Unisa Direito Educacional e Etica

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Direito Educacional e Ética Sandra da Costa Lacerda Adaptada por Louis José Pacheco de Oliveira

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  • Direito Educacionale tica

    Sandra da Costa Lacerda

    Adaptada por Louis Jos Pacheco de Oliveira

  • APRESENTAO

    com satisfao que a Unisa Digital oferece a voc, aluno(a), esta apostila de Direito Educacional e tica, parte integrante de um conjunto de materiais de pesquisa voltado ao aprendizado dinmico e autnomo que a educao a distncia exige. O principal objetivo desta apostila propiciar aos(s) alunos(as) uma apresentao do contedo bsico da disciplina.

    A Unisa Digital oferece outras formas de solidificar seu aprendizado, por meio de recursos multidis-ciplinares, como chats, fruns, aulas web, material de apoio e e-mail.

    Para enriquecer o seu aprendizado, voc ainda pode contar com a Biblioteca Virtual: www.unisa.br, a Biblioteca Central da Unisa, juntamente s bibliotecas setoriais, que fornecem acervo digital e impresso, bem como acesso a redes de informao e documentao.

    Nesse contexto, os recursos disponveis e necessrios para apoi-lo(a) no seu estudo so o suple-mento que a Unisa Digital oferece, tornando seu aprendizado eficiente e prazeroso, concorrendo para uma formao completa, na qual o contedo aprendido influencia sua vida profissional e pessoal.

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  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................................................................ 5

    INTRODUO ............................................................................................................................................... 7

    1 TICA E MORAL ...................................................................................................................................... 91.1 A Perspectiva Social da Moral ..................................................................................................................................101.2 A Perspectiva Individual da Moral ..........................................................................................................................111.3 A Perspectiva Social e Individual da Moral .........................................................................................................121.4 Resumo do Captulo ....................................................................................................................................................131.5 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................14

    2 DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUO DA CIDADANIA .............................................................................................................................................. 15

    2.1 Resumo do Captulo ....................................................................................................................................................222.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................23

    3 TICA E CIDADANIA .......................................................................................................................... 253.1 Resumo do Captulo ....................................................................................................................................................283.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................28

    4 O PAPEL DA INSTITUIO ESCOLAR NA CONSTRUO DO JUZO MORAL DOS EDUCANDOS ........................................................................................................... 29

    4.1 Resumo do Captulo ....................................................................................................................................................384.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................39

    5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................... 41

    RESPOSTAS COMENTADAS DAS ATIVIDADES PROPOSTAS ..................................... 43

    REFERNCIAS ............................................................................................................................................. 47

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    Por que em um curso de Pedagogia temos uma disciplina dedicada ao estudo do Direito Educacio-nal e da tica? Por que os dois conceitos esto associados?

    Responder a tais questes remete-nos, novamente, questo essencial acerca de qual o papel da Educao na construo do mundo em que vivemos; remete-nos, ainda, busca do significado das noes do Bem, do Belo e do Verdadeiro, busca que acompanha o homem desde que este se percebeu um ser com capacidade de refletir.

    Esta disciplina coloca-se, neste curso, como uma possibilidade de sistematizao das ideias que temos discutido desde o primeiro mdulo em Filosofia.

    Tendo tais noes como norteadoras, discutiremos as ideias de tica e Moral e de como elas se aproximam ou se afastam; discutiremos, tambm, o conceito de Direito Educacional na perspectiva da construo da cidadania; a seguir, procuraremos relacionar tica e Cidadania e encerraremos o m-dulo problematizando o papel da instituio escola na construo do juzo moral dos educandos, voltada para uma cidadania que se guie pela tica e pelo respeito ao direito educacional.

    Esperamos que esse processo de sistematizao permita, a todos ns, um espao de amadureci-mento acerca das opes que profissionalmente temos que fazer a cada dia. Acreditamos que o proces-so de reflexo filosfica que permite a passagem do mundo infantil para o mundo adulto, tendo como limiar a possibilidade de pensamento abstrato. Como afirmam Aranha e Martins (1986, p. V), se a condi-o do amadurecimento a conquista da autonomia no pensar e no agir, muitos adultos permanecero crianas caso no exercitem, desde cedo, esse olhar crtico sobre si mesmo e sobre o mundo.

    acreditando na educao como mola propulsora da construo desse olhar crtico que esta dis-ciplina se coloca.

    APRESENTAO

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    Caro(a) aluno(a), discutir sobre tica no mundo contemporneo extremamente necessrio. E, se em outros setores da vida do trabalho esse tema se destaca, na educao ele notadamente impres-cindvel.

    Em nosso meio escolar encontramos diversas perspectivas morais, com inmeras representa-es de homem e de vida, e nos redescobrimos criando novas relaes. E, sem que se privilegie um lado ou uma perspectiva para olhar, no difcil perceber como no so muitos os que medem seus atos e se propem a zelar por um homem que tenha como princpio os verdadeiros pelo menos os que deveriam ser fins da vida. No h desculpas para quem escapa desse princpio. J desculpamos demais! Somos, sempre, responsveis por nosso atos, por nossas escolhas, por aquilo que julgamos e projetamos. Isso quer dizer que somos ns que construmos as relaes, que projetamos referncias, valores, uma potn-cia criadora ou que traga o fluxo denso de misria... humana.

    Olhar a tica o mesmo que se lanar criticamente sobre a moral, sobre a moral que nos cerca. Cer-tamente essa crtica inseparvel de certos elementos que balizam a noo mais primeva de tica, como metamoral e doutrina fundadora enunciando os princpios (RUSS, 1999).

    Assim, neste texto elaborado pelas professoras Aida Miranda e Sandra Lacerda , passamos por referncias de grandes filsofos que pensaram a moral: Kant, Hobbes, Montesquieu, Locke, Rousseau, pelo grande educador russo Lev Vygotsky etc., procurando conceber os fundamentos da tica e, ao mes-mo tempo, responder e pens-los agora, sobre o semblante do presente e todas as consequncias que a relativizao de certos valores tem provocado. Vamos ao estudo!

    Finalmente, desejamos que voc faa um excelente mdulo, que estude bastante e aprofunde seu conhecimento.

    Cordialmente,

    Prof. Louis J. P. de Oliveira

    INTRODUO

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    TICA E MORAL1

    Que o jovem no espere para filosofar, nem que o velho de filosofar se canse. Ningum, com efeito, ainda imaturo ou j est de-masiado maduro para cuidar da sade da alma. Quem diz no ter ainda chegado sua hora de filosofar ou j ter ela passado, fala como quem diz no ter ainda chegado ou j ter passado a hora de ser feliz.

    Epicuro, Carta a Menequeu

    Estamos sempre julgando quando olhamos as pessoas e as coisas. Emitimos opinies acerca de tudo: Este sapato feio! Alm disso, aperta meu dedo, no d para usar no trabalho. No vou compr-lo., O novo corte de cabelo da professo-ra fez com que ela se parecesse com um sapo!, Dias ensolarados me fazem feliz., O mundo se-ria melhor se todos cumprssemos com nossas obrigaes. Pois bem, quando emitimos nossas opinies, estabelecemos um juzo de valor. Emi-tir juzos de valor implica no reconhecimento da materialidade de algo e, concomitantemente, na percepo de que essa materialidade tem conte-dos que provocam nossa repulsa ou nossa atra-o.

    A repulsa ou a atrao que sentimos evoca valores que atribumos s coisas, valores esses re-lacionados utilidade, bondade, beleza.

    Toda vez que atribumos um valor a algo, fazemos isso estabelecendo algum tipo de com-parao. Para existir um processo de comparao, necessitamos de parmetros de anlise. Como es-tudamos em Filosofia, nossos parmetros de an-lise so construdos culturalmente medida que nos apropriamos (ou somos apropriados por?) de um sistema de significados j estabelecidos por outros.

    Assim, conforme atendemos ou transgredi-mos os padres socialmente estabelecidos, nos-sos comportamentos so avaliados como bons ou maus, e, quanto mais estamos imersos em um determinado padro de socializao, tam-bm avaliamos como bons os comportamentos alheios que se aproximam do padro cultural que incorporamos e como maus aqueles que dele se distanciam.

    As pessoas emitem juzos de valor referen-tes s mais diversas reas do existir humano; te-mos, ento, valores econmicos, vitais, lgicos, ticos, estticos, religiosos, polticos, educacio-nais, e, assim, sucessivamente, poderamos nos alongar infinitamente. Entretanto, nosso questio-namento maior nesta disciplina uma pequena pergunta: h valores universais, perenes, para alm do aqui e agora cultural?

    A tica a parte da Filosofia que se ocupa do estudo dos fundamentos da vida moral. Nes-ses termos, embora haja autores que discordem do nosso ponto de vista, poderamos afirmar que enquanto a tica se pergunta o que o bem e o mal, a Moral nos afirma o bem ... ou o mal ..., de-pendendo de onde se alicerce a anlise, quer seja

    Voc sabia que as prticas morais seguem o mo-delo de cada cultura e que, por isso, variam de lugar para lugar?

    CuriosidadeCuriosidade

  • Sandra da Costa Lacerda

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    na ordem csmica, como afirmava Epicuro,1 na vontade de Deus, como defendia So Toms de Aquino,2 ou em nenhuma ordem exterior pr-

    1 Epicuro vinculou de modo indito a fsica atomstica tica emancipadora: sua ideia central, resumo de todas as outras, a de que, compreendendo a ordem csmica como efeito mecnico do entrechoque dos tomos, nos libertamos do terror supersticioso e do temor da morte. Sua lio atravessou os sculos. Nela, reconhecemos a vocao iluminista do materialismo filosfico, isto , sua confiana na fora libertria das luzes do conhecimento. Cumpre ressaltar a permanncia histrica do vnculo ligando o princpio ontolgico de que o substrato ltimo de todas as coisas visveis e invisveis so partculas corpreas indivisveis e eternas cuja juno e separao no vazio infinito constroem e desconstroem os mundos que foram, so e sero ao princpio tico de que, exatamente por resultar do entrechoque mecnico dos tomos, o cosmos no contm nenhuma finalidade ou inteno imanente ou transcendente, natural ou divina. Para o pensador, a morte meramente a separao dos tomos que nos compem. No anuncia, portanto, nem castigos, nem recompensas para os homens. No devemos temer nem a morte e, menos ainda, as punies infernais inventadas pela ignorncia e pela superstio.2 So Toms de Aquino, em Questes discutidas sobre a Verdade, afirma que embora o ente, o verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que nas coisas criadas, no necessrio que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas criaturas se distingam tambm realmente. Isso acontece com aquelas coisas que pelo seu prprio conceito no se identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus constituam uma s coisa, nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom e o uno, pelo seu conceito se identificam. Da que, onde quer que se encontrem concretizados, constituem realmente uma s coisa, embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram em Deus do que quando se encontram nas criaturas.3 Sartre, em O existencialismo um humanismo, afirma que o existencialista, pelo contrrio, pensa que muito incomodativo que Deus no exista. [...] O existencialista no pensar tambm que o homem pode encontrar auxlio num sinal dado sobre a terra, e que o h de orientar; porque pensa que o homem decifra, ele mesmo, esse sinal como lhe aprouver. [...] Mas se verdadeiramente a existncia precede a essncia, o homem responsvel por aquilo que . Assim, o primeiro esforo do existencialismo o de pr todo homem de posse do que ele e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existncia. E, quando dizemos que o homem responsvel por si prprio, no queremos dizer que o homem responsvel por sua estrita individualidade, mas que responsvel por todos os homens.

    pria conscincia humana, de acordo com a pers-pectiva existencialista.3

    Na luta humana para sobrepujar os limites impostos pela Natureza, o comportamento varia de local para local, de poca para poca.

