UMA REVISITA À GUARAQUEÇABA, MAR E MATO À LUZ DA ... · El presente trabajo analiza una obra...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
KELLEN SMAK
UMA REVISITA À GUARAQUEÇABA, MAR E MATO À LUZ DA HISTÓRIA
E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO
CURITIBA
2011
KELLEN SMAK
UMA REVISITA À GUARAQUEÇABA, MAR E MATO À LUZ DA HISTÓRIA
E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO
CURITIBA
2011
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Professor Doutor Carlos Roberto Antunes dos Santos,
pela competente orientação, pela sua constante inspiração e por despertar em mim
o interesse e a paixão pela temática da História e Cultura da Alimentação.
Aos meus amados pais, Norma e Luiz, pelo apoio incondicional e pelo
amparo, carinho e amor em todos os momentos ao longo de toda minha vida.
À minha querida irmã, Kássia, pela troca de ideias, pelas longas conversas e
compartilhamento de angústias.
Ao meu querido Naor, pela compreensão, pelo apoio, pelo amor e pelo
incentivo de seguir em frente.
Às minhas queridas colegas de graduação, que acompanharam minha
caminhada e cuja caminhada também acompanhei: Ana, Ellen, Andrea e Camilla.
RESUMO
O presente trabalho visa analisar uma importante obra da historiografia paranaense
da década de 1970: a obra Guaraqueçaba, mar e mato de autoria de Júlio Alvar e
Janine Alvar, dois pesquisadores europeus, sob o viés da temática de história e
cultura da alimentação. Tal obra foi traduzida pela historiadora Cecília Maria
Westphalen, à época diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná, instituição de ensino que publicou a obra em 1979.
O objetivo desta pesquisa é observar em que medida os gêneros alimentícios
perpassam a formação social e cultural do Paraná, com destaque para a região de
Guaraqueçaba. Além disso, buscou-se inserir a obra no contexto do debate
historiográfico atual acerca da história e cultura da alimentação, gênero histórico em
torno do qual gravita uma imensa gama de saberes. Também se pretende observar
a divisão do mar e do mato estabelecida pelos autores de forma a compor uma
relação de quais os principais alimentos de cada local e como eles estão envolvidos
nos hábitos de comensalidade de sua população.
Palavras-chave: História da alimentação. Guaraqueçaba. História do Paraná.
RESUMEN
El presente trabajo analiza una obra importante de la historiografía del Paraná en la
década de 1970: el trabajo Guaraqueçaba, mar e mato de Julio Alvar y Janine Alvar,
dos pesquisadores europeos, bajo el sesgo de la historia y la cultura de la
alimentación. Esta obra fue traducida por la historiadora, Cecília Maria Westphalen,
entonces directora del “Setor de Ciencias Humanas, Letras e Artes” de la
“Universidade Federal do Paraná” institución educativa que publicó la obra en 1979.
El objetivo de esta investigación es observar el grado en que los alimentos están
presentes en la formación social y cultural de Paraná, en especial en la región de
Guaraqueçaba. Además, tratamos de poner el trabajo en el contexto del actual
debate historiográfico sobre la historia y cultura de la comida, el género histórico en
torno al cual gravita una inmensa gama de conocimientos. También se pretende
observar la división del mar y del bosque creado por los autores con el fin de
componer una lista de los principales alimentos de cada sitio y la forma en que están
involucrados en los hábitos de comensales de su población.
Palabras clave: Historia de la alimentación. Guaraqueçaba. Historia del Paraná.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 1
2 PARANÁ: CONJUNTURAS HISTÓRICAS E FORMAÇÃO DO SISTEMA
AGROALIMENTAR................................................................................................
3
3 HISTÓRIA E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO..................................................... 20
4 HISTÓRIA E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO NO MAR E NO MATO DE
GUARAQUEÇABA.................................................................................................
25
4.1 O MAR.............................................................................................................. 29
4.2 O MATO............................................................................................................ 33
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 36
6 FONTE................................................................................................................. 38
7 REFERÊNCIAS................................................................................................... 38
1
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo revisitar uma importante obra da
historiografia paranaense trinta e oito anos após a sua publicação: o estudo
etnológico desenvolvido por Julio Alvar e Janine Alvar Guaraqueçaba, mar e mato,
traduzido pela historiadora Cecília Maria Westphalen e publicado pelo Departamento
de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do
Paraná.
Tal obra, no momento de sua publicação, gozou de grande credibilidade
junto aos historiadores e outros pesquisadores. Isso porque trata de diversos
aspectos da vida da população de Guaraqueçaba em todos as esferas de relação
que existem. A partir dessa obra ampla são abertas múltiplas possibilidades de
pesquisa, sendo esse o desejo dos autores, de acordo com Westphalen, já que eles
desejam assinalar que a pesquisa continua em aberto e deverá constituir pontos de partida para outros trabalhos que, em suas especificidades, possam aprofundar as matérias aqui tratadas e, assim, chegar pela reflexão às teorias que podem emanar de fatos reais1.
A preocupação com a divulgação da história regional, portanto, torna esse
trabalho inédito e original. Partindo da discussão acerca da história e cultura da
alimentação, este trabalho cumpre com o convite dos pesquisadores, de explorar a
obra em suas especificidades.
A história e cultura da alimentação constituem um gênero histórico que
formam um núcleo em torno do qual gravitam muitos saberes. Assim, todo esse
estudo é perpassado por aspectos multi, inter e transdisciplinares. Há que se levar
em consideração os aspectos históricos, econômicos, sociais, etnológicos e
antropológicos de uma sociedade para que se possa promover a interação dessas
disciplinas com o campo de estudo em questão.
Nesse caso, em específico, houve a necessidade de se fazer uma pesquisa
inédita e original, levando-se em consideração uma importante região ainda pouco
1 ALVAR, J.; ALVAR, J. Guaraqueçaba; mar e mato. Trad. WESTPHALEN, Cecília Maria. Curitba: Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes: 1979. p. 1.
2
estudada na história do Paraná. Guaraqueçaba, portanto, parte da formação
litorânea paranaense, conserva muitas peculiaridades do ponto de vista cultural. No
que toca a alimentação, pouco difere de outras regiões, que se dedicam
principalmente às atividades no setor primário como a pesca e o cultivo da
mandioca.
Assim, no primeiro capítulo, buscou-se observar a formação econômica e
material do Paraná desde a ocupação de seu território. Nesse sentido foram
observados os grandes ciclos econômicos e de que forma o atual estado se inseriu
na lógica colonial brasileira. Além desses ciclos outras atividades denominadas de
interciclos econômicos também foram considerados para este estudo.
No segundo capítulo é feito um debate teórico-metodológico ressaltando o
percurso da história e cultura da alimentação desde o início de seu estudo até
discussões mais atuais sobre o assunto que englobam, inclusive a realidade
paranaense.
Por fim, no terceiro e último capítulo buscou-se observar quais as
impressões dos pesquisadores durante sua permanência em Guaraqueçaba. Além
disso procurou-se considerar em que medida os gêneros presentes no mar e no
mato perpassam a vida dos moradores e delineiam sua cultura e também como são
estabelecidos seus hábitos de comensalidade.
3
2. PARANÁ: CONJUNTURAS HISTÓRICAS E FORMAÇÃO DO SISTEMA
AGROALIMENTAR
Ao tratar da história do Paraná, em seu aspecto geral, é importante levar em
consideração o que muitos historiadores chamam de grandes “ciclos” econômicos
presentes desde o início da colonização e ocupação de seu território. Vale ressaltar
que as duas atividades econômicas de maior destaque no Paraná até o século XIX,
dentre outras, eram permeadas por gêneros alimentícios, ou seja, a pecuária e o
mate.
Indo ao encontro dessa análise, o trabalho de Santos2 faz uma abordagem
da história do Paraná desde o século XVI, ou seja, o início da colonização, até
princípios do século XX. O começo desse processo foi com a empresa de caça ao
índio. O estabelecimento da lavoura coletiva foi o que predominou quando do
estabelecimento de reduções jesuíticas na região ocidental do Paraná, baseada na
subsistência. O produto de exportação era a erva mate e a base da alimentação da
população nas regiões era constituída por milho, mandioca e gado. A mão-de-obra
que sustentava esse sistema era a escrava (indígena e negra), de acordo com o
sistema de trabalho de toda a sociedade colonial.
Outro grande movimento econômico do Paraná, que contou com
investimentos governamentais, foi a mineração no litoral (mais precisamente na
região de Paranaguá) para onde foram mandados, inclusive, técnicos estrangeiros e
mão-de-obra. Com a decadência da mineração, Curitiba serviu de lavoura de
subsistência e pecuária, fixando pequenos núcleos de habitantes em seus campos.
Em relação à ocupação da região dos Campos Gerais, Santos concorda
com Pinheiro Machado3 quando afirma que ela teve início com os movimentos
expansionistas irradiados a partir de Curitiba no fim do século XVIII e início do XIX.
Assim cresce a demanda e, consequentemente, a importação de gêneros
alimentícios. Com a pecuária e o tropeirismo, a criação de gado torna-se uma das
principais atividades da região.
2 SANTOS, C. R. A. dos. Vida material vida econômica. Curitiba: SEED, 2001. 3 PINHEIRO MACHADO, B. Esboço de uma sinopse de história regional. História, Questões & Debates. Curitiba, v. 8, n. 14/15, jul.-dez. 1987.
4
No Paraná do século XIX há duas áreas econômicas não integradas: a
primeira que tem sua base na pecuária dos Campos Gerais e está, por sua vez,
conectada à economia central do País; e a segunda, pautada na economia de
subsistência localizada nas pequenas vilas do planalto e no litoral, cuja produção era
limitada.
Durante a primeira metade do século XIX toda a economia estava baseada
na produção e exportação do mate “integrada às rotas de economia brasileira e da
economia-mundo e introduzindo internamente as oscilações do mercado externo”4.
Dessa forma houve na região crises locais que eram reflexo de uma integração a um
cenário global e estavam ligadas à baixa qualidade do produto, à concorrência com
a erva produzida no Rio Grande do Sul e no Paraguai e à falta de estrutura para
acompanhar a baixa nos preços no mercado internacional.
