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UMA REAVALIAÇÃO DA HISTÓRIA DO MOVIMENTO REPUBLICANO NO IMPÉRIO DO BRASIL ATRAVÉS DE SUAS INSPIRAÇÕES FRANCESAS (1869-1889) DIEVANI LOPES VITAL Jucá- (...) Tem que resolver essa porra.... Tem que mudar o governo pra estancar essa sangria. Machado- Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer]. (...) Machado- É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional. Jucá- Com o Supremo, com tudo (...). Jucá- [Em voz baixa] Conversei ontem com alguns ministros do Supremo. Os caras dizem ‘ó, só tem condições de [inaudível] sem ela [Dilma] (VALENTE, 2016). O diálogo transcrito acima é fruto de uma conversa gravada em março de 2016, divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo em maio daquele mesmo ano, uma conversa entre o ex- presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá do PMDB. Nela ambos discutem um pacto para retirar do poder a presidente eleita Dilma Rousseff (PT), de modo a paralisar as investigações da Operação Lava-Jato, a fim de “estancar a sangria” da classe política brasileira, investigada pela operação num esquema bilionário de corrupção na Petrobrás. A conversa é reveladora no sentido em que aponta uma saída “à brasileira” para a crise política no âmbito de uma verdadeira negociação, envolvendo membros das elites políticas dirigentes do país, dos poderes do Legislativo e do Judiciário. A referida saída inconstitucional para a crise política e econômica, a que se abateu sobre o país desde o término do segundo turno das eleições de 2014, encontra paralelos com outros momentos dramáticos de transição política na história republicana do país, como os episódios relacionados com as datas de 1889, 1930, 1937, 1964. A ausência do elemento popular e da radicalidade disruptiva, nesses processos de transição política, são pontos recorrentes em seus estudos pela historiografia brasileira consolidada. Referenciados trabalhos do campo enfatizam o caráter conservador da “mudança dentro da ordem” operada através de “transições pactuadas”, feitas “por cima”, numa Mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de pesquisa “P oder, Mercado e Trabalho”. Bolsista UFJF/Monitoria.

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UMA REAVALIAÇÃO DA HISTÓRIA DO MOVIMENTO REPUBLICANO NO

IMPÉRIO DO BRASIL ATRAVÉS DE SUAS INSPIRAÇÕES FRANCESAS (1869-1889)

DIEVANI LOPES VITAL

Jucá- (...) Tem que resolver essa porra.... Tem que mudar o governo pra estancar

essa sangria.

Machado- Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer].

(...)

Machado- É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.

Jucá- Com o Supremo, com tudo

(...).

Jucá- [Em voz baixa] Conversei ontem com alguns ministros do Supremo. Os caras

dizem ‘ó, só tem condições de [inaudível] sem ela [Dilma] (VALENTE, 2016).

O diálogo transcrito acima é fruto de uma conversa gravada em março de 2016, divulgada

pelo Jornal Folha de São Paulo em maio daquele mesmo ano, uma conversa entre o ex-

presidente da Transpetro, Sérgio Machado, e o senador Romero Jucá do PMDB. Nela ambos

discutem um pacto para retirar do poder a presidente eleita Dilma Rousseff (PT), de modo a

paralisar as investigações da Operação Lava-Jato, a fim de “estancar a sangria” da classe

política brasileira, investigada pela operação num esquema bilionário de corrupção na

Petrobrás.

A conversa é reveladora no sentido em que aponta uma saída “à brasileira” para a crise

política no âmbito de uma verdadeira negociação, envolvendo membros das elites políticas

dirigentes do país, dos poderes do Legislativo e do Judiciário. A referida saída

inconstitucional para a crise política e econômica, a que se abateu sobre o país desde o

término do segundo turno das eleições de 2014, encontra paralelos com outros momentos

dramáticos de transição política na história republicana do país, como os episódios

relacionados com as datas de 1889, 1930, 1937, 1964.

A ausência do elemento popular e da radicalidade disruptiva, nesses processos de

transição política, são pontos recorrentes em seus estudos pela historiografia brasileira

consolidada. Referenciados trabalhos do campo enfatizam o caráter conservador da “mudança

dentro da ordem” operada através de “transições pactuadas”, feitas “por cima”, numa

Mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de pesquisa “Poder,

Mercado e Trabalho”. Bolsista UFJF/Monitoria.

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atmosfera deliberativa reservada e restrita à ação das elites dirigentes, muitas vezes os

principais atores levados em consideração no cenário político da história do país1.

Constitui objetivo da pesquisa descrita investigar as inspirações francesas que orientaram

a propaganda da parcela republicana do movimento político-intelectual de contestação às

estruturas do Império, em seu contexto de emergência, no Brasil das décadas de 1870-1880.

Em outros termos, busca-se investigar o significado da França republicana de 1792, 1848 e,

principalmente, a de 1870 para o incremento da propaganda do movimento republicano no

país, através das práticas discursivas dos seus agentes mais destacados, empregando para isso

jornais, discursos, obras bibliográficas. Parte-se da hipótese de que à medida em que

aproximaram as comemorações do Centenário da Tomada da Bastilha, no Império do Brasil,

houve sim o crescimento da opção por uma saída alternativa, que não foi a reformista, por

parte de membros da parcela republicana dos letrados de 1870, a fim de dirimir a “questão do

regime” discutida no país. Nessa conjectura, acreditamos que da tradição republicana francesa

veio boa parte do ideal que inspirou os agentes brasileiros na concepção dessa segunda via.

