Uma seleção de citações de Johan Huizinga - Projeto...

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Uma seleção de citações de Johan Huizinga ― Consideradas três obras: Nas sombras do amanhã; O outono da Idade Média e Homo Ludens. Seleção e ocasionais comentários por João Borba (em Abril de 2013). Huizinga é famoso sobretudo como historiador (um dos mais importantes e influentes do mundo no que diz respeito a métodos historiográficos e, quanto aos conteúdos, no que diz respeito à passagem da Idade Média para o Renascimento). Apesar disto, as presentes citações foram selecionadas de modo a ressaltar acima de tudo não os resultados de sua pesquisa histórica, mas o ponto de vista, a perspectiva geral (ou abordagem) de que ele parte no conjunto dos seus estudos e posicionamentos. A ideia é refletir o que há de filosófico no conjunto das reflexões desse grande historiador ― cujas aproximações com a filosofia são mesmo notórias. As citações estão distribuídas pelos sumariados abaixo: Sumário Sobre a Europa entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais.............................................................................. 2 Sobre o conceito de Revolução............................................................................................................ 2 Sobre a História da humanidade em geral e sobre os estudos de História..........................................3 Sobre Cultura e Natureza......................................................................................................................9 Sobre o conhecimento e o desenvolvimento humano...................................................................... 13 Sobre o poder da mídia, o controle e a passividade do público........................................................ 16 Sobre ética.......................................................................................................................................... 17 Sobre o poder do Estado.................................................................................................................... 20 Sobre o mito do herói.........................................................................................................................21 Sobre a diferença entre o jogo e a imaturidade, ingenuidade ou comportamento pueril............................................................................................. 23 Sobre o jogo e o autêntico espírito lúdico..........................................................................................25 Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico............................................................ 29 Sobre a linguagem, o simbolismo e o pensamento simbólico (mágico-mitológico)................................................................................... 35 Sobre o misticismo e os limites da linguagem ...................................................................................37 Sobre arte, poesia e literatura em geral............................................................................................. 39 Observação : Esses temas (listados no Sumário) acompanham em alguma medida os temas anunciados pelos próprios títulos dos capítulos dos 3 livros de Huizinga considerados ― Nas sombras do amanhã, O outono da Idade Média e Homo Ludens ―, mas não completamente, visto que a ideia era justamente a de cruzar citações dos três livros organizando-as segundo os temas tratados, para dar uma visão mais global do conjunto dos posicionamentos do autor. Um exame mais cuidadoso, no entanto, deve considerar as mudanças de posicionamento do autor de época para época (e portanto de livro para livro). Por exemplo, em Nas sombras do amanhã ― obra que tem diversas passagens sob marcante influência platônica ― ele demonstra grande pessimismo em relação aos traços de infantilidade que encontra nas culturas humanas; e ali não encontramos ainda muito nítida a imensa valorização do lúdico que vemos mais tarde, em uma obra bastante posterior como Homo Ludens (de 1938). No entanto, O outono da Idade Média, ressaltando a ludicidade nas artes e formas de vida da Baixa Idade Média, e tendo sido escrito em época próxima à de Nas sombras do amanhã, é um livro que já anuncia perceptivelmente essa valorização posterior do lúdico. 1

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Uma seleção de citações de Johan Huizinga― Consideradas três obras: Nas sombras do amanhã; O outono da Idade Média e Homo Ludens.

Seleção e ocasionais comentários por João Borba (em Abril de 2013).

Huizinga é famoso sobretudo como historiador (um dos mais importantes e influentes do mundo no que diz respeito a métodos historiográficos e, quanto aos conteúdos, no que diz respeito à passagem da Idade Média para o Renascimento). Apesar disto, as presentes citações foram selecionadas de modo a ressaltar acima de tudo não os resultados de sua pesquisa histórica, mas o ponto de vista, a perspectiva geral (ou abordagem) de que ele parte no conjunto dos seus estudos e posicionamentos. A ideia é refletir o que há de filosófico no conjunto das reflexões desse grande historiador ― cujas aproximações com a filosofia são mesmo notórias.

As citações estão distribuídas pelos sumariados abaixo:

SumárioSobre a Europa entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais..............................................................................2Sobre o conceito de Revolução............................................................................................................2Sobre a História da humanidade em geral e sobre os estudos de História..........................................3Sobre Cultura e Natureza......................................................................................................................9Sobre o conhecimento e o desenvolvimento humano......................................................................13Sobre o poder da mídia, o controle e a passividade do público........................................................16Sobre ética..........................................................................................................................................17Sobre o poder do Estado....................................................................................................................20Sobre o mito do herói.........................................................................................................................21Sobre a diferença entre o jogo e a imaturidade, ingenuidade ou comportamento pueril.............................................................................................23Sobre o jogo e o autêntico espírito lúdico..........................................................................................25Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico............................................................29Sobre a linguagem, o simbolismo e o pensamento simbólico (mágico-mitológico)...................................................................................35Sobre o misticismo e os limites da linguagem ...................................................................................37Sobre arte, poesia e literatura em geral.............................................................................................39

Observação: Esses temas (listados no Sumário) acompanham em alguma medida os temas anunciados pelos próprios títulos dos capítulos dos 3 livros de Huizinga considerados ― Nas sombras do amanhã, O outono da Idade Média e Homo Ludens ―, mas não completamente, visto que a ideia era justamente a de cruzar citações dos três livros organizando-as segundo os temas tratados, para dar uma visão mais global do conjunto dos posicionamentos do autor. Um exame mais cuidadoso, no entanto, deve considerar as mudanças de posicionamento do autor de época para época (e portanto de livropara livro). Por exemplo, em Nas sombras do amanhã ― obra que tem diversas passagens sob marcante influência platônica ― ele demonstra grande pessimismo em relação aos traços de infantilidade que encontra nas culturas humanas; e ali não encontramos ainda muito nítida a imensa valorização do lúdico que vemos mais tarde, em uma obra bastante posterior como Homo Ludens (de 1938). No entanto, O outono da Idade Média, ressaltando a ludicidade nas artes e formasde vida da Baixa Idade Média, e tendo sido escrito em época próxima à de Nas sombras do amanhã, é um livro que já anuncia perceptivelmente essa valorização posterior do lúdico.

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Sobre a Europa entre a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais

Vivemos num mundo dementado. Disso estamos bem certos. Para ninguém seria surpresa se amanhã aloucura cedesse ao frenesi, e este deixasse a nossa pobre Europa num estado de torpor, de perturbação

mental, com engenhos ainda a rodar, bandeiras tremulando ao vento, mas o espírito morto.

Por toda parte há dúvidas quanto à solidez da nossa estrutura social, vagos receios do futuro iminente,um presságio de que a nossa civilização trilha o caminho da ruína.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 7. Capítulo Ambiente de decadência.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Sobre o conceito de Revolução

Desta velha e sempre renovada representação duma simples revulsão ou reversão da sociedade, nasceuo conceito de Revolução. O termo revolução derivou-se da rotação duma roda. No fundo da imagemestava sempre a Roda da Fortuna. No sentido político o termo fica de início limitado a uma simples e

imediata reviravolta, como por exemplo em 1688. Não é senão depois do grande acontecimento se 1789que o conceito de revolução, no decurso do século XIX, vem a ser imbuído de todo o significado que osocialismo lhe havia de dar. Revolução, como conceito ideal, preserva sempre o conteúdo primário do

pensamento original — aperfeiçoamento súbito e duradouro.

Esta representação, consagrada pelo tempo, duma revulsão da sociedade, abrupta e conscienciosamentedesejada, é das que o espírito do nosso tempo se recusa a aceitar, baseado no moderno e bem fundado

conhecimento, que considera tudo o que se encontra no homem e na natureza como produto denumerosas forças interdependentes, atuando a longo prazo. No processo de forças sociais em ação

recíproca, o espírito vê na ação da vontade humana um simples fator de significação reduzida, sem poresse motivo professar a aderência a um determinismo rígido. Agrupando-se eficientemente e fazendo

uso das suas energias, com o melhor resultado possível, o homem pode tirar vantagem das forçasnaturais e sociais que regem os processos dinâmicos da sociedade. Pode influenciar certas tendências do

processo, mas não alterar-lhe o sentido principal.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 16-17. Capítulo Receios de antes e de agora. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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Sobre a História da humanidade em geral e sobre os estudos de História

Há casos em que toda uma civilização pereceu, e há outros em que marchou triunfante a caminho denovas formas de existência. Podemos, pois, ver o caso histórico como um processo acabado. E, emborauma tal autópsica histórica ao passado não ofereça a promessa de uma cura do presente, nem talvez

mesmo dum prognóstico, nenhum método imaginável, que nos possa levar ao conhecimento profundoda natureza do mal, deverá deixar de ser tentado.

(...)

Poder-se-á perguntar: mas no decorrer desses vinte séculos a civilização não esteve sempre num estadode crise? Não é precária em último grau toda a história da humanidade? Sem dúvida, mas isso é

sabedoria para declamação filosófica, útil na ocasião própria. Vistos pelo prisma histórico, contudo,certos complexos de acontecimentos passados apresentam-se como períodos de intensa transformação

cultural delimitada com maior ou menor clareza. Tais são: a transição da Antiguidade para a IdadeMédia; da Idade Média para os tempos modernos; e do século XVIII para o século XIX.

(...)

Seja o que for que a comparação histórica nos possa fornecer para uma compreensão da presente crise,nenhuma garantia nos pode dar a respeito das suas consequências. A conclusão segura de que, de

qualquer maneira, tudo irá pelo melhor, não é afiançada por qualquer paralelo histórico. Continuamos acorrer para o desconhecido.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 19-20 e 26. Capítulo A crise atual comparada às do passado. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

As categorias ficção e história, no seu significado simples e corrente, já não se distinguem com clareza.

(...) A voga do conceito "mythos" é o exemplo mais flagrante. Aceita-se uma representação em que sãopropositalmente incluídos os elementos "desejo" e "fantasia", mas que apesar disso se diz representar o"passado" e servir de teor de vida, confundindo assim irremediavelmente as esferas do conhecimento e

da vontade.

O pensamento "condicionado pela existência", na sua luta pela expressão, deixa que o fantasioso daalegoria, sem o freio do raciocínio crítico, penetre no argumento lógico. Se a vida não pode se exprimirem termos de lógica, o que todos têm de admitir, então chega a vez ao poeta de fazer a sua apariçãoonde falha a aproximação lógica. Assim tem sido desde que o mundo conheceu a arte da poesia. No

processo do desenvolvimento cultural, porém, pensador e poeta puderam ser bem diferenciados e a cadaum foi concedido o seu domínio próprio. Ultimamente a nova "filosofia da vida" tem revelado certa

tendência para reincidir numa confusão desnorteante de meios de expressão lógicos e poéticos.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 90-91. Capítulo O culto da vida.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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Quando analisamos os últimos dois mil anos e neles distinguimos as unidades históricas chamadascivilizações, os períodos de florescimento parecem ter sido sempre relativamente curtos. Tanto quantoparecem indicar os nossos imperfeitos meios de medida, raras vezes vão além de dois séculos. Para acivilização helênica são os séculos V e IV antes de Cristo; para a civilização romana o primeiro séculoantes e o primeiro depois de Cristo (embora aqui haja motivo para divergência de opiniões); para o

medievalismo ocidental os séculos XII e XIII; para a Renascença e Barroco os séculos XVI e XVII. Por maisvagas e mesmo arbitrárias que tais delimitações tenham de ser, as fases específicas de maior

desenvolvimento não são longas.

(…) contra tudo o que parece pressagiar declínio e ruína, a humanidade contemporânea, à exceção dealguns fatalistas, opõe unânime e firmemente esta enérgica declaração: mas não queremos perecer (…).

Nós não esperamos o fim do mundo [como parece tender a ocorrer em tempos de declínio cultural].

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 198. Capítulo Perspectivas.

O novo brota sempre do velho. Mas os vivos não sabem nem podem saber o que é verdadeiramentenovo e que está destinado a triunfar.

Toda grande ação é seguida duma reação. Se a reação se mostra lenta na sua chegada, tenhamospaciência e aguardemos a história.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 200. Capítulo Perspectivas.

Na resultante de qualquer época há sempre um componente que é depois considerado como novidade, oinesperado., o imprevisível. Esta incógnita pode ser sinônimo de ruína, mas enquanto a perspectiva pode

hesitar entre ruína e salvação, é nosso dever ter esperança.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 200-201. Capítulo Perspectivas.

Toda época anseia por uma vida mais bela. Quanto mais profundos o desespero e a consternação diantede um presente incerto, tanto maior será esse desejo. (…) É bem verdade que cada época deixa mais

rastros de seu sofrimento do que de sua felicidade. Suas desgraças se tornam sua história. Umaconvicção talvez instintiva nos diz que a soma total de paz e de felicidade destinadas às pessoas não

pode variar muito de uma época para outra.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 47.

