UMA OUTRA COMUNICAÇÃO VISUAL NO MOBILIÁRIO … · Optou-se por localizar os exemplos na região...

12
1 UMA OUTRA COMUNICAÇÃO VISUAL NO MOBILIÁRIO URBANO DE CURITIBA KANDO FUKUSHIMA 1 MARILDA LOPES PINHEIRO QUELUZ 2 Resumo: O presente artigo apresenta, através de exemplos de impressos afixados no mobiliário urbano do centro de Curitiba, questões relacionadas aos usos dos artefatos no cotidiano, a comunicação visual não institucionalizada e a dinâmica da paisagem urbana. Dentre os suportes utilizados para a comunicação visual, o mobiliário urbano representa uma ideia de limpeza e organização, mas também de descarte e transitoriedade. Além dos espaços previstos para a colocação de peças publicitárias tradicionais, o uso desses artefatos como suporte irregular de cartazes e outros impressos evidencia a necessidade de ocupação/apropriação dos meios institucionalizados de comunicação diante da diversidade de demandas sociais. A região central possui a maior concentração demográfica da cidade e é sede dos principais órgãos do poder administrativo do Estado e do município. É o espaço mais recorrente das grandes manifestações públicas e ponto de encontro da heterogeneidade cultural e política da cidade. Entende-se que a construção de outras vias de comunicação visual apresenta o espaço urbano e sua organização como prática, representação e constituição de contradições. As configurações técnicas hegemônicas e outros usos alternativos podem ser analisados por um viés crítico de autores como Henri Lefebvre e Andrew Feenberg, dentro do campo dos estudos em Tecnologia e Sociedade. Palavras-chave: Cartazes; Paisagem Urbana; Curitiba. INTRODUÇÃO Afirmar que as cidades, principalmente os grandes centros urbanos, são espaços de conflito e contradições parece ser algo praticamente indiscutível. Observar atentamente uma rua no centro de uma grande capital pode nos inspirar as mais diversas reflexões. Os contrastes se materializam nos corpos, nos artefatos, nos sons, nos cheiros. Os passos ligeiros de alguém que passa por um idoso que lê calmamente as manchetes numa banca de jornal. Um carro luxuoso conduzido solitariamente ultrapassa o ônibus lotado. Um cartaz enorme, encaixado numa estrutura resistente de metal e plástico, no meio da calçada, anuncia o último lançamento de uma rede de fast food diante de um faminto morador de rua. Este breve artigo pretende destacar alguns artefatos gráficos encontrados no centro da capital paranaense, Curitiba, a fim de problematizar os usos da comunicação visual na cidade. Entende-se que suas configurações e usos estabelecem com os transeuntes uma relação 1 Msc., UTFPR/PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Dra., UTFPR/PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected]

Transcript of UMA OUTRA COMUNICAÇÃO VISUAL NO MOBILIÁRIO … · Optou-se por localizar os exemplos na região...

1

UMA OUTRA COMUNICAÇÃO VISUAL NO

MOBILIÁRIO URBANO DE CURITIBA KANDO FUKUSHIMA1

MARILDA LOPES PINHEIRO QUELUZ2

Resumo: O presente artigo apresenta, através de exemplos de impressos afixados no

mobiliário urbano do centro de Curitiba, questões relacionadas aos usos dos artefatos no

cotidiano, a comunicação visual não institucionalizada e a dinâmica da paisagem urbana.

Dentre os suportes utilizados para a comunicação visual, o mobiliário urbano representa uma

ideia de limpeza e organização, mas também de descarte e transitoriedade. Além dos espaços

previstos para a colocação de peças publicitárias tradicionais, o uso desses artefatos como

suporte irregular de cartazes e outros impressos evidencia a necessidade de

ocupação/apropriação dos meios institucionalizados de comunicação diante da diversidade de

demandas sociais. A região central possui a maior concentração demográfica da cidade e é

sede dos principais órgãos do poder administrativo do Estado e do município. É o espaço mais

recorrente das grandes manifestações públicas e ponto de encontro da heterogeneidade

cultural e política da cidade. Entende-se que a construção de outras vias de comunicação

visual apresenta o espaço urbano e sua organização como prática, representação e constituição

de contradições. As configurações técnicas hegemônicas e outros usos alternativos podem ser

analisados por um viés crítico de autores como Henri Lefebvre e Andrew Feenberg, dentro do

campo dos estudos em Tecnologia e Sociedade.

Palavras-chave: Cartazes; Paisagem Urbana; Curitiba.