Observando criticamente alguns dos mais destacados trabalhos da historiografia

especializada na história republicana brasileira, percebemos que dos anos de 1889, 1930,

1937, 1964, 1985 se enfatiza, sobretudo, o caráter conservador da “mudança dentro da ordem”

que assume os processos de transição política no país2. No período dos anos 30, por exemplo,

1 A esse respeito ver: CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.

3 ed. SP: Cia das Letras, 1987; CASALECCHI, José Ênio. A proclamação da República. 5 ed. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1992, p. 86-96; SCHULZ, John. O Exército na Política: Origens da Intervenção militar –

1850-1894. SP: Editora da USP, 1994, cap. 3; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República:

momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, cap. 11; FAORO, Raymundo. Os

donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. Ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, cap. XII;

VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império: Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p 81-110;

FAUSTO, Boris; HOLANDA, Sérgio Buarque (org.) Do Império à República. Introdução Sérgio Buarque de

Holanda. Ed. 7. RJ: Bertrand Brasil, 2005, p. 316-328. v. 7. Sobre o processo de modernização conservadora, de

transição “pelo alto”, ver: FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. 13 ed. SP: Editora

Brasiliense, 1991, cap. 11; VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicalismo no Brasil. 4. Ed. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 1999, cap. 3. Sobre a discussão em torno da participação popular no processo de

reabertura política no contexto da redemocratização (1985) do país ver: LACERDA, Gislene. A militância

possível: Entre brechas conquistadas e concedidas, sociedade civil pressionou por abertura. Revista de História

da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, n 114, p. 26-28, março 2015. 2 Acreditamos que esse ponto de vista pode ser empregado para reavaliar interpretações que tratam da história

brasileira antes mesmo da data do advento da República, podendo ser estendido a 1822. Sobre a visão

conservadora da história brasileira, a qual procuramos repensar, ver: MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi

diferente? O Contexto da Independência. In.: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta: a

experiência brasileira (1500-2000). SP: Editora SENAC, 2000; MERCADANTE, Paulo. A consciência

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em abordagens recentes, observa-se a ruptura da ordem anterior mediante um rearranjo intra-

elites envolvendo apenas a alta cúpula política do país, a classe política, o empresariado, as

oligarquias regionais, o Exército, não problematizando acerca da participação dos demais

atores no cenário nacional3. A pesquisa em andamento procura mostrar que a ênfase excessiva

dada à “mudança dentro da ordem”, baseada em concessões e conciliações, muitas vezes nos

impede de vislumbrar uma maior dinamicidade em movimentos operados dentro do tecido

social brasileiro, principalmente em meio àqueles segmentos que se apresentaram defensores

da mudança, como é o caso dos agentes envolvidos com a propaganda republicana no Brasil,

iniciada nos anos de 1870.

No que diz respeito ao período de decisivas mudanças estruturais no país, iniciado a

partir de meados do século XIX4, e ao movimento republicano ensejado no contexto, em

oposição ao regime monárquico assentado economicamente na escravidão africana, a pesquisa

em curso deseja se contrapor a essa visão conservadora presente na historiografia tradicional e

em trabalhos recentes. Pretende-se confrontar essa visão conservadora do processo de

mudança com os discursos dos agentes selecionados do movimento republicano, nos

momentos em que discutem a via pela qual se pretendia instaurar a república no país, em

substituição à monarquia bragantina.

Conservadora no Brasil: Contribuição ao Estudo da Formação Brasileira. 4 ed. Rio de Janeiro: editora

Universidade: Topbooks, 2003. 3 Cf. nota 1. Ver também: PRESTES, Anita Leocádia. Os militares e a reação republicana: as origens do

Tenentismo. Petrópolis: Vozes, 1994, cap. 3; VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias:

uma revisão “política do café com leite”. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2001. 4 Sobre o conjunto dessas transformações de natureza sociopolítico-econômica, as quais envolvem a abolição do

tráfico de escravos, a Lei de Terras, a Reforma da Guarda Nacional, criação do Código Comercial, os surtos de

industrialização, o crescimento urbano e populacional, o processo imigrantista, a crise política do meio liberal

dos anos 1860, ver: CASALECCHI, José Ênio. A proclamação da República. 5 ed. São Paulo: Editora

Brasiliense, 1992; HAHNER, June E. Pobreza e política: os pobres urbanos no Brasil 1870-1970. Traduzido por

Cecy Ramíres Maduro. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia

à República: momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 463-8, 479;

CARVALHO, José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de história e política. BH: editora UFMG, 1998, p.

107, 108-127; SCHWARCZ, Lilia K. M. Um debate com Richard Graham ou “Com Estado, mas sem nação: o

modelo imperial brasileiro de fazer política”. Dialogos, DHI/UEM, v. 5, n. 1, p. 53-74, 2001; ALONSO, Ângela.

Ideias em Movimento: a Geração de 1870 na crise do Brasil Império. SP: Paz e Terra, 2002, p. 77-78; MELLO,

Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: Cultura democrática e científica no final do Império. RJ:

Editora FGV: Editora EDUR, 2007, p. 61; JESUS, Ronaldo Pereira de. Visões da Monarquia: escravos,

operários na Corte. BH: Argvmentvm, 2009, p. 177; GOMES, Amanda Muzzi. Fragilidade Monarquista: das

dissidências políticas de fins do Império às reações nas primeiras décadas republicanas (1860-1900). 2012. 373f.

Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, Rio de

Janeiro, 2012.