    O antroplogo Lvi-Strauss apontou, a par-tir de seus estudos com comunidades primitivas, que a passagem do modo de vida animal para o modo de vida humano se d por meio da introdu-o da proibio do incesto nessas comunidades, o que cria as relaes de parentesco, construin-do o primeiro patamar do mundo simblico, da cultura. Ao lado da interdio, aparece a figura da sano ao transgressor; seja o banimento ou a coero fsica, h sempre o uso da represso pela fora.

    Na mesma linha, Durkheim apontava que, nas comunidades primitivas, regidas pela solida-riedade mecnica, o ato infratrio tem uma puni-

    1.1 A Perspectiva Social da Moral

    o mais severa do que nas sociedades com ele-vada diviso do trabalho organizada por meio da solidariedade orgnica.

    AtenoAteno

    Assim, h uma moral constituda, exterior ao ho-mem, que orienta seu comportamento, deter-minando o que moral ou imoral em um deter-minado tempo e espao, para um determinado grupo de homens, que tm uma dependncia mtua e que precisam acordar normas de traba-lho coletivo a fim de garantir a sobrevivncia do grupo.

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    Cada vez que as relaes de produo so alteradas, surgem modificaes nas exigncias das normas do comportamento coletivo.4

    4 Marx foi brilhante ao descrever esse processo de alterao nos quatro estgios dos modos de produo comunismo pri-mitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo e a moral social vigente em cada um deles.5 Emanuel Kant nasceu em Knigsberg (Prssia), em 22 de abril de 1724. Alguns autores viram certo significado no fato de seu pai ser de descendncia escocesa e supuseram ser esta a causa da parcialidade com que o filsofo se ocupou, mais tarde, dos pensadores daquele pas. Do nosso ponto de vista, parece mais importante a atmosfera pietista na qual o jovem Kant foi criado pelos pais pietismo que constitua uma reao contra o protestantismo dogmtico e que realava o valor da exaltao do esprito, confiana nas boas intenes, mais do que cincia teolgica e indagar se isso no corresponde ao papel que essa religio desempenhou no pensamento do filsofo. Alm disso, sua me parece ter exercido uma grande influncia sobre ele, fazendo-o partilhar dos seus sentimentos acerca da natureza e associar esse fato com a tentativa que ele fez de combinar sua crena religiosa com sua admirao pelos fenmenos csmicos.

    No entanto, dialeticamente, a interdio traz em si o germe da transgresso, quando os valores individuais contrapem-se aos coletivos. H, pois, uma moral individual que se contrape histrica e social.

    A ordem social pressupe que a moral, ao mesmo tempo que o conjunto de regras que determina como deve ser o comportamento dos indivduos em um grupo, deve, tambm, ser livre e conscientemente aceita pelos indivduos que a ele pertencem.

    em tal contradio que muitas vezes se funda a angstia individual do existir, pois faz par-te do processo de individuao o questionamen-to dos valores herdados.

    Nesse sentido, um ato s propriamente moral se se fundar na aceitao pessoal da norma. Como afirmam Aranha e Martins (1986, p. 37), exterioridade da moral contrape-se a necessida-de da interioridade, da adeso mais ntima.

    Kant5 afirmava que o valor do homem no reside apenas na luz da sua inteligncia, mas an-tes, e acima de tudo, no sentimento, na intimida-

    1.2 A Perspectiva Individual da Moral

    de e na profundidade da alma, onde a adeso norma deve se processar. Para ele, o grande nor-teador seria a dignidade do homem por ser do-tado de personalidade, ou seja, a dignidade da pessoa humana.

    Nesse sentido, mais do que por uma moral circunstancializada, para Kant, o homem deve guiar-se por princpios.

    A verdadeira virtude s pode plantar-se em princpios, e, quanto mais universais estes, mais nobre e elevada se torna aque-la. O sentimento tico o sentimento da beleza e da dignidade da natureza huma-na. Defendo a crena na superioridade de um princpio tico dirigente sobre todas as outras faculdades do homem. (KANT, 1764/1993, p. 81).

    Na encruzilhada da aceitao e da contes-tao forma-se o juzo moral. Cada um sabe, por experincia pessoal, o quanto difcil aceitar nor-mas que se sabe serem ultrapassadas, obsoletas; entretanto, sabe, tambm, como difcil promo-ver a mudana dessas mesmas normas.

    As contradies entre o velho e o novo so vividas quando as relaes estabelecidas entre os homens exigem um novo cdigo de conduta.

    No YouTube voc encontra vrios filsofos dis-cutindo tica. Em especial, recomendo o pro-grama gravado pela Futura Tec, com o professor da USP Renato Janine Ribeiro.

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    Essas mesmas contradies se pem no plano pessoal, como nos apontavam os existencialis-tas. A singularidade do ato moral coloca-nos em situaes nicas, em que s o indivduo livre e responsvel capaz de decidir so as chamadas situaes limites, em que regra alguma capaz de orientar a ao.

    Como exemplo, podemos citar a reflexo de Kohlberg (1991) acerca do perodo ps II Guerra Mundial, quando se engajou no transporte ilegal de sobreviventes do holocausto para a Palestina, ento sob domnio britnico:

    [...] Nosso navio foi capturado pela mari-nha britnica, assim como havia sido seu antecessor, o Exodus, celebrado no livro e no filme de Leon Uris.

    A marinha britnica e os fuzileiros usaram gs lacrimogneo, vapor e abriram cami-nho para a sala de direo e sala das m-quinas e pararam o navio. Vrios bebs morreram, embora os ingleses tivessem tentado no usar violncia desnecessria. Eu, meus companheiros e os refugiados fomos levados para um campo de con-centrao em Chipre. A Hagenah ajudou--nos a escapar para a Palestina fornecen-do-nos documentos falsos. Eu e alguns companheiros de tripulao ficamos em um kibutz ou acampamento coletivo at que fosse seguro deixarmos o pas com documentos falsos e pegar outro navio da Amrica para a Europa, e de l para a Palestina; um navio que se tornou da marinha na guerra de independncia de Israel contra os estados rabes, em 1948.

    Minhas experincias com imigrao ile-gal em Israel levantaram todo tipo de questes morais, que eu via como ques-tes de justia. Era certo ou justo usar a morte e a violncia para um fim poltico? Enquanto os bebs morriam e os adultos iam para um campo de concentrao, os objetivos da Hagenah eram polticos, tra-tava-se de presses internacionais sobre os britnicos, para abandonarem a Pales-tina. Quando permissvel envolver-se com meios violentos para obter fins su-postamente justos?

    Esse tatear ao redor de questes de jus-tia era mesclado por um hedonismo e relativismo adolescentes a respeito das exigncias da sociedade sobre mim, seja a sociedade norte-americana, seja a isra-elense. O kibutz israelense representava ideais de justia social que eu tinha de admirar, mas estaria eu obrigado a segui--los, ou poderia viver de acordo com as demandas mais familiares e mais fceis de minha terra natal, os Estados Unidos? Ao final, essas questes se tornaram questes de relativismo tico. Havia uma moralidade universal ou toda escolha moral era relativa, dependente da cultu-ra ou da escolha pessoal e emocional de cada pessoa? (KOHLBERG, 2002, p. 92-93).

    Como vimos, o aumento do grau de consci-ncia e de liberdade e, portanto, de responsabili-dade pessoal no comportamento moral, introduz um elemento contraditrio que ir, o tempo todo, angustiar o homem; o ser e o dever-ser na contra-posio social X individual.

    Evitando-se, por um lado, o extremado le-galismo e dogmatismo e, por outro, um exacer-bado individualismo, h que se colocar esses dois polos contraditrios em uma relao dialtica, ou seja, uma relao de aproximao dos contrrios de forma a abarcar a aceitao e a recusa da nor-ma constituda.

    1.3 A Perspectiva Social e Individual da Moral

    Como algum que se cria em um universo cultural e que, por outro lado, produz cultura, o homem s ter uma vida autntica quando for capaz de, ante o constitudo, propor uma moral constituinte, isto , a que se faz penosamente por meio da experincia vivida.

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    Se no podemos negar o carter histrico da formao da moral, tambm no precisamos aceitar que a Histria se faz em um movimento de continusmo; preciso abrir espao para ruptu-ras quando estas se fizerem necessrias. Cumpre buscar o preciso distanciamento daquilo que nos circunstancializa, de modo a entender o passado que consubstanciou o presente que vivemos, para reassumi-lo ou recus-lo. Ser um ser histrico no se limita continuidade no tempo, mas consci-ncia ativa do futuro, por meio da elaborao de um projeto de ao que, se necessrio, possa mu-dar o institudo.

    Resumindo a distino que procuramos tra-ar neste tema entre tica e Moral, poderamos afirmar que, enquanto a tica trata dos princpios, dos imperativos categricos,6 como afirmou Kant, do dever-ser; a Moral trata dos fatos, daquilo que , do acontecido, ou seja, dos atos humanos que

    se realizam efetivamente no tempo e no espao; a Moral trata, portanto, do ser.

    Assim, enquanto a Moral diz respeito ao conjunto de princpios, crenas e regras que orientam o comportamento dos indivduos nas diversas sociedades, a tica ocupa-se da reflexo crtica acerca da Moral.