INTRODUÇÃO

Afirmar que as cidades, principalmente os grandes centros urbanos, são espaços de

conflito e contradições parece ser algo praticamente indiscutível. Observar atentamente uma

rua no centro de uma grande capital pode nos inspirar as mais diversas reflexões. Os

contrastes se materializam nos corpos, nos artefatos, nos sons, nos cheiros. Os passos ligeiros

de alguém que passa por um idoso que lê calmamente as manchetes numa banca de jornal.

Um carro luxuoso conduzido solitariamente ultrapassa o ônibus lotado. Um cartaz enorme,

encaixado numa estrutura resistente de metal e plástico, no meio da calçada, anuncia o último

lançamento de uma rede de fast food diante de um faminto morador de rua.

Este breve artigo pretende destacar alguns artefatos gráficos encontrados no centro da

capital paranaense, Curitiba, a fim de problematizar os usos da comunicação visual na cidade.

Entende-se que suas configurações e usos estabelecem com os transeuntes uma relação

1Msc., UTFPR/PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected] 2Dra., UTFPR/PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected]

2

contraditória e crítica no escopo das práticas do cotidiano, demonstrando uma parcela da

diversidade de interesses e demandas sociais.

Optou-se por localizar os exemplos na região central da capital por esta concentrar a

maior circulação de pessoas na cidade e ser o principal local de realização das grandes

manifestações públicas. A circulação de pessoas no centro representa o encontro de diversos

grupos que habitam locais espalhados pela metrópole. Segundo dados do IPPUC (Instituto de

Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) de 2008, apenas o transporte coletivo movimenta

450 mil pessoas por dia útil na região, sendo que os moradores do bairro Centro representam

apenas uma população de 33 mil habitantes.

Além da concentração de pessoas durante o dia, é na região central que estão sediados

os principais órgãos do poder administrativo do Estado e do município, o que justifica

parcialmente a recorrência de manifestações. Além disso, destaca-se a facilidade de se

deslocar até essa área, uma vez que é um ponto de convergência do transporte público.

Para as análises deste texto, foram selecionadas fotos de cartazes afixados de forma

irregular no mobiliário urbano. Os dois exemplos de cartazes de cunho contestatórios aqui

estudados representam uma pequena parcela de uma pesquisa em andamento focada nesse

tipo de artefato gráfico.

Dentre as possibilidades de abordagem teórica serão apresentados alguns conceitos de

Andrew Feenberg e Henri Lefebvre, que se destacam por contribuírem com a crítica a respeito

da organização social hegemônica.

TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA E O DIREITO À CIDADE

Para discutir a produção e circulação dos cartazes afixados nos suportes não

institucionalizados, optou-se por uma reflexão a partir de dois autores principalmente:

Andrew Feenberg e Henri Lefebvre. O primeiro por apresentar uma abordagem crítica sobre

os processos que envolvem o desenvolvimento de artefatos e a própria noção de tecnologia e

Lefebvre, particularmente em sua obra "Direito à cidade", porque desenvolve uma reflexão

sobre os processos sociais e simbólicos dos fenômenos urbanos.

Feenberg e a Teoria Crítica da Tecnologia

A abordagem de Feenberg, chamada de Teoria Crítica da Tecnologia, enfatiza em suas

análises a dimensão social do desenvolvimento e a influência das tecnologias no cotidiano,

3

criticando a perspectiva política intrínseca das avaliações reducionistas que enfatizam os

critérios de eficiência e da ideia geral de racionalidade objetiva, e nos coloca como “objetos

da técnica”, dentro do discurso do determinismo tecnológico.

Em outras palavras, defende uma avaliação da tecnologia não como consequência de

uma necessidade técnica, cujo resultado tenderia a um sistema de controle social autoritário,

como ele argumenta ser a perspectiva de Max Weber e de Heidegger (principalmente seu

conceito de Gestell), mas fruto de uma dinâmica social de interesses políticos e sociais,

portanto históricos, circunstanciais, questionáveis e, em última instância, passíveis de

transformação em prol da “liberdade e da individualidade” (FEENBERG, 2010a, p.71).

Citando o autor:

O significado político desta posição, agora, também deveria ser esclarecido. Em uma

sociedade onde o determinismo monta a guarda nas fronteiras da democracia, o

indeterminismo não pode deixar de ser um fato político. Se a tecnologia tem muitas

potencialidades inexploradas, os chamados imperativos tecnológicos não podem impor a

hierarquia social atual. Em lugar disso, tecnologia é um campo de luta social, uma espécie de

parlamento das coisas, onde concorrem as alternativas civilizatórias (ibid., p.76).

