Um olhar sobre o comer e o modo de comer em contexto conventual

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Um olhar sobre o comer e o modo de comer em contexto conventual Isabel Maria Fernandes É do conhecimento geral que a vida em clausura impunha regras rígidas de observância colectiva sobre o modo como se gastava o tempo dentro do espaço conventual. Ao ritmo do tempo de oração sucediam outros ritmos destinados ao dormir, ao trabalho e ao comer. As principais refeições eram o jantar (que hoje designamos almoço) e que decorria por volta do meio-dia, e a ceia (a que hoje chamamos jantar) e que sucedia ao entardecer. A ceia costumava ser mais frugal do que o jantar. As refeições tinham lugar num espaço apropriado para o efeito – o refeitório. Este situava-se perto da cozinha e com ela comunicava normalmente por uma janela (muitas vezes com roda) através da qual eram passados os alimentos. Os monges dirigiam-se para o refeitório assim que ouviam «tanger à mesa», ou seja, assim que «eram chamados com o sinal dos sinos» que tocavam avisando da hora da refeição (TAVARES, 1999: 66). Antes e depois de comer lavavam as mãos em lavatório existente junto do refeitório 1 . Os monges comiam em conjunto no refeitório, em silêncio, olhos postos em baixo, ouvindo o monge leitor que do púlpito lia a Bíblia ou outras obras sacras. Comer nas celas ou noutros locais era expressamente proibido (GOMES, 1998: 416). O refeitório era vulgarmente composto por mesas compridas colocadas junto às paredes e por bancos corridos, sentando-se os monges apenas de um dos lados da mesa, aquele que ficava encostado à parede. Deste modo as mesas dispunham-se vulgarmente em «U» com os monges voltados uns para os outros, existindo armários, muitas vezes dois, embutidos nas paredes onde se guardavam alguns dos utensílios necessários ao refeitório. Os monges tinham de ser frugais na alimentação, cientes de que deviam comer para ter saúde e poder servir na religião. Durante a refeição deviam lembrar-se dos que tinham fome e eram mais merecedores do que eles aos olhos de Deus, pelo que deviam comer moderadamente fazendo com que os alimentos 1 Em 1536, no Mosteiro de Santa Maria do Bouro havia «saboeiras» e «toalhas de mãos» que se destinavam muito provavelmente para o acto de lavar as mãos com sabão, que ficava pousado na saboeira, e de as limpar com «toalha de mãos».

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Texto da autoria de Isabel Maria Fernandes que aborda a alimentação e o modo como se comia nos conventos/mosteiros portugueses. A autora usa uma pintura do extinto Mosteiro de S. Miguel de Refojos e que actualmente se encontra no salão nobre da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto para ilustrar o artigo.

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Um olhar sobre o comer e o modo de comer em contexto

conventual

Isabel Maria Fernandes

É do conhecimento geral que a vida em clausura impunha regras rígidas de

observância colectiva sobre o modo como se gastava o tempo dentro do

espaço conventual. Ao ritmo do tempo de oração sucediam outros ritmos

destinados ao dormir, ao trabalho e ao comer.

As principais refeições eram o jantar (que hoje designamos almoço) e que

decorria por volta do meio-dia, e a ceia (a que hoje chamamos jantar) e que

sucedia ao entardecer. A ceia costumava ser mais frugal do que o jantar.

As refeições tinham lugar num espaço apropriado para o efeito – o refeitório.

Este situava-se perto da cozinha e com ela comunicava normalmente por uma

janela (muitas vezes com roda) através da qual eram passados os alimentos.

Os monges dirigiam-se para o refeitório assim que ouviam «tanger à mesa», ou

seja, assim que «eram chamados com o sinal dos sinos» que tocavam

avisando da hora da refeição (TAVARES, 1999: 66). Antes e depois de comer

lavavam as mãos em lavatório existente junto do refeitório1. Os monges

comiam em conjunto no refeitório, em silêncio, olhos postos em baixo, ouvindo

o monge leitor que do púlpito lia a Bíblia ou outras obras sacras. Comer nas

celas ou noutros locais era expressamente proibido (GOMES, 1998: 416).

O refeitório era vulgarmente composto por mesas compridas colocadas junto

às paredes e por bancos corridos, sentando-se os monges apenas de um dos

lados da mesa, aquele que ficava encostado à parede. Deste modo as mesas

dispunham-se vulgarmente em «U» com os monges voltados uns para os

outros, existindo armários, muitas vezes dois, embutidos nas paredes onde se

guardavam alguns dos utensílios necessários ao refeitório.

Os monges tinham de ser frugais na alimentação, cientes de que deviam comer

para ter saúde e poder servir na religião. Durante a refeição deviam lembrar-se

dos que tinham fome e eram mais merecedores do que eles aos olhos de

Deus, pelo que deviam comer moderadamente fazendo com que os alimentos

���������������������������������������� �������������������1 Em 1536, no Mosteiro de Santa Maria do Bouro havia «saboeiras» e «toalhas de mãos» que se destinavam muito provavelmente para o acto de lavar as mãos com sabão, que ficava pousado na saboeira, e de as limpar com «toalha de mãos».

