixa etria, considerando os diferentes nveis de maturao do sistema nervoso e os estgios de desenvolvimento cognitivo. Esta abordagem no era adotada pela Pedagogia do Piano at o sculo XX.

    importante reforar que a Psicologia Cognitiva trouxe uma contribuio fundamental para a interpretao musical: a ideia de que todo movimento o resultado externo de uma ao que se inicia no crebro. Ao analisar a histria da Pedagogia do Piano, observa-se que diversos mtodos para estudo do instrumento abordavam a tcnica pianstica como resultado da aquisio de fora e destreza muscular. Da surgiram as obras chamadas estudos que, conforme sua concepo inicial, visavam ao desenvolvimento fsico dos pianistas, havendo como exemplo desta linha Princpios bsicos da tcnica pianstica de Alfred Cortot ou O Pianista Virtuoso de Charles Hanon. Contudo, alguns compositores como Chopin, Liszt e Debussy modificaram este conceito

  • de estudos, tornando-os peas de concerto ou estudos de sonoridade visando tambm a trabalhar aspectos interpretativos.

    Altenmller et al (2006), ao abordarem de forma mais ampla movimentos na performance musical, tratam diversas vezes sobre o controle motor, partindo da assero de que o controle cerebral a parte central do fenmeno. Os autores tratam, a exemplo de Watson (2009), sobre doenas ocupacionais de intrpretes a exemplo da distonia focal, que no originada por leses musculares e sim por prejuzo ao sistema nervoso. De forma semelhante, os autores abordam a ansiedade na performance o medo do palco - como uma espcie de doena, j que funes nativas do corpo contra risco de vida so ativadas sem haver real perigo de morte. J Kirchner (2005) oferece estratgias para trabalhar progressivamente a ansiedade na performance a partir de prtica do repertrio no palco, apresentaes para quantidades progressivas e crescentes de pblico, terapias para cultivar pensamentos positivos e realizao de exerccios de relaxamento corporal, no sendo necessariamente uma doena mas uma reao psicolgica natural situao gerada no palco como fruto desta profisso do homem moderno.

    Por fim, o aspecto conscincia proveniente do modelo apresentado pode ser relacionado a quaisquer pesquisas que abordem a performance musical em suas dimenses histrica, sociolgica, poltica, cultural, lingustica, analtica, simblica e especulativa, entre outras. Aspectos que influenciam o estudo do instrumento so contemplados aqui, como o conceito de tcnica instrumental, talento, motivao, concentrao e a ideia de prtica deliberada (JRGENSEN In: WILLIAMON, 1999), onde se entende que a quantidade de horas estudadas diretamente proporcional ao rendimento do estudo, entre outros conceitos. Estas discusses so apresentadas por Parncutt e McPherson (2002) de forma mais cientfica, e por Gordon (1995) de maneira mais pessoal. interessante observar que nos estudos da performance musical, relatos de experincias que no seguem necessariamente uma linha propriamente cientfica podem igualmente contribuir para ampliar a experincia dos intrpretes, pois oferecem ideias para que cada um pesquise as estratgias que lhe paream mais eficientes e significativas isso se assemelha muito ao efeito placebo, onde resultados concretos de um medicamento so gerados no por razes fsicas, mas psicolgicas.

  • Aqui, torna-se possvel aflorar discusses sobre os perfis contrastantes de intrpretes onde, por exemplo, um busca ouvir gravaes e estudar a histria do compositor para construir seu discurso musical, enquanto outro prefere ir caminhar na praia e ouvir as ondas do mar para ter inspirao. Ainda assim, ambos podem realizar interpretaes de alto valor artstico. Estas discusses so muito interessantes para reforar a caraterstica simblica da produo artstica, que muitas vezes resiste a anlises cientficas mais estruturadas que buscam compreender melhor este to complexo fenmeno que a interpretao musical.

    Encerra-se, ento, o presente ensaio, reforando que o modelo de ensino e aprendizagem da performance musical apresentado pretende prover um arcabouo cientfico para a preparao da interpretao musical que oferea a flexibilidade necessria para contemplar questes artsticas do processo de construo do discurso musical pelo intrprete. Com tais questes esclarecidas, apresenta-se oportuno tratar sobre a dimenso simblica da interpretao musical como linguagem, sua comunicabilidade com o pblico e a relao do intrprete com a histria do homem e sua prpria histria, sendo estes objetos de discusses mais amplas e aprofundadas que extrapolam os limites deste breve ensaio.

    Referncias

    ALTENMLLER, Eckart; WIESENDANGER, Mario; KESSELRING, Jrg. Music, Motor Control and The Brain. Nova York: Oxford University Press, 2006.

    BORGES NETO, Jos. Msica Linguagem? Revista Eletrnica de Musicologia, vol. IX. Curitiba: UFPR, out-2005. Disponvel em http://www.rem.ufpr.br.

    CERQUEIRA, Daniel Lemos; ZORZAL, Ricieri Carlini; VILA, Guilherme Augusto de. Consideraes sobre a aprendizagem da performance musical. Per Musi, v.26. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.94-109.

    CHAFFIN, Roger; IMREH, Gabriela; CRAWFORD, Mary. Practicing perfection: memory and piano performance. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2002.

    CHANG, Chuan C. Fundamentals of Piano Practice. Edio do Autor, 2009. Disponvel em http://www.pianofundamentals.org. 2 ed

    COUPERIN. Franois. LArt de Toucher le Clavecin. Transcrito por Nicolas Sceaux. Paris, 2008. Disponvel em http://nicolas.sceaux.free.fr.

  • GORDON, Stewart. Etudes for Piano Teachers. Nova York: Oxford University Press, 1995.

    _______________. Mastering the art of performance: a primer for musicians. Nova York: Oxford University Press, 2006.

    KIRCHNER, Joann. Managing musical performance anxiety. American Music Teacher. Cincinatti: MTNA, dec-2005, p.31-33.

    JRGENSEN, Harald. Strategies for Individual Performance. In: WILLIAMON, Aaron (org). Musical Excellence: Strategies and techniques to enhance performance. Nova York: Oxford University Press, 1999, p.85-103.

    MR, Renato. Metforas no ensino de instrumentos musicais. Dissertao de Mestrado em Educao. Blumenau: PPGE/FURB, 2001.

    PARNCUTT, Richard; McPHERSON, Gary. The Science &Psychology of Music Performance. Nova York: Oxford University Press, 2002.

    SPRENGER, Marilee. Learning & Memory: the brain in action. Alexandria: Association for Supervision and Curriculum Development, 1999.

    WATSON, Alan H. D. The Biology of Musical Performance and Performance-Related Injury. Toronto: Scarecrow Press, 2009.