A partir da promulgação da Lei de Terras (1850) e da emancipação da
província (1853) passa-se a investir, como no restante do país, na vinda de
imigrantes morigerados e laboriosos (expressão corrente do vocabulário burguês da
época) para a diversificação da produção e seu desenvolvimento. A monocultura do
mate é abandonada devido aos grandes prejuízos que vinha trazendo e, a partir
disso, a política local passa a girar em torno da abolição com vias de se estabelecer
uma sociedade livre.
O início da ocupação do atual estado do Paraná aconteceu com a presença
de paulistas no território, com a empresa de caça ao índio e a busca por metais
preciosos, já no final do século XVI. Nesse período a província de São Paulo não
exercia nenhuma atividade econômica de grande destaque; era focada na
subsistência e necessitava de mão-de-obra escrava. Por essa razão eram
constantes os pedidos para se realizar bandeiras, com o objetivo de obter índios a
serem empregados nas lavouras paulistas.
As perspectivas de descoberta de ouro geraram movimentos com destino ao
litoral de Paranaguá e aos campos de Curitiba. Devido à distância em relação a São
Paulo, muitos mineradores se viram obrigados a fixar residência no local, o que
proporcionou a criação de povoados, mesmo anteriormente à fundação de vilas nas
regiões5.
4 SANTOS, Op. cit., p. 14. 5 Ibid., p. 22.
5
A partir do momento em que se passou a encontrar ouro nos rios dessas
regiões o interesse por elas também aumentou. Em meados do século XVII foi
descoberta a primeira mina em Paranaguá e, portanto, justificou-se a instalação de
uma fundição na região a fim de controlar a produção e cobrar o quinto. Porém, há
indícios nas fontes de que pouco tempo depois da descoberta das minas de
Paranaguá, já se sabia que elas não correspondiam à expectativa do governo. Em
decorrência da descoberta de ouro em outras localidades, como Minas Gerais e
Cuiabá, e o declínio da produção em Paranaguá, a região paranaense experimentou
certo abandono e muitos mineradores lá instalados foram para os campos de
Curitiba, fator que fez surgir o povoado de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais. A vila
de Curitiba foi fundada em 1693.
A constituição da comunidade paranaense se deu com bases em Paranaguá
e Curitiba, tendo como motor a mineração, mas permaneceu isolada do restante da
economia brasileira. Com a desagregação da economia mineradora, a comunidade
passou a se dedicar à cultura de arroz e mandioca, gêneros que constituíam a base
da alimentação no litoral e cujos poucos excedentes eram exportados. Já Curitiba
dedicava-se à lavoura de subsistência e à pecuária, exigindo a fixação a terra.
A partir de finais do século XVII e durante o século XVIII a pecuária
experimentou uma expansão e, com uma lucratividade crescente, foi responsável
por integrar a economia paranaense ao sistema de economia-mundo. De acordo
com Santos “Estimulados pelas demandas dos mercados centrais (de mineração),
os campos do Paraná se integraram rapidamente a esta nova conjuntura econômica,
no papel de fornecedores, principalmente, de gado” 6. Em decorrência disso a
ocupação dos Campos Gerais ocorreu em virtude de movimentos expansionistas a
partir de Curitiba.
Devido ao grande contingente populacional em Minas Gerais, passaram a
acontecer problemas de abastecimento na região, o que foi solucionado com a
importação de gêneros alimentícios de outras localidades. Devido a isso as
atividades ligadas à pecuária e ao tropeirismo no sul do país desenvolveram-se para
atender à demanda. Isso fez com que, no Paraná, crescessem o número de
fazendas de criação e, posteriormente, de invernadas de gado.
6 Ibid., p. 26.
6
Os campos na região de Curitiba cresceram em tamanho e número, já que
estavam localizados próximos aos mercados de Sorocaba. No ano de 1725 foi
autorizada a exportação de gado também para Cuiabá, que estava com dificuldades
de abastecimento. A estrutura desse sistema, assim como em toda a economia
colonial, era essencialmente escravista. Para Santos
A partir do estabelecimento de uma economia de tipo rural para as regiões paranaenses ligadas às atividades da pecuária, originou-se uma espécie de sociedade rural caracterizada pelo regime de escravidão. Ainda que o trabalho escravo e o trabalho livre coexistissem, a sociedade paranaense, como todo o Brasil, foi envolvida e marcada pelo regime escravista7.
O estabelecimento da pecuária enquanto principal atividade econômica do
Paraná fez com que o sistema escravista se cristalizasse enquanto regime de
trabalho na região. Os escravos, antes utilizados na mineração, passaram a realizar
suas atividades na pecuária e, assim, como a maioria dos habitantes da região,
modificaram suas habilidades. Embora as fontes não revelem a dimensão da
utilização de escravos nas fazendas de criação e invernada, sabe-se que essas
atividades exigiam um número reduzido de trabalhadores.
Para observar as relações econômicas presentes nas principais atividades
do Paraná no período, deve ser observado o texto de autoria de Cecília Westphalen,
Duas vilas paranaenses no final do século XVIII – Paranaguá e Antonina8, em que a
historiadora faz um estudo sobre o ano de 1798 e traz uma análise quantitativa,
baseada em documentos diversos, trazendo dados de grande importância para a
análise da conjuntura da época nessas duas vilas. Em Antonina a farinha de
mandioca é a base da produção local, sendo que representa 37,70% do que é
produzido na vila. Já Paranaguá, mais pobre que Antonina, neste mesmo ano,
36,65% de sua produção é de farinha de mandioca, sendo superada apenas pelo
Peixe (52,80%), muito embora a produção das duas vilas seja quase a mesma.
Na relação produção/consumo referida pela autora, Paranaguá consumiu no
referido ano, 88% de toda sua produção, enquanto que em Antonina esse percentual
foi de 68%.
7 Ibid., p. 30. 8 WESTPHALEN, C.M. Duas vilas paranaenses no final do séc. XVIII – Paranaguá e Antonina. Boletim do departamento de história. Curitiba, n.5, 1964.
7
A base da alimentação, segundo Cecília Westphalen, em Paranaguá
constituía-se de “açúcar, aguardente, arroz, azeite de peixe, café, carne de gado
vacum, farinha de mandioca, farinha de trigo, feijão, milho, peixe, sal, toucinho e
vinhos de Lisboa”9. Em Antonina, essa alimentação somente muda pela ausência do
peixe e seu azeite.
Em relação a atividade produtiva pode-se destacar, de acordo com a autora,
que 33,08% da sua população encontrava-se envolvida em atividades produtivas,
sendo que, 69% concentrava-se no setor primário, 16,3% no setor secundário e
13,75% no setor terciário. Em Antonina o percentual da população produtiva era
ligeiramente maior: 35,24%. 92,55% concentravam-se no setor primário, 4,75% no
setor secundário e 2,70% no terciário. Podemos depreender desses dados que a
atividade produtiva em Paranaguá era mais diversificada. Porém em ambas as vilas
o predomínio das atividades é concentrada no setor primário.
Sobre a exportação e a importação nas vilas, Antonina exportou muito mais
que importou, situação que não se repetiu em Paranaguá. Segundo a autora,
o comércio de importação de Antonina realizou-se sobretudo com a Vila de Paranaguá, de onde vieram, certamente, redistribuídos os vinhos de Lisboa, panos de linho, panos de algodão, panos de lã, chapéus de Braga, miudezas, riscados de Santa Catarina, e ainda o sal, de tal maneira que Paranaguá procedeu 47% do valor total da importação da Vila de Antonina10
Em linhas gerais podemos destacar que Paranaguá, no ano de 1798
possuía um menor número de escravos que Antonina (sendo essa relação de
20,53% da população para 27%) Em consequência disso, a taxa de branquidade da
população de Paranaguá era superior (68,87%) a de Antonina (58,29%).
A população total de Paranaguá era 29,38% superior à de Antonina. A
produção em ambas era, comparativamente, pouco diversificada. A única diferença,
como já citado, era o peixe, que caracterizava o consumo alimentar em Paranaguá.
O custo diário para a alimentação dos moradores das vilas de Paranaguá e
Antonina, era mais ou menos equivalente. Porém, quantitativamente, comia-se
menos na primeira em relação a segunda, sendo essa relação de 839,320 gramas
9__________, Op. cit. p. 15 10 Ibid., p. 21.
8
por indivíduo por dia em Paranaguá, para 1.412,364 gramas por indivíduo por dia
em Antonina. Consequentemente o valor diário gasto com a alimentação em
Paranaguá era inferior (0$01787 réis por indivíduo) em relação a Antonina (0$01831
réis por indivíduo)11.
Sendo a produção de Paranaguá quase toda consumida na própria vila,
pouco sobrava para a exportação. Daí pode-se deduzir o motivo pelo qual
Paranaguá exportava menos que importava. Em Antonina, pela sua população ser
relativamente menor, o consumo também o era. Dessa forma o excedente para a
exportação era maior e Antonina, consequentemente, conseguia manter uma
balança comercial favorável. A autora destaca ainda que, mesmo relativamente
isoladas, as vilas estavam inseridas na lógica colonial brasileira. Ou seja, sua
produção concentrava-se no setor primário e a economia era, essencialmente, para
a subsistência.
As relações entre as vilas eram estreitas, e também de ambas com a vila de
Curitiba. Outras relações ainda se firmaram com Santos, Rio de Janeiro e Bahia,
como a autora destaca também no texto As farinhas de Paranaguá12. Entretanto,
nunca tiveram comércio diretamente com a Metrópole. Paranaguá tinha a função de
redistribuir para Antonina as mercadorias vindas do Rio de Janeiro e da Bahia. Daí
pode-se concluir que o movimento no porto de Paranaguá era, seguramente mais
intenso que no de Antonina.
De acordo com Santos13 durante o século XVIII o Paraná teve duas
atividades econômicas não integradas entre si: a primeira foi a pecuária dos Campos
Gerais, integrada à economia central do Brasil; e a segunda foi a economia de
subsistência, desenvolvida nas vilas do planalto e no litoral.
Cabe destacar aqui que, segundo Cecília Westphalen há, na historiografia
paranaense, uma tendência em se destacar, em primeiro lugar, o ciclo da
mineração, com a descoberta de ouro em Paranaguá (século XVII) para, em
seguida, tratar do ciclo da erva-mate. Entretanto deve-se chamar a atenção para o
que a autora denomina de interciclos que estão presentes tanto na economia
colonial quanto na lavoura de subsistência14.