    6 Como muitos outros filsofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se em um princpio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigaes. Chamou a este princpio de imperativo categrico. Na Fundamentao da Metafsica dos Costumes (1785), exprimiu-o desta forma: Age apenas segundo aquela mxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal. No entanto, Kant deu igualmente outra formulao do imperativo categrico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princpio moral essencial afirma o seguinte: Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim, e nunca apenas como um meio.

    AtenoAteno

    Utilizamos a expresso ser, neste contexto, na acepo do verbo de ligao, como sinnimo de estar, ou seja, na dimenso de contextualizao temporal. A palavra ser no deve, nesta discus-so, ser confundida com o ser, substantivo, cujo significado se liga essncia, tendo, portanto, a conotao de permanncia atemporal.

    1.4 Resumo do Captulo

    Neste captulo, problematizamos as noes de tica e moral a tica, como a parte da Filosofia que se ocupa do estudo dos fundamentos da vida moral; e a moral, como o conjunto de princpios que orien-ta nosso comportamento. Observamos que a moral relaciona-se diretamente com a perspectiva social, ou seja, que ela varia de lugar para lugar, de cultura para cultura, e incide sobre os homens, tanto no seu aspecto individual quanto social.

    Assista ao filme Fora de Contro-le, do diretor Robert Mitchel. Ele conta a histria de um advogado e um desempregado que, ao se encontrarem, estaro diante de grandes dilemas morais. Vale a pena!

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    1.5 Atividades Propostas

    1. Por que to importante refletir sobre a tica?

    2. A partir da reflexo proposta por L. Kohlberg, possvel estabelecer que, em situaes limites, pode ocorrer a relativizao da tica? Explique.

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    Jamais suportaremos que todas as coisas e que todos os servios sejam produzidos de forma

    automtica, que no sejam seno produzidos, que nada se situe fora das leis do mercado e das regras do Estado. Teremos, sempre, necessidade de fazer com que as coisas se articulem de uma

    outra maneira, de fazer passar as coisas pela ddiva.

    Jacques T. Godbout

    Compreendendo cidadania como a quali-dade de cidado, e cidado como o habitante da cidade, com pleno gozo de seus direitos civis e polticos, cumpre-nos discutir quais seriam esses direitos.

    DIREITO EDUCACIONAL NA PERSPECTIVA DA CONSTRUO DA CIDADANIA

    2

    A ideia de que o homem, pela sua prpria natureza humana, pudesse dispor de certos di-reitos a ela inerentes e em oposio ao poder do Estado no era aceita pelos juristas e pensadores polticos da Grcia Antiga. A noo de direito in-dividual, como o entendemos nas democracias modernas, no existia nas prticas dos gregos e dos romanos. O indivduo, na sociedade greco--romana, afirmava e garantia a sua personalidade conforme se inseria na coletividade social, ou no aparelho estatal. Scrates, por exemplo, preferiu aceitar a injusta condenao morte a fugir da deciso de seus compatriotas.

    Foi, provavelmente, com o cristianismo que surgiu a necessidade de certas prerrogativas que limitem o poder poltico nas suas relaes com a pessoa humana.

    A certeza de uma vida ps-morte, de um destino sobrenatural do homem, acabou levan-do os cristos a duas posies aparentemente contraditrias, mas que no fundo eram comple-mentares. Por um lado, reverenciavam o poder temporal que acreditavam emanar de Deus, no reivindicando direitos polticos, e, por outro lado, resistiam at a morte s tentativas do Estado de imiscuir-se no que constitua o domnio espiritual.

    O castigo resultante dessa resistncia era alegre-mente suportado, pois o martrio era visto como um caminho para a salvao, imitao do com-

    DicionrioDicionrio

    Direito: Um direito uma pretenso legtima a uma coisa. Se as pessoas tm direitos morais, ento errado priv-las daquilo a que elas tm direito para benefcio dos outros. Por exemplo, se as pessoas tm o direito vida, no se pode assassinar uma pessoa para salvar outras. Os direitos impem li-mites quilo que permissvel fazer em nome da felicidade geral ou do bem comum.

    Para conhecer um pouco mais do pensamento e da moral socrticas, uma boa sugesto o filme do diretor italiano Roberto Rossellini, Scrates. O filme aborda o final da vida de Scra-tes, em especial seu julgamento e sua condenao morte.

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    portamento de Cristo.

    Nesses termos, esse domnio espiritual im-penetrvel pelo Estado foi a primeira manifesta-o histrica de afirmao do homem, pelo fato de ser homem, dispor de certos direitos oponveis coletividade estatal em que se integrava e no aos seus semelhantes individualmente, ou seja, tratava-se da oposio entre direito privado e di-reito pblico. O fundamento de tal direito era afir-mado pelos cristos na transcendncia da organi-zao poltica histrica, a plis, pela eternidade; a Cidade de Deus.

    Entretanto, essa colocao do problema no o afastava do campo jurdico, j que o jurdi-co regulamenta o poltico. Assim, por sua natural evoluo, foi o Estado moderno que elaborou a teoria jurdica dos direitos humanos, como con-sequncia de circunstncias histricas, e no de concepes religiosas, sobretudo no princpio das chamadas leis fundamentais do reino, que ga-rantiam os privilgios de certas classes sociais, ou atividades profissionais, at mesmo contra o po-der da coroa.

    No toa que um dos significados pos-sveis de serem atribudos palavra cidade refgio, rea urbana especialmente reservada para asilar pessoas que cometeram delitos invo-

    luntrios; ficavam elas a salvo da perseguio dos vingadores e podiam ser julgadas por represen-tantes autorizados da sociedade. (ENCICLOPDIA MIRADOR, 1981, p. 415).

    A plena caracterizao dos direitos huma-nos, inicialmente filosfica e posteriormente jur-dica, foi feita a partir dos escritos de John Locke, na Idade Moderna. Locke,7 Montesquieu8 e Rous-seau9 devem ser mencionados como os autores que mais contriburam para a sistematizao do pensamento sobre a doutrina dos direitos pbli-cos individuais, na fase inicial da jurisprudncia poltica.

    Locke considerava que apenas o pacto tor-nava legtimo o poder do Estado. Se no estado na-tural os homens eram livres, iguais e independen-tes, o que os faria abdicar desse estado para viver em sociedade, delegando poder para outrem? O autor apontava que, no estado natural, cada um era juiz de sua prpria causa, fazendo com que os riscos das paixes e da parcialidade fossem muito grandes, o que poderia desestabilizar as relaes entre os homens. Nesses termos e visando se-gurana e tranquilidade necessrias ao gozo da propriedade, as pessoas consentiram a instituio do corpo poltico, como regulador das relaes entre os homens. No entanto, os direitos naturais

    7 John Locke (Wringtown, 29 de agosto de 1632 Harlow, 28 de outubro de 1704) foi um filsofo do predecessor Iluminismo cujas noes de governo com o consentimento dos governados, e os direitos naturais do homem (vida, liberdade e propriedade) tiveram uma enorme influncia nas modernas revolues liberiais: Revoluo Inglesa, Revoluo Americana e na fase inicial da Revoluo Francesa, oferecendo-lhes uma justificao da revoluo e a forma de um novo governo. Para fins didticos, Locke costuma ser classificado entre os Empiristas Britnicos, junto com David Hume e George Berkeley, principalmente por sua obra relativa a questes epistemolgicas. Em cincia poltica, costuma ser enquadrado na escola do direito natural ou jusnaturalismo.8 O aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bred e Baro de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689, perto de Bordeaux, na Frana, e faleceu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Poltico, filsofo e escritor francs, filho de uma famlia nobre, ficou famoso pela sua teoria da separao dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituies nacionais. Teve formao iluminista com padres oratorianos, de modo que cedo se mostrou um crtico severo e irnico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Montesquieu escreveu vrias obras, como Cartas Persas (1721), Consideraes sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadncia (1734) e O Esprito das Leis (1748). Ganhou notoridade e exerceu notvel influncia. Contribuiu tambm para a Enciclopdia e foi uma das maiores figuras do Iluminismo.

    9 Jean-Jacques Rousseau (28 de junho de 1712, Genebra 2 de julho de 1778, Ermenonville, perto de Paris) foi um filsofo suo, escritor, terico poltico e um compositor musical autodidata. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francs, Rousseau tambm um precursor do Romantismo. Foi uma das principais inspiraes ideolgicas da segunda fase da Revoluo Francesa a ltima das revolues modernas, e que deu incio a um longo perodo de terror e instabilidade poltica, que acabaria por levar ditadura de Napoleo. Do Contrato Social, de sua autoria, inspirou muitos dos revolucionrios e regimes nacionalistas e opressivos subsequentes a esse perodo, por toda a Europa continental. Inspirados nas ideias de Rousseau, os revolucionrios defendiam o princpio da soberania popular e da igualdade de direitos.

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    do homem no desaparecem em consequncia desse consentimento, mas subsistem para limitar o poder do soberano, justificando, em ltima ins-tncia, o direito insurreio.10

    Montesquieu elaborou uma teoria poltica, que aparece em sua obra mais famosa, O Esprito das Leis (1748), inspirada em Locke e no estudo das instituies polticas inglesas. Nela, ele discu-tiu as instituies e as leis e buscou compreender as diversas legislaes existentes em diferentes lugares e pocas. A obra inspirou os redatores da Constituio Francesa de 1791 e tornou-se a fonte das doutrinas constitucionais liberais, que repou-sam na separao dos poderes legislativo, exe-cutivo e judicirio. O que Montesquieu descreve como esprito geral de uma sociedade aparece como resultante de causas fsicas (o clima), causas morais (costumes, religio...) e as mximas de um governo.11 Modernamente, seria o que chamamos de uma identidade nacional que se constitui con-forme os fatores citados anteriormente.

    As mximas descritas dizem respeito, se-gundo o prprio autor, aos tipos e aos concei-tos que dariam conta daquilo que as causas no abrangem. Seriam o princpio e a natureza de um governo.

    Natureza: aquilo que faz um governo ser o que , determinado pela quanti-dade daqueles que detm a soberania.

    10 No necessrio, tampouco conveniente, que o poder legislativo esteja sempre reunido; mas absolutamente necessrio que o poder executivo seja permanente, visto como nem sempre h necessidade de elaborar novas leis, mas sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas. Quando o legislativo entregou a execuo das leis que fez a outras mos, ainda tem o poder de retom-la, se houver motivo, e de castigar por qualquer m administrao contra as leis. (LOCKE, 1979, p. 101).