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Acredita-se ainda que procurar compreender o ponto de partida da propaganda

republicana no Império do Brasil levando em consideração o seu ponto de chegada, qual seja,

o desfecho dos acontecimentos ocorridos entre os idos de 1888-1889, a república militarista,

aristocrática e excludente, não apenas cria uma interpretação conservadora do processo

mudancista ocorrido em fins do XIX no Império do Brasil, como também marginaliza os

agentes que tiveram suas propostas de república, e de como concretizá-las, derrotadas, como

é o caso exemplar de Silva Jardim.

Aos nossos olhos, esse modo de interpretar o processo de concatenação dos fatos gera

o silenciamento dos vencidos, impede-nos de darmos voz a esses agentes que acabam

relegados à marginalidade, quando não menos ao esquecimento histórico5. Lopes Trovão e,

mormente, Silva Jardim ilustram casos máximos do limite que podia alcançar o teor radical da

nossa propaganda republicana. Ambos constituem personagens cujas participações pouca

relevância foi dada em nossa história, no processo de passagem do Império à República no

Brasil.

Dessa forma, considera-se que a instauração e a formação de uma república de

natureza elitista e autoritária em 1891, como um resultado ligado à propaganda, não apenas a

ela, como também à intervenção política do Exército, era algo inimaginável, imprevisível por

parte dos agentes que aderiram ao movimento a partir dos anos de 1870 no país. Exemplo da

imprevisibilidade com a qual se deparavam os republicanos brasileiros que protagonizaram a

empreitada da divulgação do ideal republicano pelo país, a partir de 1870, pode ser expresso

na famosa frase de uma de suas mais notórias lideranças, o pernambucano Saldanha Marinho.

Em um momento de desilusão com o regime republicano instaurado no país em 1891,

Saldanha chegou a confessar: “Não era essa a república dos meus sonhos” (MARINHO,

1869: 5).

Não que estejamos querendo demonstrar que em algum momento de nossa história

houve uma revolução, de forte viés popular, tendo sido capaz de provocar uma ruptura

significativa, e que isso fora negligenciado pelos estudos que tratam de momentos de

transição política no Brasil. Mesmo porque os fatos atrelados à nossa história nacional não

nos permitem em hipótese alguma sustentar uma tese com esse nível de proporção

5 Para uma análise de como é produzida a memória histórica, ver: DE DECCA, Edgar Salvadori. O silêncio dos

vencidos: memória, história e revolução. SP: Brasiliense, 2004, p. 15-28.

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argumentativa. O que queremos salientar, segundo nosso ponto de vista, é que a ênfase

conservadora dada à transição do Império para a República sufoca a possibilidade de

observarmos propostas de uma transição não-convencional, concebida e pregada pelos

agentes letrados do movimento em mobilização política, por mais de elite que ele próprio

fosse, num país maculado pelo analfabetismo das massas, segundo o senso de 1872.

Na análise do percurso trilhado pelo movimento republicano brasileiro desde sua

inauguração nos anos de 1870, o enfoque tão-somente no produto do desfecho da crise que se

abate sobre a Monarquia no período subsequente à decretação da Lei Áurea (1888), isto é, a

República aristocrática e autoritária dos anos de 1890, força uma interpretação teleológica,

linear, determinista, fatalista e, não menos, de viés conservador do processo, suprimindo

arbitrariamente a possibilidade de observarmos a opção por uma saída que não fosse a

convencional para pôr fim à chamada ‘questão do regime”, por parte dos agentes envolvidos.

O que se quer dizer é que, no âmbito da investigação sobre a propaganda republicana,

o enfoque retido apenas no regime inaugurado no país em 1889, ou seja, para o resultado final

do processo, leva a dispensarmos e até mesmo negligenciarmos a revolução como uma das

opções presentes no horizonte de expectativas dos próprios agentes republicanos, no contexto

de seus discursos, como se opção pela reforma, apregoada pelo manifesto de 1870, fosse e

ficasse ao longo do desenrolar do processo, como a única vitoriosa e concebível. Na nossa

opinião, esse tipo de esforço interpretativo não dá margem à construção de uma abordagem

que leva em consideração a natureza contingencial do processo histórico que está sendo

investigado.

É esperado demonstrar que os agentes da propaganda republicana brasileira

vislumbravam um campo de possibilidades no seu horizonte de expectativas pessoal, e que a

opção pela “mudança dentro da ordem” política, sem rupturas traumáticas, era apenas uma

entre as alternativas possíveis. Pretende-se demonstrar através da análise dos discursos dos

agentes envolvidos que a transição política rumo à república por uma via não convencional,

não pacífica, não conciliatória com os poderes instituídos, portanto com emprego da

violência, foi cogitada e apregoada, estando presente no universo do discurso dos agentes.

Não se contentará em apenas comprovar a existência dessa via alternativa através dos

discursos dos agentes selecionados, mas também em cogitar os motivos pelos quais não se

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permitiu que ela fosse levada adiante. Considera-se que a inspiração francesa esteve entre

aquelas que perpassaram e animaram as estratégias do discurso, que ela orientou

sobremaneira a escolha por essa via alternativa, de maneira aceitável ou refratária, se

apresentando nitidamente no caso dos radicais da república, como os são Lopes Trovão e

Silva Jardim. Pode se dizer que os propósitos não se resumem apenas em sustentar que a

revolução foi suscitada, mas sim qual a modalidade de revolução, quais meios a empregar

para viabilizá-la na prática.

Uma leitura preliminar de documentos históricos produzidos no contexto permite

verificar que a opção pela “reforma”, pretendida por liberais históricos, entre os quais,

Nabuco de Araújo, Zacarias Góis, Teófilo Otoni, Sousa Franco, no Manifesto do Centro

Liberal de 31 de março de 1869, não põe um ponto final decisório na opção por uma saída

não convencional para a crise política vivida no período. Nem muito menos consideramos

assim, a solução reformista reivindicada pelos republicanos históricos, signatários do

Manifesto de dezembro de 1870.