11 Ibid., p. 27. 12 WESTPHALEN, C. M. As Farinhas de Paranaguá. In: A Moderna História econômica. Rio de Janeiro: APEC, 1976. 13 SANTOS, C. R. A., Op. cit., p. 24. 14 WESTPHALEN, C. M. Op. cit., p. 72.
9
Já no século XVII, mais precisamente em 1679, são apresentados a D.
Rodrigo de Castel Branco pela Câmara Municipal de Paranaguá, os motivos que
permeiam as limitações econômicas da vila: a pobreza de seus habitantes, a
escassez de índios e o baixo lucro de suas lavouras. Porém, mesmo com essas
dificuldades a historiadora destaca que as farinhas de Paranaguá estiveram
presentes nas exportações da região desde finais do século XVII até o século XVIII.
Essas farinhas constituíam a base da alimentação local e sua produção foi
solicitada para exportação como socorro às regiões que passavam por carestias e
com o objetivo de alimentar tropas no sul. Na segunda metade do século XVII foram
expedidas ordens para que se destinassem remessas de farinhas a outras vilas. Em
1679, ano da fundação da Colônia de Sacramento, D. Manuel Lobo solicita
remessas de farinha para o local. Nesse mesmo ano, a Câmara de Paranaguá
busca impor medidas restritivas à exportação da farinha, dando como justificativa a
pobreza de seus habitantes.
Durante o período de invasão pelos franceses, as farinhas têm como destino
o Rio de Janeiro. No final do século XVII a situação dos moradores locais é de muita
pobreza. Como consequência disso, em 1710 a Câmara Municipal de Paranaguá
proíbe a exportação de farinhas, medida que foi logo modificada sob a condição de
que as farinhas seriam exportadas, desde que o abastecimento local não ficasse
prejudicado.
A autora afirma que Ouvidor Pardinho, no século XVIII relata que a lavoura
de mandioca era a mais praticada em Paranaguá e “muitas embarcações
costumavam ali carregar para o fornecimento de Santos, Rio de Janeiro e mesmo,
em algumas ocasiões, da Bahia”15.
A demanda de farinhas para a colônia de Sacramento é crescente, porém
em 1723 a Câmara Municipal autoriza a exportação de uma quantidade muito
inferior à solicitada. Essa iniciativa é reprovada, inclusive, pelo Conselho
Ultramarino. A reação do Governador Rodrigo César de Menezes, em 1724, foi
justificar a atitude em virtude do sacrifício dos moradores em produzir a quantidade
demandada. Dessa forma, poder-se-ia contar, inclusive, com a progressiva falta do
produto.
15 Ibid., p. 74.
10
Mesmo prestando socorro ao Rio de Janeiro, Santos, Sacramento e Bahia, a
situação da vila de Paranaguá continuava difícil em meados do século XVIII. Há uma
relativa intensificação das relações do Porto de Paranaguá com o porto do Rio de
Janeiro. Porém em 1745 o Conde de Sarzedas ordenou que todas as embarcações
saídas de Paranaguá, deveriam dar entrada em Santos, por causa da necessidade
de farinhas ali existente. As únicas embarcações livres dessa obrigação eram as que
navegavam para o sul. De acordo com Westphalen
Essa conjuntura, aliás, de acentuado militarismo e prepotência dos Capitães Generais, foi difícil para as vilas paranaenses, pelas requisições de tropas e serviços, mantimentos e gêneros de toda sorte, além das exigências do fisco real16.
Como consequência a Câmara de Paranaguá obriga todos os moradores
que possuíam alguma terra a plantar mandioca para as farinhas. A despeito das
reclamações de Paranaguá, as restrições em relação ao comércio, permanecem e
os comerciantes, por meio da Câmara, declaram oposição ao Capitão General,
alegando perda de tempo e prejuízos financeiros. Entretanto a função do Capitão
General era garantir o fornecimento das farinhas para a metrópole e ordena,
inclusive, o incremento da produção no ano de 1797.
A situação não se modifica até início do século XIX. Em 1811 a Câmara
Municipal entra com uma representação solicitando ao Príncipe Regente a
emancipação da Comarca, alegando, mais uma vez, a pobreza dos seus moradores.
Em 1812 solicita a Pedro Joaquim de Castro Correia e Sá a separação em relação a
São Paulo, afirmando que, apesar de ter fornecido farinhas a outras localidades, a
vila via-se obrigada a importar o gênero.
Essa conjuntura, entretanto, modifica-se, de acordo com a autora,
em decorrência de fatores externos que sobre ela irão incidir, inaugurando-se, com base nas exportações de erva-mate, um fluxo comercial contínuo e regular com o Rio da Prata e o Chile, deixando as farinhas de mandioca, a partir da década de 1820, de ser o gênero procurado de Paranaguá17.
16 Ibid. p., 75 17 Ibid. p., 76
11
A mão-de-obra escrava esteve ligada a toda a economia colonial que tinha
como objetivo a ocupação do solo e o desenvolvimento de novas regiões. Segundo
Santos “o tipo de escravidão que foi implantada era o de uma instituição diretamente
ligada ao sistema colonial. A partir daí, será em função da economia-mundo que se
desenrolará a expansão da colonização” 18. Nesse ínterim pode-se afirmar que a
economia periférica também ocupa um papel fundamental no processo de
desenvolvimento econômico.
Com a exploração do trabalho nas respectivas colônias, as metrópoles
puderam, então, gozar de sua produção e, assim, as primeiras passaram a integrar
também o sistema capitalista mercantil mundial. Desde o século XVIII até o século
XIX a economia latino-americana foi identificada como capitalista por causa de suas
características intrínsecas como seu sistema de trabalho. Além disso, é fato que
nenhuma economia pode integrar a economia-mundo senão por meio do
capitalismo. Em decorrência disso, fez-se a escolha pela utilização da mão-de-obra
escrava no Brasil, mesmo em regiões como o Paraná e, a partir dela, é que se
definiu a vida econômica e social do atual estado.
A economia para exportação suplantou a economia de subsistência, tendo
como principal produto o mate que ocupava as atividades desde o litoral até o
primeiro planalto do Paraná. Foi durante o século XIX que houve a coexistência das
suas duas principais atividades econômicas: o cultivo do mate e a pecuária. Elas
foram determinantes para a ocupação do primeiro e segundo planaltos. A pecuária
estabelecia um comércio com a região de Minas Gerais enquanto que o mate era
exportado para a região do Prata. Esse afã de produzir para exportar levou a um
desequilíbrio nas atividades de subsistência e consequente crise de abastecimento,
o que fez com que surgisse a necessidade de importar gêneros de primeira
necessidade.
No entanto, apesar das determinações governamentais que permitiam a
exportação do mate por meio do porto de Paranaguá, a expansão desse produto era
dificultada pelo predomínio da exportação jesuítica e pela produção paraguaia.
Porém no início do XIX a economia do mate do Paraná experimentou uma
alavancagem, em decorrência da expulsão dos jesuítas (em 1767) e do colapso da
produção paraguaia. Nessa conjuntura chega ao Paraná a figura de Don Francisco
18 SANTOS, C. R. A., Op. cit. p. 36.
12
de Alzagaray, procedente de uma família ligada à economia ervateira, e grande
incentivador do cultivo e do comércio do mate no Paraná. Nessa atividade, havia a
coexistência do trabalho livre com o trabalho escravo, estes últimos sendo
empregados em atividades mais árduas como o soque da erva e o transporte de
mercadorias.
A produção da erva era feita no planalto e o seu beneficiamento, no litoral.
Por isso era necessária a construção de estradas, a fim de facilitar a conexão entre
as duas regiões. A alternativa encontrada foi a taxação de produtos que eram
transportados de Curitiba para Paranaguá e Antonina com a finalidade acumular
uma soma que seria destinada à construção da estrada.
Na segunda década do século XIX a exportação do mate já era a principal
atividade no Paraná e alcançava 44% da exportação, ocasionando maior movimento
no porto de Paranaguá inclusive por navios estrangeiros que vinham atracar ali. Por
meio do porto exportavam-se os principais gêneros do Paraná: mate, madeira e
arroz e eram importados outros produtos como o couro, o sal e as ferragens.
Segundo Santos entre “1842 e 1861, mais de 96% da produção paranaense foi
comercializada com o exterior, principalmente com a Argentina, Uruguai e Chile” 19.
Após 1840 o Paraná entra mais profundamente na conjuntura de emancipação
política com objetivo de obter independência e progresso econômico, o que vai
acontecer somente em 1853.
Durante o século XIX o mate acompanhou as curvas de exportação do
Império, demonstrando que o Paraná era o maior exportador do Brasil, obtendo o
auge entre 1856 e 1857. Entretanto, o contexto de crise internacional entre 1857 e
1858, repercutiu na economia paranaense, provocando queda nos preços.
Consequentemente, durante meados do século XIX há uma queda da importação e
da exportação do produto, o que leva à menor arrecadação nas exportações. O
movimento do porto de Paranaguá refletiu as flutuações da economia brasileira o
que demonstra, portanto, que a região estava sujeita às oscilações da economia-
mundo.
Em 1859 o Paraná enfrentava um contexto de crise, já que o preço do
produto havia baixado e ainda havia a concorrência com o mate do Rio Grande do
Sul, de qualidade superior. Além disso, a pouca diversificação da economia
19 Ibid., p. 43.
13
paranaense oferecia um grande perigo para a região. Apesar desse contexto de
crise do mate na província, em 1855 foi iniciada a construção da estrada da
Graciosa, ligando o planalto ao litoral.
Os governos provinciais passaram então a incentivar a diversificação da
produção na região, com o estímulo crescente à utilização de mão-de-obra
imigrante. Nessa época é que foram estabelecidas as colônias de Assungui e
Superagüi. O autor afirma que, entretanto, essas colônias nasceram a partir de uma
iniciativa desorientada de imigração e colonização. A parir do trabalho de José
Carlos Veiga Lopes, observamos que o responsável pela fundação da colônia de
Superagüi, foi o suíço, natural de Neuchâtel, Charles Perret Gentil. Ele tentou fundar
uma companhia de colonização com o apoio de sua terra natal, mas devido às
restrições da Suíça, resolveu tocar a empreitada com o auxílio de uma família de
grandes proprietários de terra em São Paulo (a família do Senador Campos
Vergueiro). Em janeiro de 1852 Perret Gentil adquire, de um casal inglês, a fazenda
do Superagüi20.
