Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

6
Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398 393 Uma aproximação estética ao corpo desportivo Teresa O. Lacerda Faculdade de Desporto Universidade do Porto Portugal RESUMO Na sociedade mediatizada do século XXI, em que a imagem desempenha um papel crucial, a imagem do corpo desportivo adquiriu um protagonismo nunca antes alcançado. O corpo des- portivo converteu-se no corpo da moda, exercendo uma forte atracção sobre o imaginário social, que procura continuamente aproximar o seu corpo do cânone instituído. Se é certo que a atracção sobre a forma é algo que caracteriza o domínio da Estética, certo é também que, enquanto categoria antropo-filosófica, a Estética refere-se a, pela forma, atingir uma singularidade. Erradamente, a Estética do Desporto é associada, quase de maneira exclusiva, às formas do corpo de alguns desportistas. O presente trabalho procura evidenciar que a morfologia corporal constitui, certamente, um factor de influência na estruturação da experiência estética desencadeada pelo Desporto. Contudo, sublinha-se de modo enfático, que o olhar estético amplia, ao invés de reduzir, as possibilidades do corpo desportivo, o que significa que a diversidade de tipos morfológicos exibida por esse corpo, expressa a sua pluralidade em termos de valor estético. Palavras-chave: corpo, desporto, estética ABSTRACT Sporting body aesthetics: an overview In mediatised XXI st century society, image gets an important role and sporting body image acquired a protagonism never ever reached before. Sporting body became synonym of the fashion body, exerting a strong attraction through the social imaginary that keeps on reaching to approach its body to the established canon. Aesthetics dominium is characterized by shape attraction but, as an anthropological and philosophical category, Aesthetics deals with reach- ing, through shape, some kind of singularity. Erroneously, the Aesthetics of Sport is associated, in almost an exclusive way, to some sportsmen body shapes. The present study aims to enhance that body morphology is certainly an influence factor in the construction of aes- thetic experience through sport. Nevertheless, it is strongly emphasized that the aesthetic way of looking extends, and not reduces, sporting body possibilities, which means that sporting body morphologic diversi- ty expresses its plurality in what concerns its aesthetic value. Key-words: body, sport, aesthetics

Transcript of Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Page 1: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398 393

Uma aproximação estética ao corpo desportivo

Teresa O. Lacerda Faculdade de DesportoUniversidade do PortoPortugal

RESUMONa sociedade mediatizada do século XXI, em que a imagemdesempenha um papel crucial, a imagem do corpo desportivoadquiriu um protagonismo nunca antes alcançado. O corpo des-portivo converteu-se no corpo da moda, exercendo uma forteatracção sobre o imaginário social, que procura continuamenteaproximar o seu corpo do cânone instituído.Se é certo que a atracção sobre a forma é algo que caracteriza odomínio da Estética, certo é também que, enquanto categoriaantropo-filosófica, a Estética refere-se a, pela forma, atingiruma singularidade. Erradamente, a Estética do Desporto éassociada, quase de maneira exclusiva, às formas do corpo dealguns desportistas. O presente trabalho procura evidenciarque a morfologia corporal constitui, certamente, um factor deinfluência na estruturação da experiência estética desencadeadapelo Desporto. Contudo, sublinha-se de modo enfático, que oolhar estético amplia, ao invés de reduzir, as possibilidades docorpo desportivo, o que significa que a diversidade de tiposmorfológicos exibida por esse corpo, expressa a sua pluralidadeem termos de valor estético.

Palavras-chave: corpo, desporto, estética

ABSTRACTSporting body aesthetics: an overview

In mediatised XXIst century society, image gets an important role andsporting body image acquired a protagonism never ever reached before.Sporting body became synonym of the fashion body, exerting a strongattraction through the social imaginary that keeps on reaching toapproach its body to the established canon.Aesthetics dominium is characterized by shape attraction but, as ananthropological and philosophical category, Aesthetics deals with reach-ing, through shape, some kind of singularity. Erroneously, theAesthetics of Sport is associated, in almost an exclusive way, to somesportsmen body shapes. The present study aims to enhance that bodymorphology is certainly an influence factor in the construction of aes-thetic experience through sport. Nevertheless, it is strongly emphasizedthat the aesthetic way of looking extends, and not reduces, sportingbody possibilities, which means that sporting body morphologic diversi-ty expresses its plurality in what concerns its aesthetic value.