Sustentamos que a retórica da revolução extrapola o limite cronológico dos anos de

1870 e se perpetua, como uma possibilidade, até o desfecho da crise que se abateu sobre o

regime da monarquia parlamentar constitucional no Brasil, entre os anos de 1888 e 1889.

Concebe-se assim que essa retórica se apresenta para além das diretrizes do programa de um

dos partidos parlamentares, o Liberal, e do partido extraparlamentar recém fundado no ano de

1870, o Republicano. Ela esteve presente no discurso dos agentes em meio à mobilização

política no decorrer dos anos, mesmo que apenas como um artifício para acirrar os ânimos em

prol da derrubada da Monarquia e sua consequente substituição pela República.

A proposta de pesquisa histórica descrita nesse artigo surge como extensão de alguns

resultados conclusivos, porém ainda muito abrangentes, aos quais chegou o primeiro capítulo

da dissertação de mestrado intitulada Iluminismo e Revolução nas ideias e nas práticas

políticas da “Ilustração” brasileira (VITAL, 2015)

No trabalho citado, buscou-se investigar a apropriação e a ressignificação do ideário

iluminista e revolucionário da França, sobretudo através do conceito de secularização, por

parte das ideias e das práticas políticas do movimento político-intelectual dos letrados que

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emergiram nos anos 1870 no Brasil, em contestação à ordem conservadora do Estado

imperial.

A partir de análise historiográfica e empírica, chegamos à constatação de que a

inspiração proveniente da Primeira República Francesa se sobressaiu em meio às estratégias e

práticas de ação adotadas pelos membros do movimento político-intelectual brasileiro visto

que comícios, grandes manifestações populares, formação de clubes republicanos, todas essas

formas de mobilização da opinião tiveram na República de 1792, em França, o seu primeiro

grande exemplo na história.

Diante dessa constatação, foi tomada a consideração de que uma pesquisa, cuja

intenção pretenda investigar a contribuição francesa para as ideias e práticas de ação política

dos agentes ligados ao movimento político-intelectual de 1870, obteria maiores resultados se,

a partir de então, enfocasse na parcela republicana do movimento, salvo em casos

excepcionais como o de Joaquim Nabuco e o de Rui Barbosa, agentes que podem contribuir

para uma pesquisa que pretenda aprofundar nessa temática, através de seus relatos de época6.

Decorrente disso, a pesquisa aqui descrita se propõe a investigar as inspirações

francesas que orientaram a propaganda republicana no país através das produções intelectuais

de alguns dos mais notórios agentes da parcela republicana do movimento político-intelectual

dos letrados brasileiros, que surgiram no cenário da política, da imprensa e da cultura nos

anos de 1870 e 1880 do Império, sendo eles: Saldanha Marinho, Quintino Bocaiúva, Aristides

Lobo, Lauro Sodré, Assis Brasil, Júlio de Castilhos, Lopes Trovão e Silva Jardim. Entende-se

que perscrutar as inspirações francesas da parcela republicana da genericamente chamada

“Geração 1870” significa investigar uma característica do processo formativo do próprio

movimento republicano brasileiro em si.

6 Foram analisados os bancos de tese de algumas importantes universidades. No Banco de Teses da UFRJ foi

encontrado um trabalho de mestrado próximo à temática que exploramos. Trata-se da dissertação intitulada

Imagens Opostas: a nova linguagem política republicana e a queda do Brasil-Império (1870-1891), a qual traz

uma abordagem histórica das diferentes propostas republicanas surgidas no Brasil a partir de 1870, e investiga a

construção de uma nova linguagem política, por parte dos positivistas, jacobinos e liberais, a fim de deslegitimar

o status imperial e legitimar a propaganda republicana. No banco de teses da UFRGS, foi encontrada a tese

intitulada A República e seus símbolos: a imprensa ilustrada e o ideário republicano. Rio de Janeiro 1868-1903,

na qual há uma ênfase dada à simbologia republicana difundida a partir da Revolução Francesa e da República

instituída em 1792, isso no que diz respeito à adaptação dessa simbologia por parte dos periódicos brasileiros do

período de investigação da pesquisa. No mais, não foi encontrado registro de trabalhos que investiguem, de

modo particular e sistematizado, as inspirações francesas do movimento republicano brasileiro, a partir da

problemática aqui apresentada.

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Pretende-se investigar as inspirações francesas que teriam orientado o ascendente

movimento republicano brasileiro no decorrer dos anos de 1870 a partir da Corte imperial.

Outros dois lócus que estão sendo tomados como referencial são as províncias do Grão-Pará e

do Rio Grande-Sul a partir dos anos de 1880, isso no que diz respeito tão somente à atuação

de Lauro Sodré enquanto uma das lideranças do movimento, no caso da primeira província

citada, e à atuação de Assis Brasil e Júlio de Castilhos enquanto republicanos provenientes da

segunda.

Vários questionamentos são levantados no que diz respeito à via de adoção e ao

modelo de república que os agentes brasileiros ansiavam: O movimento e a propaganda

republicana despontam no Brasil no mesmo ano em que ocorre a instauração da Terceira

República na França. Atestado factualmente isso, é possível observar relações entre os dois

movimentos a partir das produções discursivas dos agentes brasileiros do contexto? Uma vez

existentes e identificadas, em que sentido as inspirações francesas puderam orientar o

movimento republicano surgido no Brasil, através dos seus mais ilustres agentes, no âmbito

de suas produções intelectuais, de suas práticas discursivas? Quais foram seus conceitos

centrais? Que concepções de República puderam formular os agentes mais destacados do

movimento e de que modo afetaram o seu espaço de experiência?

