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uma situação política do século XXI Bruno Oliveira Maria Helena Cunha Natacha Rena [Orgs.]

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uma situação política do século XXI

Bruno Oliveira Maria Helena Cunha

Natacha Rena [Orgs.]

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A DUO Editorial tem um enorme prazer em apresentar, em meios digi-tais, a publicação Arte e Espaço: uma situação política do século XXI, um dos importantes resultados de organização do conteúdo do curso ho-mônimo realizado em 2014. Tivemos a oportunidade de contar com três alunos estrangeiros e com representantes de dezoito estados das cinco regiões brasileiras, o que enriquece o debate com visões de diversas realidades do País.

A Região Sudeste abarca um número considerável de inscritos (75%) em função de estarmos sediados em Belo Horizonte (MG), e realizamos o curso por meio da legislação municipal de incentivo à cultura, que nos levou ao compromisso de considerarmos, em percentuais, um número maior de vagas para a cidade e para o estado de Minas Gerais. No en-tanto, já na construção inicial da ideia do curso, baseados na lógica da educação a distância e na possibilidade de ampliação do espaço virtual, prevíamos dentro dos critérios de seleção um percentual de vagas que abarcasse pessoas de outras localidades e realidades diversas, incen-tivando a discussão e a construção coletiva do conhecimento capaz de gerar esta publicação ao final dos trabalhos.

Dessa forma, a própria estruturação deste curso já nasceu com a pers-pectiva de publicar seus resultados, levando à organização dos conte-údos produzidos pelos professores e pelo conteúdo gerado durante a sua realização no fórum de discussão, ampliando exponencialmente seu alcance e sua capacidade de multiplicação e reverberação para um grande público. Esta iniciativa significa ampliar a capacidade de circu-lação de conhecimentos específicos para além dos alunos que tiveram a oportunidade de acesso gratuito ao curso, contribuindo para suprir uma deficiência no campo editorial de arte e cultura na contemporaneidade.

Por fim, destacamos que, para a realização de projetos voltados para a formação cultural, estruturada em um curso a distância e em uma publicação on-line, de amplitude nacional, é preciso o desenvolvimento de um trabalho articulado e cooperativo, o que leva à construção de parcerias permanentes e propositivas. Por esse trabalho precisamos agradecer a todos os parceiros, patrocinadores, apoiadores, produtores, monitores, técnicos, professores, coordenadores e, principalmente, aos alunos participantes, que justificam nosso empenho e nosso trabalho.

Maria Helena Cunha DUO Editorial

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Reconsiderar as possibilidades da arte e sua relação com o espaço é um importante desafio que nos apresentam a contemporaneidade e as variadas faces do século XXI. Num tempo de contradições cada vez mais latentes e alto desgaste de vários modelos institucionais estabelecidos, estamos diante de uma sociedade que recusa os limites estabelecidos, sejam eles físicos, geográficos, ideológicos ou de identidade.

Não por acaso, os movimentos sociais e culturais assumem, deliberada-mente, inúmeros papéis, não apenas reafirmando sua posição histórica de enfrentamento da ordem estabelecida. Ponto nevrálgico da crítica, esses movimentos superam o lugar da oposição para se assumirem como protagonistas estratégicos de uma reconfiguração espacial, eco-nômica e criativa em andamento.

Nesse sentido, discutir as múltiplas dimensões, dissonantes ou não, da estreita relação entre arte e espaço numa perspectiva política torna-se fundamental para o entendimento da livre expressão neste século. E, para além da reflexão, esta publicação se oferece como ponto de refe-rência em que se estabelecem diálogos primordiais para esta e futuras gerações.

Este livro apresenta o registro material das discussões entre artistas plásticos, educadores, arquitetos e designers, durante o curso a distân-cia Arte e Espaço: uma situação política no século XXI, da DUO Editorial. No entorno das várias temáticas abordadas, direta e transversalmente, a oportunidade de realimentar de forma contínua o sentido crítico, a visão multidisciplinar e o fortalecimento da cultura por viés diferenciado e transformador, que transcende o fomento como único fator relevante à cadeia produtiva.

Solanda SteckelbergSuperintendente de Cultura do Banco Bonsucesso

Apresentação91 5 Prefácio

Reginaldo Luiz Cardoso | Ricardo Macêdo

2 2 Arte espaço e biopolíticaNatacha Rena

7 6Arte, espaço e comunidade: modos de endereçamento e produção de singularidadeSimone Parrela Tostes

1 0 0 Arte e cotidiano: aproximações táticasPaula Bruzzi Berquó

1 2 8 Arte contemporânea, texturas, territórioIsabela Prado

1 5 4Relações entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atuaisEduardo de Jesus

1 7 4 Artesanias do desejoMarcela Silviano Brandão Lopes

1 9 9Apontamentos sobre educação a distância e construções coletivas de conhecimento: a experiência do curso arte e espaço – uma situação política do século xxPatricia Faria | Maria Helena Cunha

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Este projeto Arte e Espaço: uma situação política do século XXI, apresentado nesta publicação on-line, acontece em um mo-mento de amplo desenvolvimento de práticas interdisciplinares e indisciplinares no campo das artes e do ativismo urbano bra-sileiro. Para abordar essa temática criou-se, primeiramente, o uso de uma plataforma on-line que pudesse ativar discussões envolvendo a arte em seu campo expandido, como um modo constitutivo de espacialidades múltiplas, que possibilite a am-pliação democrática do uso das cidades, assumindo a diversi-dade como presença ética fundamental para a ampliação das relações sociais e políticas territoriais.

Foi objetivo desta iniciativa, entre pesquisadores e professores do Indisciplinar, profissionais da Inspire e outros parceiros, a constituição de um campo teórico que abordasse a potência presente no cruzamento da arte com ações políticas, produ-zindo novos campos de conhecimento, assim como formas hí-bridas de produção de modos de vida no território.

Aposta-se que há um novo sujeito político multitudinário (nem povo, nem massa) que se recusa a participar como artista em processos que, de forma neutra ou alienada, possam simples-mente colaborar com a construção de espaços neoliberais pro-duzidos pelo capitalismo global. A ideia dessa proposta (que agregou um curso a distância on-line e esta publicação digital colaborativa) foi incentivar a constituição de uma cartografia composta por ações artísticas, ou estéticas, fortemente atra-vessadas por conteúdos políticos ativados por uma subjetivi-dade que deseja explicitamente democracia real. Para traçar

arte, espaço e política

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essa cartografia buscaram-se alguns eixos temáticos que pu-dessem criar platôs nos quais surgissem trabalhos e ações que fossem contaminados pelo desejo (do artista ou dos coleti-vos) de produzir de maneira menos autoral e mais colaborativa, muitas vezes anônima, configurando intervenções espaciais mais políticas ou, até mesmo, ativistas. Observa-se e experi-menta-se a existência de uma condição criativa e de produção em redes ubíquas que acontecem de forma mais horizontal, produzindo espacialidades que possibilitam a existência de resistências positivas e afetivas, configuradas por uma lógica que não a das vanguardas combativas. Diferentemente das vanguardas, a grande maioria das referências cartografadas existe muito mais como produção singular-plural performáti-ca, que contamina ou ativa o ato artístico-político e social por meio de ocupações efêmeras, muitas vezes festivas, anônimas ou produzidas horizontalmente.

Esse processo, envolvendo participantes de todo o Brasil, aca-bou por configurar uma cartografia realizada de forma colabo-rativa a partir de textos produzidos pelos professores do curso e da plataforma EAD, o que possibilitou o diálogo cotidiano entre professores e alunos. A cada momento em que um pro-fessor assumia um módulo do curso, a proposta era que todos lessem um texto produzido pelo professor, que o finalizava com três perguntas. Ao longo de 10 dias todos comentavam, respondendo às perguntas, e isto era acompanhado por res-postas e comentários de todos, inclusive do professor. Após a finalização dessa etapa, iniciou-se um trabalho de coleta dos comentários mais significativos aos olhos de cada um dos professores para que estes compusessem o conteúdo da pu-blicação do livro digital. Todos os textos dos professores que foram usados como base para as discussões cotidianas estão aqui presentes, assim como um prefácio redigido por alguns alunos selecionados como mais ativos pelos professores e pos-teriormente convidados para escrever conjuntamente na orga-nização desta publicação. Também há um texto que finaliza o livro e analisa todo o processo do curso EAD, que vem sendo adotado pela Inspire ao longo dos últimos anos.

O conteúdo do curso Arte e Espaço: uma situação política do sé-culo XXI foi estruturado de maneira transversal, assumindo-se que a produção artística não está mais contida exclusivamente em uma esfera particular e limitada. Torna-se fundamental, portanto, perceber as práticas disciplinares e técnicas ante-riormente associadas ao campo da arte que não mais compor-tam a produção multitudinária. O primeiro debate, proposto para a turma pela professora Natacha Rena sobre Arte, es-paço e biopolítica, tem como base a percepção da metrópole como palco de disputa: seria nesses territórios, cujo controle dos corpos e as ações biopolíticas se articulam de maneira intensiva e estruturante, que se poderiam perceber expressões potentes de resistência para além dos conceitos de represen-tação e identidade. O texto afirma, ainda, que “há uma constru-ção em tempos táticos e estratégicos de resistências mundiais contra o urbanismo neoliberal, que se configura performati-camente nas ruas e nas redes, utilizando ao mesmo tempo processos destituintes (via ação direta, manifestações, ações judiciais) e constituintes (via ocupas e acampadas, produção de cultura, arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida)”.

O módulo seguinte, articulado pela professora Simone Parrela Tostes sobre Arte, espaço e comunidade: modos de endereça-mento e produção de singularidade, se desenvolve a partir das noções de comunidade e diferença. É necessário perceber, nesse ponto, como diversas ações desenvolvidas em prol de uma ideia de comunidade são articuladas como estratégicas para interesses corporativos e institucionais. A dimensão au-têntica, potente e livre do compartilhamento do comum é tanto o vetor de desvio e subversão da lógica mercadológica quanto o ponto de captura utilizado pelo capital. A ideia de participa-ção, configurada como um processo com metas, propostas e expectativas bem definidas, é um exemplo desse esvaziamento da capacidade de criar e produzir diferença da comunidade, reduzindo a potência do outro a um receptor de comandos por parte de uma determinada ordem e determinado poder. E sen-do possível, ainda assim, operar nas brechas das estruturas de controle, a partir de reinvenção e reconstrução de novas relações.

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Nesse sentido, a professora Paula Bruzzi, no texto Arte e coti-diano: aproximações táticas, discorre sobre as práticas comuns e a dimensão política: o cotidiano, em contraponto a um do-mínio estratégico da vida, se articula a partir de uma potência tática, sem limites de dentro e fora. Ao rastrear diversas ini-ciativas de apropriação das superfícies urbanas, das ocupações coletivas e graffitis anônimos à produção dos iconoclassistas, podemos encontrar iniciativas que não se reduzem a lógicas de achatamento da pluralidade e das diferenças, e contribuem para a ativação de redes de partilha de um mundo comum.

Em Arte contemporânea, texturas, território, a professora Isabela Prado contextualiza o debate sobre especificidade e orientação aos sites no campo da arte. Nessa perspectiva tor-na-se necessário considerar o território com suas dimensões tanto simbólicas quanto materiais: ao apresentar obras de ar-tistas como Gabriel Orozco, Mona Hatoum, Cildo Meireles e Francis Alÿs, pode-se perceber maior complexidade no debate desse lugar da arte em relação às ordens de homogeneização do território e à crítica institucional.

O penúltimo módulo do projeto propõe uma discussão sobre as interações entre a tecnologia e o campo da arte. Relações entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atu-ais, do professor Eduardo de Jesus, constrói um panorama dessas aproximações, desde os procedimentos fotográficos aos instrumentos de comunicação a distância e às redes so-ciais. Também relevante é o processo de subversão desses instrumentos e seus usos como suportes artísticos por artistas como Marcel Duchamp, Walter Ruttman e René Clair. Com os novos suportes e processos artísticos, desestruturando-se as formas tradicionais das obras de arte, “tornou-se necessário reivindicar outras formas de compreensão” para as mesmas: provocavam outro tipo de experiência, ainda mais complexa, do mundo e da arte.

Por fim, em Artesanias do desejo, a professora Marcela Silviano Brandão discute as expressões menores das respostas coti-dianas, “subversivas em relação àquelas designadas pela ci-ência”. Em contraponto à técnica e às construções de saberes

maiores, a experiência cotidiana se apresenta como um escape a um sistema político-corporal conformado pelo capitalismo cognitivo. “O que é produzido [...] não são apenas bens mate-riais, mas relações sociais e formas de vida concretas” (NEGRI; HARDT, 2005, p.135). Alerta, ao final, para os riscos de captura por processos de capitalização da experiência e da vida: cons-tituir linhas de fuga torna-se, portanto, um exercício essencial.

Em tempos de capitalismo cognitivo, criativo, flexível, conse-guiu-se levantar, durante todo o processo, uma miríade de ações potentes que constituem os espaços das cidades em seu cotidiano. Acreditando-se que, principalmente nas metrópoles contemporâneas, detectam-se práticas biopolíticas glocais que acabam por gerar ações portadoras de experiências biopoten-tes e de estruturas que se instauram para além dos limites do público e do privado, ou seja, dentro de uma possibilidade de imaginar-produzir o espaço passando pela produção intensiva do comum. A lógica seria a de um pensamento a partir de um ser-em-comum que não possui relação com o sentido de co-munhão ou com uma identidade que é única e exclusiva, mas com a exata inexistência de um discurso homogeneizador e o próprio compartilhamento da ausência deste fundamento. Finalmente, incentivou-se pensar a importância da arte como vetor fundamental na configuração desses espaços contem-porâneos a partir do encontro com temas envolvendo política, comunidade, modos de fazer do cotidiano (design e artesanias), tecnologia e território urbano.

Portanto, esperamos que esta publicação possa contribuir para a ampliação do debate que intencione ativar e ampliar o caráter político e transformador da arte conectada ao território em constante disputa.

Bruno OliveiraNatacha Rena

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Querida imaginação, o que amo, em ti, é que não perdoas.(André Breton)

Etimologicamente, prefácio vem do latim, praefatio, que sig-nifica preâmbulo, prólogo, aquilo que se diz no princípio. Indo mais longe, Otto Maria Carpeaux, em seu ensaio O artigo so-bre os prefácios, chegou ao ponto de dizer que o prefácio tinha alcançado foro de gênero literário independente. Isso é uma verdade se formos ao Prefácio Interessantíssimo, que Mário de Andrade fez, em 1921, para sua obra Paulicéia Desvairada. Lá, um dos pais do modernismo brasileiro abre o prefácio decla-rando que estava fundado o “desvairismo”. Isso em um mo-mento em que ninguém compreendia bem o que era o dadaís-mo, o surrealismo procurava seus rumos, o cubismo era visto com espanto e inúmeros outros “ismos” ainda estavam por se fazer. Mas, afinal, de que se tratava tal “desvairismo”? De uma proposta de abordagem artística, a qual, rompendo com as categorias aristotélicas da natureza — a matéria, a energia, o espaço e o movimento —, procurava preencher as lacunas do mundo de maneira sincrônica. Essa visão viria a estar mui-to próxima daquela desenvolvida por Anne Cauquelin, já na virada do segundo milênio, decupada dos estoicos — filósofos pós-aristotélicos — e na qual define os incorporais: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível. É através dessa abordagem que Cauquelin acredita que possamos discutir, com melhor chave de percepção, a Arte Contemporânea, toda aquela criada

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depois da década de 1970. Assim, frequentando um dos incor-porais, seja ele qual for, estaremos abordando os outros, dada a sua sincronicidade. Dessa maneira, se abordarmos o vazio contido em uma obra — por exemplo, nas pinturas brancas da última fase de Tomie Ohtake —, estamos também abordando, conscientes ou inconscientes do fato, o espaço, o exprimível e o tempo. Essa era a proposta provocadora e avant la lettre do Prefácio Interessantíssimo que, em seu final, conclama: “E está acabado o Desvairismo”.

Assim sendo, falemos do espaço, tendo como linha de raciocí-nio aquela proposta por Cauquelin. A rigor, o espaço não é um lugar. A priori é uma dimensão física — uma categoria elemen-tal da Física — que apresenta possibilidades de acomodar cor-pos, mas não quaisquer corpos: somente os corpos políticos. Para um corpo ser político presume-se que este seja pleno de desejos — wishful thinking. Desejos tornando-se práticas dis-cursivas procuram se realizar em ações, em ações concretas sobre a realidade. Isso é o que nos diz o princípio do prazer: uma realidade pronta para ser moldada, criada de acordo com o desejo de cada um. O desejo de cada um, sobreposto ao de-sejo de outros, cria uma esfera de interesses, por definição, conflituosa. O que se segue ocorre, necessariamente, dentro do princípio de realidade. Essa esfera de interesses e confli-tos estabelece um espaço, um território. Ou seja, um espaço só passa a existir como território a partir de seu uso, de sua possibilidade de ter alguma serventia aos interesses dessa gama de interesses difusos que é o que define o lugar. Bem, se há interesses em jogo, estamos a falar de política que é o exercício de ações que buscam atenuar e, no limite, sobrepujar o interesse do outro.

Se há um lugar, há um território. Se for plural, territórios. Cada território vai criando uma cultura política, econômica, social, etc., e este movimento cultural unitário, eventualmente, pode lançar um olhar para uma determinada cultura alheia e, por interesses — agora coletivos —, pode tentar sobrepor-se ao interesse alheio. Estamos agora no campo do choque cultural, o qual, qualquer que seja o resultado do mesmo, provoca uma

des/reterritorialização que é o reposicionamento/deslocamen-to do desejo: da subjetividade individual à subjetividade coletiva.

Assim, política, economia e sociedade são termos facil-mente encontrados em boa parte dos textos sobre Arte Contemporânea ou nas proposições de variados artistas da contemporaneidade. Escritas preenchidas por discursos infla-mados que alavancam críticas e instigam reflexões sobre os problemas sociais do Brasil e do resto do mundo. Por meio de uma variada gama de linguagens e procedimentos artísticos, as contradições do paradigma econômico atual — que se faz

“fazer” sem que se faça percebido — são esgarçadas, sofrem uma prospecção. A palavra prospecção designa em geologia a busca em depósitos minerais na tentativa de descobrir filões e jazidas, um tesouro subjacente, escondido. Metaforicamente, uma prospecção, muito acima dos valores que pode revelar, é um processo de escavar o solo, de debulhar, de procurar en-tender suas situações passadas, suas crises, seus colapsos e relacionar todo esse histórico com o tempo presente.

Olhando por esse ângulo, os termos que configuram o grupo de estudo Arte e Espaço: uma situação política do século XXI ad-vieram de uma prospecção, de demandas dos pesquisadores, coordenadores e alunos do grupo, mas, antes de tudo, advie-ram também de uma percepção global de enfrentamento de situações e categorias que, por vezes, reduzem e regulam a vida de todos nós: a comunidade, o cotidiano, o território, a tecnologia e o design. Isso nos leva a uma questão: de que maneira a Arte Contemporânea e o pensamento contemporâ-neo estão a lidar com a estrutura política, econômica e social atual? De que maneira a arte e o pensamento atravessam as situações postas dentro dessas esferas? A quais estratégias e espaços os cidadãos comuns hoje têm direitos (os quais não acontecem no espaço, mas sempre no lugar)? Alguns pes-quisadores e artistas nos dizem que não cabe à arte inventar proposições pragmáticas e/ou voluntaristas e que o lugar da arte está em sua vacuidade, em seu fora, no invisível indispo-nível ao olhar. Isso implica uma problemática muitos graus acima da complexidade descrita anteriormente: até que ponto as proposições artísticas, que se prestam ao enfrentamento e

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ao trabalho colaborativo especificamente, que buscam dar voz às demandas políticas, sociais ou econômicas nos territórios (bairros, comunidades, cidades, metrópoles, etc.), respondem, realmente, às necessidades de empoderamento do outro nes-ses espaços onde se inserem?

Essas e muitas outras questões foram surgindo em nosso grupo de estudo quando o solo da arte atual e seu contexto começaram a ser debulhados, revelando-nos evidências de um colapso paradigmático que, a seu modo, é o retrato de nosso tempo. Nesse sentido, compreender o que nos desvela essas subcamadas torna-se uma postura de enfrentamento, e nisso reside tanto o enigma quanto uma nova possibilida-de de horizontalizar práticas (diferentemente das revoluções clássicas), desierarquizar o estatuto da obra individual, auto-nomizar neogrupos e empoderar o indivíduo, estabelecendo aproximações entre arte e cotidiano, na descoberta de espaços festivos, mergulhado nas surpresas, nos convívios, vivências, experiências, conflitos, vexames, ou seja, nos erros e acertos próprios do vivido.

É como se, aos poucos, fôssemos tomando consciência dos in-corporais, uma vez que, como quer Cauquelin, viemos frequen-tando-os há muito tempo, porém sem o saber. Isso nos coloca diante de uma percepção de outras qualidades do espaço que são de outra ordem. E, assim, se formos observando a cidade, qualquer que seja ela, há inúmeras camadas, hierarquias, etc., deste espaço, numa mescla contínua que vai além do público e do privado. Essa, então, é a nossa problemática. E qual é a questão que ela guarda com a arte?

O espaço não era uma questão para os gregos. A questão per-tinente para os gregos era o tempo. Por que não o espaço? O controle do espaço na polis fazia-se pelo olhar. Até onde a vista, o olhar, alcançasse, tudo era a polis. Isso fez com que os gregos se tornassem presas fáceis para os invasores bárba-ros, pois não passava em seu imaginário vivenciar um espaço imaginado, abstrato, puramente representacional. Esse foi um dos limites da democracia direta em seus primórdios. Com a supremacia dos romanos, foi colocada a questão do espaço

imaginado: como obter lealdades de povos tão distantes, de culturas tão díspares, sob a égide romana? Povoando o espaço com símbolos arquitetônicos, alegorias, emblemas, tudo que imaginariamente levava a um centro. Com o fim do império Romano, essa questão foi posta de lado, inaugurando assim a ‘mesmidade’ do mundo. Essa só foi quebrada no Renascimento, em que a questão do tempo e do espaço foi recolocada con-juntamente. Contudo, lentamente, a categoria tempo foi tor-nando-se hegemônica. Esse foi o mote da modernidade. Com a pós-modernidade, sob o cadáver do tempo, priorizou-se o espaço. E isso se fez através da compressão espaçotemporal e da invasão do conteúdo das Artes à forma da Arquitetura.

Como veremos nos textos apresentados nesta publicação, a arte tem naturalmente um conteúdo político, uma vez que este, obrigatoriamente, como disse o crítico Mário Pedrosa, é condizente com a consciência social de cada época. Ou, se quisermos ir mais adiante, com a cotidianidade, conceito caro ao crítico Karel Kosik, que nos revela a especificidade, locali-zação, identidade e, portanto, uma maneira de existir. No mun-do contemporâneo há uma espécie de convergência entre as formas artísticas performáticas e formas propriamente políti-cas. É essa cotidianidade, como nos chama a atenção Jacques Rancière, que forma o comum, uma espécie de aparição de uma democracia estética que se transforma, nas ruas, em democracia política. É só abrirmos os canais midiáticos para percebê-la: uma democracia estética que ainda não está con-figurada porque é completamente nova, e que traz em seu bojo a ideia de que o espaço, o lugar, cabe a todos e não a alguns. Interrogar o lugar, a identidade, o pertencimento.

A questão é que a Arte Contemporânea passa pela cidade, pelo urbano, pelas influências que o ambiente urbano causa na arte e vice-versa. Uma vez perdida a crença ingênua na natureza, a arte vai se amparar quase que exclusivamente no urbano. Se historicamente a cidade foi inventada, antes de dizer sobre os problemas da cidade seria importante dizer: o que pode ser a cidade? Lugar dos desejos. Se desejos são tão subjetivos, por que não se pensa a cidade como o espaço dos sujeitos? Ou melhor, como espaço de novos processos de subjetiva-

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ção e, consequentemente, de novas reconfigurações das subjetividades?

Constituição de zonas de desprogramação e chances de levante das pessoas, dentro dos gaps, das zonas autônomas temporárias ou não, que liberam áreas físicas e/ou subjeti-vas: contra-nets (Wikileaks, Pirate Bay, Hidden Wiki, 4chan, etc.), deep webs (Onion, Marina’s, Surface Web, Bergie Web, The Fog, etc.), espaços comuns (Espaço Comum Luiz Estrela - BH, Wig Nuts - EUA, Rede Aparelho - Belém, Coletivo Puraqué - Santarém, Espaço Ystilingue - BH, Park Fiction - Hamburg, Ala Plástica - Argentina, etc.), estabe-lecendo atravessamentos nas bordas dos conflitos e no núcleo da singularidade, aqui entendida como aquela que é indesculpável para a hegemonia, pelos ruídos que causa na superestrutura. Desprogramação do indivíduo a partir dos estilhaços do solo prospectado e emergência do sujeito.

Cintila dessa forma, em vários espaços urbanos, um ideário a ser divulgado, uma rebelião, uma refundação do “desvai-rismo”, não das massas e dos corpos, mas, acima de tudo, uma “rebelião do pensamento”, como nos diria FW, rapper e ex-detento do Carandiru.

Reginaldo Luiz Cardoso*

Ricardo Macêdo**

Belo Horizonte | Ouro Preto, 15 de abril de 2015

* Reginaldo Luiz Cardoso

Graduado em psicologia

(FAFICH-UFMG), mestre em ciência

política (DCP-UFMG) e doutor

em planejamento urbano e regional

(IPPUR-UFRJ). Paralelamente

às atividades acadêmicas desenvolve

trabalhos em fotografia, tendo

participado de diversas exposições

coletivas no Rio de Janeiro (RJ) e

em Belo Horizonte (MG).

** Ricardo MacêdoProfessor e

pesquisador de Artes Visuais.

Mestre em Arte e Tecnologia da

Imagem pela UFMG, Design

de Interiores pelo IFPA (antigo

CEFET) e Artes Visuais pela UFPA, além de curioso e

autonomista em tempo integral.

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INTRODUÇÃO

A metrópole é para a multidão o que a fábrica era para a classe operária industrial.

(Michael Hardt and Antonio Negri)

As políticas públicas neoliberais, impostas pelo Estado-Capital sobre o território urbano, configu-ram evidências claras de como a cidade vem se tornando um palco de disputa territorial. Se a fá-brica configurava o campo de exploração do traba-lho até os anos 1970, atualmente o Estado-Capital extrai a mais-valia em todo o espaço. Em tempos de capitalismo cognitivo, no qual a tendência da produção cotidiana no mercado vem construindo redes de trabalho voltadas para setores criativos e sociais, as biopolíticas implementadas vão con-solidando uma dinâmica de produção do espaço complexa, realizando processos de exclusão so-cial em diversos níveis. Compreender essas novas estratégias de políticas territoriais é fundamental para mapearmos os campos de luta mais impor-tantes nas nossas cidades.

O que está em disputa, a partir dos movimentos multitudinários detonados desde 1999 em Seatle (USA), e que ganharam força no Brasil a partir de junho de 2013, é, principalmente, o urbano. Urbano

QUESTÃO 1 Existe a possibilidade da sobrevivência de uma produção artística biopotente e transformadora quando esta pertence ao sistema da arte, partici-pando do esquema galeria, bienais e feiras, circu-lando como produto de colecionador e funcionando como investimento dentro da lógica do capitalismo rentista? É possível fazer a arte potencializar um discurso e uma ação política sem simplesmente naturalizar as lutas e estetizá-las dentro de um campo de elite próprio do capitalismo rentista, cognitivo e criativo?

Ricardo Macêdo (24 de outubro de 2014)Caros colegas, achei esse vídeo com 1h37min de fala do Antônio Negri no SESC Pompeia, em julho de 2014. Muito bom! Multitude - A demo-cracia da multidão Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tPvSKiNKyds

Reginaldo Luiz Cardoso (24 de outubro de 2014)Acho que primeiro deveríamos pensar a respei-to do papel da arte na sociedade. Pensando na aurora da humanidade, Hegel dizia que o ho-mem (a consciência de si mesmo), deparando-se com obstáculos do mundo, criou esquemas de defrontamento e de superação dos mes-mos. Diante do enigmático, defrontou-se com o crer e tentou (tenta) superá-lo com o mito,

arte, espaço e biopolítica1

1. Parte deste artigo foi apresentada no texto: A performance dos corpos

multitudinários em choque com a propriedade privada

do Estado-Capital, no evento ENANPARQ e no

projeto Escuela de Garaje, do grupo Laagencia

de Bogotá.

NaTaCHa RENa* aqui entendido como um amplo platô que envol-ve as ações no espaço-tempo (públicos, privados, comuns), dissolvendo a noção dicotômica cidade X campo, rua X rede, casa X trabalho. Segundo Hardt e Negri (2009), num texto intitulado Metrópoles, a metrópole é para a multidão o que a fábrica era para a classe operária industrial, o que poderia nos induzir a pensar nas metrópoles como terri-tórios conectados nos quais as ações biopolíticas e de controle dos corpos e das espécies se dão com maior intensidade. Ao mesmo tempo, poderíamos pensá-las como o lugar no qual a biopolítica das re-sistências primeiras são também potentes, possibi-litando encontros que, ape-sar de todas as estratégias para evitá-los, se dão com maior ênfase em processos constantes de contamina-ção. A metrópole, para Hardt e Negri,

poderia ser consi-derada em primeiro lugar o esqueleto e a espinha dorsal da multidão, ou seja, o entorno urbano que sustenta sua ativida-de e o entorno social constitui um lugar e um potente repertó-rio de habilidades no terreno dos afetos, das relações sociais, dos costumes, dos desejos, dos conhe-cimentos e dos cir-

* Natacha Rena: Graduada em Arquitetura e

Urbanismo pela UFMG (1995), mestre em

Arquitetura pela UFMG (2000), doutora em

Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo (2006).

É professora adjunta da Escola de Arquitetura da

UFMG e pesquisadora dos grupos PRAXIS

e INDISCIPLINAR do Departamento de Projetos

da Escola de Arquitetura da UFMG.

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cuitos culturais [...] a metrópole é a sede da produção biopolítica porque é o espaço do comum, das pessoas que vivem juntas, compartindo recursos, comunicando, inter-cambiando bens e ideias. (HARDT; NEGRI, 2009, p.255-256)

Mas sabemos que a metrópole é também o lugar, por excelência, da expropriação desse comum pro-duzido no encontro e na criação das novas formas de vida e de luta. Em tempos de Brasil maior2, séti-ma economia mundial, celeiro para oportunidades de expansão do capitalismo global, torna-se cada dia mais evidente que é nas metrópoles (para além da exploração dos bens naturais comuns como minérios e petróleos) onde há uma tentativa de expropriação do comum pelo Estado-Capital com maior ênfase e violência. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte são exemplos de cidades globais eleitas para sediar grandes eventos e para sofrer grandes transformações territoriais via projetos urbanísticos neoliberais em grande escala, e têm se tornado, ao mesmo tempo, celeiros de lutas urbanas e de resistências radicais, conformando corpos insurgentes multitudinários que vêm se ex-pandindo e contaminando, não somente os grupos políticos oficiais e não oficiais já existentes, mas trazendo para dentro das lutas artistas, pensado-res, professores universitários, grupos organiza-dos e desorganizados das favelas, advogados e, inclusive, políticos de esquerda que acabam por se verem pressionados para assumir lutas des-confortáveis politicamente.

Nesta conjuntura política de revoltas conectadas em rede, pergunta-se: o que pode a arte?

2. Brasil maior no senti-do de que é um país que

hoje é a sétima economia do mundo e se opõe aos

devires minoritários para crescer.

à procura de satisfazer suas dúvidas. Assim foi: diante do últil, defrontou-se com o fazer e tenta superá-lo com a técnica, a manipulação do mundo; diante do inteligível, quis saber e superar esse obstáculo com a ciência. O maior obstáculo à jornada dessa consciência de si mesmo (história) foi a lacuna, cujo esquema de defrontamento ocorre através do criar e no qual se tenta romper através do esquema de superação que é a arte: o fazer algo novo no mundo. A arte, portanto, é fruto dessa dialé-tica, o fio condutor da história feita por e para os homens. Marx, um hegeliano por excelên-cia, notou então que, no capitalismo, todas as diferenças de qualidade entre as mercadorias desaparecem diante do dinheiro, o que equi-vale a dizer que o capitalismo faz da obra de arte uma mercadoria. Se a premissa de Marx é verdadeira, então não há saída possível? O mesmo Marx tinha como lema preferido “du-vidar de tudo”. Etimologicamente, estética tem duas raízes: aisht, que significa sensação, sentir; e ethos, que signifca costume, moral.

CaPITaLISMO COGNITIVO E BIOPOLÍTICa Na METRÓPOLE CONTEMPORÂNEa

O sistema capitalista global contemporâneo, que conecta indissociadamente Estado e empresas, pode ser também denominado de Império ou Neoliberalismo. Diferente do capitalismo fordista, no qual a mais-valia era prioritariamente explora-da via força de trabalho nas fábricas, atualmente se dá via capital em expansão dirigindo a explora-ção para todo o território metropolitano, dentro e fora das fábricas. Além disso, o tempo do trabalho envolvido na produção do capitalismo industrial referia-se ao tempo da jornada oficial das leis tra-balhistas. Atualmente, o tempo de expropriação do capitalismo pós-fordista, imperial, neoliberal ocupa todo o tempo de nossas vi-das. A exploração capitalis-ta atual passa pela captura dos desejos e, neste sentido, todo um sistema simbólico abduz a subjetividade e nos torna trabalhadores e con-sumidores obedientes, den-tro de um sistema capitalis-ta financeiro. Assistimos ao surgimento de um novo ho-mem: o homem endividado. Além de vermos configurar (via Estado-Capital) a cons-trução de sujeitos dóceis (próprios da sociedade dis-ciplinar em que o controle incidia – e ainda incide – di-retamente sobre os corpos), estamos imersos em práti-cas de controle mais sutis e flexíveis, uma tomada da

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Portanto, pode-se dizer que esté-tica significa a moral ou o costume da sensação e do sentimento. Entre 1789 e 1799, na França, tudo aquilo que estava indigesto transformou-se em possibilidades inumeráveis, ‘possibilismo’, cenário onde tudo parecia possível num grande ar-remedo de suspensão da dúvida. Schiller estava lá. Em um fragmen-to, dizia: “no povo tudo jogo cênico”. Naquele momento indigesto (cruel, crudelis, cru, não-digerido, daí indi-gesto) a ‘estética’ foi outra além da representação. Tudo confuso e vago. Artaud, quando escreve o primeiro manifesto do teatro da crueldade, também é acusado de confuso e vago. “Se o signo da época é a con-fusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as ideias, os signos que são a representação dessas coi-sas” (ARTAUD). Voltando a Hegel: A consciência capta o mundo, ne-gando-o, estabelecendo uma distin-ção. Não se confunde com o mundo porque se não houvesse diferencia-ção não haveria nem um nem outro. Esse é o campo de possibilidades da arte. E da política.

subjetividade que nos torna controlados biopoliti-camente. Segundo David Harvey,

o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liber-dades e capacidades empreendedoras indi-viduais no âmbito de uma estrutura institu-cional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e pre-servar uma estrutura institucional apropria-da a essas práticas; o Estado tem de garan-tir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro [...] o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às manei-ras cotidianas de muitas pessoas interpre-tarem, viverem e compreenderem o mundo. O processo de neoliberalização, no entan-to, envolveu muita destruição criativa, não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologias, dos modos de vida e de pensamento, das ativi-dades reprodutivas, das formas de ligação à terra e dos hábitos do coração. (HARVEY, 2012, p.12-13)

Para Hardt e Negri (2001), esse sistema neoliberal que atua na lógica imperial, em contraste com o imperialismo, não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barrei-ras fixas, pois é um aparelho de descentralização e desterritorialização global “que incorpora gra-

dualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão, já que o Império administra entidades híbridas, hierarquias flexíveis e permutas plurais por meio de estruturas de comando regula-doras” (HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15).

Mas esse sistema global enredado pelo Estado-Capital, baseado na democracia representativa, no qual nos deparamos com o Império, não deveria, de modo algum, segundo esses autores, nos deixar saudosos das antigas formas de dominação, porque esta transição para o Império e seus processos de globalização e mundialização conexio-nista nos oferece novas possibilidades de redes insurgentes que possibilitam a ampliação das lutas pela libertação. Essas singularidades globais que vão surgindo como resistência ao neolibe-ralismo vêm tecendo uma nova forma de luta que envolve o que chamam de multidão. Para os pensadores, essas forças criadoras da multidão que sus-tentam o Império são capazes também de constituir “um Contra-império, uma organização política alternativa de flu-xos e intercâmbios globais. Os esforços para contestar e subverter o Império, e para construir uma alternativa real, terão lugar no próprio terreno imperial” (HARDT; NEGRI, 2001, p.12-15). Os auto-res afirmam que é na metrópole que as novas configurações de resistência se configuram com maior intensidade, e em tempos de produção biopolítica em que as forças produtivas que movem o capitalismo pós-fordista, trabalhando principalmen-te com ideias, afetos e comunicação, não estão mais simplesmente concentradas nas fábricas, mas, sim,

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espalhadas por terreno social urbano, ou seja, por toda a metrópole, lugar privilegiado onde as múl-tiplas forças residem e interagem (HARDT; NEGRI, 2014).

De qualquer forma, para pensar o urbanismo e a produção do espaço no sistema neoliberal impe-rial, é preciso estar atentos à tomada do Estado pelo capital, que agora atua de dentro dos pro-cessos políticos institucionais e por meio de me-canismos de gestão pública, gerando políticas e instrumentos urbanísticos que fazem parte, muitas vezes, do próprio Estatuto da Cidade3 . Atualmente, um dos exemplos mais claros disso é o instrumen-to denominado Operação Urbana Consorciada4 , uma espécie de Parceria Público-Privada que determi-na as regras do jogo para o uso e a construção do espaço, gerando territórios determinados por manifestações de interesse do próprio mercado, conformando territórios predefinidos para inves-timentos e projetos que gerem mais-valia para o Estado através de títulos5 . Visivelmente uma pas-sagem das formas de exploração da mais-valia que se dava na fábrica em tempos de capitalismo fordista, e agora se dá no território urbano geran-do lucro via renda, dentro da lógica do capitalismo financeiro pós-fordista ou rentista.

Do ponto de vista urbanístico, essas políticas pú-blicas se dão em diversos níveis e, mesmo quando não há o uso explícito destes instrumentos neo-liberalizantes, a lógica das gestões das cidades contemporâneas, tanto no mundo quanto no Brasil, seja nos governos de esquerda, seja nos governos de direita, é a lógica da cidade-empresa, da es-peculação imobiliária, da gentrificação (enobreci-mento e expulsão dos pobres que não conseguem viver mais nas áreas valorizadas), das políticas de revitalização (substituindo vidas pobres por vidas ricas e turismo), das intervenções utilizando equi-

3. Estatuto da Cidade - Lei 10.257/00, que estabelece

diretrizes gerais da política urbana.

4. Operação Urbana Consorciada - OUC é o

conjunto de intervenções e medidas coordenadas

pelo Poder Público com a participação dos

proprietários, moradores, usuários permanentes

e investidores privados, com o objetivo de alcançar

em uma determinada área transformações

urbanísticas estruturais, melhorias sociais e

valorização ambiental, podendo ocorrer em

qualquer área do município.

5. É importante observar que não é somente no

universo do planejamento urbano e dos grandes

projetos nas metrópoles que o neoliberalismo

domina as políticas públicas. Além disso,

essas políticas neoliberais ocuparam, no Brasil, o

Ministério da Cultura, por exemplo. Não somente

com as políticas das leis de incentivo à cultura, que partem do princípio de que o mercado decide o que vai ser financiado e produzido

culturalmente no País, mas também criando

políticas culturais que entendem a cidade como

empresa e a produção cultural que acontece nela como mercadoria através

da lógica das cidades criativas e da economia

criativa.

Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)Aproveitando que essa pergunta foi a que mais pessoas estão acompanhando, queria escrever algumas coisas sobre o texto que a gente leu: “homem endividado”. Gostei dessa nova evo-lução do homem. No final do século XIX começou a se falar do homo faver como o homem ligado à produção, e, por contrapo-sição, na década de 1930, Huizinga falou do homo ludens como resposta a esse homo faver. Um homem que vivia para o lazer, um homem que nunca chegou a existir. É engraçado como hoje, embora esse homo ludens tivesse existido, do mesmo jeito vira-ria homo endividado devido à transformação do lazer em objeto de consumo. O mercado da arte e o negócio da produção cultu-ral transformam o lazer em um luxo. Assistir a um show ao vivo no Brasil é difícil para a grande maioria da população pelos preços dos ingressos, iguais aos dos ingressos nos museus ou outros depósitos de cultura. “[...] no Brasil, tanto os arquitetos e urbanistas [...] contribuíram e contribuem para a realiza-ção das Parcerias Público-Privadas e para a privatização dos bens comuns”. No meu ponto de vista, os arquitetos foram os grandes cúmplices da corrupção imobiliária (como arquiteto tenho vergonha disto), na Espanha. Para qualquer construção é preciso a assinatura de um arquiteto, então, embora a ideia de muitos arquitetos não fosse ajudar para esse “boom imo-biliário”, se transformaram em cúmplices das construtoras.

Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)Muitas das pessoas no fórum falaram de alguns artistas que produzem uma obra ligada ao ativismo, um jeito de se posi-cionar frente ao mundo das galerias e ao mercado da arte, mas inserido neste mesmo mundo. Pensei que tem algo a ver com parte do texto em que se fala da metrópole como figura perversa que aliena e transforma as pessoas em consumi-dores, mas ao mesmo tempo é o espaço onde surge a luta contra esse sistema. Esses artistas estão inseridos no mundo do mercado da arte, mas lutando desde dentro. Porém, achei que a pergunta tinha mais a ver com uma arte produzida fora desses circuitos, uma arte ligada à multidão, que não tem um nome individual ligado à obra de arte, e como ela pode se in-serir sem perder a qualidade de biopotente e transformado-ra. Eu me lembrei, por exemplo, da acampada da “Plaza del

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pamentos culturais (museus, bibliotecas, salas de música e afins), do planejamento estratégico que faz surgir novas centralidades urbanas para que o capital se expanda para novos territórios e possa fazer circular recursos dentro do sistema emprei-teiras-bancos. Essas lógicas encabeçam o eixo da gentrificação de grandes regiões, principalmente nos centros das cidades que já detêm meios de transporte e serviços abundantes. E, perversa-mente, em muitos momentos, é utilizando o dis-curso da arte e da cultura, da melhoria do espaço, do embelezamento e da segurança que o Estado-Capital com seu biopoder (poder sobre a vida) avança por toda a cidade, expropriando os bens comuns já existentes ou em processo de formação.

Segundo Pelbart (2011), o biopoder está ligado à mudança fundamental na relação entre poder e vida. Na concepção de Foucault, o biopoder se in-teressa pela vida, pela produção, reprodução, pelo controle e ordenamento de forças. A ele compe-tem duas estratégias principais: a disciplina (que adestra o corpo e dociliza o indivíduo para otimizar suas forças) e a biopolítica6 (que entende o homem como espécie e tenta gerir sua vida coletivamente). Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de maneira integral, a partir da captura, pelo poder, do próprio desejo do que dela se quer e se espera, e assim o conceito de biopoder se expande para o conceito de biopolítica. Há uma diluição dos li-mites entre o que somos e o que nos é imposto, à medida que o poder atinge níveis subjetivos pas-sando a atuar na própria máquina cognitiva que define o que pensamos e queremos. Segundo o au-tor: “Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder” (PELBART, 2003, p.58), que podemos chamar de biopolítica.

6. Termo lançado por Foucault, em meados dos anos 1970, se referindo ao

momento em que a vida das populações e a gestão

desses processos são tomadas pelo poder como

objeto político.

Sol”, em Madrid, durante os movimentos do 15M na Espanha, que, quase um ano depois de ser tirada pela prefeitura, rece-beu o Prêmio Europeu de Espaço Público Urbano 2012, um prêmio ligado ao mundo da arquitetura e do urbanismo convencio-nais. Isso me faz pensar que pode existir uma arte transformadora que pertence ao sistema da arte, mas sem ter essa pertença como um objetivo da obra, quer dizer, pode existir uma produção (artísti-ca ou não) ligada à multidão, de autoria compartilhada, colaborativa ou inclusive anônima, que a posteriori seja absorvida pelo sistema, como obra de arte, às vezes tirando a ideologia da mesma e, outras, colocando valor nelas.

João Paulo de Freitas Campos (23 de outu-bro de 2014)Vou comentar uma coisa bastante pon-tual. A produção artística pode - e deve

- proporcionar a construção conectiva de novas potências e novas possibilidades de vida e expressão - à margem do mapa biopolítico oficial -, seja no circuito infor-mal das novas insurgências estético-po-líticas ou no sistema oficial de arte, entre lutas simbólicas e materiais pela legiti-midade propriamente artística em um campo da arte mais amplo, com suas ins-tituições específicas de consagração e re-produção do cânone artístico, seu sistema

Esse contexto se deve ao fato de o poder Imperial abarcar tudo aquilo que representaria o comum numa estratégia biopolítica, ou seja, expropriando as linguagens, os símbo-los, as imagens, enfim, todos os meios compartilhados pe-los indivíduos, através dos quais estes se tornam capazes de se comunicar e de, assim, produzir algo em sociedade. Em tempos de capitalismo cognitivo, criativo e imaterial, a produção do comum baseia-se na colaboração e nos processos criativos e afetivos que incorporam todos os níveis da vida. Todo o tempo é produtivo e o comum que compartilhamos serve de base para a produção futura, numa relação expansiva. Para Hardt e Negri, isso talvez possa ser mais facilmente en-tendido em termos da comunica-ção como produção, inclusive de afetos, pois só podemos comuni-car criativa e colaborativamente utilizando linguagens, símbolos, ideias que constituem novas ima-gens, novos símbolos, ideias e re-lações comuns. Para os autores, hoje essa relação entre a produ-ção, a comunicação e o comum é a chave para entender toda ati-vidade social e econômica pró-pria do capitalismo pós-fordista (HARDT; NEGRI, 2005, p.256-257).