Key-words: body, sport, aesthetics

Page 2: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398394

INTRODUÇÃOTransformações bruscas e profundas a nível social, eco-nómico, científico e tecnológico são alguns dos sinaisque marcam a sociedade contemporânea. Um outrosinal dos tempos é igualmente a valorização atribuídaao corpo: da ciência à filosofia, da arte ao desporto, ointeresse sobre o corpo manifesta-se numa multiplici-dade de discursos, em que a linguagem corporal seassume como uma forma de expressão que viabiliza epromove a comunicação e a inter-acção social. Comosinaliza Gil(5), existe uma invasão do culto do corpo euma profusão das suas significações.O desporto investe o corpo de movimento, permi-tindo-lhe um discurso individual e colectivo, quepossibilita algumas dessas significações. Se o movi-mento, em termos latos, se baseia num conjunto deritmos, mais ou menos coordenados (dos ritmosfisiológicos aos ritmos locomotores), o movimentodesportivo aufere a possibilidade de animar o corponuma dança que se identifica com a vida. Na socie-dade tecnológica do século XXI o desporto consti-tui uma das vias mais importantes de acesso docorpo ao movimento e o corpo que não experimen-ta o desporto, corre o risco de perder uma parteimportante da significação do movimento. No limi-te a ausência de movimento do corpo humano tra-duz a doença ou a morte. Contemporaneamente, a importância do desporto napreservação da saúde e na manutenção de um corpocuja morfologia respeite os padrões impostos social-mente, é por demais evidente. É pacífico que o des-porto se manifesta como um meio de prevenção eprofilaxia da doença, assim como de aquisição e con-servação de uma forma corporal tão próxima, quantopossível, do designado corpo da moda.Ao longo da história, a actividade desportiva temreflectido os princípios e valores dominantes emcada época, assumindo-se como um espaço impor-tante de manifestação dos diferentes tipos de relaçãoque o homem vai estabelecendo com o corpo. Ocorpo próprio do pastor nómada pré-histórico, cujo diaa dia se traduzia na luta constante pela sobrevivên-cia, era um corpo em movimento: marchar, trepar,correr, saltar, lançar, levantar, transportar, fazia partedo seu reportório motor; a excelência da performancemanifestava-se por meio do sucesso na defesa contraos perigos a que se expunha diariamente.

Posteriormente, o corpo colectivo do agricultor seden-tário procurava estar apto a zelar pela protecção davida de cada comunidade. As práticas ludo-desporti-vas actuais encontram na dança, na caça, na natação,na canoagem, na corrida, nos lançamentos ou nossaltos do homem pré-histórico, a sua origem. Ocorpo da antiguidade clássica era um corpo unitário,que se robustecia por meio do exercício e se edifica-va através da literatura e da música. A idade média,por seu lado, difundiu a concepção dualista do corpo:o fanatismo e a superstição exprimiam-se atravésdum corpo físico que era local de confronto entre obem e o mal, substância carnal na qual se manifesta-va a tentação, a corrupção, a doença; o corpo espiri-tual era o locus da alma, que aspirava à pureza e àsalvação. A caça, a arte de cavalgar, os jogos e adança faziam parte da actividade física. Os períodoshistóricos que se sucederam foram alternando entreas concepções de corpo unitário e corpo fragmentário,evoluindo-se progressivamente dos exercícios corpo-rais para a actividade desportiva regulamentada enorteada pelo princípio do rendimento.No presente trabalho evidencia-se a importância docorpo desportivo na compreensão da estética do des-porto, ou seja, reflecte-se acerca daquele corpo queelege o movimento desportivo como forma deexpressão e se converte num elemento matricial daestética do desporto. Detemo-nos no corpo desporti-vo da competição, da recreação, no corpo deficientee no corpo envelhecido.

A ESTÉTICA DO CORPO DESPORTIVODe forma equívoca, a estética do desporto é associa-da, quase exclusivamente, às formas do corpo dealguns desportistas o que, em termos de tipo morfo-lógico, radica no ectomorfismo – percentagem eleva-da de massa magra e muscularidade moderada. Amorfologia corporal interfere, naturalmente, narepresentação da estética do corpo desportivo, eintervém como um factor de influência na estrutura-ção da experiência estética desencadeada pelo des-porto. Contudo, o olhar estético amplia, ao invés dereduzir, as possibilidades desse corpo, o que significaque a diversidade de tipos morfológicos exibida pelocorpo desportivo expressa as suas potencialidadesem termos de valor estético.