    11 As leis escritas ou no, que governam os povos, no so fruto do capricho ou do arbtrio de quem legisla. Ao contrrio, decorrem da realidade social e da histria concreta prpria ao povo considerado. No existem leis justas ou injustas. O que existe so leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e a uma determinada circunstncia de poca ou lugar. (MONTESQUIEU, 2005).

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    Se os soberanos romperem com o pacto de con-fiana neles depositado, se no visarem ao bem pblico, perdem o direito de governar, sendo permitido aos governados retir-los do poder e substitu-los por outros mais dignos da confiana do povo.

    Princpio: o que pe esse governo em movimento, o princpio motor em lin-guagem filosfica, constitudo pelas paixes e necessidades dos homens.

    Montesquieu distingue trs formas de go-verno: Repblica, Monarquia e Despotismo. Os tipos de governos e suas mximas:

    Repblica: soberania nas mos de mui-tos (de todos = democracia; de alguns = aristocracia) princpio a virtude.

    Monarquia: soberania nas mos de um s, segundo leis positivas princpio a honra.

    Despotismo: soberania nas mos de um s, segundo o arbtrio deste prin-cpio o medo.

    Apesar de beber na fonte dos clssicos (no-tadamente Aristteles), seu esquema de governo diverso do daqueles. Montesquieu, ao conside-rar democracia e aristocracia um mesmo tipo e falar do despotismo como um tipo em si, e no a corrupo de outro (da monarquia, no caso), mostra-se mais preocupado com a forma com que ser exercido o poder: se segundo leis ou no.

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    Para Montesquieu, a forma republicana de governo s seria vivel em regies pequenas, como as cidades gregas da Antiguidade e as ci-dades italianas da Idade Mdia. Para os grandes Estados, s seria possvel o despotismo (absolu-tismo) e as monarquias. Ele simpatizava com a monarquia constitucional (liberal) moda ingle-sa, e foi a partir de uma viagem Inglaterra que elaborou a sua teoria da separao dos trs po-deres.

    Ao procurar descobrir as relaes que as leis tm com a natureza e o princpio de cada governo, Montesquieu desenvolveu uma teoria de gover-no que alimentava as ideias fecundas do constitu-cionalismo, pelo qual se busca distribuir a autori-dade por meios legais, de modo a evitar o arbtrio e a violncia. Tais ideias se encaminham para a melhor definio da separao dos poderes, ain-da hoje uma das pedras angulares do exerccio do poder democrtico.

    Montesquieu admirava a constituio in-glesa, mesmo sem compreend-la completa-mente, e descreveu cuidadosamente a separao dos poderes em Executivo, Judicirio e Legislati-vo, trabalho que influenciou os elaboradores da constituio dos Estados Unidos.

    O poder executivo seria exercido por um rei, com direito de veto sobre as decises do parla-mento.

    O poder judicirio no era nico, porque os nobres no poderiam ser julgados por tribunais populares, mas s por tribunais de nobres; por-tanto, Montesquieu no defendeu a igualdade de todos perante a lei.

    O poder legislativo, convocado pelo execu-tivo, deveria ser separado em duas casas: o corpo dos comuns, composto pelos representantes do povo, e o corpo dos nobres, formado por nobres, hereditrio e com a faculdade de impedir (vetar) as decises do corpo dos comuns. Essas duas ca-sas teriam assembleias e deliberaes separadas, assim como interesses e opinies independentes. Refletindo sobre o abuso do poder real, Montes-quieu conclui que s o poder freia o poder, da a necessidade de cada poder manter-se autnomo e constitudo por pessoas e grupos diferentes.

    bem verdade que a proposta da diviso dos poderes ainda no se encontrava em Mon-tesquieu com a fora que posteriormente lhe foi atribuda. Em outras passagens de sua obra, ele no defendeu uma separao to rgida, pois o que ele pretendia, de fato, era realar a relao de foras e a necessidade de equilbrio e harmonia entre os trs poderes.

    Montesquieu no era um revolucionrio. Sua opo social ainda era por sua classe de ori-gem, a nobreza. Ele sonhava apenas com a limi-tao do poder absoluto dos reis, pois era um conservador, que queria a restaurao das monar-quias medievais e o poder do Estado nas mos da nobreza. As convices de Montesquieu tiveram origem na sua classe social e, portanto, aproxima-vam-no dos ideais de uma aristocracia liberal. Ou seja, ele criticava toda forma de despotismo, mas no apreciava a ideia de o povo assumir o poder. Sua crtica, no entanto, serviu para desencadear a Revoluo Francesa e instaurar a repblica bur-guesa.

    Um bom filme para apresentar os modos da nobreza tradicional O Outro Lado da Nobreza, do diretor Mi-chael Hoffman. Ambientando em 1660, o filme mostra a vida na corte de Charles II. Ao mesmo tempo, apre-senta uma Londres com seus palcios luxuosos e as suas ruas insalubres.

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    Rousseau, por sua vez, e como seus an-tecessores Hobbes12 e Locke, desenvolveu seu pensamento a partir da hiptese do homem em estado natural e procurou resolver a questo da legitimidade do poder nascido do contrato social. Sua posio foi, contudo, inovadora, pois distin-guiu os conceitos de soberano e de governo, atri-buindo ao povo a soberania inalienvel.

    Rousseau descrevia de forma nostlgica o estado feliz em que o homem vivia no contato direto com a Natureza e denunciava o carter de desigualdade social introduzido pela proprieda-de privada, diferenciando rico e pobre, poderoso e fraco, senhor e escravo, at a predominncia da lei do mais forte.13 Para ele, o homem que surge, ento, um homem corrompido pelo poder e es-magado pela violncia; trata-se, nesse sentido, de um falso contrato social, que coloca o homem sob grilhes. O que Rousseau defendia era um verda-deiro contrato, no qual o povo estivesse reunido sob uma s vontade.

    Nessa medida, o contrato deveria originar--se do consentimento, que, por sua vez, deveria

    ser unnime. Cada cidado deveria abdicar de todos os seus direitos em favor da comunidade, mas, como todos abdicariam igualmente, nin-gum perderia nada, pois,

    [...] este ato de associao produz, em lu-gar da pessoa particular de cada contra-tante, um corpo moral coletivo composto de tantos membros quantos so os votos da assemblia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. (ROUSSEAU, 1979b, p. 33).

    Nesses termos, o homem abdica de sua li-berdade pelo pacto social, mas como faz parte do todo social, ao obedecer lei, obedece a si pr-prio, sendo, consequentemente, livre. Na concep-o do autor, o contrato social no faz o indivduo perder sua soberania, pois no institui um Estado separado de si mesmo, j que

    o ato pelo qual o povo institui um go-verno no o submete a ele. Ao contrrio,

    12 Thomas Hobbes (Malmesbury, 5 de abril de 1588 Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679) foi um matemtico, terico poltico e filsofo ingls, autor de Leviat (1651) e Do cidado (1651). Na obra Leviat, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de governos e sociedades. No estado natural, embora alguns homens possam ser mais fortes ou mais inteligentes do que outros, nenhum se ergue to acima dos demais por forma a estar alm do medo de que outro homem lhe possa fazer mal. Por isso, cada um de ns tem direito a tudo, e uma vez que todas as coisas so escassas, existe uma constante guerra de todos contra todos (Bellum omnia omnes). No entanto, os homens tm um desejo, que tambm em interesse prprio, de acabar com a guerra, e por isso formam sociedades entrando em um contrato social.

    Leviat um monstro bblico cruel e invencvel que simboliza, para Hobbes, o poder do Estado absoluto. Seu corpo constitudo de inmeras cabeas e ele empunha os smbolos dos dois poderes, o civil e o religioso.

    De acordo com Hobbes, a sociedade necessita de uma autoridade qual todos os seus membros devem render o suficiente da sua liberdade natural, por forma a que a autoridade possa assegurar a paz interna e a defesa comum. Esse soberano benevolente, quer seja um monarca ou um estado administrativo, deveria ser o Leviat, uma autoridade inquestionvel. A teoria poltica do Leviat mantm no essencial as ideias de suas duas obras anteriores, Os elementos da lei e Do cidado (em que tratou a questo das relaes entre Igreja e Estado).

    Thomas Hobbes defendia a ideia segundo a qual os homens s podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. Para ele, a Igreja crist e o Estado cristo formavam um mesmo corpo, encabeado pelo monarca, que teria o direito de interpretar as Escrituras, decidir questes religiosas e presidir o culto. Nesse sentido, critica a livre interpretao da Bblia na Reforma Protestante por, de certa forma, enfraquecer o monarca.13 Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rsticas, enquanto se limitaram a costurar com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitar-se com plumas e conchas, a pintar o corpo com vrias cores, a aperfeioar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudas algumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de msica em uma palavra: enquanto s se dedicavam a obras que um nico homem podia criar e a artes que no solicitavam o concurso de vrias mos, viveram to livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza, e continuaram a gozar entre si das douras de um comrcio independente; mas, desde o instante em que um homem sentiu necessidade de socorro de outro, desde que percebeu ser til a um s contar com provises para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessrio e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazveis que se imps regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravido e a misria germinarem e crescerem com as colheitas. (ROUSSEAU, 1979a).

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    no h um superior ao povo, pois os de-positrios do poder no so os senho-res do povo, mas seus oficiais, e o povo pode eleg-los e destitu-los quando lhe aprouver. Os magistrados que consti-tuem o governo apenas executam as leis, estando subordinados ao poder de deci-so do soberano.

    O soberano o povo incorporado, o corpo coletivo que expressa atravs da lei, a vontade geral. A soberania do povo, manifesta pelo legislativo, inalienvel, ou seja, ela no pode ser representada. A democracia rousseauniana critica o re-gime representativo, pois considera que toda lei no ratificada pelo povo em pes-soa nula. Da preconizar a democracia participativa ou direta. S se mantm a soberania do povo atravs de assem-blias freqentes de todos os cidados. (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 257).

    Todas essas ideias fervilhavam no continen-te europeu no sculo XVIII e acabaram por dar corpo s reivindicaes burguesas, que culmina-ram com a revoluo Francesa em 1789. O iderio da revoluo incorporou o sistema dos direitos humanos ao direito constitucional moderno.

    A primeira diviso dos direitos naturais pro-posta pela teoria do direito constitucional foi en-tre direitos naturais e direitos civis:

    Direitos naturais correspondiam crena na existncia pr-social de um estado natural do homem e procura-vam garantir as faculdades primordiais com que a Natureza caracterizara o ho-mem: liberdade pessoal, de religio, de pensamento.