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O anseio por uma vida mais bela sempre teve três caminhos que apontavam para esse objetivo distantee feliz. O primeiro levava diretamente para fora do mundo: o caminho da renúncia. Aqui parece que avida ideal somente pode ser alcançada do outro lado, mediante a libertação de tudo o que é terreno;

toda a atenção dispensada ao mundo atrasa a prometida bem-aventurança. Todas as grandescivilizações trilharam esse caminho; o cristianismo já inculcara nos homens, de forma muito veemente, o

ideal de renúncia como propósito da vida individual e base da cultura, o que por muito tempo impediuquase completamente o s homens de trilhar o segundo caminho.

Esse segundo caminho era aquele que apontava para a melhora e o aperfeiçoamento do próprio mundo.A Idade Média mal conheceu essa aspiração (…).

Nada contribuiu tanto para essa atmosfera de temor à vida e de dúvida em relação aos tempos futurosquanto a ausência de uma determinação firme de tornar o próprio mundo melhor e mais feliz. Naquele

mundo não havia qualquer promessa de coisas melhores. Quem ansiava por algo melhor, mas nãoconseguia se despedir do mundo e de toda a sua magnificência, só podia cair em desespero (…).

No momento em que se envereda pelo caminho de uma melhora positiva do próprio mundo, tem iníciouma nova era, na qual a coragem e a esperança tomam o lugar do temor à vida. Na verdade, esse

conceito só irá surgir no século XVIII. O Renascimento extraiu a sua noção enérgica de vida de outrasformas de satisfação (...).

O terceiro caminho para um mundo mais belo é o do sonho. É o caminho mais fácil, mas que mantém oobjetivo igualmente distante. Quando a realidade terrena é tão perdidamente trágica e a renúncia aomundo tão difícil, não nos resta nada além de colorir a vida com um brilho claro, vivê-la no país dos

sonhos, temperar a realidade com o êxtase do ideal. Basta um tema simples, um único acorde, para sedeixar levar pela fuga fascinante: um olhar para a felicidade sonhada de um passado mais belo já ésuficiente, um olhar para o heroísmo e sua virtude, ou então para os alegres raios de sol da vida na

natureza (…).

(…) a fuga da dura realidade para um mundo de aparência bela (…) atinge a forma e o conteúdo da vidacomunitária do mesmo modo que as outras duas aspirações, e quanto mais primitiva for a cultura, mais

forte isso se torna.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 54-56.

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OBSERVAÇÂO:

A citação a seguir, da página 56 desta edição brasileira (traduzida por Francis Petra Janssen),lamentavelmente não apresenta todo o conteúdo que aparece em outras edições, deixando passar embranco uma brilhante aplicação do platonismo aos estudos de História por parte de Huizinga,acrescentada e corrigida mais adiante pelo próprio autor com recurso ao marxismo. Essa aproximaçãode Huizinga em relação ao platonismo, na verdade fundada em passagens de Platão interpretadas forade contexto e em sentido discutível, tenderia a me colocar em dúvida quanto ao meu antiplatonismo, senão fosse o fato de que o que vejo aí é realmente uma “reinvenção” seminietzscheana de Platão porparte de Huizinga em um sentido inteiramente novo... e não de fato o Platão original ― Cf. HUIZINGA,Johan: O declínio da Idade Média: um estudo sobre as formas de vida, pensamento e arte em França enos Países Baixos nos séculos XIV e XV, Lisboa: Pelicano/Casa Portuguesa, p. 39, tradução de AugustoAbelaira.

Em meu entendimento, o modo como Huizinga lê Platão uma valorização do lúdico (segundo aedição portuguesa), que transparece nesta e em outras passagens de diferentes obras suas, acabariaconduzindo a uma valorização muito maior do elemento passional na alma humana, e a umaconsiderável relativização da noções platônicas de verdade e supremo bem, o que não me parececondizer com o espírito do platonismo (que rejeito) quando se consideram suas atitudes em relação aos(bons e sempre injustiçados) sofistas ― alguns deles sim, muito mais ajustados ao que Huizingapretende ver em Platão.

A princípio, a falta de quase todo esse parágrafo de Huizinga se deve, provavelmente, não a algumafalha da edição brasileira aqui utilizada, que parece consideravelmente cuidadosa, mas à ediçãoconsultada pelo tradutor, pois como a própria edição nos esclarece, o próprio Huizinga foi fazendoinúmeros acréscimos e correções a cada nova edição do livro. Na tradução brasileira, seja em função decorreções de Huizinga conforme a edição consultada, seja por interferência do tradutor, as referênciasclaríssimas ao platonismo quase desaparecem.

Na verdade as diferenças entre esta tradução brasileira e a portuguesa são consideravelmentegrandes do início ao fim (para não dizer assustadoras, a ponto de as duas serem quase irreconhecíveisuma perante a outra)... a começar pelo título (mais belamente traduzido ao que parece na brasileira,mas de modo talvez incompleto). Há muitas explicações que se perdem na passagem da ediçãoportuguesa para a nossa, embora a nossa seja mais extensa. Seria preciso verificar qual o sentido geraldas diferenças entre uma edição e outra. Isto ficará mais claro quanto cotejarmos parágrafo a parágrafoas duas edições por inteiro para verificarmos as diferenças com mais cuidado. Seguem abaixo, porenquanto, para que o leitor possa compará-las e ter uma ideia do que estou dizendo, as duas traduçõesda referida citação. A edição.

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Na edição brasileira:

Seria o terceiro caminho para um mundo ideal, a fuga da dura realidade para um mundo de aparênciabela, apenas uma questão da cultura literária? Sem dúvida é mais do que isso. Ele atinge a forma e o

conteúdo da vida comunitária do mesmo modo que as duas outras aspirações, e quanto mais primitivafor a cultura, mais forte isso se torna.

O impacto dessas três mentalidades na vida real difere bastante. O contato mais próximo e consistenteentre as atividades da vida e o ideal constitui-se quando a ideia aponta para a melhoria e a perfeição domundo em si [que é a segunda das três mentalidades]. Nessas instâncias a ousadia e a força inspiradoradesaguam no próprio trabalho material, a realidade imediata é carregada de energia; realizar a obra da

sua vida é também um modo de lutar pelo ideal de um mundo melhor. Se quisermos, também aqui osonho de felicidade é o motivo inspirador. Até certo ponto, toda cultura almeja tornar real um mundo

imaginário mediante a recriação das formas sociais. Ao passo que em outras instâncias isso somente serefere a uma recriação espiritual, a proposição de uma perfeição ilusória, oposta à dura realidade quese quer esquecer, aqui o objeto do sonho é a própria realidade. É ela que se quer remodelar, purificar e

melhorar; o mundo parece estar no caminho certo para o ideal, basta o ser humano continuartrabalhando. A forma de vida ideal parece bem pouco distanciada da existência ativa; só existe umaligeira tensão entre realidade e sonho. É consideravelmente pouco o que se exige da arte de viver ali

onde já se cansou de aspirar pela mais alta produção e pela divisão justa dos bens, onde o conteúdo doideal é prosperidade, liberdade e cultura. Não há mais necessidade de acentuar que o ser humano é um

ser nobre (nobleman), ou um herói, ou um sábio, ou um cortesão de boas maneiras.

No caso da primeira das três mentalidades, a influência na vida real é bem diferente: trata-se darenúncia ao mundo. O sentimento de falta da felicidade eterna torna o desenvolvimento e a forma da aexistência terrena indiferentes, ainda que a virtude seja cultivada e mantida. Aceitam-se as formas de

vida e as da sociedade pelo que são, mas tenta-se permeá-las com uma moralidade transcendente. Comisso, a rejeição do mundo pela sociedade terrena não exerce uma ação puramente negativa de

abnegação e renúncia, mas também difunde-se em trabalho piedoso e caridade.

E como é o impacto da terceira mentalidade sobre a vida: a busca por uma vida mais bela segundo umideal sonhado? As formas da vida são recriadas em formas artísticas. Mas não apenas nas obras de arteem si se expressa o sonho de uma vida bela, pois ela quer enobrecer a própria vida com jogos e formas. E

é justamente aqui que se fazem as maiores exigências à arte de viver das pessoas, exigências quesomente podem ser satisfeitas por uma elite, em vida lúdica artificiosa.Nem todos podem viver como

heróis e sábios: é uma diversão cara colorir a vida com uma tintura heroica ou idílica e, além disso, nemsempre dá certo. A ânsia pela concretização do sonho de beleza nas formas da própria sociedade tem

um caráter aristocrático impresso no seu vitium originis.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

Capítulo 2 - O anseio por uma vida mais bela.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 56-57[Nesta edição consta uma bibliografia de Huizinga segundo a qual o livro teria sido publicado

pela primeira vez em 1919. Consta também uma lista de edições estrangeiras do livro, na qualno entanto essa edição original em holandês não está presente, nem a edição portuguesa pela Editora Ulisseia,baseada na edição Penguin Books (também não apresentada), embora conste uma outra edição portuguesa ―

pela Editora Verbo ― traduzida pelo mesmo Augusto Abelaria da versão da Editora Ulisseia.]

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A mesma citação n a edição portuguesa:

Mas seria apenas uma questão de literatura, esse terceiro caminho para a vida sublime, esse vôo daacre realidade para a ilusão? Era de certeza algo mais do que isso. A História presta pouca atenção àinfluência destes sonhos de vida sublime na civilização e nas formas da vida social. O conteúdo desseideal é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário. Toda a inspiração para elevar avida a esse nível, seja apenas na poesia, seja na prática, é uma imitação. A essência da cavalaria é aimitação do ideal do herói, assim como a imitação do antigo sages é a essência do humanismo. Mais

forte e mais duradoura de todas é a ilusão de um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pelaimitação da vida pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar a sociedade civilizada.

Ora, quanto mais primitiva é a sociedade maior necessidade de pôr a vida real de acordo com umpadrão ideal transborda para além da literatura e inunda a esfera do cotidiano. O homem moderno é

um trabalhador. Trabalhar é o seu ideal. O vestuário do homem moderno é, desde o fim do século XVIII,essencialmente uma veste de operário. Desde que o processo político e a perfeição social passaram a serfatores predominantes no consenso geral e se busca o próprio ideal na mais elevada produção e na mais

justa distribuição dos bens, deixa de ser necessário imitar o herói ou o sages. O próprio ideal sedemocratizou. Nos períodos aristocráticos, por outro lado, ser representante da verdadeira cultura

significa, por meio da conduta, dos costumes, das maneiras do vestuário, do porte, dar a ilusão de serheroico, cheio de honra e dignidade, de sabedoria e, em todos os casos, de cortesia. Isto parece ser

possível por meio da referida imitação de um passado ideal. O sonho da passada perfeição enobrece avida e suas formas, enche-as de beleza e atualiza-as como formas de arte. A vida é regulada como um

nobre jogo. Apenas um pequeno grupo aristocrático pode realizar o padrão desse jogo artístico. Imitar oherói e o sages não é tarefa para todos. Sem ócios e riqueza não se consegue dar à vida um colorido

épico ou idílico. A aspiração de realizar um sonho de beleza nas formas da vida social traz como vitiumoriginis a marca da exclusividade aristocrática.

HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida, pensamento

e arte em França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Capítulo 2 - O pessimismo e o ideal de vida sublime.Lisboa: Ulisseia/Penguin Books, sem data, p. 39-40

Tradução de Augusto Abelaria (esta edição, baseada na da Penguin Books, declara que a primeira versão do livro original foi publicada em 1924.)

Para compreender o espírito medieval como uma unidade total, é necessário analisar as formas básicasde seu pensamento não apenas levando em conta as representações da fé e da especulação mais

elevada, mas também a sabedoria de vida do cotidiano e das práticas mundanas. Pois são as mesmasgrandes linhas de pensamento que dominam tanto as expressões mais elevadas quanto as mais comuns.E, enquanto no terreno da fé e da especulação continua sempre em pauta a questão de até que ponto asformas de pensamento são resultado de uma longa tradição escrita, cuja origem remonta até os gregos

e os judeus, ou mesmo até os egípcios e babilônios, vemos essas formas atuando ingênua eespontaneamente na vida comum, sem nenhuma carga de neoplatonismo ou outras correntes similares.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 375.

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Sobre Cultura e Natureza

O que é e em que consiste a cultura? Uma definição exaustiva é praticamente impossível. Tudo quantopodemos fazer é enumerar algumas condições e requisitos essenciais, sem os quais não pode haver

cultura.

Cultura requer, em primeiro lugar, um certo equilíbrio de valores materiais e espirituais. Este equilíbriopermite o desenvolvimento duma certa disposição social que se reputa superior, porque proporcionaoutros valores mais elevados que a mera satisfação das necessidades ou da ambição. Estes valoreshabitam o domínio do espiritual, do intelectual, do moral e do estético. Por sua vez, esses diversos

domínios terão de estar em equilíbrio e harmonia para que a eles se possa aplicar o conceito de cultura.(...) Esse equilíbrio poder-se-á considerar como um funcionar harmonioso e eficaz das várias atividades

culturais dentro do todo. O resultado de tal coordenação das atividades culturais manifesta-se na ordem,na força estrutural e no ritmo vital da sociedade considerada.

(...)