Teresa O. Lacerda

Page 3: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398 395

Ao metamorfosear-se, pelo exercício físico e pelotreino, o corpo desportivo evidencia-se, na expressãode Cunha e Silva(3) como um corpo de variabilidades,que revela todas as suas possibilidades plásticas porintermédio do movimento desportivo. A plástica docorpo em movimento traduz-se nas linhas, formas,relevos, volumes daquele corpo que preenche o espa-ço e ocupa o tempo com o movimento. O corpohumano, graças ao treino intensivo a que pode sersubmetido, adquire qualidades e graus de plasticida-de optimais. Pode quase afirmar-se que o corpo éuma matéria plástica, no sentido em que é, de certaforma, modelável (pelo exercício físico e pelo trei-no). No domínio das artes plásticas, a intensa atrac-ção pelas formas do corpo, remonta à arte pré-histó-rica, constituindo-se a Vénus de Willendorf (datadade cerca de 40.000 anos a.c.) como uma das suasreferências basilares. De formas espessas, abdómensaliente, ancas largas, seios volumosos e coxas enor-mes, esta mulher gorda simbolizava a fertilidade etambém a saúde, a abundância e a prosperidade,numa época ameaçada pela fome e pela privação.Esta obra remete para a aparência de alguns corposcontemporâneos dos países mais desenvolvidos: sãocorpos marcados pelo excesso de peso, pela era dafast-food. Curiosamente, em alguns países subdesen-volvidos e em vias de desenvolvimento, o excesso depeso começa a ser uma marca que se inscreve nocorpo das populações, a evidenciar que os alimentoscalóricos são baratos e que a obesidade pode tradu-zir também um sinal de pobreza.As proporções do corpo sempre fascinaram os artis-tas, representando-as como uma realidade mágica,no caso da arte egípcia, ou como um ideal estético,na arte grega, ou sendo celebradas como uma incar-nação visível da harmonia musical e astral, na arterenascentista(7), que teve o mérito de trazer à repre-sentação pictórica do corpo, a tridimensionalidade.As vanguardas artísticas do século XX, que rompe-ram com o academismo e com o impressionismo,encontraram em Nu bleu de Matisse (1907) e nasDemoiselles d’Avignon de Picasso (1907), as referên-cias que anunciam a arte conceptual, que parte embusca de símbolos e de relações abstractas. As novasimagens rompem com todos os cânones estéticos,procurando provocar prazer, mas buscando tambémensinar a interpretar o mundo com olhos diferen-

tes(4). Contemporaneamente os artistas representamo corpo, cada um segundo uma tradução específicada sua visão: da representação figurativa ao isola-mento de partes do corpo, transformadas, deforma-das, ocultas, conjugadas de acordo com lógicas pes-soais e expressas por técnicas próprias. O corpo des-portivo tem inspirado a arte do nosso tempo: a lite-ratura, o cinema, a arquitectura, a fotografia, a pin-tura, a escultura ou a dança, encontram na liberdadede movimentos expressa pelo corpo desportivo,fonte originária para a criação artística. O atleta jogacom o valor estético do desporto, expondo categoriascomo a força, a velocidade, a habilidade ou a dispu-ta, produzindo no artista um sentimento de identi-dade, que o impele a entrar no jogo. A participar nograndioso e mediático jogo de futebol, no qual ocorpo colectivo encontra um dos espaços mais excelen-tes de expressão, ou no não menos grandioso eigualmente mediático combate de boxe, protagoniza-do pelo corpo individual. A propósito do último filmeque integra o que pode ser já considerado como ummarco na cinematografia dedicada ao desporto, aantologia Rocky, é oportuno evocar o fascínio que oboxe tem exercido sobre a arte. O corpo do boxeur étreinado e disciplinado para resistir e sobreviver,qual metáfora da inexorável condição humana. Onada ou a glória, como refere Antón Castro(2), escritorespanhol da actualidade, que encontra no desporto aexaltação das linguagens do corpo.