A ampliação dessa acepção de biopolítica adotada por Hardt e Negri situa o conceito como algo que acontece plenamente na

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sociedade de controle, na qual o poder subsume toda a sociedade, suas relações sociais e pene-tra nas consciências e nos corpos. Sendo assim, as subjetividades da sociedade são absorvidas no Estado. Mas a consequência disso é a explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na qual as resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes (HARDT; NEGRI, 2001, p.44). Isso significa que o poder desterritorializante que sub-sume toda sociedade ao capital, em vez de unificar tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade e singularização não domesticáveis, incontrolá-veis e incapturáveis. Assistimos a essa situação no Brasil, efetivamente e em grande escala, a partir de junho de 2013. A multidão que se formou, con-taminando e hibridando diversas pautas libertá-rias e progressistas, vem crescendo e tomando novas formas a cada dia. Para Pelbart (2003) ou para Hardt e Negri (2001, 2005, 2009, 2014), essa inversão de sentido do termo foucaultiano “bio-política” pode deixar de ser o “poder sobre a vida”, para tornar-se o “poder da vida”, o que poderíamos chamar também de biopolítica da multidão ou, se-gundo Pelbart (2003), biopotência.

O COMUM COMO PROJETO POLÍTICO CONSITUINTE Da MULTIDÃO

As políticas neoliberais (mencionadas anterior-mente), incorporadas ao Estatuto da Cidade, que vem permeando todo o discurso político urbanís-tico no Brasil, se fazem presentes desde propostas de revitalização de áreas centrais, passando pelo discurso da melhoria das condições de mobilida-de urbana, e culminando na construção de novas centralidades em regiões periféricas abandona-das historicamente pelo Estado. Em todo o mundo, mais visivelmente em alguns países que recebe-

simbólico específico (não imutável, obviamente), etc. Dou um exemplo sucinto: no Brasil contemporâneo podemos encontrar cineastas “autorais” - Adirley Queirós, Cristiano Burlan, entre outros - que subvertem editais oficiais com propostas ousadas e inovadoras - tanto na dimensão estética como na política -, construindo uma nova estética colaborativa - com forte diálo-go entre a equipe -, horizontal e, muitas vezes, experimental. Como o próprio Adirley Queirós afirmou numa entrevista sobre seu primeiro longa, A cidade é uma só? (que, inclusive, saiu de um edital sobre os 50 anos da cidade de Brasília): “fazer um filme é, primeiramente, um ato político”.

Camila Vieira (23 de outubro de 2014)Outro exemplo é a potência política trabalhada pelo artista Francis Alÿs. Só para citar uma ação: “Quando a fé move mon-tanhas” (ver vídeos no Youtube), realizado em 2002, no Peru. Ele convocou quinhentas pessoas de branco para mover em dez centímetros uma duna de areia; é a comunidade ativa, com passos que movem o mundo, digamos (a duna moveu). O que essa comunidade sentiu com essa experiência, essa potência? Houve uma organização extrema nesse processo sem sim-plesmente naturalizar as lutas, acredito. Não foi uma ação que teve resultados concretos em si, mas uma ação que perpassa a discussão aqui apresentada.

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ram essa grande investida do capitalismo Imperial como Espanha e Grécia, hoje podemos assistir ao estrago social e econômico dessas políticas, que nada mais são do que formas de endividamento do Estado e do cidadão7 . Com a promessa de desen-volvimento, obras de infraestrutura, projetos para megaeventos, construção massiva de habitação criaram com eficácia um exército humano endi-vidado e quebraram os caixas do Estado. Esses movimentos multitudinários em todo o mundo, como o que ocorreu a partir do Parque Gezi, na Turquia, contra a construção de um shopping cen-ter em lugar de uma praça pública, fazem surgir uma multidão enfurecida que percebe, de manei-ra muito evidente, os mecanismos imperiais do Estado-mercado que vem expropriando direitos garantidos constitucionalmente e transferindo os bens comuns e a produção do comum para o uni-verso do privado. Mas essas insurgências já pre-figuravam uma radicalização popular contra esse Estado-Capital globalizado desde Seattle, e alguns autores como Hardt e Negri, Lazzarato e Harvey vêm traçando uma cartografia dessas dinâmicas do novo capital, e também da rebeldia popular que insurge quando se retira radicalmente o bem-es-tar social defendido como base constitucional de países democráticos.

Em 2012, Hardt e Negri (2014), escrevendo sobre os movimentos multitudinários a partir da Primavera Árabe em 2011, afirmam que desde a década de 1990 esse movimento neoliberal Imperial avançou inclusive sobre as democracias de esquerda dos governos de alguns dos maiores países da América Latina, mesmo quando estes governos tinham chegado ao poder graças ao apoio de poderosos movimentos sociais – movimentos contra o neoli-beralismo e a favor da autogestão democrática do comum (o que para nós, no Brasil, fica mais cla-ro a cada dia). Em muitos casos, esses governos,

7. Vídeo Se acabó la fiesta, um documentário que

reflete o contexto da arquitetura neoliberal na

Espanha. Entrevistas a Felix de Azua, Sir Richard

Rogers, Blanca Lleo, Emi-lio Tuñon, y Luis Mansilla,

assim como os diretores da Revista El Croquis e o periodista Llazer Moix.

http://www.rtve.es/alacar-ta/videos/archivos-tema/archivos-tema-se-acabo-

fiesta/1269406/; e vídeo Españistan: https://www.

youtube.com/watch?v=UJ-8-dJ5WCo4.

a princípio progressistas, promoveram grandes avan-ços sociais, ajudando vastos contingentes populacionais a sair da pobreza, abrindo possibilidades de participa-ção democrática e rompendo relações externas de depen-dência muito antigas, em termos de economia global, de mercado mundial e de imperialismo norte-ame-ricano. Entretanto, mesmo quando esses governos es-tão no poder e, em especial, quando repetem as práticas dos antigos regimes, os mo-vimentos sociais continuam a luta, agora direcionada contra os governos que afir-mam que os representam (HARDT; NEGRI, 2014).

Dentro da própria lógica capitalista de produção co-letiva, colaborativa e em rede, que é própria da lógica do capitalismo pós-fordis-ta, surgem também novas formas de colaboração e de

“fazer-com” que recusam os mecanismos representati-vos da democracia burguesa, mesmo quando sob as siglas de esquerda. Essas resistências assistem à expro-priação do comum, desde os bens comuns como a água, as florestas, as praças e os parques, ou até mesmo a expropriação da produção do comum em processos informais dos novos modos de vida que não cabem na lógica do Estado-Capital. Para essa nova

Camila Vieira (23 de outubro de 2014)Também acredito nessa potencialidade transformadora de ações políticas dentro e fora do sistema da arte. Chamou minha atenção, agora que estou lendo alguns posts, o da Maria Goretti quando ela fala sobre o capitalismo rentista e suas manipulações, principalmente em relação ao espectador. Pode até haver essa limitação na participa-ção intelectual do espectador, mas também não podemos engolir isto de pronto, visto que é um discurso favorável ao sistema como um todo... Digo que devemos pensar na emancipação do espectador e, para isto, refiro-me a Rancière, que fala exatamente dessa emancipação como forma de consti-tuição do sensível da coletividade. A questão política é a capacidade de tomarmos mãos do nosso destino, afinal. E é exatamente nesse ponto que a arte mostra sua potência, indo além do circuito fechado no sistema da arte, mas também agindo nele... A Natacha citou o Gordon Matta-Clark e logo pensei também na Rachel Whiteread, quando fez um molde de concreto de uma casa progra-mada para demolição num bairro operário do leste de Londres, em 1993. O trabalho se chama House. Infelizmente a obra foi des-truída, talvez pelo fato mesmo de preservar a cultura da classe operária no local, mas foi uma ação que conseguiu em certa me-dida criticar o desenvolvimento voraz ali na região.

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geração conectada em redes múltiplas que se super-põem globalmente, a democracia representativa não corresponde mais à produção dos desejos por mais direitos, ou por uma vida na qual não apenas se par-ticipa de processos eleitorais garantindo plenos-po-deres aos governantes. A crise da representatividade abarca uma crescente necessidade por participação direta, por democracia real, por participação-decisão como palavras inseparáveis. Portanto, independen-temente da crise do capitalismo global, assistimos ao surgimento de uma nova ontologia do precariado própria da multidão, configurada ao mesmo tempo: (a) por um homem endividado (LAZZARATO, 2014 ou HARDT; NEGRI, 2014) completamente imerso no ca-pitalismo financeiro, que tem a sua riqueza criativa expropriada constantemente pelo fluxo econômico; (b) por um homem constituído pela lógica do fazer-junto, do fazer-com, criativa e colaborativamente.

Para Negri (2010), essa multidão possui também um nome de singularidades não representáveis, que, as-sim como um conceito de classe, é sempre produtiva e está sempre em movimento. A multidão seria, então, um ator social ativo, uma multiplicidade que age; se-ria também o conceito de uma potência que descon-fia da representação e em contraste com o de povo, porque é uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constituía um corpo social; a multi-dão, não, porque ela é a carne da vida e, ao contrário da pura espontaneidade, é como algo organizado num corpo sem órgãos, fora da organização do Aparelho de Estado, ou seja, é um ator ativo de auto-organi-zação, nos introduzindo num mundo completamente novo, dentro de uma revolução que já está acontecen-do. A multidão é para o autor, ao mesmo tempo, sujei-to e produto da praxis coletiva, assim como também cada corpo é multitudinário, ou pode tornar-se uma multidão, formando redes e potencializando contami-nações que desejam liberdade na coletividade. A mul-tidão é um monstro híbrido, uma legião, e um projeto

Flávio Pinto Valle (22 de outubro de 2014)Sim. Penso que é possível uma produção artística fora da lógica do capitalismo rentista. Para isso, acho que é preciso pensar mais em ações artísticas que em produtos artísticos. Ações que ajam de maneira opor-tuna frente às estratégias do capital, por isso estão sempre em (re)configuração, e que tenham como táti-ca a (re)apropriação simbólica dos produtos do capital.

Carlos Dalla Bernardina (22 de outubro de 2014)Acho que o Bruno Dorneles tocou no ponto central: é impossível pensar numa arte biopotente em si mes-ma... Por mais que ela seja forjada a partir de um campo biopotente, é em seu processo de comunica-çao com o outro que ela definirá seu destino e seu impacto sobre o meio. Nesse sentido, o artista vê-se atado a uma rede global, da qual sua arte depende para existir de fato. É através de sua interação com a rede que ela se tornará, ou não, biopotente. Vejo isso ao mesmo tempo como um bálsamo e uma tragédia. Acredito que o processo de interação em redes não reguladas oferece o único campo possível para a exis-tência de uma produção artística que nos (re)conecte ou nos (re)ligue com a vida. Acredito que é cada vez mais difícil obras criadas dentro de um sistema capi-talista cognitivo carregarem a força necessária para cumprirem um papel efetivamente transformador, mas ainda acho possível. À medida em que o tempo passa parece que vai ficando mais difícil, como se o cerco fosse se fechando e as contradições, estrangu-lando os processos vitais da sociedade. Nesse sentido, acredito que, pelo menos para as novas gerações do Brasil, o caminho da produção não profissional em rede tende a ser a saída no curto prazo para a exis-tência de processos artísticos biopotentes (capazes de reprogramar nossos afetos). Mas isso coloca em xeque a figura do artista profissional. É uma questão complexa que abordei em dois textos: http://roadto-cydonia.com.br/quase-samba-5-ser-independente/ e http://gvcult.blogosfera.uol.com.br/2014/04/27/chi-

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que se faz cruzando-se multidão com multidão, misturando corpos, operando a mestiçagem e a hibridação, já que o próprio corpo é trabalho vivo e recusa, maquinicamente, a organização constante operada pelo sistema capitalista, portanto, expres-são e cooperação. Enfim, o poder constituinte da multidão é algo diferente, não é apenas uma ex-ceção política, mas uma exceção histórica; é um produto de uma descontinuidade temporal, radi-cal, metamorfose ontológica, ou seja, a multidão é um nome ontológico de produção de resistên-cias ativas contra sobrevivências parasitárias que constituem a engrenagem da máquina capitalista contemporânea (NEGRI, 2010).

Toda a estrutura política da modernidade ociden-tal se construiu como política da totalidade e da universalidade, mesmo as esquerdas marxistas que pretendiam uma crítica radical ao projeto burguês. Ou seja, o movimento de Seattle abriu uma nova possibilidade de criação de uma polí-tica da multiplicidade multitudinária. Segundo o pensador, o êxito do livro de Negri e Hardt deno-minado Multidão, “seguramente está relacionado com esta direção, indicada não sem ambiguidade: sair do conceito de povo, categoria que aponta ao uno, reivindicando ao mesmo tempo uma fundação marxista desta transição” (LAZZARATO, 2006, p.17).

Com as jornadas de Seattle tem se criado um novo campo de possibilidades (que não existiam antes do acontecimento, chegou com ele). O acontecimento dá a ver o que uma época tem de intolerável, mas tam-bém emergir novas possibilidades de vida. Esta nova distribuição de possíveis e de desejos abre por sua vez um processo de experimentação e de criação. Há que se ex-perimentar o que implica a mutação da sub-jetividade e criar os agenciamentos, disposi-

co-buarque-se-tornaria-musico-profissional-se-tivesse-nascido-em-1990/. Ao mesmo tempo, não concordo com a bandeira da desmonetização da arte como única possibilidade de preservá-la em sua dimensão ativa, transformadora, vivificadora. Não acho justo que os artistas sejam sacrificados em nome de um “enxergar primeiro” a decadência de nosso sistema de vida “sociopolíticoeconômico-

cutural”. Acredito que fomen-tar a relação direta, em todos os níveis (econômico, simbó-lico e afetivo), entre o artista e o indivíduo tocado por sua arte é a única saída no curto prazo. E em relação a isso, me lembro de uns versos de um grupo inglês que costu-ma circular nas intercessões entre o mainstreaming e os espaços de transformação, o Radiohead:

I will shake myself into your pocket InvisibleDo what you wantDo what you want

I will sink and I will disappear I will slip into the grooveAnd cut me offCut me off

We will shake and we’ll be quiet as mice And while the cat is awayDo what we wantDo what we want

tivos e instituições que sejam capazes de desenrolar novas possibilidades de vida. (LAZZARATO, 2006, p.36)

Neste texto, nos interessa pensar, portan-to, junto com Lazzarato, que é possível sair dessa lógica binária entre socialismo esta-tal totalitarista-universal ou neoliberalismo generalizado do Estado-Capital financeiro. Para compreender as relações de força na sociedade contemporânea e realizar um diagnóstico mais próximo da realidade das lutas globais, seria preciso investir em um pensamento-ação, através da filosofia-prá-xis, que possa nos abrir um campo teórico mais complexo fora do universo da totalida-de e que nos permita “entrar no mundo do pluralismo e da singularidade, em que as conjunções e as disjunções entre as coisas são em cada momento contingentes, especí-ficas e particulares e não remetam a nenhu-ma essência, substância ou estrutura pro-funda que as possam fundar” (LAZZARATO, 2006, p.19). Esse pensamento-ação nos per-mite compreender-experimentar a realidade política atual a partir das relações exteriores, fora dos fundamentos, das raízes profundas,

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dos modelos arborescentes nos quais cada rela-ção só expressa um dos aspectos de alguma coisa. Aqui uma escolha pela teoria pós-estruturalista da multiplicidade, que afasta as relações binárias para compreensão do mundo político, social e econômi-co, nos lança num campo de pensamento complexo e configurado em múltiplos platôs que se conectam transversalmente. Aponta-se para um pensamento da imanência através do qual possamos constituir uma ontologia pluralista formada por singularidades que compõem as resistências ao Império neoliberal do capitalismo financeiro que, segundo Negri e Hardt, poderia ser chamado de processos multitudinários, construindo um projeto político de produção do co-mum. Assim como Lazzarato, Hardt e Negri nos apon-tam a resistência em Seattle no ano de 1999 como um primeiro indício claro dessa nova formação popular insurgente. Segundo os autores, o que diferencia a multidão de povo (diretamente relacionado ao esta-do-nação) ou de massa (diretamente relacionado ao mercado) é que ela é um conjunto de singularidades que possui a potência da construção do comum, fora da lógica socialista ou capitalista. Para eles “quando você se tornar uma singularidade, jamais será um eu integral. As singularidades são definidas por meio de um ser múltiplo internamente e de um descobrir a si mesmo externamente apenas em relação aos outros” (HARDT; NEGRI, 2014, p.57).

Sem um delineamento preciso dessas insurgências que formam grupos de singularidades não mais ba-seados nas identidades de classe, de gênero, de raça, fora da lógica dos sindicatos e dos movimentos or-ganizados, amplia-se a impossibilidade de desenhar com maior clareza a nova classe multitudinária con-figurada nas resistências ao neoliberalismo. Essas insurgências vêm se expandindo e ganhando as ruas de todo o mundo, não necessariamente em países em crise econômica, mas também no Brasil, em pleno processo neodesenvolvimentista. Há uma constru-

ção em tempos táticos e estratégicos de resistências mundiais contra o urbanismo neoliberal, que se con-figura performaticamente nas ruas e nas redes, uti-lizando ao mesmo tempo processos destituintes (via ação direta, manifestações, ações judiciais) e consti-tuintes (via ocupas e acampadas, produção de cultura, arte, textos, vídeos, imagens e novos modos de vida).

Hardt e Negri, em um pequeno e precioso livro deno-minado Declaração, escrito após a jornada de acam-padas que ocorreram por todo o mundo em 2011, dão continuidade ao projeto de mapeamento da multidão e nos ofertam uma sintética e potente análise dos processos revolucionários, ressal-tando que a estrutura rizomática multitudinária é coletiva e recusa toda forma de ordenação vertical, assim como, o processo biopolítico não se limita à reprodução do ca-pital com uma nova relação social, mas, sim, apresenta também o potencial de um processo autôno-mo que poderia destruir o capital e criar algo completamente novo (HARDT; NEGRI, 2014).

É interessante observar que, des-de 2011, os movimentos multitudi-nários (em todo o mundo) ocupam praças e ruas, reforçando a luta contra projetos neoliberalizantes de privatização do espaço públi-co e, nestes processos de ocupas, apesar dos curtos espaços de tem-po, surgem múltiplos processos constituintes de outra sociedade que pode se organizar independen-temente da lógica Estado-Capital da democracia representativa, for-mando novas redes afetivas e no-

Maria Goretti Gomide Pinheiro (22 de ou-tubro de 2014)O que ainda estamos vendo hoje é um puro capitalismo rentista, uma manipu-lação e monopolização intelectual dos interesses da sociedade. A arte vem sendo tratada apenas como objeto de mercadoria, sujeita às leis de procura e oferta do mercado que, de certa ma-neira, afeta a criatividade, as formas de fazer e suas múltiplas linguagens, não permitindo a partiticipação intelec-tual dos espectadores, impedindo-os de compartilhar, recriar, refazer para que, desta forma, possam alcançar o território dos pensamentos. O capi-talismo rentista manipula produzindo uma padronização da cultura em bus-ca do lucro, reproduzindo ideias que servem apenas para a própria perpe-tuação e legitimação, e por extensão a sociedade capitalista como um todo. As classes exploradoras não assimilam as mensagens veiculadas, tornando-se receptáculos vazios. A interpretação da mensagem está relacionada com sua

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vas formas democráticas, novos modos de vida ba-seados na produção do comum (em defesa dos bens comuns e em processos constituintes de modos de organização “em-comum”). Os acampamentos são uma grande fábrica para a produção dos afetos so-ciais e democráticos, constituindo-se uma platafor-ma para o desenvolvimento de novas formas políticas nas quais o autodidatismo possa ser organizado como um exemplo de acesso livre ao comum, incluindo in-formações, conhecimentos, livres de obstáculos fi-nanceiros e também dos obstáculos provenientes do dogmatismo e da censura. Sendo assim, a produção do conhecimento se torna um comum por excelência. Para os autores, tornar-se comum é uma atividade contínua, orientada pela razão, vontade e pelo dese-jo da multidão, que deve passar por uma educação de seu conhecimento, pela criatividade, pelos afetos políticos inovadores, para que as decisões sobre o comum sejam tomadas por meio da participação-de-cisão democrática, e não por meio de representantes eleitos (HARDT; NEGRI, 2014).

Na esteira desses movimentos insurgentes globais, a ocupação massiva das ruas no Brasil em junho de 2013 fez parte de um processo mundial de resistên-cia ao neoliberalismo, que se destacou com muita evidência nos processos de construção de grandes obras para a Copa do Mundo. Compreender que esse novo movimento faz parte de um processo global é fundamental para compreender tanto os processos destituintes quanto os constituintes que estão sendo realizados no País desde junho de 2013. Isso também amplia a discussão para fora da simples lógica na-cional envolvendo partidos políticos definidos e go-vernantes específicos. Perceber que, no Brasil, tanto os arquitetos e urbanistas quanto os políticos de es-querda contribuíram e contribuem para a realização das Parcerias Público-Privadas e para a privatização dos bens comuns nos auxilia no entendimento das revoltas locais.

consciência e com os valores que só podem ser com-preendidos com base na análise de seu modo de vida. Percebo, hoje, uma tentativa de sair das entranhas dessa produção capitalista. Tenta-se alcançar no-vos espaços e meios para criar uma nova existência fora das formas de capitalismo de Estado, mercado, regulados pelo poder. Estamos ainda numa fase de transição para uma nova sociedade, todavia, pro-gressivamente devemos nos afastar, ir alcançando uma economia mista, heterogênea, com múltiplas formas de propriedade estatal, pública, privada, in-cluindo vários tipos de empreendimentos. Acredito que existirá uma produção artística transformadora, mesmo pertencente ao sistema de arte. Será possível fazer uma arte potencializando um discurso dentro da lógica do capitalismo rentista e existirá outra arte fora dos padrões impostos que forçará o avanço e um diálogo cognitivo e criativo. Estamos num processo de constante contaminação e o entorno social consti-tui um lugar e “um potente repertório de habilidades no terreno dos afetos, das relações, dos costumes, dos desejos, dos conhecimentos e cicuitos culturais”. Num espaço comum as ideias são compartilhadas e absorvidas de forma mais intensa, porque também ocupam espaços em nossas vidas. Dessa forma o dis-curso afetará os modos de pensamento, o que pode-rá modificar os indivíduos, a maneira de interpretar, viver e compreender o mundo, destruindo o bloqueio criativo, promovendo o bem-estar social, com o uso das combinações tecnológicas, formas de ligação à terra e dos hábitos do coração, oferecendo novas pos-sibilidades e ampliação das lutas pela libertação. A

Nesses movimentos multitudinários globais, a polí-tica é uma ontologia plural: o pluralismo das lutas, que emergem das tradições divergentes e expres-sam objetivos diferentes, combina-se com a lógica cooperativa e federativa da assembleia para criar um modelo de democracia constituinte, em que estas di-ferenças são capazes de interagir e se conectar umas com as outras, for-mando uma compo-sição compartilhada. Essa pluralidade de movimentos contra o capital global, contra a ditadura das finan-ças, contra os biopo-deres que destroem o planeta surge em busca do acesso li-vre e compartilhado do comum e de sua autogestão; discutir, aprender, ensinar, estudar, comunicar-se e participar das ações: estas são al-gumas das formas de ativismo, constituin-do o eixo central da produção de subjeti-vidade numa ontolo-gia plural da política que é colocada em prática por meio do encontro e da com-posição de subjetivi-dades militantes.

É no território me-tropolitano que es-sas lutas multitudi-

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nárias geram um contorno plural, singular e coletivo de forma espacial, ganhando visibilidade e forçando o Estado a repensar as formas burocráticas e pou-co participativas que vêm imperando na construção dos planos via parcerias público-privadas. Ou seja, a produção do comum é o que já acontece no trabalho biopolítico imaterial do cotidiano, a metrópole é onde esta biopotência ativa da multidão ganha intensida-de e dimensão, e, portanto, a constituição do comum nos processos insurgentes contra o Estado-Capital faz crescer novas formas de vida que vão se tornando desejo de uma ampla gama de jovens e minorias até então excluídas dos processos democráticos, tanto no Brasil quanto no mundo.

Em meio a esse caldo biopolítico da multidão, vemos também o cruzamento de grupos e sujeitos antes isolados e marginais ao processo das lutas urbanas organizadas, como: pixadores, funkeiros, rapeiros, prostitutas, população de rua, skatistas, vendedo-res ambulantes, estudantes. Essa mistura maluca, híbrida, biopolítica também vem assumindo formas inusitadas, que fogem ao simples ato de marchar en-fileirados nas ruas guiados pelos carros de sons dos sindicatos e partidos, mas se envolvem cada vez mais numa estratégia tática afetiva, gerando heterotopias através de festas, carnavais, atos artísticos, inter-venções nas redes de forma ubíqua, fazendo cruzar o espaço topológico das redes com o espaço físico das ruas. Também surgem novas formas de construção de novas subjetividades políticas que passam pelas assembleias populares em praças e parques, ou ocu-pas que vão ocupar tanto o espaço público (do Estado) quanto o espaço privado (do Mercado) através de ações diretas de diversas ordens, gerando situações territoriais autônomas (temporárias ou não). Mas não é somente através de atos curtos e de instantes de lutas que se veem crescer as resistências positivas, diversas ações que envolvem o aparato jurídico e po-lítico oficial estão sendo construídas cotidianamente

arte é, nas palavras de Adorno (1970, p.117), “protesto constitutivo contra a pretensão à totalidade do discur-sivo [...]”. Um protesto radical contra todo o poder, inscrito não em seu conteúdo, mas em sua forma. É na forma que se encontra o verdadeiro elemento de protesto. Para ter forças contra uma sociedade gananciosa e de concorrência, a arte precisa ser inútil em sua forma, uma inutilidade radical para resistir ao poder da falsa integração.

Natacha Rena (22 de outubro de 2014)Bingo, Ricardo Macedo! Se pararmos pra observar o modo como todo o es-paço vem sendo privatizado, não so-mente as instituições (exemplo: BH hoje tem suas Escolas Municipais geridas por uma empreiteira!), mas toda a cidade: praças, parques, ruas, passeios, espaços aéreos, etc. A lógi-ca da privatização vem sendo incor-porada e a arte tem grande potencial crítico para atuar também nesses espaços, em grande escala. Eu sem-pre penso no Coletivo Projetação (Rio) em como eles vêm participando ativa-mente de todo esse processo. Em São Paulo também coletivos como Cobaia e Frente 3 de fevereiro são exempla-res nessas atuações junto de pretos e pobres, de ocupas de edifícios, etc. Mas acho também que os artistas e

e surgem das conexões multitudinárias redes-ruas. Atitudes antidemocráticas envolvendo a expropriação do comum, que até 2013 eram decisões políticas tomadas somente pelo poder público, agora vêm sendo sistematicamen-te denunciadas ao Ministério Público. Mecanismos de participação popular, até então abandonados pela sociedade de maneira geral como os espaços das Câmaras do Legislativo, têm sido dia-riamente ocupadas por movimentos so-ciais que trazem debates fundamentais para a construção da cidade, envolven-do principalmente o tema do transporte público via movimento Tarifa Zero, ou a Reforma Urbana e a luta pela moradia via movimentos organizados e em ex-pansão como MLB, Brigadas Populares, grupos de pesquisa das universidades e ativistas de diversos setores. Esse conjunto destituinte dos poderes tradi-cionais se soma ao conjunto de ações constituintes que vêm tomando forma e dimensão, como é o caso da ocupação cultural Espaço Comum Luiz Estrela,

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em Belo Horizonte (MG), que tem sido referência para diversos grupos minoritários de loucos a femi-nistas, de sem teto à população de rua, de estudantes a artistas.

A multidão, na defesa do comum, performa novos modos de vida e questiona, com ênfase poética e po-lítica, a propriedade privada. Sabe-se que as formas de representação estão em crise, mas é a democra-cia gerida pelo Estado-Capital que mais sofre com a radicalidade das novas lutas, porque é nela que se escondem todas as redes de perversidades do poder instituído (governos com seus legislativos, executi-vos e judiciários, mercado, mídias, igrejas, sindicatos, etc.). A propriedade privada é a forma mais evidente da democracia burguesa e foi criada para garantir a eternidade das elites no poder. O que se explora é a vida, a vida dos pobres, que somos, em tempos pós-modernos, todos nós, os precarizados. Acontece que é nos processos colaborativos em rede que essa nova classe precariada avança insurgente, exigindo demo-cracia real e a construção do comum urbano, livre do Estado e do mercado.

Se desde Seattle, mas, com muita intensidade, desde a crise econômica de 2008 nos EUA e na Europa, vive-mos uma crescente revolta global conectada contra os processos de expropriação do comum em diversos níveis, experimentamos neste último ano no Brasil: do Parque Gezi, em Istambul, passando pela revolta em Gamonal, na Espanha, pelo movimento Fica Ficus, em Belo Horizonte, pelo Parque Cocó, em Fortaleza, ou pelo Parque Augusta, em São Paulo, vemos surgir uma multidão de singularidades e grupos artísticos, de ativistas, moradores locais e vizinhos, população de rua e comerciantes interessados em recuperar o debate político sobre a cidade e a construção do ambiente que pertence às suas vidas cotidianas. A democracia representativa já não mais representa o cidadão comum e vem deixando de lado os interesses

intelectuais precisam ocupar as instituições, participar de con-selhos, atuar politicamente também... Porque esses espaços vazios deixados por todos nós são constantemente ocupados pelos que vivem disto: interesse financeiro. Precisamos reto-mar o gosto pela política dentro e fora da arte. Na vida coti-diana e principalmente atuando nos processos constituintes de novas formas de vida. Isso requer mais articulação e um tempo para isto...

Ricardo Macêdo (22 de outubro de 2014)Eu gostaria muito de ter de volta aquilo que um dia foi meu: as áreas de recreação na cidade, praças com eventos sem grades, etc. Acho que o texto sensibiliza o olhar nesse tocante, estamos a viver uma privatização do que deveria ser público, às vezes sem perceber. Nesse caso, a experiência também se torna objeto de consumo. Gilles Lipovetsky diz que estamos vivendo uma mercantilização da experiência. Reconstruir a metrópole nesse sentido mais coletivo e geral, sem centro, parece ir para além dos já conhecidos discursos primitivistas (John Zerzan), niilistas (anarco-punks, cyber punks), apocalíp-ticos e distópicos (K. DicK, J. Baudrillard), ninjas (H. Bey) e ir numa outra direção, porque ampara todos eles e muitos outros, mas não fecha em um só. Acho que esse é um dos sentidos das conexões que formam outras conexões, como proposto pelo autor dentro da ideia de multitude. Tô achando bem legal o estudo aqui com vocês, contudo, ainda caminhando e tentando assimilar as concepções.

Natacha Rena (20 de outubro de 2014)Vou fazer um documento aqui pra gente ir cartografando junto exemplos de artistas e projetos citados por todos nós para que possamos ter este conjunto de referências para avançarmos no debate. O conhecimento livre, a ideia de autoria comparti-lhada, o copyleft, processos mais horizontais, configurados co-laborativamente, podem, sim, auxiliar na constituição de novos modos de vida e de produzir arte e cultura. Empoderamento do outro via estratégias (institucionais públicas ou privadas e polí-ticas públicas) e táticas (envolvendo processos multitudinários) acontecem em diversos campos do conhecimento, mas a arte possui uma potência de atuação subjetivante, construtora de

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de todos para garantir o interesse do mercado que financia o Estado e suas campanhas políticas que ga-rantem a permanência de grupos no poder. Contudo, a sociedade se rebela. O espírito de multidão que en-cara o Império de frente e exige democracia real e, em muitos casos, o direito de ter seus bens comuns administrados autonomamente fazem parte dessas novas organizações ativistas que trazem o frescor da coleção subjetiva das diferenças e a pauta ampliada das lutas.

Seria também interessante notar que esses movi-mentos são horizontais, sem lideranças definidas, e possuem uma dinâmica de articulação, que, por ser rizomática, é impossível de cooptar. Vemos o Estado-Capital na tentativa desesperada de se aproximar des-ses movimentos para capturar a sua dinâmica que se recusa a pertencer à lógica do Aparelho de Estado, pois são máquinas de guerra configuradas por maltas híbridas. A autonomia e a autogestão é tudo o que o Estado-Capital não pode suportar.

A construção da subjetividade via mecanismos oficiais do poder imperial (grandes mídias) já não convence mais a sociedade com tanta facilidade, e assistimos a uma ampliação dos campos de luta pela constru-ção do comum, seja nas ruas, seja nas redes. Não se trata somente do território verde dos parques e praças, mas também da exigência de função social para a propriedade e o direito de ir e vir via tarifa zero nos transportes, direito de morar. Pode-se detectar essa demanda nos movimentos pró-habitação; a for-ça política dos movimentos pela mobilidade; a força estética e afetiva dos movimentos de ocupas culturais. Sabemos que esse é um movimento muito maior que possui relações com o fim do esplendor do capitalis-mo neoliberal e a chegada de um novo mundo biopo-tente, mundo no qual o poder sobre a vida é substituí-do pelo poder da vida. Esses novos espaços do comum são habitados por jovens, crianças, artistas, ativistas,

afetos que poderiam se expandir na vida cotidiana, não per-tencendo apenas a um círculo fechado envolvido no sistema da arte. Essa é uma grande questão, né? Como expandir a bipotência ativadora de novos desejos pra toda a sociedade? Como fazer com que essa sensibilidade crítica, corporal, afetiva da arte possa ser um modo de constituir um mun-do mais democrático? Muitos artistas em todo o mundo vêm tentando construir novas plataformas de trabalho fora desse sistema... Mapear esses exemplos pode realmente nos ajudar a pensar melhor sobre isso. Fico imaginando também que muitos de vocês têm razão, não podemos di-zer de forma simplificada que se algum trabalho de arte está inserido no sistema da arte (Estatal ou mercadológico) perde sua potência tranformadora. E, pra isso, penso que pode ser interessante criarmos indicadores qualitativos que possam dizer da multitudinariedade da produção artística em termos de intensidade; de que projetos, obras, ações sejam mais ou menos intensas dependendo do conjunto de qualidades multitudinárias que eles tenham. Vamos pensar juntos nesses indicadores qualitativos? Bom, aqui inician-do um resumo de alguns processos já citados por colegas aqui e outros que já podemos antecipar de outros textos e espaços de debate:

militantes de todas as ordens, idosos, comerciantes, gays, lésbicas, bis, trans, queers, e muitas outras ca-tegorias e outros gêneros que representam uma nova sociedade ativa e plural.

Fora da lógica dos movimentos viciados da esquer-da clássica, que acredita na ideia unitária de povo, e fora da lógica do mercado, que só pensa nos cidadãos como massa, a multidão é plural e atua no trabalho vivo e imaterial produzido em rede coletivamente e criativamente. Portanto, estancar a força motriz que move esses movimentos não vai ser tarefa fácil para o Estado-Capital, já que o que os move é o amor e o afeto e o próprio sentido ativo da vida.

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PresenteHuit Facettes (África), Ala Plástica (Argentina) Bijari (Brasil)KaprowGuerrilla GirlsFrozen (Chris Buck, Jennifer Lee, 2013) Paulo Bruscky

_________Gordon Matta-ClarkHélio OiticicaLygia ClarkHans Haacke

Natacha Rena (20 de outubro de 2014)Outras questões como o sistema da arte indissociado da lógica do mercado talvez não exclua a potência de projetos e ações artísticas que trazem críticas, temas, pautas e pro-postas constituintes. Intuo que é possível, sim, transformar de dentro dos sistemas, ocupar as instituições com novas propostas e práticas. Na verdade, se pensarmos bem, a democracia deveria ser um tema constante em todas as disciplinas, em toda a vida, e a forma como as instituições agem são, sim, direcionadas pelo capital que investe todo o seu tempo e grande parte do seu recurso produzindo de-sejos e processos de expropriação do comum. Mas, pode-mos também participar mais ativamente dos processos e das instituições. Sempre me pergunto o quanto todos nós fazemos para disputar sentido com o Estado-Capital. Será que não poderíamos ser muito mais ativos e atuarmos mais inventivamente, deslocando, desviando e constituindo novos mundos, tanto politicamente participando de debates sobre políticas públicas quanto autonomamente, atuando em rede e construindo novas formas biopotentes pra atuar junto ao mundo?

Thaís Mor (19 de outubro de 2014)A arte deve potencializar e gerar uma reação dos padrões neoliberais do Estado-Capital, do Império. Talvez a Arte Multitudinária seja essa nova “plataforma” de criar contex-

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-a-multidao/. Acesso em: 06 dez. 2013.

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ros, Peter Pál Pelbart). Nessa editora já existem muitos livros importantes para esse debate mais conceitual sobre arte e po-lítica. Citei isso num post anterior, mas, repetindo aqui, temos no Brasil um grupo de investigadores da Universidade Nômade que vem trabalhando esses conceitos já incorporados de ques-tões que são mais próprias ao nosso contexto local brasileiro: http://uninomade.net/lugarcomum/. Há um texto escrito por mim, pela Nanda Chagas e pela Paula Bruzzi nessa revista que faz um apanhado mais detalhado de temas envolvendo o urbanismo e seus processos gentrificadores e também as ma-nifestações estéticas biopotentes ocorridas em Belo Horizonte nos últimos anos:

http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111404140911Bio-pol%C3%ADticas%20espaciais%20gentrificado ras%20e%20as%20resistências%20estéticas%20biopotentes%20

-%20Natacha%20Rena%20e%20Paula%20Berqu ó%20e%20Fernanda%20Chagas.pdf

Natacha Rena (18 de outubro de 2014)Concordo com quem respondeu que sim a esse primeiro ques-tionamento! Acredito que seja possível deslocar/desviar o sta-tus quo normatizante que envolve as capturas de subjetividade pelo Estado-Capital, produzindo novas subjetividades estéticas políticas e transformadoras. Artistas, coletivos, curadores e até mesmo eventos de grande porte como as bienais estão ampliando esse debate que relaciona arte e política em todo o mundo. Acho importante citar o exemplo de duas Bienais de São Paulo que anteciparam (e a arte quase sempre antecipa) temas multitudinários que surgem e desaparecem desde 1968: Um e/entre Outro/s, curadoria de Paulo Herkenhoff (http://is-suu.com/bienal/docs/name423574) e também a Bienal Como viver junto, organização de Adriano Pedrosa e Lisette Lagnado (http://editora.cosacnaify.com.br/ObraSinopse/11068/Como-viver-junto---Catálogo-da-27a-Bienal-de-São-Paulo.as px). A primeira consegue trazer e apresentar temas e obras poten-tes, já a segunda tem um caráter mais conceitual e político no sentido de revelar novas práticas coletivas e colaborativas (como viver juntos?) envolvendo grupos e artistas nacionais e internacionais em residências artísticas pelo Brasil afora,

tos biopolíticos com uma biopotência autônoma. Essa nova fase retoma conceitos simplistas afetivos e simplistas da vida. Vejo um pouco como o movimento dos anos 1960/70, dos movimen-tos artísticos de Hélio Oiticica e outros que criavam encontros

“de vida” em praças e locais públicos, onde relações sociais, afetos e criatividade criavam essa biopotência”. A “antiarte”, proposta com que Oiticica pretendeu radicalizar a situação, é exemplar. Não visava à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano, nem simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os participantes, “proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, visando a “desalienar o indivíduo”, para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”. Apontando para outra inscrição do estético, Oiticica visualiza a arte como intervenção cultural e o artista como “motivador para a criação” (citação retirada do texto: Inconformismo es-tético, inconformismo social, Hélio Oiticica - por Celso Furtado). Apoderar-se das próprias possibilidades empreendedoras do neoliberalismo com um pensamento coletivo, estruturado, es-tético e conscientizador multitudinário. Questionar a gentrifi-cação e essa “descontrução de uma metrópole bioconstrutiva do pensamento”. Acredito numa arte biopotente organizada. A estética X falta de planejamento urbano, o encontro X falta do espaço coletivo, os afetos e relações sociais X estrutura do pensamento neoliberalista = contra-Império.

Natacha Rena (18 de outubro de 2014)Ricardo Macedo, você tem razão, realmente estamos aqui adentrando num campo teórico que envolve alguns pensadores como Foucault, Deleuze e Guattari, Hardt e Negri, Lazzarato, dentre outros. Hardt e Negri possuem uma trilogia importan-tíssima para a compreensão da nossa situação contempo-rânea: Império, Multidão e Commonwealth. Sugiro, pra quem quer começar a adentrar nesse universo teórico, a leitura do livro Multidão, pois é simples e direto e faz uma boa análise conjuntural do capitalismo atual numa primeira parte, depois descreve e caracteriza o conceito de multidão, e numa terceira parte fala sobre democracia real. Outro bom livro, pequeno e muito direto dos dois autores, é o Declaração, da Editora n-1 (que curiosamente é de um dos grandes pensadores brasilei-

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Bruno Dorneles (16 de outubro de 2014)O que nos leva a perguntar: Quem imbui na cabeça das novas gerações mais ideais feministas, as já citadas Guerrilla Girls ou Frozen (BUCK, Chris; LEE, Jennifer, 2013)? A dilatação das nossas ideias sobre biopotência e todas as micropolíticas que a ela se associam tendem a se ligar a essa ordem de mensa-gem recebida como mensagem dada, conotação via denotação. Acreditando que essa arte institucionalizada, parte dela, se preocupa em propor ação política, seria contraditório (para dizer o mínimo) presumir que artista e público dividem as mes-mas perspectivas de vida, tanto quanto as mesmas ferramen-tas e habilidades para interpretá-las, cruzá-las e armazená-las de forma a fazer reverberar esta mensagem para fora do espa-ço museológico em que se encontra. Dito isso - a dependência da mensagem pelo sistema que a legitimiza e a valoriza e o fato de que nenhuma mensagem comunica simplesmente o que pretende comunicar - é de se esperar que qualquer tenta-tiva de produção artística biopotente se veja, impreterivelmen-te, modificada no ato de seu consumo; seja pela reformulação que sofre pelas vontades daqueles que adquirem direito sobre sua exibição, seja por aqueles que a podem consumir.

Maria Caram Santos de Oliveira (14 de outubro de 2014)Acredito que possamos pensar numa arte crítica mesmo den-tro das galerias. Um exemplo interessante para mim é Hélio Oiticica. Começando como pintor, quanto mais questionadora e urbana se tornou a obra de Hélio, mais “invendável” e “in-colecionável” ela foi se tornando, uma vez que as peças se tornaram maiores, mais interativas, mais questionadoras e intransportáveis. As obras de Oiticica, mesmo em galerias, questionam os limites do espaço público, do coletivo X indivi-dual. Além disso, dentro do trabalho do artista é sempre pos-sível trazer a reflexão sobre o artista e o real executor da obra. Outro exemplo interessante é Hans Haacke, artista alemão que, em 1971, na obra Shapolsky et al. Manhattan Real Estate Holdings, A Real Time Social System, documentou e trouxe a público do-cumentos que provavam o envolvimento de um empresário com a especulaçao imobiliária na maior favela nova-iorquina. A exposição que aconteceria no Solomon R. Guggehein Museum

gerando uma relação mais fecunda entre a produção da arte e as políticas envolvendo situações singulares brasileiras (pas-sando pelas comunidades ribeirinhas no Amazonas ou favelas paulistas), além de criar um ambiente para um debate teórico importantíssimo para qualificar as ações que envolvem o tema transversal entre arte, política e vida. No caso dos coletivos, como citaram alguns de vocês, estes vêm se multiplicando em todo o mundo, o que já demonstra como o fazer-junto, co-laborativamente, é uma tendência ao mesmo tempo produzi-da pela precarização e por processos próprios do capitalismo cognitivo e como táticas desejantes já entranhadas em nos-sa ontologia multitudinária. Acho interessante pensar mais uma vez nos anos 1960 e 70, décadas nas quais artistas como Gordon-Matta-Clark já desenvolviam uma infinidade de traba-lhos introduzindo fortes críticas aos processos de gentrificação territorial, tanto em Nova Iorque (ver trabalhos como: Blowout, Splitting) como em Paris com a intervenção Interseção Cônica/ Conical Intersect (http://vimeo.com/10617205), realizada ao lado do Museu Pompidou (projeto de arquitetura realizado clara-mente para gentrifcar a região do Les Halle, território central da cidade habitado por afrodescendentes). Ver texto de apre-sentação de uma das melhores exposições que tive a chance de visitar no MAM sobre esse artista americano: http://mam.org.br/exposicao/gordon-matta-clark-desfazer-o-espaco/. É claro que nesse caminho, já apontado no texto de apresentação dessa exposição de Matta-Clark no MAM citada anteriormente, temos Hélio Oiticica, que já trazia naquele momento a potên-cia da pobreza como vetor de criação de novos mundos, mais sensíveis. Outros exemplos e um debate mais profundo sobre o tema aqui tratado podem também ser lidos no artigo Processos criativos biopotentes constituindo novas possibilidades de pro-dução do comum no território urbano, meu e da Paula Bruzzi, também professora deste curso. Esse artigo foi escrito para a revista Lugar Comum, também outra fonte de pensamento ético e estático envolvendo o tema do comum como projeto multidão (http://uninomade.net/lugarcomum/) e deve ser publicado num próximo número da revista.

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Bishop. Não me refiro à instrumentalização do Outro, mas ao empoderamento do Outro; instrumentalizar é despontenciali-zar o conhecimento do Outro e cair no paradigma hierárquico (isso pode ser acessado nos textos de Grant Kester – The one and many, ou de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano). Contudo, como propor mudanças de paradigma se aquilo que propomos ao Outro não é evidenciado em nossa prática diária? Não falo de autoajuda (risos), não é isto! É poder nos rever como pessoas que se esforçam por ser educadores ou artis-tas críticos da realidade, despertando isto nos participantes. Esse despertamento tem ocorrido via lúdico (se lembrarmos das atividades de Kaprow ou das participações nas obras de Lygia Clark), e parece estar sendo entendido como dispositivos (estratégia e táticas) novos para ativar a participação crítica e menos fria na obra convivial. Acho que isso quebra o valor das obras mercadológicas dentro do sistema (ou, por um lado mais perverso, cria uma nova praia pra curadoria: mercantilização das obras conviviais, mercantilização do outro, isto é horrível!), pois se negam a ser apenas obras, e passam a ser vivências que transformam o Outro na ação, no processo da oficina ou processo colaborativo. Contudo, se isso fica apenas no texto (pois agora é moda) e no discurso, acaba ocorrendo um simu-lacro, um pastiche, como ocorre nas proposições encabeçadas pelo Nicolas Bourriaud, uma teatralização do convívio sem participação política e esforço para mudar a própria mentali-dade (Quem ensinará aos educadores, Edgar Morin?). Enfim, desculpem a enxurrada de palavras e os cacoetes acadêmicos, mas isto tem tomado muito do meu tempo. Já fui artista uni-camente de galeria um dia e hoje procuro as brechas desse sistema para agir dentro dele, ainda não sabendo bem como fazer isto...