A segunda característica fundamental de cultura é que toda ela deverá conter um elemento de esforçoorientado para certo objetivo e este objetivo é sempre um ideal, não o ideal dum indivíduo, mas o idealde uma sociedade. A natureza desse ideal é muito variável. Pode ser puramente espiritual (...). Pode ser

um ideal social (...). Pode ainda ser econômico ou higiênico (...). Para os esteios da cultura o idealsignifica sempre melhoramento (...).

Quer o objetivo esteja no céu ou na terra, no saber ou na riqueza, a condição essencial para sua busca eobtenção é sempre ordem e segurança. (...) Dessa exigência de ordem provém tudo o que é autoridade;da de segurança tudo o que é direito. No fundo de dezenas de diferentes sistemas jurídicos e de governo

há sempre os agrupamentos sociais, cuja luta pelo aperfeiçoamento dá origem à cultura.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 30-32. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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Se (...) domínio da natureza fosse o único pressuposto de cultura, pouca razão haveria para negar àsformigas, às abelhas, às aves, ou aos castores o direito à sua posse. Todos esses animaizinhos, alterando

partes da natureza, aplicam-nas a uso próprio. Se estas atividades incluem ou não um esforço nosentido de melhorar, isto é uma pergunta cuja resposta fica ao cuidado da psicologia animal. Mas (...)

(...) dizer que cultura é domínio da natureza, no sentido de construir, matar e assar, é deixar a história emmeio. A palavra "natureza", rica em sentido, ainda inclui natureza humana e essa terá de ser também

controlada. (...) É somente na consciência humana que a função de cuidar e providenciar toma o aspectode Dever. (...) Numa fase juvenil da organização social, a obrigação estende-se em convenções, normas

de conduta e de cultos, em forma de tabus.

A consciência de ter certos deveres adquire um valor ético, desde o momento em que não haja absolutanecessidade material de respeitar aquilo que sentimos ser uma obrigação perante um semelhante, umainstituição ou um poder espiritual. (...), sempre que numa comunidade as regras de conduta social são

geralmente observadas, é pela ação dum impulso genuinamente ético.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 30-34. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Cultura, como condição da sociedade, existe quando o domínio sobre a natureza no campo material,moral e espiritual assegura um estado superior e melhor do que aquele que adviria das condiçõesnaturais existentes, estado cujas características se resumem num harmonioso equilíbrio de valores

materiais e espirituais e num ideal mais ou menos homogêneo, para cuja consecução convergem váriasatividades da comunidade.

Se a descrição atrás feita — da qual a avaliação "superior" e "melhor", com o seu matiz subjetivo, nãopode ser eliminada — surge agora a questão de saber se em nossos dias existem as condições essenciais

de cultura.

Cultura pressupões domínio da natureza. Esta condição parece, com efeito, ter atingido um grau derealização mais elevado que o de qualquer outra civilização anterior nossa conhecida. (...)

e o domínio da natureza humana? Não me apontem os triunfos da psiquiatria, da assistência social ouda guerra ao crime. Domínio da natureza humana só poderá significar domínio de todo indivíduo sobre

si mesmo. Conseguiu ele isso?

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 35-36. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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O que muitas vezes parece é que o homem, abusando da liberdade obtida pelo seu controle da naturezafísica, se recusa a dominar-se a si próprio, sempre pronto a repelir todos os valores que o espírito paraele conquistara. Os direitos e as pretensões da natureza humana são invocados em toda parte para seoporem à autoridade de leis ética absolutas. a condição de domínio da natureza fica assim apenas a

meio do caminho.

(...) O desejo de melhorar, impelindo todas as comunidades e todos os indivíduos, vê por centenas deolhos diferentes. Cada grupo persegue a sua própria concepção de bem estar, sem a integrar num ideal

comum, sobreposto aos vários desejos particulares. somente a expressão desse ideal comum, queratingível quer ilusório, poderá justificar plenamente a noção "cultura moderna".

(...)

As manifestações contemporâneas que nos rodeiam parecem excluir toda ideia de um autênticoequilíbrio. Um sistema econômico do mais puro requinte atira diariamente cá para fora com um montãode produtos e põe em movimento forças que ninguém precisa, que para ninguém trazem vantagens, quetoda a gente teme e que muitos escarnecem por inúteis, absurdas e prejudiciais. O café é queimado parase manter o preço; o material de guerra encontrará ávidos compradores, mas ninguém quer que ele sejautilizado. (...) Há também uma superprodução intelectual, um excesso permanente da palavra escrita e"radiodifundida", e uma divergência de pensamento quase irremediável. A arte foi apanhada no círculo

vicioso que agrilhoa o artista à publicidade e por meio desta, à moda, qualquer delas, por sua vez,depende dos interesses comerciais. Ao longo de toda a série, desde a vida do Estado à vida da família,

parece estar em curso um desconjuntamento como o mundo jamais conheceu.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 37-39. Capítulo Condições básicas da cultura. [Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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O incremento da segurança, do conforto e das possibilidades de conquista do necessário, em suma, amaior facilidade de existência, teve duas consequências. Por um lado preparou o terreno a todas asformas de renúncia à vida: negação filosófica do seu valor, "spleen" puramente emotivo e aversão à

própria vida; por outro lado incutiu a crença no direito à felicidade: fez com que os povos exigissem davida um certo número de coisas. Relacionado com este há um outro contraste. A atitude ambivalente,

pairando hesitante entre a renúncia e o gozo da vida, é exclusivamente peculiar ao indivíduo isolado. Aocontrário, a coletividade aceita, sem hesitação e mais convicta do que nunca, a vida terrena como objeto

de todo esforço e toda ação. Não há duvida de que se trata de um autêntico culto à vida.

Surge-nos agora uma pergunta, motivo de séria reflexão: poderá uma cultura adiantada sobreviver semque seja, em certa medida, orientada para a morte? Todas as grandes civilizações do passado o foram.

Há indícios de que o pensamento filosófico de nossos dias segue também essa rota. Parece naturalmentelógico, além do mais, que uma filosofia que dá maior valor à existência que ao conhecimento, deva

incluir na sua visão o fim dessa existência.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 94-95. Capítulo O culto da vida.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Sabemos que o mundo de hoje não pode voltar atrás. Compreendemos isso logo que olhamos para aciência, para a filosofia e para a arte. (…) E o mesmo sucede com a tecnologia e sua gigantesca

aparelhagem, ou com toda a máquina econômica, social e política. (…)

E todavia, esta perspectiva duma civilização à mercê do seu próprio dinamismo intrínseco, dum domíniosempre crescente da natureza (…), assemelha-se mais a um pesadelo.

(…)

Barbarização pode definir-se como sendo um processo cultural pelo qual uma condição de alto valor, jáobtida, vai sendo espezinhada e substituída por elementos de qualidade inferior. É matéria de

controvérsia saber se esses elementos opostos, superior e inferior, correspondem à antítese elite-massa.Em qualquer dos casos a aceitação desta polaridade exige que os termos elite e massa sejam despidosda sua significação social e considerados simplesmente como tipos de intelecto ou atitudes espirituais.

Foi neste sentido, recentemente, que Ortega y Gasset usou os termos na sua Revolta das massas.

O nosso conhecimento duma completa barbarização no passado limita-se apenas a um exemplo: adecadência da civilização antiga no império romano [isto é, o mergulho na Idade Média]. Todavia (...), a

comparação com o presente é dificultada por uma grande diferença de circunstâncias.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 191. Capítulo Perspectivas.

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Sobre o conhecimento e o desenvolvimento humano

A falácia do silogismo: "Conhecimento de si mesmo é sabedoria — o mundo conhece-se melhor quenunca — ergo o mundo tornou-se mais sábio", tem origem na ambiguidade dos termos. O "mundo", emabstrato, nem tem conhecimento nem poder de ação; manifesta-se unicamente através do pensamento

e da ação dos indivíduos. Além disso, o termo "conhecimento" pode ser tudo menos permutável comsabedoria, ponto este que mal requer elaboração.

(...) mesmo onde há um desejo genuíno de conhecimento e de beleza, a intrusão ruidosa da modernaengrenagem cultural torna muito difícil a esse homem médio a fuga ao perigo de lhe serem impostas as

suas noções e valores. Um conhecimento tão variado como superficial, e um horizonte intelectualdemasiado extenso para uma vista desprovida de bagagem crítica, têm de conduzir a um

enfraquecimento da capacidade de julgar.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 57 e 59-60. Capítulo Enfraquecimento da capacidade de julgar.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

As teorias racistas deram-nos um exemplo da pseudociência usurpando o lugar da verdadeira ciênciapara servir a Força. Na verdadeira ciência, naquela que se dirige à descoberta e construção de meios do

poder, a Força encontra um instrumento ainda mais forte para a prossecução dos seus fins. "Saber époder", outrora o pregão triunfante da era Vitoriana, começou agora a ter um timbre sinistro aos nossos

ouvidos.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 77. Capítulo A ciência erroneasmente aplicada.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Aqui temos o fulcro da atual crise da civilização: o conflito entre conhecer e ser, entre a inteligência e aexistência. Mas isto nada tem de novo. (...) Na primeira metade do séc. XIX, esta verdade antiga, já

conhecida de um Nicolau de Cusa, é novamente tomada por Kierkegaard, cuja filosofia tem o seu centrona antítese do "existir" e do "pensar" e dela se aproveitou para assentar a sua fé em alicerces mais

firmes ainda. Só muito mais tarde é que outros pensadores forçaram este pensamento a seguir caminhosalheios a Deus para o deixarem cair no nihilismo e no desespero, ou na adoração da vida terrena.

Nietzsche, sinceramente convencido do trágico exílio do homem dos domínios da verdade, e dando àânsia de vida a interpretação de ânsia de poder, repudiou o princípio intelectual com todo o vigor poético

do seu gênio. O pragmatismo privou o conceito de "verdade" do seu direito à validade absoluta,submetendo-o às variações do tempo. (...) Um conceito de verdade reduzido apenas ao valor relativoarrastaria inevitavelmente na sua esteira uma espécie de igualitarismo ideológico, uma abolição de

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todas as diferenças de categoria e valor de ideias. Sociólogos como Max Weber, Max Scheler, KarlManheim e Oswald Spengler introduziram ultimamente a expressão Seinsverbundenheit des Denkens

que pode ser, muito imperfeitamente, vertida por "subordinação do pensamento ao ambiente e à vida".O próprio conceito aproxima-se do materialismo histórico, ex-professo anti-intelectual. Assim, se

fundiram as tendências de toda uma época que, para evitar o vago termo "anti-intelectual" ousamoschamar de anti-noética, numa corrente poderosa que em breve havia de ameaçar o que há mjuito sejulgava ser barreiras intransponíveis da cultura intelectual. Georges Sorel, em suas Réflexions sur laViolence, formulou as consequências práticas e políticas de tudo isto, tornando-se por esse fato o pai

espiritual de todas as ditaduras contemporâneas.

(...)

(...) Um anti-intelectualismo sistemático, prático e filosófico, tal como aquele que estamos a assistir,afigura-se-nos algo verdadeiramente novo na história da cultura humana.

(...)

Quando as antigas correntes do pensamento recsavam a vassalagem à Razão, era sempre em favor dosupra-racional. O que se alardeia como sendo a cultura de hoje, não só nega a Razão, mas ainda o

próprio cognoscível, e isto em favor do infra-racional, das paixões e dos instintos.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 83-87. Capítulo O repúdio do princípio intelectual.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Uma filosofia que de início declara as suas verdades básicas condicionadas por uma certa forma de vidaa que serve, é realmente supérflua para os defensores dessa forma e inútil para o resto do mundo. Serve

apenas para racionalizar e apoiar a ordem existente.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 95. Capítulo O culto da vida.

[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerrae pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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Um perigo ficará sempre inalienavelmente ligado à doutrina anti-noética da vida. A primazia dada aoviver em detrimento do compreender arrasta necessariamente, com o abandono dos critérios de

compreensão, o abandono das normas morais. Se a autoridade prega violência, terão a palavra osviolentos. em princípio é negar-se a si próprio o direito de os dominar. E neste princípio eles hão de ver a

justificação dos seus instintos animais ou patológicos. Talvez uma autoridade militar, rigidamentedisciplinada, possa mantê-los dentro de certos limites. Contudo, no fanatismo dum movimento popular,

se tornarão os pagens do assassínio.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 148-149. Capítulo Heroísmo.

[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra, e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933

— no caso desta citação especificamente, há uma provável referência à juventude nazista, que já existia desde 1922. Esses jovens a certa altura adquiriram o costume de sair às ruas na Alemanha com seus

uniformes cometendo atos de agressão e vandalismo, movidos por ódio racial e considerando esses atos"heroicos", como uma atitude de luta contra o que achavam "errado"

( e o que achavam "errado" era que houvesse aceitação e reconhecimento de quem consideravam "diferente" e "inferior" como tendo os mesmos direitos que eles).]