Outro autor importante que contribui significativamente para a Teoria Crítica da

Tecnologia é Michel Foucault, citado diversas vezes no texto de Feenberg, particularmente

sua obra “Vigiar e Punir”. A partir deste autor, entende que as modernas formas de opressão

baseiam-se em "verdades técnicas", selecionadas pela hegemonia para reproduzir o sistema,

evidenciando as relações entre poder e conhecimento. Assim, "a efetividade legitimadora da

tecnologia depende da inconsciência do horizonte político-cultural na qual ela foi concebida"

(FEENBERG, 2010a, p.82) e os esforços críticos de recontextualizar a tecnologia

possibilitariam desmistificar o discurso técnico. Ou seja, no contexto da discussão deste

artigo, podemos nos perguntar: Quem estabelece as regras de uso dos espaços públicos?

Baseado em quais interesses? De que forma? Privilegiando quais grupos e excluindo quais

outros?

Por este viés, podemos citar duas categorias de análise dos objetos técnicos de

Feenberg: significado social e horizonte cultural.

No caso da comunicação nas ruas, podemos pensar em alguns significados sociais: a

ideia de espaço público, de circulação livre, componente da paisagem urbana e dispositivo de

uso comum. As regulamentações e o mobiliário urbano, que podem corresponder às “metas”,

nos termos de Feenberg, dos engenheiros, designers, administradores públicos, são aquelas

que evidenciam uma ideia de limpeza, organização e de conforto. No entanto, as

configurações técnicas restritivas, destacadas como mérito na cultura profissional

4

funcionalista 3 , podem ser interpretadas como estratégias que reforçam os interesses

hegemônicos e excluem outras possibilidades de uso do espaço urbano.

Este último aspecto, que considera o interesse hegemônico, pode ser analisado em

termos de horizonte cultural, que inclui os valores sociais mais amplos que extrapolam os

objetos técnicos específicos. Arraigada de forma profunda, para o autor, a hegemonia é uma

forma de dominação naturalizada na vida social, uma configuração de poder que possui a

“força da cultura”.

O significado social e a racionalidade predominante são dimensões inseparáveis pelo

viés da teoria crítica de Feenberg, ou aspectos duplos do objeto técnico e da tecnologia. No

caso da comunicação visual nas ruas, particularmente dos mobiliários urbanos, o trade-off (ou

troca compensatória), é a própria perda da liberdade do uso da paisagem urbana pública em

favor da decisão da administração municipal por uma determinada solução de organização e

limpeza dos espaços.

Henri Lefebvre e o "Direito à cidade"

Sobre o conceito de cidade e outros desdobramentos teóricos relacionados com a

urbanização, discute-se brevemente as ideias de Henri Lefebvre e, neste artigo em particular,

seu livro "Direito à cidade" publicado originalmente em 1968. Esta obra contribui para

pensarmos algumas das contradições e processos de disputa (social, econômica, simbólica) no

espaço urbano.

Entende-se que sua obra pode complementar em alguns aspectos a crítica de temas de

recorrentes em Feenberg, especialmente as questões ligadas ao conceito de racionalidade,

técnica e as de abordagens consideradas limitadas, fragmentadas, das "ciências parcelares"

nos termos de Lefebvre:

A ideologia pretende dar um caráter absoluto à “cientificidade”, incidindo a ciência sobre o

real, decupando-o, recompondo-o e com isso afastando o possível e barrando o caminho. Ora,

numa tal conjuntura, a ciência (isto é, as ciências parcelares) tem apenas um alcance

programático. Contribui com elementos para um programa. (...) Realiza-se um projeto sem

crítica nem auto-crítica, e esse projeto se realiza, projetando-a na prática, uma ideologia, a

ideologia dos tecnocratas (LEFEBVRE, 1969, p.106).

Observar a produção e circulação dos artefatos gráficos nas ruas, uma das “vozes” da

cidade, é uma prática que nos remete à ideia de investigar o cotidiano, “os ritmos, suas

ocupações, organização espaço-temporal, sua cultura clandestina, sua vida subterrânea”

3 Aqui nos referimos ao elogio às “decisões técnicas”, amplamente defendidas no discurso sobre a administração

pública como sendo supostamente aquelas alheias aos interesses políticos.

5

(idem, p.60). Para o autor, essa dimensão imediata e específica do cotidiano, na maioria das

vezes, mantém uma relação dialética com outras categorias mais amplas, dos processos

sociais gerais e ligadas ao Estado, que incorpora as instituições e as ideologias.