QUESTÃO 2 Não seria necessário às lutas uma produção estética como ação fundamental na disputa pelas subjetividades? Onde estão e quais são as manifestações estéticas e artísticas que surgiram nos últi-mos anos e que fazem parte de um movimento maior, glocal, de produção de novas subjetividades, multitudinárias, atuando no território e produzindo novos espaços mais democráticos?

foi cancelada seis semanas antes de seu início e o curador que a selecionou, demitido.

Ricardo De Cristófaro (14 de outubro de 2014)Gostei do texto, Natacha, principalmente quando aborda, faz um diagnóstico e analisa a situação social e política contem-porânea (claramente sentida pelos cidadãos das grandes ci-dades). Entretanto, acho que o texto pouco aborda a maneira como os artistas estão respondendo a essas situações. Mas não vejo isso como um problema, uma vez que muitas das afirmações são polêmicas e provocadoras, levando a refle-xões importantes que precisam ser levadas em consideração, quando nos propomos a pensar o que seria efetivamente uma produção artística com “teor político” - não desconsideran-do a possibilidade de pensar a “dimensão política” que pode existir em qualquer proposição artística. Eu me refiro especi-ficamente a proposições artísticas com intenções, motivações e estratégias que perpassam questões de identidade e força política dos movimentos sociais. Nesse sentido acredito que o “mercado” e, muitas vezes, a necessidade de sobrevivência dos artistas e grupos de artistas irão corromper a capacidade de “transformação”. Considero que você tem razão ao citar o método cartográfico “como um dos meios para produção ar-tística enquanto resistência positiva, primeira e ativadora de afetos revolucionários”. Também concordo com seu diagnós-tico que coloca a cidade como “lugar no qual a biopolítica das resistências primeiras são potentes, possibilitando encontros que, apesar de todas as estratégias para evitá-los, se dão com maior ênfase em processos constantes de contaminação”. Na cidade contemporânea essa “cartografia” não é mais topográ-fica e, sim, topológica.

Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)Em termos mais práticos, o trabalho de grupos que não se configuram nem como artistas e nem ativistas, mas estão na fronteira, como Huit Facettes (África), Ala Plástica (Argentina) e Bijari (Brasil), que propõem oficinas e workshops e têm na si-tuação ou no acontecimento estopins para processos artísticos críticos, que eu entendo como obras de arte contemporâneas, no fim das contas. A situação hoje é obra, como nos diz a Claire

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ciadas pela internet, são criadas novas formas de se relacio-nar com espaços comuns, amplia-se o acesso e se exige a constante renovação e experimentação nas lutas multidinárias. Exemplos disso, como já citado por aqui: o Espaço Comum Luiz Estrela, a Praia da Estação, entre outros. Destaco também o movimento Tarifa Zero BH, que apostou em uma estética diferente das que são geralmente realizadas nas expressões artísticas/políticas por movimentos tradicionais (ou não) de esquerda. Mas confesso minha inquietação para o pouco que isso é discutido e trabalho em certos movimentos, coletivos artísticos, etc. Considero fundamental uma produção estética estritamente ligada com os objetivos das lutas. Há um poder forte e transformador nisso, que ainda é pouco explorado ou não é dada tanta atenção.

Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)Respondendo a muitos dos comentários que falam da arte ur-bana como essa nova arte ligada à cidade, acho que ainda há um caminho pra fazer. Explico: sempre entendi o graffiti (pixa-ção no Brasil) como arte involuntária, sem intenção artística, mas com uma carga importante de estética. Quando era mais novo já fui graffitero na Espanha, e me lembro como passava tardes e tardes tentando melhorar minha assinatura pra ela ser a melhor da minha cidade. Inclusive hoje, quando ando pela rua, vou vendo os diferentes nomes escritos nas paredes e vou analisando. Dá pra ver quem está começando, quem já tem um tempo no mundo do graffiti, quem se preocupa mais pelo lugar (por exemplo, na parte alta dos prédios) do que pela estética. Mas, no final das contas, a porcentagem de pixadores que têm uma intenção artística na ação de pixar é pequena. Eu acho que a arte urbana tem que pegar todo o desenvolvimento crítico feito pelos artistas de Land Art, mudando essa ideologia até as cidades. Richard Long, em obras como A line made by walking, transforma o ato de caminhar numa obra de arte, levar isto até as cidades tem como resultado ações como as derivas fei-tas pelos situacionistas, ou, mais recentemente, o movimento Jane’s Walk, que organiza passeios pelas cidades mantendo viva a luta de Jane Jacobs pra usar o espaço público. Além disso, na Espanha vem aparecendo a cada ano um monte de propos-tas de novos coletivos. Arquitecturas Colectivas foi criada em

Fred Triani (31 de outubro de 2014)Já que várias pessoas falaram das ocupas, do Piolho, guerrilla girl, vou citar o grupo Voinahttps://www.youtube.com/watch?-v=pUu5GkXiOfM. Este projeto aqui também é interessante: http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html

Reginaldo Luiz Cardoso (26 de outubro de 2014)Os movimentos multitudinais, embora presentes desde sempre nas vanguardas modernas, foram inaugurados simbolicamente em 30 de novembro de 1999, na cidade de Seattle. Todos eles apontam, sem dúvida alguma, para novas práticas da subje-tividade e, consequentemente, da política. São formas de ati-vismo que propôem uma redefinição das relações de poder no território, que é o que, afinal de contas, define o território. Inúmeras dessas práticas foram citadas aqui pelos colegas. Esses momentos de ação contribuem à criação momentânea de situações em que tudo parece possível, em que a ordem balança, em que a cidade parece reapropriada, “liberada” em alguns pontos. Essas Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) são muito importantes: trata-se de toda uma ação sobre o terri-tório, sobre as possibilidades que ela deixa entrever às pes-soas - o fato de que outra coisa é possível, de que o cotidano vai além da fatalidade. Esses instantes de exaltação - quando o mundo todo parece desmoronar - estão certamente deslo-cados em relação à realidade, que em geral logo restabelece a ordem, mas são indispensáveis e imprescindíveis (portanto, não concordo quando a Natacha diz que a dinâmica desses mo-vimentos “é impossível de cooptar”). Porém, são as pequenas ocasiões que dinamizam, dando essa impressão de que nada será mais como antes, podendo ser catalisadoras de energias, pontos de partida de iniciativas, de criações e de ações. Nos muros de Seattle lia-se: “We are winning!”.

Cristiano araújo (23 de outubro de 2014)Movimentos que subvertem (ou pelo menos tentam) institui-ções e o mercado da arte, que segrega e impõe limites, con-sequentemente produzem espaços mais democráticos. A ex-pressão artistica é, por si só, política. A produção da estética está, sem dúvida, relacionada a essa potência na disputa pelas subjetividades, porém não mais como antes. Talvez influen-

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ancorado no afeto que o une aos outros de modo mais genuíno do que qualquer ideal ou interesse comum. A partir disso ele pode, de um modo mais descomplicado, entrar no fluxo cita-do pela Júlia Nascimento, agrupando-se em rede, forman-do novas redes a partir do encontro desses agrupamentos, e produzindo então, “fora da guerra”, novas subjetividades que não têm mais o tempo e a energia para cultivar qualquer pro-cesso de persuasão, além daquele engajamento espontâneo que surge pela vitalidade que a própria rede emana para fora de seus domínios.

Taís Freire de andrade Clark (23 de outubro de 2014)Acredito que não só uma forma alternativa de produção esté-tica é fundamental para dar voz às lutas, como é natural que isto ocorra, já que a arte se configura como um ótimo meio de diálogo. Em Belo Horizonte, nos últimos anos, surgiu um movimento muito representativo nesse sentido que foi o Duelo de MCs que ocorria toda sexta-feira embaixo do viaduto de Santa Tereza. No Duelo, uma forma de disputa consiste na utilização de recursos de autoafirmação para ganhar adesão do público. O outro tipo de duelo é o temático, no qual os MCs devem desenvolver rimas que se relacionam a um determi-nado tema sorteado. Aqui assuntos que envolvem questões sociais são abordados e expressos pelo viés dos MCs, sempre ressaltando a cultura Hip Hop. Além disso, durante o Duelo de MCs, há também a prática do Street Dance e do Graffiti. Apesar de não acontecer mais semanalmente (já que o viaduto de Santa Tereza foi fechado para uma reforma-surpresa), o Duelo atingiu seu grande objetivo, que era levar ações da cul-tura Hip Hop de Belo Horizonte para a rua. Mas, mais do que isso, ele configura um movimento de resistência do Coletivo Família de Rua, que, através da transformação de um espaço público esquecido em um grande palco, se transformou em um marco de resistência para as juventudes de Belo Horizonte, mostrando que a construção de espaços mais democráticos através de uma produção cultural alternativa é, sim, possível. Para mais informações sobre o Duelo de MCs: https://twitter.com/familiaderua; http://duelodemcs.blogspot.com.br/; http://variavel5.com.br/blog/caps-lock-duelo-de-mcs/.

2007 para dar suporte a alguns coletivos que trabalhavam com metodologias e ideias parecidas, mas, depois do início da crise, o número de coletivos cresceu exponencialmente. Propostas como LaFábrika detodalavida estão criando um espaço para práticas abertas e o estudo do bem comum num âmbito rural de uma das regiões mais pobres da Espanha, concretamente em Los Santos de Maimona. A facilidade que oferece a internet hoje permite estar ligado com o mundo, embora seu projeto esteja num entorno afastado das metrópoles. Algumas res-postas da anterior pergunta falaram dos problemas de uma cidade pequena. Eu não acho que de fato seja um problema, não agora, com a facilidade e a velocidade de conexão com qualquer parte do mundo.

João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014)A arte possui uma potência - manifesta e, principalmente, latente - de transformar nossa experiência - para lembrar Gilbert Simondon, estamos em um constante processo de transducção, ou transformação de sistema, em diversos ní-veis, através da troca de vetores informacionais. Assim, a arte exerce, no mundo contemporâneo, um papel importantíssimo nesse constante movimento de reinvenção da vida. Através dela nós ressignificamos nosso cotidiano criativamente, trans-formamos estética e discursivamente nosso eu e nosso am-biente - no caso, a cidade.

Carlos Dalla Bernardina (23 de outubro de 2014)Acredito num caminho mais afirmativo e criativo, baseado no afeto, no amor, que sempre foi e sempre será o grande tabu da sociedade. Pessoas sempre foram assassinadas por pra-ticarem a inteligência afetiva, o amor, em suas formas mais radicais. Esse caminho, para mim, envolve o que o Bernardo colocou lindamente em seu texto, “a disposição em arriscar a própria identidade para podermos escutar o outro e comunicar efetivamente, pela arte ou não”. Porque nesse caminho criati-vo e carregado de inteligência afetiva o ser humano sente-se nutrido e forte o suficiente para não precisar valer-se dos mo-delos de identidade herdados e impostos pelo meio social... Ele tem uma relação criativa com a construção da própria identi-dade... E ele pode fazer isso sem surtar ou deprimir, pois está

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simplista, ao reduzir-nos a categorias (povo, burguesia), a arte faz-se opressora ao insistir na exclusividade do belo, da erudi-ção e em uma língua reservada. As lutas não necessitam so-mente de uma estética para nos dar mais alento. As lutas ne-cessitam de uma estética que seja flexível, moldável, que faça sentido às pessoas. E aqui entram a selvageria, a rugosidade, a aspereza das subjetividades como elas estiverem sendo, sem ter que caber em moldes. Não se trata de criar novos fetiches da forma, pois é exatamente na estética que o valor da mer-cadoria é cultuado. Fica marcada a produção estética de um shopping, onde rolezinhos devem ser proibidos, diante da obra do Paulo Nazareth, artista mineiro que andou a pé da América Latina até Nova Iorque e tem o cabelo crespo. Vejo uma cons-telação guerreira que parte das vanguardas no início do século XX, passando pelos anos 1960 e 1970, chegando hoje em um pú-blico, um espectador, um leitor que pode ecoar ou mesmo ser ator do que ele vê. Desde nossos antepassados que não deve-mos mais explicações na língua de quem nos oprime. Surgem diversas vozes: os negros, os índios, os LGBTs, as mulheres, os usuários de drogas, as novas e as antigas espiritualidades. A estética aí é fundamental, pois o silêncio recai historicamente sobre essas vozes assinalando-as justamente pela forma, pela cor, pelo modo, pelo espaço que produz subjetividades, modos de vida. Na dança contemporânea não temos mais o bailarino ou a bailarina como seres superiores, fechados em mundos etéreos inatingíveis. Pede-se que façamos a nossa dança, com o nosso jeito. Podemos encontrar uma forma própria de mover sem a viagem de que é preciso ser magro, branco e perfeito, e sem a viagem de que o corpo tem que caber num espelho. O corpo tem a oportunidade de se fazer corpo e de conviver com outros que se fazem corpos à sua maneira. Não está pronto em um espelho do ego ou da identidade tão bem construída que não possa se deformar. O ser dançante vai para os es-paços urbanos gentrificados, para os prédios abandonados, para a cidade onde as pessoas não têm corpo e não podem se olhar. O coletivo Centro em Movimento (c.e.m), de Lisboa, está aprofundando esse trabalho de criar outros corpos para estar na cidade, partindo da união entre quem dança e quem não dança. Torna-se possível arriscar a própria identidade. Sair do próprio script. E aí entram também a ética e a solidariedade

Victor Hugo Tozarin dos Santos (23 de outubro de 2014)Como manifestações estéticas e artisticas atuais pode-se citar a Ocupação Luiz Estrela, que gerou como resultado o Espaço Comum Luiz Estrela, um lugar público, aberto a todos, que oferece oficinas, exposições, apresentações, debates e muitas outras interações artístico-político-sociais, trazendo à tona a democratização da arte e a dominância de um novo uso, mais pertinentes à comunidade local, a edifícios abandonados pelo governo. Pode-se citar também o Occupy Wall Street, um mo-vimento de protesto contra a desigualdade econômica e social, a corrupção, a especulação imobiliária indevida, proveniente da influência gananciosa das grandes empresas. Tal movimento entra em concordância com a lógica de que a multidão, quando em rede, através de táticas estéticas, atua na discussão políti-ca e ataca o capitalismo contemporâneo.

Claudia Laport Borges (22 de outubro de 2014)Movimentos como o RAP (que envolvem aí dança de rua, por exemplo), valorização de festas e danças populares (maraca-tu, samba de roda, dança do coco, etc.); grafites; poesias em espaços públicos; tricô nas ruas; democratização de livros/conhecimento, como as paradas culturais (em Brasília várias paradas de ônibus possuem livros que podem ser emprestados

- esta é uma ação promovida pelo Açougue Cultural T-Bone); estátuas vivas; circo no trânsito; le parkour, entre outros. Na minha cidade, por exemplo, os espaços públicos, geralmente utilizados pelo governo, hoje são “invadidos” por atividades culturais gratuitas, promovidas ou não pelo governo distrital. O Museu da República, por exemplo, localizado na Esplanada dos Ministérios, é ponto de encontro de skatistas, rappers, shows de bandas da cidade, etc. Ou seja: a arte tomando conta de espaços que, no dia a dia, são direcionados às questões pura-mente políticas e econômicas.

Bernardo Romagnoli Bethonico (21 de outubro de 2014)A produção estética das lutas viraliza desejos de outros mun-dos. Coloca os temas de reivindicação política na ordem do dia ao mesmo tempo que aponta para lá deles, para modos de vida e para o coração, para o singular como ponto de enunciação. Da mesma forma como a antiga esquerda torna-se redutora,

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com diversas ações que deram visibilidade às pautas principais de diversas ocupações culturais, realizando inclusive links en-tre os movimentos multitudinários de BH, SP, Rio e Brasília através do Bandeirão “Unfair Players”. Vale a pena dar uma passeada pela fanpage desse grupo.

Desde os corações que integraram artisticamente a ocupação da Câmara Municipal de BH até a intervenção que eles utiliza-ram no MAR (museu que fez parte de um dos mais perversos projetos de gentrificação ocorridos no Brasil nos últimos tem-pos - https://www.facebook.com/pages/Nós-Temporários/505720246182481?fref=tsE), a atuação dos banhistas junto aos movimentos sociais quando fecharam o Viaduto Santa Tereza, novo QG da Assembleia Popular Horizontal que surge durante as manifestações de junho de 2013 (esta ocupação durou uma semana, envolvendo diversos grupos artísticos e culturais da cidade numa programação cultural de 24h).

Movimento #ViadutoOcupado, criado provisoriamente agluti-nando vários movimentos sociais e culturais numa luta comum (https://www.youtube.com/watch?v=IQ_61bPbdX4).

Aqui também é interessante observar o surgimento do Carnaval de rua de BH empoderado pelas pautas política e ativista. Podemos dizer que é um carnaval ativista de ocupa-ção massiva das ruas durante 10 dias (vídeo com vários blocos, mas observem no segundo vídeo como há uma construção híbrida de sentido envolvendo cultura oriental indiana, carna-val, Caetano Veloso, outros instrumentos, bicicletinha que leva adereços e caixas de som, ocupando em 2014 uma favela des-locada do centro/Zona Sul de BH). Segundo Negri, na segunda parte do livro Multidão, a multidão é queer, o carnaval-perfor-mance, ao contrário das vanguardas enfileiradas em linha com caminhão e microfone na frente, e fazem das ruas um verda-deiro festival estético (https://www.youtube.com/watch?v=U-SoICaoXCvU, https://www.youtube.com/watch?v=pgAjDlgFT1g).

Espaço Comum Luiz Estrela e o teatro como forma de ocupar com afeto e convencer a cidade da importância de espaços democráticos para a cultura, fora da lógica do mercado e do

com formas de vida distantes, inclusive práticas que não têm a ver com o campo da arte. Eu me lembro da foto “To Change Art Destroy Ego” (1965), de Ben Vautier (http://tongueoftheworld.tumblr.com/post/55264410691/to-change-art-destroy-ego-1965-by-ben-vautier). Para um mundo mais democrático, onde a multidão seja capaz de produzir subjetividades, é essencial que estejamos dispostos a arriscar a própria identidade. Só as-sim podemos escutar o outro e comunicar efetivamente, pela arte ou não.

Natacha Rena (21 de outubro de 2014)Pensando na importância da estética como dispositivo afetivo das lutas multitudinárias na cidade estética e na importância da arte para os movimentos multitudinários no Brasil nos últi-mos anos, vou fazer aqui uma contextualização breve pra quem não é de Belo Horizonte. Desde a origem do Duelo de MCs sob o Viaduto Santa Tereza em 2007, mas, principalmente, desde 2010, com o surgimento da Praia da Estação em manifestação contra um decreto do prefeito Márcio Lacerda proibindo o uso livre das praças. Depois surge o Fora Lacerda (movimento la-ranja), depois o carnaval quase inexistente de Belo Horizonte surge e vem crescendo exponencialmente por toda a cidade com suas marchinhas ativistas e ocupando sem alvará ou di-recionamento determinado espaços inusitados da cidade. Vou postar aqui alguns vídeos dessas manifestações e também um link do Indisciplinar, contendo um Atlas das Insurgências Multitudinárias (http://blog.indisciplinar.com/) que fez parte do evento Cartografias do Comum (https://www.facebook.com/pages/Cartografias-do-Comum/241739899361022?fref=ts), que realizamos no Espaço do Conhecimento da UFMG.

• Duelo de MCs de BH: http://duelodemcs.blogspot.com/;

• Praia da Estação: https://www.youtube.com/watch?v=Xv3a-07FG9OQ, https://www.youtube.com/watch?v=F-ZjyReKO6I, http://www.youtube.com/watch?v=5354OiTR07EO

O Coletivo “Nós, temporários”, de Belo Horizonte, vem atuando desde as manifestações de junho de 2013, incluindo a mudança do nome da Praça da Estação para Praia da Estação e também

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Estado (https://www.youtube.com/watch?v=Z7ftnoW0gzQ e https://www.youtube.com/watch?v=KgFhTfp4GFQ), incluindo negociação com PM e com advogado das Brigadas Populares e o Coletivo Margarida Alvez, Joviano Mayer, vestido de mulher.

A multidão é queer (https://www.youtube.com/watch?v=lj1hN-Fo22rs) e, no carnaval, o Espaço Comum Luiz Estrela também cria seu bloco e sai junto com o Tarifa Zero, outro movimen-to com fortes tendências estéticas. Vale também um passeio pela fanpage do movimento (https://www.youtube.com/watch?-v=EuKZSqXUsN0&list=PLQuZp9VAKTuRNZ3MEtZTaGr50gmUr-ZzHH&inde x=8).

• Tarifa Zero (https://www.facebook.com/tarifazerobh?fref=ts).

Maisa Cristina da Silva (19 de outubro de 2014)Compreendo que as produções estéticas sempre foram fun-damentais na luta da subjetividade. Podemos perceber essas manifestações no conceito de Pop Art, que torna a arte um produto de massa; em Duchamp, que confunde o mercado das artes com a Fonte. Indo mais atrás na história, notamos a subjetividade na poética do cotidiano captado por Vermeer. Na atualidade as manifestações estéticas e artísticas também produzem novas formas de subjetividade como os objetos de Nelson Leirner que discutem a sociedade de consumo; inser-ção no mercado ideológico de Cildo Meireles; Néle Azevedo voltado para o consumo dos recursos naturais do planeta; no Cristo de Alexander Kosolapov ou no de León Ferrari, até mes-mo nos objetos de Renato Vale, ou nas crianças crucificadas de Erik Ravelo, na banana de Luciana Rondolini coberta de diamantes.

adriana Covolan (15 de outubro de 2014)Com essa pergunta veio à memória recente o Parada Poética, que surgiu através do poeta, escritor e cantor Renan Inquerito. Não se restringiu a Nova Odessa (SP), ganhou espaço e vem circulando por várias cidades do interior de São Paulo. Nas palavras de Renan: “Um lugar para recitar textos, versos, fra-ses, poemas e revoltas. Seus e dos outros. Lendo, decorado, de improviso, não importa a forma, nós não temos fôrma. Não

somos profissionais, queremos ser amadores, amadores da arte do ofício da palavra”.

Vanessa Camila da Silva (15 de outubro de 2014)Acho que todas as obras, principalmente aquelas de interven-ção urbana, ajudam tanto num novo olhar estético quanto na reflexão para a utilização do espaço público, não como disputa, mas como um local de apropriação e reconhecimento. Bons exemplos são Os Gêmeos, Eduardo Srur e tantos outros que fazem trabalhos artísticos fantásticos com propostas que am-pliam o olhar.

Dalba Roberta Costa de Deus (14 de outubro de 2014)Concordo que seria necessária às lutas uma produção esté-tica como ação na disputa pelas subjetividades e isso já vem acontecendo. No Brasil, desde a década de 1970, despontam grupos de artistas e artistas que tomam a cidade como campo de investigação, procurando expandir o circuito e mesmo a noção de obra de arte. Um exemplo em Belo Horizonte, na dé-cada de 1970, foi a artista Teresinha Soares, cuja participação em salões era sempre aguardada com interesse, com seus trabalhos originais e suas performances provocativas.

Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)Acho que rever as posturas, estratégias e táticas de grupos artísticos anteriores em situação de mudança de paradigma é um bom começo para não se pensar que se está descobrindo a pólvora (rsrs). Tem uma série de artistas no passado que decidiram rever a arte como ela era entendida em suas épo-cas, repensar a arte fora da arte, aceitar com humildade que precisamos nos rever. Isso acaba caindo na interdisciplinari-dade: estudar política, cultura atual local e global, assimilar as culturas de margem popular (como referenda Paulo Freire e N. G. Canclini), educação (mediação, métodos), filosofia, etc. Isso, como falaram a Raissa Leão e a Luiza Alcântara, acaba desembocando nos movimentos de rua, ocupações e coletivos, como o trabalho lindo e crítico do Espaço Comum Luiz Estrela, a galera do Estilingue, do Piolho Nababo, o Lotes Vagos e, fora de BH, tem o GIA (Bahia), o Capacete Entrenimentos e vários espaços autonomistas de arte. Acho que a democracia aí vem

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de ações fora do sistema de arte atual, mas com um pé, por vezes, dentro dele, criando ruídos, como foi o leilão 1,99 do Piolho Nababo no Palácio das Artes. Vocês foram? Foi ótimo! Tem muita coisa legal também de ler no livro Escavar o Futuro, resultado de uma exposição em 2014 no Palácio das Artes.

QUESTÃO 3Seria possível falar em uma arte multitudinária trabalhada via pro-cessos criativos, colaborativos e horizontais atuando na constitui-ção do comum contra a prática própria do capitalismo pós-fordista também chamado de Império? Uma arte que transite junto com os processos de resistência aos avanços do capitalismo finan-ceiro? Uma arte que estimule a liberdade de pensamento e que esteja envolvida com a ideia da criação de novas formas de vida? Uma arte que crie conexões e insira cada vez mais pessoas nos processos de criação? Uma arte menos autoral e mais coletiva e copyleft? Uma arte como agenciadora de processos criativos, colaborativos e horizontais da multidão que se constitui contra a expropriação do comum? Poderíamos imaginar uma produção biopotente, fora da lógica do sistema da arte como riqueza da vida que excede, transborda e torna-se também processo constituinte de produção do comum? Fazer arte de forma autônoma, desvin-culada do Estado-Capital e das instituições tradicionais de arte? Uma arte que estimule o afeto, a criatividade e a sensibilidade? Uma arte que produza verdadeiros espaços heterotópicos? Uma arte do encontro e da festa?

Greice Teixeira de Souza (13 de dezembro de 2014)Todo artista vive pouco ou muito as consequências dos avan-ços do capitalismo financeiro. A arte, na maioria das vezes, transita junto com os processos de resistência, estimulando a liberdade de pensamento e agenciando os processos ino-vadores, criativos. Contudo, para que a arte consiga ganhar espaço apropriado para se proliferar, é necessário vencer as tendências do capitalismo e, muitas vezes, ela se esgota nes-sas fronteiras.

Fred Triani (31 de outubro de 2014)Arte fora da lógica do sistema. Ela existe, está aí, por toda parte, subterrânea e marginal, mas não é chamada de arte.

Não é chamada de arte por esse sistema, até o momento em que esse mesmo sistema decide chamá-la de arte. Gosto de pensar na arte em seu campo expandido. A arte que simples-mente acontece.

Reginaldo Luiz Cardoso (27 de outubro de 2014) Achei interessantes as questões levantadas em torno do “ego”, da “individualidade”, etc. A possibilidade da arte multitudinária passa necessariamente pela existência de sujeitos que desper-tem a(s) subjetividade(s) alheia(s). E isso independe, a meu ver, de que a iniciativa seja coletiva ou individual, já que há espaço para ambas as ações. Uma experiência muito bem-sucedida foi a que se deu na longa discussão em torno do que seria feito do aeroporto Tempelhof, em Berlim. Demolição pura e simples? Um shopping center em seu lugar? Um conjunto habitacional (Condomínio fechado) que atenderia ao mercado especulativo? E assim foi... Até que, para dar um fim ao quiproquó, o prefeito de Berlim resolveu criar um concurso público para projetos arquitetônicos. E então surgiu Jakob Tigges, um arquiteto e professor da Universidade Técnica de Berlim, que, para de-marcar a sua crítica à proposta do Poder Público, fez um pro-jeto irrealizável ao qual chamou de The Berg. Bem, a história é comprida e muitíssimo interessante. O fato é que essa ideia reacendeu o imaginário dos berlinenses (que já andava meio apagado) e uma nova discussão foi retomada por toda a cida-de. The Berg provou ser a própria concretude da profanação, conceito caro ao filósofo político Giorgio Agamben. Assim, o território transformou-se em Feld Tempelhof, o maior parque público de Berlim, inaugurado na primavera de 2012.

Thais Mor (26 de outubro de 2014)A busca por novos caminhos autônomos e independentes do poder Estado-Capital tem tornado a web e as redes sociais fer-ramentas para o encontro de ideias comuns e detecção de ri-zomas. O uso desses meios de forma estruturada em benefício do bem comum vem buscando unir pessoas e gerar biopotên-cias. Um exemplo disso são as Crowdfunding, plataformas que captam recursos para projetos através de incentivo de pessoas físicas. Ideias e projetos independentes são apresentados e as

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pessoas que acreditam nas propostas podem contribuir para viabilizar as ideias. O que conta, nesse caso, é uma análise pública, de cidadão X cidadão para um financiamento coletivo.

Eliane Maris da Silva (23 de outubro de 2014)Ou admitimos que tudo é arte, e então a criação artística é um OFÍCIO/TRABALHO como o de um marceneiro, pedreiro, vendedor, etc., ou admitimos que a arte não deve ser fator de sobrevivência, daí (perdoem-me os artistas) temos que assumir uma segunda atividade para sobreviver. A arte assim deve-rá ser sempre doada ou podemos voltar ao escambo em que comprador e vendedor se entendem na determinação do preço.

Murilo Cesar Silva de andrade (23 de outubro de 2014)Se primeiro pensarmos a Arte e os movimentos artísticos fora dos esquemas de cooptação capitalista, que muitas vezes os capturam e alimentam uma produção seriada ou os trans-formam em verdadeiros produtos de acesso privilegiado e comprometidos com a manutenção de um status e uma se-gregação com relação ao que se pode considerar Arte ou não, teremos que visualizar também o papel do artista nesse con-texto, o entendimento do que vem a ser um artista nos tempos atuais e como ele se articula e interpreta a si próprio como tal. Nesse sentido, o artista, dissociado dos mecanismos do Estado-Capital, provavelmente tentará dar um sentido à sua Arte e se representar e representar a sua Arte num movimento e numa concepção de mundo maior ou diferente das impostas pelo sistema capitalista. Nesse ponto ele terá condições de se reconhecer e interpretar, como artista, não como profissional, no sentido do desempenho de uma função institucionalizada no Estado-Capital, mas como a(u)tor de sua política e sua relação com o mundo. Nesse sentido, os movimentos artísticos críticos de seu tempo poderão estar, mesmo em alguns momentos, circulando dentro dos circuitos tradicionais, comprometidos com outra dinâmica e outros conceitos, agindo também den-tro do próprio discurso institucionalizado. A mudança, nesse sentido, caminha então para a reestruturação de conceitos tradicionais e, consequentemente, para formas de criação e de experiências estéticas novas e a partir de modelos inéditos ou marginalizados, utilizando parâmetros criativos baseados na

colaboratividade e na coletividade, utilizando principalmente as formas de articulação em rede como vias paralelas aos circuitos privilegiados. Correndo “por fora” dessa lógica, mo-vimentos multitudinários agem numa concepção de mundo diferenciada, implementando diversos campos de saber e cul-tura, como a Arte, numa perspectiva dissonante dos processos burocráticos do Estado-Capital, fazendo emergir atitudes au-tônomas e espontâneas comprometidas apenas com sua es-sência, sua expressão e sua filosofia estética sem, no entanto, se dissociar do diferente e do comum coletivo.

Janaina Faleiro Lucas Mesquita (23 de outubro de 2014)Acredito que é possível, sim! Uma arte que estimula o afeto, a criatividade e a sensibilidade, ao mesmo tempo que é colabo-rativa e libertadora.

Carlos Muñoz Sánchez (23 de outubro de 2014)Outra das coisas a mudar é o que Ricardo Macêdo falou na sua resposta, os egos. A ideia do artista individual está obsoleta. Sem se esquecer de si mesmo, tem que passar de ser individu-al pra ser um indivíduo dentro de uma coletividade. Um exem-plo é o coletivo Boa Mistura, depois de um tempo trabalhando juntos, assinando os projetos com os cinco nomes dos artistas que formam o coletivo, eles passaram a assinar com o nome do coletivo, esquecendo-se dos egos pessoais.

Ártemis Garrido (23 e outubro de 2014)Sim, vem se tornando possível. Tomemos como exemplo a per-formance, prática artística que vem sendo descoberta e estuda-da a cada ano. Os artistas performers, quando não pretendem dialogar com o espaço (ou criar outro espaço dentro do espa-ço), pretendem dialogar com o outro, o que vê e/ou participa da ação. O artista pode propor ações performáticas gratuitamente ou pode ser pago, quando há uma instituição que promove um festival ou um projeto de curadoria em performance, como é o caso do Memorial Minas Gerais Vale que, periodicamente, contrata artistas convidados pelo curador Marco Paulo Rolla para se apresentarem no espaço.

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João Paulo de Freitas Campos (23 de outubro de 2014)Penso que redes de produção, distribuição e apreciação da arte que “escapam” da lógica do capitalismo rentista e da “nova indústria cultural” (criativa) não só são possíveis como já são um fato - como exemplos podemos citar os diversos saraus, filhos dos vira-latas nômades e insurgentes (e, obviamente, os próprios vira-latas). Essas redes se espalham a partir de uma lógica colaborativa e desterritorializada - principalmente as mobilizações nômades -, construindo um espaço de inovação estética e crítica política contundente. Porém, uma questão que esquecemos é que, apesar de ser praticamente a mes-ma, a indústria cultural transformou também a sua lógica, se desterritorializando. O foco da nova indústria cultural - além da criação de criadores empreendedores - é a circulação dos bens culturais e, neste ponto, ainda nos encontramos inseri-dos na lógica industrial. Não obstante, acredito que podemos

“jogar” esse jogo entre processo produtivo e circulação - nas redes sociais virtuais, por exemplo, com seus gate keepers e agentes com papéis específicos - para construir novos pro-cessos constituintes através da produção artística, constru-ção híbrida: ao mesmo tempo horizontal e hierarquizada (pois, como constato na minha pesquisa sobre os vira-latas, esses movimentos insurgentes horizontais também constroem, natu-ralmente, hierarquias e constrições, porém estas seguem uma lógica incrivelmente díspare em comparação com as amarras canônicas dos mundos da arte oficiais).

Taís Freire de andrade Clark (23 de outubro de 2014)Sim, é possível! E somente é possível a arte multitudinária existir dentro de um sistema que a todo momento tenta se apropriar dela. Ou seja, esse tipo de liberdade, ou de resistên-cia só existe porque se consolida em uma afronta direta a uma produção estética já mercantilizada, ou cooptada pelo mercado. O mais interessante é que as características e os questiona-mentos próprios desse tipo de movimento criativo que pre-senciamos são o que o torna tão difícil de ser apropriado pelo mercado, a horizontalidade do processo, a coletividade das criações, tudo isto dificulta, para não dizer impossibilita, essa apropriação. Portanto, não acreditar nesse papel desempe-nhado pela arte é o mesmo que fechar os olhos para todos os

processos criativos e transformadores que temos presenciado ao longo dos últimos anos.

Maria Goretti Gomide Pinheiro (23 de outubro de 2014)Acredito, sim, em uma arte multitudinária, que transita junto com os processos de resistência aos processos do capitalis-mo. Por ser livre, a arte estimula os pensamentos e pode nos ajudar a criar novas formas de viver, pensar e relacionar com a vida. A demonstração artística social existe há muitos anos e aos poucos veio ganhando terreno. Tinha a função de envolver os transeuntes, pelos movimentos do artista e o sentido das falas. Lentamente foi crescendo e hoje ganhou muita força em função da resistência contra o Estado-Capital. É uma arte que dialoga diretamente com os indivíduos e vai além da criação. É a democratização da arte, uma valorização da expressão e relaciona o conceito do espaço público comum, fazendo uma interação, um diálogo, construindo uma convivência mútua entre arte e pessoas, e isto dá legitimidade às cidades. É uma arte de diálogo íntimo e cúmplice com a cidade, e está carrega-da de força e significados. Isso faz com que a arte de rua deixe de ser uma arte marginalizada e passe a ser reconhecida como Arte Contemporânea. Significa possibilidades, os artistas con-seguem uma ascensão e passam também a ocupar os espaços das galerias, fazendo parte também do sistema da arte tradi-cional. Isso nos mostra o quanto a arte urbana se desenvolveu e a quantidade de artistas que foram surgindo ao longo destes últimos anos, sem contar que é também uma ferramenta capaz de educar. É uma arte em que o artista desenha sua verdade, uma atitude que leva a sociedade a refletir e se transformar.

Júlia Nascimento de Oliveira (22 de outubro de 2014)Sim, as manifestações de arte multitudinária não só são fac-tíveis, como estão ganhando força no cenário da resistência contra o Estado-Capital através da conexão de redes (coletivos, ocupações, correntes artísticas autônomas). Essa arte che-ga à cidade com propostas de ocupações mais espontâneas e democráticas, questionando os processos de gentrificação. Tudo isso é feito através da aglutinação de ideias comuns, in-satisfações e desejos compartilhados, que se orientam para uma trajetória de alcance exponencial, como é o caso de Belo

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Horizonte, onde encontramos o Salve Santaterê, Duelo de MCs, Fora Lacerda, dentre outros citados aqui.

Dalba Roberta Costa de Deus (20 de outubro de 2014)De todas essas questões, um movimento que venho notando dos artistas contemporâneos é a expressão através da coleti-vidade e menos autoral. Cada vez mais parece se buscar uma arte de encontro, estimulante da liberdade de pensamento e cheia de conexões. Não encaro muito a arte apenas como processo de resistência, mas, principalmente, como processo criativo e colaborativo nos tempos atuais...

Ricardo Macêdo (14 de outubro de 2014)Acredito que sim! Contudo, os modos de se ativar isso ainda estão caminhando, penso que a fronteira a ser ultrapassada ainda é a do ego, da disposição e abertura de espírito para tra-balhar com o Outro. Sair de uma postura mental e emocional de autoria para outra de coautoria, de preocupação com a pró-pria cidade, com o país ou o mundo é lento, acho que qualquer mudança neste sentido é lenta, um ativismo lento. Começar a fazer obras fortes que questionem o sistema facilmente cha-ma a atenção dos curadores e editais, daí o embate do artista consigo mesmo: é difícil resistir aos holofotes, bajulações e à grana, pra quem vive de editais. Acho que é preciso uma vonta-de muito grande interna (e um molejo pra falar coisas sem se queimar no circuito - rsrs), de acreditar mais na necessidade de mudança urgente do que nas cifras. Ganha-se muito dinhei-ro hoje com bons projetos.

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Cada época é caracterizada pelo aparecimento de novas possibilidades que modificam relações de forças anteriormente existentes. A interdependên-cia, em escala global, dos processos que regem a produção dos espaços-tempos na atualidade, in-dissociáveis do funcionamento e das condições do Capitalismo Mundial Integrado, faz do espaço hoje um campo de forças complexo no qual coexistem tanto tendências de especialização como de inter

-relação dos seus diversos componentes, em uma nova tensão entre o local e o global. Menos que uma oposição, trata-se de uma interdependên-cia entre essas duas instâncias, a partir da qual abrem-se novas potencialidades com a criação de novas comunidades e localidades e de novas rela-ções entre ambas.

Diante dessas novas possibilidades, a noção e a experiência da comunidade têm constituído um foco importante nas atuais rearticulações de for-ças. Menos que uma dimensão originária e au-têntica a ser protegida ou resguardada da vora-cidade dos interesses capitalistas aos quais seria supostamente anterior, a comunidade é também ativamente investida e produzida por eles. Nas

QUESTÃO 1 É possível pensar relações entre arte e cultura com a comunidade que se contraponham às relações e aos interesses ditados pelos vetores econômicos e mercadológicos na atualidade?

Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro de 2014)Acredito que a grande armadilha reside em se contrapor. Estar contra os interesses econômicos e mercadológicos que regem o mundo hoje não significa que a nossa arte não possa virar mercadoria e publicidade. Penso que a arte tem que exercer o seu olhar adicionando dimensões, atuando no que existe: se tivermos que esperar deter-minadas condições para só então podermos fazer, ficamos velhos. A luta com o grande capital não é para ser vencida, pois a lógica da competitividade elimina muitas possibili-dades de “estar com”. No plano micro, quan-do no dia a dia nos permitimos nos comparar menos e estar mais, outras comunicações se fazem. Não há como atuar no plano macro se não for a partir do que está ao meu alcance. Dessa forma, as relações comunitárias são por excelência revolucionárias, quando eu me permito me relacionar e me desconstruir.

SIMONE PaRRELa TOSTES*

Arte, espaço e comunidade: modos de endereçamento e produção de singularidade

atuais condições de desenvolvimento do capital, este não se reduz mais aos domínios econômicos e a pró-pria produção transborda os espaços estritamente industriais e se propaga por todo o território. De fato, como observam Guattari e Rolnik (1986), há um axio-ma operatório do capital que consiste num sistema de equivalência generalizada, presente tanto nos do-mínios da produção econômica como cultural: “Desse ponto de vista o capital funcio-na de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjeti-va” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.16).

Com efeito, o funcionamento da máquina financeiro-produ-tiva nos quadros da economia de mercado comporta meca-nismos de regulação das de-sigualdades e dos excessos próprios de seus modos de operação, elegendo popula-ções e lugares afetados dire-ta ou indiretamente por suas ações como alvo de atuação. Seja como cláusula imposta nos contratos de empréstimos ou repasses de recursos entre agências de fomento e finan-ciamento em escala global, nacional ou local e os diver-sos níveis da administração estatal no estabelecimento de contrapartidas sociais; seja no

* Simone Parrela Tostes: Arquiteta pela UFMG,

Mestre em Teoria e Crítica da Arquitetura e

Urbanismo pela mesma instituição. Doutoranda

em Geografia no Instituto de GeoCiências da UFMG.

Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo

da Universidade de Itaúna. Tem experiência

em projeto, ensino (graduação e pós-

graduação) e pesquisa em Arquitetura e Urbanismo.

É pesquisadora dos grupos de pesquisa

INDISCIPLINAR (no qual é co-editora da revista

homônima) e PRAXIS, da Escola de Arquitetura da

UFMG.

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setor privado como adesão a práticas afinadas a tal fun-cionamento, em que grandes e médias empresas têm sua reputação atrelada a ações no domínio da responsabilidade social e passam a dedicar quantias consideráveis de seus orçamentos a tal finalidade (ou mesmo são impelidas a fa-zê-lo por meio de incentivos fiscais e tributários); seja ainda no terceiro setor, a demanda reguladora de práticas com responsabilidade social implica e assim produz a comuni-dade como objeto privilegiado de políticas e intervenções dos mais diversos matizes.

Sem prejuízo dessas obrigações, empresas e instituições se inserem nas comunidades e localidades movidas tam-bém por seus interesses e lógicas particulares: enquanto algumas pautam suas estratégias nos quadros da ação fi-lantrópica, reatualizando certa tradição do paternalismo e do assistencialismo do século XIX, por sua vez tributária das práticas e dos objetivos da ação doutrinária que acompa-nhou o projeto colonizador, outras orientam seus projetos em direção a populações diretamente afetadas por suas atividades, numa espécie de reparação de danos. No mais das vezes as ações são concebidas visando à gestão e ao controle estratégicos da imagem das instituições. Ademais, quando não são gerenciadas por fundações atreladas às corporações, grande parte das verbas destinadas para pro-jetos em comunidades acaba sendo gerida por agências de publicidade que detêm as contas das empresas que inves-tem neste setor ou por produtores profissionais que transi-tam com maior desenvoltura pelos meandros burocráticos dos programas e projetos existentes. Há também todo um universo de atuação conduzido pelas instituições de ensino que veem na comunidade um universo leigo a ser trabalha-do ou instruído. Assim o incremento de programas, proje-tos e ações destinados a comunidades tem aberto todo um campo de atividades a profissionais e organizações da so-ciedade civil ligados aos setores mais diversos, da saúde à habitação, passando por educação, cultura, esportes, artes,

Marina annes Duarte (1 de novembro de 2014)Acho que é possível, em todos esses aspec-tos que foram citados - direitos autorais e copyleft, open source, produção coletiva, fi-nanciamento coletivo. A própria economia solidária tem muito a ver com isso tudo, né? Cooperativismo... Acho que são outras for-mas de organização com outros raciocínios que já estão rolando, não só na arte e cultu-ra, aliás, e realmente cada vez mais eviden-tes e conectados - imagino que um pouco por conta dessa facilidade das redes e da internet.

Reginaldo Luiz Cardoso (31 de outubro de 2014)Essa possibilidade passa, a meu ver, pela afirmação de uma democracia radical (nos sentimentos, nos pensamentos e nas ações). Pois o que vemos, hoje, são mecanismos cada vez mais “democráticos” (naturali-zados) de controle, conforme prenunciou Deleuze. Do panóptico (vigilância) passamos para o sinóptico (controle). Lembro aqui o arquiteto Sérgio Ferro que, no momento em que todos teciam loas e boas à arquitetu-ra moderna desenvolvida por Niemeyer (e ele foi uma unanimidade), ousou criticar o mito. Para Ferro, não é possível construir uma cidade emancipada sem emancipar o canteiro de obras. Se aí acontecesse isso, aí teríamos arquitetura emancipadora. Com

etc., e que, não obstante sua aparente diversidade, compar-tilham o ponto de vista privi-legiado de centro de comando a partir do qual algum tipo de intervencionismo se exercerá sobre as comunidades.

Entrincheirada por corpora-ções e instituições diversas como beneficiária de ações reparadoras, objeto de marketing empresarial, de contrapartidas contratuais ou ainda objeto de inves-timento e experimentação de toda uma pedagogia de inclusão/ajuste à ordem social, à comunidade, como finalidade estratégica ou nicho de mercado, não res-tam muitas alternativas fora da reprodução do poten-cial alienante da sociedade capitalista em sua verten-te liberal contemporânea.

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Entretanto, sem desconsiderar as implicações dessas mo-dalidades de produção instrumentalizada de comunidade, há que se ampliar o entendimento do que a comunidade pos-sa vir a ser e realizar. A produção de relações desviantes das pautas e dos interesses mercadológicos é um possível que se anuncia, e, por curioso que pareça, incrementado precisamente a partir das mesmas condições que propi-ciam essas capturas. Um direcionamento que parta das comunidades e dos grupos sociais não hegemônicos pode fomentar outras modalidades de criação e afirmação da vida e há vários indícios que apontam para tal possibilidade. De fato o alcance e a viabilização de ações e iniciativas pro-tagonizadas pelas próprias comunidades, inventando novas maneiras de estar junto, de viver, de criar, de trabalhar, de se relacionar e de produzir as próprias existências, têm adquirido consistência cada vez maior.

O maior dinamismo das trocas e relações sociais devido à grande mistura de povos, raças e culturas em todos os con-tinentes e aos progressos da comunicação e da informação possibilita a mistura de filosofias e modos de vida em detri-mento da referência predominante baseada no racionalismo europeu, propiciando, de modo inédito no momento atual, condições de uma rica sociodiversidade, conforme observa o geógrafo Milton Santos (2010). A rapidez dos processos leva a uma rapidez das mudanças, e tanto do ponto de vista da ordem material quanto na ordem intelectual, este dinamis-mo característico das condições atuais é capaz de ensejar novas possibilidades de compreensão “do mundo, do lugar e da respectiva posição de cada um, no mundo e no lugar” (SANTOS, 2010, p. 167), assim como novos processos de sin-gularização em prol de modos de vida mais ricos.