A estética do corpo da competiçãoDo corpo da competição do atleta de alto rendimen-to, espera-se perfeição e excelência de movimentos.De forma extemporânea e algo simplista, a perfeiçãopode remeter para uma certa fidelidade a estereóti-pos técnicos, isto é, pode sugerir reprodução, imita-ção de modelos. É possível, contudo, realizar outrasleituras acerca desta categoria. Na perfeição existe,de facto, uma afinidade com modelos técnicos que,até certo ponto, pode ser entendida como imitação.Aristóteles afirmava que imitar é co-natural aohomem, é reconhecer o que está fora de si e exerceatracção, determinando uma escolha que exige imi-tação. De acordo com esta perspectiva, nenhum actoimitativo é passivo ou inócuo; imitar é partilhar, poradesão profunda às disposições daquilo que se imita.Pode-se, contudo, imitar de muitas maneiras dife-

Estética e corpo desportivo

Page 4: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398396

rentes, o significa, segundo Aristóteles, e de acordocom o seu conceito de mimesis, que toda a imitação édiferença(1). Assim, permite-se ao observador distin-guir naquela forma determinada de execução técnica,uma certa autonomia e singularidade, não se tratan-do, portanto, de uma cópia literal. A tecnicidade nãopode ser redutível à simples disposição imitativa,traduzindo-se, antes, numa actualização dos mode-los, que revela a dinâmica produtiva humana.No desporto passa-se algo de muito semelhante aoque acontecia com os pintores impressionistas, queusavam de forma repetida o mesmo modelo, funda-mentados em duas ordens de razões: a inesgotabili-dade do modelo e o sentimento de que nunca conse-guiam verdadeiramente atingi-lo. No desporto,quando uma técnica passa a estar completamentedominada e rotinizada o atleta aspira a criar algo denovo. Não se trata apenas do estilo que o desportistaé capaz de manifestar quando domina habilmenteuma técnica, mas sim de desenvolver novas formaspara atingir o mesmo objectivo.Perfeição e excelência remetem também para virtuo-sismo, que pode ser entendido como a capacidadeque alguém possui em conseguir ser tão perfeito tec-nicamente, que acaba por contaminar esteticamentequem o observa. A estética do desporto prende-semuito com este “contágio”, com o fascínio que oatleta em movimento é capaz de exercer sobre oobservador. Ao expressar-se através do corpo, o movimento des-portivo adequa-se, ao mesmo tempo que é adequa-do, ao morfótipo do atleta. Da ginasta de rítmica oudo saltador em altura espera-se linearidade, que per-mita amplitude de movimentos e grande impulsãovertical; do halterofilista ou do culturista espera-sesignificativa hipertrofia muscular que possibilitemanifestações superlativas de força em regime depotência; dos lutadores sumo esperam-se quantitati-vos excepcionais de massa gorda. O corpo do des-portista comunica, é um corpo-livro(8), que possuiuma certa gramática de gestos(5) e que, através da suanarrativa, conta a história daquela pessoa que é oatleta. A harmonia entre o tipo morfológico e a tipo-logia do movimento é fundamental neste processode comunicação. Procura-se uma relação perfeitaentre forma e função, ou seja, entre o modelo docorpo e o movimento que lhe é requerido pela

modalidade em causa. A experiência estética induzi-da pela observação de desporto encontra na variabili-dade morfológica do corpo desportivo, alguns dosnutrientes que a alimentam e potenciam. Comosublinha Cunha e Silva(3), o desporto tem a capacida-de de comunicar ao movimento corporal uma mais-valia estética. Trata-se como que de uma injecçãocromática com que o Desporto valora o movimento.