    Direitos civis corresponderiam evo-luo do homem do estado natural para o estado social, evoluindo-se para um conceito de liberdade civil, mais restrita que a liberdade individual, j que os seus limites coincidiam com os da liberdade de outros homens.

    Kant foi um dos primeiros a exprimir, em termos definitivos, essa noo de liberdade civil

    do indivduo, limitada dentro do Estado pela li-berdade dos outros indivduos, ao propor, no seu livro Crtica da Razo Prtica (1788), a existncia de uma lei interior a ser regida pelos imperativos categricos.

    Nessa obra de importncia capital, tanto pela evoluo intelectual do autor como pelo lu-gar que ocupa na histria do pensamento huma-no, Kant atribui tica a finalidade de descobrir e revelar o princpio que a razo do homem prtico a razo prtica usa sem o conhecer.

    Essa teoria jurdica dos direitos humanos, caracterizada, a princpio, pela diferena entre di-reitos naturais e direitos civis, teve a sua primeira concretizao em sentido amplo com a Declara-o de Direitos inglesa (Bill of Rights), que, como vi-mos, influenciou o pensamento de Montesquieu j em 1689, cem anos antes da Revoluo France-sa. Por essa lei, foram introduzidas, na Inglaterra, vrias medidas que, mais tarde, se tornariam parte do regime democrtico, tais como eleies livres para o parlamento, liberdade de debates dentro dele, supresso de penalidades cruis, proibio de encargos fiscais sem autorizao legislativa; contudo, ainda, os direitos dos indivduos apare-ciam de forma reflexa, como decorrncia dos de-veres impostos Coroa, isto , ao Estado.

    Foi somente aps a independncia dos Es-tados Unidos, com as constituies escritas dos Estados na nova federao, que as Declaraes de Direitos, inseridas nesses documentos, adqui-riram o carter de relao de direitos oponveis aos do Estado e de que todos os cidados eram sujeitos de direitos.

    Como exemplo, a Constituio da Virgnia, de 1776 (Virginias 1776 Declaration of Rights), diz expressamente:

    AtenoAteno

    Na constituio da ideia de cidadania deve-se partir, pois, do princpio de que a teoria jurdica dos direitos humanos se caracteriza pela sua re-latividade em relao aos prprios homens, mas no em relao ao Estado.

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    [...] todos os homens so naturalmente livres e independentes e dispem de cer-tos direitos, dos quais, quando entram em estado social, eles no podem, por nenhum ttulo, privar os seus descen-dentes; notadamente o gozo da vida e da liberdade, a aquisio e manuteno da propriedade, e a procura de segurana e felicidade.

    Com esse documento legal, os direitos hu-manos adquiriam, pela primeira vez, forma posi-tiva, ficando superada a fase em que eles decor-riam implicitamente de limitaes impostas ao arbtrio do Estado.

    Essas ideias foram ratificadas na emenda constitucional americana de 1791, que inclua na Constituio dos Estados Unidos uma Declarao de Direitos. Em resumo, tal emenda contm as seguintes disposies: liberdade de religio, de palavra, de imprensa, de reunio e de petio, di-

    reito a julgamento legal e pblico, proibio de penalidades cruis.

    O ano de 1791 foi tambm o de promul-gao da Constituio Francesa ps-revoluo. A Assembleia Nacional, na qual se transformara a reunio dos Estados Gerais, nomeou, em 6 de julho de 1789, uma comisso especial incumbida de preparar o projeto da Constituio. No dia 14 (data da queda da Bastilha), a Assembleia decidiu que a Constituio deveria ter uma Declarao de Direitos do Homem e do Cidado (Dclaration des droits de lhomme et du citoyen), que, votada em 1789, figura como prembulo da Constitui-o Francesa de 1791. Composta de 17 artigos, contm, basicamente, as seguintes disposies: princpio de isonomia (igualdade perante a lei), li-berdade pessoal, de opinio, de religio, de impren-sa, justia fiscal, separao de poderes e direito de propriedade.

    A partir desses textos precursores, as decla-raes de direitos tornaram-se comuns nas cons-tituies do mundo ocidental, no decorrer do sculo XIX. A importncia adquirida por elas foi to grande que o direito constitucional clssico considerava que as leis fundamentais continham, essencialmente, duas partes: uma, destinada definio dos poderes e ao seu funcionamento, e outra, destinada aos direitos e s garantias indivi-duais.

    No Brasil, a definio de Rui Barbosa, do s-culo XIX, a respeito da cincia jurdica e dos direi-tos e garantias individuais, antolgica:

    Uma coisa so garantias constitucionais, outra coisa os direitos que essas garantias traduzem, em parte, a condio de segu-

    rana, poltica ou judicial. Os direitos so aspectos, manifestaes da personalida-de humana em sua existncia subjetiva, ou nas suas situaes de relaes com a sociedade, ou os indivduos que a com-pem. As garantias constitucionais, stric-to sensu, so as solenidades tutelares, de que a lei circunda alguns desses direitos contra os abusos de poder (1893, p. 164).

    Esclarecendo seu pensamento, Rui Barbosa apresentava o quadro dos direitos individuais de-finidos e das respectivas garantias asseguradas, de forma a tornar facilmente apreensvel o carter complementar da garantia em relao ao direito. Um exemplo clssico de direito individual e de sua garantia o da liberdade pessoal e do recurso do habeas corpus.

    Assista ao filme Danton O processo da Revoluo, do diretor francs Adrzej Wajda. Trata-se de um belo filme sobre a Revoluo Francesa, que mostra as divergncias e os confrontos entre seus dois lderes, Danton e Robespierre.

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    As transformaes sociais trazidas pela evo-luo da economia e dos meios de produo fo-ram alterando, na teoria do direito constitucional, as concepes clssicas dos direitos individuais. A interveno crescente do Estado em todos os setores da vida coletiva determinou uma srie de novas regras jurdicas em que o indivduo era me-nos visado do que o grupo, ou seja, aos direitos individuais do Estado Liberal foram sendo acres-cidos certos direitos sociais, reconhecidos pelo Estado.

    Uma discusso complementar a esse tema seria o estudo do papel a ser desempenhado pelo Estado14 na constituio da cidadania, pois se o ci-dado sujeito de direitos, ao Estado cabe a ga-rantia destes.

    Fica-nos, ento, a questo: a quais direitos nos referimos quando falamos em direitos do cidado brasileiro? Um bom guia para nortear a nossa reflexo pode ser a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da qual o Bra-sil um dos pases signatrios. Cotej-la nossa Constituio Federal, de 1988, alterada pelas in-meras Emendas Constitucionais em vigor, pode mostrar-se um exerccio interessante para a refle-xo e construo do que seja (ou do que deveria ser) cidadania hoje no nosso pas.

    A partir da, poderamos sonhar com uma cidadania planetria? o que discutiremos no prximo tema.

    14 Para Hegel, o Estado uma das mais altas snteses do esprito objetivo. O Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses contraditrios entre os indivduos. Assim como a famlia a sntese dos interesses contraditrios entre seus membros, e a sociedade civil a sntese que supera as divergncias entre as diversas famlias, o Estado representa a unidade final, a sntese mais perfeita que supera a contradio existente entre o privado e o pblico. Portanto, o Estado se define por no possuir nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais a todos. (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 264).

    Neste captulo, tratamos de alguns pensadores e movimentos que foram decisivos para o desenvol-vimento da noo de cidadania e, mesmo, dos direitos do homem. Inicialmente, abordamos os filsofos contratualistas: Locke, Hobbes e Rousseau. Contratualistas porque acreditavam que uma sociedade que pudesse garantir os direitos do homem deveria estar fundada em um contrato. No entanto, cada um con-cebe esse contrato de uma forma diferente, e todos eles de uma noo de homem. Em Locke, o homem uma tbula rasa; em Hobbes, o lobo do prprio homem; em Rousseau, nasce bom, e a sociedade o corrompe. Todos eles desejam um tipo de Estado a partir desse contrato. Um estado burgus, para Locke; um Estado autoritrio, para Hobbes; e, em Rousseau, a soberania do povo. Com Montesquieu, estudamos o surgimento de um Estado a partir da teoria dos trs poderes: o executivo, o legislativo e o judicirio. Em todos em menor grau para Hobbes se pensa no direito do cidado. Estudamos, ainda, dois grandes movimentos, a Independncia Americana (1776) e a Revoluo Francesa, que vo consolidar o direito cidadania e os Direitos do homem.

    2.1 Resumo do Captulo

    Conhecido como patrono da cultura nacional, Rui Barbosa (1849-1923) ainda um dos brasileiros mais estimados e de memria mais respeitada, com uma vasta obra que sobreviveu aos ataques do Modernismo, ao contrrio das da maioria de seus contemporneos.

    CuriosidadeCuriosidade

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    1. Em que tipo de contexto nasceu a necessidade de caracterizar/construir os direitos do ho-mem?

    2. Os filsofos da era moderna partilhavam as mesmas ideias sobre o homem? Exemplifique.

    3. Por que a Constituio da Virgnia, de 1776, to importante para a consolidao dos direitos do homem?

    2.2 Atividades Propostas

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    Considera a pior das iniqidades submeter algum o seu esprito vergonha e, por

    amor vida, perder as razes de viver.Juvenal

    O rei pode determinar o meu destino terreno, mas no pode forar-me a negar

    minha conscincia e minhas convices ntimas.

    Emanuel Kant

    Para Kant, os seres humanos tm um valor intrnseco, isto , dignidade, porque so agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas prprias decises, estabelecer os seus prprios objetivos e guiar a sua condu-ta pela razo. Uma vez que a lei moral a lei da razo, os seres racionais so a encarnao da lei moral em si. A nica forma de a bondade moral poder existir as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um senti-do de dever, faz-lo. Isso, pensava Kant, a nica coisa com valor moral. Assim, se no existissem seres racionais, a dimenso moral do mundo sim-plesmente desapareceria.

    No faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa entre outras. Eles so os seres para quem as meras coisas tm valor e so os seres cujas aes cons-cientes tm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem de ser absoluto, e no comparvel com o valor de qualquer outra coisa.