Uma superstição que passa por ser científica dá origem a uma confusão de ideias muito maior do queaquela que se contenta com as simples práticas populares. (…)

A forma mais espalhada e mais perniciosa da moderna superstição não reside numa pronta aceitação deafinidades misteriosas, nem num apela à pseudociência, mas sim dentro da esfera puramente racional e

da confiança na verdadeira ciência e na verdadeira tecnologia.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 164-165. Capítulo Superstição.

(…) uma fé em meios e métodos, cuja ineficácia é clara como o dia e está fora de toda a dúvida, nãomerece outro nome que não seja superstição. Um mundo que vive em tais crenças é um mundo estúpido.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 168-169. Capítulo Superstição.

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Sobre o poder da mídia, o controle e a passividade do público

Em formas de sociedade mais antigas e mais restritas era o homem quem proporcionava a si mesmo osentretenimentos. O povo cantava, dançava e divertia-se. Na civilização de hoje, tudo isto desapareceu

em grande parte, para se assistir às canções, danças e divertimentos dos outros. Sem dúvida que semprehouve atores e espectadores, mas o que é significativo, é que atualmente o elemento ativo cede

constantemente terreno ao elemento passivo. Até mesmo no domínio dos esportes, essaimportantíssima parte da moderna cultura, há uma tendência crescente entre as massas para terem osoutros a jogar por elas. Esse afastamento da participação ativa nas ocupações culturais veio a ser ainda

mais completo com o aparecimento do cinema e do rádio. A passagem do teatro para o cinema é apassagem da peça para o reflexo da peça. A palavra e o gesto passam de ação viva a simples

reprodução. A voz transmitida através do éter não é mais que um eco.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 60-61. Capítulo Enfraquecimento da capacidade de julgar.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Com a crescente falta de mérito da palavra falada ou escrita, motivada pelo progresso da civilização aodar-lhe tão vastas possibilidades de expansão, aumenta proporcionalmente a indiferença pela verdade.

A margem de erro vai se alargando firmemente em todos os campos à medida que a atitudeirracionalista se expande. (…) Tal como os vapores da fumarada e da gasolina sobre as cidades, assim

paira sobre o mundo uma névoa de palavras ocas.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 187-188. Capítulo A arte e a literatura.

Um exemplo duma grande realização técnica é a telegrafia sem fios. Apesar disso, com todas assuas utilíssimas e benéficas possibilidades, ameaça indiretamente prejudicar a cultura. Ninguém

duvidará por um momento do extraordinário valor deste novo instrumento de comunicação. Os S.O.S., amúsica e as notícias para pessoas isoladas nos mais remotos lugares, são apenas alguns dos seus

múltiplos dons. E todavia, como órgão de informação, o rádio, na sua função de todos os dias, traduz emmuitos aspectos um regresso a uma forma menos eficaz de transmissão do pensamento. Não nos

estamos a referir aos conhecidos males da prática popular: escutar sem atenção, passar rapidamente deuma a outra estação, apanhando assim uma mistura incoerente de sons e pensamentos etc.

Além de todos estes defeitos, que não são inevitáveis, o rádio constitui uma forma de assimilação doconhecimento mais vagarosa e mais restrita (…). Ler é a função cultural mais eficaz. Pela leitura, o

espírito absorve muito mais rapidamente; está continuamente selecionar, fortificar-se a si próprio, salta,

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detém-se a pensar; exerce mil atividades mentais interditas àquele que só escuta. Num artigo intituladoThe decline of the Writen World, um defensor do filme e do rádio a serviço do ensino profetizava,

satisfeito e seguro, um futuro próximo em que a criança seria educada por imagens e palestras. Se talprofecia se viesse a realizar, teríamos dado um enorme passo para o barbarismo. Dificilmente se poderiater imaginado melhor método de ensinar a juventude a não refletir, de a manter no puerilismo e muito

provavelmente de a aborrecer ao máximo.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 192-193. Capítulo Perspectivas.

Sobre ética

Viver é lutar. É uma verdade já velha (...) — luta, isto é, vontade e energia em ação para superar osobstáculos que se opõem à consecução de um certo objetivo. Quase toda ação da alma humana é

expressa em termos de combate. Uma das características mais essenciais do organismo vivo é que esteestá mais ou menos apetrechado para uma atitude de combate. A identificação "vida e luta" quadra

bem, tanto no sentido puramente biológico, como no espiritual. Há de haver poucas verdades que umaescola de pensamento, na sua tarefa de tudo subjugar às exigências da vida, queira pregar com mais

ardor. Mas qual será o significado que ela atribui a isso?

(...) Uma coisa, porém, é certa: no que geralmente se pensa a propósito dos deveres sociais, a noção dobem e do mal absolutos desempenha um papel relativamente insignificante. Para muita gente a ideia de

luta pela vida foi transferida do campo da consciência individual para o da vida pública coletiva. Nessatransferência a ideia perdeu muito do seu conteúdo ético.

A luta pela vida, aceita como um destino e um dever, é concebida quase exclusivamente como luta dumacerta comunidade por uma certa prosperidade geral, isto é, como uma tarefa cultural. É uma luta contra

certos males públicos.

(...) As resistências com que a coletividade se julga ameaçada são geralmente exercidas por outrosgrupos humanos. A luta pela vida, tomada como um dever público, torna-se então uma luta de homens

contra homens. Estes outros, contra os quais se dirige a luta, já não aparecem teoricamente sob a formade "perversos". Na luta pelo poder ou pelas riquezas, são simplesmente rivais, tiranos políticos ou

econômicos.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 99-100. Capítulo O culto da vida.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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A tendência para exaltar o ser e o viver, dando-lhe a primazia sobre o compreender e o avaliar (...) queencarniçadamente se nega a ser guiada pelo intelecto, não pode encontrar direção em qualquer espéciede ética conscienciosa dos seus alicerce no "conhecimento. Mas que fica então para guiar e dirigir, se jánão se procura a diretriz numa crença metafísica visando uma felicidade incorpórea e extramundana,

nem no pensamento ansioso de verdade, nem numa ordem moral ampla e geralmente reconhecida, quecontenha valores, tais como justiça e caridade? Como sempre, a resposta terá de ser: Só a própria vida

cega e impenetrável.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhãdiagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 120. Capítulo Declínio das normas morais.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

O mundo atual já avançou bastante no caminho que conduz à renúncia absoluta das normas éticas.Dificilmente consegue já distinguir o bem do mal. Tem a tendência para considerar toda a crise da

civilização contemporânea como uma simples luta entre forças opostas, um duelo entre adversários quedisputam a supremacia. E todavia, a única esperança está na recognição de que nesta luta as ações

humanas devem ser governadas pelo princípio absoluto do bem e do mal.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 209. Capítulo Katharsis.

Katharsis, assim chamavam os gregos ao estado de espírito produzido pelo espetáculo duma tragédia;uma espécie de silêncio do coração em que a piedade e o medo se fundiram, uma purificação da alma

nascida da compreensão dum significado mais profundo das coisas; um estado que dispõe aocumprimento sério do dever e à aceitação do destino; que rompe o hybris tal como se faz na tragédia;

que nos liberta das paixões violentas da vida e nos dá a paz à alma.

Para conseguir a purificação necessária à hora presente, impõe-se uma nova askesis. Aqueles que sedispõem a criar essa cultura purificada terão que se assemelhar aos que despertam ao romper da

aurora. Terão de afugentar os maus sonhos da noite ― sonhos de almas saídas do lodo e que para láquerem voltar; sonhos dum cérebro cujas circunvoluções são fios de aço: sonhos de corações frágeiscomo o vidro; sonhos de mãos transformadas em garras e de dentes feito lâminas. Deverão recordar,

enfim, que o homem pode querer não ser um animal.

Esta nova askesis não será uma renúncia ao mundo para conquistar o céu; será o domínio próprio e umajusta apreciação da força e do prazer. A exaltação da vida terá de baixar um pouco o seu tom. Serápreciso recordar o que já Platão dissera das ocupações do sábio: que eram uma preparação para a

morte. Só uma orientação firme da vida para a morte pode enobrecer o uso das próprias forças vitais.

A nova askesis deverá comportar uma rendição, rendição a tudo quanto se possa conceber como ideal.[E] nem um povo, nem uma classe, nem a existência individual própria poderão ser objeto deste

pensamento.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 212. Capítulo Katharsis.

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Donde quer que surja o botão, ainda o mais frágil, do verdadeiro internacionalismo (melhor diríamosinternacionalidade), cuidai dele, regai-o com a água criadora da consciência nacional, contanto que ela

seja pura. Assim há de florir com mais vigor. O sentido internacional ― esta palavra já implica apreservação das nacionalidades, mas só daquelas que se compreendem e resolvem pacificamente osconflitos ― pode tornar-se modelo da nova ética da qual deverá desaparecer a oposição coletivismo-

individualismo. Será sonho pensar que um dia o mundo possa conhecer tal situação? Mesmo que fosse,nunca deveríamos abandonar esse ideal.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 213-214. Capítulo Katharsis.

[Na Baixa Idade Média] Em todas as coisas procurava-se pela “moralidade”, como dizia o homemmedieval, ou seja, a lição que dali se extraía, o significado moral mais essencial, Cada caso histórico ouliterário tende a se cristalizar numa parábola, , num exemplo moral, numa evidência: cada declaração,

numa sentença, num texto, num dito.

(…)

Um povo com tantos provérbios em uso deixa a discussão, a motivação e a argumentação por conta dosteólogos e dos filósofos; o provérbio encerra cada caso referindo-se a um juízo, que acerta bem no alvo.

Ele se abstém de muita conversa disparatada e preserva-se da falta de clareza. O provérbio sempredesata os nós; uma vez aplicado o provérbio, a questão está encerrada. A habilidade de cristalizar

pensamentos apresenta vantagens significantes para a cultura.

(…)

Outra forma de cristalização do pensamento semelhante ao provérbio é o lema, cultivado com umapredileção especial no período medieval tardio. Os lemas não tratam de uma sabedoria aplicada em

geral, como o provérbio, mas de um encorajamento pessoal ou uma lição de vida, elevado a umainsígnia pelo portador, que o imprime com letras douradas à própria vida (...).

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 377, 382 e 386.

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Sobre o poder do Estado

[Atualmente] a adoração do sucesso que (…) exerce uma influência atenuante na apreciação do mauprocedimento econômico, é capaz de eliminar praticamente do juízo político toda e qualquer indignação

moral. E essa adoração vai a tais extremos, que muitos parecem estar prontos a ajuizar de umaorganização política, cujas doutrinas fundamentais detestam, pelo grau de sucesso com que ela leva a

termo o seu objetivo prefixo. Incapaz de ajuizar a natureza desse objetivo, dos meios com que ele éperseguido, e [incapaz de fazê-lo] até o ponto em que ele na realidade é executado, o espectador

contenta-se com os sinais exteriores de realização, os únicos que o leitor do jornal ou o turista podeobservar. Deste modo, um sistema político que primeiro o cumulou de desgostos e a seguir de medo e de

pavor, poderá ainda, pouco a pouco, obter seu bom acolhimento e até mesmo a sua admiração.Injustiça, crueldade, coerção da consciência, opressão, falsidade, perfídia, dolo, violação de direito? —

Mas veja como eles embelezaram as cidades e que maravilhosas estradas construíram!

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 122. Capítulo Declínio das normas morais.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

"O Estado não pode causar danos". São as palavras duma teoria política desfrutando presentemente deuma popularidade que se estende para muito além da esfera do Moderno Despotismo. Segundo esta

opinião, o Estado não se pode considerar obrigado às normas morais da sociedade humana. Qualquertentativa para o submeter ao veredito do juízo ético terá de se inutilizar de encontro à independência

absoluta do político como tal. O Estado está fora de toda a ética. Poder-se-ia perguntar: e tambémacima de toda a ética? Talvez que o teórico do Estado amoral evite afirmá-lo. Recorrerá à construção quejá vimos anteriormente, a construção do político como categoria absoluta, governada unicamente pela

oposição amigo-inimigo, quer dizer, por uma oposição que apenas expressa perigo e obstrução, e oesforço para os eliminar. Com efeito, (...) nesta oposição "amigo" significa nada mais que "não perigoso".

Portanto, o Estado tem que ser julgado somente pelas suas realizações no exercício do Poder.

Embora essa interpretação em si seja nova, a teoria do Estado amoral pode ser tudo menos nova. Maisou menos justificadamente, pode dizer-se que deriva de pensadores como Maquiavel, Hobbes, Fichte e

Hegel. Na própria história a teoria encontra, aparentemente, valioso apoio. é que, em verdade, a históriapouco mais patenteia que a avidez, ambição de poder, interesse pessoal e temor, como motivos

dirigentes das ações recíprocas, concordantes ou opostas, dos Estados entre si. A época do absolutismosistematizado reunia todos esses motivos sob a designação de "raison d'état".