Qual a contribuição dos movimentos republicanos ocorridos ao longo da história

francesa, desde a data de 1792, para o debate encerrado pelos republicanos brasileiros a partir

da década de 70 do dezenove, quanto à adoção da forma republicana de governo? Uma vez

deparados com o contexto brasileiro das duas décadas finais do Império, quais noções de

tempo e de história tinham os agentes do movimento republicano pátrio que voltaram sua

atenção para os elementos da tradição republicana francesa? Esses são alguns dos

questionamentos iniciais traçados.

Parte-se da hipótese de que à medida em que aproximaram as comemorações do

centenário da Queda da Bastilha no Império do Brasil, houve sim o crescimento da discussão

em torno da escolha de uma possível saída revolucionária, ou seja, anticonvencional, para

dirimir a questão da forma de governo a ser adotado no país, em substituição à monarquia

bragantina.

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A validação empírica e historiográfica

Alguns importantes trabalhos, tanto no campo da historiografia quanto nos campos da

filosofia e da sociologia, enfatizam a notoriedade do referencial da França revolucionária para

a parcela republicana do emergente movimento político-intelectual de contestação às

estruturas do Império, nos anos setenta do dezenove.

É imprescindível enfatizar que o aparecimento do partido e do movimento republicano

no Brasil, no ano de 1870, coincide com a instauração da Terceira República na França (1870-

1940), a 4 de setembro, regime que sobreveio à queda de Napoleão III e à do Segundo

Império francês, após a fragorosa derrota francesa na batalha de Sedan para as forças

prussianas, lideradas e sob o comando de Otto Von Bismark. À luz do exposto, considera-se

que os republicanos brasileiros de 1870 estavam diante de um evento cujas especificidades

apresentavam-se assaz favorável à divulgação dos seus ideais propagandísticos pró-república

no país, em detrimento da forma monárquica de governo.

A importância do estabelecimento da Terceira República na França, sob a presidência

inicial de Louis Adolphe Thiers (1871-1873), para a propaganda e os ideais do movimento

republicano emergentes no Império do Brasil, durante o período em questão, é constatada em

trabalhos historiográficos recentes. Ao estudar a cultura política compartilhada pelos

republicanos brasileiros, no contexto da propaganda, e tomando por base o manifesto de 1870,

na parte em que destaca as referências à França republicana, Claudia Viscardi assinala que “O

modelo constitucional almejado era o da III República Francesa e não o da monarquia

parlamentar inglesa, certamente mais próximo do modelo brasileiro em vigor” (VISCARDI,

2011: 149-150).

No trabalho intitulado A Revolução Francesa e a República Brasileira: aspectos

históricos e ideológicos, o filósofo Ricardo Véllez ressalta aspectos do pensamento

republicano brasileiro, em que se revela a presença inspiradora da Revolução Francesa. As

datas 1789 e 1889 possuem na opinião do autor significados profundos, sendo que para ele a

primeira inspira sem dúvida a segunda. Citando propagandistas do porte de Júlio de Castilhos,

de Silva Jardim, e documentos políticos, tais como o Manifesto Republicano do Rio de

Janeiro (1870) e o do Clube Republicano do Pará (1886), o autor elenca três aspectos nos

quais podemos centrar a presença dos ideais da Revolução na propaganda republicana

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brasileira, quais sejam, a mística republicana, a crítica ao absolutismo e aos privilégios

monárquicos, e a defesa dos direitos do homem e do cidadão (VÉLLEZ, 1989).

Citando Tilly, que vincula a ideia de “repertórios de contestação” às formas de ação

política surgidas em meio aos movimentos de fins do Século XVIII, os quais forneceram aos

movimentos sociais desde então os meios de manifestação pública para suas reivindicações

através de comícios, associações temáticas, passeatas e greves, Ângela Alonso afirma que o

reformismo, a nossa “Ilustração Brasileira”, foi buscar neste repertório as suas estratégias de

ação, as suas formas de organização e de mobilização. Entre as formas contenciosas nas quais

se inspirou o movimento, a autora inclui as do republicanismo francês (TYLLY apud

ALONSO, 2000: 50-1). Nessa abordagem profícua à discussão que desenvolvemos,

constatamos que a autora nos deixou uma lacuna a ser preenchida, ao não ter especificado em

qual fase do republicanismo francês o movimento oitocentista brasileiro teria se inspirado.

Através da descrição que a autora enceta, é possível acenar para a possibilidade de se

tratar da matriz francesa do republicanismo que havia caracterizado a Primeira República na

França (1792). Uma vez destacada essa questão, torna-se mister ressaltar que o

republicanismo francês, aquele que serviu de referência para os letrados brasileiros no final do

Império, proviera de dois modelos inspiradores: o da Primeira e o da Terceira República

Francesas. Enquanto que na França da Primeira República (1792-1804) foi criada a linguagem

da matriz francesa do republicanismo, linguagem esta que se tornou um marco definitivo no

pensamento político moderno, e igualmente um referencial para o processo formativo de

regimes livres e autônomos, foi na Terceira República (1870-1940) que essa linguagem

ganhou assento institucional (BIGNOTTO, 2010: 361-2).