    TICA E CIDADANIA3

    Se o seu valor est acima de qualquer preo, segue-se que os seres racionais tm de ser trata-dos sempre como um fim, e nunca apenas como um meio. Isso significa, a um nvel muito super-ficial, que temos o dever estrito de beneficncia relativamente s outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respei-tar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal e, em ge-ral, empenhar-nos, tanto quanto possvel, em pro-mover a realizao dos fins dos outros.

    No entanto, a ideia de Kant tem tambm uma implicao um tanto ou quanto mais profun-da. Os seres de que estamos a falar so racionais, e trat-los como fins em si significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou us-las, para alcanar os nossos ob-jetivos, por melhores que esses objetivos possam ser. Kant d o seguinte exemplo: suponha que voc precise de dinheiro e queira um emprsti-mo, mas saiba que no ser capaz de devolv-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promes-sa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poder fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propsito meritrio to bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas a manipul-lo e a us-lo como um meio.

    Entretanto, como seria tratar o seu amigo como um fim? Suponha que voc dissesse a ver-dade, que precisava do dinheiro para certo obje-tivo, mas que no seria capaz de devolv-lo. O seu amigo poderia, ento, tomar uma deciso sobre o emprstimo. Poderia exercer os seus prprios po-deres racionais, consultar os seus prprios valores e desejos e fazer uma escolha livre e autnoma.

    DicionrioDicionrio

    Valor: Em filosofia, o termo , em geral, considera-do em uma acepo moral, para designar o que proporciona normas conduta.

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    Se decidisse, de fato, emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, escolheria fazer seu esse ob-jetivo. Dessa forma, voc no usaria o seu amigo como um meio para alcanar o seu objetivo, pois seria, agora, igualmente o objetivo dele.

    A concepo kantiana da dignidade huma-na no fcil de entender; precisamos encontrar uma forma de tornar a ideia mais clara. Para isso, analisaremos mais detalhadamente uma das suas aplicaes mais importantes: a cidadania.

    As aes humanas so mediadas tanto pela percepo do real como pela capacidade de dar diferentes respostas ante um estmulo. Como j vimos, os diferentes grupos humanos criaram di-ferentes formas de responder s suas necessida-des, formas essas ligadas sua cultura, aos valores que criaram e passaram a cultuar.

    Assim, a moralidade est presente em todas as culturas e ganha concretude quando analisa-mos o comportamento de cada pessoa em rela-o a si prpria e aos outros, um povo em relao s suas condicionantes internas e na relao com outros povos.

    no viver em sociedade, na polis, na cida-de, que se configuram valores, estabelecem-se direitos, prescrevem-se normas, regras e leis, e , tambm nesse espao de cidadania, que nor-mas, regras e leis podem ser contestadas, a par-tir da proposio de novos valores. H, portanto, um carter histrico na definio da moralidade, como vimos nos temas anteriores.

    Atualmente, discutimos questes como a igualdade e a diferena entre os seres humanos, grupos culturais e classes sociais. Continuamos

    enfrentando situaes em que se negam e des-respeitam os direitos dos seres humanos, em que dominam os preconceitos e a violncia, mas, por outro lado, essas formas de discriminao tm sido veementemente denunciadas, o que abre um espao para a discusso da tolerncia.

    Nessa medida, o exerccio da cidadania co-loca-se como a possibilidade de escolha inerente a todos os seres humanos. Escolher significa valo-rar. Poder escolher implica liberdade, o que, por sua vez, implica responsabilidade.

    Exercer a cidadania de uma forma tica po-deria, talvez, ser definido como o ato de se fazer livremente e de maneira responsvel a escolha de valores de convivncia que garantam que o outro seja tratado como um fim.

    As dimenses do ato humano trariam, nes-sa medida, a relao necessria entre querer, po-der e dever.

    Em todas as sociedades humanas h razes para a obedincia e para a rebeldia; a responsabi-lidade implica o conhecimento dessas razes e a considerao das implicaes das escolhas para aqueles a quem se dirigem nossos atos ou para aqueles com quem os compartilhamos.

    AtenoAteno

    Tratando de outro, de um ser humano igual em direito, Kant afirmou que os seres racionais [] tm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto , somente como seres que tm de poder conter em si a finalidade da ao.

    AtenoAteno

    Cada uma dessas dimenses ganha sentido na articulao com as demais: no adianta querer re-alizar um gesto bom se no se pode realiz-lo; no adianta poder se no se tem conscincia do que se deve fazer; no adianta saber o que se deve fazer se no se quer empenhar a vontade em faz-lo; etc.

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    Apostar na escolha individual no quer di-zer, contudo, que haja uma moral individual. dentro do contexto social, dos grupos de que faz parte, que o indivduo desenvolve suas potencia-lidades, inclusive sua moralidade, pois a relao de responsabilidade envolve poder e interdepen-dncia. Como descrito nos Parmetros Curricula-res Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1998),

    [...] ela [a moralidade] remete, assim, de certo modo, noo de cuidado. Ser res-ponsvel ter cuidado com o poder que se exerce, ao realizar escolhas e definir caminhos para a ao. preciso ter claro, portanto, que o que se verifica um po-sicionamento de cada pessoa frente aos valores e princpios que so criados e que tm significao no mbito mais amplo de uma comunidade humana.

    A ao humana presa do cotidiano, cer-cada pelos ditames da Moral; exercer a cidadania nesse contexto, tratando os outros como fim em si mesmos seria, na concepo kantiana, iluminar esse caminho com as luzes da tica.

    Como faz-lo? Ter clareza racional acerca do imperativo categrico de no mediatizao do homem, para poder fazer uma leitura crtica da moral vigente. Ainda como afirmado nos PCNs,

    a tica a reflexo crtica sobre a mora-lidade. Ela no tem um carter norma-tivo, pois, ao fazer uma reflexo tica, pergunta-se sobre a consistncia e a coerncia dos valores que norteiam as aes, busca-se esclarecer e questionar os princpios que orientam essas aes, para que elas tenham significado autn-

    tico nas relaes. H uma multiplicidade de doutrinas morais que, pelo fato de se-rem histricas, refletem as circunstncias em que so criadas ou em que ganham prestgio. Assim, so encontradas dou-trinas morais cujos princpios procuram fundamentar-se na natureza, na religio, na cincia, na utilidade prtica. As ques-tes que se colocam a respeito das aes encontram resposta, de imediato, nas diversas doutrinas. Para a pergunta por que devemos agir de determinada ma-neira?, encontram-se respostas diversas, como: porque est escrito nos Manda-mentos, porque est demonstrado pela teoria x, porque traz vantagens etc. A pergunta crtica colocada pela tica de natureza diferente, pois sua inteno problematizar exatamente os fundamen-tos. Ela indagar: que valores sustentam os Mandamentos?, qual o suporte da teoria x?, para quem tal ao traz vanta-gens?. A tica serve, portanto, para verifi-car a coerncia entre prticas e princpios, e questionar, reformular ou fundamentar os valores e as normas componentes de uma moral, sem ser em si mesma norma-tiva. Entre a moral e a tica h um cons-tante movimento que vai da ao para a reflexo sobre seus sentidos e seus fun-damentos e, da reflexo retorna ao, revigorada e transformada.

    Observe bem esse ponto: se a moral cir-cunstancializada historicamente e a tica nos permite uma leitura mais profunda dessas cir-cunstncias, as relaes entre tica e cidadania colocam-se na justa medida da adeso racional a valores que permitam a todos a busca da felici-dade, pois as vivncias particulares cruzam-se na construo coletiva das sociedades e culturas, e

    Assista ao filme Um Grito de Liberda-de, do diretor Robert Attenborough. Trata-se de uma histria real sobre o jovem negro Steve Biko na luta contra o apartheid, na frica do Sul.

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    umas e outras ganham sua configurao espec-fica em funo das condies particulares dos se-res humanos e dos ambientes fsico-biolgicos e histrico-econmico-polticos nos quais estes vivem. De qualquer modo, a dimenso moral das aes humanas guarda uma perspectiva de in-tencionalidade. Ao agir no mundo, construindo sua vida, na relao com os outros, o ser humano o faz com vistas sua realizao, ou seja, em bus-ca da felicidade.

    Na perspectiva que discutimos nesta disci-plina, a felicidade confundir-se-ia com a realiza-o do bem comum, pois

    [...] ser cidado participar de uma so-ciedade, tendo direito a ter direitos, bem como construir novos direitos e rever os j existentes.

    Participar ser parte e fazer parte com seu fazer, sua interferncia criativa na

    construo da sociedade, os indivduos configuram seu ser, sua especificidade, sua marca humana. Admitir e defender direitos humanos significa reconhecer no apenas esta ou aquela propriedade de alguns sujeitos, mas que o direito de ser humano um estatuto que todas as pessoas tm o dever moral de, consciente e voluntariamente, conceder-se umas s outras. (BRASIL, 1998).

    Ou, ainda, como nos ensinava Kant,

    [...] devo esforar-me por promover a feli-cidade do prximo, no como se com isso favorecesse qualquer interesse meu (seja por inclinao imediata seja por qualquer satisfao diretamente obtida atravs da razo), mas simplesmente porque uma mxima que a exclusse no poderia ser compreendida como lei universal em uma nica e mesma volio.

    3.1 Resumo do Captulo

    Neste captulo, tratamos, principalmente, do pensamento kantiano. E, ao pensar o homem, ele co-mea afirmando que ele traz um valor em si, e por isso deve ser sempre tratado como fim, e no como meio. Trat-lo como um fim jamais observ-lo como coisa, respeit-lo. Observamos, tambm, que a moral que nos envolve circunstancializada, e que por isso depende de nossas escolhas. E escolher im-plica valorar, julgar, colocar-se. E esse colocar-se implica, ou deveria implicar, a manifestao do indivduo como um cidado, um cidado de direitos.

    3.2 Atividades Propostas

    1. Para o filsofo Immanuel Kant, os seres racionais tm de ser tratados sempre como um fim, e nunca apenas como um meio. O que isso significa? Para o indivduo, a noo de fim implica certas restries?

    2. Pensando nos PCNs (Parmetros Curriculares Nacionais MEC/1998) e em como abordam a questo da moral (como moralidade), por que eles acabam destacando a noo de cuidado? Explique.