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 125-126. Capítulo Regna regni lupi?[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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Para o Estado não pode haver delitos políticos nem crimes que ele possa [ser acusado de] cometer. Emteoria isto também deve se aplicar ao Estado inimigo. Este também deve estar imune à condenação e ao

juízo moral. Mas aqui revela-se imediatamente a lastimosa debilidade destas ideias sobre o Estado,plenas como estão dos odores corruptos da avidez e da loucura humanas. Na prática, esta pomposa

teoria do Estado fora de toda moralidade é válida unicamente para o próprio Estado. É que, quando ahostilidade atinge o ponto crítico, a voz serena e sublime do argumento transforma-se em guincho

histérico, buscando avidamente a insinuação e a difamação do inimigo no velho arsenal da virtude e dopecado (...) Mas então o inimigo não é também um Estado?

(...) Regna regnis lupi, o Estado lobo do Estado. Não é uma lamentação pessimista semelhante ao velhohomo homini lupus, mas um dogma e um ideal político. Ora, infelizmente para esta teoria, todacomunidade, até mesmo a dos animais, se baseia na confiança mútua de seres que se podiam

exterminar uns aos outros.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 132-133. Capítulo Regna regni lupi?[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Sobre o mito do herói

A humanidade sempre precisou da visão de uma faculdade mais elevada no homem, de força e coragemhumanas em alto grau, para apoio e alívio na dura luta pela vida e como interpretação de grandeza da

ação. O pensamento mitológico colocou a realização destas visões na esfera do super-humano. Osheróis eram semi-deuses (...), o termo foi também aplicado a seres humanos vulgares; tais como os quetivessem tombado pela pátria e os tiranicidas. Mas eram sempre os mortos. (...) Só muito mais tarde é

que ele começa a ser usado em referência aos vivos, e mesmo então só no sentido retórico.

(...)

Durante todo o século XIX, a representação do heroico foi, em reduzida escala, um modelo e um ideal aseguir.

(...)

Há algo de trágico no fato de a degeneração do ideal heroico ter a sua origem na popularidadesuperficial que a filosofia de Nietzsche conseguiu nos anos noventa [a partir de 1890]. A concepção do

poeta-filósofo, nascida no desespero, foi acolhida pelo grande público antes de ter passado pelas provasdo pensamento puro. O vulgo dos anos noventa falava do "super-homem" como se se tratasse de um

irmão gigante. Essa vulgarização prematura do ideal de Nietzsche foi, sem dúvida, o começo datendência do pensamento, que em nossos dias fez do heroísmo o seu mote e o seu programa.

No processo de popularização o ideal do heroico sofreu assim uma pasmosa alteração que o priva detodo o seu significado mais profundo. O título honorífico de "herói", embora por vezes retoricamenteaplicado aos vivos, ficara sempre reservado aos mortos, precisamente como o atributo "santo". era o

prêmio de gratidão que os vivos concediam aos mortos. Ninguém se orgulhava de ser um herói, mas simde cumprir o seu dever.

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Depois do aparecimento das várias formas de despotismo popular (...) Heroísmo é uma doutrina política,é mesmo representado como uma nova ética destronando a velha, que muitos julgam já desnecessária e

inútil. Seria tolice desprezar o valor deste sentimento. A sua veracidade e a sua significação devem serpostas a prova.

O entusiasmo pelo heroico é a prova mais significativa da grande revulsão do saber e compreender parao imediato praticar e viver, fato que constitui por assim dizer o foco da crise cultural. Glorificação da

ação por si mesma, narcotização da faculdade crítica pelo sobre-estímulo da vontade, obscurecimentoda ideia pela beleza da ilusão, são tudo qualificações que, para o crente na atitude anti-noética perante

a vida, correspondem a tantas outras justificações do heroísmo.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 140 e 144-146. Capítulo Heroísmo.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

Por heroísmo entende-se sair fora dos limites habituais. Neste mundo é por vezes necessário que ascoisas saiam fora dos limites. Mais uma vez se chega ao ponto do pensamento em que o juízo tem de

ficar inconcludente. Ninguém pode desejar que o mundo continue, em todos os seus aspectos, a seguir aconfusa viela para onde o impeliram leis imperfeitas e uma conduta ainda mais imperfeita.

(...) A nossa época precisa deste tônico porque está fraca. a exaltação do heroico é em si um fenômenode crise. Demonstra que as ideias de serviço, tarefa e cumprimento do dever, já não exercem no grandepúblico a necessária força propulsora. Têm de ser ampliadas como que por um alto-falante. Têm de ser

atiçadas como um fogo que se extingue.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 147. Capítulo Heroísmo.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

O atual heroísmo de camiseta e braço levantado muitas vezes na prática pouco mais significa que umatosca reafirmação do conscienciosismo do "nós". Uma determinada entidade, "nós e os nossos" com o

nome de "partido", tem o monopólio do heroísmo e reparte-o entre seus servos. Tais asserções doconscienciosismo do "nós", sociologicamente são da mais alta importância. Encontram-se me todos os

períodos e em todas as raças sob a forma de ritos, danças, gritos, emblemas etc. Se a nossa épocaperdeu realmente o desejo de compreender e determinar racionalmente o seu procedimento, seria muito

natural que ela voltasse aos primitivos métodos de instilar o sentido da unidade e da força.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 148. Capítulo Heroísmo.[Obra publicada originalmente em 1935, entre a 1ª e a 2ª grande guerra

e pouco depois de o partido nazista subir ao poder na Alemanha, em 1933]

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A barbarização tem início quando, numa velha cultura que outrora, no decurso de muitos séculos, seguindara à pureza e clareza do pensamento e da compreensão, os vapores do mágico e do fantástico se

erguem novamente do fermento fervente das paixões para irem nublar a compreensão; quando omythos suplanta o logos.

A todo instante se vê como o novo credo da heroica vontade de poder, com a sua exaltação da vida edetrimento da compreensão, é a expressão exata das tendências que fascinam e arrastam ao

barbarismo (…). Na verdade a “filosofia da vida” faz exatamente isso: põe o mythos acima do logos (...)

As divindades atuais, mecanização e organização, foram portadoras da vida e da morte. Cobriram todo omundo de fios condutores, estabeleceram o contato mundial, por toda parte tornaram possível a

cooperação, a concentração de forças e compreensão mútua. Simultaneamente, armaram a cilada aoespírito, puseram-no a ferros e sufocaram-no.Conduziram o homem do individualismo ao coletivismo;

mas sem guia para seu discernimento, o homem apenas conseguiu compreender o mal inerente a todocoletivismo, a negação dos mais profundos valores pessoais e a escravidão do espírito. Teremos umfuturo de mecanização da sociedade sempre crescente, e somente governado pelas exigências da

utilidade e do poder?

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 194-195. Capítulo Perspectivas.

Sobre a diferença entre o jogo e a imaturidade, ingenuidade ou comportamento pueril

Puerilismo chamaremos nós à atitude duma comunidade cujo comportamento é mais imaturo do que oestado das suas faculdades críticas e intelectuais poderiam deixar supor. Que, em vez de fazer do jovem

um homem, adapta a sua própria conduta à do adolescente. O termo nada tem que ver com infantilismoem psicanálise. Baseia-se unicamente na observação de fatos culturais e sociológicos evidentes.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 151. Capítulo Puerilismo.

Façamos apenas uma leve alusão àquele espírito de marcha e parada militar que inundou o mundo. Asmultidões formam uma massa compacta, não há praça suficientemente espaçosa que as possa conter,

uma nação inteira fica a pé firme, rígida e atenta como milhares de soldadinhos de chumbo. Até oespectador estrangeiro é incapaz de se furtar à fascinação deste espetáculo. Isto dá a impressão de

grandeza, de poder. É puerilidade. Forma vazia que dá ilusão de um desígnio sério e meritório. Os queainda são capazes de refletir sabem que nada disto tem valor. Simplesmente revela quão intimamente se

relaciona o heroísmo popular com um certo puerilismo geral.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 153. Capítulo Puerilismo.

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O moderno puerilismo manifesta-se de duas maneiras. Por um lado, atividades de naturezaconfessadamente séria e universalmente tidas por sérias (...) são penetradas pelo espírito do

divertimento e chegam a comportar todas as características destes; por outro lado, atividades aceitescomo tendo um caráter de jogo perdem a verdadeira qualidade de divertimento pela maneira como são

executadas.(...)

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 154. Capítulo Puerilismo.

Se temos de admitir que na verdade a sociedade moderna manifesta um acentuado grau de puerilismo,surge a questão de saber se ela partilha desta característica com os períodos civilizados anteriores, e se

assim é, se uma comparação com estes lhe é desfavorável neste aspecto. Poder-se-ia facilmentedemonstrar que outrora a sociedade se conduziu muitas vezes duma maneira que só poderia ser

qualificada de infantil. Parece haver, contudo, uma diferença entre as infantilidades do passado e apuerilidade do presente.

Nas fases mais primitivas da civilização, grande parte da vida social é levada em forma de jogo, isto é,dentro duma esfera mental artificial governada pelas suas próprias regras e abrangendo

temporariamente toda conduta num sistema de ação voluntariamente aceito. Um procedimentoconvencional toma o lugar da perseguição direta da utilidade ou do prazer. Se o jogo é religioso esta

atividade torna-se um culto ou um rito. Mesmo que os ritos ou as competições envolvam derramamentode sangue a ação continua a ser um jogo. Tal espécie de jogo exige uma limitação local, a criação dumcampo vedado ao mundo exterior. A vida corrente é excluída do recinto enquanto dura o jogo. O antigo

temenos grego, as liças do torneio, o palco dum teatro, o "ring", são desses círculos consagrados aojogo. A realidade fora do campo é esquecida; há uma rendição geral à ilusão comum e o juízo

independente é posto de lado. Todo verdadeiro jogo ainda encerra estas características.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 156-157. Capítulo Puerilismo.

A característica mais fundamental do autêntico jogo, quer se trate de um culto, de uma representação,de uma competição ou de uma festividade, é que em determinado momento ele cessa. Os espectadores

se retiram, os atores tiram as máscaras, a exibição acabou. É aqui que se revela o mal do nosso tempo. Éque hoje, em muitos casos, o jogo nunca acaba, e daí não ser verdadeiro jogo. Houve uma contaminaçãode efeitos remotos entre jogo e atividade séria. As duas esferas começam a misturar-se. Nas atividades

de natureza exteriormente séria esconde-se um elemento de jogo. Por outro lado, o que é realmente jogojá não é capaz de manter o seu caráter de verdadeiro jogo em virtude de ser tomado muito a sério e deser tecnicamente muito complicado. assim se perdem as indispensáveis qualidades de desprendimento,

naturalidade e alegria.

Até certo ponto, algo de semelhante a esta contaminação se manifestou em todas as culturas, tantoquanto podemos ver no passado. Mas é um privilégio dúbio da moderna civilização ocidental ter dado a

maior intensidade a esta (di)fusão das duas esferas de vida. Um grande número de cultos e de

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ignorantes tem perante a vida a mesma atitude de criança perante o jogo. Caracteriza-se por uma faltade sentido do decoro, uma falta de dignidade pessoal, de respeito pelos outros e pelas suas opiniões, epor uma excessiva concentração sobre sua própria personalidade. A debilitação geral da capacidade dejulgar e do impulso crítico preparou terreno à expansão dessa atitude. Ora, se é interessante, não deixade ser inquietante, notar que a emergência deste estado de espírito foi facilitada não só pelo minguadodesejo de julgamento individual, pelo efeito "standardizador" da organização de grupos que fornecemuma lista de opiniões já feitas, e pelas sempre acessíveis oportunidades de diversão banal, mas ainda

pelo maravilhoso desenvolvimento das facilidades técnicas. Perante o seu mundo pleno de maravilhas ohomem é como uma criança diante dum conto de fadas. Pode viajar pelo espaço, falar para outro

hemisfério ou ter em sua casa um continente, graças ao rádio. Aperta um botão e a vida desfila na suafrente. Tal vida poder-lhe-á dar maturidade? Pelo contrário.

(...)

Valeria a pena investigar como nas diferentes línguas o vocabulário próprio do jogo inundacontinuamente o sério...

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo. São Paulo: Saraiva, 1946, p. 158-159. Capítulo Puerilismo.

(…) embora seja verdade que a sociedade vai tomando esse rumo, isto é, a direção do maior controletécnico no exercício do poder e do cálculo prudente dos efeitos desejados, o tipo humano se tornou ao

mesmo tempo mais e mais indisciplinado, mais pueril, mais suscetível a reações do sentimento (…)

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 196. Capítulo Perspectivas.

Sobre o jogo e o autêntico espírito lúdico

O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas,pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperaram que os homens os iniciassem na

atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentoucaracterística essencial alguma à ideia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. Bastará

que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentestodos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um

certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam as regras que os proíbem morderem, ou pelo menos comviolência, a orelha do próximo. Fingem estar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto,

experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhosconstituem apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras formas muito

mais complexas, verdadeiras competições, belas representações destinadas a um público.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 3.