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sobejassem e no final da refeição pudessem ser distribuídos pelos mais

necessitados (TAVARES, 1999: 66 e 68-69).

A sua dieta diária ainda está mal conhecida mas, como exemplo, referiremos

os géneros alimentícios usados no Convento feminino de Santa Clara de

Guimarães e referidos nos livros de despesa (séc. XVII-XVIII): ingredientes –

açúcar, amêndoa, arroz, azeite, canela, feijão, manteiga de vaca, pingue, sal,

unto, vinagre; cereais e seus derivados – centeio, milho, trigo, pão, pão de

milho, pão de centeio; hortaliças e leguminosas – hortaliça, legumes, repolho,

tremoços; carne – carne de picado, carne de porco, carne de vaca, carneiro,

galinha, picado de vaca, presunto, toucinho, pastéis, pastéis de carne, pastéis

de pasteleiro; peixe – bacalhau, cação, faneca, lampreia, pescada, polvo, raia,

sardinha, sável; outros – leite, vinho (FERNANDES, 2004: 14).

Os alimentos eram temperados na mesa com sal e adubados com especiarias

e condimentos como a mostarda. Por isso, fazia parte da utensilagem diária

colocada na mesa o saleiro para o sal e a salsinha ou salseira para conter os

adubos – salsa, mostarda… O pão era presença habitual na mesa,

acompanhando o que se comia. Para ajudar a digerir os alimentos sólidos os

monges bebiam usualmente água ou vinho, sendo que o vinho era muitas

vezes misturado com água – vinho meado ou vinho terçado.

Sobre o modo como eram confeccionados os pratos pouco sabemos. A carne e

o peixe eram servidos cozidos ou fritos mas também podiam ser assados,

guisados ou desfeitos e metidos em empadas ou pastéis. Os legumes

acompanhavam a carne ou o peixe. Como sobremesa comiam fruta e, em dias

especiais, doces. Em tempos de festa as refeições eram mais abastadas e os

doces um complemento habitual.

No séc. XVII, no «regulamento do refeitório» do Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra, determina-se como os monges se deviam comportar à mesa

(TAVARES, 1999: 68-71): «estar muito compostos, quietos, graves, e

mortificados com os olhos baixos, com o tento na lição»; ao iniciar a refeição só

deviam abrir o guardanapo depois de decorrido o tempo suficiente para dizer

um Padre Nosso e uma Ave-Maria; não deviam comer apressadamente, nem

«com ambas as partes da boca», nem meter «um bocado antes de engolir o

outro»; o pão devia ser partido com a faca e não com as mãos; não deviam

meter à boca grandes pedaços, «como os meninos», «senão tudo partido»;

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não deviam roer os ossos, nem bater «com eles sobre o pão ou sobre a mesa

para lhe tirar os tutanos»; não lhes era permitido meter «toda a mão na tigela

para tirar as sopas», mas podiam fazê-lo usando apenas «dois ou três dedos

sem sujar a mão»2; não deviam lamber «os dedos, como fazem os rústicos», e

se estes de qualquer modo ficassem sujos «como acontece quando o caldo é

gordo e ficam cheios de gordura», limpem-nos «dissimuladamente a um

pequeno de pão; e o mesmo façam à faca quando cortarem com ela fruta ou

coisa que a suje muito»; ao servir-se de sal deviam tirá-lo «com a faca e não

com os dedos». E mais cuidados deviam ter quando o sal se destinava a

temperar rábanos, nesse caso deviam lançar o sal sobre estes tendo por baixo

uma folha dos ditos e não o guardanapo. Todos estes cuidados – não limpar os

dedos nem a faca ao guardanapo e não usá-lo para sobre ele temperar os

rábanos – tinha como finalidade «não sujar muito o guardanapo que faça nojo

ou lhe ponha nódoa que se não tire como são as da fruta».

Interessantes são também as advertências para que «não alimpem os narizes

com o guardanapo nem com a mão descoberta senão com o lenço»; que

quando tivessem de cuspir o «não seja por cima da mesa senão debaixo dela

abaixando-se, por não fazer nojo ao companheiro, e chegando com o pé ao

cuspo apaguem-no. E tossindo cubram a boca com o lenço ou com o hábito

afastando a boca do outro companheiro». Deviam também ter compostura e

não estarem «debruçados sobre o comer», nem lançar-se «sobre o prato

quando comem», nem encostar «os braços à mesa», nem encostar-se «para

trás de sorte que fiquem mal compostos»; nem deviam acabar «de comer

depois dos outros mas antes deles, quanto puder ser». Por fim, ensina-se que

só depois do monge leitor dizer «Tu autem Domine miserere nobis», e de todos

ainda sentados responderem «Deo gracias», é que se podiam levantar, dando-

se deste modo por finda a refeição (TAVARES, 1999: 68-71) 3.