Em 1851 o imigrante dá início a sua empreitada de fundação de uma
colônia, com interesse na região da ilha do Superagüi, logo na entrada da baía de
Paranaguá e pertencente à freguesia de Guaraqueçaba, objeto deste estudo.
Em 1852, envia relatório à Suíça comunicando a compra das terras e
informando que “já viviam na propriedade 8 suíços e 50 famílias brasileiras, num
total de 244 pessoas”21. A seguir, o autor nos oferece um panorama da colônia:
Segundo Sebastião Paraná, em junho de 1852 foi fundada a colônia do Superagüi por Charles Perret Gentil, Jorge Carlos Milly e Augusto Perret Gentil; disse que a referida colônia era dividida naturalmente em três partes distintas: a primeira, compreendida no continente, compunha-se de uma série de montes, derradeiros declives da Serra do Mar; a segunda compreendia península de Superagüi, separada da primeira pela enseada dos Pinheiros e canal do Varadouro; a terceira dominava a grande ilha das Peças, em frente ao Superagüi, de que era separada pelo canal do mesmo nome, e do continente pelo das Laranjeiras [...]. Francisco Negrão dá a data de 28 de agosto de 1852 onde em terras confiscadas pelo governo aos padres da Cia de Jesus era estabelecida a Colônia do Superagüi, com elementos de origem suíça22.
20 LOPES, J. C. V., Superagüi: informações históricas. Curitiba: Instituto Memória, 2009. p. 109-110. 21 LOPES, Op. cit., p.112. 22 Ibid., p. 113-114.
14
Em relatório ao vice-presidente da província José Antônio Vaz de
Carvalhaes, Perret Gentil informa, em 7 de janeiro de 1857, que a colônia,
estabelecida em 1852, não havia ainda alcançado sua prosperidade, devido à falta
de auxílio do governo. Ele ainda passa informações acerca da estrutura da colônia,
fornecendo uma lista de máquinas e bem feitorias. Os gêneros alimentícios mais
cultivados eram arroz, café, cana, mandioca, frutas e legumes. Suas exportações
eram, em maior número, de café, aguardente e farinha. 23
Na província do Paraná a mão-de-obra, tanto livre quanto escrava, dedicava-
se principalmente à economia mercantil, deixando os setores de subsistência
esvaziados. Por diversos fatores a economia paranaense experimentou um
desenvolvimento lento, provando em vários momentos crises e inflações. Porém na
conjuntura da Guerra do Paraguai, a economia do mate paranaense experimentou
um bom período. A concorrência paraguaia foi eliminada e o mercado do Prata foi
reaberto ao Paraná proporcionando, consequentemente, o aumento nas
exportações do produto. A monocultura, entretanto, representava ainda certo perigo
à economia paranaense e a partir da metade do século XIX houve maior incentivo à
diversificação e à produção de gêneros de subsistência, o que teve como reflexo a
vinda de imigrantes europeus e a mudança da estrutura econômica e social do
planalto.
Durante a década de 1860 aumenta a exportação do mate, em virtude da
conjuntura de guerra e mesmo com o final desta (1870), as exportações continuam a
crescer. Em 1875 novos engenhos foram montados em Curitiba e na sua região.
Entre 1870 e 1874 os preços dos escravos paranaenses atingem os preços mais
altos. Porém na década de 1880 uma nova crise atinge a economia ervateira do
Paraná e em 1885 a Argentina aumenta para 15% o direito de importação sobre o
mate beneficiado, medida protecionista à indústria local. A dependência externa da
economia paranaense, então, sofre forte abalo. Em 1855 promulga-se uma lei com o
objetivo de combater a crise e aplica-se uma taxa de 2$000 a cada 15 quilos de
matéria-prima exportada e liberando-se de taxação o mate já beneficiado, que era
exportado para o Rio de Janeiro, visando proteger a indústria local.
Durante a década de 1880 o Paraná estava envolvido com três atividades: o
mate, a madeira e a pecuária, sendo a primeira a mais importante e responsável por
23 Ibid., p. 132-133.
15
21% de toda a arrecadação provincial. A partir da construção da estrada da
Graciosa e da ferrovia ligando Curitiba a Paranaguá, aumenta a comunicação entre
o planalto e o litoral e, consequentemente, as exportações feitas a partir do porto de
Paranaguá, o que fez Paranaguá crescer economicamente e, juntamente com
Curitiba, tornar-se um importante centro econômico.
Enquanto isso, nos Campos Gerais a pecuária exercia um papel
fundamental para a região. As fazendas de gado estabeleceram-se ali já no século
XVIII e no século XIX, com a atração de grande contingente populacional e com a
ocupação de Guarapuava e Palmas, revelava-se as intenções expansionistas da
atividade. Neste momento a província divide-se economicamente entre duas
atividades: de um lado o mate e, de outro, a pecuária e o tropeirismo.
Durante meados do século XIX a economia da pecuária na província do
Paraná não é mais uma atividade isolada, mas passa a integrar todo um sistema,
encerrado em um período histórico.
Entre 1800 E 1840 a pecuária é atividade de grande importância para a
ocupação da região de Guarapuava e Palmas. A partir da segunda metade do
século XIX há o estabelecimento de povoamentos ao longo do caminho das tropas
e, no mesmo período, surgem ainda colônias agrícolas no segundo e no terceiro
planaltos.
O sistema econômico-social sobre o qual se estabeleceu a pecuária no
primeiro e segundo planaltos foi o latifúndio com a mão-de-obra escrava, já que era
por meio da posse de terras e escravos que se estabelecia o status social dos
proprietários. Essas fazendas produziam sua própria subsistência: os gêneros de
primeira necessidade, que constituíam a base da alimentação; o gado era todo
reservado para a exportação.
Ao longo do século XIX a economia dos Campos Gerais esteve baseada na
criação e no comércio de muares. Além disso, as invernadas também foram de
grande importância nesse período o que fez com que muitos fazendeiros
reservassem cada vez partes maiores de seus pastos para essa atividade, já que
exigia menos despesas e trazia lucros rápidos. Em 1860, o autor destaca que, cerca
de 30% do total de muares que entravam em Sorocaba provinham das invernadas
no Paraná. Porém, com a Guerra do Paraguai, decai a oferta de gado e,
posteriormente, com a substituição do transporte baseado em força animal pelo
16
transporte ferroviário, o tropeirismo começa a declinar. Após 1875 então, a atividade
enfrenta uma grave crise e promove o declínio do comércio. Durante o
desenvolvimento da atividade, pode-se observar a crescente valorização das terras
nas regiões dos Campos Gerais. Essa situação modifica-se, porém, nos cinco anos
seguintes a 1877, em que o preço decai e volta a recuperar-se na década de 1880,
período de desagregação da economia pecuária e interesse pelas invernadas.
Nesse mesmo período o sistema escravista no Paraná já estava em franca
desagregação. Ao passo que as atividades da pecuária e do mate declinavam, há a
ascensão de grupos urbanos, garantindo a predominância das cidades em relação
ao campo.
O Paraná, porém, continua economicamente dependente e, sua balança
comercial, desfavorável, visto que a exportação era inferior à importação. Durante
todo o século XIX a economia paranaense enfrentava forte abalo e refletia ainda as
oscilações do mercado internacional. Apesar de ser uma economia periférica, deve-
se destacar que estava integrada à economia-mundo.
A partir da década de 1870 passou a se incentivar uma política de
colonização e de emancipação. Entre as principais solicitações dos municípios, que
incluíam investimentos em infraestrutura e melhorias, pedia-se também o
estabelecimento de famílias de colonos para produção de alimentos.
Nesse contexto buscava-se a aceleração do processo de emancipação dos
escravos (inclusive contando com um fundo destinado a isso a fim de que os
proprietários não tivessem prejuízo) e incentivava-se a política imigratória
inaugurada pelo presidente da província, Dr. Lamenha Lins, que revelava benefícios
e o início da formação de uma estrutura agroalimentar ainda muito incipiente.
A dificuldade de aquisição de terras pelos colonos (Lei de Terras, 1850)
corroborava a ideia de submissão em relação ao Estado ou a proprietários
particulares.
A política do governo para o incentivo à vinda de imigrantes estava
relacionada à ocupação de áreas ainda inabitadas, além de, em segundo lugar,
solucionar o problema da escassez de mão-de-obra. Esses imigrantes foram
incorporados, nas décadas de 60 e 70, para produzir gêneros tanto para
subsistência, quanto para a economia mercantil.
17
Guaraqueçaba, de acordo com José Luiz Mercer, é a mais antiga povoação
portuguesa no Paraná. Apesar de Mercer considerar em seu texto Notas
dialetológicas sobre Guaraqueçaba24 os aspectos linguísticos da região, podemos
estender a sua condição de isolamento para os outros aspectos da vida dessa parte
do litoral paranaense. Assim, o que foi trazido por seus colonizadores se
desenvolveu em um ritmo próprio e com características também muito peculiares. O
estudo de Mercer, e sua incursão em Guaraqueçaba com uma equipe de
dialetologia, é datado da mesma época do estudo de Alvar e Alvar, ou seja, a
década de 1970.
A região de Guaraqueçaba insere-se na história do Paraná localizada na
ponta norte da Baía de Paranaguá. À época da pesquisa, Alvar e Alvar afirmam que
a região contava com doze mil habitantes. Ela constituiu o segundo distrito de
Paranaguá, sendo desmembrado em 1880.