Ao identificar algumas das tendências do urbanismo, Lefebvre escreve:

o urbanismo dos administradores ligados ao poder público (estatal). Este urbanismo se

pretende científico. Baseia-se ora numa ciência, ora em pesquisas que se pretendem sintéticas

(pluri ou multidisciplinares). Este cientificismo, que acompanha as formas deliberadas do

racionalismo operatório, tende a negligenciar o "fator humano", como se diz. (...) Esse

urbanismo tecnocrático e sistematizado, com seus mitos e sua ideologia (a saber, o primado da

técnica) não hesitaria em arrasar o que resta da Cidade para dar lugar aos carros, às

comunicações, às informações ascendentes e descendentes. Os modelos elaborados só podem

entrar para a prática apagando da existência social as próprias ruínas daquilo que foi a Cidade

(LEFEBVRE, 1969, p.28).

As necessidades da sociedade urbana não estão prescritas, se revelam em sua

emergência. Para o autor, a superação das principais contradições da sociedade passam pela

ideia do socialismo, num sentido mais abrangente do que o da organização planificada da

produção (idem, p.117), e da revolução política, democrática e autogerida. Embora a

industrialização permaneça central no processo, para o autor, trata-se de uma superação pela

prática no cotidiano:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à

individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade

participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados

no direito à cidade (idem, p.124).

Segundo Gardiner (2000, p.99-101), a obra de Lefebvre é centrada num otimismo em

relação ao processos do cotidiano e das forças de contestação. Embora algumas de suas

considerações possam ser datadas, tendo sido revistas pelo próprio Lefebvre posteriormente, a

centralidade da ideia de participação e da vontade de transformação social são contribuições

que parecem pertinentes aos exemplos desse artigo.

COMUNICAÇÃO VISUAL EM CURITIBA

Discutir o processo de organização da comunicação visual nas ruas da capital

paranaense é uma forma de pensarmos sobre os argumentos utilizados pelo discurso oficial

(limpeza, organização, racionalização) e a influência de grandes interesses econômicos na

configuração da cidade. As regulamentações encaminhadas pela administração pública

normalmente diminuem ou, em alguns casos, proíbem a veiculação de formas de

comunicação de interesse diversificado.

6

Como exemplo desse discurso oficial e sua relação com interesses econômicos

específicos, podemos citar a notícia sobre uma das atualizações da regulamentação de

publicidade externa, de 2007, quando o então prefeito de Curitiba, Beto Richa, afirma que

“Queremos melhorar ainda mais a paisagem urbana e manter a qualidade da comunicação

publicitária nas áreas públicas" (PREFEITURA DE CURITIBA, 2016) na ocasião da

assinatura de um decreto assinado por representantes do Sindicato das Empresas de

Publicidade Exterior do Paraná (Sepex-PR), Sindicato da Habitação e Condomínios do Paraná

(Secovi); Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Paraná (Creci); Associação de

Empresas do Mercado Imobiliário do Paraná (Ademi) e do Sindicato da Indústria da

Construção Civil no Estado do Paraná (Sinduscon).

Desde de 2003, a empresa Clear Channel Adshel (atualmente Clear Channel Brasil)

ganhou, através de licitação, a exclusividade da comercialização de mobiliário urbano em

Curitiba para publicidade, sendo esta a maior empresa do setor de mídia externa do mundo.

Na cidade, o mobiliário urbano engloba 2.900 faces publicitárias, onde destaca-se sua

presença em abrigos de ônibus (Clear Channel, 2016).

O contrato da Clear Channel com a prefeitura, na administração do prefeito Cassio

Taniguchi (do então PFL), é válido por 20 anos, sendo que, na ocasião, diante das

características específicas do edital, ela foi a única empresa a participar da licitação. Embora o

termo mobiliário urbano possa fazer referência a artefatos como postes de luz e rede elétrica,

fontes em praças públicas, etc. a empresa está vinculada aos artefatos que diretamente servem

de suporte à publicidade.

UMA OUTRA COMUNICAÇÃO VISUAL

A partir do contexto apresentado, os exemplos a seguir mostram apropriações

alternativas do mobiliário urbano para a comunicação visual, irregulares, e cujo conteúdo trata

temas contestatórios ou contra-hegemônicos.