���������������������������������������� �������������������2 É importante referir que este hábito de comer com as mãos usando apenas três dos dedos é costume antigo ainda hoje em uso em alguns países, como, por exemplo, em Marrocos: «O principal utensílio culinário deste país são as mãos, ou, melhor dizendo, os dedos. Na realidade, segundo as normas do manual de bons costumes, só se devem utilizar três dedos, como o fazem os profetas: o médio, o indicador e o polegar. Comer com quatro ou cinco dedos é comportamento de glutões, excepto se o conteúdo do prato ficar demasiado macio» (MEDINA, 2005: 12). 3 Este texto vai ilustrado com uma pintura sobre tábua da autoria do Padre Manuel Correia de Sousa, datada de1703 e proveniente do Mosteiro Beneditino de Refojos de Basto. Actualmente encontra-se na Sala de Sessões da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, a quem pertence e a quem agradecemos a possibilidade de ter fotografado a imagem e de a utilizar.

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BIBLIOGRAFIA

DIAS, 2009

Geraldo José Amadeu Coelho Dias, OSB – O mosteiro de São Miguel de

Refojos: jóia do barroco em terras de Basto. Cabeceiras de Basto: Câmara

Municipal, 2009.

FERNANDES, 2004

Isabel Maria Fernandes − O comer e o modo de comer em espaço conventual:

um exemplo (séc. XVI). Mãos: Revista de Artes e Ofícios. 25 (Abril 2004). P.

12-15.

FERNANDES; OLIVEIRA, 2004

Isabel Maria Fernandes; António José de Oliveira − Convento de Santa Clara

de Guimarães. Boletim de Trabalhos Históricos. Guimarães. Série 2. 5 (2004).

P. 11-179.

GOMES, 1998

Saul António Gomes – Visitações a mosteiros cistercienses em Portugal:

séculos XV e XVI. Lisboa: IPPAR, 1998. (Documenta).

MEDINA, 2005

Ignacio Medina – Marrocos. Lisboa: Público, 2005 (Cozinha País a País; 4).

TAVARES, 1999

Paulino Mota Tavares – Mesa, doces e amores no séc. XVII português. Sintra:

Colares Editores, 1999.

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Proprietário: Município de Cabeceiras de Basto. Fotografia de Miguel Sousa

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ILUSTRAÇÕES

Ceia de S. Bento e o Corvo. Pintura sobre tábua.

Autor: Padre Manuel Correia de Sousa. 1703.

Mosteiro Beneditino de Refojos de Basto.

Actualmente na Sala de Sessões da Câmara

Municipal de Cabeceiras de Basto. Proprietário:

Município de Cabeceiras de Basto. Fotografia de

Miguel Sousa

Ceia de S. Bento e o Corvo. Pormenor. Repara-

se na loiça sobre a mesa: pratos individuais,

saleiros, pratos de fruta, copos com cerveja (?),

colher, faca com cabo de marfim (?) e garfo, pares

de vasilhas em estanho (?).Fotografia de Miguel

Sousa

Ceia de S. Bento e o Corvo. Pormenor. Repare-

se no uso do guardanapo que um dos monges leva

à boca e que outro tem pousado sobre a mesa.

Fotografia de Miguel Sousa

Ceia de S. Bento e o Corvo. Pormenor. Repare-

se no copo de vidro com cerveja (?).Fotografia de

Miguel Sousa

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Isabel Maria Fernandes

Directora do Museu de Alberto Sampaio / Instituto dos Museus e da Conservação. Licenciada. Email:

[email protected]

Três últimas obras e três últimos artigos, mais relevantes.

Obras

Isabel Maria Fernandes − Meninos Gordos: Faiança Portuguesa. Porto: Civilização Editora,

2005.

Isabel Maria Fernandes (coord.) − Figurado português: de santos e de diabos está o mundo

cheio. Porto: Civilização Editora, 2005.

Isabel Maria Fernandes − Oleiros de Bisalhães: as voltas que o barro dá = The potters of

Bisalhães: the twists and turns of clay. In A louça preta de Bisalhães: Mondrões, Vila Real = The

black pottery of Bisalhães. Vila Real. Barcelos: Museu de Arqueologia e Numismática. Museu de

Olaria, 2009. P. 12-155.

Artigos

Isabel Maria Fernandes; António José de Oliveira − Convento de Santa Clara de Guimarães.

Boletim de Trabalhos Históricos. Guimarães. Série 2. 5 (2004). P. 11-179.

Isabel Maria Fernandes − Saberes, sabores, usos e desusos da olaria nortenha. In Saberes e

sobres: VI Congresso Galiza-Norte de Portugal. Porto: Delegação Regional da Cultura do Norte,

2006. P. 79-86.

Isabel Maria Fernandes − A arte de bem cozinhar os alimentos, em Guimarães. In As artes e as

mãos da história: o artesanato vimaranense. Guimarães: Oficina: centro de artes e mesteres

tradicionais, 2006. P. 120-129.