E são essas novas condições que hoje demandam um empe-nho de redefinição radical do entendimento da comunidade e de suas implicações e possibilidades. Empenho que, por sua vez, não passará aqui pela busca ou circunscrição de atributos fundantes capazes de conferir um quadro estático de referências, mas será desdobrado em uma problemati-

isso, para se chegar aos gaps (frestas) do sistema - conceito caro a H. Arendt - os atores sociais devem, necessariamente, começar observando minuciosamente se suas práticas cotidianas são, de fato, democráticas. Caso contrário, tudo aqui-lo que se almeja cai na vala comum de uma comunidade homogênea, calcada em identidades, sobrepujando as subjetivida-des. Isto é, aquilo que se pensava como um avanço transforma-se em um lugar que em nada se revaloriza como espaço de sociabilidade e de vida. Enfim, se não houver um novo homem, não haverá uma nova compreensão e, logicamente, uma nova interpretação da realidade.

Yuri amaral (30 de outubro de 2014)Acredito que um dos melhores caminhos seja usar as regras do jogo contra o pró-prio jogo. Não há como nos isolarmos do mundo, muito menos como nos desvincu-larmos da maneira que ele funciona. No entanto, criamos nossos meios de reor-ganizar e reconfigurar às nossas neces-sidades. Como já foi citado aqui, o finan-ciamento coletivo é um desses caminhos, copyleft, creative commons, a internet em si se alimenta dessas “regras antigas” e corrobora com a quebra delas, fornecen-do meios de se [re]programar o mundo e as comunidades. A descentralização da emissão, as possibilidades de produção (qualquer indivíduo hoje pode produzir, independentemente de sua localidade e de seus atributos identitários) e a con-sequente reconfiguração do mundo e da maneira com que se dialoga com ele. Já vivemos essas novas relações, de manei-ras sutis ou em escala global, a favor do

zação feita de novas relações e de reenvios a uma multiplicidade de outras questões.

Vivemos hoje uma comunhão glo-bal dos lugares com o Universo, a partir da qual se pode falar de uma interdependência universal dos lugares, conforme salienta Milton Santos (2008). Trata-se, segundo o autor, de um proces-so que altera o arranjo anterior baseado no Estado-Nação e sua noção jurídico-política de terri-tório. Tal noção desenvolve-se a partir do conhecimento e da con-quista do mundo desde o Estado Moderno e o Século das Luzes até a era da valorização dos cha-mados recursos naturais. O terri-

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tório foi a base e o fundamento do Estado-Nação, instância que efetivamente definia os lugares, ainda que nem todo território fosse subordinado a um comando estatal. Hoje os lugares são solicitados por novas dinâmicas que, não sen-do mais exclusivamente derivadas do comando de Estados Territoriais, permitem que se fale de uma transnacionaliza-ção dos territórios, ainda que, mais uma vez, não se possa afirmar que todos os territórios sejam transnacionalizados ou que os que o são o sejam completa e totalmente.

Esse novo funcionamento do território cria novas relações, estudadas por Milton Santos a partir de duas categorias, as horizontalidades e as verticalidades (2006, 2008). As ho-rizontalidades são os domínios da contiguidade e de vizi-nhanças definidas por uma continuidade territorial ou de superfície, própria do vínculo que une os seus membros. Já as verticalidades referem-se a uma vinculação que se dá por todas as formas e todos os processos sociais que ligam pontos distantes uns dos outros. Mas são os mesmos lugares que se relacionam horizontalmente e verticalmente, caracterizando o que Milton Santos denomina de acontecer simultâneo (SANTOS, 2008, p.139).

Embora não coincidam, território e comunidade se im-plicam mutuamente, ainda que o vínculo de contiguidade territorial não seja uma condição para a constituição da comunidade: se, por um lado, ele está implícito quando se trata de agrupamentos do tipo associações de bairro, de moradores, de vizinhos, etc., pode haver o compartilha-mento de vínculos de outra natureza, como no caso de um credo religioso, uma afinidade musical e uma série de ou-tros exemplos possíveis, em que sequer a presença física e compartilhada dos membros é necessária. Nesse caso, ainda que a contiguidade territorial não seja o ponto co-mum, o território ainda está presente, uma vez que são os mesmos elementos que se vinculam por meio de uma e/ou outra modalidade numa simultaneidade possível e passível de produzir laços comuns.

mercado ou contra ele (usando suas regras e seus meios). A dificuldade reside, justamen-te, no entender o papel do outro em relação ao seu, em se reposicionar no mundo como

“nós” e não mais apenas “eu”. Seria entender que nós somos comunidades. Acredito que estamos em um processo de mudança, lento, porém sem volta.

Elton Monteiro (30 de outubro de 2014)Pensar nesse movimento cultural indepen-dente das relações capitalistas requer um olhar contrário ao que se tem normalmente realizado. Quando se procura nas comunida-des algum tipo de valor cultural existente à parte de qualquer instituição, podemos en-contrar vivas – ainda que muitas vezes sutis

– manifestações pulsantes de algum tipo de manifestação de cultura, de arte popular. A questão está na tendência que ativistas cul-turais têm de trazer formatada a produção da arte. Quase sempre, essas ações vêm de fora para dentro. Quase sempre ideias formatadas. Formatação de pré-valores, de pré-conceitos. Atuar nessas comunidades de forma marginal aos valores mercadológicos e econômicos exige lidarmos, entre outras coisas, com uma acepção mais ampla do conceito de sustentabilidade aplicado à arte e à cultura.

Seria preciso agora determo-nos um pouco mais no entendimento desse comum, base da palavra comunidade e que se refere precisamente ao que é compartilhado - linguagens, símbolos, ideias, va-lores e relações – e também ao resultado de tal compartilhamento. Antonio Negri e Michael Hardt (2005) associam a produção do comum ao conceito de hábito herdado do pragma-tismo americano, associado menos a uma instância sub-jetiva e internalizada do que a relações com a experiên-cia, com as práticas e com os comportamentos diários. Nessa constelação, o hábito seria o comum na prática: o que estamos constantemen-te produzindo e que serve de base para nossos atos. Nesse sentido, hábitos e condutas são sociais e compartilhados,

“[...] nunca são realmente indi-viduais ou pessoais. [...] só se manifestam com base na con-duta social, na comunicação, no agir em comum. Os hábitos constituem nossa natureza social” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 257), e, longe de serem um obstáculo à criação, são sua base, o lugar da criação e da inovação: a ação comum é o próprio motor da produção. Para os autores, a experiên-cia de produção do comum tenderia, ademais, a deslocar as coordenadas tradicionais que criam divisões entre indi-

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víduo e sociedade, público e privado, subjetivo e objetivo. Por outro lado, é precisamente essa potência do comum que é interditada pelo sentido tradicional de comunidade como instância moral e unitária “que se posiciona acima da população e de suas interações como um poder soberano” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 266).

Essa ressalva com relação ao sentido tradicional de co-munidade aproxima-se das formulações de muitos outros autores que têm se dedicado a compreender seus desdo-bramentos diante de uma aparente crise, em que modos de associação que outrora pareciam garantir certo contorno comum parecem ter perdido sua coesão na atualidade. O fi-lósofo Peter-Pál Pelbart (2011) retoma as críticas do filósofo Jean-Luc Nancy dirigidas à tradição teórica segundo a qual a comunidade, em seu sentido de intimidade e comunhão orgânica com a própria essência, seria precisamente o que o advento da sociedade destruiu. Começando por apresen-tar as formulações de Nancy, para quem seria necessário recusar essa consciência de perda da comunidade e de sua identidade, assim como a nostalgia de uma fraternidade e de uma convivialidade perdidas, Pelbart prossegue afir-mando que, diferentemente de uma perda a ser lamentada, a inexistência da fusão e da homogeneidade na comunida-de é antes positiva e constitutiva: “A comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância” (PELBART, 2010, p.33). A comunidade seria mais bem definida, então, a partir do compartilhamento de uma separação dada pela singularidade, e não pela identidade fusional. Fora de qualquer anseio de pertencimento ligado a atributos de substância e interioridade, talvez a distância e a diferença sejam o que possa ser colocado em comum; a inexistência de fechamento identitário talvez seja condi-ção afirmativa e de abertura para a criação do comum e da comunidade.

Ao cotejarmos essas observações com as categorias ter-ritoriais de horizontalidade e verticalidade anteriormen-te descritas, poderemos avançar um pouco mais em sua compreensão. Por um lado, não parece difícil associarmos

Carlos Muñoz Sánchez (30 de outubro de 2014)No mundo da informática trabalham com conceitos de autoria coletiva há um tempo. O software livre permite compartir e modi-ficar, licenças como creative commons per-mitem que uma banda coloque sua música na internet e escolha se o usuário pode só ouvir, ou baixar, ou lucrar com ela. Outros conceitos como as redes P2P, em que a pro-dução é entre pessoas, ou copyleft já estão no vocabulário comum do mundo hacker. A extrapolação dessas ideias para o mundo tangível pode trazer não só um novo mode-lo de autoria para obras artísticas, mas um novo modelo de vida mesmo.

Maria Goretti Gomide Pinheiro (30 de outubro de 2014)Penso que sim, rompendo com as estruturas do passado. Podemos pensar o urbano toma-do pela reflexão, pela crítica e pela liberdade de pensamento. Tomar esse espaço como o lugar da experiência, da ação social que faz

a heterogeneidade e a diferença a relações em rede, em que os membros que se conec-tam não estabelecem entre si relações de vizinhança ou contiguidade, havendo uma heterogeneidade que é mesmo constitutiva deste vínculo. Por outro lado, imagina-se com bastante frequência que tudo se dá de maneira diferente quando o vínculo é o lugar, imaginado como portador de uma identidade calcada em uma história e uma herança par-ticulares, muitas vezes consideradas como um atributo referencial de identidade exten-sivo a seus habitantes. Entretanto, será ne-cessário desconfiar também dessa aborda-gem internalizada e identitária do território e do lugar, como observa a geógrafa Doreen Massey, para quem o lugar é um processo dinâmico que se constrói “a partir de uma constelação particular de re-lações sociais que se encon-tram e se entrelaçam num lo-cus particular” (MASSEY, 2000, p.184). Cada lugar é um lugar de encontro, ponto único de uma interseção de redes de relações sociais, de movimen-tos e de comunicações, das quais grande parte se constrói e se reconstrói em uma esca-la que implica um contexto geográfico muito mais amplo que o do lugar em questão. Por tal motivo não se sus-tenta o entendimento de que o lugar seria aquele recorte do território isolado e isolável do mundo, portador de uma identidade particular extensi-va a seus ocupantes e exclu-

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siva deles. A noção de identidade, apoiada em um conjunto de atributos fixos que serviriam de referências, mostra-se como abordagem não só insuficiente, mas incapaz mesmo de sustentar as potencialidades da comunidade e de seus lugares de ação. Mais rico que o conceito de identidade, o conceito de singularidade não passa pela circunscrição da realidade a quadros de referência, implicando, pelo contrá-rio, a possibilidade de ruptura com tais enquadramentos. A singularização será precisamente o processo de criação de movimentos desviantes por meio da afirmação de outras maneiras de ser, de outras sensibilidades e percepções (GUATTARI; ROLNIK, 1986). Assim, a singularidade de um lugar e de uma comunidade se construiria em sua relação com o que lhe é exterior e desconhecido, não sendo um atributo fixo e preexistente a tal relação. Trata-se de um processo aberto, em constante transformação e refratário a qualquer fundamentação estacionária. Ademais, a consi-deração desse caráter sempre aberto à alteração permite refutar a defesa de uma pretensa pureza das identidades, seja dos lugares, seja das comunidades, pretensão esta que fundamenta violências, sectarismos e preconceitos de cunho segregador, cujo objetivo é sempre o de proteger uma identidade idealizada dos riscos de descaracterização.

Por outro lado, não se trata apenas de ampliar o raio de abrangência do recorte geográfico ao qual se ligam as co-munidades. Grandes ou pequenos, tais recortes extensivos do território dizem respeito a um regime macropolítico de funcionamento que distribui as grandezas de uma mesma natureza, como é o caso da escala geográfica, mas que in-cide também sobre as pessoas, transformando-as em in-divíduos aptos a serem classificados e agrupados segundo sistemas hierárquicos e de submissão. A comunidade deve ser pensada então fora desse regime que a reduz a agrupa-mento unitário de sujeitos individuados e normalizados, tri-butário dos sistemas de pensamento que se desenvolveram, com a modernidade ocidental, como esteio da ordem social capitalista e como condição e efeito de Estados, empresas e mercados. É assim que por meio desses sistemas, base do desenvolvimento das ciências do homem, construiu-se

um inventário de vivências, percepções e sensações, como seres interpretativos e instituidores de sentido, criando-se assim um vínculo de confiança com diferentes indivíduos que impactam e que são impactados por suas atividades e dão legitimidade a partir da formação de identidades cul-turais. Assim mudam-se as condições de existência das organizações e, com isto, mudam também as condutas. A arte, a cultura e a comunidade precisam recusar os modos de manipulação para construir a sensibilidade, modos de relacionar com o outro, modos de produção e de criativida-de que produzam uma subjetividade singular.

Carlos Muñoz Sánchez (28 de outubro de 2014)Acho possível, sim, mas difícil. Concordo com Ricardo na questão de que o importante é uma mudança de mentalida-de mesmo, mas não concordo em colocar um problema em cobrar pelo trabalho feito com uma comunidade. Quer dizer, se um coletivo é chamado para trabalhar numa comunidade, e doa este trabalho, no final das contas está agindo igual a uma ONG, inclusive a recepção deste trabalho vai ser vista como um presente e não como um trabalho que tem um custo. Referente ao texto, também não concordo com ligar a participação com uma liderança do projeto, ou, se for assim, não necessariamente isto é uma coisa ruim. Se o projeto é um projeto surgido de uma iniciativa própria, que chama uma equipe, um coletivo ou um indivíduo pra fazê-lo, e este coletivo (por exemplo) escolhe uma metodologia participa-tiva como processo de trabalho, acho que essas questões ficam mais diluídas. Esse coletivo vai dirigir o trabalho, mas o projeto é um projeto de um cliente, não uma iniciativa própria em que você impõe uma participação.

Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014)O Maximiliano tocou num ponto fulcral: muitas vezes as ações de projetos não buscam resultado monetário, mas buscam por notoriedade, e acaba sendo, no fim das contas, lógica de mercado também, pois isto tem valor simbólico dentro dos sistemas (na arte, na mídia, etc.). Ontem mes-mo participei de uma aula gratuita on-line sobre produção de projetos para lei de incentivo, o professor é catedrático

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uma abordagem antropocêntrica que pensa o mundo como domínio de indivíduos racionalmente organizados em sin-tonia com um contrato social responsável pelas garantias aos direitos humanos, individuais e coletivos, adequados às demandas do capital (como é o caso dos direitos de proprie-dade privada) em detrimento de outros seres vivos.

Maurizio Lazzarato (2014) observa, desdobrando o pensa-mento de Michel Foucault, Felix Guattari e Gilles Deleuze, que somos equipados com uma subjetividade individual a partir de atributos de identidade - um sexo, uma profissão, uma nacionalidade, etc. - que nos constituem como sujeitos individuados reagrupáveis em todos os níveis da produção e do consumo, enquadrados em papéis e lugares dentro da divisão social do trabalho. Trata-se de um processo de sujeição social de personificação e também de equivalên-cia, no nível dos indivíduos, das relações hierárquicas de trocas capitalistas, “[...] um modo de comando, de regula-ção e de governo ‘assistido’ pela tecnologia, constituindo, como tal, uma especificidade do capitalismo” (LAZZARATTO, 2014, p.29). Esse processo fabrica um sujeito a ser vincula-do a um objeto externo (entendido num sentido amplo, de um serviço público, por exemplo) que funciona como meio numa lógica sujeito-objeto ou sujeito-sujeito, referenciada no indivíduo.

Ainda segundo o autor, paralelamente a esse processo de sujeição a partir da fabricação de indivíduos (e de grupos deles derivados, poderíamos acrescentar) moldados para determinadas ações e, portanto, efeito e condição das de-mandas do capital, ocorre outro, de servidão, por meio do qual o indivíduo é despossuído de seu papel de referente, numa desarticulação dos componentes de sua subjetividade. No processo de servidão a síntese subjetiva não mais reside ou se referencia na pessoa, mas em um funcionamento coletivo de máquinas, objetos, signos e fluxos. Nesse pro-cesso de servidão desumanizante, a subjetividade é ativada e posta para funcionar a partir de seus componentes in-fraindividuais no interior de complexos de relações que não fazem distinção entre humano e não humano.

em formatação de projetos. Vi que isso virou um mercado, que cobram R$370,00 por pessoa para participar, todos pagam (menos eu - rsrs) e a lógi-ca é esta mesma: ganha-se por conta do dinheiro do edital, mas ganha-se também pela notoriedade que o projeto oferta. Se o comprometimento fosse com as demandas de uma comunidade (por exem-plo) e não somente com a grana do edital (R$100 mil, 200 mil), acho que a coisa engrenava. Acho que realmente, acima do lucro e da boniteza do projeto, deve-se ter em mente outro paradigma... Este é um desafio foda: mudança de mentalidade.

Maximiliano Barbosa (28 de outubro de 2014)Possível, porém, mais difícil. Acredito que, para atingir a autonomia necessária para tal, é neces-sário um sistema de produção fora dos padrões habituais. Note-se aqui que, mesmo em ações co-munitárias, coletivos, etc., ainda que com grau re-duzido de comprometimento com a lógica de mer-

Assim, sujeição e servidão definem as mo-dalidades de captura e de funcionamento em cuja interseção se dá a produção de subjeti-vidade. Essa é uma questão política incontor-nável, para a qual não há caminhos prontos. Como criar franjas de singularização capazes de desvio com relação às cadeias de metas, objetivos e interesses já dados de antemão, para que se produzam novas singularidades no trabalho com comunidades? Se é possível já afirmar certas recusas, há que se ir mais longe, para além da recusa e da mera enun-ciação de intenções, de modo a produzir uma diferença com – e não para - a comunidade, em um encontro que escape dos protocolos de sujeição e de servidão.

Sem pretender encaminhar respostas ou prescrever métodos, essas questões têm por objetivo instigar um trabalho de criação e problematização de ex-periências com comuni-dades, e neste sentido uma primeira questão talvez seja o abandono da própria denominação

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de comunidade como agregado unitário ou como conjunto circunscrito de pessoas. Os processos de singularização que permitem declinar dos recortes identitários das comu-nidades deverão ser produzidos na hibridização dos seres vivos: as conexões envolvem relações entre seres humanos, não humanos e o meio ambiente. Ademais tais conexões devem ser construídas fora dos modos tradicionais de en-dereçamento que estabelecem o outro como alvo de uma ação intervencionista conforme aos interesses dos centros de comando, sejam tais interesses de natureza epistemoló-gica, disciplinar ou empresarial. Assim, o outro constituído em público, habitante, consumidor, beneficiário, usuário, cliente, leitor ou espectador já é efeito de um poder que primeiramente exclui e depois recupera por meio de uma inclusão em tudo ambígua.

Essa problematização não é propriamente nova, embora marginal ou secundária se comparada com o funcionamen-to majoritário da própria racionalidade ocidental. Nas artes plásticas, por exemplo, desde os anos 60 do século XX tem sido comum certa reivindicação de ruptura com a noção de obra como produto acabado derivado da ação de um sujei-to privilegiado – o artista – a ser admirado por um público que não interfere em tal produto. Também os situacionis-tas, grupo de artistas e arquitetos, desenvolveram desde os anos 1960 toda uma crítica ao urbanismo racionalista como produção especializada do espaço afinado com as demandas alienantes da sociedade capitalista. Também na filosofia das ciências e na epistemologia há todo um campo de problematização das posições e dos papéis atribuídos às figuras do leigo e do especialista, por meio das quais se perpetuam hierarquias e distribuições assimétricas de ação nos modos de endereçamento prevalentes.

Sequer a noção bastante em voga de participação é suficien-te, já que, surgida de uma convocação, mantém o controle dos processos, metas e posições em jogo, fazendo com que este outro com o qual se relaciona permaneça como alvo enquadrado de uma concessão. Todas essas modalidades esvaziam a potência e a capacidade de criar e produzir di-

cado, podemos nos deparar com agendas de interesse nesse sentido (por exemplo: uma ação pode não ter objetivos financeiros diretos, mas ter um agendamen-to de busca de notoriedade - outra forma de geração de valor ligada à lógica de mercado).

Rafael de araújo Teixeira (26 de outubro de 2014)Também tentei pensar em alguns exemplos de que é possível e de que na verdade sempre existiu, ain-da que de modo underground... O ato mais clássico e simplório de passar o chapéu após intervenções ar-tísticas já coloca na relação artista-expectador um valor para além das cifras das moedas colocadas no próprio chapéu. Atualmente têm crescido os financia-mentos coletivos ou colaborativos através dos sites de crowfundind em que a multidão tem na rede vir-tual uma ferramenta importantíssima de construção do comum. Outras formas de geração de renda ou mesmo de levantamento de fundos para viabilizar a cultura e a arte via economia criativa têm se mostra-do possíveis, enfim, é um trabalho árduo para atuar dentro do sistema.

Bruno Dorneles (24 de outubro de 2014)Algumas semelhanças com a questão abordada na aula anterior. Sim, é possível pensar em exemplos teóricos e práticos que debatem as relações de mer-cado e arte e que, por vezes, podem negar o primeiro a fim de potencializar (ou simplesmente permitir) o segundo. A cultura, porém, como sistema de produ-ção e legitimação simbólica, na atualidade, tornou-

ferença do outro, sempre reduzido a receptor de um comando por parte de um poder que primeiramente exclui e depois re-cupera por meio de uma inclusão feita de vínculos desfavorá-veis. Entretanto, sempre permanecem brechas por onde pode se dar todo um outro modo de existência a partir de uma rein-venção e reconstrução de novas relações. A inserção nas fres-tas pode permitir a subversão ou a suspensão temporária dos modos tradicionais de endereçamento em prol da constituição de encontros feitos de outras forças e matérias. A exposição ao fora, o compartilha-mento e a diferença são apostas a serem acolhidas. De modo semelhante ao que ocorre com o lugar, entendido como pon-to singular de rela-ções com o que está fora dele, também a comunidade se defi-ne pela singularidade

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de relações que estabelece com o que está fora dela. E fora aqui, sublinhe-se, não equivale a uma exterioridade empí-rica calcada em delimitações estacionárias de um regime de distribuição de posições, mas a uma diferença intensiva, capaz de romper contornos e segmentações e assim pro-duzir o novo.

REFERêNCIaS

GUATTARI, Felix. Caosmose Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012 (Coleção TRANS).

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Guerra e demo-cracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.

LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições SESC/ n-1 edições, 2014.

NANCY, Jean-Luc. La comunidad inoperante. Santiago de Chile: LOM Editores/ Universidad ARCIS, 2000.

PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Paulo (Org). O trabalho da multidão. Império e Resistências. Rio de Janeiro: Gryphus/Museu da República, 2002.

PELBART, Peter-Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006 (Coleção Milton Santos; 1).

____________. Da Totalidade ao Lugar. São Paulo: EDUSP, 2008 (Coleção Milton Santos; 7).

se uma moeda de troca de valoração específica bastante própria, especializada em um modo de especulação de lucro como se vê em poucos ou-tros sistemas econômicos. Esse sistema, por si só, permitiu e continua permitindo que toda a globa-lizada lógica de produção, distribuição e consumo de produtos culturais (do seriado de TV ao imã de geladeira com a reprodução da Mona Lisa na loji-nha do Louvre) adquira um valor de mercado que monetariza e intercede na experiência não apenas do observador com o objeto que compra, como do observador com todos os objetos multimídia que envolvem o produto cultural (ou seja, da compra da edição de colecionador do box com todas as temporadas de Breaking Bad à própria pintura da Mona Lisa). Se então partirmos do axioma de que existe uma parcela da arte e dos produtos culturais que não pretende ser monetarizada por vetores macroeconômicos, estes precisam estar atentos a formas outras de produção, distribui-ção e consumo do resultado de seus esforços em construir propostas estésicas - tais como finan-ciamento público via editais de cultura, fomentos e produções coletivas...

QUESTÃO 2a consideração da comunidade como conjunto he-terogêneo composto de humanos e não humanos traz alguma problematização para a arte e a cultura? Justifique.

Gustavo Wolff (3 de novembro de 2014)Uma problematização no bom sentido, acredito. A diferença é sempre uma força de movimento tanto para a comunidade quanto para a arte e a cultura.

Carlos Dalla Bernardina (3 de novembro de 2014)Traz, sim, muitas problematizações, no melhor dos sentidos. Essa mudança de perspectiva pa-rece resolver conceitualmente um dos grandes

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zação da vida. Também os movimentos de alimentação viva, sem agrotóxicos, problematizam a suposta superioridade do homem e sua crença na eficiência. A problematização da co-munidade como campo de movimento heterogêneo está na relação dos humanos com a paisagem, com os objetos, com os animais e entre si. Habitar um espaço, observá-lo, documen-tá-lo, dançar nele, relacionar-se com um objeto, deixá-lo falar e não simplesmente considerá-lo a partir das minhas referên-cias habituais são questões fervilhantes que produzem vozes singulares. Estar com animais ou com a imagem de animais é um ato que pode acordar um humano não domesticado pe-los escritórios. Considerar a comunidade como complexidade, como distâncias mais do que proximidades, abre espaço para o humano se reinventar.

Yuri amaral (31 de outubro de 2014)Luiza, gosto (e defendo muito) esse pensamento tanto da sin-gularidade de cada ator/elemento como também dos desdo-bramentos que suas relações geram/podem gerar. Isso apenas enriquece nosso (multi)universo e nossas sinapses, ao ponto de passar não a criar expectativas e planejamentos estratégi-cos em longo prazo, mas de entender como é possível traba-lhar com e (re)combinar o que se tem em mãos.

Yuri amaral (31 de outubro de 2014)Penso que essa problematização depende, também, de como se enxergam essas relações, seus atores e desdobramentos. Qualquer coisa é possível conforme as combinações realizadas entre esses elementos, independentemente de essas combi-nações serem “induzidas” ou “acontecerem naturalmente”.

Luiza alcântara (31 de outubro de 2014)É claro, podemos pensar as artes relacionais em que a co-munidade está completamente associada ao projeto artístico, assim como os sites specific e a arte educacional, entre outros. Esses projetos (porque não são criações de objetos, mas a pro-dução/proposição de relações estéticas) envolvem todo o am-biente em torno (pessoas, natureza, construções, paisagem...), o contexto de onde e quando estão inseridos, assim como o resultado expositivo do trabalho (o tornar público). Concordo

problemas da contemporaneidade: esta necessidade dupla que temos de mais liberdade e de mais vínculos. De algum modo, a pós-modernidade, em sua fase inicial a partir dos anos 1970, nos apresentou esses dois valores tão essenciais como contraditórios, na medida em que a noção de vínculo estava sempre associada à questão da identidade. Muitos psicana-listas, inclusive, associaram o alastramento da depressão à crise de identidade. E na medida em que ampliamos nossa noção de identidade para a noção de singularidade, a partir de uma base relacional, ao mesmo tempo que desterritoriali-zamos a noção de comunidade, podemos caminhar com mais desenvoltura pelos fenômenos que já vemos ocorrendo em nosso cotidiano. Nesse cenário, a arte joga um papel crucial, embora talvez bem diferente do que jogava no cenário anterior: o papel de vetor para a construção dessas singularidades, não mais preocupada em traduzir identidades, mas em possibilitar a invenção de singularidades. Nesse sentido, processos que há 50 anos eram considerados marginais, como os de Lygia Clark, talvez agora possam estar no centro da construção de um campo de convivências mais genuíno entre as pessoas, e entre elas e o mundo não humano.

Bernardo Romagnoli Bethonico (1 de novembro de 2014)É certo que vivemos em um mundo no qual humano é um lu-gar considerado como privilégio, como um dado de prestígio na criação. Isso vem de uma cultura antropocêntrica europeia que recebemos de herança no Brasil – esta também postula a comunidade como uma construção homogênea e coerente com os princípios territoriais do Estado-Nação. Considerar a comunidade como heterogeneidade em que o humano não é a única vida implica considerar muitas culturas que resistem à normalização da cultura brasileira. Trata-se da visão indígena de que as árvores ou as pedras dividem um destino em comum conosco, são nossos antepassados. Isso se contrapõe à visão hegemônica de que a espécie humana é conquistadora e pra-ticamente sem comunicação com o que não seja ela. Apontam a comunidade como espaço heterogêneo não exclusivamente humano também o veganismo e o vegetarianismo, modos de viver que problematizam o modo como a vida animal é tratada, fazendo do hábito uma ação que não aceita a mercadologi-

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com a professora Simone, quando diz que a arte não é a única forma de “conectar e nos abrir ao que não somos, de nos fazer variar, transformar, diferir [...]” Vejo as produções de diferen-tes áreas se mesclando muito, tanto que não conseguimos distinguir se um trabalho é ou não arte. Podemos pegar vários exemplos dessa Bienal de São Paulo, em que os trabalhos expostos se confundem com educação, pesquisa de campo de um antropólogo e por aí vai. Talvez a arte esteja deixando de ser arte e se tornando cultura, por perder sua característica de autonomia (o que a define como algo distante da vida) para se tornar algo mais próximo da vida.

Ricardo De Cristófaro (30 de outubro de 2014)Penso que muitas comunidades, como conjunto heterogêneo, permanecem e se identificam de maneira muito intensa com a dimensão do não humano. O não humano como um vetor de significação e identidade. Também de localização. Isso ocorre com a raça humana já na formação dos primeiros grupos so-ciais. Penso, por exemplo, no momento em que o ser humano arrastou e levantou grandes pedras e a partir daí criou o que conhecemos como “menir”. O menir é a produção de um lugar. Um espaço ocupado. A questão da transformação de espaços em lugares a partir dessa ação embrionária do menir está muito ligada a práticas e intenções artísticas desde sempre. Arte como lugar.

Júlia Nascimento de Oliveira (28 de outubro de 2014)Acredito que a grande problematização criada a partir do con-ceito de comunidade como conjunto heterogêneo seja o reflexo que a comunidade implica no espaço onde está inserida e vice-versa. As manifestações comunitárias alteram dinamicamente o espaço habitado, transformando usos, formas e sentidos, tanto dos seus agentes quanto dos seus reagentes. O resultado dessa dinâmica é uma constante renovação.

Ricardo Macêdo (28 de outubro de 2014)Ô, Bruno, boa reflexão. Mas ainda assim, tentando entender aqui tua linha de raciocínio, fiquei me perguntando como pode não haver nenhuma problematização na RELAÇÃO entre ho-mem e meio ambiente? RELAÇÃO como modo/estratégia/tática

pra chegar ao Outro, na comunidade, enfim, sem prejuízos maiores para não só a comunidade, mas para o planeta. Veja, por exemplo (só pra jogar mais palha na fogueira - rsrs), a VALE, independentemente do local no Brasil onde essa mine-radora se estabelece, o modo como chegam às comunidade é sempre invasivo e depredador, não levam em conta a cultura ancestral local, nem os valores, nem a crise ambiental emer-gente, ou seja, o planeta dentro desse paradigma de consumo (algo identificado por alguns autores como lógica da “obso-lescência programada”: consumir e descartar como se a na-tureza fosse infinita, uma lógica criada nos EUA na década de 1920, diga-se de passagem). Dentro dessa ótica, olha-se mais para o resultado (lucro para a empresa) do que para o processo (modos, estratégias) menos hostis à comunidade. Então, sendo prático, qual é a forma/modo de chegar ao Outro (levando em conta questões psíquicas, emocionais e físicas como colocastes) sem ser hostil à comunidade? É isso que me pergunto atualmente. Vejo em alguns grupos de arte ou de ati-vismo problematizações desse paradigma predatório e busca por alternativas para essa postura de indiferença ao contexto ambiental, social, econômico. Enfim, se a pergunta estiver sob esse ponto de vista, acho que é por aí, senão, desconsiderem minha fala, please.

Bruno Dorneles (28 de outubro de 2014)Não consigo perceber a natureza dessa problematização, no caso de sua existência. Mais uma vez devo me limitar ao pouco que é possível tirar dos conceitos que envolvem o enunciado. Partindo do princípio de que a figura humana é uma construção baseada em princípios fisiológicos, mas, principalmente, em princípios psíquicos (aceitamos os corpos estranhos, desde que conscientes de seus próprios atos) e que o não humano é um espelho inverso do conceito anterior, fico limitado a su-por que não existe qualquer tipo de problematização pela qual arte e/ou cultura sejam capazes de operar através de reflexão dialógica. Por exemplo, a relação do humano com o não hu-mano, como apontada pelo Ricardo, não consegue se mostrar heterogênea. Vejamos que somos criados a acreditar e a agir de acordo com a ideia de que somos o topo da cadeia alimen-tar, sendo as nossas vontades todas saciáveis e nossos atos

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para alcançá-las, todos justificáveis - talvez por isso Michael Apple, no riquíssimo artigo Consumindo o outro: branquidade, educação e batatas fritas baratas, consiga demonstrar o capri-cho capitalista das formas de produção bastante não humanas em que se dão o cultivo das batatas do McDonald. Desse ponto de vista, a comunidade é sempre uma série de agrupamentos irregulares que dividem muitos poucos princípios operadores de suas formatações práticas. No mundo moderno, as fontes de energia não renovável, principalmente o petróleo, são no que se baseia a cola de boníssima parte do capital. Não ha-vendo uma comunidade como um ideal de união entre todos os seres que configuram o contexto em que vivemos, seu tempo e seu espaço, o que resta à arte e à cultura pode ser o oposto imediato: evidenciar a discrepância que existe entre aqueles que erguem as bandeiras do social em nome de um mercado que conforta sua posição elevada em sua cadeia de poderes.

Cândida Soares Leão Teixeira (27 de outubro de 2014)A comunidade traz uma problematização para a arte e a cul-tura que a enriquecem, porque a diversidade dos tipos unidos em uma comunidade deveria ser motivo para engrandecer o universo das singularidades agrupadas neste lugar. O outro deve ser visto como outro, e não como espelho identitário no qual cada um se reconhece, mas o outro como aceitação da alteridade inerente dele próprio. Cada um deve fazer o exercí-cio de aceitar o diferente e incluí-lo em seu mundo, aceitando com este pensar a multidão que existe também em cada um. A comunidade também pode pertencer ao mundo virtual. Hoje com a internet podemos nos unir em qualquer localidade pela afinidade de ideias ou também pela vontade de discutir e pro-por inovações dentro de pensamentos diversos.

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Em que medida o fazer artístico atravessa a vida cotidiana? Como esses cruzamentos operam e qual é a sua potência em promover questionamentos críticos em torno ao modo como o espaço urbano é vivido e produzido? De forma a suscitar reflexões a esse respeito, parece-nos oportuno abordar, primeiramente, as práticas cotidianas e a sua di-mensão política.

Segundo Michel de Certeau (1994, p.31), “o cotidiano é aqui-lo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente”. Nos dois volumes de sua obra A invenção do cotidiano, o autor dedica-se à análise da dimen-são política das práticas ou maneiras de fazer cotidianas, empreendendo, para isto, uma distinção entre tática e es-tratégia. Para ele, trata-se de duas modalidades de ação, as quais promovem diferentes tipos de operações no espaço: enquanto a estratégia produz, mapeia e impõe um espaço próprio, a tática utiliza o espaço existente, altera-o e mani-pula-o. Uma ação tática intervém, assim, no próprio cam-po que a regula, introduzindo a esse patamar regulatório primeiro um nível outro, que obedece a regras distintas e instaura, no lugar mesmo de sua dominação, uma plurali-dade de possibilidades.

A estratégia caracteriza-se, assim, pela definição de um lugar circunscrito, que sirva de base para a gestão das re-lações com o que lhe é externo. Esse lugar-base é o que lhe confere autonomia em face ao caráter contingente do

tempo, que a protege da variabilidade constante das circunstâncias, e que lhe permite capitalizar vanta-gens, prever expansões e antecipar-se às etapas do jogo. Esse tipo de ação, característica da atividade militar, configura, segundo Certeau, a base da ciência e da política modernas.

A tática, por sua vez, é determinada pela falta de um próprio: ela existe onde não há limites entre dentro e fora, isto é, onde o ter-reno da ação é o lugar do Outro. Uma operação de ordem tática não se refere, portanto, à to-talização imbricada na existência de um campo próprio, mas a um mo-vimento que se faz no espaço controlado pelo

“inimigo”, em meio às fa-lhas de suas condições de vigilância. É um tipo de ação hábil, movida pelas ocasiões. É a pri-mazia do tempo frente ao lugar, pura mobilida-de subversiva em meio aos espaços de poder postulados pelas estra-tégias. Trata-se, para Certeau, das maneiras de fazer dos consumido-res, que modificam, por meio do uso, os produ-tos e espaços que lhes são dados à assimilação.

QUESTÃO 1Em que medida a arte, em sua interseção com a es-fera cotidiana, apresenta potenciais táticos? Discuta esta questão com base em exemplos.

Thaís Mor (23 de novembro de 2014)Na medida em que interferimos numa realidade

“comum” imposta pelo sistema e construímos questões e outras possibilidades de realidade com uma “organização estética” que desperte um novo potencial estrutural, esta arte passa a ter um potencial tático. A arte precisa se equipar de instrumentos, conhecimentos, ferramentas e, finalmente, criar estratégias, para então iniciar suas ações táticas. Isso me soa como empreen-der, ou criar projetos, controles de produção, en-fim, a arte também deve ser encarada como algo estruturado e planejado para ser tático. Como exemplo, temos em Belo Horizonte a manifes-tação contra a requalificação do Viaduto Santa Teresa, em que a intervenção tática reuniu mo-radores, MCs, artistas, arquitetos, estudantes e ocupantes do Corredor Cultural para mostrarem que ali já existia uma cultura vigente, uma biopo-lítica interferindo na vida diária do local.

PaULa BRUzzI BERQUÓ*

Arte e cotidiano: aproximações táticas

* Arquiteta e urbanista

graduada na Escola de

Arquitetura da UFMG.

Mestranda no Núcleo de

Pós-Graduação em Arquitetura

e Urbanismo da UFMG.

Integrante do grupo de

pesquisa INDISCIPLINAR.

Pesquisadora no projeto

“Cartografias Emergentes:

a distribuição territorial

da produção cultural em

Belo Horizonte” (SEC/MinC/

CNPq). Membro da equipe

idealizadora do projeto “Museu

do Instante” (2014).

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Se o que subjaz o esforço do autor em caracterizar esses diferentes tipos de ação é justamente a tentativa de pensar esse uso para além das representações redutoras comu-mente usadas pelos gestores do espaço urbano, a nós cabe aqui outro desafio: trata-se de pensar possíveis relações entre esse uso e as práticas artísticas. De que maneira a arte atravessa as maneiras com que os cidadãos se apro-priam do território que ocupam? Em que medida seus pro-cessos são capazes de suscitar incorporações subversivas, por parte desses cidadãos, das formas urbanas que lhes são impostas? Se, na ótica de Certeau, a estratégia é uma forma de operação baseada no estabelecimento de lugares de poder, em que medida processos artísticos podem ser pensados como táticas de baralhamento desses lugares?

Na base de tais questionamentos reside um ponto que nos parece fundamental: a ideia de que o espaço cotidia-no é, antes de mais nada, o espaço de um mundo comum partilhado, e de que uma discussão a seu respeito deva ser, portanto, acompanhada por outra, referente a como esse mundo comum se constitui e se presta à participação. Trata-se, em outras palavras, de salientar o caráter fun-damentalmente político do espaço da vida cotidiana e das contínuas negociações que lhe são constitutivas.

Para a análise de tais questões, a ideia de partilha do sen-sível, desenvolvida pelo filósofo francês Jacques Rancière, nos parece especialmente relevante.

Denomino partilha do sensível o sistema de evidên-cias sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a exis-tência de um comum e dos recortes que nele defi-nem partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. (RANCIÈRE, 2005, p.15)

Segundo o autor, essa partilha, que se encontra no cerne da política, não se reduz, contudo, a um simples tomar parte1

como governado ou governante, mas inclui uma etapa ante-rior, referente ao ato de determinação de quem pode tomar

1. Segundo Aristóteles, em

trecho citado por Rancière, “o cidadão é quem

toma parte no fato de governar

e ser governado” (RANCIÈRE, 2005, p.16).

Valéria da Silva Freitas (11 de novembro de 2014)Ao ler as contribuições dos colegas e o texto principal, eu me lembrei de uma experiência que acompanhei em um projeto de artes plásticas na periferia de São Paulo. Foi uma experiência curio-sa que gerou opiniões divergentes. Em síntese, o projeto social consiste em pintar as fachadas das casas com cores e desenhos produzidos pe-los próprios moradores. A princípio, a adesão da comunidade a esse projeto foi imediata. Eles se apropriaram da ideia do projeto e começaram a atuar junto com a artista plástica para a transfor-mação da fachada da casa. Entre os moradores, houve um que colocou a casa à venda assim que a pintura foi finalizada. A casa rapidamente foi ven-dida, por um valor acima da média. Esse fato gerou diversos questionamentos: “Como se desfazer da própria casa, pintada e desenhada pelos próprios filhos? Que oportunistas!”; “O projeto não foi capaz de sensibilizar o morador a gostar do seu bairro e da sua casa?”; “O morador tem o direito de esco-lher onde quer morar ou não?”. Vejo esse como um exemplo. Qual é a opinião de vocês sobre essa experiência e seus desdobramentos?

Carlos Dalla Bernardina (7 de novembro de 2014)Na medida em que ressignifica, reorganiza e atu-aliza o material simbólico que subjaz no incons-ciente coletivo das singularidades, estruturando aquelas “arquiteturas do sensível” rancierianas... A questão é se o simples “baralhamento” desse material simbólico, por si só, seria capaz de le-var a uma ação/transformação no âmbito políti-co... Penso que não seria justo com a arte cobrar dela esse peso... Seria inclusive perigoso... A partir de determinado ponto, outras instâncias devem arrematar os movimentos visionariamente inci-tados pela arte, libertando-a da responsabilidade de liderar uma transformação efetiva da organiza-ção “policialesca” de determinado contexto social.

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parte nesse mundo partilhado. A definição de tal “compe-tência” refere-se a uma questão estética, que se encontra na base do que o autor entende como política.

Rancière (2011) caracteriza a política - ou a lógica política - como um contraponto ao que denomina ordem policial. A Polícia, para ele, não se refere a um aparato estatal desti-nado à repressão, mas a uma “ordenação da comunidade em que cada parte é compelida a manter-se fiel a seu lugar, à sua função e à sua identidade” (2011, não paginado). Tal ordem diz respeito, portanto, a um arranjo do mundo sen-sível baseado em uma concepção estática da comunidade, na qual os sujeitos têm seus lugares definidos em função de sua “ocupação”: daquilo que se faz, de onde e de quando se faz. Nesse arranjo, o pensável, o visível e o audível se distribuem com base em uma clara separação entre o real e o ficcional e, de forma mais abrangente, entre o possível e o impossível2 .

A política teria como objetivo justamente romper com tal organização, de forma a expor as circunstâncias que a subjazem, e possibilitar a recriação dos códigos sensíveis que a sustentam. O seu papel seria, assim, o de ativar uma espécie de baralhamento entre o que se dá a ver no mundo sensível ou, em outras palavras, de apontar para outras partilhas desse universo. É por meio dela, e da dimensão estética a ela inerente, que, na perspectiva de Rancière, sujeitos excluídos do arranjo ordenado pela Polícia teriam a possibilidade de se fazer ouvir ou, dito de outro modo, de se tornar seres pertencentes a um mundo e a uma lingua-gem comuns.

Dessa breve reflexão parece-nos possível intuir que o que está em jogo no espaço da vida cotidiana é justamente essa negociação em torno à possibilidade de tomar parte em um universo comum. Ora, se considerarmos tais questões a partir das ações artísticas urbanas, podemos retomar, sob outra ótica, a indagação que fizemos acima. Se antes nos perguntávamos em que medida tais práticas poderiam ser tidas como táticas, ora podemos ampliar tal questionamen-

2. Cf. RANCIÈRE, Jacques. O

que significa “estética”? .

Lisboa: KKYM, 2011.

to para: como poderiam estas configurar mecanismos táticos capazes de fazer frente à ordem policialesca, dando a ver o até então invisível e promovendo, assim, deslocamentos no regi-me do sensível vigente na cida-de? Em outras palavras, como a arte assume, em meio à experi-ência cotidiana do espaço urba-no, um papel político entendido nos termos de Rancière?

Nesse ponto cabe um questio-namento importante: quais são os limites da arte como catego-ria? O que dela ainda podemos esperar? É preciso salientar que o que reunimos aqui - de maneira talvez excessivamen-te redutiva - sob tal nominação, refere-se a um campo mais abrangente, não restrito às instituições da arte, ou a obras que apresentem pretensões explicitamente “artísticas”. Interessa-nos, mais do que isso, investigar formas de experiên-cia estética que permeiam o espaço vivido, muitas vezes a ponto de quase confundirem-se com ele. É o caso, por exemplo, daquelas envolvidas nas inscrições urbanas e nos atos coletivos de ocupação cultu-ral ocorridos recentemente nos espaços públicos de Belo Horizonte (MG), os quais analisaremos à frente. É importan-te salientar que a investigação que aqui faremos é pensada como forma de suscitar possíveis continuações. O objetivo é estimular os leitores a rastrearem outras situações/ações que, residindo no tênue limite entre ação cotidiana e prática artística, apresentem uma dimensão potencialmente tática.

Na falta de memória sobre os inúmeros exemplos cotidianos, além dos já citados por aqui, podemos pensar em Duchamp como icônico desse movimento tático-ar-tístico, valendo-se de objetos do cotidiano instituído para subverter-lhes e inventar-lhes novos sentidos críticos.