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(…) mesmo em suas formas mais simples, ao nível animal, o jogo é mais do que um fenômeno fisiológicoou um reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma

função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” quetranscende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma

coisa. Não se explica nada chamando “instinto” ao princípio ativo que constitui a essência do jogo;chamar-lhe “espírito” ou “vontade” seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o

simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não material em suaprópria essência.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

(…) reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, nãoé material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física. Do ponto de vista da

concepção determinista de um mundo regido pela ação de forças cegas, o jogo seria inteiramentesupérfluo. Só se torna possível, pensável e compreensível quando a presença do espírito destrói o

determinismo absoluto do cosmos. A própria existência do jogo é uma confirmação permanente danatureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma

coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porquesomos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

Encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado existente antes da própria cultura,acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase de civilização em que agora

nos encontramos.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 4.

Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser elepróprio liberdade. Uma segunda característica intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida

“corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esferatemporária de atividade de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quandoestá “só fazendo de conta” ou quando está “só brincando”. (…) Esta característica de “faz de conta” dojogo exprime um sentimento de inferioridade do jogo em relação à “seriedade”, o qual parece ser tãofundamental quanto o próprio jogo. Todavia, conforme já salientamos, esta consciência do fato de “só

fazer de conta” no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade, com umenlevo e um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos temporariamente, tiram todo o

significado da palavra “só” da frase acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorverinteiramente o jogador. Nunca há contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade dojogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo. É

possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade.

(…) Visto que não pertence à vida “comum”, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata dasnecessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade

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temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consistenessa própria realização (…) como um intervalo em nossa vida cotidiana.

(…)

O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira desuas características principais: o isolamento e a limitação. É “jogado até o fim” dentro de certos limites

de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprios.

O jogo inicia-se e, em determinado momento, “acabou”. Joga-se até que se chegue até um certo fim.Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação. Ehá, diretamente ligada à sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do do jogo, a de

se fixar imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, elepermanece como uma criação nova no espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É

transmitido, torna-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento (…). A limitação no espaço éainda mais flagrante do que a limitação no tempo. Todo jogo se processa e existe no interior de um

campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea (…) sãomundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11-13.

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta. E aqui chegamos a sua outracaracterística, mais positiva ainda: ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na

imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta: amenor desobediência a esta “estraga o jogo”, privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer

valor.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13.

O elemento de tensão (…) desempenha no jogo um papel extremamente importante. Tensão significaincerteza, acaso. Há um esforço para levar o jogo até ao desenlace (…), conseguir alguma coisa difícil,

ganhar, acabar com uma tensão.(...0 Embora o jogo enquanto tal esteja para além do domínio do bem edo mal, o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida em que são postas à prova asqualidades do jogador (…). Porque, apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve sempre obedecer às

regras do jogo.

(…) As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 13-14.

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As comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabadoo jogo. É claro que nem todos os jogos de bola de gude, ou de bridge, levam à fundação de um clube.

Mas a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de partilhar algoimportante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para

além da duração de cada jogo (…).

O caráter especial e excepcional do jogo é ilustrado de maneira flagrante pelo ar de mistério em quefrequentemente se envolve por se fazer dele um segredo. Isto é, para nós, e não para os outros. O que os

outros fazem “lá fora” é coisa que no momento não nos importa. Dentro do círculo do jogo, as leis ecostumes da vida cotidiana perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 15.

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividadelivre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz

de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquerinteresse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais etemporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais

com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundopor meio de disfarces e outros meios semelhantes.

A função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definidapelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação

de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes confundir-se, de tal modo que o jogopasse a “representar” uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma

coisa.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 16-17.

O jogo tem por natureza, um ambiente instável. A qualquer momento é possível à “vida cotidiana”reafirmar seus direitos, seja devido a um impacto exterior, que venha interromper o jogo, ou devido a

uma quebra das regras, ou então do interior, devido ao afrouxamento do espírito do jogo, a umadesilusão, um desencanto.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 24.

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O homem moderno pode buscar individualmente a confirmação de sua visão da vida e o mais purodesfrutar de sua alegria de viver em qualquer momento de paz, escolhendo ele mesmo a sua maneira de

descontração. Mas numa época em que os luxos espirituais ainda eram pouco difundidos e poucoacessíveis, é necessário um ato comum, ou seja, a festa. E quanto maior o contraste da miséria do dia a

dia, tanto mais indispensável é a festa e tanto mais fortes são os estimulantes necessários para,transformando esse êxtase em beleza e prazer, expiar a escuridão da realidade do dia a dia.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 18 - A arte na vida. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 431.

Sobre o jogo, o sagrado e o pensamento mágico-mitológico

Se verificamos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação” darealidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então,captar o valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no

próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida.

As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadaspelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o

homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. (…) Por detrás de toda expressão abstratase oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem

cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.

Um outro exemplo é o mito, que também é uma transformação ao uma “imaginação” do mundoexterior, mas implica em um processo mais elaborado do que ocorre no caso das palavras isoladas. Ohomem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo dos fenômenos atribuindo a este um

fundamento divino. Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que jogano extremo limite entre a brincadeira e a seriedade. Se, finalmente, observarmos o fenômeno do culto,

verificaremos que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, seus sacrifícios, consagrações emistérios, destinados a assegurarem a tranquilidade do mundo, dentro de um espírito de puro jogo,

tomando-se aqui o verdadeiro sentido da palavra.

Ora, é no mito e no culto que têm origem as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e aordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas têm suas raízes

no solo primevo do jogo.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 7.

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Antes de mais nada, o jogo é uma atividade voluntária. Sujeito a ordens, deixa de ser jogo, podendo nomáximo ser uma imitação forçada. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente

do curso da evolução natural. (…) As crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e éprecisamente em tal fato que reside sua liberdade.

Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia serdispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por eleprovocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o

jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendosempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se a noções de obrigação e dever apenas quando constitui

uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 11.

Mais do que uma realidade falsa, a representação é a realização de uma aparência: é “imaginação”. Nosentido original do termo.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.

A representação sagrada é mais do que a simples realização de uma aparência, é até mais do que umarealização simbólica: é uma realização mística. Algo de invisível e inefável adquire nela uma forma bela,

real e sagrada. Os participantes do ritual estão certos de que o ato concretiza e efetua uma certabeatificação, faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela em que habitualmente vivem.Mas tudo isto não impede que essa “realização pela representação” conserve, sob todos os aspectos, as

características formais do jogo.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 17.

O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, istoé, uma vez mais, um ato, uma ação representada num palco. Esta ação pode revestir a forma de umespetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, umevento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representa” não exprime o sentido exato da

ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui “representação” érealmente identificação, a identificação mística ou a reapresentação do acontecimento.

(…)

O culto é, portanto, um espetáculo, uma representação dramática,uma figuração imaginária de umarealidade desejada (…).

Como devemos encarar um processo espiritual que se inicia com uma experiência inexpressa dosfenômenos cósmicos e conduz a sua representação imaginária no jogo?

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 18-19.

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Diríamos então que, na sociedade primitiva, verifica-se a presença do jogo, tal como nas crianças e nosanimais, e que, desde a origem, nele se verificam todas as características lúdicas: ordem, tensão,

movimento, mudança, solenidade, ritmo, entusiasmo. Só em fase mais tardia da sociedade o jogo seencontra associado à expressão de alguma coisa, nomeadamente aquilo a que podemos chamar “vida”

ou “natureza”. O que era jogo desprovido de expressão verbal agora adquire uma forma poética. Naforma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e deracionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua

expressão primeira, mais alta e mais sagrada. Pouco a pouco, o jogo vai adquirindo a significação de atosagrado. O culto vem-se juntar ao jogo; foi este, contudo, o fato inicial.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 21.

O culto é a forma mais alta e mais sagrada da seriedade. Como pode ele, apesar disso, ser jogo? (…)Estamos habituados a considerar o jogo e a seriedade como uma antítese absoluta. Contudo parece que

isto não permite chegar ao nó do problema.

(…) A criança joga e brinca dentro da mais prefeita seriedade, que a justo título podemos considerarsagrada. Mas sabe perfeitamente que o que está fazendo é um jogo. Também o esportista(...). O mesmo

se verifica no ator que, quando está no palco, deixa-se absorver inteiramente pelo “jogo” darepresentação teatral, ao mesmo tempo que tem consciência da natureza desta. O mesmo é válido parao violinista, que se eleva a um mundo superior ao de todos os dias, sem perder a consciência do caráter

lúdico da sua atividade. Portanto, a qualidade lúdica pode ser própria das atividades mais elevadas. Maspermitirá isto que prolonguemos a série de maneira a incluir o culto, afirmando ser também meramentelúdica a atividade do sacerdote que executa os rituais do sacrifício? À primeira vista isto parece absurdo,

porque aceitá-lo para uma religião nos obrigaria a aceitá-lo para todas. Assim, nossas ideias de culto,magia, liturgia, sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo.

(…) Essa identidade do ritual e do jogo era reconhecida sem reservas por Platão, que não hesitava emincluir o sagrado na categoria do jogo (Cf. PLATÃO, Leis, VII. 796 B). A identificação platônica entre ojogo e o sagrado não desqualifica este último, reduzindo-o ao jogo, mas, pelo contrário, equivale a

exaltar o primeiro, elevando-o às mais altas regiões do espírito.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 22,23.

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Verificamos que uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial em relaçãoà vida cotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do ambiente

cotidiano, e é dentro desse espaço que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, adelimitação de um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto. Esta

exigência de isolamento para o ritual, incluindo a magia e a vida jurídica, tem um alcance superior aomeramente espacial e temporal. Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo

isolamento artificial tanto dos ministros quanto dos neófitos. Sempre que se trata de proferir um voto, deser recebido numa ordem ou numa confraria, de fazer um juramento, ou de entrar para uma sociedade

secreta, de uma maneira ou de outra há sempre essa delimitação de um lugar do jogo. O mágico, oáugure, o sacrificador, sempre começam por circunscrever seu espaço sagrado. O sacramento e o

mistério implicam sempre um lugar santificado.

De um ponto de vista formal, não existe diferença alguma entre a delimitação de um espaço para finssagrados e a mesma operação para fins de simples jogo. (...)

Mesmo estabelecida a identidade formal do ritual e do jogo, continua sendo necessário saber se estasemelhança vai mais longe que o aspecto puramente formal (…) ― as práticas rituais, desenrolando-se

dentro do quadro formal do jogo, são marcadas também pela atitude e pela atmosfera do jogo.

(…)

A alegria que está indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão, mastambém em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos que limitam o âmbito do jogo.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 23-24.

Quais são, então, a atitude e o ambiente predominantes nas celebrações sagradas? A palavra celebrardiz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de pretexto para uma festa. (…) As consagrações, ossacrifícios, as danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai constituirparte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam sangrentos, que as provas a que é

submetido o iniciado sejam cruéis, que as máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede queo ambiente seja de festividade, implicando a interrupção da vida cotidiana.

(…)

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam umaeliminação da vida cotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, poistambém a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos

uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo têm emcomum suas características principais.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 25.

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Não se pense, todavia, que que o estabelecimento de uma estreita relação entre o espírito do jogo e oritual possa servir para explicar tudo. O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de

seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber a consciência,mesmo que seja latente, de estar “apenas fazendo de conta”. Permanece de pé a questão de saber até

que ponto essa consciência é compatível com os atos rituais efetuados dentro de um espírito de devoção.

Se nos limitarmos aos ritos sagrados das culturas primitivas, não será impossível determinar o grau deseriedade com que são efetuados. Tanto quanto me consta, os etnólogos e antropólogos concordam

todos com a ideia de que o estado de espírito que preside às festas religiosas dos povos selvagens não éde ilusão total. Existe uma consciência subjacente de que as coisas “não são reais”. [A atuação dos]

encarregados da direção do conjunto das cerimônias (…) assemelha-se em tudo à dos pais que brincamde Papai Noel com seus filhos: conhecem a máscara, mas escondem-na deles. (…) A atitude dos neófitos

oscila entre o êxtase, a loucura fingida, o frêmito de horror e a afetação dos garotos. (…)

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 26.

É impossível determinar de maneira rigorosa o limite a partir do qual a gravidade religiosa passa a sersimples divertimento (fun). Entre nós, um pai que seja um tanto ou quanto pueril poderá ficar

seriamente zangado se seus filhos o surpreenderem no exato momento em que estiver preparando ospresentes de Natal.

No capítulo intitulado Primitive credulity, de seu livro The Threshold of Religion, R. R. Marette expõe aideia de que em todas as religiões primitivas se encontra um certo elemento de “faz de conta” (make-

believe). Tanto o feiticeiro como o enfeitiçado são ao mesmo tempo conscientes e iludidos. Mas um delesescolhe o papel do iludido. “O selvagem é um bom ator, capaz de deixar-se absorver inteiramente por

seu papel, tal como a criança quando brinca; e, também tal como a criança, é um bom espectador, capazde ficar mortalmente assustado com o rugido de uma coisa que sabe perfeitamente não ser um

verdadeiro leão”. (…) O comportamento dos indivíduos aos quais se atribui poderes sobrenaturais podefrequentemente ser definido como um playing up to the role (manter-se fiel ao papel).

(...)