Abrigo de táxi e os símbolos da intolerância

A figura 02 é a foto de um abrigo de táxi da Praça Generoso Marques, no centro de

Curitiba. A estrutura em si possui área delimitada para a publicidade regular, no entanto, na

parte posterior do mobiliário podemos verificar que existem quatro pequenos cartazes, todos

em preto e branco, diferentemente dos normalmente vistosos cartazes veiculados pelo Clear

Channel.

7

Figura 2 – Abrigo de táxi da Clear Channel na

praça Generoso Marques, no centro de Curitiba

Fonte: Foto do autor, 2015.

Dentre os quatro, destaca-se o pequeno cartaz apresentado na figura 03, “Aprenda a

reconhecer os símbolos da intolerância”. Além da limitação de cores, percebe-se que eles

foram colados de forma pouco precisa, deixando ondulações na colagem. Aparentemente, no

momento da produção, também não se deu muita atenção aos limites da área de impressão,

deixando o conteúdo da extremidade esquerda do material com cortes em seu conteúdo visual

(ex.: corte da letra A), mesmo sem prejudicar significativamente sua compreensão. Esses

detalhes apontam para uma produção artesanal/doméstica, mesmo que envolva o uso de

computadores para diagramação, por exemplo, e são características que reforçam uma

linguagem visual associada a ações de intervenção.

Nele podemos ver uma lista de marcas/símbolos separados em duas colunas. À

esquerda, estão listados aqueles relacionados diretamente com o racismo, apresentando

grupos cuja a origem normalmente remete a organizações internacionais de extrema direita. A

outra coluna apresenta os símbolos dos fascistas/nacionalistas no Brasil.

Ao lado de cada símbolo podemos ler uma descrição simplificada dos significados dos

desenhos. O impresso possui a função de denunciar e, pelo menos a princípio, ajudar a

reconhecer símbolos atrelados com grupos violentos.

8

Figura 3 – Cartaz “Aprenda a reconhecer os símbolos da intolerância”

Fonte: Foto do autor, 2015.

O teor dessas informações apresenta um grande contraste com os anúncios comumente

presentes no mobiliário urbano que, grosso modo, tornam os transeuntes proficientes no

reconhecimento de marcas de grandes indústrias de automóveis, redes de fast-food e bancos.

O poste e a maioridade penal

Os postes de iluminação e da rede elétrica são considerados peças de mobiliário

urbano mas não são administrados pela Clear Channel, uma vez que não podem ser utilizados

como suportes de publicidade regularmente. Mesmo assim, pode-se afirmar que são usados

com bastante frequência para esta finalidade. Ao invés de grandes empresas e propaganda de

Estado, seu uso comumente está relacionado com pequenos comerciantes e profissionais

autônomos, além dos cartazes de cunho contestatório.

Apenas para ilustrar alguns desses usos, a Figura 04 mostra anúncios de serviços de

frete e “visitas de Papai Noel”, encontradas na Alameda Dr. Muricy e Rua Alfredo Bufren

respectivamente. São exemplos que evidenciam a circulação de produtos e serviços que não

se enquadram nas expectativas conservadoras do projeto de regulamentação da comunicação

visual nas ruas, pois anunciam demandas corriqueiras, algumas delas até inusitadas, ligadas ao

cotidiano da população.

9

Figura 4 – Exemplos de cartazes de anúncios

de profissionais autônomos

Fonte: Fotos do autor, 2015.

O cartaz da Figura 5, “Redução não é solução”, é assinado por uma entidade, a ANEL

– Associação de Estudantes-Livre – criada em 2009. Surgiu como uma dissidência do

movimento estudantil de grupos ligados anteriormente à UNE (União Nacional dos

Estudantes) e UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas) e, portanto, a voz de um

grupo que representa majoritariamente jovens e adolescentes.

No cartaz lemos em destaque que “menos de 1% dos crimes registrados foi cometido

por um jovem” e, logo abaixo, o mote “Redução não é solução”. Na base do impresso a

assinatura da entidade. A imagem mostra a silhueta de uma criança correndo em uma direção

e uma pipa rasgada caindo do céu.

A porcentagem apresentada, embora não cite sua fonte, vai de encontro com a noção

de parcela da população em relação ao volume de crimes cometidos por jovens no Brasil. A

temática dos jovens é parte fundamental das mobilizações que tratam das transformações

sociais e de temas humanistas de forma geral.

A brincadeira com a pipa nos remete ao pensamento de Lefebvre, mesmo que não faça

referência direta a este, uma vez que o autor defende a centralidade do aspecto lúdico da vida

cotidiana em sua proposta de transformação social. A queda do brinquedo, esfacelado, é

também a representação da negação de uma possibilidade que deveria ser articulada com as

políticas públicas, sejam elas educacionais ou penais.