A estética do corpo da recreaçãoNa sociedade mediatizada do século XXI, em que aimagem desempenha um papel crucial, a imagem docorpo desportivo adquiriu um protagonismo nuncaantes alcançado. O corpo limpo, plano, lustroso,jovem, saudável, sedutor, exerce uma forte atracçãosobre o imaginário social que, a qualquer preço, pro-cura aproximar o seu corpo deste estereótipo tãodifundido. Se é certo que a atracção sobre a forma éalgo que caracteriza o domínio da estética, certo étambém que, enquanto categoria antropo-filosófica,a estética se refere a, pela forma, atingir uma singula-ridade. Não é isto, contudo, que os clientes dosginásios, health clubs, fitness centers, clubes de saúde,etc., procuram. Neste locais, orientados pelos valo-res da economia de mercado, imperam os princípiosdo rendimento, da eficácia, da competitividade. Olucro exprime-se por meio do consumo calórico, aeficiência na depleção dos açúcares e das gordurastraduz a eficácia dos programas de treino, a concor-rência expõe-se nas imagens reflectidas pelos espe-lhos que não mentem nem iludem. O cliente queagora pedala no cicloergómetro, rumo a um destinonunca alcançado, pode até não saber o nome do seucolega do lado que rema no vazio, de mãos presas aoremoergómetro, estranho passageiro de uma embar-cação que desliza por um rio sem margens nem cau-dal. No entanto, ele conhece ao pormenor a topogra-fia do corpo do seu companheiro de viagem, elesrelacionam-se pelo olhar antroposcópico. Como refe-re Gumbrecht(6) os frequentadores de ginásios são,ao mesmo tempo, atletas e espectadores. Nestesespaços, mais de vigilância inter-corporal do que deinter-acção social, a estética revela-se na sua acepçãomais próxima do senso comum, como meio de atin-gir objectivos pessoais e reconhecimento social. É aestética do instituto de beleza, da massagem e depi-lação, da cosmética e da maquilhagem. Não deixa de

Teresa O. Lacerda

Page 5: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398 397

ser, naturalmente, uma dimensão da estética, a dasuperfície. Mas a superfície por si só, isolada, defi-nha e extingue-se; existe para permitir a comunica-ção, a articulação com a profundidade, a manifesta-ção do interior. A estética, ao olhar a superfície, olhaem profundidade e exerce uma influência sobre ointerior.

A estética do corpo deficienteNo movimento do corpo diferente, deficiente, o des-porto descobriu um outro espaço para manifestar asua estética. Na sociedade da imagem em que esta-mos imersos o corpo é, como salienta Rodrigues(9)

“um factor de inclusão ou de exclusão social. A comunica-ção que ele veicula aproxima ou afasta as pessoas de deter-minadas realidades sociais.” (p. 40). As malformaçõescorporais, congénitas ou adquiridas, atentam contraa integridade estética e funcional do corpo. Os indi-víduos deficientes podem apresentar uma aparênciafísica que choca e angustia os ditos normais, que têmdificuldade em reconhecer valor estético no corpodiferente. Portadores de um corpo que se afasta doestereótipo do corpo da pessoa dita normal, o corpodeficiente é frequentemente considerado menosbelo, despertando atitudes de rejeição e de repulsa.O desporto para deficientes, que tem o seu expoentemáximo no desporto paralímpico, sinaliza um exem-plo de como o corpo deficiente possibilita a aberturaa novos olhares sobre o corpo desportivo, olharesesses que alargam e enriquecem os horizontes daestética do desporto. A força, a graça, a perfeição, aelegância, o equilíbrio, o ritmo, a harmonia, a criati-vidade, a transgressão, a superação, adquirem umvalor semântico acrescentado por meio das perfor-mances exibidas pelo corpo desportivo deficiente. Seé certo que o desporto de alta competição exigededicação, talento e desgaste físico, do desportistadeficiente ele exige tudo isto de forma ampliada, namedida em que à luta para chegar mais alto, e sermais rápido e mais forte, se junta o combate contraos estigmas que o acompanham, enquanto portadorde um corpo deficiente. Deste modo, a categoriasuperação contribui de forma muito expressiva paraa estética do desporto para deficientes.Busca, força, inspiração, celebração foram o lema dosJogos Paralímpicos de Atenas 2004. Os heróis damitologia grega, que ultrapassavam a sua capacidade

humana, oferecendo narrativas únicas com as suasconquistas, revelam-se como uma imagem excelenteda transcendência a que o corpo deficiente acedeatravés do movimento desportivo. Busca do nuncaantes alcançado, força para mostrar que quando osdeficientes são a referência, os diferentes podem seros normais, inspiração na criação de momentos deuma emocionalidade singular, celebração da liberda-de, que não se aprisiona em corpo nenhum, muitomenos no do desportista deficiente.