Bruno Dorneles (3 de novembro de 2014)Tentando escapar do que considero ser o óbvio, vou me ater à resposta que foge de exemplos do mundo da arte institucionali-zada - a fim de evitar chegar aos mesmos exemplos que vêm sendo vistos ao longo das últimas décadas dentro das escolas de arte de pesquisa estética contemporâ-nea. Eu me atenho, portanto, na aparente desigual medida que existe entre esta tal esfera cotidiana e o que podemos perceber como arte neste contexto. Ressalvo aqui uma interpretação minha da pergunta: minha resposta se dá na procura da arte DA esfera cotidiana, em contato com o co-tidiano, e não da arte NA esfera cotidiana, traduzida em modos operários de trans-ferência de matéria e sentido do seu lugar de banalidade ao pedestal institucional da legitimação absoluta. A ideia do cotidiano sobre arte é, a meu ver, tudo aquilo que

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INSCRIÇõES SUPERFICIaIS

No pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995), a superfície aparece como espaço privilegiado de manifesta-ção das forças e potências horizontais. O superficial é tido pelos pensadores como contrário ao profundo, à verticalida-de, ao linear e aos sistemas hierarquizados, assim como o sistema rizomático é definido, em sua obra Mil Platôs, como contraponto ao sistema-raiz. Segundo os autores, o rizo-ma seria uma espécie de ramificação superficial, “que se expandiria em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos”. Já a raiz, representação do profundo, apresentaria necessariamente uma forte unidade principal, essencial para a satisfação da ordem binária que caracte-riza a sua estrutura. Se no rizoma qualquer ponto pode e deve ser conectado a qualquer outro, sendo a ruptura de suas possíveis conexões assignificantes para o funciona-mento do sistema, na raiz o princípio reside na fixação de um ponto principal, a partir do qual se opera uma ordem hierarquizada. A superfície, como espaço de ramificação do rizoma, apresentaria, assim, um caráter múltiplo e desie-rarquizado. Seu perene estado de movimento permitiria, na perspectiva dos filósofos, um constante processo de des-territorialização-reterritorialização dos pontos, de forma a gerar uma rede dinâmica. O espaço superficial seria, nesse sentido, um espaço nômade, de eterno devir. Seria a super-fície, para Deleuze e Guattari, o espaço da tática, tal como entendida por Certeau?

Feita essa breve digressão, voltemo-nos ao questionamento que motiva o presente item: como o uso das superfícies urba-nas pode conferir-lhes um caráter tático? Propomos a investigação dos muros da cidade como potencialmente passíveis de abrigar processos de subversão da forma com que a urbe encontra-se organizada.

Mas seria isso possível, sendo esses - limites físicos entre o dentro e o fora, entre o público e o privado - a expressão máxima da ordem imposta no ambiente urbano? Forma de estratificação e estriamento, instrumento de separação por excelência, ma-nifestação nítida da constituição de lugares próprios - de que maneira pensar tais estrutu-ras como espaço de experiência subversiva?

Voltemos ao pensamento de Certeau. A tática não seria, para o autor, justamente uma ação que se faz na ordem imposta, de forma a desmontá-la? Em meio a esse caráter rígido do muro, pensemos as possibilidades de mutação engendradas por suas faces. Palco de apropriações múltiplas, de construção e so-breposição de narrativas e lin-guagens, tais superfícies confor-mam espaços de movimento, e, assim, de transformação cons-tante. Tratemo-las, com base nas ideias deleuzianas, como es-paço de deslocamento e conexão. Seria possível, nessa perspectiva,

se mostra eficientemente útil e que al-cança um atributo de beleza construído de forma coletiva, mesmo que desigual, entre o design de grandes marcas e o tão problemático “gosto médio”. As modula-ções da moda ao longo dos anos, o design industrial e seus paradigmas formalistas, meia polegada a mais ou a menos em um smartphone - que vêm nas cores branca ou azul -, são exemplos de como a arte pode transfigurar a interface do relacio-namento humano ao seu redor. O que a arte institucionalizada, por outro lado, tem feito ao longo das últimas seis déca-das, para mais, é olhar atentamente para essas novas formas de operar os meca-nismos estéticos e relacionais dos seres sociais com os seus aparatos moderado-res, abstraindo daí uma linguagem tanto estética quanto política, em uma investi-gação em que o resultado é o retrabalho do cotidiano baseado em si mesmo, em objetos, formas ou momentos capazes de demonstrar tanto a fragilidade do que as grandes corporações entendem ser um sistema infalível quanto a força destrui-dora que a dúvida e o passo cego podem causar. Penso que muito do ativismo fe-minista na arte possa se encaixar neste meu pensamento, com artistas como Barbara Kruger ou Jenny Holzer.

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pensá-las como expressão de um universo compartilhado? Lugar de visibilidade e conflito, o fato é que as superfícies urbanas configuram desde o início do século XX, impor-tante palco de disputa simbólica e ideológica nas cidades. Nesse período inicial, contudo, as intervenções superficiais deviam-se, sobretudo, à atividade midiática, impulsiona-da pelo amplo desenvolvimento das indústrias de bens de consumo. Em 1928, Walter Benjamin escreve: ”nuvens de gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, tornar-se-ão mais densas a cada ano seguinte” (BENJAMIN, 1997, p.28). De fato, as apropriações dos muros urbanos ganharam grande amplitude ao longo do tempo, adquirindo formas e pautas variadas. A atividade publicitária passa a disputar espaço com inserções artísticas, textos poéticos e intervenções de forte viés político.

Os outdoors produzidos pela norte-americana Barbara Kruger, na década de 1980, podem ser vistos como expres-são das várias faces dessa disputa. A artista, que se apro-pria da linguagem midiática na tentativa de promover uma sua ressignificação, inscreve, sobre imagens amplamente difundidas pelos meios de comunicação, frases que susci-tam um pensamento crítico frente às condições de controle a que a sociedade contemporânea encontra-se submetida. Na Documenta VII, de 1982, a artista espalhou, pela cidade alemã de Kassel, pôsteres nos quais imagens publicitárias eram acompanhadas de frases como “os seus momentos de alegria têm a precisão de estratégias militares”.

Mas, para além de intervenções autorais como essa, des-taca-se outra modalidade de apropriação superficial do espaço urbano. Trata-se das pixações e do graffiti3, que se distinguem dessas últimas pelo fato de serem produzidos, ao menos em teoria, através da ação direta do homem co-mum, ou daquele a que poderíamos chamar, aproprian-do-nos das ideias de Rancière, de qualquer um4. Assim, se as obras de Kruger nos parecem tentativas de promover um deslocamento do lugar do sujeito de simples obser-vador passivo – “doutrinado” frente à paisagem dominada

3. Deve-se pontuar que o graffiti, apesar

de ter sido aqui considerado

como pertencente à mesma

modalidade que a pixação, já

encontra-se bem mais assimilado

pela indústria cultural que esta

última.

4. Rancière desenvolve a

ideia de glória do qualquer um

em: RANCIÈRE, Jacques. A par-

tilha do sensível: estética e política.

São Paulo: Exo/Ed. 34, 2005.

por imagens publicitárias vazias e neutralizantes – para alguém su-postamente interpelado pelo meio, o ato de inscrever-se na cidade diz respeito a uma ruptura mais radical. Seria essa uma forma de o sujeito marginalizado, excluído do mundo comum, tornar-se, ao menos po-tencialmente, parte do processo de construção de seus significados?

A esse respeito, destaca-se o estudo feito por Hygina Bruzzi, na década de noventa, a respeito dos graffi-ti nova-iorquinos e de sua relação com as inscrições produzidas na ci-dade de Belo Horizonte, a partir do seu contato com o grupo de grafitei-ros Posse de Santa Lúcia. Segundo a filósofa, que utiliza as teorias de Jean Baudrillard como base para sua análise, as inscrições repre-sentariam uma forma de reivindica-ção do direito ao simbólico, que se apresenta, na cidade formal, como exclusividade da classe letrada. O cerne da questão das inscrições residiria, assim, na busca pelo do-mínio de uma linguagem comum por parte dos grupos marginalizados, que lhes concedesse a possibilidade de influir na vida política da cidade. Em suas palavras:

QUESTÃO 2O que ainda podemos esperar da arte como categoria? Quais são os limites entre o que é legitimado como trabalho artístico e as práticas cotidianas? Ilustre os argumentos com exemplos.

Thaís Mor (23 de novembro de 2014)Estamos passando por um novo mo-mento das manifestações artísticas e as suas relações com o cotidiano. As superfícies e plataformas do dia a dia nos obrigam a repensar em como criar estratégias e ações táticas para executar movimentos estéticos cada vez mais políticos. Parece que a arte ganha cada vez mais essa necessida-de de um planejamento coletivo para repercutir em respostas eficazes e, finalmente, em ações que interfiram na nossa realidade. Hoje as informa-ções são exageradas e os interesses, dispersos, mas esta exacerbação “vir-tual” está criando um efeito contrário no sentido de repensar para criar cri-térios e escolhas e pautarmos nossa vida em algo significativo e vital (inde-pendentemente do Estado e das polí-ticas neoliberais) para finalmente nos tornarmos CIDADÃOS DA ARTE, em que qualquer um pode criar ou inter-mediar possibilidades de interseção entre arte, política e cotidiano. Um exemplo de tudo isso começa nas op-ções e atitudes diárias, cotidianas, de o que “compartilhar”, de do que par-ticipar, de o que conversar, de o que consumir. Hoje a Europa já acredita na falência do capitalismo (mas aqui temos um Estado que estimula um

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No nosso caso, onde a violência é direta e muda, e a passagem ao ato não é mediada por nenhuma fala ou escrita legitimadora, esse tipo de inscrição, vem, a contrapelo, demandar o mínimo de reconhecimento e de direito à participação na civitas, através da reivin-dicação, não só do direito à palavra, mas de algo que a precede: o aprendizado da palavra. Pronunciar e pronunciar-se: é a partir daí que tem início a cidada-nia e a vida política, ou seja, a vida na polis. (BRUZZI, 1997, p.23)

A superfície aparece, assim, como lugar de negociação, de repartilha do mundo comum e, mais do que isto, de refun-dação de uma sua linguagem. A frase “só assim você me escuta!”, inscrita na estrutura do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, é um das muitas expressões des-sa condição.

Um exemplo recente e emblemático das formas com que a linguagem vem tomando as superfícies urbanas no Brasil é a ação do coletivo Projetação, surgido no Rio de Janeiro (RJ) em meio às manifestações de junho de 2013. O grupo opera de forma colaborativa, projetando em muros, escadas (e até no Cristo Redentor) frases sugeridas por qualquer cidadão que esteja disposto a colaborar. Graças à sua ação, frases estampadas nos cartazes que povoaram as ruas durante al-guns dos atos de manifestação coletiva em junho puderam imprimir-se nas estruturas urbanas e ganhar maior visibi-lidade. Seria tal ação uma possível forma de amplificação das vozes inauditas na cidade?

Feita essa breve análise, que se insere como convite ao questionamento das formas e dos preceitos que nos são dados à assimilação na cidade, restam-nos algumas ques-tões: seriam, afinal, as inscrições superficiais urbanas movimentos táticos? O que se sabe é que, a partir dessas intervenções, constrói-se, paulatinamente, uma cidade informal, que ao sobrepor-se à cidade formal, aos seus anúncios, edifícios, muros e limites, dá a ver os confli-tos pretensamente camuflados pela ordem que a regula.

Nesse processo, os símbolos inscritos constituem testemunhos de uma his-tória viva e dinâmica, de uma narrativa conflitante e heterogênea, que, bem ou mal vista, permanece acesa, como sintoma relevante em meio à tentativa latente de transformação da cidade em cenário pasteurizado e artificialmente consensual.

ExPERIMENTaÇõES COLaBORaTIVaS

Ao pensarmos as práticas artísticas a partir de sua aproximação com a vida cotidiana, outra relevante dimensão nos ocorre: trata-se do que podería-mos considerar como esfera colabora-tiva, ou àquela que se refere, em linhas gerais, à busca por uma ressignificação

da realidade a partir da ação em comum. De forma a introduzir a análise de tais práticas e de suas pos-síveis implicações táticas, apresentaremos, em um primeiro momento, as origens do que a teórica Miwon Kwon designa como “arte comunitária”. Em seguida, abordaremos o que estamos denominando “práticas artísticas colaborativas”. Tais ideias, como veremos, apesar de similares, apresentam entre si algumas diferenças relevantes.

Segundo Kwon (1997), a “arte comunitária” configura um desdobramento tardio do movimento site-specific, surgido em meio ao Minimalismo, no final da década de sessenta. Trata-se de uma ampliação da ideia do site, que deixa de referir-se apenas ao caráter espa-cial ou locacional da obra, como ocorria nas décadas

consumo “burro/inconsciente”). Acredita-se no consumo comparti-lhado, em que o ter será um valor passado. Por que não nos apode-rarmos disso estrategicamente e iniciarmos ações táticas estéticas para desconstruirmos nossa ló-gica econômica? Exemplos: com-prar carro compartilhado, bazar de trocas de roupas, reinventar e interferir em espaços urbanos com ações culturais... Acho que a arte pode enveredar por questões muito mais cotidianas que simplesmente superfícies e plataformas políticas, criando categorias tão próximas e palpáveis de qualquer cidadão que chegue a interferir no sistema de uma forma dominó gradativa e crescente até romper as estruturas vigentes com ações e cidadãos vigi-lantes no seu cotidiano.

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de sessenta e setenta, e passa a incluir, nas realizações site-oriented da década de noventa, a comunidade e os conflitos sociopolíticos a ela relacionados.

Segundo ela, o primeiro momento, ou a formação da arte site-specific, caracteriza-se por uma ruptura com o caráter ideal do espaço modernista e com a ideia de obra autôno-ma e autorreferencial. Tal período é denominado fenome-nológico, e apresenta como prioridade a relação da obra com o corpo, a ideia de ‘imediatez’ sensorial no tempo e no espaço. Em um segundo momento, o site passa a ser visto não mais em termos apenas físicos e espaciais, mas como

“estrutura cultural”. Essa etapa, por lidar diretamente com questões concernentes ao confinamento dentro do qual o artista opera nas instituições artísticas, é chamado por ela de crítico-institucional. Apesar de já aí observarmos uma ampliação da noção de site e da abrangência dos questio-namentos presentes na obra de arte como um todo, é no terceiro momento que esta ampliação parece atingir, de maneira mais incisiva, a esfera do espaço urbano.

Tal momento, referente à década de noventa, diz respeito à busca por um maior engajamento da arte com o mundo externo e a vida cotidiana. Devido à expansão de sua relação com a cultura e com a realidade social, a arte site-specific (ou site-oriented) desse período passa a configurar, segundo Kwon, uma espécie de “arte comunitária”, envolvendo práti-cas culturais ativistas e políticas de afirmação de contextos locais. Trata-se, segundo ela, de um amplo processo de fortalecimento da ação artística como instrumento social e político. Segundo Kwon:

[...] formas atuais de arte site-oriented, que pronta-mente se apropriam de questões sociais (com fre-quência por elas inspiradas) e que rotineiramente incluem a participação colaborativa de grupos de pú-blico para a conceitualização e produção do trabalho, são vistas como uma forma de fortalecer a capaci-dade da arte de penetrar a organização sociopolítica da vida contemporânea com impacto e significado

Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)O questionamento sobre a pertinência das práticas artísti-cas estar pautada em categorias me parece uma questão muito fomentada no modernismo, mas que ainda levanta debates em nosso momento contemporâneo. É relevante não perder de vista a existência de um campo específico, mesmo que isso não seja importante para alguns e não agrade a todos. A própria constatação de existência de uma “arte contemporânea” já é uma forma de raciocínio por categoria de arte. A produção artística está por natu-reza envolvida por um sistema de práticas e conceitos que definem o campo. Certamente proposições artísticas que atuam no limite desse campo nas fronteiras entre arte e vida ou arte e cotidiano problematizam constantemente a noção de categoria.

Taís Freire de andrade Clark (13 de novembro de 2014)A arte como meio de expressão pode ser apropriada por todos, tanto por aqueles que a veem como meio de fuga (como já trabalhamos na questão anterior) quanto por aque-les que, por sua posição na sociedade, já detêm essa voz. Assim a arte passa a ser mais uma forma de monopólio de um ponto de vista único - o legítimo. É muito comum a tentativa de delimitar a arte e enquadrá-la em um sen-tido estético que não admite outro tipo de opinião, como se apenas um dito “especialista” pudesse interpretá-la e traduzi-la para os leigos. Por trás disso existe um grande interesse - o de controle da produção artística. Ora, con-trolar algo que muitas vezes visa exatamente a quebrar o próprio controle é completamente descabido! Como podem criar critérios para legitimar algumas práticas enquanto se deslegitimam outras, baseado em algo extremamente subjetivo? Esse enquadramento da arte, apesar de não fazer o menor sentido, é utilizado exatamente para restringir a expressão de certos grupos; é muito fácil marginalizar as pessoas simplesmente categorizando sua obra como “não arte”. Assim acontece com alguns estilos musicais (como o funk) e artistas (principalmente da periferia), que não têm sua arte reconhecida como tal.

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Vanessa Camila da Silva (11 de novembro de 2014)Acho estranho categorizar a arte, tendo em vista que daí entra a questão estéti-ca, o que é belo e feio e para quem? As práticas cotidianas são um convite para refletir o espaço e como o ocupamos e cuidamos dele. O grafite e a pixação são manifestações que expressam uma lin-guagem das ruas, seja de grito ou protes-to. O documentário Pixo expõe muito bem em seus relatos o cotidiano dos pixadores e apresenta a pixação como uma escritu-ra urbana da contemporaneidade que é feita em meio a escaladas em prédios que desafiam a autoridade policial, para que o registro de protesto e também reconheci-mento social seja observado em meio aos prédios cinza das grandes cidades.

Júlia Nascimento de Oliveira (10 de novem-bro de 2014)Penso em como essa categorização pode criar dentro da arte um processo de hie-rarquização, discriminando manifesta-ções que têm potencial e são subjulgadas. Para mim, a arte não tem que ser rotula-da, o que importa é o que ela se dispõe a transmitir.

maiores. Nesse sentido, as possibilidades de conce-ber o site como algo mais do que um lugar – como uma história étnica reprimida, uma causa política, um grupo de excluídos sociais – é um salto concei-tual crucial na redefinição do papel “público” da arte e dos artistas. (KWON, 1997, p.8)

Na arte site-specific comunitária, a ideia de site é deslocada do âmbito físico para o discursivo, e passa a basear-se na troca cultural, no movimento e na construção de significa-ção em rede. Ao estruturar-se “inter(textualmente) mais do que espacialmente”, o site adquire, nesse momento, um caráter transitório e, consequentemente, transterritorial, constituindo não um ponto ou um mapa, mas um itinerário,

“uma sequência fragmentária de eventos e ações ao longo de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percur-so é articulado a partir da passagem do artista” (KWON, 1997, p.172). O artista adquire, nesse contexto, o papel de catalisador ou mediador de ações articuladas, que visam, principalmente, ao engajamento político das comunidades.

É importante salientar, contudo, que as etapas da produção site-specific apresentadas por Miwon Kwon nem sempre ocorrem, como bem sabemos, de maneira linear. Em um processo de sobreposição e entrecruzamento, tal produ-ção acabou por configurar, em seus diferentes momentos históricos, verdadeiros híbridos das temáticas apresenta-das. Além disso, há uma diferença fundamental da maneira com que isso se deu nos Estados Unidos e no Brasil. Para Douglas Crimp (2005), se nos Estados Unidos das décadas de sessenta e setenta observam-se preocupações de ca-ráter predominantemente fenomenológico, no Brasil, nes-se mesmo período, a tentativa de criação de um espaço agonístico, ou de caminhos para a desconstrução da ordem - representada, no caso, pela ditadura - é tônica fundamental.

Após essa breve explanação “genealógica”, voltemo-nos à análise da “arte comunitária” apresentada por Kwon, e de sua possível configuração tática. Como exemplo embrioná-rio dessas práticas poderíamos citar a produção do brasilei-

ro Hélio Oiticica, em meio a qual destacamos a ideia do Crelazer, referente à busca pelo desenvol-vimento, por parte do artista, do que seria um “sonho comunitá-rio”. Esse vetor do pensamento oiticiquiano preconiza a ideia de que atividades coletivas inventi-vas e não repressivas, incluídas no âmbito do lazer, seriam for-mas políticas por si só. Uma es-pécie de gesto tático, se quiser-mos nos aproximar das questões levantadas nessa análise. Isso ocorreria pelo fato de essas ex-pressarem uma forma de não subestimação da vida cotidiana a instâncias regulatórias, ou ao que Oiticica denomina “dessubli-mação programada”.

No âmbito dessa ideia, surge a concepção do Mundo-abrigo (tex-to-obra escrito em 1973), e, com ela, o projeto Barracão, que parte do reconhecimento do espaço ur-bano, e principalmente da favela, como possível palco para expe-riências de grupo. A ideia era usar o Barracão como princípio

estruturador para a construção de uma comunidade no Rio de Janeiro, o que não se concretizou. Foram realizados, no entanto, alguns protótipos para o desenvolvimento das cha-madas estruturas-abrigo, que tinham como princípio estimular o viver comunitário. A “célula Barracão 1” foi construída em Sussex, na Inglaterra, junto a estudantes universitários, e era constituída por uma série de Ninhos, que funcionariam como abrigos, salas de recreação ou commom room.

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QUESTÃO 3Os recentes avanços no âmbito da tecnologia da informação, e as novas possibilidades de conexão em rede assim geradas, têm contri-buído para uma crescente disseminação das práticas colaborativas. Como esse movimento influencia o âmbito artístico? Seria o caso de pensar uma forma de arte para além da “arte comunitária” pensada por Miwon Kwon (e apre-sentada no texto)? Discorra a esse respeito a partir de exemplos.

Carlos Muñoz Sánchez (16 de dezembro de 2014)Deixei essa pergunta sem responder durante a semana da aula, e agora, depois de ter lido os outros textos, e participado das outras discussões, muitas perguntas ficam ligadas. Aqui o tema é arte e cotidiano, mas tem a ver com assuntos discutidos na aula de territó-rio, e na aula de comunidade. Já conhecia o trabalho do coletivo Iconoclasistas e tive a oportunidade de participar da oficina deles na Noite Branca 2014, em BH. Achei mui-to interessante a metodologia participativa de mapeo, aproveitando os conhecimentos de todos, e criando de um jeito colaborati-vo, quase se esquecendo da autoria. O mais legal é que eles sabem que um mapa não

Tomada como paradigma, a obra de Oiticica foi amplamente explorada em um momento emblemático para a discus-são das intercessões entre arte e comunidade no Brasil: a 27a Bienal de Arte de São Paulo: Como viver junto?, em 2006. A exposição, organizada sob a curadoria de Lisette Lagnado e Adriano Pedrosa, baseou-se nas notas dos cur-sos e do seminário “Como viver junto”, de Roland Barthes, e apresentou uma série de indagações a respeito da vida em comunidade, da “justa distância” e dos possíveis elos que possibilitariam o desenho de uma vida comum, para além da coincidência espacial e temporal dos indivíduos (PEDROSA; LAGNADO, 2008).

Passemos, ora, à análise de grupos que expressam uma modalidade de atuação no mínimo relevante para o estudo das interseções entre arte e vida em comunidade: trata-se dos coletivos artísticos. Como o próprio nome indica, a no-ção de coletividade permeia toda a atividade desses grupos, mostrando-se presente não apenas em sua ação propria-mente dita, mas também, e principalmente, em sua estru-tura organizacional. Dentre as ideias que permeiam tais organizações têm-se a horizontalidade, o movimento em rede e a interdisciplinaridade. Contrariamente à lógica mer-cadológica que prioriza a marca e o autor, os coletivos ex-pressam uma tentativa de diluição dessas ideias em prol do desenvolvimento de ações conjuntas, por vezes anônimas.

Segundo Ricardo Rosas (ROSAS apud LABRA, 2009), apesar de a ideia de “coletivo” não restringir-se apenas à prática artística contemporânea - a formação de agrupamentos artísticos teria ocorrido durante todo o século XX, atraves-sando as obras da Internacional Situacionista, de Gordon Matta-Clark e do grupo Fluxus, de Nova York - é a partir da década de noventa que os coletivos parecem atravessar a sua mais ampla expansão. Impulsionados pelos novos meios de comunicação em rede e em meio a um contexto marcado pelo desenvolvimento do capitalismo tardio nos países emergentes, esses insurgem como sistemas de co-operação e reciprocidade, em uma espécie de contraponto à tendência mercadológica dominante.

Nesse âmbito, o trabalho desenvolvido pelo grupo argentino Iconoclasistas nos parece paradigmático. Com base em Buenos Aires, essa organização atua desde 2006 no fomen-to à construção de redes e no desenvolvi-mento de práticas cartográficas colaborati-vas, cujo objetivo último seria o engajamento social. As práticas de mapeamento por eles realizadas consistem em atividades de re-flexão coletiva a respeito do território. Feitas junto às comunidades, essas ações têm o princípio de sub-verter o lugar de enunciação da prática cartográfica formal, questionando os discursos dominantes a partir de rela-tos de experiências cotidianas. Os principais objetivos dos mapeamentos seriam, assim, ativar processos de territori-alização, socializar práticas e pensamentos, estimular o es-pírito da coletividade e elab-orar estratégias de transfor-mação social.

Nas oficinas promovidas pelo grupo, um primeiro momen-to é normalmente dedicado à produção de mapas individu-ais. Tal prática impulsiona, de maneira lúdica, a narração de experiências e memórias sin-gulares, trazendo à tona áreas do território e questionamen-tos por vezes invisíveis aos olhares externos. Uma segun-da fase refere-se à superpo-sição desses mapeamentos: as composições gráficas ge-

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radas exibem padrões complexos de percepção coletiva e explicitam abordagens e pontos de interesse comuns dos participantes. Nas fases que se seguem os integrantes são normalmente divididos em grupos, cada qual tornando-se responsável pela produção de um tipo de mapa. Como exemplos, têm-se os mapas realizados em Caracas, em março de 2013.

Essas oficinas são gratuitas e os guias práticos para a sua execução são disponibilizados no website do grupo5 para serem utilizados livremente. Tal prática expande a lógica comunitária para o amplo universo das redes virtuais, de forma a contornar tanto a dificuldade geográfica de acesso a tais conteúdos quanto a lógica da propriedade privada, por meio das licenças Creative Commons.

A prática mostra-se bastante útil no sentido de promover discussões a respeito do território e das relações de poder nele presentes. Sua potência, ao nosso ver, reside princi-palmente no fato de configurar um instrumento de reflexão coletiva, na qual a cidade, suas fronteiras imateriais e seus movimentos invisíveis são considerados de forma espacia-lizada e crítica. Quanto a isso, cabem alguns questiona-mentos: em que medida a reconstrução simbólica, e em comum, dos lugares definidos em um território é potente em engendrar outras possibilidades para a sua partilha? Até que ponto dar a ver o invisível, por meio de um mapa colaborativo, pode gerar deslocamentos no regime sensível vigente em uma comunidade?

A ação configura um exemplo central para a nossa análise, trata-se de uma expressão da conjunção entre as ideias apresentadas acima, sob o nome de arte comunitária, e as de um fazer propriamente colaborativo. Atenhamo-nos brevemente a essa tênue, mas importante, distinção. Se o que Kwon denomina “arte comunitária” ainda apresenta certa dependência de um artista-mediador - que permane-ce, contudo, como uma espécie de autor da ação em comu-nidade - na prática em questão essa posição autoral já en-contra-se mais diluída, na medida em que os participantes

5. Website do grupo Iconocla-sistas: <http://iconoclasistas.

net>

muda nada, mas é uma ferramenta a ser usada para futuras mudanças. Nesse sentido, eles oferecem uma metodologia bem estudada e são guias num trabalho que finalmente é feito em coletivo, sendo o produtivo final desenvolvido pelos participantes. Numa das perguntas de outra aula falei que o artista, embora não seja a pessoa que executa a obra, não perde a autoria, inclusive se a obra é feita com participação. Mas pensando no trabalho dos Iconoclasistas, acho que há vezes em que isso acontece, por exemplo, nos produtos finais das oficinas deles. Afinal, a obra de arte para eles é a própria metodologia, não o cartaz ou o mapa final.

Thaís Mor (23 de novembro de 2014)A possibilidade de criar conexões como rizomas e desterri-torializar o espaço através de redes virtuais, possibilitadas pela tecnologia, cria uma tática cada vez mais política e descentralizada de um “artista mediador”. “[...] essa posi-ção autoral já se encontra mais diluída, na medida em que participantes assumem uma posição de construção real do produto, cujas pretensões são mais políticas que propria-mente artísticas”. Apoderar-se dessas tecnologias de in-formação e conexão em prol da comunidade, com caráter heterogêneo, aberto a diferentes seres “singulares” que se conectam em ações tem gerado formas estéticas e ma-nifestações artísticas cada vez mais táticas. Um exemplo disso é o coletivo Partio, de São Paulo, que criou o Viva Rio Pinheiros, que cria ocupações artísticas à margem do Rio Pinheiros. “Desde quando foi inaugurada, em 2010, a ciclo-via que fica às margens do rio abriu uma nova perspectiva e possibilidade de interação com aquele espaço. Através de intervenções na ciclovia que começam com artes visuais e arte de rua, o projeto tem como objetivo a modificação aos poucos das margens do Rio Pinheiros. O Projeto, idealizado por Carol Ferrés, surgiu durante seus passeios que fazia de bike pela ciclovia, entre março e maio deste ano. Ela conta que, apesar da situação agonizante do rio, tinha mui-ta vida lá, e pensava nas possibilidades de fazer com que mais gente conhecesse o rio de perto e pudesse ver que ele ainda está vivo. Dessa maneira, o projeto associou a arte, o design, a informação e a educação aos espaços públicos,

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apostando em um potencial de grande trans-formação, principalmente se tratando de um espaço degradado, porque modifica o olhar das pessoas para aquele lugar, as conecta com sentimentos de que para todo problema existe uma solução” (https://partio.com.br/projeto/viva-rio-pinheiros/, http://www.co-nexaocultural.org/blog/2014/10/projeto-rio-viva-pinheiros). Dá vontade de fazer algo na Andradas, não dá?

Ricardo Macêdo (13 de novembro de 2014)Oi, Paula, pois é, “sem restringir o comum”. Fora do virtual, o que tenho em mãos e em que ando acreditando agora mais do que nunca - pela abertura que o dispositivo ofer-ta - é a dobradinha arte e educação (é claro, vinculadas a outros parâmetros). Imersão em comunidades, bairros, cidades, mais o que a experiência indicar em termos de ca-minhos táticos e estratégicos. Mas, ainda assim, tenho minhas dúvidas sobre quais os modos adequados de aproximação, modos de resolução de conflitos (um tabu na arte contemporânea, né? Envolve questões éti-cas...), a questão dos trâmites inter e intra-pessoais... Enfim, um grande abacaxi pra ir pensando. Acho que nesse sentido vai para além da arte comunitária, o buraco é bem mais embaixo.

assumem uma posição de construção real do produto, cujas pretensões são mais políticas que propriamente artísticas.

De forma a ilustrar situações em que essa ideia é toma-da de maneira mais radical, apresentaremos, como último exemplo desta análise, A Ocupação, uma ação artístico-cul-tural coconstruída pela sociedade civil nos espaços públicos de Belo Horizonte. A ação surgiu em julho de 2013, motiva-da pela insatisfação de um amplo grupo de cidadãos a um projeto de requalificação da área do Viaduto Santa Tereza, na região central da cidade. Se o projeto governamental tinha como escopo a construção de um Corredor Cultural na área, o intuito do ato era, de forma colaborativa e articulada, mostrar que tal corredor já existia. Diversos atores uniram-se em torno a essa ideia, dentre os quais o recém-criado Grupo Temático Arte e Cultura6 , alguns movimentos sociais já atuantes na região, arquitetos, artistas, estudantes, pro-fessores, agentes culturais e moradores.

A ideia era reunir, além das ações que já ocorriam no local, qualquer atividade proposta por quem quisesse participar, promovendo em torno a estas, uma ocupação coletiva e ho-rizontal do espaço que duraria um dia. Mas como agenciar um evento que se pretende aberto e articulado? Para que a realização do ato fosse possível, a ideia de colaboração foi central. O processo de definição de atividades e espaços a serem ocupados, por exemplo, fez-se por meio de planilhas compartilhadas online. Foi criado, também, um grupo de discussão no Facebook, em que qualquer um podia entrar e participar. Da mesma forma, as reuniões preparatórias presenciais funcionaram a partir de um modelo assemble-ário no qual todos poderiam dar a ver (e a ouvir) suas ideias e propostas.

Esse caráter colaborativo permeou também a realização do evento, que começou com um mutirão de limpeza e abar-cou, durante uma tarde, variadas microações simultâneas. Além da apresentação de diversas bandas e da realização de múltiplas performances, pneus velhos foram pendura-dos na estrutura do viaduto de forma a gerar “balanços” e

6. O G Arte e Cultura surgiu

no âmbito da Assembleia Pop-

ular Horizon-tal, criada em

Belo Horizonte durante as man-

ifestações de junho de 2013.

fanzines ilustrativos das ações cotidianas dos moradores de rua da área foram distribuí-dos. Desenhados a partir do acompanhamento, por um grupo de estudantes, de uma jornada de moradores de rua daquela região, esses folhe-tos buscavam tornar visíveis histórias da cidade muitas vezes ocultas. Mostrar ações corriqueiras do seu cotidiano seria uma forma de dá-los a ver como atores ativos, parte do mundo em comum, parti-cipantes da cidade e de suas dinâmicas.

Além dessas, diversas outras ações ocorreram. O coletivo

“Trajeto do afeto”, por exem-plo, espalhou barquinhos fei-tos de papel em vários pontos do espaço, e os passantes pu-deram dependurar, no “varal coletivo do amor”, imagens, frases e impressões momen-tâneas do lugar. Fez-se um

“banquete comunitário” em torno a uma grande mesa montada sob o viaduto, e uma

pequena estrutura foi construída para que mu-das de plantas fossem trocadas por sementes e receitas.

As superfícies também foram utilizadas. Stêncils com os dizeres “o meu corredor cultural tem” ocu-param as paredes de forma a convidar os tran-seuntes a também ocupá-las. No chão foi estendi-do um grande tecido com o mapa da área, no qual

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João Paulo de Freitas Campos (12 de novembro de 2014)As redes sociais se distinguem em duas categorias: as pre-senciais e as virtuais. As novas tecnologias da informação que permitem a conexão, a comunicação e a organização rápida e eficaz de pessoas no ciberespaço potencializam e ordenam, sob outra lógica, relações que já existiam. Como Robert Darnton argumenta em sua obra Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII, nós somos inclinados a pensar que redes de comunicação são um fe-nômeno contemporâneo, que vivemos numa “Sociedade da Informação”, o que é um termo incrivelmente banal, pois as sociedades - letradas e iletradas, antigas e moder-nas - sempre foram “sociedades da informação” - Gilbert Simondon também demonstra isso em A individuação. Nesse sentido, essas novas tecnologias da comunicação/informa-ção proporcionam uma nova lógica do mesmo fenômeno humano: a comunicação - que existe desde sempre! O fluxo de informações veiculadas no ciberespaço serve de maneira incrivelmente positiva - no sentido em que estou argumen-tando, acredito que existam pontos negativos também, que não comentarei aqui - para movimentos artísticos. Existem obras literárias copyleft sendo construídas coletivamente na internet, movimentos artísticos se organizam e promo-vem ações pelas redes sociais virtuais, enfim, a colabo-ração nas práticas artísticas segue, através destes novos dispositivos, uma nova lógica: mais rápida, “impessoal” (termo perigoso, porém necessário aqui, em certo sentido) e desterritorializada.

os ocupantes eram convidados, sob a frase “inscreva-se”, a imprimir - com canetas, adesivos ou panos - as linhas de força que, em sua percepção, atravessavam o lugar.

Como podemos observar, esse ato configura um exemplo diverso daqueles pontuados anteriormente, relativos à “arte comunitária”. Apesar de guardar muitas semelhanças com a ação do coletivo Iconoclasistas, inclusive quanto às téc-nicas utilizadas, parece configurar algo fundamentalmente diverso. Mas onde está a sua peculiaridade? Talvez no fato de não se tratar de uma obra e tampouco de uma única oficina em torno da qual a comunidade se reúne, mas de uma experimentação coletiva aberta, baseada na ação de singularidades múltiplas que, apesar de agirem em comum, partem de formas e interesses heterogêneos. A “unidade” que nela se forma parece ser, nessa perspectiva, precária ou lacunar: o encontro que se produz entre as partes não promove fusão, mas é fragmentário e contingencial. Não se trata, portanto, de uma ação centrada em torno a uma identidade unívoca de forma a afirmá-la, mas de um ato em rede, de conexão e agenciamento.

Nessa perspectiva, mais do que uma ação comunitária, A Ocupação parece configurar um tipo de experiência baseado na heterogeneidade e na abertura. O tipo de colaboração em rede que a caracteriza, em que “o artista” não adquire papel nem de autor nem de mediador, parece apontar para outras e profícuas possibilidades de interseção entre arte, política e cotidiano, baseadas na tomada de ação direta pelo

“qualquer um”. O estabelecimento das novas tecnologias de informação e a expansão dos processos de participação equipotencial - como o modelo ponto a ponto (peer to peer) ou parecem contribuir fortemente nesse sentido.

CONSIDERaÇõES FINaIS

Nesse texto, buscamos dar a ver algumas possibilidades de interseção entre a vida cotidiana e as práticas artísticas, entendendo estas últimas como potenciais táticas capazes de baralhar os lugares estabelecidos na cidade pela chama-da ordem policial. A título de exemplo das muitas análises que se poderiam fazer a partir de tais questões, optamos por rastrear experiências relacionadas a duas dimensões

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Yuri amaral (9 de novembro de 2014)Tanto a professora como os colegas Fred e Ricardo levantaram fatos e questionamentos importantes - essa outra face de controle e su-pervisão. É claro que não podemos fugir dessa vigilância (não temos mesmo como escapar disso. Mesmo a deep web é constantemente vigiada, e vale lembrar - corrijam-me se eu estiver enganado - que a internet, em sua gênese, foi criada para uso militar, não?). Na publi-cidade, costumamos dizer que, quando não pagamos nada é porque nós somos o produto (Facebook, por exemplo). É claro que, fugindo de generalizações, o mercado encontra dispositivos para continuar controlando, porém são velhos jogadores, com regras antigas ten-tando controlar um mundo novo de possibilidades inventivas, e isto pela quantidade absurda de pessoas que usam e descobrem falhas e caminhos em todos esses processos. O Facebook atualiza seu(s) algoritmo(s) diariamente, justamente pra tentar manter o máximo possível de controle. Nos EUA houve uma evasão dos adolescen-tes dessa mídia social, pois queriam privacidade (sem propagandas, sem família). Já existem aplicativos que bloqueiam a publicidade (Ad Blocker, por exemplo. Tenho há três meses instalado e já bloqueou quase 400 mil propagandas de qualquer site que visito). Há, aí, uma resistência sutil, porém poderosa. As mesmas ferramentas usadas para controle são usadas para a “criação de si” (Foucault), dobrando esse poder vigilante. Parece inocência acreditar nisso, mas é algo tímido, espalhado e irreversível em sua totalidade. As pessoas já entenderam esse potencial, porém precisam aprender a usá-lo e revertê-lo para si e sua comunidade. As novas tecnologias não só conduzem para a possibilidade de troca, como potencializam isso. Poder ter alcance global não significa que terá alcance global. É preciso entender o meio para usar esse potencial. No entanto, como

específicas: a apropriação das superfícies urbanas e a ideia da colaboração. Se apresentamos, ao longo do texto, mais perguntas do que respostas, é porque nosso objetivo foi, mais do que propor conclusões fechadas, abrir caminho para outras análises, que deem a ver outras possíveis par-tilhas desse “mundo comum” que subjaz às dinâmicas da cidade e da vida cotidiana. A nossa expectativa, assim, é de que o leitor sinta-se estimulado a cartografar outras ações, situadas nesse espaço entre cotidiano e prática artística, de forma a nelas identificar novas possibilidades táticas.

já mencionado, quem tem o poder do capital ainda comanda o que terá ou não alcance global e cabe a nós, singulares e comunidades, formar resistência usando as mesmas ferra-mentas que eles, não é?

Fred Triani (7 de novembro de 2014)A tecnologia permite, como colocou o colega Yuri Amaral, a

“qualquer um produzir e publicar conteúdo, de e em qual-quer lugar do globo”. Porém vejo com certo ceticismo esse argumento. Sim, qualquer um pode produzir e disseminar conteúdo, mas como isso ocorre na prática? Por exemplo, o que eu escrevo aqui, agora, chegará a todo mundo em qual-quer parte do globo? Qual é a capacidade de disseminação que minha produção pode abranger? Realmente, não sei se as novas tecnologias têm contribuído para uma crescente disseminação de práticas colaborativas. Práticas colabo-rativas existem independentemente da tecnologia. Temos diante de nós uma nova tecnologia que permite, sim, uma abrangência maior de troca de informação. Mas percebo que estamos cada vez mais reproduzindo a lógica off-line e criando guetos on-line do que criando alternativas ao mo-nopólio da informação. O acesso e a disseminação não são plenamente abrangentes, ao contrário, são restritos, basta ver quem tem acesso a suas publicações no Facebook. Este site: http://www.tenbyten.org/index.html é um bom exemplo de minha colocação. Trata-se de um mapeamento global das mais acessadas e compartilhadas notícias do mundo. É interessante notar o tanto que elas se repetem. E não só isso, a quem elas estão direcionadas. Ou melhor dizendo, quem direciona e detém a informação? A informação ainda é centralizada. No entanto, a internet abre brechas para uma comunicação global. O que é muito interessante, mas eu faço aqui meio que um apelo: ou criamos redes consis-tentes de produção e troca de informação ou acabaremos presos na lógica vigente do monopólio da informação! Aqui coloco links que vão na contramão dessa lógica, não são todos sobre arte, mas acho interessante compartilhar, pois são de grupos que se organizam em torno de uma causa: http://revolution-news.com/http://crimethinc.com/

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REFERêNCIaS

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Dalba Roberta Costa de Deus (6 de novembro de 2014)No artigo intitulado Arte colaborativa X cibercultura, Ana da Cunha discorre sobre a atuação de dois coletivos: o Superflex (dinamarquês) e De Geuzen (holandês), a respei-to da linguagem digital. A proposta do artigo era analisar a visão a respeito da cibercultura desses dois coletivos, que usam a proposta colaborativa e a estética relacional como poéticas de criação. Penso que a estética relacional, mesmo no ciberespaço, nos convida para o futuro. A colaboração, as trocas sociais, a criação de ambientes comunicacionais para discussão e compartilhamento de ideias sinaliza para uma concepção de arte em que não há um produto final, mas várias possibilidades. As trocas sociais são o motriz para pensar uma forma de arte para além da “arte comu-nitária”. Quando o trabalho faz uso da internet, o público deixa de ser pessoas específicas que costumam frequentar exposições de arte. Ao adentrar no ciberespeço, o trabalho entra em contato com fronteiras desconhecidas, atraindo os mais diferentes públicos.

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A elaboração de identidades ligadas a um lugar tem-se tornado mais ao invés de menos impor-

tante em um mundo de diminuição das barreiras espaciais nas trocas, nos movimentos e nas

comunicações.[David Harvey – From space to place and

back again]

As relações entre arte e território são extensas e podem ser vistas sob inúmeras perspectivas. A análise de tais relações passa, antes de mais nada, pela forma como a ideia de território se coloca e evolui ao longo do tempo, bem como pela evolução das manifestações e proposições artísticas asso-ciadas ao(s) conceito(s) de território.

Este texto tem como objetivo apresentar e discu-tir a relação entre arte e território, em uma pers-pectiva contemporânea, levando em consideração uma definição ampla de território e o enfoque da arte site-specific e site-oriented. Apresenta-se ini-cialmente uma breve reflexão acerca do conceito de território e sua associação com certos desen-volvimentos recentes em arte contemporânea. Ao longo do texto, serão apresentados trabalhos de quatro artistas contemporâneos – Gabriel Orozco,

ISaBELa PRaDO*

arte contemporânea, texturas, território

Mona Hatoum, Cildo Meireles e Francis Alÿs – que abordam questões diversas relacionadas ao território sob a(s) perspectiva(s) discutida(s) aqui. Por fim, na última seção, apresento parte de minha produção como artista, também com foco em trabalhos em que a relação com o território tem importância central.

aRTE E TERRITÓRIO: BREVES CONSIDERaÇõESterritório

sm (lat territoriu) 1 Terreno mais ou menos extenso. 2 Porção da superfície terrestre pertencente a um país, estado, municí-pio, distrito, etc. 3 Jurisdição. 4 Região sob a jurisdição de uma autoridade. 5 Região um tanto populosa mas sem habitantes em número suficiente para constituir um Estado, sendo pois administrada pela União. 6 Área certa da superfície de ter-ra que contém a nação, dentro de cujas fronteiras o Estado exerce a sua soberania, e que compreende o solo, rios, lagos, mares interiores, águas adjacentes, golfos, baías e portos.

Em uma definição mais tradicional (e su-perficial), como aquelas que aparecem nos dicionários de língua portuguesa, o território tem sido frequentemente asso-ciado a suas características físicas, ou tem sido visto como o espaço sobre o qual se constitui um Estado. Tal definição, no en-tanto, é insatisfatória por deixar de lado uma série de aspectos essenciais na dis-cussão sobre território, particularmente em sua dimensão simbólica – o que nos interessa em particular para pensar as relações entre arte e território.

Considerando uma definição mais ampla, o território seria visto a partir de uma perspectiva que considerasse várias ins-tâncias, partindo do pressuposto de que

QUESTÃO 1a partir dos conceitos apresenta-dos no texto, discuta em que medi-da se observam processos de ter-ritorialização e desterritorialização no mundo atual. Dê exemplos.

Thais Mor (7 de dezembro de 2014)A globalização hoje é o maior processo de desterritorializa-ção, visto com as multinacionais que hoje entram e ditam uma cultura de consumo em diferen-tes países, sem falar que, hoje, grande parte delas produz tudo na China. Nota-se nas grandes metrópoles a padronização das comunicações, das imagens e dos hábitos de consumo; e toda a felicidade enlatada estão in-seridas em um arquétipo ideal, construído primeiramente pelos interesses econômicos e, muito posteriormente, pelos sociais/

* Isabela PradoArtista visual, professora e pesquisadora em artes. Graduada em Belas Artes

pela UFMG e Mestre em Artes Visuais pela Indiana

University (EUA). Partic-ipou de vários programas

de residência artística e de exposições individuais e coletivas no Brasil e no

exterior. Foi contemplada com o Prêmio Funarte de

Arte Contemporânea, com o projeto “Entre Rios e

Ruas”.

