Uma causa rara de expectoração hemoptóica

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23 Revista GECP 2006; 1-2: 23-27 Caso clínico Uma causa rara de expectoração hemoptóica Ana Rego*, Ana Oliveira*, Ana Barroso**, Sara Conde**, Bárbara Parente***, Jorge Seada**** [email protected] * Interna do Internato Complementar de Pneumologia, ** Assistente Hospitalar de Pneumologia, *** Directora do Serviço de Pneumologia, **** Chefe de Serviço de Pneumologia. Serviço de Pneumologia (Director: Dr. Raul César Sá), Unidade de Pneumologia Oncológica (Responsável: Dr.ª Bárbara Parente). Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. RESUMO Os textilomas – gazes cirúrgicas retidas, são uma complicação iatrogénica rara que pode ter consequências médicas e médico-legais severas 1 . Os autores descrevem um caso clínico de uma paciente com quadro recorrente de expectoração hemoptóica, cujo estudo etiológico evidenciou a presença de uma gaze cirúrgica retida na cavidade pleural, após uma cirurgia cardíaca efectuada 24 anos antes. Discutem-se ainda alguns aspectos particulares desta iatrogenia, salientando-se a necessidade de medidas preventivas. Palavras-chave: expectoração hemoptóica, corpo estranho intratorácico, textiloma

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23Revista GECP 2006; 1-2: 23-27

Caso clínico

Uma causa rara de expectoração hemoptóica

Ana Rego*, Ana Oliveira*, Ana Barroso**, Sara Conde**, Bárbara Parente***, Jorge Seada****[email protected]

* Interna do Internato Complementar de Pneumologia, ** Assistente Hospitalar de Pneumologia,*** Directora do Serviço de Pneumologia, **** Chefe de Serviço de Pneumologia.Serviço de Pneumologia (Director: Dr. Raul César Sá), Unidade de Pneumologia Oncológica(Responsável: Dr.ª Bárbara Parente). Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.

RESUMO

Os textilomas – gazes cirúrgicas retidas, são uma complicação iatrogénica rara que pode ter consequênciasmédicas e médico-legais severas1.

Os autores descrevem um caso clínico de uma paciente com quadro recorrente de expectoração hemoptóica,cujo estudo etiológico evidenciou a presença de uma gaze cirúrgica retida na cavidade pleural, após uma cirurgiacardíaca efectuada 24 anos antes.

Discutem-se ainda alguns aspectos particulares desta iatrogenia, salientando-se a necessidade de medidaspreventivas.

Palavras-chave: expectoração hemoptóica, corpo estranho intratorácico, textiloma

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CASO CLÍNICO

MCPS, sexo feminino, 58 anos de idade, raçacaucasiana, casada, reformada (ex-operária defábrica de algodão) e não fumadora.

Antecedentes patológicos conhecidos deamigdalectomia na infância, tuberculose pulmo-nar em 1977, estenose mitral de grau modera-do, tendo sido submetida a comissurectomia em1978, insuficiência cardíaca classe II NYHA e fi-brilação auricular crónica. Hipocoagulada comvarfarina, encontrando-se ainda medicada comdigoxina, hidroclorotiazida/amiloride e lorazepam.

Referenciada à consulta de pneumologia on-cológica por clínica de tosse com expectoraçãohemoptóica e dispneia para médios esforços.

Encontrava-se clinicamente estável até cer-ca de 1 mês antes da data da consulta, alturaem que iniciou quadro caracterizado por tossecom expectoração hemoptóica de predomíniomatinal, dispneia para médios esforços e pieiraesporádica. Negava outras queixas do foro res-piratório ou sintomatologia geral, nomeadamen-te: febre, emagrecimento, anorexia, astenia ousudorese.

Objectivamente apresentava-se com bomestado geral, sem sinais de dificuldade respira-tória, apirética, normotensa, com pulso arrítmi-co mas com frequência cardíaca controlada.Auscultação pulmonar alterada por discreta di-minuição do murmúrio vesicular na base esquer-da e auscultação cardíaca arrítmica, sem so-pros identificáveis. Abdómen sem alteraçõesrelevantes. Apresentava ainda discreto edemamaleolar bilateral. Sem outras alterações doexame objectivo, nomeadamente linfadenopa-tias periféricas.

Analiticamente sem anemia ou leucocitose,velocidade de sedimentação normal e parâme-tros bioquímicos dentro da normalidade. Marca-

dores tumorais sem alterações. Tinha estudo dacoagulação de acordo com os valores preconi-zados para a patologia de base.

A telerradiografia do tórax realizada na datada consulta mostrava elevação da hemicúpuladiaframática esquerda, com obliteração do fun-do de saco e hipotransparência linear supra-dia-fragmática homolateral (Figura 1). Em exameimagiológico de 1986 (trazido pela doente) cons-tatava-se sobreposição das imagens descritas.

Para esclarecimento do quadro efectuou TACtorácica que revelou a presença de lesão nodu-lar 3 x 5 cm de diâmetro que obliterava o fundode saco costo-frénico posterior esquerdo, dedependência pleural/diafragmática, parcialmen-te calcificada, de carácter expansivo (Figura 2).

Posteriormente realizou broncofibroscopiaque mostrou: árvore brônquica esquerda comsecreções purulentas abundantes que se aspi-ravam e refaziam com alguma facilidade nos

Figura 1.

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brônquios basais, que tinham aspecto difusa-mente inflamatório.