Entre 1630 e 1640, de acordo com Alvar e Alvar25 o fundador da Capitania
de Paranaguá, Gabriel de Lara, descobriu uma mina de ouro nas encostas da Serra
Negra, o que fez com que, para lá, fossem atraídos mineiros e aventureiros. Os
habitantes foram se instalando ao longo dos rios e, então, fez-se necessária a
criação de uma paróquia, que demorou a se concretizar, já que muitos fazendeiros
pretendiam sediar a futura povoação. Esta foi constituída apenas em 1838, em que
foi construída uma capela aos pés do monte Quitumbê. O templo foi abençoado em
julho de 1839 e ao seu entorno começou a crescer a população que, pouco a pouco,
contava com reconhecimento e privilégios próprios de um povoado. 26
Lamenha Lins implementou uma política imigratória no Paraná após entrar em
contato com iniciativas particulares que criaram as colônias de Superagüi, Assungui,
Ivaí, Alexandra, entre outras. Porém o governo notou alguns problemas crônicos
relativos à imigração como a pouca fertilidade das terras para a produção de
gêneros alimentícios, a pouca comunicação com Curitiba e com o litoral e ainda as
altas despesas com o transporte da produção dos camponeses. Com essa
identificação, Lamenha Lins fez da resolução desses problemas uma meta de sua
24 MERCER, J. L. Notas dialetológicas sobre Guaraqueçaba. In: Revista de Estudos Brasileiros, Curitiba, v.2, n.3, 1977. 25 ALVAR, J.; ALVAR, J. Op. cit., p. 6. 26 Ibid. p. 7
18
administração. A fixação das novas colônias, então, foi feita ao longo de estradas
carroçáveis, com maior facilidade de manutenção e custos mais baixos.
Com isso durante a segunda metade do século XIX a produção de gêneros
alimentícios pelos camponeses aumentou consideravelmente, mas permanecendo
ainda, aquém das reais necessidades.
A complexificação e a diversificação agroalimentar paranaense proporcionou
a mudança dos hábitos alimentares da população. Isso é consequência de um
processo cultural já que
O alimento constitui uma categoria histórica, pois deve ser explicada a sua produção, circulação e consumo à luz dos níveis de desenvolvimento de uma determinada formação econômica e social. Daí o aperfeiçoamento das técnicas, da cultura e do sistema de consumo27.
Nesse ínterim a história e a cultura da alimentação no Paraná perpassam
gêneros alimentícios como o milho, o feijão, a mandioca (principalmente sua
farinha), o arroz, a carne verde, o trigo, o centeio e o mate. Eles eram, em muitos
casos, utilizados como moeda de troca e a alimentação doméstica era basicamente
composta por milho, feijão, arroz e mandioca, os gêneros de primeira necessidade.
O mate era um produto inserido no mercado internacional, mas também largamente
consumido pela população. A carne de gado era de difícil acesso à maioria das
pessoas e o trigo e o centeio constituíam um grupo intermediário, já que aquele
dependia da importação.
A partir da segunda metade do século XIX com a vinda de imigrantes, as
técnicas agrícolas foram diversificadas e desenvolvidas, que juntamente com a
elevação dos padrões de consumo e outros fatores, constituíram a formação de um
sistema agroalimentar no Paraná. Isso significou a modificação no sistema de
trabalho (do escravo para o livre) e a maior produção de gêneros trazendo em seu
bojo um projeto de modernidade e desenvolvimento para a jovem província. A
produção camponesa, contudo, pautada no sistema de trabalho familiar estava
integrada ao sistema do grande capital e não constituía um pólo em relação à
economia de exportação.
27 SANTOS, C. R. A. Op. cit.., p. 81.
19
É possível associar diretamente a produção agroalimentar do Paraná ao
desenvolvimento de sua estrutura econômico social, já que os alimentos constituem
importantes categorias históricas.
20
3. HISTÓRIA E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO
O estudo das relações existentes entre a sociedade e seus hábitos
alimentares, mais precisamente os estudos acerca da história e cultura da
alimentação garantindo um diálogo multi, inter e transdisciplinar, muito recentemente
começou a tomar proporção nas discussões acadêmicas. De acordo com Santos
os estudos sobre a comida e a alimentação invadem as Ciências Humanas a partir da premissa de que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro28
Dessa forma faz-se necessário observar lugar da alimentação na história e
perceber em que medida esse tipo de estudo pode auxiliar na compreensão das
estruturas culturais de nossa sociedade. De acordo com Santos, a obra que abriu as
portas para a alimentação na historiografia foi A fisiologia do Gosto29 de Brillat-
Savarin, um tratado de gastronomia. Porém, pode-se afirmar que foi a partir de
estudos de Fernand Braudel que o assunto ganhou corpo na pesquisa histórica.
Em 1974 foi traduzida no Brasil a coletânea Faire de l’histoire e no volume
intitulado em português como História: Novos objetos Jean Paul Aron contribui com
o texto A cozinha: um cardápio do século XIX30 em que o autor trata a cozinha como
um microcosmo da sociedade, analisando cardápios e documentos de gastos
alimentares de hospitais na França do século XIX. Vale ressaltar que foi com essa
geração da escola dos Annales que a história experimenta uma explosão
28 SANTOS, C.R.A. Por uma história da alimentação. História, Questões & Debates, Curitiba, n. 26-27, p. 154-171, 1997. 29 BRILLAT-SAVARIN, A. A fisiologia do gosto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1989. 30 ARON, J.P. A cozinha: um cardápio do século XIX. In: Le Goof J, Nora P. História, Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974.
21
documental e que os historiadores a passam a considerar novos objetos, novos
problemas e novas abordagens para a pesquisa histórica.
Aron, em seu texto, afirma que embora a história tenha se desvencilhado de
alguns de seus paradigmas arraigados, ainda persistem dois problemas que devem
ser superados: i) o que ele chama de “tabu dos domínios impuros: o corpo, o sexo,
os apetites e os desejos”; e ii) “a ditadura das antinomias operatórias: a quantidade
contra a qualidade, o sistema contra o acontecimento, o signo contra o vivido”31. E a
cozinha, segundo ele, é o objeto de estudo que faz cair por terra esses dois entraves
já que é a única que nasce da necessidade dos seres humanos e alcança os altos
patamares da cultura e da arte. Aron ressalta que para isso uma nova metodologia
de estudo deve ser realizada, sendo a história da alimentação abordada a partir de
uma nova perspectiva, já que seu objeto não é nem formalizado e nem documental:
“Ele é vivo, e no crescimento de sua vida própria é uma história total que se
desenrola”32
Para isso Aron analisa um quadro do gasto alimentar nos hospitais gerais de
assistência pública em Paris em 1846 e 1847. Segundo ele, trata-se de um
documento que traz, em seu bojo, dados para uma história administrativa. A
Assistência Pública é onde os fenômenos demográficos se tornam mais patentes.
No contexto desses dois anos há uma forte crise em Paris em virtude da falta de
estrutura da cidade e do acelerado crescimento de sua população, em um curto
período de tempo. Isso pode ser observado pela progressiva queda no consumo de
carne da população desde o império.
É também nesse período que se experimenta uma carência de cereais na
França, com uma rápida elevação dos preços dos grãos. O ministro do Interior então
envia uma carta aos prefeitos desejando saber a situação das provisões em cada
uma das cidades. Em Paris, no ano de 1846 a situação é crítica. Teme-se de tal
forma a reação da população frente à alta no preço do pão que se sente a
necessidade de atender imediatamente aos pedidos para acalmar as classes mais
desfavorecidas e provar que a administração municipal estava apta a atender às
suas necessidades.
Quando Aron analisa as contas da Assistência Pública nesse período
observa, porém, que no hospital da Charité (onde o consumo de pão era pequeno, 31 Ibid., p. 160. 32 Ibid., p. 161.
22
se comparado às outras instituições) é de 334 g/indivíduo/dia em 1846 e de 341
g/indivíduo/dia em 1847. Muito embora tenha havido uma diminuição progressiva da
cota de pão por indivíduo em diversas instituições nos anos de 1846-1847, isso não
reflete propriamente a realidade conjuntural daquele momento, revelando apenas
flutuações e não propriamente uma carestia desses produtos no período. Ele tira as
mesmas conclusões para a carne que enquanto a cota da população parisiense era
de 139 g/indivíduo/dia, no hospital do Bon-Secours, que estava na última posição
para o consumo de carne, essa relação era de 247 g/indivíduo/dia em 1846 e de 264
g/indivíduo/dia em 1847. Essa situação se revela ainda mais díspar quando se
observa o hospital da Pieté e o de Saint-Antoine onde, mesmo desconsiderando-se
o peso do osso, as cotas de carne eram duas vezes superiores em relação ao
restante da população.
Outros produtos como o peixe, a ave, a manteiga e os ovos, em
contrapartida, revelam quantidades ínfimas de consumo individual por dia nessas
instituições da assistência pública. Aron então afirma que se pode tirar dessa análise
duas conclusões: a primeira é a de que essas baixas quantidades nos referidos
produtos não parecem condicionadas à crise; e a segunda é que ao mesmo tempo
se observa em Paris um aumento do consumo desses alimentos no mesmo período.
Isso revela, portanto, certa autonomia da Assistência Pública. Sua escolha pelo
documento que traz dados dos anos de 1846-1847 é justificada, pois revela que a
classe dominante do período manteve-se firme no sentido de conservar inalterado o
regime de suas instituições de caridade, mesmo frente à crise.
Em relação ao gosto da população, Aron afirma que o documento da
Assistência revela apenas a imagem que a ideologia burguesa tinha das predileções
dos populares. Para analisar a questão da sensibilidade alimentar, o autor decide
observar o cardápio de um estabelecimento comercial: o Duval-Eiffel do dia 21 de
julho de 1889. Há três aspectos considerados por Aron: a ocasião era da Exposição
Universal de Paris; tratava-se de um domingo, ou seja, dia de festa; e o
estabelecimento pertencia à Sociedade dos Bouillon-Duval, “criada durante o
Segundo Império, para colocar na rua a cozinha sã ao serviço das pequenas
fortunas”33 sendo caracteristicamente um restaurante econômico.
33 Ibid., p. 169.
23
No item “peixes” há sete espécies listadas constituindo uma hierarquia entre
elas. A partir disso o autor se questiona se na França do século XIX o peixe exercia
um papel tão ínfimo na alimentação da sociedade e se o cardápio do Duval-Eiffel
refletia, efetivamente, as preferências do público em geral em relação ao tipo de
pescado consumido. Aron analisa uma série de outros menus de diversos tipos de
restaurantes da época e conclui que o peixe, no século XIX era um alimento
apreciado, porém de menor significância e faz a mesma análise para as entradas do
Duval-Eiffel e de outros restaurantes da época, observando-os sob diversos
aspectos.