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o território sempre comporta uma dupla conotação, mate-rial e simbólica. Primeiramente, em sua dimensão física: o território sendo delimitado por uma área geográfica, com características peculiares de clima, relevo, vegetação, hi-drografia, etc. Em segundo lugar, devem-se considerar a ocupação e o uso do território, que se associam, mas não se restringem, à sua definição como espaço de constitui-ção dos Estados nacionais. Abrange, assim, aspectos eco-nômicos, políticos, sociais e demográficos que caracteri-zariam determinado território. Por fim, em sua dimensão mais simbólica, o território se define a partir de aspectos de sua história e de sua cultura, associados à construção de identidades, de elementos de identificação comum, de uma memória coletiva. Trata-se de, a partir da relação entre território, territorialização e territorialidade, considerar o território físico como uma condição de existência material sobre a qual se constituem o tecido social e o simbólico.

Como resume Gonçalves (2002, p. 229-230):

O território não é simplesmente uma substância que contém recursos naturais e uma população (de-mografia) e, assim, estão dados os elementos para constituir um Estado. O território é uma categoria espessa que pressupõe um espaço geográfico que é apropriado e esse processo de apropriação – terri-torialização – enseja identidades – territorialidades

– que estão inscritas em processos sendo, portanto, dinâmicas e mutáveis, materializando em cada mo-mento uma determinada ordem, uma determinada configuração territorial, uma topologia social.

É interessante notar que a ideia de território está e esteve frequentemente associada ao conceito de fronteiras. Mas, também nesse caso, pode-se considerar um conceito mais amplo, de modo que a cada uma das instâncias em que o território se define corresponderia uma definição equivalen-te de fronteira. Assim, teríamos primeiramente a ideia de fronteira definida como a separação entre dois territórios a partir de elementos da geografia física – rios, lagos, mon-

tanhas. Além disso, deve-se considerar a fronteira em sentido político-jurí-dico, como o elemento de demarcação e separação entre Estados nacionais

– e muitas vezes como objeto de disputa entre nações (por exemplo, India-Paquistão, Israel-Palestina, Rússia-Ucrânia, etc.). Consideram-se também fronteiras como limites mais ou menos visíveis de demarcação territorial dentro de um país (como a ideia de

“fronteira agrícola”) ou de segregação espacial, particularmente relevante no espaço urbano (como a fronteira entre o “morro” e o “asfalto”). Por fim, no plano simbólico, podem-se pensar fronteiras como elementos de separa-ção ou segregação de caráter cultural/social, independentemente de qualquer sentido espacial ou geográfico (como o

“fosso entre ricos e pobres”, etc.).

Em qualquer de suas definições, en-tretanto, as fronteiras carregam con-sigo um caráter político, derivado dos limites (físicos ou não) que elas estabe-lecem, o que se expressa inclusive do ponto de vista etimológico, consideran-do o front como seu elemento constitu-tivo. Assim, fronteiras são definidas po-liticamente e por isso apresentam um caráter contraditório, mutável, aberto e potencialmente conflituoso.

culturais. Contra a onda, a volta, ou a tentativa de volta da valorização da cultura local, as novas organi-zações sociais virtuais – que se juntam por interesses comuns de cunho social/ambiental e pela re-tomada de valor do genuíno – co-meçam a renascer em pequenos grupos ou até mesmo em grupos organizados que começam a ques-tionar a legitimidade das informa-ções, dos produtos e da cultura que recebemos. No meu ponto de vista, a territorialização acontece no âm-bito da organização de ideias e do intelecto, no plano virtual, porque no plano da vida cotidiana parece só ser possível reterritorializar. A não ser que sejamos capazes real-mente de criar uma nova forma de viver, organizar e conviver biopo-liticamente acima das forças eco-nômicas, neoliberais, políticas e/ou estatais.

Carlos Dalla Bernardina (30 de de-zembro de 2014)Tais processos ocorrem com cres-cente intensidade e de modo si-multâneo nos níveis real e virtual, objetivo e subjetivo. No campo da música, ao qual sou mais próximo, a grande novidade são os processos de criação e produção a distância...

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O movimento sistemático de reconstituição e redefinição de fronteiras (particularmente as simbólicas) se reflete na permanente destruição e reconstrução de territórios. Sobre a primeira, Guattari e Rolnik (1996, p.323) afirmam:

O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie. humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfa-zem ininterruptamente.

Assim, concebe-se a desterritorialização como o movimen-to de destruição ou abandono do território, ao passo que a reterritorialização pode ser vista como o movimento de (re)construção do território. Note-se que territorialização e desterritorialização são vistas como processos concomi-tantes e que não há desterritorialização sem reterritoriali-zação, uma vez que – como mencionado antes – o território é condição de existência para a humanidade.

O processo de globalização observado nas últimas décadas – expressão da expansão em escala mundial do capital finan-ceirizado, acompanhada por intensa evolução da tecnologia e das telecomunicações – é fonte permanente de des(re)territorialização, tendo gerado crescente homogeneização dos lugares e apagamento das diferenças culturais. A indi-ferenciação e a desparticularização dos espaços alimentam os efeitos de alienação e fragmentação na vida contempo-rânea, e a concomitante articulação e o cultivo das diversas particularidades locais podem ser vistos como a reação pós-moderna, recriadora de territórios, a esses efeitos.

Segundo Henri Lefebvre (1991, p.52):

Considerando que o espaço abstrato [do modernismo e do capital] tende na direção da homogeneidade, na direção da eliminação das diferenças ou peculiari-dades existentes, um novo espaço não pode nascer (ser produzido) a não ser que ele acentue diferenças.

Assim, não surpreende que o esforço para resgatar iden-tidades, a partir das diferenças e particularidades locais, torne-se central em face de um processo de homogenei-zação e redução das características específicas que defi-nem as identidades dos diversos lugares. A reafirmação das especificidades leva à produção de diferenças e de particularidades. Em um contexto de globalização, em que a homogeneização abafa as diferenças, sua reafirmação embute um caráter crítico e contestatório, ao gerar e pro-mover “texturas” e imperfeições nos espaços padronizados do capitalismo, a partir de práticas em que a especificidade adquire caráter central.

Em linhas gerais, a arte pode cumprir esse papel como geradora de dife-renciação e construção de identidades. Nesse caso, a arte é vista como um ins-trumento de criação de território a partir de sua capacidade de lidar com as sensações, os sentidos, a memória e outros ele-mentos no campo simbó-lico (GROSZ, 2005).

A instalação Mi mano es la memoria del espacio (1991), de Gabriel Orozco, trata precisamente desse pa-pel da arte – e do artista

– como elemento provo-cador, catalisador. O tra-balho, uma instalação de 25 metros quadrados feita com colheres de sorvete, ilustra a capacidade do artista de difundir um conceito ou uma sensação a partir da fruição de uma obra pelo público. Assim, o artista, crítico e atento, seria capaz de irradiar e expandir sua percepção acerca de

Arquivos são enviados com as faixas gravadas por diferentes instrumentos em diferentes lu-gares, para depois serem mixados e remixa-dos também num contexto desterritorializado. Porém, um ponto subjacente a todo esse debate tem me incomodado muito. Numa reação natu-ral e genuína aos movimentos de homogeneiza-ção e padronização impostos pelo jogo de forças do processo globalizatório, caímos facilmente no erro de confundir o que deve ser uma crítica a este jogo de forças e o que deve ser uma crí-tica ao processo de globalização em si mesmo. Desse modo, o valor da conservação de modos tradicionais é defendido sempre a priori, inde-pendentemente de uma avaliação mais cuida-dosa a respeito de serem ou não pertinentes aos territórios que os sustentam. Precisamos estar atentos ao fato de que, ao defender “iden-tidades”, muitas vezes os movimentos contra-globalizatórios acabam sufocando importantes processos de emergência de “singularidades”, que em diversos contextos necessitam de uma

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proposições específicas sobre questões políticas, econômi-cas, sociais, ambientais, etc. Nessa instalação, em particu-lar, a escolha das colheres de sorvete representa também a noção de que o “consumo” da arte gera um resíduo, um registro, uma memória após sua efetivação – construindo, assim, território.

Mona Hatoum, em + and – (1994-2004), explora de forma quase literal a ideia de que vivemos permanentemente um processo de construção e destruição de territórios – como

“texturas” no movimento de homogeneização associado à globalização. Trata-se de uma instalação de quatro metros de diâmetro, em que uma haste de metal gira em torno de um eixo central sobre uma superfície de areia. Seu movi-mento ininterrupto causa, a um só tempo, a geração de sul-cos na areia e seu posterior apagamento, com a superfície se tornando novamente lisa.

A ideia de território e, particularmente, de fronteiras é um tema constante no trabalho de Mona Hatoum, artista de origem palestina nascida no Líbano. Present Tense (1996) é uma instalação em que o mapa da Palestina, tal como de-finido pelos Acordos de Oslo de 1993, é representado com miçangas vermelhas, incrustadas sobre uma superfície for-mada por 2.200 barras de sabão de Nablus (um produto tra-dicional da Palestina, feito com sal mineral e azeite de oliva). O mapa mostra a fragmentação do território Palestino, que mais parece um arquipélago do que um território contínuo, como havia sido definido após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A escolha de um material perecível para a instalação sugere a insustentabilidade e o potencial de alteração das fronteiras definidas em Oslo.

Temas como territorialização e desterritorialização são também presentes em outros trabalhos de Mona Hatoum, a partir das noções de deslocamento cultural e exílio. Suspended (2011) é uma instalação composta por 35 balan-ços de madeira, em cujos assentos estão gravados mapas de grandes cidades ao redor do mundo. Os balanços são dispostos de modo desalinhado no ambiente, criando uma sensação de deslocamento, e se mantêm em constante

movimento, à medida que o público esbarra neles ao se deslocar pela sala de exposição. A instala-ção explora uma representação abstrata e con-densada de territórios urbanos para se referir a temas como migração, deslocamento, identidade e pertencimento.

Em linhas gerais, pode-se argumentar que aquilo que se convencionou chamar de arte site-specific e site-oriented, em sua versão mais contemporânea, é particularmente interessante para a produção de

“texturas”, formação de identidades e construção de território. “É essa função diferencial associa-da aos lugares que as formas primeiras de arte site-specific tentaram explorar e que as atuais incorporações de trabalhos site-oriented buscam reimaginar” (KWON, 2008, p.182).

Cabe notar que a definição de arte site-specific foi se alterando ao longo do tempo, e que sua evolução reforça os argumentos colocados aqui. Inicialmente, era associada a trabalhos que incor-poravam aspectos físicos de certa localidade ou espaço como parte importante na sua concepção, apresentação e recepção. Isso significa que a pró-

situação de ruptura e ruído para poder flo-rescer. Acredito muito no valor da manutenção dos processos de subje-tivação dos indivíduos e das coletividades, mas acredito também no va-lor da constante trans-formação das formas e dos símbolos que nos animam para a vida e para o mundo. O impor-tante é cuidar para que esse processo ocorra

sempre de dentro para fora, mantendo os processos de subjetivação em estado dinâmico, e não através de uma imposição externamente codificada, como muitas vezes acontece.

Claudia Laport Borges (24 de novembro de 2014)Como havia colocado em um anterior, e citando Milton Santos, o território (territorialização) abarca do global ao local, e se torna um conceito quando o consideramos na perspectiva do seu uso. Então a territorialização está sempre ocorrendo, de acordo com o signi-ficado que está se dando para o uso dos espaços (cidade, praças, web, viadutos, etc.). Por outro lado, entendo como um processo de desterritorialização a retirada do significado simbólico do território. Dando um exemplo prático: uma comunidade indígena que perdeu um território, onde possuía significado espiritual e antropológico

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pria construção da obra era definida pelo espaço físico e a ele se vinculava de forma inseparável. Esse paradigma é denominado de fenomenológico ou experiencial.

A arte site-specific inicialmente tomou o ‘site’ como localidade real, realidade tangível, com identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos. […] O objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado singu-larmente no aqui-e-agora pela presença corporal de cada espectador, em imediatidade sensorial da extensão espacial e duração temporal. […] O trabalho site-specific em sua primeira formação, então, focava no estabelecimento de uma relação inextricável, in-divisível entre o trabalho e sua localização, e deman-dava a presença física do espectador para completar o trabalho (KWON, 2008, p.167).

Ao longo do tempo, a noção de site foi ampliada, de modo a incluir outros aspectos anteriormente negligenciados. Em um primeiro momento, questionou-se o papel das insti-tuições de arte, explicitando elementos associados a seu funcionamento e buscou-se revelar a maneira (não neutra) como a obra se relaciona com o ambiente expositivo e todo o sistema que o envolve. Note-se que a noção de site que decorre de tais considerações se torna mais complexa, ao incluir também aspectos históricos, sociais, econômicos e políticos, configurando a abordagem “crítico-institucional”.

Por fim, a partir dos anos noventa, a arte site-specific am-pliou ainda mais sua abrangência, atingindo uma perspec-tiva de descontinuidade no tempo e no espaço, e explorando seu potencial de ambiguidade e des(re)territorialização a partir de uma abordagem discursiva. Nesse caso, tanto o espaço quanto a obra não se prendem a uma noção fixa, e se movem em direção a instâncias mais públicas, sendo organizados intertextualmente a partir do movimento nô-made do próprio artista. Assim, o site deixa de ser apenas uma localização geográfica ou um ambiente físico, se con-

figurando antes de tudo como uma rede de relações sociais. Nas palavras de Miwon Kwon (2008, p.171),

a característica marcante da arte site-oriented hoje é a forma como tanto a relação do trabalho de arte com a localização em si (como site) como as condições sociais da moldura institucional (como site) são subordinadas a um site determinado discursivamente que é delineado como um campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural. Além disso, diferente dos modelos anteriores, esse site não é definido como pré-condição, mas antes é gerado pelo trabalho (fre-quentemente como ‘conte-údo’), e então comprovado mediante sua convergên-cia com uma formação discursiva existente.

O território passa então a ser fluido e disperso, e suas fron-teiras passam a ser de difícil definição. O espaço da obra se torna mais amplo, podendo in-cluir o próprio espaço físico, mas também outros elementos, reais

– como textos, imagens, objetos – ou virtuais, como um conceito teórico abstrato. Assim, o espaço da arte passa a ser colocado em segundo plano, em favor de outro locus que pode ser desmateria-lizado, nômade e virtual. Como bem resume Miwon Kwon (2008, p.173), “na prática das artes avan-çadas dos últimos 30 anos, a defi-nição operante de site foi transformada de localidade física – enraizada, fixa, real – em vetor discursivo – desenraizado, fluido, virtual”.

(como um cemitério antigo, um local de celebrações, um local de pesca tradicio-nal, etc.). O local foi desterritorializado, pois perdeu seu significado simbólico e cosmológico.

Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de 2014)Antes de mais nada, quero destacar o ótimo texto da Isabela Prado, de rara ‘le-veza e exatidão’. E, é claro, as instigan-tes intervenções dos colegas. Bem, em O Anti-Édipo, Guattari e Deleuze afirmam que a sociedade encontra-se quadricula-da em circunscrições que aprisionam a produção e o desejo para canalizá-lo em um sentido reprodutivo e antiprodutivo. E acrescentam que um processo revolu-cionário desejante tem de passar por (e gerar) uma desterritorialização: linhas de fuga do desejo, conexões insólitas que fazem explodir, desterritorializam as formas concretas ou abstratas do poder. Ainda em 1972, ano do lançamento do refe-rido O Anti-Édipo, Guattari, em um peque-no texto (Psychanalyse et Transversalité),

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A evolução da arte site-oriented em direção à sua versão discursiva permite ampliar ainda mais seu alcance como geradora de territórios (simbólicos ou não). Isso porque pode promover a singularidade de identidades locais, ge-rando visibilidade a grupos ou assuntos negligenciados pela cultura dominante. Sua estruturação deixa de depender de sua espacialidade e seu modelo passa a ser uma narrati-va, ou um itinerário – visto como uma sequência de ações ou eventos no tempo ou no espaço – cujo alcance se torna potencialmente ilimitado, e cujo percurso é definido pela passagem do artista.

O papel do artista, nesse caso, passa a ser o de elaborar e definir conceitualmente a obra, mobilizar os elementos necessários para sua produção e legitimar ou validar o tra-balho com sua “presença”, principalmente quando o tra-balho envolve a participação do público em sua execução, de modo a potencializar seu impacto e significado. Nesse sentido,

o artista se aproxima de ser a ‘obra’. […] É o aspecto performativo de um modo característico de opera-ção de um artista (mesmo quando em colaboração) que é repetido e transportado como nova mercadoria, posto que o artista funciona como o veículo principal de sua legitimação, repetição e circulação. (KWON, 2008, p.177)

A intervenção Elemento desaparecendo/Elemento desapare-cido (2002), de Cildo Meireles, representa uma contribuição interessante nessa tendência, em que a obra se constrói com sua disseminação pública a partir de uma proposi-ção do artista. O trabalho, apresentado na Documenta de Kassel, consistiu na montagem temporária de uma pequena fábrica de picolés e na venda de sua produção nas ruas e nos espaços públicos da cidade. Todos os picolés eram fei-tos apenas de água e apresentavam, em um dos lados do palito, a inscrição “elemento desaparecendo”. Uma vez que os picolés eram consumidos, se revelava, no outro lado do palito, a inscrição “elemento desaparecido”.

propõe um conceito operacional ao processo de desterrito-rialização: a transversalidade. Uma dimensão que pretende ultrapassar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade, na qual tende a realizar-se logo que uma comunicação máxima se efetua entre os dife-rentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos. Ou seja, a transversalidade permeia o universal (pura verticalidade) e o particular (simples horizontalidade). Vejamos isso no concreto. Há cerca de seis anos, surgiu na Comunidade do Campinho (Congonhas, MG), oriunda de uma iniciativa dos docentes da Escola Municipal Dona Maria de Oliveira Castanheira, a ques-tão da consciência patrimonial na formação do sujeito (seja ele individual ou coletivo). E então começou o Projeto Consciência Patrimonial naquela comunidade.

Uma vez que a globalização denota um processo contínuo de “anulação do sujeito”, percebeu-se ali que uma prática artís-tico-cultural estava à beira da extinção. Tratava-se do culto à Santa Cruz, festejada no dia 2 de maio, cujo ápice é a confecção de pequenas cruzes de madeira forrada com flores, papel celo-fane, miçangas, etc., que, benzidas no dia do festejo, são colo-cadas nas portas e/ou janelas das casas para que, acredita-se, o domicílio fique selado contra os males ao longo do ano. O fato é que a única moradora que ainda (naquele momento) pre-servava o culto era uma senhora de 84 anos. Essa foi a razão maior desse projeto, levado à Escola num ensejo de trazer de volta um pouco da identidade da Comunidade – que, diga-se de passagem, é majoritariamente composta por afrodescenden-tes. Ao fim e ao cabo desse projeto, a partir de 2009, deram-se os festejos do culto à Santa Cruz. Confeccionadas pelas crian-ças da Escola, cruzes de singela beleza plástica foram distri-buídas à população, benzidas pelo pároco, ao qual se juntou o grupo de Congado. Hoje, inegavelmente, percebe-se o aumento da autoestima da comunidade. Assim depõe a pequena Carol, de 9 anos: “É uma cultura da comunidade. Estamos lutando para registrar a tradição de Santa Cruz como patrimônio local. Tenho certeza de que vamos conseguir”. Finalizando, com os mesmos Guattari e Deleuze, a ideia de dispositivo consiste na montagem espontânea de um artefato absolutamente novo que articula elementos heterogêneos, dos coletivos até aqueles

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Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido aborda a questão do território pela ótica dos recursos naturais, am-pliando a percepção do público a respeito de uma ques-tão política essencial na atualidade, e que apresenta sé-rias implicações territoriais no presente e no futuro. Ao mesmo tempo, a intervenção questiona o circuito da arte e seu caráter mercadológico, uma vez que o trabalho só se completa com o gradual derretimento do objeto, de modo a tornar visível o texto impresso no palito. A participação do espectador também se faz essencial na concretização da obra, o que implica outra dimensão de autoria – tal como mencionamos anteriormente. Segundo Moacir dos Anjos, Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido traz em sua constituição um elemento ambivalente, pois “[solicita] a participação do público na construção de objetos simbólicos [...], pedindo, ao mesmo tempo, que deles se desfaça ou que os consuma para que as criações ganhem pleno sentido” (ANJOS, 2010, p.67).

Por fim, apresentam-se aqui alguns trabalhos de Francis Alÿs, que refletem sobre questões territoriais e de iden-tidade, e que têm grande identificação com alguns dos elementos da perspectiva de arte site-oriented, tal como mencionado anteriormente. Em particular, os trabalhos de Francis Alÿs têm em geral caráter público e performático, apontam para a singularidade de identidades locais e se exploram conceitos de des(re)territorialização a partir de ações e eventos articulados pelo artista-nômade. Assim como Cildo Meireles, Alÿs também questiona o status da obra de arte ao produzir trabalhos que se esgotam na pró-pria realização, ou que se expressam simplesmente pelo engajamento corporal do artista ou dos participantes – ca-minhando, varrendo, dirigindo, etc.

A performance Paradox of Praxis I: Sometimes doing some-thing leads to nothing (1997) ilustra precisamente esse ponto. Nesse trabalho, Alÿs empurrou um bloco de gelo pelo cen-tro da Cidade do México até que todo o gelo se derretesse. Sua ação – pública, na cidade – discute o papel da arte e

do artista como criador de identidades (e, portanto, de território) a despeito de não haver um “produto” ou ob-jeto artístico sendo gerado ao final do processo. Como o título já sugere, às vezes fazer alguma coisa leva a nada.

Em Barrenderos (2004), o aspecto público e performático dos traba-lhos de Francis Alÿs entra nova-mente em cena, também tendo a relação entre cidade e meio ambiente como pano de fundo. Nessa intervenção, varredores de rua são orientados a empurrar o lixo de uma rua para outra, até o ponto em que a quantidade de lixo acumulado ao longo do percurso forma uma montanha e impossi-bilita que se continue com esse movimento. Também nesse caso, observa-se que o trabalho se es-gota em seu próprio processo, e que a ação e o esforço dos corpos não levam à geração de um pro-duto artístico tangível ao final.

Em Green Line (2004), por sua vez, Alÿs explora a questão do território com ênfase na ideia de fronteiras. Nessa performan-ce, executada em Jerusalém, o artista caminha por vários quilô-metros sobre a chamada “linha verde”, demarcação de fronteira entre Israel e Palestina estabele-cida após o final da guerra entre árabes e israelenses em 1948, e que prevaleceu até a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Alÿs carrega consigo uma lata de tinta verde com um pequeno furo, o que faz com que o artista vá redesenhando a fronteira (que

de microscópicas funções subpessoais. Esses dispositivos podem ser os meca-nismos que veiculam a desterritorializa-ção. De fato, foi o que vimos!

Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)A redefinição constante do conceito de território em várias áreas de conheci-mento nos leva a pensar e concluir que, a todo momento, vivenciamos processos de territorialização e desterritorialização. Penso que um território existe apenas em função de sua capacidade de esta-belecer relações. O território entendido como um objeto estável cede lugar a um processo de construção permanente de comutações. Assim, o conceito de terri-tório contemporâneo renuncia ao “local físico” como um topos ou um invólucro estável que o identifica. Nesse senti-do, as reflexões de Miwon Kwon sobre práticas artísticas são importantes na atualização ou redefinição do conceito de site-especific ao abordar trabalhos artísticos nos quais a condição física de uma localização específica deixa de ser o elemento principal na concepção de um site. Acredito que várias obras do artista Maurice Benayoun, especial-mente World Emotional Mapping e Frozen

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já não existe mais) ao longo do percurso. A partir de uma ação quase literal de reconstrução de território, o trabalho discute a conflituosa relação entre palestinos e israelenses, perpassada por questões políticas, históricas, econômicas, religiosas, e explora a relação entre arte e política, particu-larmente delicada em situações de conflito.

When Faith Moves Mountains (2002) também representa uma intervenção direta sobre o território, mas desta vez em escala muito maior, e com grande participação pública. Nessa ação, quinhentos voluntários se perfilaram sobre uma grande duna de areia nos arredores de Lima (Peru) e, com o auxílio de pás, tentaram mover a posição da duna em alguns centímetros. Assim como em vários outros trabalhos de Alÿs, a obra só se concretiza com a participação do pú-blico, e se completa e ao mesmo tempo se esgota em seu processo. O resultado final, embora tenha sido movido um grande volume de areia, é praticamente imperceptível na escala macro da paisagem, mostrando uma vez mais como um enorme esforço pode levar a “nada”.

Por fim, Bridge/Puente (2006) é também uma intervenção site-oriented que explora as relações entre arte, política e território. Nesse trabalho, Alÿs mobilizou comunidades de barqueiros de Havana (Cuba) e Key West (Flórida, EUA) para construir uma ponte flutuante, formada por barcos alinhados. Partindo simultaneamente dos dois territórios, cada extremo da ponte apontaria em direção ao outro, de forma que, no limite, poderia ser construída uma ligação entre os dois países. A ação explora a ideia de identidade e o papel da arte para promover um diálogo entre dois países, de modo a romper o isolamento historicamente imposto a Cuba.

Em resumo, os trabalhos de Gabriel Orozco, Mona Hatoum, Cildo Meireles e Francis Alÿs, aqui apresentados, repre-sentam uma amostra da produção de arte contemporânea em que questões associadas ao território são examinadas.

O denominador comum nessa produção é a ideia de que territórios são construídos e desconstruídos continuamente, e que a arte tem um papel relevante para apontar e refle-tir sobre diferenças, identidades locais, “texturas”, em um mundo guiado pela homogeneização e pela padronização dos espaços, dos costumes – enfim, do território.

aRTE E TERRITÓRIO: REFLExõES PESSOaIS

Temas associados ao território, a fronteiras, a particulari-dades locais, à construção e ao apagamento de identidades estiveram frequentemente presentes em minha produção recente como artista. Em muitos desses trabalhos, o ca-ráter site-specific ou site

-oriented, a efemeridade da obra e a participação do espectador também têm grande relevância. Várias vezes, os traba-lhos refletem também o caráter nômade do artista, pois foram pro-duzidos em períodos de residência em di-versas partes do mun-do. Apresento aqui uma parte dessa produção, como forma de comple-mentar a discussão pro-posta no texto.

Nueva Córdoba (2008) é uma série de cartões postais produzidos a partir de fotografias de imóveis demolidos em Córdoba, Argentina. Revela os resquícios do interior das casas, com suas particularidades,

Feelings, são exemplos dessa nova forma de en-tendimento e atuação artística em territórios “ou-tros”. Disponível em: http://www.benayoun.com/.

QUESTÃO 2Como a arte pode contribuir para a construção de territórios (do ponto de vista simbólico) no mundo globalizado?

Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014)Existe uma conceituação, meio precipitada, a meu ver, mas que, no entanto, é bem didática para essa nossa questão. Refiro-me à oposição entre “cultu-ra” e “arte”, a cultura sendo o sedimento de tudo o que já foi produzido e criado pelas civilizações, e a arte sendo tudo aquilo que vem para atraves-sar e promover rupturas com a cultura instituída, trazendo o novo, o ruído, o espanto, o ascender de uma nova ideia ou possibilidade. Dentro des-sa perspectiva, não apenas no mundo globalizado, mas em todas as épocas, a arte caracterizou-se essencialmente pela construção de novos ter-ritórios simbólicos. É o que a difere da cultura. Falando especificamente de nossa época globali-zada, é de especial importância que a arte seja ca-paz de atravessar e transformar os movimentos de

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como que revelando parte da intimidade e da identidade de seus antigos moradores. Como em outros lugares, as antigas casas darão lugares a edifícios, promovendo a pa-dronização e a homogeneização dos espaços. O título do trabalho corresponde ao nome do bairro onde as fotos fo-ram feitas, e os postais são, então, um registro da antiga Nueva Córdoba.

Em 2009, fui convidada a participar de uma residência na Cisjordânia. Como se poderia esperar, a delicada situação política e social da Palestina – que se refletia em restri-ções à circulação no território, ao controle de fronteiras, às limitações econômicas e de infraestrutura – influenciou decisivamente minha percepção e minha produção durante a residência. Dois trabalhos foram executados, abordando questões cruciais na região: primeiro, a presença do muro e dos checkpoints e as limitações à liberdade de movimento no território; segundo, as restrições no abastecimento de água na Palestina, que se refletem na presença maciça de caixas d’água, em grande número, nos telhados.

O primeiro desses trabalhos – um vídeo intitulado Vanishing Point (Ponto de Fuga) – captura o fluxo de veículos e pe-destres no checkpoint de Qalandia, perto de Ramallah, durante um dia inteiro. O título traz um jogo de palavras, pois Vanishing Point também significa “ponto de desapa-recimento”, e o trabalho propõe uma reflexão sobre desa-parecimento da cultura, perda de identidade e restrições à liberdade.

As caixas d’água – massivamente presentes nos telhados da Palestina e tão visualmente marcantes na paisagem – são o elemento central em Water Skyline, uma instalação com uma série de imagens impressas em fotocópia P&B no papel sulfite A3. As fotografias são coladas diretamente sobre as paredes, uma ao lado da outra, usando o pro-cesso de lambe-lambe, e formam uma linha do horizonte imaginária. Assim, a instalação cria uma nova paisagem e ressalta as restrições do abastecimento de água na região, fonte permanente de conflito territorial.

destruição das identidades em movimen-tos de criação de singularidades, virando o jogo da tendência de padronização das subjetividades. Essa é a contribuição mais importante, a meu ver, que a arte pode nos fornecer na atual conjuntura.

Luiza alcântara (25 de novembro de 2014)A arte faz parte da construção da identi-dade social, faz parte da cultura. Dessa forma está completamente ligada ao sim-bólico social. Voltando ao exemplo dado na questão anterior, as ocupações podem ser (e alguns trabalhos de arte possuem esta proposta) chamadas de arte. Como ocupar e ressignificar os espaços? Que outras subjetividades são possíveis ali? As residências de arte podem ser outro exemplo disso. Artistas se deslocam para pesquisar e interagir com um lugar espe-cífico e para criar com e a partir dele.

Claudia Laport Borges (24 de novembro de 2014)Sou geógrafa e não poderia aqui deixar de buscar os ensinamentos de Milton Santos. Para o autor, um território é analisado

Outro grupo de trabalhos recentes – parte do projeto intitulado Entre Rios e Ruas – reflete sobre a questão territorial, com foco na relação entre cidade, meio ambiente e indivíduo1. O ponto de partida, nesse caso, é a relação que Belo Horizonte (MG) estabeleceu des-de sua fundação e estabelece ainda hoje com os rios e córregos presentes em seu território. Menciono aqui três dos trabalhos desenvolvidos.

Jóia é um broche feito em ouro e explora a relação en-tre corpo, espaço e escala. O desenho dessa joia, de 9,5cm de comprimento, replica em escala 1:10.000 o traçado dos últimos 950m de leito natural do Ribeirão Arrudas dentro dos limites do município de Belo Horizonte. De acordo com Eduardo de Jesus (2012, p. 22):

Carregar a Jóia é o mes-mo que carregar o que ainda resta. Fixá-la pró-xima ao corpo, carregá-la como adereço é o mesmo que carregar um pequeno fragmento de tempo e es-paço que remetem de uma só vez para a ausência de uma paisagem e para o jogo da escala.

A instalação Repaisagem, por sua vez, utiliza mantas magné-ticas que correspondem a todos os trechos de córregos em lei-to natural no município de Belo Horizonte e sugere a participação

1. A apresentação desses trabalhos está baseada em Prado (2013).

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sob a perspectiva do uso: o território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes. Deve ser compreendido como uma totalidade que vai do global ao local. Em sua análise argumenta que o território em si não é um conceito, ele só se torna um conceito quando o considera-mos na perspectiva do seu uso. Tal entendimento é demasiadamente importante, visto que tem como preocupação principal a ação e a uti-lização desempenhada pelos seres humanos na produção do espaço. Ou seja, a arte, em todas as suas formas e vertentes, ao se apropriar dos espaços, está criando um território de uso.

Reginaldo Luiz Cardoso (23 de novembro de 2014)Com o desmonte do muro de Berlim, em 1989, rapidamente as for-ças conservadoras conclamaram o “fim da história”, das ideologias e, consequentemente, o advento do livre caminho para a harmonia entre os povos – leia-se: heterogeneidade sociocultural sob os rigo-res da lei do mercado. Porém, depois da queda do muro de Berlim, houve a proliferação de um sem número de cercamentos. Por que isso em um mundo globalizado? E penso aqui no muro da Cisjordânia, no muro da fronteira entre os EUA e o México, nos muros dos bairros fechados... Uma das respostas é que, na era do acesso, nem todos são bem-vindos. Em um mundo de mercadorias perfeitas, a pessoas

do espectador, criando novos desenhos, novas paisagens. Assim, o trabalho é definido mediante a participação do outro, que é quem efetivamente o constrói e o transforma continuamente. A instalação contém ainda um elemento de áudio, que corresponde ao som desses mesmos córregos, em trechos canalizados, que correm sob as ruas da área central da cidade.

A performance Lição: se essa rua fosse um rio consiste em uma sequência de aulas de violino na rua, em que o pro-fessor tenta me ensinar a execução da melodia Se esta rua fosse minha. As aulas ocorrem sempre em ruas sob as quais correm trechos dos córregos da cidade. O trabalho é visto como uma metáfora para a dificuldade em estabelecer uma nova relação e uma nova consciência da cidade acerca do ambiente. “Repetitivamente, a artista encena um percurso que não se conclui, próprio à aprendizagem, assim como aos rios” (DINIZ, 2012, p.16).

Os trabalhos do projeto Entre Rios e Ruas trazem, por meio da metáfora, da participação do espectador e da experiência espacial, uma reflexão sobre o uso do território urbano e uma proposta de recriação da cidade.

A ideia de território a partir da formação de identidades é um dos aspectos centrais da intervenção urbana Estrangeiro (2006), realizada em um bairro de Berlim, na Alemanha. Nesse trabalho, foram distribuídos por mim e mais quatro voluntários uniformizados cerca de 900 balões coloridos, com a palavra “estrangeiro” impressa em cor branca e in-flados com gás hélio. Anexada a cada balão havia uma eti-queta que sugeria que o mesmo fosse solto às 20h. Dessa forma, a participação do público era condição essencial para a execução do trabalho. O resultado pôde ser visto na região durante o período da intervenção, primeiro pela identificação entre os participantes que carregavam seus balões ao longo do dia e depois pela imagem dos vários ba-lões subindo ao céu simultaneamente, a partir de diferentes pontos do bairro.

Por fim, cabe mencionar a intervenção Wind Catcher (2007), realizada em Shatana, uma pequena vila na Jordânia, de paisagem montanhosa e monocromáti-ca. Para esse trabalho, foram construídos 50 objetos de tecido colorido, semelhantes a pequenos paraque-das, que foram dispostos no alto de uma colina, em uma estrutura que remetia a uma tenda de beduínos. A intervenção incentivava a participação do público e promovia a interação entre os habitantes da vila, pois os objetos eram usados sempre por duas pessoas. No horário determinado, os participantes saíram em du-plas a caminhar pela vila, vestindo os objetos de tecido inflados como paraquedas pelo vento que incessante-mente soprava no vilarejo. O trabalho, assim, propiciou uma experiência de interação e troca dos indivíduos, entre si e com a própria cidade, bem como um efeito visual na paisagem monocromática da região.

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menos que perfeitas é vedado o livre fluxo. Tudo isso junto é a ques-tão que envolve o InSITE, citado aqui pela Isabela Prado. Criado em 1992, esse festival de arte pública decolou em 1994, ao conseguir cap-turar a importância que as fronteiras haviam assumido no discurso político da arte global. No InSITE 97, causou sensaçâo, dentre outras, a instalação de Marcos Ramirés Erre denominada Troyan Horse: um Cavalo de Tróia de 25m de altura, instalado na fronteira entre EUA/México (San Diego/Tijuana), com duas cabeças – uma virada para o Norte e outra para o Sul. Como observou Néstor Canclini: “evitou assim o estereótipo da penetração unidirecional do Norte pelo Sul”. Estava criada a 'Post-Border Art'.

Isabela Prado (24 de novembro de 2014)Oi, Ricardo, gosto muito do formato de residências. Concordo que parte de um deslocamento que, por si só, pode ter grande potencial criativo. E que a troca cultural que se estabelece nesses casos é muito interessante e pode também acabar influenciando a produ-ção do artista. Sabemos que existem opções de residências com características opostas, em termos de localização, duração, escala, formato, recursos, etc. Dependendo do local da residência (como nas ovelhinhas e montanhas com neve), funciona quase como uma

“bolha” de imersão, em que o artista se afasta do ritmo acelerado de seu cotidiano na cidade e abre a possibilidade de explorar outro tempo. De todo modo, independentemente do grau de isolamento do local, o mero afastamento da rotina e da zona de conforto do artista já gera um olhar crítico, um olhar “de fora”, e isto pode ser um ele-mento de criação. Eu tive esse tipo de percepção em casos tão extre-mos como um pequeno vilarejo na Jordânia ou em grandes cidades como Berlim. Uma das experiências de residência mais marcantes que eu tive foi na Palestina, em 2009. Acabei publicando um relato sobre isso na Revista Tatuí (http://issuu.com/tatui/docs/tatui_08_pdf), sobre a relação entre paisagem e território. Acho o tema riquíssimo. Queria especular um pouco sobre isso, a partir do que entendi da sua pergunta. Acho que território e paisagem estabelecem uma re-lação de mão dupla (considerando ambos como constructos sociais, mentais, simbólicos). Por um lado, me parece que a paisagem é elemento constituinte do território. Ou seja, a paisagem é um dos as-pectos que definem nossa visão ou percepção sobre o território. Isso significa que quando construímos novos valores para a paisagem recriamos o território. Ao mesmo tempo, existem aspectos do terri-

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tório – particularmente, mudanças do território físico (verticalização das cidades, por exemplo) – que podem alterar nossa percepção da paisagem, que por sua vez leva à nova reterritorialização (no plano simbólico). Mas parece também que a alteração do território físico e a do simbólico operam em escalas de tempo diferentes, ou seja, parte da nossa percepção da paisagem é fruto da nossa memória sobre o território, mesmo que na realidade aquele território já não exista da mesma forma...

Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014)Apesar de não me ocorrer nenhum exemplo concreto a dar, acredito que a maior contribuição da arte para a construção do território sim-bólico no mundo globalizado esteja ligada ao ambiente de fronteiras, em que a arte pode (e costuma) agir. A arte contemporânea man-tém-se sempre na fronteira simbólica - e mesmo física - recriando espaços físicos, simbólicos e culturais, e se retroalimentando dessas mudanças, desterritorializações e reterritorializações. Ao agir nessa fronteira, entre o convencionalmente aceito e o próximo passo, a arte cria espaços para várias novas linhas de pensamento e atuação, não só artisticamente, mas social e urbanisticamente também.

Ricardo Macêdo (19 de novembro de 2014)Acho que artistas em residência são um bom exemplo. É onde o deslocamento é a base e a origem da coisa. E, ainda por cima, eles pontuam a importância do agenciamento de formas diferenciadas de administrar o tempo de produção de seu trabalho. E, nisso, propõem outros alicerces frente ao paradigma frenético do mercado atual, revitalizando um ritmo desacelerado, pré-industrial. Alargando e estendendo o tempo dentro de outra temporalidade, e isso é muito legal. Vi umas chamadas para residências atuais e encontrei uma com ovelhinhas e montanhas com neve no meio do nada (http://www.transartists.org/air/listh%C3%BAs-artists-residency-program). Essa residência não ocorre em uma comunidade grande, mas em uma pequena, com outros artistas de várias regiões do globo; não me-nos válida, pois, ainda assim, rola um intercâmbio cult fortíssimo, imagino, com trocas e vivências de uma multiplicidade cultural pe-sada. Nas residências, acho que o modus operandi da produção de uma ideia e criação de algo já é, em si, uma potência agenciada, um poder simbólico frente à segregação das cidades, à velocidade das gentrificações, das “desocupações” de terrenos (desterritorializa-

ções, diga-se de passagem), etc. Ocupar territórios nesse sentido, dentro de outra lógica, é contribuir para a disseminação desta lógica, seja através dos resultados em publicações, vídeo e exposições. O Amilcar Paker* bem disse que “quem fala em residências, fala em deslocamento” e “promove literalmente desterritorialização como condição básica de criação”. O já falecido Octavio Ianni também nos dizia, já em 1992, que a despeito da “ilusão da origem, tudo tende a deslocar-se [...] línguas, hinos, bandeiras, tradições, santos”, espaço global em tempo presente. Nisso, fiquei me perguntando qual é a relação entre a construção de paisagens (como constructos mentais históricos) e a noção de território/reterritorialização? Você falou no texto, Isabela, sobre “a desterritorialização como o movimento de destruição ou abandono do território, e a reterritorialização como re-construção do território”. Isso, em termos mais subjetivos, pode ter a ver com o modo como concebemos as paisagens? Já que elas são constructos sociais, históricos, mentais, que mudam com o tempo. Reterritorializar também é imaginar, construir nesse sentido novos valores para paisagem? Não sei se fui claro na pergunta...

*Há um texto do Amilcar sobre residências muito bom, chamado “resiliências artísticas” (http://www.funarte.gov.br/residenciasartis-ticas/wp-content/uploads/2014/07/miolo+capa-livro-res-artisticas-FINAL_baixa-res.pdf).

QUESTÃO 3Considerando a evolução da arte site-specific em direção à sua versão discursiva, com ampliação da participação do público e relativização da noção de autoria, qual é o papel do artista na produção artística contem-porânea associada à questão do território?

Thaís Mor (30 de novembro de 2014)A arte destaca as especificidades/características locais que diferen-ciam e determinam um território (sensações, sentidos, memórias). Ela é capaz de “legitimar” símbolos, diferenciando-os de um “site” para outro - territorialização/ desterritorialização/reterritorializa-ção. A partir da premissa “O território é uma condição de existência para a humanidade”, o artista, como um nômade, muitas vezes com vivências “globais”, é responsável por organizar esses elementos, símbolos, e mobilizar a participação do público para construir um conceito potencial e de significado.

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Carlos Dalla Bernardina (30 de novembro de 2014)Acredito que seja justamente ancorar a própria mudança de percep-ção sobre o conceito de território como algo estático e enraizado, trazendo à tona a noção de território como trajetória experiencial, fluxo de encontros e agenciamentos. Mas, ainda e principalmen-te, contribuir para a vivificação dos territórios formais, para que vi-brem e estejam tanto quanto possível prenhes de movimento crítico e transformador. Nesse sentido, cabe ao artista do século XXI estar fora dos espaços institucionalizados, promovendo ruídos, rupturas e ressignificações da paisagem cotidiana, para que seu vínculo com as pessoas possa ser (r)estabelecido e (re)vivificado.

Reginaldo Luiz Cardoso (24 de novembro de 2014)Como disse no post anterior, com o InSITE tomou forma a chamada Post Border Art. Isso porque, uma vez que o festival ocorre em uma região fronteiriça extremamente problemática e emblemática, visa a por a nu a retórica do livre fluxo global. E é simbólico esse evento porque coloca a questão do artista contemporâneo equilibrando-se na borda, na fronteira entre o reconhecido – o Norte/Centro –, e o relegado a segundo plano – o Sul/periferia, na borda entre o mains-tream e o basfond. Não à toa, o InSITE 05 teve como conceito central a arte (in)visível. Um exemplo tirado dessa mostra é a intervenção One Flew Over The Void/Bala Perdida, do venezuelano Javier Téllez em colaboração com pacientes de um centro de saúde mental de Mexicali, e dos quais surgiu a proposta de cruzar a fronteira pelo ar. Tratou-se do lançamento do homem-bala Dave Smith do lado da fronteira mexicana para o lado norte-americano, uma festa de encerramento de um projeto coletivo. Ali, coisas importantes foram postas: 1°) que o caráter processual do projeto resultou em nada tangível, em ausência de objeto; 2°) os suportes utilizados foram muito além daqueles convencionados pelo cânone; 3°) o registro do processo é fundamental. Tudo como descrito por Miwon Kwon. Como observou R. Bont, com grande acuidade, o InSITE, nesse sentido, se converteu em um legado tático para futuras atuações que, sem dú-vida, mudaram o rumo do mundo da arte. E, provocativo, questiona:

“abolido o objeto, o ‘espetáculo’, entendendo a arte como uma prática política, de que vão viver os artistas?”. Seja lá qual for a resposta, corroboro aqui a opinião de Jenni Klein, de que depois do InSITE 05 o futuro das práticas artísticas se assenta definitivamente fora das galerias.

Bárbara Rodrigues Tavares (22 de novembro)O artista se apresenta como intelectual crítico que traz à tona as inquietações da sociedade que ele habita, incluindo as próprias in-quietações. Acredito na força do trabalho do artista para criar novos territórios - em todos os sentidos. As manifestações mais participa-tivas e com autores plurais estão relacionadas à iniciativa do artista. Ele pode ser considerado o ponto de partida, determinante para os rumos que as ações vão tomar.

Maria Caram Santos de Oliveira (19 de novembro de 2014)Creio que mesmo em obras abertas o artista mantenha o seu pa-pel de criador e orientador. Obras interativas e que necessitam do público para ser contempladas não minimizam a autoria. Autorias coletivas, que têm se ampliado principalmente em face das redes di-gitais, são também (e ainda) formas de autoria. As diversas licenças alternativas, espaços de questionamento e amplitude entre copyleft e copyright ainda assim são alternativas de autoria e não o fim delas. Na literatura, por exemplo, se fala muito a respeito da incompletude do livro sem a existência de um leitor e, ainda, que as interpretações de textos, de certa forma, geram obras diversas - não se passa nem perto de tocar as questões de autoria. Ainda é o artista quem con-cebe e usa o território nas artes, ainda que ele possa propor novos usos e construções para os espaços que se dispõem a explorar. O público pode, sim, tornar-se artista ao propor uma subversão para a proposta inicial e criar uma completude para a obra originalmente proposta.

Ricardo De Cristófaro (15 de novembro de 2014)Acredito que o artista passa a desempenhar novos papéis e a al-cançar um novo estatuto como propositor artístico. Um território pode ser criado a partir de um mapa de relações. Mapas que não correspondem a mapas geográficos. Mapas nos quais o conceito de vizinhança passa a adquirir outros sentidos a partir do momento em que o espaço de ação do artista também adquire características mais abstratas.