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    A criana tem em si mesma um impulso natural irresistvel; a tendncia ao cresci-

    mento. No pode renunciar a isso para se adaptar s exigncias sociais. Ela se defen-de contra tudo o que impede a sua energia de desenvolvimento, porque, a todo preo, deve crescer, sob pena de morrer. Se ela s

    parcialmente se adaptar, sua adaptao no aumenta o equilbrio social, mas pro-

    duz unicamente um homem mal desen-volvido e enfraquecido [...] A nossa tarefa

    de adulto consiste, pois, em criar para a criana um ambiente apropriado, onde a

    cada etapa ela encontre os meios necess-rios ao seu desenvolvimento. Depois s nos restar observar a criana para secund-la o melhor que pudermos. Eis a toda a obra

    do educador. Seu papel torna-se destarte mais humilde e sua autoridade se apaga

    ante o impulso criador da criana.

    Maria Montessori

    O PAPEL DA INSTITUIO ESCOLAR NA CONSTRUO DO JUZO MORAL DOS EDUCANDOS

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    Um processo educacional que pretenda for-mar para a cidadania no pode desconsiderar o processo de formao do juzo moral nas crianas e nos adolescentes.

    Jean Piaget15 foi um dos tericos que pro-duziram conhecimentos que podem dar suporte ao docente em relao a essa questo.

    Piaget estudou a construo da moralidade sob uma dupla perspectiva: de um lado, pesqui-sou o pensamento moral efetivo, ou experincia moral, que se constri pouco a pouco, por meio da ao individual, isto , por meio dos fatos e por ocasio dos conflitos com o social; por outro lado, estudou o pensamento moral terico, ou verbaliza-do, que aparece quando o indivduo levado a julgar os atos de outras pessoas que lhe interes-sam diretamente ou a prpria conduta passada.

    15 Jean Piaget nasceu em Neuchtel, Sua, no dia 9 de agosto de 1896 e faleceu em Genebra em 17 de setembro de 1980. Estudou a evoluo do pensamento at a adolescncia, procurando entender os mecanismos mentais que o indivduo utiliza para captar o mundo. Como epistemlogo, investigou o processo de construo do conhecimento, sendo que nos ltimos anos de sua vida centrou seus estudos no pensamento lgico-matemtico. Piaget foi um menino prodgio. Interessou-se por Histria Natural ainda em sua infncia. Aos 11 anos de idade, publicou seu primeiro trabalho sobre a observao de um pardal albino. Esse breve estudo considerado o incio de sua brilhante carreira cientfica. Aos sbados, Piaget trabalhava gratuitamente no Museu de Histria Natural. Piaget frequentou a Universidade de Neuchtel, onde estudou biologia e filosofia, e recebeu seu doutorado em biologia em 1918, aos 22 anos de idade. Aps formar-se, Piaget foi para Zurich, onde trabalhou como psiclogo experimental. L, frequentou aulas lecionadas por Jung e trabalhou como psiquiatra em uma clnica. Essas experincias influenciaram-no em seu trabalho. Ele passou a combinar a psicologia experimental que um estudo formal e sistemtico com mtodos informais de psicologia: entrevistas, conversas e anlises de pacientes. Em 1919, Piaget mudou-se para a Frana, onde foi convidado a trabalhar no laboratrio de Alfred Binet, um famoso psiclogo infantil que desenvolveu testes de inteligncia padronizados para crianas. Piaget notou que crianas francesas da mesma faixa etria cometiam erros semelhantes nesses testes e concluiu que o pensamento se desenvolve gradualmente. O ano de 1919 foi um marco em sua vida. Piaget iniciou seus estudos experimentais sobre a mente humana e comeou a pesquisar tambm sobre o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Seu conhecimento de biologia levou-o a enxergar o desenvolvimento cognitivo de uma criana como uma evoluo gradativa. Em 1921, Piaget voltou Sua e tornou-se diretor de estudos do Instituto J. J. Rousseau da Universidade de Genebra. L, iniciou o maior trabalho de sua vida, ao observar crianas brincando e registrar meticulosamente suas palavras, suas aes e seus processos de raciocnio. Em 1923, Piaget casou-se com Valentine Chtenay, com quem teve 3 filhos: Jacqueline (1925), Lucienne (1927) e Laurent (1931). As teorias de Piaget foram, em grande parte, baseadas em estudos e observaes de seus filhos que ele realizou ao lado de sua esposa. Enquanto prosseguia com suas pesquisas e publicaes de trabalhos, Piaget lecionou em diversas universidades europeias. Registros revelam que ele foi o nico suo a ser convidado a lecionar na Universidade de Sorbonne (Paris, Frana), onde permaneceu de 1952 a 1963. At a data de seu falecimento, Piaget fundou e dirigiu o Centro Internacional para Epistemologia Gentica. Ao longo de sua brilhante carreira, Piaget escreveu mais de 75 livros e centenas de trabalhos cientficos.

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    O prprio Piaget considerou que os julga-mentos verbais, baseados em atos no praticados e no testemunhados, no levam a uma avaliao ideal da construo do juzo moral. Considerou que os julgamentos apoiados na narrao de his-trias esto em atraso em relao s avaliaes apoiadas na experincia, pois o grau de toma-da de conscincia difere em ambas as situaes. Quando exerce um julgamento prtico ou efetivo, a criana no projeta luz sobre noes j elabora-das, mas as constri, em um processo complexo e demorado.

    Os julgamentos morais podem estar asso-ciados a dois tipos de responsabilidades: objeti-va e subjetiva. A primeira ocorre quando o indi-vduo se sente responsvel por um ato proibido por uma autoridade externa, por uma ao que se choca com as normas impostas de fora; j a se-gunda acontece quando o indivduo se sente res-ponsvel por um ato censurado por ele mesmo, que vai contra as normas construdas e sanciona-das por ele, em cooperao com a sociedade.

    Como tais formas de julgamento so apro-priadas pelo indivduo?

    AtenoAteno

    Piaget, ento, estudou a construo da morali-dade sob uma dupla perspectiva: pesquisando o pensamento moral efetivo, ou a experincia mo-ral, e pesquisando o pensamento moral terico, ou verbalizado.

    A criana aprende socialmente a respeitar normas e regras por meio de dois tipos de rela-es sociais:

    Relaes sociais coercitivas: so im-postas e baseiam-se na autoridade e no respeito do inferior ao superior, levan-do chamada moral heternoma. Um exemplo claro de tal situao refere-se s crianas pequenas que, no poden-do criar suas normas em colaborao com o ambiente, interiorizam as nor-mas dos pais ou da sociedade.

    Relaes sociais cooperativas: nas-cem no interior do indivduo como produto da comunho de ideias e sen-timentos entre parceiros, baseando-se na igualdade e no respeito mtuo. Da decorre a moral autnoma que obriga os indivduos a situarem-se em relao aos outros, sem faz-los suprimir ou abandonar seus pontos de vista parti-culares.

    No seu estudo com crianas pequenas, Pia-get constatou que se as regras so elaboradas pe-los adultos, torna-se difcil separar o respeito que as crianas tm por essas regras do respeito que tm pelo adulto que as elabora, ou seja, como se-parar a obedincia da regra por ach-la justa da obedincia regra por amor pessoa que a emi-te.

    Assista ao documentrio Jean Piaget, da Cole-o Grandes Pensadores. Apresentao do Prof. Dr. Yves de La Taille. Para guiar o professor que pretende conhecer melhor o tema, este vdeo apresenta de forma clara os principais conceitos piagetianos.

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    Tentando superar essa dificuldade na pes-quisa,16 Piaget props-se a trabalhar com jogos, o que facilitou o estudo de duas classes de fenme-nos, a prtica de regras e a conscincia das regras, ou seja, o modo de jogar e o sentimento de vali-dade e obrigatoriedade das regras aplicadas.

    O estudo levou Piaget a concluir que exis-tem trs tipos de regras:

    Motora: relativamente independente do social, confunde-se com a sequncia de aes realizadas no hbito.

    Coercitiva: derivada do respeito uni-lateral que submete um indivduo ao outro.

    Racional: originada do respeito mtuo e da cooperao entre iguais. Sendo in-terna, torna-se produto da personalida-de e, de forma circular, fator de forma-o da prpria personalidade.

    No transitar da regra motora regra racional existe a interveno do respeito unilateral e do respeito mtuo. No primeiro h a imposio do ambiente social, pois as crianas no distinguem o seu eu subjetivo do outro, tendo dificuldade de saber o que inventam por si mesmas e o que inventado pelos outros, em distinguir o subjeti-vo do objetivo; assim, as sugestes externas, que so interiorizadas, aparecem conscincia infan-til como se fossem suas e passam a orientar suas condutas.

    Para Piaget, a criana s vai tomar conscin-cia do seu prprio eu ao se libertar do pensamen-to e da vontade do outro, o que s ser fruto de uma convivncia social que permitir discusses e trocas sociais verdadeiras.

    Outro autor importante para que possamos compreender a construo da mente no interior da prtica social Vygotsky.17