A estética do corpo envelhecidoA liberdade do corpo por meio do desporto expressa-se também através do desporto para seniores, queredimensiona o valor estético do corpo. A sociedadecontemporânea impõe o desequilíbrio entre a idadebiológica e a aparência física, de modo que envelhe-cer deixou de ser natural, tornou-se quase perverso.Há que envelhecer mantendo um aspecto belo,jovem e saudável. É certo que a associação entre des-porto e saúde é hoje em dia incontestável, parecendomuito consistente a fundamentação científica quantoaos benefícios do exercício físico na redução, porexemplo, dos acidentes cardiovasculares e dos aci-dentes vasculares cerebrais, sobretudo devido aocontrolo e diminuição dos factores de risco. Masqual o papel da estética no domínio do desportopara os mais velhos? Ao nível do senso comum, opapel do desporto respeita, principalmente, à manu-tenção de uma forma física que se afaste da flacideze da obesidade. Para as mulheres, sobre as quais apressão social relativamente ao estereótipo corporalse exerce de forma bem mais acentuada do que emrelação aos homens, a utilização do desporto comoum meio de esculpir o corpo pode tornar-se quaseuma obsessão. Numa sociedade em que se inventame reinventam, a um ritmo frenético, meios para man-ter a juventude, mas em que não se ensina a lidar e aaceitar o declínio do corpo com a idade, as categoriasmorais culpa e censura podem perturbar significativa-mente o quotidiano do género feminino (e cada vezmais também o do masculino). No domínio filosófi-co, a estética há muito transpôs a norma, o padrão, ocânone. O olhar estético procura insistentementedesvendar novas formas nas formas estereotipadas,jogar com a luz, com as sombras, com o espaço, como tempo, com o belo e com o feio. O nosso corpo

Estética e corpo desportivo

Page 6: Uma Aproximação Estética Ao Corpo Desportivo

Rev Port Cien Desp 7(3) 393–398398

deve ser um lar, não uma prisão. A forma como ovemos e como com ele convivemos deve ser estética,mas não no sentido anestésico que prolifera actual-mente. Os gordos, os baixos, os calvos, os flácidos, ospouco bronzeados, os velhos, são invisíveis, estamosanestesiados perante a sua presença, eles tornam-setransparentes aos nossos olhos. No entanto, o corpoenvelhecido tem um valor estético próprio, ele pre-serva a memória da vida por que passou, revela ahistória do ser do homem no mundo. No domínioestético, o desporto para seniores terá que projectarpara primeiro plano a categoria estética liberdade. Ocorpo envelhecido que pratica desporto é mais livre,não apenas porque tem mais força, maior amplitudede movimentos, mais agilidade, mais equilíbrio, mastambém porque é mais capaz de conciliar a aparênciacom a essência. Se actualmente o desporto pode ser olhado comomais um dos palcos em que o corpo contemporâneooscila entre um desejo de superfície e um desejo deprofundidade, a estética do corpo desportivo poderepresentar um espaço de conciliação e de harmonia,espaço de libertação, e não de constrangimento, dodesportista e do homem do século XXI.

CORRESPONDÊNCIATeresa Oliveira LacerdaFaculdade de DesportoRua Dr. Plácido Costa, 914200-450 PortoPortugalE-mail: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Aristóteles (1998). Poética. Tradução, prefácio, introdução,

comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. 5ª ed. Lisboa:Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

2. Castro, A. (2006). Deporte, arte y cultura [Em linha].[Consult.2007-03-07]. Disponível emhttp://antoncastro.blogia.com/2006/030201-deporte-arte-y-cultura.php

3. Cunha e Silva, P. (1999). O lugar do corpo. Elementos parauma cartografia fractal. Lisboa: Instituto Piaget.

4. Eco, U. (2004). História da Beleza. Algés: Difel. 5. Gil, J. (1997). Metamorfoses do corpo. 2ª ed. Lisboa : Relógio

D’Água Editores.6. Gumbrecht, H.U. (2006). In praise of athletic beauty. London

: The Belknap Press of Harvard University Press.7. Maisonneuve, J.; Bruchon-Schweitzer, M. (1981). Modèles

du corps et psychologie esthétique. Paris : PressesUniversitaires de France.

8. Ribeiro, A.P. (1994). Dança temporariamente contemporânea.Lisboa: Vega.

9. Rodrigues, D. (2005). Corporeidade e exclusão social. InDavid Rodrigues (ed.), O corpo que (des) conhecemos. CruzQuebrada: Faculdade de Motricidade Humana.

Teresa O. Lacerda