Outro texto de relevância para o assunto é A distinção pelo gosto34, de
autoria de Jean-Loius Flandrin, na coleção História da Vida Privada, mais
especificamente em seu terceiro volume, intitulado Da Renascença ao Século das
Luzes. Nele Flandrin busca analisar as transformações do gosto alimentar ao longo
dos séculos XVII e XVIII. Segundo o autor, a ideia de limpeza, presente já na Idade
Media, toma corpo nesse período e então surgem novos utensílios de uso individual,
que “erguem paredes invisíveis entre os comensais”35.
A distinção social à mesa é outro aspecto importante para Flandrin. Segundo
ele já no século XVI nobres romanos não mais admitiam seus criados à mesa. Os
fidalgos ingleses no século XVII também não convidavam vizinhos mais modestos
para grandes festas. Na França, durante a Idade Média, as pessoas mais
importantes comiam em mesas separadas nos grandes banquetes, o que não se
pode precisar em relação às refeições cotidianas. Durante o século XVIII essa
segregação se acentua “ao mesmo tempo que crescem a liberdade dos
comportamentos à mesa e a igualdade dos convivas em sua relação de convívio.” 36
Segundo Flandrin há uma mudança no gosto alimentar que pode ser
observada pelos relatos de viagem e pelos livros de culinária. O uso de especiarias,
considerando antes um fator de distinção e requinte, a partir do século XVII é tido
como fator de crítica. Isso fez com que a quantidade de algumas especiarias fosse
reduzida e outras, ainda, abandonadas. Em relação às carnes, durante a Idade
Média, os assados nobres eram os de carne de caça e aves domésticas. A carne de
34 FANDRIN, J. A distinção pelo gosto. In: História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 35 ________. Op. cit., p. 268. 36 Ibid., p. 273.
24
açougue (essencialmente bovina) era utilizada para caldos e sopas, sendo pouco
diferenciados os cortes. Do século XV ao século XVIII observa-se essa mudança,
segundo Flandrin, pois pode-se observar o emprego crescente dessas carnes em
assados, caldos, sopas e carnes de panela, surgindo referências a cortes cada vez
mais diferenciados. Segundo o autor “a preocupação com a qualidade dos cortes
cada vez mais constitui um traço do comportamento das elites sociais, e agora é o
povo que recorre aos condimentos fortes para poder engolir as peças inferiores que
lhes restam” 37. Daí apreende-se claramente o trânsito desse chamado gosto
alimentar, com setores menos favorecidos da sociedade recorrendo a especiarias,
outrora consideradas apenas como ingredientes de pratos mais nobres.
No Brasil podemos mencionar o primeiro grande estudo sobre a história e
cultura da alimentação na obra de Luis da Camara Cascudo, História da
Alimentação no Brasil38, um grande tratado sobre a formação alimentar brasileira.
Publicada em 1967 a obra é composta por dois volumes. O primeiro traz cardápio
indígena, dieta africana e ementa portuguesa; já o cerne do segundo volume é a
cozinha brasileira como um todo.
O tom da obra de Camara Cascudo pode ser percebido já no primeiro
volume. Ele afirma que a maior necessidade do ser humano é a alimentação. Esta
não pode ser substituída por nenhuma outra atividade que a valha. Por isso o autor
buscou todas as informações que podia, tanto em fontes orais como em fontes
impressas, a fim de reunir em uma única obra aquilo que vira esparso em outras
diversas publicações.
No Paraná os estudos acerca da história e cultura da alimentação, mais
especificamente, são mais recentes. Uma das principais obras é História da
Alimentação no Paraná39, de autoria do historiador Carlos Roberto Antunes dos
Santos, em que o autor leva em conta a formação sócio-cultural do estado e em que
medida ela influenciou a formação de seu sistema agrário e os hábitos alimentares
de seus habitantes.
37 Ibid., p. 277. 38 CASCUDO, L. C.. Historia da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. 39 SANTOS, C. R. A. História da alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995.
25
4. HISTÓRIA E CULTURA DA ALIMENTAÇÃO NO MAR E NO MATO DE
GUARAQUEÇABA
Conforme observado anteriormente, a fundação da colônia de Superagüi se
deu por iniciativa particular do suíço Charles Perret Gentil em 1852. Esta pertencia à
freguesia de Guaraqueçaba e Perret Gentil foi seu diretor desde a fundação até a
sua morte, com data duvidosa, estimada em 1865. Em 1867, quando o presidente
César Burlamaqui faz referência a Guaraqueçaba, afirma que Superagüi dedicava-
se sobretudo ao cultivo do café. A colônia, que não contou com auxílio do governo,
solicitou, diversas vezes, o envio de um professor e a construção de uma igreja.
Willian Michaud foi contratado para tal função, mas sua nomeação não saíra e, em
1882 escreve ao presidente da província afirmando que não poderia mais
permanecer em tal situação, já que não recebia nem dos pais dos alunos nem do
governo. Lopes destaca que em fevereiro de 1899 “Willian Michaud e João Batista
Rovedo eram os únicos sobreviventes dos colonos originais.”40 Michaud vem a
falecer em 7 de setembro de 1902.
Guaraqueçaba; mar e mato é uma obra de autoria de Júlio Alvar e Janine
Alvar. Foi traduzida para o português pela professora Cecília Maria Westphalen,
então diretora do Setor de ciências humanas, letras e artes da Universidade Federal
do Paraná, instituição que publicou a obra no ano de 1979. Júlio Alvar é responsável
também pelos desenhos da capa e pelas fotos que compõem a obra.
Esta fonte constitui um trabalho etnológico, uma vez que busca tratar da vida
dos homens em uma determinada região, muito embora os autores admitam que a
obra trata-se na verdade do reflexo de uma realidade. Segundo a definição dos
próprios autores, a obra buscou abarcar a totalidade de uma comunidade por meio
da observação de sua vida cotidiana:
Guaraqueçaba, mar e mato é a exposição de uma série coordenada de documentos que pretendem fixar a vida complexa, na sua simplicidade, dos núcleos de população desse município do Estado do Paraná, Brasil. É porta aberta para se entrar e aprofundar, em matéria concreta, levando em conta que ela faz parte de um conjunto. Frequentemente, estuda-se a fundo, mas de maneira fracionada, a cultura popular de um grupo, com interesse apenas em um produto ou por uma técnica, esquecendo que obedecem a
40 LOPES, J. C. V. Op. cit., p. 174.
26
exigências materiais, morais, religiosas, políticas ou econômicas integrantes de um todo.41
No texto fica claro ainda o desejo dos autores de que sua obra constitua o
ponto de partida para novas pesquisas e trabalhos “que, em suas especialidades,
possam aprofundar as matérias aqui tratadas e, assim, chegar pela reflexão às
teorias que podem emanar de fatos reais”. 42
É justamente este, portanto, o objetivo último e justificado deste trabalho.
Partindo de uma obra de fôlego como Guaraqueçaba; mar e mato, busca-se inseri-la
no debate acerca da história e cultura da alimentação observando os traços
característicos locais no momento do estudo e produção da obra.
Os autores preocupam-se em descrever alguns aspectos importantes da
região. Em primeiro lugar, o nome Guaraqueçaba é originário do Tupi e significa
lugar de guarás. Há dois animais com este nome, um no mar e outro no mato.
Constituía-se no segundo distrito do município de Paranaguá, sendo desmembrado
em 1880. Foi elevado à Paróquia pela Lei nº 5 de 1º de agosto de 1854, e a
município pela Lei nº 557 de 11 de março de 1880, com sede na Paróquia de Bom
Jesus dos Perdões de Guaraqueçaba. Foi dividida em dois distritos: o de
Guaraqueçaba e o de Ararapira.
Historicamente, esgotada a exploração do ouro na região, Guaraqueçaba
passou a dedicar-se ao comércio de madeira e, posteriormente à agricultura. Os
principais produtos eram gêneros alimentícios como arroz, banana, cana-de-açúcar,
café e mandioca, além do pescado, abundante nas baías.
As observações dos autores, porém, destacam que o arroz, a cana-de-
açúcar, o café, a banana e a mandioca foram reduzidos à produção voltada para a
subsistência. O cultivo do palmito e a exploração do pescado são atividades
regulamentadas. Porém, na prática, pouco resolvem a situação do habitante local
salvo as exceções em que forma uma indústria rudimentar, sua exploração não
serve para outro fim senão a subsistência da família em condições precárias.
A banana, conforme relato de um morador local, foi um produto de suma
importância no passado, já que era o principal gênero de comércio com a Argentina.
41 ALVAR, J; ALVAR, J., Op. cit., p.1. 42 Id. Ibid.
27
Porém no ano de 1918 houve uma geada muito forte que acabou com as plantações
e já em 1930 o comércio da banana com a Argentina havia declinado muito.
O estudo etnográfico sobre Guaraqueçaba iniciou-se em 6 de novembro de
1973 e a escolha da região deu-se pelo fato de ela ter permanecido praticamente
isolada do restante do estado até 1970, quando abriu-se uma estrada ligando
Morretes a Guaraqueçaba que unia-se à BR-277 Paranaguá-Curitiba.
A estada dos pesquisadores na região permite observar de que maneira há
uma permanência nos hábitos alimentares da sua população. Os gêneros
alimentícios são praticamente os mesmos desde a colonização da região, ou seja, o
pescado, a mandioca e outros gêneros de primeira necessidade. De acordo com
Câmara Cascudo
Todos os grupos humanos têm uma fisionomia alimentar. Pode ampliar-se, mas conserva os traços essenciais característicos. A cozinha dos povos colonizadores não erradicou a cozinha dos povos colonizados. Houve, naturalmente, uma interdependência tanto maior quanto o grau de assimilação seja mais alto. [...] A população nascida dessas raízes étnicas possuirá uma cozinha participante de ambas as influências. Será sempre mais local que importada43
Pode-se supor essa permanência justamente pelo fato de a região ter
permanecido isolada do restante do estado até a década de 1970. Esse fator é
observado também por Mercer em seu estudo Notas dialetológicas sobre
Guaraqueçaba44, em que o autor observa o que se conserva recorrente, desde o
período colonial, na linguagem cotidiana da população.
Conforme pudemos observar na obra de Lopes, o Superagüi foi uma colônia
fundada pelo suíço Charles Perret Gentil e foi vítima de uma iniciativa pouco
organizada de incentivo à colonização.