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INTRODUÇÃO

Em A noiva desnuda pelos seus celibatários, mesmo1

(1915-1923), Marcel Duchamp buscava mostrar cer-ta dimensão orgânica nas formas arredondadas e volumosas daquelas máquinas: moedores de cho-colate, engrenagens e ganchos que aproximavam, de forma quase assustadora, o ambiente sequen-cial, aparentemente frio e sem vida das máquinas, do universo humano. Uma proximidade inusitada. O Grande Vidro, como também é conhecida a mes-ma obra de Duchamp, mostrava os sintomas de um grande encontro entre as naturezas da má-quina e do ser humano. Para a época, um grande enigma, iluminado pela intensa transparência do vidro trincado. Hoje, apesar de experimen-tarmos manifestações ainda mais intensas na relação entre ser humano, técnica e máquina, engendradas na vida cotidiana, alterando sensivel-mente toda a ordem social, ainda vivemos o enig-ma proposto na obra de Duchamp.

No campo da arte, a máquina compareceu inicial-mente, com a chegada da fotografia. A máquina fotográfica, fruto das sucessivas descobertas no

1. Tradução nossa de: La mariée mise à nu par

ses célibataires, même

QUESTÃO 1Qual é a possível relação histórica e contem-porânea entre arte e tecnologia e qual é o lugar da arte tecnológica no domínio da arte contemporânea?

Reginaldo Luiz CardosoCaros (Professor e Colegas), gostei muito das questões levantadas neste módulo.

Em primeiro lugar, foi muito bom o Eduardo de Jesus ter levantado logo de cara a ques-tão da historicidade que está presente na chamada arte contemporânea (algo que surgiu em um lugar incerto entre Duchamp e Warhol). E, afinal, a dobradinha arte e tec-nologia é uma constante na história da hu-manidade: está na invenção da perspectiva, nas artes gráficas, na indústria química, nas tecnologias da informação...

Segundo, podemos dizer que vivemos em um mundo pós-aurático, aquele mundo que se desenvolveu a partir das questões trazi-das à tona por W. Benjamin e desenvolvidas posteriormente dentro e fora da Escola de Frankfurt. Talvez quem resuma bem isso

campo da Física aplicadas à produção artística, iniciou e disseminou a mediação técnica na produção das imagens (desde o Renascimento, algumas técnicas de produção de imagem eram utilizadas na produção artística, como a câmera escura, a tavoletta e outros instrumentos).

Com a chegada da fotografia houve uma primeira ruptura com as formas mais tradicionais de produção das ima-gens, que passaram a ser reproduzidas e deslocaram o lugar antes ocupado pelo original. Assim como a fotogra-fia se firmou no campo da arte, outras máquinas, outros instrumentos e outras técnicas foram sendo incorpora-dos pela produção artística ao longo do tempo. Em pouco tempo, os impressos, a ima-gem cinematográfica, o vídeo, as transmissões televisivas, o computador e as redes, den-tre outros suportes e dispo-sitivos técnicos, tornaram-se meio e material para a criação artística, que não apenas os incorporou, adequando-os às formas já consagradas pela tradição, mas também deixou-se transformar profundamen-te por eles. Naturalmente que

EDUaRDO DE JESUS*

Relações entre arte e tecnologia: traços históricos e desdobramentos atuais

* Eduardo de JesusMestre em Comunica-ção pela UFMG (2001), Doutor em Artes pela

ECA/USP (2008), é professor do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação Social da Faculdade de Comuni-

cação e Artes da PUC Minas. Atua como pes-quisador e curador em diversos projetos e ex-posições como Festival

de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (São Paulo, 2013) e Festival Internacional de Foto-grafia (Belo Horizonte,

2013), entre outros.

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essas incorporações dos meios técnicos pelo ambien-te artístico provocaram profundas alterações tanto na produção artística em si quanto na forma de perceber e experimentar as obras. Mesmo porque, em alguns casos, as máquinas foram rapidamente incorpora-das à vida social, colaborando para uma nova visão de mundo e, com isto, gerando novas formas de conhe-cimento e cultura.

Os instrumentos de comunicação a distância foram alterando as formas de perceber o tempo e o espaço, conseguindo aproximar pontos distantes. Cada novo instrumento descoberto ia tornando cada vez mais complexas essas aproximações. Com a chegada da televisão e, depois, dos satélites, computadores, in-ternet e redes sociais, o mundo acabou ficando pe-queno para a enorme teia comunicacional que se es-tendeu sobre ele, varrido pelas imagens transmitidas por inúmeros meios, envolvendo tanto os meios de comunicação massivos quanto aqueles de uso pesso-al, como smartphones, que permitem acesso às redes sociais e podem alcançar em seus desdobramentos formas de comunicação pessoal de alcance massivo.

Quando os instrumentos de comunicação tiveram seus usos subvertidos e tomados como suportes ar-tísticos, dando prosseguimento, em nova chave, a tra-balhos pioneiros como os de Marcel Duchamp, Walter Ruttman e René Clair – que já exibiam a possível des-construção do objeto artístico – a produção artística tomou então um rumo completamente novo. Com a entrada dos suportes imateriais em cena, tornou-se necessário reinvidicar outras formas de compreensão para essas obras de arte, principalmente pela nature-za complexa da experiência estética que elas provoca-vam. A utilização dos instrumentos típicos da comuni-cação a distância na produção artística reposicionou inteiramente a relação espaço-temporal e, com isto, alterou também radicalmente, a experiência estética.

aRTE E TECNOLOGIa

Se buscarmos a etimologia do termo arte, veremos que ao radical ars, de ori-gem latina, corresponde outro, vindo da cultura grega – techne – indicando, conforme nos lembra Arlindo Machado,

“que, nas origens, a técnica já implicava a criação artística, ou, em outros termos, havia já uma dimensão estética implí-cita na técnica” (MACHADO, 1994, p.09). Apesar de techne e ars indicarem uma produção voltada para a execução e a construção do objeto, o uso desses ter-mos já mostrava na Grécia Antiga níveis de hierarquia no domínio do fazer artís-tico, como ressalta Renato Barili:

O certo é que tanto a “ars” latina como a “techne” grega indicavam precisamente graus primários de intervenção técnica, numa acep-ção extremamente larga e genéri-ca: tanto que logo se tornou indis-pensável introduzir hierarquias de valores retiradas de uma escala ascendente destinada a premiar os valores da mente relativamen-te aos da mão e da fadiga física. (BARILLI, 1989, p.20)

Essas hierarquias provocaram a criação de outro termo que fosse capaz de de-signar aquela atividade artística menos ligada à manipulação dos materiais, “um fabricar por excelência, dado que preci-samente não usa mármores e cores, mas apenas a substância ‘espiritual’ ou parcamente a pala-vra gráfica” (BARILLI, 1989, p.20). Surgiu assim o termo poiesis. Desde a Grécia Antiga, passando

seja o crítico e curador norte-a-mericano Joshua Decter, ao afir-mar que “chegamos à época da obra de arte enquanto (sic) apa-rições e desaparições”. Como contradizê-lo em um momento em que se discute de tudo hoje no campo das artes, desde os no-vos/velhos suportes até a morte/presença da autoria em uma am-pliação e um rompimento sem precedentes históricos da arte?

A minha questão: se se trata de alcançar uma interpassivida-de, como quer Zizek (citado por Eduardo de Jesus), em um mun-do que está constantemente re-configurando as subjetividades, não seria afirmar a priori que os sujeitos foram capturados pelos dispositivos e, portanto, caberia à arte tecnológica resgatá-los através de novos processos de (des)subjetivação?

Como disse, esse módulo trou-xe-me várias questões e esta se tornou mais premente, pois tem atravessado todos os módulos anteriores. Não é uma questão fácil e não há respostas prontas (ainda bem).

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pelo Renascimento e depois pelo século XIX, com a descoberta da fotografia e do cinema, até o vídeo e o computador em nossos dias, encontramos diferentes maneiras de relacionar técnica e produção artística. Em alguns momentos, em particular, há mesmo uma relação de confronto entre ars e poiesis, o que tem gerado, além de manifestações artísticas das mais diversas, um intenso debate.

Nos ateliês do Renascimento era comum a presen-ça de aparelhos de pintar baseados na Tavoletta de Brunelleschi, que serviam para que o artista produ-zisse um esboço da imagem, materializado ali, na su-perfície do vidro. O olhar monocular da perspectiva renascentista também fazia uso da câmera obscura, que projetava as imagens, de forma invertida na pa-rede da câmera oposta ao orifício por onde entrava a luz, “enquanto o papel do artista consistia apenas em fixar estas imagens com pincel e tinta” (MACHADO, 1994, p.09).

Posteriormente, no século XVI, com a descoberta das lentes objetivas por Daniele Barbaro, estava criado o cenário para, mais tarde, no século XIX, o surgimento da fotografia:

Num certo sentido, a fotografia vem sancio-nar o primado do sistema descritivo escolhido quatro séculos antes pela cultura ocidental; ou inversamente, pode dizer-se que Leon Battista Alberti, já quando em 1432, ao escrever De pic-tura, falava de uma ‘janela aberta’ e de uma pirâmide de raios visuais por ela enquadrados, ou melhor, talhados, rescindidos, de forma a oferecer um corte vertical, antecipava de al-gum modo os critérios ópticos sobre os quais se fundou o aparelho da máquina fotográfica. (MACHADO, 1994, p.09)

Além de dar continuidade a um modelo clássico de repre-sentação, herdado, de certa forma, do avanço da tecno-logia na fabricação de apa-relhos ópticos utilizados na Renascença, a produção co-mercial da fotografia inaugu-rou uma forma de reproduzir imagens quase sem a inter-venção humana: uma imagem de natureza técnica. Pode-se argumentar, contudo, que a imagem renascentista já era de natureza técnica, uma vez que os efeitos dos diferentes tipos de pincéis, o uso da ma-deira, da tela e dos aparelhos ópticos condicionavam, de certa forma, o fazer artístico. A diferença é que, com a foto-grafia, iniciava-se um período em que as técnicas não eram mais só de produção, mas também de reprodução.

Walter Benjamin, em A obra de arte na era da reproduti-bilidade técnica, mostra que, mesmo antes da fotografia, a obra de arte podia ser repro-duzida como forma de exercí-cio pelos discípulos ou para a própria difusão, como, por exemplo, através da xilogravura ou da litogravura. Na fusão com a imprensa e com as artes gráficas, as formas de repro-dução das imagens “adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165). Esse processo de divulgação de imagens, que ilustrava o cotidiano, ganhou

Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de 2014) Relações históricas entre arte e tecnologia podem ser percebidas nos momentos em que os artistas buscaram na ciência uma maneira de aperfeiçoar seus processos de trabalho, buscando respostas objetivas para o comportamento de certos materiais, de-senvolvendo novas técnicas com a ajuda da ciência. Nesse sentido, formas embrionárias de relação entre arte e tecnologia já podem ser percebidas com a utilização de estudos relacionados à ótica, ao comportamento das cores e a métodos relacionados à aplicação da perspectiva pelo ponto de fuga.

A Revolução Industrial ocorrida no início do século XIX permitiu um contato maior da produção artística com processos de produ-ção de manufaturas. Avanços no campo da química, física, matemática e, consequen-temente, das engenharias influenciaram o imaginário de muitos artistas. Tecnologias de produção e relação com imagens estão presentes na produção dos panoramas, na utilização experimental da fotografia, do cinema e de dispositivos eletromecânicos. Desse modo, muito antes da era digital a articulação entre arte e tecnologia já se manifestava.

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novo impulso com a descoberta da fotografia: “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite uma grande variedade de cópias; a questão da autenticidade das cópias não tem nenhum sentido” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165).

Com as reproduções das obras, segundo Benjamin, perdemos o “aqui e agora”, a existência única da obra, sua autenticidade. Perdemos a “aura”, essa “figura singular, composta de elementos espaciais e tempo-rais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165).

Ao perder a aura, as obras de arte perderam o seu caráter de ritual e de sagrado. As imagens das cate-drais, por exemplo, com seu valor único e autêntico, a serviço do ritual, da transcendência, passaram a coexistir com outras imagens criadas para serem re-produzidas em série.

Marc Jimenez, ao comentar o texto de Benjamin, aponta duas consequências geradas, contraditória e simultaneamente, pela perda da aura, “uma negativa, pois ela provocaria um empobrecimento da experiên-cia baseada na tradição; a outra positiva, pois favore-ceria a democratização – e a politização – da cultura” (JIMENEZ, 1999, p.330). Ressalte-se que na época em que Benjamin refletia sobre isso – década de 1930 –, os acontecimentos históricos não permitiram que o entusiasmo acerca de uma possível democratização da cultura vingasse. No entanto, as reflexões do au-tor ultrapassaram aquele momento e até hoje acom-panham as preocupações contemporâneas sobre o papel ambíguo dos meios técnicos de reprodução e transmissão no domínio da arte e da cultura, sobre-tudo nas formas mais cotidianas intensamente mar-cadas por processos globais de midiatização.

A perda da aura também provo-cou uma ruptura da relação es-paço-temporal constitutiva da experiência estética, alterando sensivelmente a percepção das obras. Com efeito, a reprodução técnica alcançou um regime di-ferente da reprodução manual, considerada então como falsifi-cação. Benjamin aponta duas ra-zões para isso:

Em primeiro lugar, relati-vamente ao original, a re-produção técnica tem mais autonomia que a reprodu-ção manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessíveis à objetiva – ajustável e ca-paz de selecionar arbi-trariamente o seu ângulo de observação –, mas não acessíveis ao olhar humano. [...] Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do origi-nal em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma de fotografia, seja do disco. (BENJAMIN [1936], 1993, p.168)

A reprodução técnica permite, por exemplo, que os deta-lhes das fotos ampliadas sejam vistos e que a orquestra seja ouvida no disco. Ou seja, as mediações técnicas fazem com que esses eventos passem a ter uma nova duração no tempo, o que gera novas formas de produzir e compreender a obra de arte.

Para Benjamin, “o modo pelo qual se organiza a percep-ção humana, o meio em que ela se dá não é apenas consi-

Entendo que estamos presenciando no momento contemporâneo novos passos na relação histórica entre arte e tecno-logia. O fator que determina diferenças com o passado certamente é a preponde-rância na utilização da tecnologia digital, meio que substitui, congrega e supera as tecnologias do passado de várias manei-ras. Gerencia antigas e novas tecnologias. Um bom exemplo é a própria fotografia. Mecânica e analógica no passado, agora digital. Mas ambas ainda dependentes de princípios óticos, lentes, filtros, etc.

Elen Maria de Souza FricheA sociedade já incorporou, pelo uso do telefone e de outros mecanismos de co-municação, a relação de contato a dis-tância, em particular pela internet com sua popularização nos anos 1990 e, mais recentemente, com os dispositivos ‘ves-tíveis’ e wireless.

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derado naturalmente, mas também historicamente” (BENJAMIN [1936], 1993, p.165). A alteração nas for-mas de percepção, seja do mundo ou da obra de arte, está ligada, entre outros fatores, à utilização de de-terminados instrumentos, técnicas e procedimentos típicos de cada época, o que gera deslocamentos não só históricos, mas também sociais, políticos e, por isso, subjetivos. Com isso, temos uma rearticulação dos meios de produção artística, que também se al-teram em busca de outras possibilidades de criação e de formas de diálogo com as questões emergen-tes de seu tempo. Isso explica o fato de que, com a chegada da fotografia, a pintura tenha se libertado da representação e alcançado outras maneiras de organização formal que acabaram por gerar novos movimentos artísticos, como o Impressionismo, por exemplo. Além disso, surge a possibilidade de copiar as obras e também de criar novas obras de arte usan-do as facilidades técnicas e específicas da fotografia, por exemplo.

Assim, é possível notar que a percepção é alterada, como consequência do convívio com um enorme fluxo de imagens que tornam todo o mundo mais próximo. Esse conhecimento do mundo estabelece-se agora numa relação espaço-temporal deslocada entre a imagem reproduzida e o fenômeno capturado pela imagem originalmente. Segundo Benjamin, a des-truição da aura é a característica “de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela con-segue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN [1936], 1993, p.101).

Ao desenvolver seus estudos sobre a reprodutibilida-de técnica, Benjamin privilegia o cinema como meio capaz de produzir as alterações mais significativas nas formas de percepção. Norbert Bolz indica a na-tureza dessas alterações: “O cinema não é nada mais nada menos do que a escola de uma forma de per-

cepção do tempo, a saber, uma percepção do tempo para o qual não há mais continuidade, para a qual não há nenhum valor no sentido clássico do termo

” (BOLZ, 1992, p.95).

A nova forma de percepção inaugurada pela fotografia, levada mais adiante pelo cinema, subverte a noção comum de tempo. Em vez de percebermos o tempo numa sucessão linear dos acontecimentos, no cinema experimentamos um ritmo irregular e descontínuo, “feito de empurrões, com as suas superpo-sições e montagens” (BOLZ, 1992, p.95). Essa temporalidade típica do cinema e da própria experiência da modernidade, segundo Benjamin, nos ensina a viver em descontinui-dade. A percepção dos choques e dos fluxos de imagem no cinema, de acordo com Bolz, faz com que seja possível exercitar “descontinui-dades num estado de distração”, o que leva a percepção a “tomar os choques como rotina” (BOLZ, 1992, p.95)

As novas possibilidades de relação usuário/dispo-sitivo proporcionaram um espaço interativo que explora as sensações de ubiquidade, deslocamento e simultaneidade, e propiciaram o aparecimen-to de ambientes multiusuários e mídia tática com grupos e coletivos de ação artística, permitindo novos esquemas de ação e participação artística.

Quando se circula na imaterialidade dos territó-rios digitais, a interatividade permite que tudo se conecte com tudo, tudo esteja em estado de ‘per-mutabilidade’, de possibilidade e contaminação. Assim, para se pensar a relação entre arte e tec-nologia, deve-se considerar:

• passagem da cultura material para a imaterial; • estreita relação entre arte e ciência; • diluição do conceito de artista, que dispersa sua autoria;

• tecnologias digitais que favoreçam a arte da participação;

• troca do conceito de objeto artístico pelo de processo;

• abandono de uma produção artística centrada na pura visualidade.

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QUESTÃO 2No atual cenário experimentamos um intenso uso de diversas tecnolo-gias em nossa vida cotidiana. Como isso reverbera na produção artística?

Maria Caram Santos de OliveiraTanto na produção quanto na temática, o uso intenso de tecnologia reverbera no fazer artístico contemporâneo.

Citei na questão anterior o Coletivo Gambiologia. Em sua exposição Gambiólogos 2.0, no Oi Futuro, em 2014, eles fizeram uma interessan-te mistura entre crítica e uso de tecnologia. Usando em sua maioria material descartado - televisões velhas, brinquedos, celulares e pe-ças de celulares -, a exposição fazia uso da tecnologia para a cria-ção e a execução de peças e, ao mesmo tempo, criticava o descarte frequente e intenso, a produção de lixo, a falta de reflexão sobre a maneira melhor de descartar esse suposto lixo e como prolongar a sua vida e/ou reutilizá-lo.

No FAD (Festival de Arte Digital) vemos outros usos e outros ques-tionamentos para as tecnologias atuais e mesmo para as “passadas” com a sua colocação em peças artísticas totalmente voltadas para a produção de arte tecnológica.

Júlia Nascimento de Oliveira (29 de novembro de 2014)A arte aliada a tecnologias contemporâneas de produção traz uma miscelânea de texturas que permitem uma percepção e absorção maior pelo espectador. Essa mesma arte também pode possibilitar maior interatividade entre obra e expectador e pode permitir a rup-tura de fronteiras culturais, sociais e políticas:

• Culturais, pois o campo da arte passa a ser transitório e volátil, ou seja, a arte associada à tecnologia permite que se produza sem ne-cessariamente estar ligado diretamente a uma determinada cultura, daí a caracterização de ser uma arte plural;

• Sociais, pois pode minimizar a diferenciação de classes sociais den-tro do mundo da arte. É possível conhecer manifestações artísticas do mundo inteiro através da internet. A própria disponibilização da arte por seus autores nas redes, de forma gratuita, é uma forma expressiva de popularização da arte;

DESDOBRaMENTOS Na VIDa SOCIaL

Na sociedade contemporânea, além da reprodutibili-dade técnica, contamos ainda com diversos meios de comunicação, que nos proporcionam agora novo tipo de experiência (do mundo e das obras de arte), como comenta Couchot:

A questão que se coloca então – questão políti-ca por excelência – é aquela de uma sociedade partilhada entre a necessidade de dar conta de seus (velhos) mecanismos de regulagem, de mediação e de temporização e a necessidade imposta por uma revolução tecnológica irre-versível para reorganizar seus meios de comu-nicação, seu acesso ao saber e à informação e sua apropriação de envolver cada um mais e mais individual e diretamente em todos os níveis de decisões possíveis. Uma sociedade dividida entre o tempo da História – um tempo que se refere ao seu tempo – e o tempo real, impaciente e febril das trocas interativas que torna a espera intolerável, numa sociedade di-vidida entre a reflexão e o reflexo, entre o signo e o sinal. (COUCHOT, 1997, p.143)

As novas relações entre o tempo histórico e o chama-do tempo real, típico do domínio da tecnologia, pro-vocam alterações nas nossas formas de perceber o mundo e experimentar as obras de arte que surgem nesse novo ambiente. Estamos falando de uma so-ciedade que, cada vez mais, experimenta e conhece o mundo de forma mediada. Somos pressionados, como mostrou Couchot, pela urgência de uma forma de co-municação que, por meio das suas formas sincrônicas de interação, acaba gerando uma forma de percepção posicionada no fluxo da transmissão.

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• Políticas, pois a arte digital tem sido utilizada recorren-temente como veículo de ma-nifestações políticas, popu-larizada cada vez mais pelas redes sociais.

Porém, esse campo de dis-cussão pode também se dirigir para questões mais comple-xas como, por exemplo: seria a utilização dos aplicativos voltados à arte, que permi-tem tirar fotos profissionais, transformar rascunhos em obras de arte com apenas um clique, dentre diversos outros encontrados gratuitamente, uma forma de banalização do processo criativo? Ou seria

uma forma contemporânea de se relacionar e perme-ar as múltiplas camadas sociais que nos envolvem em nosso cotidiano?

Acredito também que a agilidade de informações, bom-bardeando constantemente os meios de comunicação em massa, a subjetivação do conceito de presença e as so-breposições das camadas de interação social fazem com que o processo criativo seja constantemente reinventado, adequando-se à dinâmica da sociedade contemporânea, na qual o tempo disponível é cada vez mais curto, assim como a urgência da absorção de informações

As transmissões jornalísticas ao vivo, via satélite, vis-tas em todo o mundo simultaneamente, a comunica-ção pessoal e massiva dos telefones ou do computa-dor nas redes sociais, os jogos e também as obras de arte alteraram sensivelmente nossa forma de per-cepção do mundo.

Assistimos, atualmente, à ascensão de velozes pro-cessos de produção, reprodução, recepção e trans-missão de informações, assim como de difusão de imagens, nas quais diversas passagens e trajetos aca-bam por deslocar ainda mais a experiência única do aqui e agora da aura, tal como definida por Benjamin, e provocar, assim, uma ruptura ainda maior na re-lação espaço-temporal constitutiva da experiência estética. Agora, não se trata mais de experimentar a aparição única de uma coisa distante, e, sim, de apro-ximar, conectar o próximo e o distante, proporcionan-do a interação entre sujeitos, objetos e signos que se encontram distantes no espaço e próximos no tempo.

A produção artística contemporânea também se nu-tre dessas novas relações espaço-temporais em um intenso hibridismo entre suportes, domínios e pos-sibilidades de criação. A popularização de inúmeros dispositivos e a facilidade de acesso à rede ampliaram sensivelmente as possibilidades de circulação, de um modo geral, da produção simbólica (texto, som, ima-gem em movimento).

O que ocorre é um trânsito entre os mais diversos suportes, indo do desenho em papel, passando pela pintura, performance, fotografia, instalações que, combinadas com opções e estratégias pessoais que incorporam técnicas bem distintas (tradicionais e novas), fazem da arte contemporânea um amplo e dinâmico território.

Como percebemos, existe um enorme es-copo de possibilidades subjetivas, materiais e técnicas que podem ser articuladas livre-mente pelos artistas. Nesse gigantesco pa-norama, as mais diversas técnicas foram aos poucos sendo incorporadas pela produção artística, reconfigurando os circuitos, as for-mas da experiência estética e o domínio da arte contemporânea.

Hoje em dia assistimos a outros desdobra-mentos das relações entre arte e tecnologia, ampliando e rompendo fronteiras. Desde o fim da década de 1990 que os telefones ce-lulares se colocaram fortemente como ins-trumento de comunicação, mas foi após a primeira década do século XXI que houve uma convergência das tecnologias em torno da internet, culminando no cenário atual: um

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novo regime tecnológico2 , trazendo desdobramen-tos na arte, tanto na produção quanto nas formas de circulação e construção do conhecimento. Os smartphones, tablets, notebooks e, sobretudo, as redes sem fio disseminadas no espaço urbano re-configuraram fortemente a infraestrutura tecnoló-gica de acesso às redes, gerando novas formas da experiência estética reconfigurando a própria vida cotidiana e, também, o domínio da arte.

Se anteriormente havia todo um regime diferen-ciado em um circuito apartado para abrigar as ma-nifestações artísticas de traço mais tecnológico como festivais e mostras, hoje em dia tudo isto se torna um grande circuito composto por obras nos mais diversos suportes. Pouco a pouco, a própria história da arte tecnológica3 ganha novos contor-nos e começa a dialogar de forma ainda mais in-tensa com a história da arte, por um lado, e, por outro, com as tecnologias envolvidas em inúmeros agenciamentos sociais na vida cotidiana, gerando um circuito ampliado em um contexto pós-mídia4

no qual as especificidades das mediações tecnoló-gicas não são determinantes para a definição das obras. Tudo ocorre num intenso trânsito entre suportes, técnicas, procedimentos e estratégias, abarcando tanto os suportes mais tradicionais quanto os mais novos.

2. Em torno da comunicação e da arte na contemporanei-

dade. Disponível em: https://www.academia.

edu/4147070/Em_torno_da_comunica%C3%A7%-

C3%A3o_e_da_arte_na_contemporaneidade.

Apresentado na VIII edição dos Seminários Internacio-

nais Museu Vale - “Cyber-arte-cultura: a trama das

redes” - 13 a 17/03/2013.

3.POPPER, Frank. Art of the eletronic age. Londres: Thames and Hudson, 1997

e DOMINGUES, Diana. (org). A arte do século XXI, a humanização das tecno-logias. São Paulo: Editora

Unesp, 1997.

4. KRAUSS, Rosalind. A voyage on the north

sea – Art in the age of the post-medium condition. Nova York: Thames &

Hudson, 1999 e KRAUSS, Rosalind. Two moments

in the post-medium condition. In: October.

Spring 2006, No. 116, p. 55-62. Massachusetts: MIT Press, 2006. Em ambos os textos Krauss desenvolve

e amplia a ideia de uma condição pós-mídia.

REFERêNCIaS

BARILLI, Renato. Curso de Estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.

BOLZ, Norbert. Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria? In: Revista USP, nº 15. São Paulo: Editora da USP, 1992.

COUCHOT, E. A arte pode ainda ser um relógio que adianta? O autor, a obra e o espectador na hora do tempo real. In: DOMINGUES, Diana. (org). A arte do século XXI, a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp, 1997.

GIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999.

MACHADO, Arlindo. As imagens técnicas: da fotogra-fia à síntese numérica. In: Imagens nº 3, São Paulo: Editora da Unicamp, 1994.

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Yuri amaral (1 de dezembro de 2014)Sendo a arte uma forma poderosa de manifestação da sub-jetividade do autor/artista/criador sentida sobre a rotina e a realidade, se mudarmos os mecanismos de percepção/inte-ração/troca, consequentemente o resultado disto também será alterado, criando ad infinitum novas formas resultantes desta percepção.

Hoje ainda temos o choque de diversas gerações, saudosis-tas de um tempo no qual nunca viveram e que buscam, à sua maneira, reviver esse passado. Ora, a percepção daque-les que viviam naquela época (seja ela qual for) é evidente-mente diferente da percepção dos que vivem hoje, principal-mente pelos meios de conexão com o real. Acho divertida essa reconstrução e readequação das experiências “do passado” (re)vividas pelos sujeitos do agora, reconstruindo significados a partir do que eles acreditam.

Isso, citando apenas um exemplo. A acessibilidade, assim como permite alcance/produção/leitura por muitos, tam-bém permite o controle e a institucionalização do que não quer ser reconhecido como tal, “devolvendo” para o mundo ressignificado aquilo que veio de seus singulares.

Para citar alguns exemplos, simples e, talvez, equivoca-dos: perfis no twitter de microcontos, (a)temporais em sua essência; páginas no facebook de pessoas que produzem e publicam sua maneira de perceber algo (seja lá o que for esse algo), fotógrafos de Instagram... Seria tudo isso, e mais um monte, [novas] formas de arte?

E isto me deixa muito em dúvida: o que, de fato, legitima a arte como tal? O que difere um fotógrafo de exposição em um espaço feito para tal de um fotógrafo de instagram? Não são, ambos, autores de suas percepções?

Bernardo Romagnoli Bethonico (2 de dezembro de 2014)Em experiências de “tempo real”, cada vez mais mediadas, não raro mergulhamos as cabeças (separadas do tronco) em smartphones, computadores, transmissões ao vivo. É um problema comum que o tempo de nossas vidas não suporte a espera ou a entrega. É preciso ter a ilusão do controle do fluxo da comunicação, é preciso participar, atualizar, curtir o tempo todo, diz-nos o ritmo dos hiperlinks e das redes sociais.

Diante disso, são importantes na produção artística atual as questões do aqui, do agora, da percepção do corpo e da relação entre pessoas, objetos e signos, para uma crítica do real.

QUESTÃO 3O que ocorre com os processos de fruição artística quando ex-perimentamos obras que se utilizam de diversas tecnologias?

Luiza alcântara (29 de novembro de 2014)Maria, concordo com sua responda a mim. Quando eu disse

“Gosto de pensar a participação do espectador para além de manusear e entrar nas obras”, é nesse sentido que você aponta. Porém, em grande parte da produção dessas obras a interatividade está associada a: aperte isto e veja o que acontece, puxe a alavanca, desenhe, etc. Acho pobre esse tipo de concepção, não sei dizer de que período são essas obras, assim como Eduardo, mas vejo que está mudando, sim, toda a forma de participação.

Eduardo, eu percebo que ‘artemídia’ está lidando com questões para além da interatividade. Como eu disse na resposta anterior, ela aponta para questões de tempo-es-paço, duração da obra, materialidade, orgânico e não orgâ-nico de formas muito potentes. Assim, também trabalham com questões políticas e simbólicas muito fortes. Podemos pensar no feminismo que fala de corpos pós-humanos, os ciborgues, e por aí vai.

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Ricardo De Cristófaro (28 de novembro de 2014)Nesse tópico acredito que proposições artísticas que lidam com a produção de realidade virtual tecnológica apresen-tam algumas experiências enriquecedoras para o campo da arte que estão além da topografia do espaço real e da tradicional materialidade dos objetos sólidos. As caracte-rísticas peculiares desses territórios e os mecanismos de relação do homem com os mesmos tornaram possível o aparecimento de percepções, lógicas e liberdades advindas de experiências singulares, abrangendo toda uma ontolo-gia de telepresença, de imersão sensorial e conectividade imaterial.

Nesse campo é relevante destacar o esforço que tem sido despendido por artistas e cientistas no intuito de produzir instrumentos de relação com os ambientes virtuais que possam potencializar a “convicção de realidade” destes espaços e o “sentido de presença” no interior dos mesmos. Essa “convicção” e esse “sentido” têm sido alcançados por meio da utilização de dispositivos que geram a percepção de “imersão na imagem”.

Certamente, um nível diferenciado de “imersão na imagem” se dá nos ambientes de realidade virtual. O que ocorre de específico nesses ambientes está relacionado à possibili-dade de o sujeito se fazer presente de maneira muito mais efetiva, através de ações e deslocamentos que se proces-sam em ambientes no “interior” da imagem.

São ambientes que configuram uma espécie de geografia diferente da experiência no mundo físico e palpável, mas que não são menos reais por não serem materiais. O fato de esses ambientes não serem materiais não significa que são irreais e, embora destituídos de fisicalidade, podem ser exatamente lugares que permitem formas de relação e inserção.

Lugares a serem perpassados, visitados internamente em suas topografias, por caminhos escolhidos pelo público. Escolhas que podem ser mudadas sob diversas ordens,

configurando roteiros sem determinação. Lugares sem tra-jetos, frente ou verso, certo ou errado, que dialogam com a oscilação entre próximo e distante, presente e ausente, na convergência de uma existência determinada por uma participação.

Aprender a se relacionar com a realidade virtual pode ser compreendido como um modo de adquirir certo estilo de relação, um modo diverso de usar o corpo próprio, de en-riquecer a capacidade perceptiva e reorganizar nossos es-quemas corporais.

Maria Caram Santos de Oliveira (27 de novembro de 2014)Luiza, concordo com você em parte. Acredito realmente que existam muitos projetos que simplesmente joguem com a ideia de “interatividade” ou “tecnologia” em detrimento do projeto artístico. No entanto, me interessam muito propos-tas que realmente jogam com a participação do espectador, principalmente quando fazem isso misturando tecnologias

“obsoletas” com novas técnicas.

Eduardo, eu creio que a questão da fruição e do tempo é essencial nessas novas obras. A meu ver, as pessoas dis-ponibilizam cada vez menos tempo e atenção para a fruição (não apenas de obras, mas de vivências cotidianas também). Nesse ponto, vejo a arte utilizando a questão temporal como ponto de tensão, seja estendendo o tempo, desafiando o espectador a esperar ou abandonar a obra, ou reduzindo a obra a formatos mínimos, para encaixar e questionar esse padrão de tempo cada vez mais curto.

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aFOGaNDO EM NúMEROS

Assisto a um programa na TV sobre ciclistas, bicicletas e campeonatos. Bicicletas lindas, levíssimas. O uniforme dos ciclistas, supercoloridos, justos nos corpos. Capacetes também coloridos, com relevos e detalhes aerodinâmicos. Tudo pensado e desenhado para obter maior velocidade. As bicicletas, magrelas, com pouca massa, com pneus ultra-finos. As roupas colantes mostram corpos moldados pelo esporte. Musculosos e sem gordura alguma. Nada pode ser a favor da inércia. Os relevos nos capacetes acompanham o traçado do vento. E além da velocidade, a segurança: capa-cetes, joelheiras, óculos cortavento, cotoveleiras. Leveza e inteligência. Juntas. Tudo projetado e planejado.

Quem quer comprar uma bicicleta, mesmo que seja apenas para seu lazer, encontra uma variedade infinita de opções. E não só no quesito beleza-cor-preço. É preciso estudar o assunto antes da compra. Além disso, será impossível sair da loja sem o kit capacete, cotoveleira e joelheira. As estatísticas mostram o quanto é perigoso andar de bicicleta. Segurança, antes de tudo!

E as estatísticas estão por toda parte. Elas também mostram, por exemplo, como é perigosa a maternidade. Durante a gestação é preciso fazer muitos exames. De san-gue, de urina, de fezes. Ultrassom, doppler e outras ima-gens. E é ótimo, dá quase para ver com quem a criança vai se parecer antes de ela nascer. Exames para ver se ela será normal, se não tem nenhuma doença. Controle e pre-venção! Ah, é preciso também fazer aulas com enfermei-

* Professora do curso de

Arquitetura e Urbanismo na

PUC Minas, doutoranda na

Escola de Arqui-tetura da UFMG,

pesquisadora dos grupos de

pesquisa PRAXIS e INDISCIPLI-

NAR, ambos da UFMG.

ras especializadas. De preferência, para o casal “grávido”. Aula de respiração. Aula de amamentação. Alimentação. Alongamento. Agachamento. E o design, o que tem a ver com isso? É importante que a informação seja atraente, de fácil assimilação, de imediata compreensão.

O design é importante também na moda, na roupa do bebê, na roupa da jovem mamãe. Sutiã reforçado. Sutiã para ama-mentar em público. Sutiã bege (ops!, nude) para não marcar a roupa. Sutiã colorido para a mamãe ficar mais sexy.

Depois do parto, aula para aprender a cuidar do filho, criá-lo sem traumas. A mãe não sabe educar, a avó desaprendeu, o pai, coitado, está entrando em cena há pouco tempo. Mas a moça do programa da TV sabe. Estudou psicologia, pedagogia, filosofia, biologia, mapa astral. E tudo pode ser adquirido aos mon-tes nas bancas de revistas.

Já no programa sobre saúde se ensina a cuidar do corpo. Como emagrecer. Alimentar-se melhor. Ser saudável! Um amigo meu dis-se uma vez que na nossa infância a rúcula não tinha sido descober-ta ainda. Será? Pois agora vieram a quinoa, o arroz selvagem, o ar-roz de jasmim, a comida francesa, a comida japonesa, a peruana, a vietnamita e, a melhor, a culinária criativa, inventiva, internacional!

Junto ao programa de culinária tem aquelas propagandas – que nem parecem propagandas – que mostram utensílios de cozinha lindos, facas específicas para

QUESTÃO 1É possível pensar o design para além dos pressupostos do mercado e da indústria?

Ricardo De Cristófaro (3 de dezembro de 2014)Acho que é possível. Entretanto, quando estamos diante de objetos que possuem uma relação de grande intimidade com a anatomia humana, outras questões se fazem presentes.

Muito do que rege o comportamento das pessoas diante de determinados objetos, em termos de percepção, emoção, inda-gação e mesmo rejeição, está vinculado a um repertório cultural particular, a uma significação, à presença ou não de certos objetos no interior e nos hábitos de determinadas sociedades.

Os objetos cotidianos causam, nas pes-soas, determinados estímulos, a exem-plo do desejo de interação com o objeto por um processo de recriação de situa-

MaRCELa SILVIaNO BRaNDÃO LOPES*

Artesanias do desejo

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cada corte, em inox, coloridas, grandes, pequenas, e livros de receitas bem diagramados.

Mas o programa não ensina apenas a cozinhar, ensina tam-bém a comer. Comer melhor, comer de forma mais saudá-vel, comer com elegância e estética. E também ensina a beber. É preciso saber harmonizar. Há de se conhecer as melhores vinícolas, as cervejarias mais artesanais. Tudo com nomes e sobrenomes. As papilas devem ser estimula-das e o olhar deve ser educado.

A moça que apresenta o programa – mas pode ser um cara, homem na cozinha é cool – é superviajada. Aí tem aqueles programas sobre viagens. Lugares certos. Dicas práticas. Pontos turísticos, restaurantes, lojas, feiras. E é lógico que os livros e os guias são superdidáticos.

Além, é claro, das malas anunciadas nos reclames. Com duas rodinhas, com quatro rodinhas, mais fáceis para puxar, melhor para empurrar, coloridas para fácil identificação na esteira das bagagens, de material leve para não pesar na balança do aeroporto.

O design inteligente requer designers inteligentes, criativos e “proativos”, que saibam trabalhar em ambientes colabo-rativos, em busca de desenhos “diferenciados” e “diverti-dos”! Trata-se de uma atividade que ocupa o corpo e a men-te do designer, no horário do trabalho e fora dele. Trata-se de um trabalho que não produz apenas um produto, mas também imagens, ideias, patentes, direitos autorais. Em ou-tras palavras, trata-se de um “trabalho imaterial” (NEGRI; HARDT, 2005, p.149).

Esse design inteligente, testado cientificamente, desenha-do para prevenção, segurança, prazer e lazer, exige pouco de quem vai adquirir o seu produto. Aquilo que era fácil, intuitivo e corporal é anunciado como sendo assunto de especialistas. É o design da estatística, da segurança, mas, principalmente, do consumo, para o mercado.

ções conhecidas, ou pela vontade de vivenciar uma nova experiência.

Outros objetos nos levam a rememorar, a ter fan-tasias, desejos e lembranças. Os objetos também podem moldar comportamentos, formar conceitos ou reafirmar “pré-conceitos” que temos sobre de-terminadas formas e assuntos.

Várias configurações de intimidade ocorrem entre os homens e os objetos. Há objetos que são ínti-mos por pertencerem a nós; outros, mais distan-tes, por pertencerem a terceiros. Mas há também uma forma de intimidade que não diz respeito à posse do objeto, e, sim, a um sentimento de saber lidar com este. Certamente, esse fato está rela-cionado ao design e a um sentido de pregnância, à carga denotativa do objeto, à ambiência, aos há-bitos e comportamentos que assumimos diante da particularidade dos objetos. É uma espécie de dimensão natural que acompanha a própria evolu-ção dos objetos através da história humana, con-dicionando, de modo educativo e cultural, uma re-gularidade de ação, sempre indicando maneiras de agir. Diante de muitos objetos, sem qualquer tipo de aprendizado, sentimos intimidade e sabemos como usá-los e operá-los.

Uma percepção de intimidade entre o homem e determinados objetos configura-se fortemente na conformação da anatomia humana à forma total ou a um detalhe do objeto, e uma infinidade de ob-jetos apresenta esta possibilidade de casamento de ajuste confortável e receptividade à anatomia humana.

O corpo do homem está virtualmente acoplado a determinados objetos e seus usos comuns, e a eficiência dessa conformação é, frequentemente, uma das condições para o bom funcionamento de

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E para ser consumido não basta o produto ser necessário, ele precisa ser desejável. Precisa invadir também o corpo e o imaginário de quem vai comprá-lo. Trata-se um “capi-talismo cognitivo”, afinal: “O que é produzido [...] não são apenas bens materiais, mas relações sociais e formas de vida concretas”. (NEGRI; HARDT, 2005, p.135)

O MOVIMENTO QUE HaBITO

Como escapar, então, desse sistema político-corporal? A resposta está justamente no efeito paradoxal do funciona-mento desse sistema. Se, cada vez mais, o poder do capi-tal nos invade por dentro, é justamente de dentro que ele poderá ser enfrentado. Como bem resume Pelbart (REF):

quando parece que “está tudo dominado”, no extre-mo da linha se insinua uma reviravolta que ressigni-fica a própria dominação como segunda. Aquilo que parecia submetido, subsumido, controlado, domi-nado, “a vida” revela no processo mesmo de expro-priação sua positividade indomável e primeira. Não se trata de romantizar uma capacidade de revide e de resistência, mas de repensar a relação entre os poderes e a vitalidade social na chave da imanência. Poderíamos resumir esse movimento do seguinte modo: ao biopoder responde a biopotência, ao poder sobre a vida responde a potência da vida, mas esse

“responde” não quer dizer uma reação, já que a po-tência se revela como o avesso mais íntimo, imanen-te e coextensivo ao próprio poder – daí a dificuldade de separar o joio do trigo, de saber de que lado esta-mos. (PELBART, 2014)

Nessa perspectiva, se o corpo é moldado pelos aparatos tecnológicos, ele é também escultor! O movimento precisa dele. No caso das bicicletas, se o corpo está posicionado mais à frente, consegue-se mais velocidade. Pedalando sem sentar no banco, mais velocidade ainda. Para o alto, para baixo, para os lados. O corpo dirige o movimento, cria a dança, faz deslizar na pista, descolar do chão. E essa inte-

ligência é também pura intuição, ciência da rua, aprendida com os pais, irmãos, vizinhos, mas, principalmente, andando de bicicleta. E é assim: andar de bicicleta a gente nunca esquece...

aRTESaNIaS DO DESEJO

Didi-Huberman (2011), quando se refere à experiência, afirma ser ela “indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos à noite”. E sugere: “Devemos, portanto [...] nos tornar vaga-lu-mes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.154).

E aí encontramos, nas soluções engenhosas e bem-humo-radas que acontecem à revelia das estatísticas e do mundo especializado, invenções que não se deixam disciplinar, não se cristalizam no tempo, nem no espaço, justamente porque estão em movimento.

Podemos identificá-las nas respostas cotidianas dos “homens ordinários” (MAN), dos “homens lentos” (SANTOS), subversi-vas em relação àquelas designadas pela ciência, por se trata-

muitos objetos. Esse acoplamento operacional, simples e direto, ocorre, por exemplo, na relação com muitas máquinas, ferramentas, com instrumentos e utensílios cotidianos não autônomos, que só funcionam como extensões do corpo humano por serem altamente dependentes da motricidade e da energia de nossos órgãos, a exemplo da força exercida pelas pernas, pelos braços e mãos.

O hábito e o modo de relação com objetos cotidianos dessa natureza nos fornecem e estabelecem em nossa memória um arquivo de referências que molda nossas ações e nossos movimentos. Naturalmente nossas mãos e nossos dedos se acomodam a esses objetos.

Leilane antunes de Paula Neves Maia (6 de dezembro de 2014)Creio que pensar sempre é possível. O que eu me pergunto é se nós pode-mos produzir o design por nós mesmos. Se é possível termos uma educação estética e prática na escola de base para que nós tenhamos a capacidade de

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rem de ações “menores” (DELEUZE) e mais difusas que as subsidiadas pela eficiência e segurança. São invenções da ordem do subversivo porque extrapolam o estabelecido e estão na esfera do imprevisível. Inspirados em Boaventura, vamos chamá-las aqui de “artesanias”:

O lugar de enunciação da ecologia de saberes são todos os lugares onde o saber é convocado a conver-ter-se em experiência transformadora. Ou seja, são todos os lugares que estão para além do saber en-quanto prática social separada. [...] É este o terreno da artesania das práticas, o terreno da ecologia de saberes. (SANTOS, 2008, p.33)

As artesanias, além de não se apoiarem exclusivamente no capricho e na eficiência, podem surgir na emergência dos acontecimentos, e, com isto, serem engendradas no pre-cário e inventadas a partir do imprevisto e da improvisação, resolvidas imediatamente, no cotidiano, em ato.

Milton Santos, quando compara as zonas “luminosas” com as “opacas”, afirma que na primeira a naturalização do instituído – inclusive dos objetos técnicos produzidos –, a regularização e a racionalização dos espaços criam “uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa”. Em oposição, nas zonas opacas, a precariedade faz surgir o criativo, o aproximativo, o imprevisível (SANTOS, 2008, p.326).

Já Canclini (1997) nos chama a atenção para a interação e a hibridação de várias referências locais, nacionais e trans-nacionais presentes nessas invenções. Sob nosso ponto de vista, tal hibridação permite às artesanias escaparem de qualquer ordem de valor dicotômica, que separe o bom e o belo do mau e do sem valor, já que são soluções carrega-das de urgência e emergência, que nos surpreendem pela forma inventiva e às vezes inusitada em juntar e misturar, resultando em forma-ação, conteúdo e intenção em ato, estética e política hibridadas.