José Murilo de Carvalho é quem destaca em qual dos dois modelos de república

francesa as formas de ação coletiva citadas, inspiradoras do movimento político-intelectual

brasileiro, mormente da sua parcela republicana, estavam mais presentes.

A imagem da Primeira República se confundia quase com a da Revolução de 1789,

da qual se salientava principalmente a fase jacobina, os aspectos da participação

popular [...]. Era a república dos clubes populares, das grandes manifestações, do

Comitê da salvação pública. Era a república das grandes ideias mobilizadoras do

entusiasmo coletivo, da liberdade, da igualdade, dos direitos universais dos

cidadãos (CARVALHO, 1998: 86).

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Ainda em um trabalho anterior, José Murilo indica que na época do advento da

República brasileira a revolução de 1789, na França, era o mais poderoso exemplo de

explosão popular no âmbito político. A inspiração revolucionária era forte entre os jacobinos

e, em grau ponderado, entre os positivistas ortodoxos. O autor mostra como que os

propagandistas do novo regime buscaram no universo simbólico recursos através dos quais

pudessem manipular o imaginário do povo, tendo em vista obter sua adesão. Segundo J.

Murilo, as descrições da época trazem referências ao costume dos republicanos brasileiros de

cantarem a Marselhesa, de representarem a República com o barrete frígio. Com efeito, por

meio de suas ondas revolucionárias de 1789, 1830, 1848, 1871 a França oferecia um rico

material de natureza simbólica para os republicanos brasileiros que se voltavam para ela como

fonte inspiradora (CARVALHO, 1990: 10-12).

Essa vasta produção, conforme ele indica:

[...] passa pela bandeira tricolor e pela Marselhesa, tão carregadas de emoção;

pelo barrete frígio, símbolo da liberdade; pela imagem feminina e pela árvore da

liberdade; pelo tratamento de cidadão, de enorme força igualitária; pelo calendário

revolucionário iniciado em 1792, esforço de marcar o início de uma nova era; pelas

grandes festas cívicas como as da Federação de 1790 e do ser Supremo de 1794,

grandes ocasiões de comunhão cívica. Poder-se-iam acrescentar ainda vários

símbolos e alegorias menores, como a balança, o nível, o feixe, o leme, a lança, o

galo gaulês, o leão, etc. (CARVALHO, 1990: 12).

O autor, para além de indicar essa forte presença simbólica da Revolução no

imaginário republicano brasileiro, ressalta também o entusiasmo de propagandistas, como

Silva Jardim, pelo discurso revolucionário, entusiasmo esse que crescia na proximidade do

Centenário da Revolução de 1789. Para o autor, os radicais da República eram os

propagandistas da revolução no Brasil. Eles a pediam que viesse no Centenário da “Grande”

Revolução de 1789. Ansiavam pelo povo nas ruas, pediam a morte do príncipe-consorte da

princesa herdeira do trono imperial dona Isabel, uma vez que Gastão de Orléans, o Conde

d’Eu, era um nobre francês. E ainda cantavam a marselhesa pelas ruas (CARVALHO, 1990:

9-15, 26).

A. Alonso afirma que, apesar dos contestadores terem negado as formas violentas de

mudança, como a Revolução Francesa, preferindo antes a propaganda e a persuasão, a retórica

da revolução popular “surgia de forma legítima em ‘situações extremas’” (ALONSO, 2002:

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262). Assim como José Murilo em seus trabalhos, a autora também ressalta o fato de os

grupos republicanos do movimento terem reapropriado “(...) como ideário contramonárquico

os símbolos e os lemas da Revolução (...)” (ALONSO, 2002: 294). A legitimidade de uma

possível via revolucionária chegaria ao seu ponto máximo no Centenário da Tomada da

Bastilha, na data de 14 de julho de 1889, a qual foi marcada por “(...) eventos apoteóticos na

Corte, em São Paulo e no Rio Grande do Sul” (ALONSO, 2002: 319), conforme nos indica a

autora.

Por conseguinte, consideramos que a presença dos elementos do aparato simbólico da

Revolução nas práticas de mobilização da parcela republicana dessa elite letrada brasileira,

que contestou em finais do século a ordem imperial edificada pelos conservadores nos anos

1840, representa a presença dos elementos retóricos da linguagem da própria Revolução nas

mentes e no discurso propagandístico dos republicanos brasileiros , pois como destaca Lynn

Hunt ao estudar a cultura política criada pela revolução: “(...) no longo prazo as formas

simbólicas ofereceram continuidade psicológica à experiência revolucionária. Seus símbolos e

rituais deram longue durée à Revolução. Eram os lembretes tangíveis da tradição secular do

republicanismo e da Revolução” (HUNT, 2009: 80).

Como bem ressalta Maria de Mello acerca dos anos de 1888 e 1889:

Acontecia ainda haver uma verdadeira adoração pela Revolução Francesa, aqui

comemorada todos os anos. Efeméride que não passava despercebida por quase

nenhum periódico. A ‘marselhesa’ acompanhava quase todas as manifestações

liberais de rua e, muito especialmente, as de teor republicano (MELLO, 2007: 197).

Salvaguardadas as abordagens apresentadas, um dos propósitos ao qual se predispõe a

investigação aqui descrita consiste em dar mais fundamentos empíricos e uma sistematização

particular à temática que analisa as inspirações francesas que orientaram o movimento

republicano brasileiro. Nota-se a carência de trabalhos na busca de uma análise empírica mais

acurada e delimitadora da relação entre o movimento republicano no Brasil e o advento da

Terceira República na França, e do comportamento assumido pelo movimento republicano

pátrio diante da “questão do regime” na proximidade das comemorações do Centenário da

Queda da Bastilha. Percebemos a carência de um estudo empírico que explique como num

ambiente intelectualmente dominado pelo positivismo, uma filosofia de viés conservador e

antirrevolucionário, alguns dos nossos letrados se apropriaram das ideias republicanas da

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França revolucionária a fim de persuadir sobre a necessidade de mudança de regime para o

país.