O estudo microbiológico do aspirado brônqui-co foi negativo (incluindo a pesquisa de BAAR),a citologia do lavado broncoalveolar e do esco-vado brônquico excluiu a presença de célulasmalignas e a biopsia transbrônquica não reve-lou desvios morfológicos.

Clinicamente mantinha expectoração he-moptóica a que se associou entretanto astenialigeira.

Na ausência de diagnóstico decidiu-se entãoefectuar biopsia aspirativa transtorácica, cujaanálise citológica foi inconclusiva quanto à natu-reza da lesão: “fundo hemático, com histiócitose células de citoplasma abundante mal definidoe com multinucleação – células musculares?Células gigantes multinucleadas? Outras?. Iden-tificam-se ainda raras células mesoteliais e reta-lhos de tecido fibroso”. Em consulta de grupo depneumologia oncológica, atendendo à estabili-dade clínica e radiológica (lesão de 1986 seme-

lhante à actual), optou-se por manter vigilânciaclínica e repetir a TAC torácica dentro de 3 me-ses. Nesse período a doente manteve esporadi-camente expectoração hemoptóica e astenia.

A TAC torácica de controlo mostrou imagemnodular subpleural esquerda que apresentavaáreas hipodensas de provável necrose central,medindo cerca de 3 x 5 cm de maior diâmetro.Sem derrame ou adenopatias associadas.

Pela manutenção da clínica, associada à evo-lução radiológica da lesão nos últimos 3 meses(nódulo com necrose central), a doente foi pro-posta e aceite para toracotomia.

A toracotomia resultou em exérese de lesãodo fundo de saco costo-frénico esquerdo, tendo--se verificado que se tratava de um corpo estranho.

O exame anatomo-patológico do mesmomostrou: “O produto enviado consta de gaze como volume equivalente ao de uma esfera de 5 cmde diâmetro embebida em sangue e parcialmenterevestida por retalhos tecidulares acastanhadose moles que ao exame histológico se identificamcomo parênquima pulmonar e tecido conjuntivocom sinais de hemorragia antiga e infiltrado his-tiocitário – textiloma”

DISCUSSÃO

Os corpos estranhos (CE) intratorácicos po-dem ser divididos em três grupos etiológicos: CEde aspiração, traumático ou iatrogénico2.

A maior parte dos casos de CE iatrogénicosdescritos na literatura estão relacionados com amigração de objectos metálicos (fio guia paralocalização pré operatória de lesão mamária3,segmento de arame de fixação esternal4), noentanto a presença de compressas e instrumen-tos cirúrgicos tem também sido descrita comocomplicação pós-operatória.

Figura 2.

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A incidência actual dos textilomas pós-ci-rurgia é difícil de estimar, mas sabe-se que nosúltimos anos esta complicação praticamentedesapareceu, devido à contagem sistemáticadas gazes utilizadas durante acto cirúrgico,antes do encerramento da ferida operatória2.No entanto, este tipo de complicação tem sidodescrita com alguma frequência em cirurgiasefectuadas antes desta política ser amplamen-te utilizada, de que é exemplo o caso apre-sentado, em que o corpo estranho encontradofoi uma peça de gaze, que ficou na cavidadetorácica após uma cirurgia cardíaca efectuada24 anos antes.

De acordo com a literatura, esta iatrogeniaparece ser mais frequente no contexto de cirur-gia geral e gastrointestinal, seguindo-se a cirur-gia obstétrica/ginecológica e a ortopédica5.

Clinicamente pode manifestar-se por qua-dro de pneumonia recorrente, expectoraçãohemoptóica, hemorragia pulmonar e empiemaloculado6. Os textilomas podem ainda ser acha-dos radiológicos acidentais e serem inicialmen-te interpretados como massas tumorais7. Comoilustrado neste caso, em que a manifestaçãoinicial de expectoração hemoptóica aliada àimagem radiológica, nos fez suspeitar de pa-tologia tumoral.

Os textilomas podem não ser detectados natelerradiografia de tórax convencional devidoao uso de compressas sem marcadores radio-pacos (cada vez mais raras) ou pela falta defamiliaridade com o padrão radiológico destesmarcadores8.

A tomografia computorizada é actualmente ométodo de eleição no diagnóstico desta entida-de9. Numa revisão de 11 textilomas, efectuadapor Klaric Kustovic et al, a presença de bolhasde ar entre as fibras têxteis foi o sinal mais fre-quentemente referenciado pelos radiologistas,

tendo também sido detectado em todos os ca-sos uma banda periférica de 3 a 10 mm9.

A terapêutica dos textilomas intrapleurais pas-sa pela sua exérese por toracotomia ou toracos-copia, e a sua remoção está indicada, mesmoem doentes assintomáticos, pois o risco daseventuais complicações não é justificável6.

CONCLUSÃO

O diagnóstico de um textiloma pressupõe umasuspeição clínica importante, pelo que no con-texto de antecedentes de cirurgia torácica, parti-cularmente não recente, em doente com clínicade supuração brônquica e/ou hemoptises, alia-da a uma alteração radiológica comprovadamen-te antiga, devemos considerar este diagnósticodiferencial.

As implicações clínicas e médico-legais des-ta iatrogenia tornam mandatória a contagem dasgazes e instrumentos durante cada intervençãocirúrgica2, bem como enfatizam o uso de marca-dores radiopacos nas compressas utilizadas nascirurgias7.

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9. Klaric Custovic R, Krolo I et al. Retained surgicaltextilomas occur more often during war. Croat MedJ 2004; 45: 422-6.

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