Ao observarem as informações de Ermelino Agostinho de Leão, em 1879 o
Superagüi contava com 150 casas, 10 nacionais e 140 estrangeiras. No ano de 1916
o censo indica apenas 150 habitantes na região, revelando a queda no número de
seus habitantes.
43 CASCUDO, L. C. Op. cit., p. 430. 44 MERCER, J. L. Op. cit.
28
De acordo com Alvar e Alvar a figura de um único homem é emblemática
para o estudo da vila e dos costumes de seus contemporâneos. Os relatos de
Wilhelm Michaud são feitos a partir de aquarelas e das cartas que trocava com suas
irmãs na Europa. Michaud partiu para o Brasil depois que sua mãe morreu e seu pai
contraiu novo matrimônio, em 1849. Chega ao Brasil, mais especificamente ao Rio
de Janeiro, antes de completar 21 anos, no ano de 1850 e instala-se quatro anos
mais tarde na Ponta dos Barbados. O estudo das correspondências de Michaud,
segundo os autores, é importante já que “Por meio de suas cartas conhecemos a
paisagem, a agricultura e os problemas da vida de um colonizador, ou melhor
dizendo, de um domador da natureza e seus elementos”45.
Já nessa época Michaud destaca a produção de café, vinhas, cana-de-
açúcar, banana, laranja e outras frutas. Pode-se apreender, portanto, que a vida de
Guaraqueçaba, desde seu início esteve pautada na produção e no consumo de
gêneros alimentícios, cultivados essencialmente para a subsistência da região.
Michaud revela sua grande preocupação com a educação na região.
Conforme observado no estudo de Lopes, ele era professor na região e exercia essa
função desde o ano de 1883, mesmo com dificuldades financeiras.
No ano de 1889 ele menciona o aumento da população na região e a
escassez de gêneros de primeira necessidade. Falta o dinheiro e os impostos
castigam a população fazendo sua vida extremamente difícil e cara. Michaud
escreve: “não temos como outrora, a abundância de pescados, ostras, caça, etc. Há
muita gente, as terras boas começam a faltar e eu me pergunto o que será do
Superagüi em uma dúzia de anos”46. O reflexo disso pode-se observar na obra de
Ermelino Agostinho de Leão, consultada pelos autores e que mostra a vertiginosa
queda do número de habitantes da região (chegando a apenas 150 em 1916) que,
provavelmente migraram em busca de melhores condições de vida.
Michaud relata o baixo valor dos gêneros alimentícios como arroz, café,
banana e laranja. Ele afirma que valia mais a pena deixa-los apodrecer que vender.
Nessa mesma época foi fechada a agência postal e as correspondências passaram
a ser enviadas apenas a partir de Paranaguá. No ano de 1902 Michaud escreve em
uma de suas cartas que está muito doente, Neste mesmo ano ele morre e seu corpo
é sepultado no cemitério do Superagüi. 45 ALVAR, J; ALVAR, J. Op. cit., p. 25. 46 MICHAUD, W. apud. ALVAR, J; ALVAR, J. Op. cit., p. 26.
29
Quando iniciam sua pesquisa, Alvar e Alvar relatam que o pessimismo
encontrado nos documentos deixados por Michaud era justificado. O cultivo de
terras havia sido abandonado e a população havia migrado para o sul da região com
o objetivo de praticar a pesca do camarão, que caracteriza uma atividade mais
lucrativa.
O transporte do pescado na praia do Superagüi é feito com o auxílio do
carrinho de mão e de algumas bicicletas, não sendo encontrados carros na região.
Eles são levados por dezenas de quilômetros das casas dos pescadores até o local
onde são comercializados.
Ao norte da região a agricultura adquire maior força, assim como na colônia
do Superagüi, em que a distância em relação ao mar aberto é maior. Na ponta dos
Barbados a atividade de maior importância é a agricultura familiar, com ênfase na
subsistência. A laranja e o café, mencionados por Michaud, na década de 1970,
segundo Alvar e Alvar, haviam desaparecido por completo.
De acordo com os autores, a compreensão do que foi deixado por Michaud
em forma de carta é de suma importância porque por este meio “conhecemos a
paisagem, a agricultura e os problemas da vida de um colonizador, ou melhor
dizendo, de um domador da natureza e de seus elementos” 47. Em uma de suas
cartas, escrita em 1884, ele ressalta a exuberância da natureza em Guaraqueçaba e
indica a fartura de alimentos:
As vinhas estão carregadas de frutos que começam a amadurecer, a vindima será em janeiro, temos cana-de-açúcar o ano todo, também as bananas, de abril a setembro são as laranjas e outras frutas; portanto, vês que, neste país privilegiado, as flores e os frutos se sucedem sem interrupção o ano todo48.
4.1. O Mar
Com a observação de algumas cenas cotidianas descritas pelos autores
podemos observar em que medida os alimentos do mar são importantes para a vida
47 ALVAR, J; ALVAR, J. Op. cit., p. 25. 48 Ibid., p. 25.
30
dos habitantes de Guaraqueçaba. O trabalho doméstico, que inclui a limpeza de
peixes é atividade diária dessas pessoas
Na região denominada ponta da Mariana há água potável proveniente de
três poços. Com a desaparição das ostras, a pesca decaiu e os habitantes dedicam-
se, sobretudo ao cultivo da mandioca e da cana-de-açúcar49.
Ararapira também é compreendida no estudo dos pesquisadores. Segundo
um informante da região, o terreno havia sido doado por Rosa de Toledo Piza e
compreendia 200 braças quadradas. No início de sua existência, a Câmara exigiu,
por meio de leis municipais, que os colonos plantassem 50 pés de café e 10 feixes
de ramas de mandioca por ano. Os pesquisadores são acompanhados, durante sua
pesquisa no local, por Joaquim Leandro Coto, o informante, que facilitou o acesso às
informações e garantiu a colaboração dos habitantes com a pesquisa. Nessa noite
jantaram boqueca, um prato típico da região no verão. Segundo sua descrição “é
preparada com ovas de tainha e farinha de arroz, tudo macerado no pilão, envolta
em folha de bananeira, atada e cozida no fogo ou dentro do forno caseiro, ou
simplesmente cozida na água”50.
Os pesquisadores também acompanharam o trabalho dos pescadores de
Ararapira, que fazem armadilhas para que os peixes sejam pegos durante a noite.
As espécies capturadas são baiacus e robalos-peva. Ao chegar a Ararapira de volta,
limpam os peixes e jogam os restos novamente na água.
O peixe, nesse sentido, é o alimento primordial para a sobrevivência dos
moradores. No tocante ao mar o pescado é a principal atividade dos moradores e os
pratos são compostos essencialmente por peixe e farinha.
Na região de Tibicanga, a situação do solo é lamentável e seus recursos
naturais são extremamente limitados, tendo como produtos apenas o arroz e a cana-
de-açúcar. A fábrica de farinha existente desmoronou e não foi mais levantada, já
que não existia mais, no local, produção de mandioca. É uma região extremamente
pobre, onde as pessoas sobrevivem de forma muito rudimentar, apenas com o
básico. As casas, em geral, possuem apenas um cômodo. Sua população, porém,
acolheu os pesquisadores, colocando-se à disposição para contribuir com seu
trabalho.
49 Ibid., p. 27 50 Ibid., p. 28
31
Aquilo de que necessitam é comprado em Guaraqueçaba ou Paranaguá.
Nesta última, conseguem um preço melhor por seu pescado. Os autores relatam a
atitude de um jovem que traz produtos de Paranaguá e os revende aos moradores a
preço de custo, o que o levou a conquistar a antipatia dos comerciantes locais.
A principal atividade na região é a pesca de moluscos “ostras, berbigões,
bacurus e surum”51 que segundo Alvar e Alvar, são abundantes na região. A ostra é
o produto que lhes rendia melhores lucros. Não havia viveiros e a exploração era
feita de forma intensiva. As ostras, segundo eles, chegavam a alcançar 35
centímetros, sendo preparadas ao forno. O quilo delas limpas custava quatro
cruzeiros e a dúzia, com casca, um cruzeiro. A caça com espingardas era limitada, já
que existem poucas espingardas no povoado. O transporte é feito apenas sobre os
ombros ou sobre a cabeça.
O café, oferecido aos pesquisadores pelos moradores, quando terminado o
questionário, foi comprado verde, torrado, depois, socado no pilão, sendo coado em
um coador de manga.
A pesca da manjuba, outra atividade econômica importante para o mar,
também foi observada pelos pesquisadores. Os pescadores saem, com suas redes,
em busca do pescado. Quando os peixes são trazidos à superfície, são cozidos em
água doce e, depois de lavados e esfriados na água do mar, secos ao sol. Ao meio
dia param para comer um pirão e retornam à atividade à uma hora, aproveitando
para pescar enquanto a maré está baixa. A pesca é feita com rede de náilon e o
dono da rede tem direito a um quinto da produção e o restante é vendido a ele por
um cruzeiro e cinquenta centavos o quilo. Porém, a manjuba seca é vendida a
quarenta cruzeiros o quilo, podendo alcançar até o valor de setenta cruzeiros.
A pesca é uma atividade desgastante. Os autores revelam que quando
retornam à Guaraqueçaba, no início da noite, estão queimados de sol e
desidratados. “A manjuba é armazenada em grandes sacos de plástico, até o dia em
que dará sabor às pizzas nos grandes restaurantes e servirá de aperitivo nos salões
mundanos entre copos de whisky que resolvem problemas alheios à sua vida e à
sua morte, alheios também à vida e à morte destes pescadores”52.
A pesca pode ser feita de canoa, com rede, com o uso da tarrafa ou ainda
do covo. Outra forma ainda de pescar é com a fisga e o bicheiro, que consistem em 51 Ibid., p. 28. 52 Ibid., p. 29.
32
lançar a arma sobre o peixe. A isca é composta por um só anzol e o cerco, outra
armadilha para peixes, é como o covo, só que bem maior em tamanho. O espinhel
também é uma forma de pesca de espera, constituído por várias linhas com chumbo
e anzol, com o objetivo de pescar principalmente o bagre.
Outras formas de se pescar com rede são a pesca com de espera, cabo e
arrastão. Esta última é praticada em toda a região do Superagüi, para a pesca do
camarão.