Percebe-se a carência referida acima principalmente diante da importante ênfase que é

dada à defesa pela adoção do modelo federal republicano estadunidense, tanto pelos próprios

agentes republicanos coevos, como no caso dos republicanos paulistas, quanto pelos estudos

sobre o assunto7. Modelo aquele que saiu em boa parte vitorioso na Constituição de 1891.

Portanto, a partir das problemáticas que foram levantadas, a análise da pesquisa aqui

descrita busca realçar, com base no estudo das fontes já selecionadas, os matizes franceses do

movimento republicano pátrio, ou seja, o positivista (entende-se cientificista) e o jacobino8.

Os modelos inspiradores da Terceira e da Primeira República francesas, respectivamente.

Quiçá, o modelo da Segunda (1848-1851).

Atentos a isso, evoca-se duas importantes testemunhas epocais que validam a

argumentação sobre a apropriação e a ressignificação do imaginário republicano da França

revolucionária pela parcela republicana da consciência letrada que emerge na década de 1870,

em contestação à ordem conservadora do Império edificada durante o Segundo Reinado.

Trata-se de Tobias Menezes Barreto (1839-1889) e Rui Barbosa (1849-1923). Ambos

validam empiricamente a importância da investigação proposta.

Do advogado e político sergipano Tobias Barreto, toma-se à luz de comprovação um

trecho isolado do prefácio de Estudos de Direito, obra publicada em 1892. Organizada pelo

7 Sobre a importância que teve o modelo estadunidense para os republicanos brasileiros, sobretudo para os de

procedência paulistas, e para a organização do poder do novo regime no Brasil, adotado a partir de 1891,

sugerimos: CARVALHO, José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de história e política. BH: editora UFMG,

1998 p. 86. p. 92-3; PAMPLONA, Marcos A. Revoltas, Repúblicas e Cidadania. Nova York e Rio de Janeiro

na consolidação da ordem republicana. RJ/SP: Record, 2003, cap. 4. Ver também: COSER, Ivo. O Conceito de

Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de

Janeiro, Vol. 51, n° 4, 2008, pp 941. 8 Enquanto doutrina filosófica progressista criada pelo filósofo de Montpellier Augusto Comte, o positivismo foi

sobejamente influente sobre os militares e sobre a elite letrada brasileira, formada nas Faculdades de Direito de

São Paulo e do Recife, no final do século XIX. Para Sérgio Buarque, o positivismo no Brasil, tal como se

generalizou entre nós, não era uma doutrina monolítica já que o mestre além de ter deixado vários seguidores e

discípulos, que inclusive seguiram depois caminhos próprios, não raro heterodoxos, também deixara obras

escritas em épocas diversas passivas de várias interpretações. Assim, o autor entende que o papel político

predominante não foi tanto da filosofia, da seita, ou da religião, mas sim o estado de espírito e o clima de opinião

que passou a contaminar vastas camadas do país (HOLANDA, 2005: 333). Sobre a apropriação do vocábulo

“jacobino” pelos republicanos brasileiros do contexto de transição do Império para a Primeira República,

sugerimos:

http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/JACOBINISMO.pdf. Acesso em: 18 julho

2016.

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contemporâneo de Tobias Barreto, o sergipano Silvio Romero (1851-1914), e a seu pedido, a

obra agrega manuscritos, impressos e todos os escritos jurídicos elaborados por Tobias

Barreto nos anos 70 e 80 do dezenove, apesar de ter sido publicada após a queda do Império.

Silvio Romero nos explica através da página quarenta e quatro (44) das Questões Vigentes de

Philosophia e de Direito (1888), citada no prefácio de Estudos de Direito, o fato de Tobias

Barreto não ter simpatizado em vida com a política alemã, preferindo somente contemplar o

país germânico. Transcrevendo parcialmente Tobias Barreto, Silvio Romero expõe ao leitor o

vínculo que o seu contemporâneo enxergava haver entre o republicanismo francês e o

brasileiro:

[...] a Republique française não está no meu programa. Sou pouco afeiçoado ao

cancan, em qualquer de suas manifestações. Isto destoa, bem sei, da intuição

comum, ainda que ela não seja das mais seguras. O republicanismo brasileiro é um

belo pedaço de literatura francesa [grifo nosso]. [...] é a verdade tal qual sinto e

aproveito a ocasião para repeti-la (BARRETO, 1892: XIII).

A despeito de não apontar à qual tradição do republicanismo francês se vincula o

republicanismo brasileiro, seja qual for, o da Primeira ou o da Terceira República, o fato é que

Tobias Barreto vincula a inspiração do movimento nacional de finais do Império à literatura

de um movimento que, como já sabemos, teve início na França, particularmente, a partir da

data de 1792. Em suma, a um movimento cujos princípios foram institucionalizados naquele

país europeu no século XIX, a partir do estabelecimento da chamada Terceira República na

década de 1870, no mesmo momento em que começava a despontar, no Império do Brasil, o

movimento republicano pátrio. Observemos o trecho em que Tobias Barreto expõe sua pouca

afeição à Republique Française. Nesse trecho, ele afirma que essa desafeição destoava

daquilo que era uma “intuição comum”. Ou seja, sua desafeição ia à contracorrente de uma

intuição que era geral no momento em que vivia.