Apesar desta consciência parcial do caráter fictício das coisas na magia e nos fenômenos sobrenaturaisem geral, os mesmos observadores insistem que daí não deve concluir-se que todo o sistema de crençase práticas seja apenas uma fraude inventada por um grupo de “incrédulos”, tendo em vista dominar os

“crédulos”. É certo que esta interpretação não só é defendida por muitos viajantes, mas aparece até nastradições dos próprios indígenas, mas mesmo assim, não é possível que ela esteja correta (…): é

impossível perder de vista, por um momento só que seja, o conceito de jogo, em tudo quanto diz respeitoà vida religiosa dos povos primitivos. (…) Mais ainda: a unidade e a indivisibilidade da crença e da

incredulidade, a indissolúvel ligação entre a gravidade do sagrado e o “faz de conta” e o divertimento,são melhor compreendidas no interior do próprio conceito de jogo.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 27-28.

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Quando uma certa forma de religião aceita uma identidade sagrada entre duas coisas de naturezadiferente, como por exemplo um ser humano e um animal, não podemos definir corretamente essarelação como uma “ligação simbólica”, no sentido em que a entendemos. A identidade e unidadeessencial de ambos é muito mais profunda do que a relação entre uma substância e sua imagem

simbólica. É uma identidade mística. Um se tornou o outro. Em sua dança mágica o selvagem é umcanguru. Quer queiramos ou não, sempre transpomos as concepções religiosas do selvagem para o

plano de exatidão rigorosamente lógica de nosso tipo de pensamento. Exprimimos a relação entre ele eo animal com o qual se identifica como sendo uma “realidade” para ele, e um “jogo” para nós. O

selvagem diz que se apoderou da “essência” do canguru. Mas o selvagem nada sabe das distinçõesconceituais entre “ser” e “jogo”, nada sabe sobre “identidade”, “imagem” ou “símbolo”. Portanto,continua em aberto a questão de saber se a melhor maneira de apreender o estado de espírito do

selvagem no momento em que celebra seus rituais não será o recurso à noção primária e universalmentecompreensível de “jogo”. Em nossa concepção do jogo, desaparece a distinção entre a crença e o “faz de

conta”.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 29-30.

A noção de jogo associa-se naturalmente à de sagrado. Qualquer prelúdio de Bach, um verso dequalquer tragédia prova isso. Decidindo considerar toda a esfera da chamada cultura primitiva como um

domínio lúdico, abrimos caminho para uma compreensão mais direta e mais geral de sua natureza, demaneira mais eficaz do que se recorrêssemos a uma meticulosa análise psicológica ou sociológica.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.

O jogo sagrado, pelo fato de ser indispensável ao bem-estar da comunidade e um germe de intuiçãocósmica e de desenvolvimento social, não deixa de ser um jogo que, como dizia Platão, se processa fora e

acima das austeras necessidades da vida cotidiana.

(…)

Segundo a concepção de Platão, a religião é essencialmente constituída pelos jogos dedicados àdivindade, os quais são para os homens a mais elevada atividade possível. Seguir esta concepção não

implica de maneira nenhuma que se abandone o mistério sagrado, ou que se deixe de considerar este amais alta expressão possível daquilo que escapa às regras da lógica. Os atos de culto, pelo menos sob

uma parte importante de seus aspectos, serão sempre abrangidos pela categoria do jogo, mas estaaparente subordinação em nada implica o não reconhecimento de seu caráter sagrado.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1980, p. 30.

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Sobre a linguagem, o simbolismo e o pensamento simbólico (mágico-mitológico)

Do ponto de vista do pensamento causal, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. Opensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos

causais, mas sim saltando subitamente por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entrecausa e efeito, mas entre significado e objetivo. A convicção de que tal elo existe pode surgir sempre queduas coisas possuam uma característica essencial em comum que se refira a alguma coisa de valor geral.

Em outras palavras, qualquer associação com base em qualquer semelhança pode se transformardiretamente na ideia de uma conexão essencial e mística (…).

A equalização simbólica baseada em características comuns somente fará sentido se as característicasforem consideradas verdadeiramente essenciais. Rosas brancas e vermelhas florescem entre espinhos. Oespírito medieval imediatamente vê neste fato um significado simbólico: virgens e mártires brilham em

glória entre os seus perseguidores. Como se dá o postulado da equivalência? Ele se dá porque asqualidades são as mesmas: beleza, ternura, pureza, e o vermelho-sangue das rosas também são

atributos das virgens e dos mártires. Mas essa conexão só será significativa de fato e cheia de sentidomístico se o elo que conecta os dois termos do conceito simbólico, a qualidade portanto, contiver o

essencial. Em outras palavras, como se as cores vermelho e branco não valessem como meros rótulospara distinções físicas com base quantitativa, mas fossem encaradas como realidades independentes.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 336-337.

Para o espírito primitivo, tudo o que é denominável imediatamente assume uma essência, seja ela umaqualidade, uma forma, o que for. A coisa então se projeta automaticamente nos céus. Sua essência podequase sempre (não necessariamente sempre) ser personificada; a qualquer instante começa a dança dos

termos antropomórficos.

Todo realismo, no sentido medieval, acaba sendo um antropomorfismo. Se o pensamento que atribuiuuma entidade independente a uma ideia quer torná-la visível, não há outro modo além da

personificação. É aqui que se situa a transição do simbolismo e do realismo para a alegoria. A alegoria éo simbolismo projetado num poder de imaginação superficial; é a expressão intencional, e com isso

também o esgotamento de um símbolo; a transição de um grito apaixonado para uma frasegramaticalmente correta. Goethe descreve o contraste assim: “ A alegoria transforma a manifestação

em um conceito, o conceito em uma imagem, de forma que o conceito possa sempre se manterassociado à imagem e nela ficar preservado. O simbolismo transforma a manifestação em ideia, a ideiaem uma imagem, de forma que a ideia permaneça sempre eficaz e inalcançável e, mesmo que possa ser

proferida em todas as línguas, permaneça inexprimível.”

A alegoria tem, portanto, o potencial de ser reduzida a um pedante lugar-comum e ao mesmo temporeduzir uma ideia a uma imagem.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

Capítulo 15 - O simbolismo fenecido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 338.

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O pensamento simbólico proporciona aquela intoxicação, aquela confusão pré-intelectual dos limites deidentidade das coisas, aquele abrandamento do pensamento racional que leva a intensidade do

sentimento pela vida a seu auge.

(…)

O valor moral do modo de pensar simbólico é inseparável de seu valor criativo. A formulação simbólica écomo a música adicionada ao texto das doutrinas formuladas de maneira lógica, que sem essa música

haveriam de soar excessivamente ásperas, excessivamente pobres.

(...)

O desvanecer da Idade Média apresenta todo esse mundo de pensamento em sua última floração. Omundo era perfeitamente representado pelo simbolismo que tudo abrangia, e os símbolos individuais se

transformaram em flores petrificadas. Desde sempre, aliás, o simbolismo possuíra a tendência a setornar puramente mecânico. Uma vez estabelecido como fonte de pensamento, ele não só brota dafantasia e entusiasmo poéticos, mas se acopla às funções intelectuais como uma planta parasita edegenera até virar mero hábito e uma doença do pensamento. Surgem perspectivas completas de

contato simbólico, em especial quando este brota de uma simples correspondência entre números. Sãomeros exercícios aritméticos. Os doze meses devem significar os doze apóstolos, as quatro estações, os

evangelistas, e o ano inteiro, então, só pode ser Cristo.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 339-340.

O símbolo só conserva o seu valor emocional em função da santidade das coisas que representa: tãologo o simbolismo passa do puro domínio religioso para o exclusivamente moral, a sua degeneração

irremediável é exposta.

(…)

Naturalmente, porém, mesmo nas manifestações mais insossas, o simbolismo e a alegoria tinham para oespírito medieval um valor sentimental muito mais vivo do que imaginamos. A função das equiparações

simbólicas e das figuras personificadas estava tão desenvolvida, que qualquer pensamento setransformava quase automaticamente em um personnage. Qualquer ideia era considerada uma

entidade, qualquer qualidade, uma substância, e, enquanto entidade, era imediatamente personificadapela inteligência que a concebera.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 15 - O simbolismo fenecido.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 341-342.

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A forte tendência medieval de criar um órgão para cada função não passa de um resultado da forma depensamento que atribuía independência a cada qualidade, que via cada uma delas como uma ideia em

separado. O rei da Inglaterra tinha entre os seus magna sergenteria (altos postos de sargento) umoficial para segurar a cabeça dele quando atravessasse o canal e ficasse enjoado; em 1442 essa posição

foi ocupada por um tal de John Baker, que depois a passou para suas duas filhas.

É necessário analisar sob a mesma luz o costume de dar um nome próprio a todas as coisas, mesmo asinanimadas. Trata-se, por mais pálido que seja, de um traço de antropomorfismo primitivo quando,

mesmo na vida militar atual ― que em vários aspectos significa uma volta a um comportamento de vidaprimitivo ―, se dão nomes a canhões. (…) Quando vemos que nos dias de hoje os navios continuam a ter

nomes, mas apenas uma ou outra casa manteve o hábito e os sinos não os têm mais, isso deve-se aofato, por um lado, de os navios mudarem de lugar e precisarem ser identificados a qualquer momento,mas também porque o navio contém mais qualidades próprias que a casa, o que também está expresso

no she (ela) usado no idioma inglês para referir-se a embarcações. Deve-se imaginar que essa percepçãopessoal das coisas era muito mais forte na Idade Média: nesse período, cada coisa recebia um nome,

desde os calabouços dos cárceres até cada casa e cada relógio.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 376-377.

Sobre o misticismo e os limites da linguagem

A língua humana é incapaz de evocar uma visão tão drástica da felicidade como ela o faz com o horror.Para encontrar material cru que descreva a feiura e a miséria, basta mergulhar fundo nos recantos mais

baixos da humanidade; mas para descrever a suprema sensação de felicidade, é preciso esticar opescoço bem para o alto, na direção do céu. [Dioniso Cartuxo, na Idade Média,] esfalfa-se em

superlativos desesperados, o que não passa de mero reforço matemático da imaginação, sem nenhumesclarecimento ou aprofundamento da ideia de felicidade. [E faz o mesmo em relação a Deus.] (…).

Mas de que adianta acumular superlativos ou visões qualitativas da altura, da amplidão, daincomensurabilidade e da inesgotabilidade? Continuam sendo meras imagens, tentativas de reduzir a

ideia do infinito a imagens nascidas do mundo finito; isto leva ao enfraquecimento e à exteriorização doconceito de eternidade. Eternidade não é tempo mensurável. Cada sensação, uma vez expressa, perde

sua imediatez; cada característica atribuída a Deus tirava-lhe um pouco de Sua imponência.

Neste ponto começa a ingente luta para alçar-se, com o poder da mente humana, à absoluta ausênciade imagem da divindade. Sem estar vinculada a nenhuma cultura ou época, essa luta repete-se em todos

os lugares e sempre da mesma forma.

(…) Mas o apoio da imaginação não pode ser abandonado de pronto. Uma a uma, as deficiências dosmeios de expressão se tornam evidentes. As encarnações concretas da ideia e as vestes multicoloridas do

simbolismo são as primeiras a caírem por terra: feito isto, não se fala mais de sangue e expiação, nemmais de Eucaristia, nem Pai, Filho e Espírito Santo. No misticismo de Eckhart, Cristo quase não é

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mencionado, e tampouco o são a Igreja e os sacramentos. Mas as expressões para a visão mística do Ser,da Verdade, da Divindade permanecem ligadas a conceitos naturais, aqueles de luz e de vastidão. Mais

tarde, bruscamente, invertem-se e passam a ter um caráter negativo: silêncio, vazio e escuridão. Emseguida, também se reconhece a insuficiência desses conceitos amorfos e sem conteúdo, e tenta-se

resolver essa insuficiência conectando-os continuamente a seus opostos. Por fim, não resta nada alémda pura negação; a divindade, que não é reconhecida em nada do que existe, pois está acima de tudo,

passa a ser chamada pelos místicos de “Nada”.

(…) É evidente que essa progressão do espírito contemplativo até o abandono de toda e qualquerrepresentação não aconteceu exatamente nessa sequência. A maioria das declarações místicas

apresenta todas essas fases misturadas entre si. Elas já existiam na Índia, estavam completamentedesenvolvidas em Pseudo-Dionísio Aeropagita, que é a fonte de todo o misticismo cristão, e ressurgem

no misticismo alemão do século XIV.

(…)

Ver Deus por intermédio da negação, diz Dionísio em outro momento, é mais perfeito do que pelaafirmação. (…) É certo que Ele é incompreensível e desconhecido, impenetrável e inexprimível, e

distingue-se de tudo o que ele faz mediante uma excelência e diferença incomensuráveis e única (…).

Será que o poder das imagens fora derrotado? Sem imagem nem metáfora é impossível expressarqualquer pensamento. Quando se fala da essência incompreensível das coisas, cada palavra é imagem.Falar dos desejos mais elevados e mais íntimos somente por negações não satisfaz o coração, e sempre

que o sábio atinge o impasse, o poeta vem em seu socorro.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da imaginação no misticismo.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 361-362 e 366-367.