    16 O trabalho de pesquisa aqui citado descrito na obra O Julgamento Moral na Criana, publicada em francs em 1932 e traduzida para o portugus em 1977.17 Lev Semionovitch Vygotsky (variaes de traduo encontradas: Vigotski, Vygotski ou Vigotsky) (russo , transliterao: Lev Semnovi Vygotskij, nasceu em 17 de novembro de 1896, em Orsha, e faleceu em 11 de junho de 1934, Moscou) foi um psiclogo bielo-russo descoberto nos meios acadmicos ocidentais depois da sua morte, causada por tuberculose, aos 37 anos. Pensador importante, foi pioneiro na noo de que o desenvolvimento intelectual das crianas ocorre em funo das interaes sociais (e condies de vida). As obras de Vygotsky incluem alguns conceitos que se tornaram incontornveis na rea do desenvolvimento da aprendizagem. Um dos conceitos mais importantes o de Zona de Desenvolvimento Proximal, que se relaciona com a diferena entre o que a criana consegue aprender sozinha e aquilo que consegue aprender com a ajuda de um adulto. A Zona de Desenvolvimento Proximal , portanto, tudo o que a criana pode adquirir em termos intelectuais quando lhe dado o suporte educacional devido. Esse conceito ser posteriormente desenvolvido por Bruner, sendo hoje vulgarmente designado por etapa de desenvolvimento. Outra contribuio vygotskiana de relevo foi a relao que estabelece entre pensamento e linguagem, desenvolvida no seu livro Pensamento e Linguagem. chamado por muitos de o Mozart da Psicologia. Vygotsky o grande fundador da escola sovitica de psicologia, principal corrente que, hoje, d origem ao socioconstrutivismo. Em sua curta vida, Vygotsky foi autor de uma obra muito importante. Seus primeiros estudos foram voltados para a psicologia da arte. Extremamente culto, tinha entre seus amigos o grande cineasta Serghei Eisenstein, admirador de seu trabalho. O contexto em que Vygotsky viveu ajuda a explicar o rumo que seu trabalho tomou: suas ideias foram desenvolvidas na Unio Sovitica sada da Revoluo Comunista de 1917 e refletem o desejo de reescrever a psicologia, com base no materialismo marxista, e construir uma teoria da educao adequada ao mundo novo que emergia dos escombros da revoluo. O projeto ambicioso e a constante ameaa da morte (a tuberculose manifestou-se desde os 19 anos de idade e foi responsvel por seu fim prematuro) deram ao seu trabalho, abrangente e profundo, um carter de urgncia. Para Vygotsky, o que nos torna humanos a capacidade de utilizar instrumentos simblicos para complementar nossa atividade, que tem bases biolgicas. Em um pequeno artigo sobre o jogo infantil, diz que as formas tipicamente humanas de pensar surgem, por exemplo, quando uma criana pega um cabo de vassoura e o transforma em um cavalo, ou em um fuzil, ou em uma rvore... Os chimpanzs, por mais inteligentes que sejam, podem no mximo utilizar o cabo de vassoura para derrubar bananas, por exemplo, e jamais para criar uma situao imaginria. O que nos torna humanos, segundo Vygotsky, nossa capacidade de imaginar... A linguagem uma espcie de cabo de vassoura muito especial, capaz de transformar decisivamente os rumos de nossa atividade. Quando aprendemos a linguagem especfica de nosso meio sociocultural, transformamos radicalmente os rumos de nosso prprio desenvolvimento. Assim, podemos ver como a viso de Vygotsky d importncia dimenso social, interpessoal, na construo do sujeito psicolgico. Grande parte de sua obra est sendo divulgada somente agora, at mesmo na Unio Sovitica (suas ideias entraram no grande expurgo promovido por Stalin e sobreviveram somente graas devoo de um grupo de discpulos), e sua teoria sociocultural do desenvolvimento deve ser cada vez mais pesquisada agora no sculo XXI. Na rea educacional, a influncia de Vygotsky tambm vem crescendo cada vez mais e dando origem a experincias das mais diversas. No existe um mtodo Vygotsky. Como Piaget, o psiclogo bielo-russo mais uma fonte de inspirao do que um guia para os pedagogos.

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    Uma das correntes psicolgicas que mais claramente props os objetivos anteriores foi a psicologia sociocultural, desenvolvida, em grande parte, graas s ideias de Vygotsky. No sculo pas-sado, a partir da dcada de 1920, formou-se uma escola psicolgica russa que, inspirada nas ideias de Marx e, de modo especial, nas formulaes ex-pressas em suas obras Teses sobre Feuerbach e A ideologia alem, colocou a atividade ou a prtica humana como princpio explicativo da constitui-o humana e principal preocupao com vistas a seu conhecimento e sua transformao. Inspira-dos por essa orientao filosfica, Vygotsky e, um pouco mais tarde, Luria e Leontiev, desenvolve-ram uma nova viso sobre a mente humana.

    As contribuies desses autores articula-ram-se em torno de uma psicologia histrico-cul-tural, atenta mediao cultural da conscincia, e a uma psicologia da atividade, preocupada em estudar a ao orientada para objetivos e media-da por ferramentas. A distino e a ligao entre ambos os pontos de vista foram, muitas vezes, influenciadas por fatores polticos. Mais adiante, at os anos de 1970, essas ideias penetraram no Ocidente e foram adotadas e desenvolvidas.

    Trata-se, pois, de elaborar uma explicao dos processos mentais humanos que contemple a relao entre tais processos e os cenrios so-ciais, culturais, histricos e institucionais em que eles se desenvolvem. A cultura no a causa ex-terna que desencadeia os processos mentais, mas parte da mente, e a mente parte da cultura; re-sumindo, trata-se de uma realidade nica. A par-tir dessa hiptese de trabalho inicial, a psicologia sociocultural foi desenvolvendo um conjunto de temas que constituem uma verdadeira agenda de trabalho ou um programa de pesquisa.

    AtenoAteno

    A preocupao central da psicologia sociocultu-ral dar sociedade e cultura um lugar no mes-mo nvel do biolgico e do mental na explicao do ser humano.

    As caractersticas principais da psicologia cultural so as seguintes:

    Destaca a ao medida em um contex-to;

    Insiste na importncia do mtodo ge-ntico entendido amplamente para incluir os nveis histrico, ontogentico, microgentico de anlise;

    Trata de fundamentar suas anlises em acontecimentos da vida diria;

    Supe que a mente surge da atividade mediada conjunta das pessoas. A men-te , portanto, em um sentido impor-tante, coconstruda e distribuda;

    Supe que os indivduos so agentes ativos em seu prprio desenvolvimen-to, mas no atuam em ambientes total-mente de sua prpria escolha;

    Rejeita a cincia explicativa causa-efeito e estmulo-resposta, em favor de uma cincia que reitere a natureza emergen-te da mente na atividade e que reco-nhea um papel central para a interpre-tao em seu mbito explicativo;

    Recorre a metodologias das reas hu-manas, assim como das cincias sociais e biolgicas.

    No cabe aqui apresentar todas as caracte-rsticas da psicologia cultural, mas, pelo menos, um esboo daquelas que mais podem ajudar--nos a compreender de que modo construmos a personalidade moral no seio das atividades coti-dianas dos contextos socioinstitucionais que fre-quentamos.

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    Essa foi uma das principais preocupaes de Vygotsky. Como j dissemos, o autor partia da convico de que era impossvel compreen-der a mente humana separando e analisando isoladamente suas distintas funes. Ao con-trrio, somente mediante o estudo de sua inter--relao seria verdadeiramente possvel alcanar uma compreenso adequada de seu funciona-mento. Entretanto, o problema reside no fato de que a inter-relao no poderia ser conseguida a posteriori por composio de achados anal-ticos, tampouco seria possvel levar a cabo um estudo emprico partindo da mera afirmao da interfuncionalidade da mente. Observar a mente em toda a sua complexidade no era possvel, e Vygotsky no queria cair na reduo condutivista ou na compreenso subjetiva que propunha a in-trospeco. Ter acesso complexidade da mente requeria encontrar uma unidade de anlise que fosse observvel, manejvel, e que, ao mesmo tempo, se comportasse como um microcosmo de todas as funes mentais. Portanto, a tarefa da psicologia centrava-se na busca de uma unidade que cumprisse todos esses requisitos.

    Por outro lado, tambm dessa nossa pers-pectiva eminentemente pedaggica, o fato de encontrar uma unidade de anlise apropriada sig-nifica obter, ao mesmo tempo, uma unidade de interveno educacional. Onde atuar para formar os distintos componentes da inteligncia moral, para aprender a considerar os conflitos de valor e para adquirir e usar a cultura moral? Esse espao a unidade de anlise e, portanto, tambm a unidade de interveno educacional. No por acaso que uma das recomendaes clssicas para pensar em uma unidade de anlise adequada

    tenha sido a colocao de problemas empricos concretos, ou simplesmente observao da vida cotidiana.

    Vygotsky tentou resolver o problema da unidade de anlise propondo a palavra como a melhor opo para obter um estudo unificado da complexidade interfuncional da mente. O estudo do significado da palavra deveria permitir enten-der o pensamento e, a partir da, chegar a com-preender o conjunto da conscincia. Entretanto, a palavra talvez possa servir como instrumento de mediao semitica da conscincia, mas insu-ficiente como unidade para abordar o conjunto do desenvolvimento humano. Nas palavras, no vemos refletidas, de maneira nenhuma, as diver-sas funes da mente. Que instncia, ento, pode desempenhar o papel da unidade?

    A resposta a essa questo foi proposta por Leontiev, com uma substancial mudana de rumo: o desenvolvimento da teoria da atividade. Essa mudana de direo, no entanto, aproveitou muitas ideias do prprio Vygotsky. Influenciado pelo pensamento de Marx e, concretamente, pela primeira tese sobre Feuerbach, considera que, para explicar o desenvolvimento do psiquismo, imprescindvel observar a atividade ou prxis hu-mana. A chave da conscincia est na atividade. Apoiando-se nessa ideia, Leontiev prope a ativi-dade como melhor unidade de anlise. Na reali-dade, e dentro de uma teoria global da ativida-de, distingue trs nveis distintos e relacionados, que servem de base a trs unidades de anlise. A atividade, agora entendida no como atividade humana genrica, mas como processo concreto, refere-se s formas mais gerais e amplas de orga-nizar os comportamentos dos sujeitos em relao

    Se possvel, veja o documentrio Lev Vygotsky Co-leo Grandes Educadores. Apresentao da Profa. Dr. Marta Kohl de Oliveira. O vdeo que apresenta vrios aspectos do pensamento de Vygotsky, enfatizando o papel da aprendizagem no desenvolvimento hu-mano.

    MultimdiaMultimdia

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    com seu meio. Buscam uma correta adaptao e so guiadas por motivaes vitais do indivduo ou da comunidade. As atividades so compostas por vrias aes, e as aes, por sua vez, podem fazer parte de diferentes atividades. As aes caracte-rizam-se por serem comportamentos que perse-guem metas ou objetivos precisos. Por ltimo, as operaes referem-se realizao das aes sob condies espao-temporais concretas, de modo que possvel torn-las rotineiras enquanto o ambiente no se modificar de maneira substan-cial. De acordo com as diferentes condies em que realizada, uma mesma ao ser operacio-nalizada de maneira diferente. Portanto, a relao entre ao e operao to prxima que muitas vezes se fala delas simultaneamente.

    Se Leontiev, ao falar da unidade de anlise, abriu as portas teoria da atividade, mais tarde, Zinchenko e Wertsch (1981) propuseram novos matizes que, ao mesmo tempo, enriquecem a busca de uma melhor unidade e aperfeioam a teoria da atividade. Ambos propuseram como unidade adequada a ao mediada por instru-mentos. Na realidade, tal proposta leva em conta o trabalho de Vygotsky sobre o significado da pa-lavra, mas no a situa como unidade, e sim como mediao da ao. Decorre da que sua proposta de unidade no seja nem a palavra, nem a ao simplesmente, mas a ao mediada ao me-diada pela palavra, ou outros signos ou smbolos, ou ainda por instrumentos ou ferramentas no semiticos de outra natureza. Entre o sujeito que atua e o mundo, coloca-se um elemento media-dor que transforma o sujeito, o mundo e a relao entre ambos.

    Entretan