O advogado e jornalista soteropolitano Rui Barbosa (1849-1923) é a outra voz epocal

que permite sustentar a validade da pesquisa iniciada. Em um escrito registrado, porém não

datado, Rui Barbosa explicita nítida e criticamente ao leitor que:

A compleição política de nossos republicanos era essencialmente francesa, francesa

as suas ideias, franceses os seus modelos. A aspiração que os animou era a da

liberdade tempestuosa e precária, que a França revolucionária de 1789, 1848 e

1870 imbui o espírito da família latina; uma liberdade perpetuamente oscilante

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entre a revolução e a ditadura. Homens públicos nutridos desse mau leite não

podiam assimilar facilmente o gênio das instituições americanas, penetrar-se

realmente da intuição de um sistema em que o governo se veja limitado pela justiça

(BARBOSA, 19-?: 41).

Esse pensamento de Rui Barbosa quanto à incorporação dos moldes da tradição

republicana francesa pelo movimento republicano brasileiro de finais do dezenove, mesmo

não datado, permiti-nos desprender que o seu autor o elaborou num momento posterior. O

emprego do verbo “ser” no pretérito imperfeito do indicativo demonstra-nos a impressão que

essa característica do movimento pátrio deixara gravada na memória de Rui Barbosa.

Atenhamos igualmente que Rui Barbosa, de uma maneira generalizante, não nos aponta

exceção dentro do republicanismo brasileiro quando fala da inspiração francesa que teria

orientado a “compleição política” dos agentes do nosso movimento, em prejuízo da natureza

das instituições do continente.

Um propagandista chama muita atenção. O fluminense Silva Jardim (1860-1891)

talvez seja de fato o maior exemplo entre os propagandistas do movimento republicano pátrio

de fins do dezenove a expressar essa afinidade francesa. Tendo rompido com a ala do Partido

Republicano, que defendia a transição da monarquia para a república por meio da reforma, ala

liderada por Quintino Bocaiúva, e uma vez entendendo a necessidade de preparar a nova força

política em que se constituía aquilo que ele entendia poder ser chamada ‘opinião pública’, o

propagandista tornou um lugar comum comparar o trajeto histórico brasileiro ao francês. Para

ele, era no Centenário da Revolução Francesa que deveria se dar a “Revolução Brasileira”.

Em seu opúsculo Carta Política ao Paiz e ao Partido Republicano sustentava ele que “(...)

talvez fosse aberta em 1889 a Revolução Brasileira, no centenário da Grande Revolução

Francesa, Ocidental e Humana” (JARDIM, 1889: 20)9.

Considerações finais

Indo à contracorrente de trabalhos historiográficos sobre o movimento republicano no

Brasil, que enfatizam unicamente o caráter conservador do processo que levou à transição do

Império para a República no Brasil, a pesquisa descrita nesse artigo trabalha com a hipótese

de que houve sim o crescimento da opção por uma saída alternativa, que não foi a reformista,

9Sobre a importância da Revolução Francesa para o pensamento e ação de Silva Jardim, sugerimos: LIMA,

Heitor Ferreira. Perfil político de Silva Jardim. SP: Editora nacional; Brasília: INL, 1987.

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por parte da parcela republicana dos letrados de 1870, a fim de dirimir a “questão do regime”

discutida no país, no âmbito de uma situação configurada à medida em que nessas terras

avançou a penúltima década do dezenove. Conjecturamos que a escolha por uma saída não

convencional para o impasse passou a ser manifesta na linguagem, no debate e na intenção

dos agentes, se necessário fosse recorrer a ela. Para essa escolha por parte dos agentes que

assim se posicionaram, considera-se que a herança secular do ideário republicano francês

assumira uma conotação referencial, seja em sua aceitação ou em sua negação.

FONTES PRIMÁRIAS

BARBOSA, Rui. Pensamentos de Ruy Barbosa. Coligidos e prefaciados por Moysés Horta.

SP: Irmãos Marrano; Livraria do Globo, [ 19-? ].

BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Publicação Phostuma dirigida por Silvio Romero.

Rio de Janeiro: Laemmerte & C. – Editores proprietários, 666, Rua do ouvidor, 1892.

MARINHO, Saldanha. O Rei e o Partido Liberal. (Fonte digital/ Digitalização de edição em

papel Typographia e Litographia Franco-Americana, 1869). [ S. I.]: ebook Brasil, 1999-2006,

p. 5. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/orei.pdf.

JARDIM, Silva. Carta Política ao Paiz e ao Partido Republicano (Publicada n’ O Paiz em

6 de janeiro de 1889). Rio de Janeiro: Imprensa Mont’ Alverne – Rua da Uruguayana n. 43.,

1889 (Centenário da Grande Revolução).

VALENTE, Rubens. Em diálogos gravados, Jucá fala de pacto para deter avanço da Lava-

Jato. Folha de São Paulo. Brasília, 23. Maio. 2016.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774018-em-dialogos-gravados-

juca-fala-em-pacto-para-deter-avanco-da-lava-jato.shtml.

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HOLANDA, Sérgio Buarque. Do Império à República. ed. 7. Rio de Janeiro: 2005, t. II; v. 7

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MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República Consentida: Cultura democrática e

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RODRÍGUES, Ricardo Véllez. A Revolução Francesa e a República brasileira: aspectos

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http://docslide.com.br/documents/a-revolucao-francesa-e-a-republica-no-brasil-aspectos-

politicos-e-ideologicos.html. Acesso em: 20 fev. 2017.

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