O caminho do misticismo leva para dentro do infinito e para a falta de consciência. Ao negar todaconexão entre a divindade e tudo o que é particular e nomeável, anula-se a transcendência; a ponte que

leva de volta à vida foi subitamente interrompida.

(…) O misticismo intensivo representa uma volta à vida espiritual pré-intelectual. Todo intelectualismofica sem efeito, é subjugado e tornado supérfluo. Apesar disso, o misticismo contribuiu para a culturacom ricos frutos, isso porque ele se desenvolve por estágios preparatórios e só aos poucos descarta as

formas do costume e da cultura. Os seus frutos para a civilização nasce nos primeiros estágios, abaixo dolimite superior da vegetação. É ali que desabrocha o pomar da perfeição moral, necessário como

preparativo para qualquer um que deseje a contemplação: a paz e a ternura, o abrandar do desejo, asimplicidade, a moderação, a diligência, a seriedade e o fervor. Foi assim na índia e é assim aqui: o efeito

inicial do misticismo é moral e prático, consistindo, acima de tudo, no exercício da caridade.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 16 - O realismo e o sucumbir da

imaginação no misticismo. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 367-368.

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Sobre arte, poesia e literatura em geral

Há meio século que a arte vem se afastando cada vez mais da razão.

(…) A arte poética de todos os tempos, mesmo quando o poeta se transporta aos maiores êxtases,mantém sempre um elo que a liga à expressão racional. (…) [Agora] o quinhão do não-racional e do anti-

racional é cada vez maior (…), vemos a poesia a seguir propositadamente uma derrota diferente da darazão. Os poetas principais começaram a negar-se ao reconhecimento do critério de inteligibilidade

lógica (…).

Este divórcio da razão e da arte poética tem o seu correspondente nas artes plásticas com o alheamentodas formas visíveis da realidade. Ars imitatur naturam fôra durante muitos séculos, desde a suaformulação por Aristóteles, um artigo de fé bem firme. O tratamento estilístico, ornamental oumonumental do assunto nunca o suprimiu, embora desse por vezes a impressão de perturbar ocumprimento desse princípio. O significado da sentença de Aristóteles nunca foi o de que a arte

simplesmente copia o que vê na natureza. Tem um sentido muito mais profundo: a arte imita a natureza,isto é, tal como ela, cria formas. Contudo, a reprodução perfeita da realidade visível ficou sempre o idealuniversalmente acarinhado. Para a expressão plástica, respeito pela natureza significava de certo modo

respeito pela razão, visto que esta é o órgão com que o homem interpreta e compreende o seu ambiente.

(…)

A ruptura só se verifica quando o artista tenta criar formas fora da realidade, tal como esta se apresentaao observador comum. Se por vezes na composição artística as figuras isoladas podem ser ainda tiradas

da natureza, o seu agrupamento é tal, que o todo já não corresponde a uma percepção da realidadepassada pelo crivo da lógica. (…) Com a sua completa renúncia ao concreto da imagem natural como

esqueleto da expressão pictórica, a arte da pintura rejeita todos os meios vulgares da faculdadeperceptiva (…).

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 171-174. Capítulo A arte e a literatura.

Uma certa analogia entre a situação da arte e a da ciência é inegável. (…) Olhando porém mais de perto,descobre-se uma diferença fundamental entre os dois fenômenos.

(…) Para a arte não há um imperativo absoluto; não há uma disciplina do espírito que a constranja. Oseu impulso criador centraliza-se na vontade. E aqui é que se manifesta um fato de grande importância;a arte aproxima-se, muito mais que a ciência, da moderna filosofia da vida que sacrifica a compreensão

à existência. A nova arte julga poder representar e interpretar verdadeira e sinceramente a vida semfazer uso da função intelectual, esquecendo que, apesar de tudo, tal interpretação com a sua expressão

continua a ser um ato do intelecto.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 175-177. Capítulo A arte e a literatura.

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(…) a ânsia perpétua de originalidade, outra enfermidade do nosso tempo, torna a arte muito maissuscetível que a ciência a todas as influências corruptivas exteriores.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 179-180. Capítulo A arte e a literatura.

Passando em revista, no sei todo, o desenvolvimento do processo espiritual desde os meados do séculoXVIII tem-se a impressão de que no decurso deste processo a percepção estética e sentimental foi

penetrando cada vez mais no domínio do pensamento. Esta apreciação estética e sensível introduziu-sena compreensão lógica. Por outro lado, em trabalhos de beleza e sensibilidade, o elemento “razão”

inerente às suas formas de expressão, tornou-se progressivamente mais débil. Este processo geral atingeo seu ponto extremo e culminante no momento em que nega ao conhecimento a primazia como meio de

compreensão do mundo.

O perigo desta irracionalização, reside, sobretudo, no fato de ela ser acompanhada pelo maiordesenvolvimento das forças técnicas. É evidente que a adoração da vida, originada pela irracionalizaçãoda cultura, não pode senão promover o culto do eu. Mas o culto do eu significa a exasperação da ânsiade bem-estar terreno. Ora se esta ânsia tem ao seu dispor as ilimitadas possibilidades duma faculdade

técnica altamente desenvolvida, o perigo inerente a todo culto do eu será muitíssimo maior para asociedade, visto que a realização desse desejo ardente de bem-estar conduz necessariamente à

destruição do bem-estar dos outros.

(…) Um regresso à razão e ao racionalismo não é suficiente para nos arrancar ao abismo. O peso paraequilibrar essa cooperação de fatores destrutivos só o podemos encontrar nos mais altos valores éticos e

metafísicos.

HUIZINGA, Johan. Nas sombras do amanhã:diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo.

São Paulo: Saraiva, 1946, p. 186. Capítulo A arte e a literatura.

[O conceito de formalismo:] A noção inerente da realidade transcendental das coisas significa que cadaideia é definida por limites fixos, está isolada numa forma plástica, e que essa forma é dominante.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 17 - As formas de pensamento na vida prática.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 392.

[Normalmente] é a forma que ameaça sobrepujar o conteúdo e o impede de se renovar.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 18 - A arte na vida.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 458.

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O mesmo princípio de estilo leva a resultados bem distintos nas belas-artes e na literatura. Mesmo se opintor decidir simplesmente reproduzir uma realidade externa em linha e cor, ele sempre acaba pondo

atrás dessa imitação meramente formal alguma reminiscência do não pronunciado ou doimpronunciável. Mas se o poeta não tentar nada além de simplesmente expressar com palavras uma

realidade já visível ou já compreendida, então se esgota na palavra o tesouro do não pronunciado. Podeser que o ritmo e a sonoridade ali contidos lhe proporcionem uma nova beleza não pronunciada. Mas setambém esses elementos forem fracos, o poema apenas manterá o seu efeito enquanto a ideia prender

a atenção do ouvinte. (...)

Mas quando a ideia em si já não diz mais nada, o poema consegue manter o seu efeito somente pelaforma. A forma tem uma importância sem igual, e pode até ser tão nova e viva que a questão do

conteúdo da ideia mal vem à tona. (…)

Para o pintor, a época de tal limitação mental só chega mais tarde. Pois ele vive do tesouro do nãopronunciado e é a plenitude desse tesouro que determina o resultado mais profundo e mais duradouro

de toda a arte.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 483.

Eis aí o efeito da “elaboração irrefreada” na pintura. O pintor, esse pintor [Jan Van Eyck] tinha acapacidade de, dentro de um espaço que não chegava a meio metro quadrado, dar asas a seu desejo

mais descompromissado de detalhamento (ou deveríamos dizer: à satisfação dos pedidos mais exigentesde um mecenas ignorante?) sem nos cansar mais que o que faria um olhar rápido para a aglomeração

viva da realidade. Pois um vislumbre é só o que nos é permitido; a força das dimensões estabelecialimites, e adentra-se na beleza e no caráter especial disso tudo que está representado, sem esforçomental: muitos dos detalhes que merecem atenção nem mesmo são notados, ou já desaparecem

instantaneamente da consciência e servem apenas para efeitos de cor ou de perspectiva.

Se atribuímos essa característica geral de “elaboração irrefreada das particularidades” também àliteratura do século XV (…) tudo ocorre de outra forma.

(…) a relação entre o assunto principal e os assuntos secundários na poesia [é] justamente inversa à dapintura. Na pintura, a diferença entre o assunto principal (ou seja: a expressão adequada do tema) e os

assuntos secundários é pouca. Tudo ali é essencial. Para nós, um simples detalhe pode determinar acompleta harmonia da obra.

(…)

Mas é justamente no detalhe que o pintor está totalmente livre. Quanto ao tema principal [na IdadeMédia], a ideia do motivo sagrado, lhe foi estipulada uma rígida convenção; cada cena religiosa possui o

seu código iconográfico, do qual não se tolera nenhum desvio. No entanto [nos detalhes] ele tem umcampo ilimitado para desenvolver livremente o seu entusiasmo criador.

Na poesia do século XV, no entanto, essa relação de certa forma se inverte. Quanto ao tema principal, o

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poeta é livre: ele pode encontrar uma nova ideia, se puder, enquanto justamente o detalhe e o pano defundo são dominados em grande parte por convenções. Flores, o prazer da natureza, tristezas e alegrias,todos esses elementos têm as suas formas fixas de expressão, as quais o poeta pode lustrar e colorir um

pouco, mas não renovar.

Ele lustra e colore infinitamente, pois lhe falta a salutar limitação imposta ao pintor pelo preenchimentodo espaço vazio; o espaço do poeta é sempre ilimitado. Ele não tem a limitação dos meios materiais, e

justamente por causa dessa liberdade ele, proporcionalmente, precisa de uma capacidade mental maiorque a do pintor para fazer algo bom. Os pintores medianos ainda continuam sendo um deleite para os

olhos da geração seguinte, mas o poeta mediano afunda no esquecimento.

Para demonstrar o efeito da “elaboração irrefreada” numa obra poética do século XV, seria necessárioacompanhá-la passo a passo, em todo o seu conteúdo (e elas são longas!)

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 489-492.

Comparado à pintura, o que constitui no poema [medieval tardio] o efeito diferente da elaboraçãoextensa da cena natural? Qual é o efeito da expressão de uma mesma inspiração através do uso de

diferentes meios? O fato de o pintor, devido à natureza de sua arte, ser obrigado a manter umafidelidade simples à natureza, enquanto o poeta se perde na grande superficialidade amorfa e na

enumeração de motivos convencionais. A prosa, neste aspecto, aproxima-se mais da pintura do que apoesia. Ela está menos presa a certos motivos. Muitas vezes expõe mais enfaticamente a reprodução

precisa de uma realidade vista e a executa usando meios mais livres. Com isto, talvez a prosa demonstremelhor do que a poesia o profundo parentesco entre a literatura e a arte.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos.

Capítulo 20 - A imagem e a palavra.São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495.

A característica básica do espírito medieval tardio é o seu caráter predominantemente visual. Este estáligado de maneira íntima ao atrofiamento das ideias. O pensamento se dá a partir de concepções

visuais. Tudo aquilo que se quer expressar é acomodado em termos visuais. A absoluta falta de conteúdointelectual das representações alegóricas ou poemas podia ser tolerada porque a satisfação situava-setoda naquilo que se tinha visto. A tendência de reproduzir o imediato externamente visível encontrou

uma expressão mais forte e mais absoluta nos meios pictóricos do que nos literários. E do mesmo modo,uma expressão mais forte pelos meios da prosa do que pelos da poesia. Por isso a prosa do século XV, em

muitos aspectos, se situa como um meio termo entre a pintura e a poesia. Todos os três possuem emcomum a elaboração irrefreada das particularidades, a qual contudo, conduz a um realismo direto na

pintura e na prosa, realismo que a poesia desconhece e não tem nada melhor a dispor.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 494-495.

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Na pintura a reprodução da natureza era de caráter meramente secundário e por isso podia permanecerpura e sóbria. Uma vez que o pano de fundo não era importante para o tema, por não fazer parte doestilo hierático, os pintores do século XV podiam reproduzir um certo grau de naturalidade harmônicaem sua paisagem,, que as rigorosas regras quanto ao tema ainda lhes proibiam na cena principal (…).

Quanto menor for a ligação entre a paisagem e a ideia central, tanto mais harmônica e natural será apintura como um todo.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 20 - A imagem e a palavra.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 504.

As belas-artes, sempre que descem ao nível da caricatura, conseguem somente expressar um limitadosentimento cômico. Reproduzido apenas visualmente, o cômico tendo a tornar-se novamente sério.

Apenas nos casos em que a adição do elemento cômico na representação da vida é muito pequena ―quando não passa de um tempero e não o sabor dominante do próprio prato ―, a imagem consegue

acompanhar o passo da expressão em palavras. A pintura de gênero contém o elemento cômico em seugrau mais fraco.

(…)

Porém, mesmo no caso do gênero, a palavra passa a ter uma dimensão maior do que a da imagem. Elaconsegue reproduzir explicitamente o estado de espírito.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento

dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Capítulo 21 - A palavra e a imagem.

São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 521.

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