Os autores chamam a atenção para a exploração indiscriminada do camarão
no Superagüi e da ostra em Tibicanga. Eles afirmam que essas atividades
transformaram-se em verdadeiras indústrias, colocando em risco a continuidade
dessas espécies na região.
A canoa é indispensável para o homem no mar e no mato de Guaraqueçaba.
É imprescindível na vida cotidiana para ir de um lugar a outro e também serve como
transporte dos produtos locais como o palmito, a banana, o artesanato. Serve
também para levar o pescado até os pontos de venda, como as peixarias em
Guaraqueçaba ou em Paranaguá.
O peixe, portanto, constitui um alimento básico para a sobrevivência dos
moradores. Ele pode ser consumido fresco, sem um preparo especial, seco ou
defumado, que podem ser guardados para os dias de escassez:
O seco é preparado ao sol; o defumado sobre o jirau, que se encontra em cima do fogão. Tanto o pescado seco como o defumado servem para fazer o pirão, que é o prato de todos os dias.53
Guaraqueçaba foi dividida pelos pesquisadores em três regiões. A seguir, a
descrição dessa divisão: “Guaraqueçaba-Vila, que abarca o centro desde a igreja e
a residência das religiosas missionárias até o porto: umas 20 casas, inclusive a
Prefeitura, a peixaria e a fábrica de palmito; outra, o bairro do Costão; e a terceira, o
do Rocio, dentro do qual consideramos o próprio bairro até o cemitério e as casas
que se encontram ao longo da estrada até a olaria” (29). Nessas três regiões pode-
se destacar o cultivo do palmito e o pescado. Ambos vendidos em Paranaguá. Além
disso, pequenas roças produzem alguns outros gêneros como a cebola.
53 Ibid., p. 104.
33
1.1. O Mato
A experiência com o mato começou no local chamado Ipanema. Destaca-se,
logo de início a produção de mandioca e cana-de-açúcar. De Ipanema, passe-se à
Serra Negra, localidade de colonização alemã, que foi abandonada por seus
habitantes em 1942.
Vale salientar a impressão que os autores têm quando chegam à casa de
um dos habitantes da região, Arcelino de Jesus. Ele era um senhor que morava
entre o rio Pederneira e o rio Formiga. Eles oferecem aos autores café e, para
celebrar a visita, matam uma pequena galinha e sua mulher faz um guisado com
palmito e cebola, acompanhado de polenta. Nesse sentido, pode-se afirmar com
certeza que a refeição não tem um sentido unicamente nutritivo. O que fez uma
família extremamente pobre repartir seu pouco alimento com mais pessoas, foi a
ideia de serem anfitriões e de repartir, com seus convivas, realmente tudo o que
tinham em torno de uma mesa.
O principal instrumento do homem do mato é o seu facão. Ele serve para a
abertura do caminho, o corte do palmito e das bananas, para a construção e para a
limpeza da mandioca. O principal gênero agrícola do mato é a mandioca, que
constitui a base da alimentação. Segundo Alvar e Alvar “Em torno da mandioca,
desenvolveram-se uma cultura e um ritual, que herdaram do ameríndio”54. O
trabalho com ela deve ser constante, uma vez que demora cerca de 24 meses para
poder colher. Após a colheita da mandioca, inicia-se a preparação da farinha em um
trabalho conjunto entre homem e mulher. A mulher irá ralar a mandioca e fazer a
farinha, enquanto o homem constitui o engenho. Após obtida a pasta da mandioca,
enche-se o tipiti que é prensado pelo burro ou pelo fuso. Com isso eliminam-se as
substâncias tóxicas presentes na mandioca, além de desidratá-la. Depois de
prensada é levada ao forno para acabar de secar e tostar a farinha.
Depois da mandioca, seguem-se, a banana, o arroz, o milho, a cana e o
palmito. Este é de grande importância para a economia de Guaraqueçaba. Apesar
de ser nativo da região, sua plantação por grandes proprietários fez com que se
estabelecesse uma hierarquização e privilégios que são respeitados. Ele deve ser
54 Id. Ibid.
34
cortado apenas após cinco anos, quando já produziu sementes e poderá crescer
novamente.
Além dos grandes proprietários, há os palmiteiros individuais que exploram
terras virtualmente divididas, não tendo mais aparato que o facão e o machado. Em
geral caminham cerca de 15 a 20 quilômetros e passam vários dias na mata.
Transportam seu palmito em canoas até à ponte de Serra Negra, onde são
vendidos, por valor duvidoso, ao dono da fábrica, que praticamente monopoliza
todas as atividades na região:
A fábrica de palmito possui terrenos ou os aluga para seu usufruto, trabalhando no corte todas as pessoas que habitam as áreas do seu domínio. Na fábrica, algumas pessoas trabalham de forma esporádica, pois ela funciona apenas nos dias necessários para preparar o palmito que é recolhido cada semana ou cada quinze dias. Outras vezes, sua atividade é suspensa por razões climatológicas, pois na época das chuvas os palmiteiros não podem colher as mesmas quantidades, nem o transporte de palmito é regular. 55
A exploração da banana é diminuta, já que não compensa seu cultivo e
transporte. O milho e o arroz são gêneros essencialmente de subsistência sendo
apenas em alguns lugares plantados para a venda. A cana-de-açúcar é produzida
também para o consumo familiar, tanto para ser mastigada quanto para adoçar o
café.
A criação de gado também é quase insignificante, sendo praticada apenas
por algumas pessoas mais abastadas que tiveram condições de derrubar bosques e
contrataram trabalhadores.
A caça é praticada com arma de fogo, setra (estilingue) e com arco
(bodoque), além das armadilhas. O principal meio de transporte de pessoas e
mercadorias é a canoa, ou é feito a pé. A roda é encontrada apenas em Superagüi,
assim como algumas bicicletas.
O fogo é mantido aceso dia e noite em quase todas as casas de
Guaraqueaçaba. Dá-se importância para a necessidade de conservar o café, que é
consumido o dia todo na região. Eles podem ser constituídos simplesmente de um
caixão com pernas ou serem fixos, construídos com barro ou cimento e tijolos.
55 Ibid., p. 105.
35
Quase todos eles possuem chapas metálicas. A maioria deles não conta com
chaminés.
A vida se fez em torno do fogão, enquanto este se encontrava na terra. Cumpria e ainda hoje cumpre em Guaraqueçaba uma missão múltipla, pois, além do papel social que desempenha, serve para esquentar, cozer os alimentos e amadurecer os frutos. Tudo isto é razão suficiente para mantê-lo aceso56.
O pilão é o principal instrumento doméstico da região. Serve para descascar
e moer grãos até transformá-los em farinha, ou transformar o café em pó. Ele está
presente em todas as casas, salvo raras exceções. Há apenas dois monjolos: um no
rio do Bananal, desativado à época e outro em Batuva, que serve para descascar o
arroz, um dos importantes gêneros da região.
Por fim, pode-se afirmar em relação ao seu mar e ao seu mato:
Guaraqueçaba é isto e muito mais. Todo um mundo que vive e morre, com sua felicidade e suas tristezas. Todo um mundo ignorado que não conta. Doze mil pessoas que não são nada no contexto econômico do Brasil, pois o que interessa são os dois mil metros quadrados de solo e as riquezas que contém; o que interessa é o seu mar e o seu mato57 (43)
56 Ibid., p. 101. 57 Ibid., p. 43.
36
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos destacar, por fim que toda a formação econômica e, segundo a
proposta de Santos, a vida material e a vida econômica do Paraná estão permeadas
pela produção de gêneros alimentícios. O primeiro grande ciclo destacado é o mate,
exportado para regiões onde o consumo da erva é um hábito arraigado da
população. Vale lembrar que o consumo no Paraná também se fez patente.
Em um segundo momento, há outro grande ciclo da economia paranaense,
que é a pecuária. O gado, gênero alimentício de grande necessidade era criado, ou
passava por períodos de invernada no Paraná. Embora, como pudemos destacar, o
gado vacum fosse destinado à exportação, a carne era gênero de primeira
necessidade em outras regiões como Minas Gerais e Cuiabá, importantes destinos
de exportação da carne do Paraná.
De acordo com Cecília Westphalen, há um hábito entre os historiadores em
tratar apenas dos grandes ciclos da economia paranaense, ou seja, mineração,
mate e pecuária. Entretanto, paralelamente a isso, encontramos a produção das
farinhas no litoral do Paraná, que foram de grande valia para outras regiões em
período de escassez e crise. Elas eram a base da alimentação do próprio litoral
paranaense e também foram demandadas por outras regiões, como socorro à falta
de gêneros alimentícios. Pode-se afirmar que farinha de mandioca, até hoje é um
traço evidente na cultura alimentar cabocla do litoral paranaense. Por isso é
importante se estudar em que medida as farinhas de mandioca, suas práticas
alimentares e seus usos culturais, onde são utilizadas, por quem e as razões de sua
forte permanência na cultura alimentar paranaense.
A partir de uma breve análise da conjuntura das vilas litorâneas do Paraná
até o século XIX, podemos concluir que Guaraqueçaba, objeto de estudo deste
trabalho, também se insere nessa lógica litorânea, porém com algumas
particularidades evidentes em virtude de seu relativo isolamento em relação ao
restante da região durante muitos anos.
Sob o aspecto alimentar Guaraqueçaba tem duas áreas bem definidas: o mar
e o mato, que são os locais de onde é tirado o sustento da população. A formação
alimentar no Paraná aconteceu com base no cultivo de gêneros de primeira
37
necessidade. Isso foi corrente, conforme podemos observar nas fontes, tanto no
litoral do Paraná, quanto nos planaltos.
Vale aqui levantar a questão de que ainda há poucos estudos acerca da
formação agrícola no Paraná mesmo tendo sido ela determinante para a constituição
sociocultural do estado. Observando isso sob um ponto de vista mais específico, ou
seja, com base em Guaraqueçaba, mar e mato podemos ver que o cultivo dos
gêneros de primeira necessidade, sua distribuição e consumo fizeram emergir uma
sociedade simples, porém complexa culturalmente.
38
6. FONTE
ALVAR, J.; ALVAR, J. Guaraqueçaba; mar e mato. Trad. WESTPHALEN, Cecília Maria. Curitba: Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes: 1979.
7. REFERÊNCIAS
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