E quando o material usado nas artesanias é a sucata, acontece uma subversão maior, um “golpe” no sistema de produção: o tempo usa-do na fabricação do objeto descartado é revertido para o saber-fazer da invenção livre, sem ganho nem mais-valia para o capitalista:

Acusado de rou-bar, de recuperar material para seu proveito próprio e utilizar as má-quinas por conta própria, o traba-lhador que “tra-balha com sucata” subtrai da fábrica tempo (e não tan-to bens, porque só se serve de restos) em vista de um trabalho livre, criativo e precisamente não lucrativo. Nos próprios lugares onde reina a má-quina a que deve servir, o operário trapaceia pelo prazer de inven-tar produtos gra-tuitos destinados somente a significar por sua obra um saber-fazer pessoal e a responder por uma despesa a solidariedades operárias ou familiares. Com a cumplicidade de outros trabalhadores [...] ele realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Longe de ser uma regressão para unidades artesanais ou individu-ais de produção, o trabalho com sucata reintroduz no espaço industrial (ou seja, na ordem vigente) as táticas “populares” de outrora ou de outros espaços. (CERTEAU, 1994, p.82-83)

pensar o design e, também, se quisermos, ter habilidades técnicas para fazer uma peça de design, ou saber como fazer.

Dalba Roberta Costa de Deus (8 de dezem-bro de 2014)Bom, vou um pouco na contramão das respostas dos meus colegas, talvez até com uma opinião simplista demais e mui-to ingênua, mas é meu ponto de vista nes-te momento.

Acho difícil pensar o design além dos pressupostos do mercado e da indús-tria, até porque o design surge depois da Revolução Industrial, como uma es-tratégia de ampliação dos lucros das indústrias. No Brasil, o design teve seu impulso na década de 1950, com o desen-volvimentismo e a rápida expansão indus-trial. O International Council of Societies of Industrial Design (ICSID), conselho internacional que protege e promove os interesses do profissional de Desenho Industrial, define design como “uma ati-

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vidade criativa cuja finalidade é estabelecer as qualidades multifa-cetadas de objetos, processos, serviços e seus sistemas em ciclos de vida inteiro. Portanto, design é fator central da humanização ino-vadora de tecnologias e o fator crucial de intercâmbio cultural e econômico” (2012).

Dessa forma, acho que pensar o design para além dessa funcionali-dade é primordial, mas não desvinculado do mercado e da indústria. Nas palavras de Maíra Fontenele Santana: “se o papel do design está voltado para a humanização inovadora de tecnologias e é fator crucial de intercâmbio cultural e econômico, deve ser tanto na inte-ração do usuário com o objeto quanto na interação do produtor com o objeto produzido e na aproximação do produtor com o usuário e a

Vale ressaltar que não preconizamos aqui uma mudança de “cardápio”, e muito menos uma idealização romântica de uma identidade “genuína” ou de um modo de fazer “ori-ginal”. Antes de tudo, é preciso perceber que tais artesanias não são o avesso de uma realidade que se pretenda norma-tizar, mas que são parte inerente e potente dessa realidade. E como bem já observou De Certeau:

A criação é perecível. Ela passa, pois é ato. [...]. A festa não se reduz aos registros e aos restos que ela deixa. Por mais interessantes que sejam, esses ob-jetos “culturais” são apenas os resíduos do que não mais existe, a saber, a expressão ou a obra – no sen-tido pleno do termo. Ligada desse modo à atividade social que ela articula, a obra perece, portanto, com o presente que ela simboliza. Ela não se define por sobreviver a si própria, como se o trabalho de uma coletividade sobre si mesma tivesse como finalidade encher os museus. Ao contrário, a obra é a metáfora de um ato de comunicação destinado a cair, estilha-çando–se e a permitir assim outras expressões do mesmo tipo, mais distantes no tempo, apoiadas em outros contratos momentâneos. Muito ao contrário de se identificar com o raro, o sólido, o dispendioso ou o “definitivo” (características da obra-prima, que é uma patente), ela visa se esvanecer naquilo que ela torna possível. (CERTEAU, 1995, p.243-244)

Nossa intenção é de, colocando lado a lado as invenções daqueles considerados especialistas do design com as ações daqueles considerados leigos do ofício, promover a discussão sobre a validade desta diferenciação, como já o fez Boaventura quando recorreu à “douta ignorância” de Nicolau de Cusa:

A designação “douta ignorância” pode parecer con-traditória, pois o que é douto é, por definição, não ignorante. A contradição é, contudo, aparente já que ignorar de maneira douta exige um processo de co-

nhecimento laborioso sobre as limitações do que sabemos. (SANTOS, 2008, p.15)

Diante disso, há que se pensar numa necessária “profanação” daquelas ações ainda hoje crédulas das disjunções pretendidas pela modernidade (prática/teoria, saber/fazer, ciência/técnica/cul-tura) – seja pelo contágio com essas outras di-nâmicas ou pelo (re)uso incongruente do que foi sacralizado:

Uma das formas mais simples de profana-ção ocorre através de contato (contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina. Uma parte dela (as entranhas, exta: o fígado, o coração, a vesícula biliar, os pulmões) está reservada aos deuses, en-quanto o restante pode ser consumido pelos homens. Basta que os participantes do rito toquem essas carnes para que se tornem profanas e possam ser simplesmente co-midas. Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado. (AGAMBEN, 2007, p.66)

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sociedade, tendo a responsabilidade e o compromisso de dimi-nuir a lacuna que provoca a alienação do trabalho e alienação do consumo”.

Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)Hoje convivemos com o crescimento da economia criativa.

“Diferenciações” nos produtos e serviços de design tentam ir muito além do desejo, da funcionalidade e da forma. E chega-mos à citação do texto: Didi-Huberman (2011), quando se refere à experiência, afirma ser ela “indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos à noite”.

O design “fala” e retrata contextos históricos e econômicos de cada época e espaço, ele é capaz de captar movimentos e delinear origens. Hoje temos um design submetido aos desejos já estabelecidos antecipadamente e globalmente. Um design

“assistencialista”, massivo e imediato.

Oposto ao excesso ou à perda da qualidade e intenção do obje-to, o design vive e tenta reconstruir e resgatar a identidade de um movimento, o que chamamos de EXPERIÊNCIA. Criar novos hábitos de vida, formas mais simples de consumo, produtos com maior durabilidade, linhas de produção com menos im-pacto ambiental e uma compra consciente pelos consumidores finais colocam o design como inteligência no uso da matéria e autônomo diante do domínio econômico. O discurso, o ciclo de produção, a proveniência da matéria-prima, uma comunicação mais organizada, todos os processos são concebidos em cima de uma ideia, de um conceito e um ideal que são construídos e fazem parte de uma EXPERIÊNCIA (que marca e fica) e que cada vez mais pode ser utilizada para definir novos valores.

Reginaldo Luiz Cardoso (9 de dezembro de 2014)Marcela, gostei muito do seu texto, da estratégia que você uti-lizou para montá-lo. Primeiro apresentou a empiria e depois partiu para o campo da análise.

Bem, vamos ao tópico. Dizer que sim ou que não, penso, é cair em duplo cego: o “sim” seria uma espécie de capitulação ao

Assim, outro campo de atuação se abre para o designer. Não mais aquele que apenas soluciona problemas (afinal, o que é um problema?), mas também que cartografa, evidencia, articula, e, com isto, constrói outras tessituras de saberes e potencializa outros possíveis:

Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de co-operação. Todos e qualquer um inventam, na den-sidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas as-sociações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem mono-pólio da indústria ou da ciência, ela é a potência de todos e de cada um. (PELBART, 2011, p.23)

Entretanto, o risco de captura, cooptação, capitalização es-tará sempre por perto, e novas “linhas de fuga” (DELEUZE) devem ser inventadas o tempo todo. O movimento não pode parar.

REFERêNCIaS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora EDUSP, 1997.

DE CERTEAU, Michel. A Cultura no Plural. Campinas: Editora Papirus, 1995. (Coleção Travessia do século)

__________. A invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.

DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos Vagalumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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mercado, uma maneira de dizer explicitamente que não há al-ternativas ao atual sistema econômico; o “não” poderia indicar uma espécie de pensamento ingênuo no qual, acredita-se, des-de Trotsky, que o combate ao sistema somente seria eficaz se fosse feito de dentro para fora. Daí a complexidade da pergunta cujo campo de possibilidades situo em outro eixo.

Tomo aqui como referência a fala do designer Marc Kandalaft: “il est essentiel que le designer ait pour objectif d’humaniser la vil-le”. De fato, qualquer que seja a questão do design hoje, passa pelas cidades e, consequentemente, pelos corpos (como nos lembra a Marcela Brandão). E, desta vez, penso em Foucault, lá na Microfísica do Poder, quando afirma que “na verdade, nada é mais material, nada é mais físico, mais corporal que o exer-cício do poder”.

Apesar de o design atravessar a história, na sua versão moder-na ele aparece, inexoravelmente, junto com o desenvolvimento da microeconomia, resultando nos métodos do melhor posi-cionamento de um produto no mercado e, com isto, facilitar a sua venda (a Valéria e a Dalba falaram muito bem sobre isso!). Tomo como exemplo uma publicação que saiu há poucos dias em encarte no jornal Valor Econômico: “Valor setorial: emba-lagem” (nov. 2014). Dentre inúmeros depoimentos de empre-sários do setor, da constante inovação de materiais, etc., é espantosa a força do mesmo no crescimento econômico de um país. Mas causa maior perplexidade saber que o setor de embalagens é, pois, um termômetro de maior ou menor ati-vidade econômica. Se vai bem, ótimo. Se vai mal, provoca um rearranjo do marketing e, consequentemente, do design.

Portanto, o desafio está em quebrar essa simbiose entre o design e o capitalismo. Isso implica, necessariamente, lidar com as coisas de maneira diferente, o que implica, por sua vez, um sistema econômico diverso, ou em ter isto no horizonte do provável e do possível.

Além do mais, sem mudar o capital simbólico dos sujeitos, as artesanias correm o risco de estar reforçando o fetiche das mercadorias. Isso é importante porque junto com o capital

HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Multidão. Guerra e de-mocracia na era do Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

PELBART, Peter Pál. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras. 2011.

PELBART, Peter Pál. Biopolítica e Contraniilismo. Disponível em: <http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/fi-les/2010/02/const-comum_Peter-Pal-PELBART.pdf>. Acesso em: ago. 2014.

______. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>. Acesso em: jul. 2014.

SANTOS, Boaventura. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/47_Douta%20Ignorancia.pdf>. Acesso em: jul. 2014.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP, 2008.

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simbólico tem também o capital econômico que, sabemos, é extremamente mal distribuído em nossa sociedade. Tomando unicamente esses dois capitais, fica uma questão pairando no ar: quanto as pessoas estão dispostas a pagar (sim, há um cus-to no nível do desejo também) por um mundo sustentável que, é necessário dizer, implica um mundo mais lento? Um mundo mais lento (ou mais caro com as artesanias) se enquadra em que grau de viabilidade, uma vez que a acessibilidade tem a ver diretamente com a embalagem, que facilita maior (ou menor) circulação de mercadorias?

É claro que esse não é o único caminho trilhado pelo design, mas, sem dúvida alguma, é o hegemônico. Então, penso no pressuposto que lancei no início deste texto: todo movimento libertador deve ter como meta assumir a cidade como palco de experimentações que possam ser capazes de despertar (ou formatar) novos capitais simbólicos, culturais, econômicos e sociais. Trata-se de uma reconfiguração das subjetividades, daquilo que Bourdieu chamou de “habitus”. É por esse caminho que pretendo retomar as questões posteriores.

Ricardo Macêdo (10 de dezembro de 2014)Não sei... Esta é a primeira vez que penso sobre isso e, depois de uns dias afastado daqui, acho que é uma boa reflexão. O de-sign é uma estética programada - de certa forma - voltada para o uso, para a funcionalização da beleza que está ali inserida. Se faço um objeto a partir de uma demanda social, penso em vendê-lo. Como fazê-lo sem pensar em vendê-lo?

Acho que essa reflexão está para além do design e vai bater nas portas de alguma ideologia de plantão ou... de alguma urgên-cia: crise planetária, crise ética, crise econômica, etc. Se eu me munir de um espírito ligado a um desses fatores, acho que consigo implementar no objeto esse desejo: de ligá-lo mais a um pressuposto libertário (um design anarcopunk!? Straight Edge!? Kiki!? Design SOMA!?) do que à mercadoria, mais à ação que ele possa instigar do que ao consumo de si mesmo, mais à ativação de uma nova mentalidade do que ao reforço da antiga mentalidade.

Acho que a partir daí, de um fundamento interno que se con-cretiza em ações (conquanto eu tenha de onde tirar dinheiro para viver, porque não sou “Madre Tereza”), posso pensar em design para além do mercado e da indústria.

Ricardo Macêdo (11 de dezembro de 2014)O problema é que muitos tendem a confundir operações es-téticas (da arte) com o processo de um designer por não ter experiência como designer. O ato criativo tem um momento específico no design, contudo, se aquele objeto não correspon-der à realidade humana, pessoas podem se machucar no seu uso. Por isso a existência de várias disciplinas além da que lida com o processo criativo. O povo da arte geralmente mistura tudo e acha que dá no mesmo, mas não é assim. Até pra se pensar esse entrecruzamento (arte e design) é muito delicado, pois, como falei, envolve a saúde física/psicológica do usuário.

QUESTÃO 2Em que medida romper fronteiras entre o erudito e o leigo pode ser suficiente para repensar o ofício do designer?

Valéria Costa Pinto (5 de dezembro de 2014)Acredito que os dois se complementam na medida em que so-luções criativas dos leigos possam ser elaboradas e difundidas pelo erudito. Como, por exemplo, as bordadeiras da Rocinha que trabalham para uma grife de moda. Boa parceria para ambas porque aumentou o número de funcionárias no setor, valorizando um ofício em extinção e dando visibilidade ao tra-balho delas. Por outro lado, a grife introduziu no mercado um produto inédito e diferenciado e, por ter retorno social, foi re-conhecida mundialmente.

Thaís Mor (8 de dezembro de 2014)Romper a fronteira entre o erudito e o leigo me parece estar diretamente ligado à inovação. O design é capaz de dialogar com os dois lados e, através dele, é por onde se concebe o novo. Técnicas tradicionais com linguagens estéticas contem-porâneas, conhecimentos milenares em novos suportes...

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O inovador com um suporte na tradição pode garantir a qua-lidade e durabilidade de um produto ou serviço, assim como algo tradicional com o suporte de novas linguagens gráficas pode garantir a democratização de um ofício quase esquecido.

As referências num projeto de design não se restringem ao erudito ou ao leigo. Novas maneiras de pensar e produzir não podem desconsiderar conhecimentos e tradições, mas, sim, incorporá-las em prol de uma nova maneira de pensar e produzir.

Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014)Acho que essa questão dá para fazer um paralelo entre os de-signers e os arquitetos. É fato que não é preciso um arquiteto para fazer arquitetura, do mesmo jeito que não é preciso um designer para criar um objeto. Porém, são profissionais que estão preparados para desenvolver coisas concretas.

No mundo da arquitetura está virando uma tendência a chama-da autoconstrução, que toma como referência aquela arquite-tura feita sem arquitetos e construída pelos próprios usuários. Mas inserindo o arquiteto nesse processo. O arquiteto pode ser a pessoa que desenha o produto, mas também vai se envolver na construção, e às vezes, vai ser um dos futuros usuários da obra.

Para colocar um exemplo, poderia falar do projeto LaFábrika detodalavida, na Espanha. Um galpão de uma antiga fábrica de cimento abandonada que tem sido reabilitado (ou reciclado) para ser um espaço de trabalho colaborativo e um lugar de pesquisa sobre o bem comum. No processo de reabilitação estiveram envolvidos todos os futuros usuários do espaço: artistas, arquitetos e, inclusive, advogados, que trabalharam como pedreiros durante um ano para conseguir um espaço de trabalho.

Na minha opinião, acho que não tem que existir essa fronteira entre o erudito e o leigo, esse repensar pode ser a sinergia entre os dois. A profissionalização dos leigos e a volta ao tra-balho manual dos eruditos. Novos processos cocriativos que

têm inclusa uma troca que poderia ser formação para os leigos e novas técnicas para os eruditos.

Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)Penso que romper a fronteira entre o erudito e o leigo é um passo importante para a democratização do design, pois apro-xima o processo cada vez mais das necessidades verdadeira-mente humanas, não se deixando levar pelos interesses do mercado.

Porém, acho que essa ruptura não é suficiente para o aprimo-ramento completo do ofício do designer, pois não se deve ater apenas ao produto final, mas também a todo o processo cria-tivo e de produção, que deve ir além do percurso criador-pro-duto-receptor. Acho que essa inovação deve vir acompanhada de discussões mais profundas no âmbito social, aproximando cada vez mais o designer dos usuários de suas criações.

Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014)Inspirada em Bakhtin, a grande tese de Carlo Ginzburg, que perpassa toda a sua obra, é a noção de circularidade cultural. Para Ginzburg, em diferentes momentos históricos, as elites conseguem preservar, com maior ou menor êxito, as fronteiras entre a cultura tida como própria desta mesma elite, e a dos outros, entendida como menor. Assim, podemos ter maior ou menor circularidade.

O problema é que, com a modernidade, essas elites, naquilo que Marx chamou de ideologia, conseguiram criar um sistema que faz com que a cultura delas prevaleça como hegemônica. Isso faz com que a maioria abdique ou pense que os seus inte-resses são os mesmos daqueles que os oprimem. Marx resu-miu assim essa situação: “disso eles não sabem, mas o fazem”.

O filósofo Sloterdjik nos diz que essa hegemonia cultural pode ser hoje traduzida pela prevalência da “razão cínica”. Cínica porque, ao se dar razão a Marx, deu-se outro sentido à famo-sa frase. Essa hoje seria reinterpretada da seguinte maneira:

“eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas mesmo assim o fazem”. O sujeito cínico tem perfeita ciência da distância en-

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tre a máscara e a realidade social, mas, apesar disso, continua a insistir na máscara.

Percebe-se que a circularidade é necessária à arte, pois, do contrário, a arte “entraria em processo de entropia” (FLUSSER, Vilém. Nossa Embriaguez, 1983).

Se não atentarmos para a existência da “razão cínica”, esse processo se torna autofágico. Em suma, para romper frontei-ras, o pressuposto está em romper com a “razão cínica”.

Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014)A não-compartimentação de erudito e de leigo gera diálo-gos entre cultura acadêmica e cultura intuitiva. Romper es-sas fronteiras não quer dizer misturar tudo, mas, sim, admi-tir que estamos todos no mesmo barco quando o quesito é humanidade.

Vejo o designer não somente pensante, mas tateante, na escuta de uma sabedoria antiga das mãos, na consciência de que o design é feito para pessoas concretas e não abstratas.

Tanto as artesanias quanto as academias têm a ganhar com a recriação do design ao lado dos antigos ofícios, como marce-naria, artesanatos, tecelagem, encadernação, sapataria e todo tipo de atividade realizada por pessoas com as quais podemos ter uma comunicação cara a cara.

Reginaldo Luiz Cardoso (12 de dezembro de 2014)É perfeita a última intervenção da Marcela. Apenas um com-plemento: conforme Maturana (A Democracia é uma Obra de Arte), etimologicamente, “con-versar” vem da contração de dois vocábulos latinos: con, junto com, e versare, dar voltas em redor de uma coisa. Isto é, conversar é ir junto, caminhar em companhia.

Portanto, a condição política de existência do sujeito é a demo-cracia (e tudo o mais que a acompanha). Consoante a isso, a democracia não está a serviço da sociedade ou dos indivíduos,

“mas dos seres humanos enquanto (sic) sujeitos, isto é, criado-res de si mesmos, de sua vida individual e coletiva”.

Ricardo De Cristófaro (16 de dezembro de 2014)O campo de atuação do leigo coexiste com o erudito em um mesmo tempo e espaço, levando a uma percepção de que na-turalmente existe algum tipo de interação entre eles. A coe-xistência de linguagens cultas e populares na contemporanei-dade é uma realidade e, por diferentes vias, os grupos que as utilizam estabelecem relações de trocas e diálogos constantes. Além da interação entre leigo e erudito, ainda devemos consi-derar que existe um diálogo de ambos com a cultura de massa.

Néstor Garcia Canclini pode ser um bom caminho para a com-preensão do fenômeno de hibridação cultural e da complexi-dade das relações entre grupos culturais, especialmente as tradições culturais e populares na contemporaneidade.

Canclini argumenta que, para abordar a conjuntura latinoame-ricana, por exemplo, seria indispensável uma perspectiva plu-ralista, na qual são aceitas as fragmentações e combinações múltiplas entre tradição, modernidade e contemporaneidade.

Nesse sentido não percebo fronteiras rígidas a serem rompi-das pelo ofício do designer contemporâneo.

QUESTÃO 3Quais são os mecanismos para que a profanação e a contamina-ção anunciadas por agamben não se transformem em captura e cooptação pelos interesses do mercado?

ardesson Reis Santana (19 de dezembro de 2014)Pelo que entendi, o que se pode fazer é enxergar a situação considerada como cooptação como uma oportunidade de in-filtração no “sistema”, utilizando-se das ferramentas que este pode oferecer para ações de subversão.

Carlos Muñoz Sánchez (14 de dezembro de 2014)A diferença entre lazer e trabalho pode não existir. Eu falei de tempo de lazer em referência ao tempo que as pessoas têm

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fora da atividade remunerada que fazem para comer. Se você tem um emprego “convencional” de 30 ou 40 horas semanais, sem responsabilidades para levar pra casa, e o resto do tempo você trabalha na atividade na qual você realmente acredita, seu trabalho e seu lazer são o mesmo. Mas nessa situação temos que escolher alguma palavra pra definir essas horas que você dedica para conseguir dinheiro. O trabalho e o lazer são o mesmo, mas durante a semana tem um período de “[...] coloque palavra que não seja trabalho aqui...”, que é o que permite você se sustentar.

Eu queria que não existisse, mas eu mesmo estou dentro de vários processos que estão sendo difíceis. Alguns deles co-mentei nas outras questões. Porém, sei de fato que é possível se sustentar nessas margens, conheço e sou amigo de muitas pessoas que conseguiram, e muitos que estão (estamos) lu-tando para isso.

Barbara Rodrigues Tavares (12 de dezembro de 2014)Assim como questões debatidas a respeito da arte em geral, existem mecanismos que podem fugir aos interesses do mer-cado. Essas alternativas podem ser percebidas em ações e atividades que vêm sendo praticadas nas cidades e é impor-tante apontar os coletivos artísticos nesse sentido. São grupos autogestores e autodependentes que buscam soluções hete-rogêneas para questões comuns na cidade, a maioria delas à margem do mercado.

Bernardo Romagnoli Bethonico (12 de dezembro de 2014)O movimento não pode parar. Lembro-me da bailarina Sofia Neuparth, que dizia que “O movimento não para, nós é que imobilizamos nossa relação com ele”. Esse é um convite a alargar a escuta do mundo e ser de outra forma: quando tudo parece corrompido e estagnado.

Escutar o movimento que já está aí é conversar com aquela pessoa com a qual sempre me deparo na rua. E ver o que pode surgir da conversa. É articular uma ação com as cozinheiras do

restaurante que frequento. Inventar um sistema com o porteiro do prédio. Ressignificar o vizinho. Quem sabe aprender a fazer um bolo? Ou aprender a estar lado a lado de um desconhecido enquanto atravesso a rua. E criar um grupo de estudos-práti-cas informais? Tenho me convencido de que a revolução não será mesmo televisionada. Se eu não mudar o entorno, me permitindo usar o que se encontra apartado, nada muda.

Júlia Nascimento de Oliveira (11 de dezembro de 2014)Acredito que o design pensado de forma colaborativa, buscan-do uma integração social e inovação constante, pode ser um importante mecanismo subversivo, profanando o que é ditado pelo mercado ou pelas teorias engessadas que nos são ofe-recidas. Uma maneira de contaminação do que é sacralizado pela máquina produtora seria o design a partir da experiência, não apenas aceitando o que é dito como “bom” ou “correto” pelo capital, mas buscando uma vivência cotidiana, reciclando conceitos, aperfeiçoando teorias, sempre se aproximando do humano.

É válido ressaltar que o processo criativo é tão importante quanto o produto final, pois o ato de produzir fora dos parâme-tros estabelecidos pelo mercado já é um ato de subversão, que pode aglutinar diversas esferas de debate e reflexão.

Luiza alcântara (11 de dezembro de 2014)Acredito em duas coisas apontadas abaixo: a primeira é na criação desses espaços de que a Maria Caram fala, espaços autônomos que pensam a criação de objetos, ações, servi-ços, e que buscam gerar outros espaços (mesmo que sejam deslocamentos intelectuais) de forma diferente. Por onde vão circular essas produções? Quem está querendo o serviço? Concordamos com suas ideias? Se sim, ok. Se não, o que po-demos fazer? Aceitar e subverter? Ou recusar?

E, nesse sentido, chego ao segundo ponto citado, com o qual concordo. Podemos, sim, aceitar propostas de trabalhos den-tro do sistema que tanto questionamos, mas sem a ingenui-

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do da cidade, de política, de multidão... Mas aqui aparece um conceito parecido.

Ricardo falou do Lipovetsky e Marcela adicionou a Marina Abramovic. Não tenho estudado esses casos concretos, e não saberia dizer se eles estão tentando subverter as empresas por dentro. Mas existem alguns problemas nos processos criativos dos designers que trabalham além do mercado - um deles é

“comer”.

Conheço muitos designers ou coletivos que gostariam de traba-lhar só com a parte ativista do design, mas desistem ou deixam essa parte para o tempo do lazer, porque são obrigados a ter um emprego convencional, cooptados pelas empresas, para poderem se sustentar. E alguns dos que conseguem se susten-tar com isso, é com as palestras que dão sobre outras metodo-logias no design (ou na arquitetura, por exemplo). Porém, são metodologias que nem para os melhores dessas disciplinas dariam para viver, e, afinal, vivem da teoria mais do que da prática desses processos.

dade de que não estamos nele. Sabendo de nossas posições e das dos outros, sabemos como subverter, como jogar a nosso favor e, assim, não seremos cooptados.

Maria Caram Santos de Oliveira (10 de dezembro de 2014)Creio que a melhor resposta aqui é algo que já citei em módu-los anteriores: espaços lisos e espaços estriados.

Como a Greice citou antes, o capitalismo age de forma predató-ria, capturando e transformando em objetos de consumo mes-mo aquilo que nasce à sua margem. Como disse na primeira pergunta, é a substituição da “utilização” pelo “consumo”.

Assim, creio que, quase inevitavelmente, novos mecanismos serão constantemente capturados e refeitos em embalagens prontas para uso. Como enfrentamento, creio que a possibili-dade seja achar brechas e se infiltrar nelas sempre que pos-sível, criando sempre espaços - que podem ser chamados de espaços lisos, contratempos, zonas autônomas temporárias

- de escape e inovação dentro desse sistema.

Greice Teixeira de Souza (10 de dezembro de 2014)Pelbart sugere a produção do novo, sendo que no seu concei-to, produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Mas quando nos referimos à sua captura e cooptação pelos interesses do mercado, vale lembrar “que o mercado capitalista é uma má-quina que sempre foi de encontro a qualquer divisão entre den-tro e fora. O mercado capitalista é contrariado pelas exclusões e prospera incluindo, em sua esfera, efetivos sempre cres-centes. […] Em sua forma ideal, não há um fora no mercado mundial: o planeta inteiro é seu domínio” (HARDT, 2000, p.361).

Carlos Muñoz Sánchez (10 de dezembro de 2014)De volta aqui uma questão do primeiro texto: “Mas sabemos que a metrópole é também o lugar, por excelência, da expro-priação deste comum produzido no encontro e na criação das novas formas de vida e de luta”. Naquele texto e também nas questões relativas a ele, a gente falou sobre como é possível mudar algo desde dentro. Daquela vez a gente estava falan-

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MaRIa HELENa CUNHa* PaTRICIa FaRIa**

Com o curso Arte e Espaço – uma situação política do século XXI, cujo conteúdo buscou abarcar de for-ma ampla os temas relativos à arte, aos espaços e à política, avaliamos que seria bastante pertinente discutir com os alunos a perspectiva de transfor-mar uma plataforma virtual de educação em um espaço processual de construção do conhecimento.

Com base nessa ideia, lançamos intencionalmen-te a questão: o que acham de uma plataforma de educação a distância como um espaço virtual de construção do conhecimento coletivo?

Essa questão foi trabalhada durante a primeira disciplina - Ambientação em EAD - destinada ao conhecimento e à discussão da própria plataforma. Assim, a partir dos debates e das observações dos alunos a respeito do tema e de suas expectativas com relação ao curso a distância, fomos alinhavan-do e desenvolvendo este texto.

A plataforma EAD|Inspire, desde sua criação, teve como metodologia de trabalho estabelecer a dis-cussão direta entre os professores e todos os alunos e entre os próprios alunos no Fórum de Discussão, no qual o debate é aberto e compar-

Apontamentos sobre educação a distância e construções coletivas de conhecimento: a experiência do curso arte e espaço – uma situação política do século xx

1. Maria Helena Cunha - Mestre em Educação pela FAE/UFMG, especialista em Planejamento e Gestão Cultural pelo Instituto de Educação Continuada - PUC/MG e licenciada em História pela UFMG. É diretora da Inspire Gestão Cultural e da DUO Editorial. Fez a coordenação geral e pedagógica do curso que deu origem a esta publicação.

2. Patricia Faria - Professora da disciplina Ambientação em EAD deste curso. Graduada em Psicologia pela UFMG; especialista em Planejamento e Gestão Cultural pelo IEC/PUC_Minas; e especialista em Cooperação Cultural Iberoamericana pela Universidade de Barcelona/Espanha. Produtora e Gestora Cultural, coordena o Pontão de Cultura Escola Livre COMUNA S.A.

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tilhado para que todos possam participar e acompanhar o raciocínio, as opiniões e as reflexões sobre o tema proposto. Ao mesmo tempo, buscamos entender como eles poderiam se apropriar dessa ferramenta de estudos ao longo de todo o curso como processo de sua formação. Um dos alunos, Marco Antônio Souza Borges Netto, afirma: “Acredito nessa plataforma. Mas requer muita disciplina do estudante. A vantagem é que há uma memória e que podemos interagir sempre que possível”.

Reiterando a fala acima, em uma plataforma de educação a distância – assim como acontece também nos cursos pre-senciais - a construção do conhecimento coletivo requer de todos os envolvidos uma apropriação do tema proposto com uma disposição para o debate, que intensifica e qualifica a discussão.

Portanto, o objetivo da inserção dessa discussão inicial no curso era compreender como um curso virtual pode-ria favorecer ou gerar uma discussão que propiciasse ou incentivasse a reflexão dos alunos para a possibilidade da construção do conhecimento coletivo, a partir de suas rea-lidades, expectativas e do conhecimento sobre a experiên-cia de cursos a distância. Uma das alunas do curso reflete especificamente sobre isso e reforça um ponto de vista ao afirmar que acredita:

[…] na construção do conhecimento coletivo, pois hoje, mais do que nunca, temos um excesso de in-formações, mas que nem sempre são coletadas da melhor maneira. Uma plataforma de educação a distância é capaz de reunir diversas percepções e olhares que são lançados a partir do espaço de cada participante. A união, por uma busca em comum, e o direcionamento dessas informações podem gerar um conhecimento múltiplo e inovador. Se é a melhor forma ainda não sei, mas acredito que temos que nos apoderar das plataformas virtuais para o melhor aproveitamento delas: o conhecimento. (THAÍS MOR)

O modelo pedagógico estabelecido como linha norteadora do processo formativo da plataforma EAD|Inspire sempre buscou envolver, por um lado, a autoinstrução (leitura de textos), que depende muito da disciplina e da força de von-tade de aprendizagem individual, e, por outro, a aprendiza-gem colaborativa por meio de debates entre os alunos. Esse é um importante diferencial desse processo formativo, que estabelece um diálogo contínuo e compartilhado na cons-trução de um conhecimento comum e “com o qual podemos interagir sempre que possível”.

Em uma provocação feita pela Profa. Patricia Faria, para instigar o debate durante o período de sua disciplina, ela questionou: “Gostaria de aproveitar o post de hoje para colocar uma ideia que se faz presente sempre que vamos trabalhar com educação a distância: muitos autores citam que um grande desafio está relacionado com a melhor ma-neira de usar as tecnologias de informação e comunicação em benefício do bom aprendizado e da construção coletiva do conhecimento. Penso que essa preocupação está rela-cionada com muitos fatores que já enumeramos [...]. Como usamos as tecnologias de informação na nossa vida hoje em dia? Vocês acham que fazemos um bom uso delas? O quanto nos perdemos nesse mar de informações?”.

A partir dessa colocação, estabeleceu-se um debate no Fórum e destacamos duas falas. Em uma delas uma aluna afirma que “opinar sobre se fazemos um bom uso ou nos perdemos nas informações é difícil, pois acho que aconte-cem as duas coisas...”. Continuando, ela aponta sua obser-vação para os jovens:

Tenho percebido que crianças e adolescentes, que já nasceram com essa tecnologia, possuem mais faci-lidade de acesso, porém precisam de uma mediação para fazer bom uso dela, pois a maioria só acessa as redes sociais e quando precisa realizar um trabalho escolar de leitura, interpretação e construção de tex-to fica muito perdida.

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Dessa forma, ela traz a problematização para o outro lado, o das escolas e professores, e conclui:

Cabe, também, aos professores introduzirem e dis-cutirem o assunto da educação tecnológica nas es-colas. O que muitos teóricos chamam de ‘letramento tecnológico’ tem que evoluir para uma ‘competên-cia informacional’ que requer um trabalho árduo da Educação... (DALBA ROBERTA COSTA DE DEUS).

Outro aluno, Bruno Dorneles, traz uma discussão pertinente ao processo educativo. Ele afirma:

Tenho alguns problemas com a ideia de educação a distância, talvez por ela tentar reduzir a distância a uma questão geográfica, quando, na verdade, eu (como professor de artes da rede pública de ensi-no) me sinto muito mais próximo dos meus alunos quando dividimos uma plataforma digital (whatsapp ou facebook), em que os interesses de cada um se tornam mais evidenciados, como modelos de apre-sentação claros da pessoa (quase como a roupa que se veste on-line).

Ele ressalta ainda que:

Apesar dos problemas, considero essa uma das pou-cas e legítimas formas de construção de conheci-mento coletivo, dado que para estarmos aqui preci-samos estar equipados com aquilo que nos dispõe um número quase infinito de conhecimentos. Apesar de não orgânico, apesar de nos trans-humanizar, a internet permite que consultas rápidas e em diálo-go com uma comunidade transformem dificuldades individuais em curiosidades coletivas, o que auxilia de forma vertebral no desenvolvimento do indivíduo e do coletivo.

Um ponto inegável a ser identificado no contexto do ensino a distância é a capacidade de proporcionar o encontro de

um número significativo de pessoas, tão distantes geogra-ficamente e com diversos níveis de formação e informação. Neste curso, especificamente, contamos com a participação de alunos de dezoito estados brasileiros, tornando possível, e de maneira muito simples atualmente, a realização de um debate a partir da nossa diversidade. Alguns alunos se posicionaram com essa perspectiva, deixando registrados no debate os seus pontos de vista sobre o tema:

Penso que, utilizando os meios de tecnologia da in-formação, nós estamos cada vez mais a romper as barreiras que antigamente segregavam diversas pessoas. A democracia presente na construção do conhecimento coletivo é essencial para que dissemi-nemos o que outrora ficou restrito a um grupo mui-to ínfimo de pessoas, num verdadeiro monopólio do conhecimento. O conhecimento coletivo, como bem citou a Patrícia Faria, torna-se cada vez mais refina-do quando agregamos àquelas ideias postas e tidas como “dogmáticas” uma nova forma de pensar ou interpretar, que tem muito a ver com o crescimento moral e intelectual e o agregado regional de cada um de nós. (DENY EDUARDO PEREIRA ALVES)

E na visão de outro aluno:

Acredito que seja um mecanismo forte e de grande promessa na construção do conhecimento. Por meio da educação a distância é possível ter alunos conec-tados de diversas partes do País, o que pode gerar não apenas um debate construtivo e enriquecedor, como também se apresentar como uma forma de de-mocratização do ensino, seja do ponto de vista formal, como também do aperfeiçoamento e da livre busca pelo saber. Essa modalidade exige autodisciplina e empenho redobrado do aluno, uma vez que, sem um

“professor presencial” no dia a dia, a sua organização e dedicação serão pontos-chave na efetiva constru-ção do saber. (FELIPO LUIZ ABREU DE OLIVEIRA)

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O mapa abaixo ilustra o perfil geográfico dos alunos, tra-çando a capacidade de abrangência dos cursos a distância. Nesse caso específico, destacamos um número de alunos bem superior da Região Sudeste, com percentual de 75% do total, fato que se deu em função de estarmos sediados em Belo Horizonte (MG), e realizarmos o curso por meio da legislação municipal de incentivo à cultura, o que significa, em termos percentuais, um número maior de vagas dispo-níveis para a cidade e para o estado de Minas Gerais.

Além da possibilidade de ampliar a capacidade de articu-lação de pessoas de locais diferentes, a flexibilidade com relação ao tempo para o estudo e o não deslocamento físico foram apontados como as grandes vantagens do ensino a distância, e podemos afirmar que este sempre foi um ponto destacado por outros alunos de cursos anteriores nesta plataforma. As palavras de uma das alunas deste curso evidenciam esse fato:

A EAD é uma forma de estar, principalmente na for-ma de debates e fóruns, onde não seria talvez mo-mentaneamente possível. A mobilidade de acesso permite que diversas pessoas estejam em constante interação. Podemos discutir, discordar e rever nos-sos conceitos e conhecimentos. Para mim, é com a EAD que a globalização exerce seu papel: a mundia-lização do espaço geográfico por meio da interligação econômica, política, social e cultural em âmbito pla-netário. (JOANA D´ARC JESUS DOS SANTOS)

Por outro lado, vimos em vários comentários, neste e em outros cursos, que a falta do contato físico é vista também como uma desvantagem. Isso talvez se justifique por uma visão ainda muito arraigada do padrão de sala de aula que estabelece a relação presencial entre professor e aluno. Considerando o contexto atual, nós acreditamos que o EAD tem, na verdade, criado a possibilidade de aprendizagem para aqueles que estão distantes dos centros urbanos (que possuem grande parte dos programas formativos específi-cos) e, ao mesmo tempo, traz para todos os alunos a opção de não terem que enfrentar a dificuldade da mobilidade urbana e de otimizar seu tempo disponível (flexibilização do horário de estudo). Assim, o tempo e o espaço passam a ter outro significado, fortalecendo a vantagem do acesso sobre a necessidade do contato físico.

Nesse sentido, quando nos mobilizamos para a realização deste curso a distância, Arte e Espaço – uma situação política do século XXI, não foi só pela metodologia, que acreditamos possibilitar a construção coletiva e um processo contínuo de

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aquisição de conhecimento, mas também por con-siderarmos a extensão territorial brasileira, com um grande número de pequenas cidades no inte-rior de cada estado, e a dificuldade de mobilidade nos grandes centros urbanos. Ou seja, buscamos democratizar o acesso a conteúdos específicos e de qualidade para muitos que teriam dificuldade em participar de formatos presenciais.

Dessa forma, entendemos que os recursos das tecnologias de informação que atuam como me-diadores do processo de desenvolvimento de estu-dos a distância significam um diferencial para os alunos que tiveram a oportunidade de estabelecer um diálogo contínuo com especialistas de temas variados e relacionados à sua formação.

Voltando à questão que motivou a discussão inicial durante o curso - O que acham de uma plataforma de educação a distância como um espaço virtual de construção do conhecimento coletivo? –, é impor-tante falar das expectativas, do que foi atendido e mesmo de frustações após a realização do curso. Buscamos nos comentários de uma avaliação final

e nos comentários de alguns alunos, que voltaram para responder a essa questão na disciplina inicial, as referências para levantarmos algumas obser-vações pertinentes.

Nem todos os alunos se adaptam a esse formato específico da plataforma, na qual as leituras de todas as questões colocadas e os debates também entre alunos são uma proposta de discussão aber-ta. Isso significa que ela não deve ser estabelecida no grupo de forma unilateral - em que o professor responde direcionado a um único aluno - confor-me uma observação apresentada na avaliação fi-nal: “Seria interessante se pudéssemos comentar diretamente as mensagens enviadas por outros alunos”. Embora esse seja um ponto recorrente,

3. Nas citações referentes às avaliações finais não fo-ram citados os nomes dos

alunos, pois preferimos manter sigilo por ser uma avaliação individual. Cita-

mos, no entanto, os nomes de alunos em comentários

que foram postados no fórum de discussão, espa-ço aberto para os debates.

avaliamos que essa proposição foge completamente da li-nha pedagógica escolhida pelo EAD|Inspire, na qual todos os participantes – professores e alunos – mantêm um diálo-go aberto e podem acompanhar os debates a partir de uma leitura completa e contínua de todos os comentários. A pro-posta metodológica é a busca constante para manter uma interatividade diária entre os todos os usuários envolvidos.

Assim, a metodologia utilizada pela plataforma a distância EAD|Inspire tem como proposta responder a uma busca de formação continuada e aprofundada, que consiga acompa-nhar os profissionais nos desafios e atividades cotidianas, motivando-os à discussão constante para o desenvolvimen-to de seus trabalhos. Isso pode ser retratado em um dos comentários da avaliação final:

Como primeira experiência posso dizer que tentei aproveitar ao máximo. A monitoria sempre atenta e presente me chamou a atenção. Quanto ao conteú-do, achei interessante, por ser ainda novo para mim, e consegui ampliar muito meus conhecimentos. Os professores souberam se posicionar, despertando reflexões sobre os conteúdos. A coordenação, secre-taria e plataforma funcionaram adequadamente, sem problemas. Por ser gratuito, possibilitou-me ampliar meus conhecimentos e interagir com professores e colegas, incentivando-me a ler sempre mais e a refletir sobre as perguntas e as respostas.

Outro ponto importante, que já foi muito identificado entre as observações dos alunos da plataforma, é o compartilha-mento do conhecimento, dos textos e debates, com seus parceiros externos à plataforma, de trabalho ou de escola:

Essa plataforma é muito eficaz, achei ótima, fácil de lidar. Gostei demais dos textos, vou repassá-los todos; os depoimentos e intervenções dos professo-res dessa forma mais livre é bem instrutivo. Talvez pudesse ter mais interação dos professores com os

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alunos. A monitoria do Bruno é ótima, não precisei usar o suporte técnico.

Outro aluno volta à questão na plataforma após o final do curso e a responde da seguinte forma:

Penso que não substitui a aula presencial, o estu-dante de curso a distância tem que ser muito mais atento aos estudos por ter que ser autodidata, mes-mo sendo orientado, porém, é uma ferramenta muito boa e possibilita acesso e conhecimento. (GUSTAVO PIRES DE PAULA)

Por fim, a plataforma EAD|Inspire, que abrigou o curso Arte e Espaço – uma situação política do século XXI, cumpriu com seus objetivos ao manter uma estrutura de navegabilidade amigável e de acesso simples, que proporciona a facilida-de no processo de interação entre alunos e professores e, consequentemente, segue enfrentando seu principal de-safio: ampliar as condições que levam à aprendizagem e ao conhecimento específico de forma colaborativa, enten-dida aqui como um diálogo aberto que leva à reflexão e à ampliação de repertório, e não, necessariamente, apenas como a construção colaborativa de um texto coletivo. Para a EAD|Inspire, o que vale são o bom debate e a vontade de participar dele.

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assessoria de comunicaçãoThaís Almeida Maia

Design gráficoAna C. Bahia

assessoria jurídicaDiana Gebrim

PUBLICaÇÃO aRTE E ESPaÇO – UMa SITUaÇÃO POLÍTICa DO SÉCULO xxI

RealizaçãoDuo Editorial

PatrocínioLei Municipal de Incentivo à Cultura e Banco Bonsucesso

apoioInspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG

OrganizadoresBruno Oliveira, Maria Helena Cunha e Natacha Rena

Coordenação EditorialNatacha Rena

Produção EditorialBruno Oliveira

Produção executivaMichelle Antunes

Gestão FinanceiraMaria Helena Batista

Revisão de textosTrema ([email protected])

Design gráficoAna C. Bahia

CURSO aRTE E ESPaÇO – UMa SITUaÇÃO POLÍTICa DO SÉCULO xxI

Realização Duo Editorial

Patrocínio Lei Municipal de Incentivo à Cultura e Bonsucesso

apoio Inspire| Gestão Cultural e Indisciplinar | EA UFMG

Plataforma de Educação a Distância EAD|Inspire

Coordenação geral e pedagógica Maria Helena Cunha – Inspire| Gestão Cultural

Coordenação de conteúdo Natacha Rena – Indisciplinar | EA UFMG

ProfessoresEduardo de Jesus Isabela Prado Marcela Silviano Brandão Lopes Natacha Rena Patricia Faria Paula Bruzzi Berquó Simone Parrela Tostes

Monitoria Bruno Oliveira

Suporte Técnico Harmisweb

Produção executiva Michelle Antunes

Gestão Financeira Maria Helena Batista

Alexsandra Silva Oliveira BuritiBarbara Rodrigues TavaresBernardo Romagnoli BethonicoCarlos Dalla BernardinaCarlos Muñoz SánchezCândida Soares Leão TeixeiraClaudia Laport BorgesDalba Roberta Costa de DeusElen Maria de Souza FricheEliane Maris da SilvaEva de Fátima de Aquino PereiraGustavo Pires de PaulaGustavo WolffJosé Moraes JúniorJúlia Nascimento de OliveiraLuiza AlcântaraMaisa Cristina da SilvaMaíra de Castro BotelhoMaria Caram Santos de OliveiraMaria Goretti Gomide PinheiroMarlene de Souza SardinhaNatália Ribeiro de PaulaReginaldo Luiz CardosoRenata Santos SouzaRicardo de CristófaroRicardo MacêdoSuely Aparecida dos SantosTaís Freire de Andrade ClarkThaís MorThiago Vetromille Ribeiro GomesValéria Costa PintoValéria da Silva FreitasVanessa Camila da SilvaVanessa TamiettiVictor Hugo Tozarin dos SantosWagner PinaYuri Amaral

aLUNOS aPROVaDOS

Este livro foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte.

Fundação Municipal de Cultura

1065/2012

A7862015

Arte e espaço [recurso eletrônico] : uma situação política do século XXI / Natacha Rena, Bruno Oliveira, Maria Helena Cunha, orgs. – [ Belo Horizonte] : Duo Editorial, [2015].

1 recurso online (216p.) : il.ISBN: 978-85-62769-06-1Inclui bibliografia.Apresentado pela Fundação Municipal de Cultura.

1. Arte. 2. Arte e educação. I. Rena, Natacha. II. Oliveira, Bruno. III. Cunha, Maria Helena. CDD: 707