10

Figura 5 – Cartaz “Redução não é solução”

Fonte: Foto do autor, 2015.

O cartaz foi colado em um poste na Rua XV de Novembro em agosto de 2015, época

em que a Câmara dos Deputados votou uma alteração na idade da maioridade penal no Brasil,

de 18 para 16 anos para crimes hediondos e outros crimes considerados graves. Esse material

traz um posicionamento claro contra a proposta de diminuição da idade penal, colocando em

circulação um ponto de vista crítico e tentando trazer ao debate público uma pauta importante

à sociedade.

A proposta de emenda constitucional (PEC 171/93) foi originalmente encaminhada em

1993 pelo pastor, ex-deputado e ex-governador do Distrito Federal, Benedito Domingos do

PP (Partido Progressista), ele mesmo réu condenado por corrupção, fraude à licitação e

formação de quadrilha.

Na prática, além dos resultados questionáveis no que diz respeito à diminuição da

violência, a PEC 171/93, aprovada na Câmara e posteriormente derrubada pelo Senado, era

indiretamente uma revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente para uma parcela de

jovens que anteriormente tinham assegurado um julgamento em órgãos especializados.

CONSIDERAÇÕES

O mobiliário urbano, se considerado apenas pelo seu uso institucionalizado, é

explorado comercialmente por meio de concessão pública. Embora essa modalidade de

comunicação visual não seja a única disponível pelos meios oficiais, destaca-se que

11

constantemente novos decretos diminuem as possibilidades de uso regular do ambiente

urbano para uma expressão comunicacional mais ampla e inclusiva.

Mesmo reconhecendo a importância da organização desses ambientes públicos e a

discussão a respeito da poluição visual, entende-se que as propostas referentes a esse assunto

devam privilegiar seu uso democrático e a diversidade de interesses públicos. Diante deste

quadro, é notável perceber que, para além dessas tentativas de normatização restritivas, o

espaço da cidade é ainda muito rico em manifestações visuais contestatórias. O registro e

análise desse material possibilita a reflexão sobre temas importantes da sociedade e a relação

ativa dos cidadãos com essas questões.

Se para Feenberg o caminho para a superação das principais contradições do

capitalismo passa pela democratização radical dos meios técnicos, argumenta-se que o

processo poderá envolver exemplos que não são necessariamente limpos ou belos, mas “à

medida que a massa de indivíduos é registrada em sistemas técnicos, resistências

inevitavelmente surgirão, e podem pesar futuramente no design e na configuração dos

sistemas e de seus produtos” (FEENBERG, 2010d, p.108).

REFERÊNCIAS

CLEAR CHANNEL. Disponível em: <http://www.clearchannel.com.br/curitiba/>. Acesso em 13 de

fevereiro de 2016.

FEENBERG, A. Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia. In: NEDER, R. T.

(org.) A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia. Brasília:

Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina / CDS / UnB / Capes, 2010a,

pp. 67-95. Disponível em: <https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf>. Acesso em 2 de setembro de

2015.

______. Do essencialismo ao construtivismo: a filosofia da tecnologia em uma encruzilhada. Idem,

2010b, pp. 203-251. Disponível em: <https://www.sfu.ca/ ~andrewf/coletanea.pdf>. Acesso em 2 de

setembro de 2015.

______. Marcuse ou Habermas: duas críticas da tecnologia. Idem, 2010c, pp. 253-287. Disponível em:

<https://www.sfu.ca/ ~andrewf/coletanea.pdf>. Acesso em 2 de setembro de 2015.

______. Teoria crítica da tecnologia: um panorama. Idem, 2010d, pp. 97-117. Disponível em:

<https://www.sfu.ca/~andrewf/coletanea.pdf>. Acesso em 2 de setembro de 2015.

GARDINER, Michael E. Critiques of everyday life. London: Routledge, 2000.

12

IPPUC. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, 2008. Plano regional matriz 2008.

Disponível em: < http://planosregionais.ippuc.org.br/09_matriz_final.pdf>. Acesso em 13 de fevereiro

de 2016.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Editora Documentos, 1969.

PREFEITURA DE CURITIBA. Disponível em: <http://www.curitiba.pr.gov.br/ noticias/com-novas-

regras-prefeitura-reduz-poluicao-visual-nas-ruas/11135>. Acesso em 13 de fevereiro de 2016.