UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS … · Sintaxe da linguagem visual, buscando auxílio...
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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
MESTRADO EM LINGUSTICA
O mito de Narciso e os interdiscursos com as artes
plsticas: Caravaggio, Poussin e Lemoyne em perspectiva
dialgica
DIOGO SOUZA CARDOSO
Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade
Dissertao apresentada ao Mestrado em Lingustica, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Lingustica.
SO PAULO
2015
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
C261m
Cardoso, Diogo Souza. O mito de Narciso e os interdiscursos com as artes plsticas:
Carvaggio, Poussin e Lemoyne em perspectiva dialgica / Diogo Souza Cardoso. -- So Paulo; SP: [s.n], 2015.
109 p. : il. ; 30 cm. Orientador: Carlos Augusto Baptista de Andrade. Dissertao (mestrado) - Programa de Ps-Graduao em
Lingustica, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Anlise do discurso 2. Narciso, 3. Mito 4. Relaes dialgicas
. I. Andrade, Carlos Augusto Baptista de. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Ps-Graduao em Lingustica. III. Ttulo.
CDU: 8142(043.3)
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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
O mito de Narciso e os interdiscursos com as artes
plsticas: Caravaggio, Poussin e Lemoyne em perspectiva
dialgica
Diogo Souza Cardoso
Dissertao de mestrado defendida e aprovada
pela Banca Examinadora em 20/02/2015.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Carlos Augusto Baptista de Andrade
Universidade Cruzeiro do Sul
Presidente
Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha
Universidade Cruzeiro do Sul
Profa. Dra. Elisabeth Brait
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
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Para Carlos Augusto Baptista de Andrade, meu amigo e
mentor.
Para meus pais, Pedro e Francisca, que sempre me apiam
no caminho do conhecimento.
Para meus amigos: Edimar, Guilherme, Hlio, Jandisson,
Joo Caetano, Pedro Ivo e Wesley.
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AGRADECIMENTOS
CAPES, pelo apoio financeiro dado pesquisa.
Ao professor Carlos Augusto Baptista de Andrade, pela orientao deste
trabalho e pela forte amizade.
Aos Professores Doutores do programa de Mestrado em Lingustica, da
Universidade Cruzeiro do Sul, com os quais tanto aprendi: Ana Elvira Luciano
Gebara, Ana Lcia Tinoco Cabral, Carlos Augusto Baptista de Andrade,
Guaraciaba Micheletti, Magali Elisabete Sparano, Manoel Francisco Guaranha,
Maria Valria Aderson de Mello Vargas, Patrcia Silvestre Leite Di Irio e Sonia
Sueli Berti-Santos.
s minhas amigas Karen e Luci, que tanto compartilharam comigo os
momentos de reflexo e aprendizado no decorrer dos nossos trabalhos.
Aos meus tios Mrio Augusto Cardoso, Maria Marta Lopes Cardoso e Ana
Maria Cardoso, que foram to carinhosos e atenciosos com meu percurso
acadmico.
minha tia, Antonia Batista de Souza, que, por mostrar imensa paixo em ser
professora, incentivou meu esprito, desde criana, a seguir o caminho das
Letras.
Aos meus amigos de infncia, agora e sempre: Edimar, Guilherme, Hlio,
Jandisson, Joo Caetano, Pedro Ivo e Jos Wesley.
Aos meus pais, Pedro Luiz Cardoso e Francisca Batista de Souza, pela
confiana e apoio constantes.
E agradeo a Deus por trilhar meu caminho sempre com Luz.
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[...] Ele quer a si prprio; o amante virou o amado, O perseguido, o perseguidor. Tenta vrias vezes Beijar a imagem refletida na gua, Afunda nela seus braos na tentativa de abraar o rapaz que v ali, E constata que o rapaz, ele mesmo, esquivo, sempre. E sem saber o que v, mas ardendo de desejo, Sente que a imagem zomba dele e o provoca. Por que tentar capturar uma imagem fugidia, Pobre jovem crdulo? O que voc busca no est em nenhum lugar, E se voc se virar, levar com voc [...].
Ovdio (2003)
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CARDOSO, D. S. O mito de Narciso e os interdiscursos com as artes plsticas: Caravaggio, Poussin e Lemoyne em perspectiva dialgica. 2015. 109 f. Dissertao (Mestrado em Lingustica)-Universidade Cruzeiro do Sul, So Paulo, 2015.
RESUMO
Este estudo est inserido no Grupo de Pesquisa Teorias e Prticas Discursivas e
Textuais, na linha Discurso, Gnero e Memria e, mais especificamente, no Projeto
A verbo-visualidade: hibridismos em gneros discursivos ligado ao Mestrado em
Lingustica da Universidade Cruzeiro do Sul. Este trabalho apresenta uma reflexo
sobre o mito de Narciso segundo a verso de Ovdio (2003). Atualmente, trata-se da
verso mais difundida em diversas manifestaes artsticas, em vrias esferas
discursivas. Partindo da verso do mito, trs pinturas tambm so analisadas.
Cronologicamente, so: a obra Narciso (1599-1600), de Caravaggio; Eco e Narciso,
de 1627, de Nicolas Poussin; e Narciso na fonte, de 1728, de Franois Lemoyne. As
trs obras so comparadas entre si e com o texto de Ovdio em uma interao entre
artes plsticas e literatura, buscando as interconexes que so possveis destacar
por meio das relaes discursivas entre o verbal e o visual. A base epistemolgica
para o presente estudo a Anlise Dialgica do Discurso, neste momento
destacando a filosofia da linguagem de Bakhtin e do Crculo (2006, 2003, 1997 e
1988), pelo fato de explorar as relaes dialgicas resultantes do Narciso verbal e
do Narciso visual na esfera artstica. Tanto as pinturas quanto o poema de Narciso
so vistos como enunciados concretos, ou seja, no so meras representaes.
Assim, tal discusso faz emergir a relao discutida por Bakhtin entre o dado e o
criado. Alm do filsofo russo, outros autores figuram como base terica, so eles:
Brait (2005), Faraco (2009) e, por haver referncias esfera da arte, vm tona
aproximaes filosficas com o postulado de Dewey (2010), Sartre (2008) sobre a
teoria da imagem, e Dondis (2007) a respeito da sintaxe das imagens. Este trabalho
visa estudar os efeitos de sentido produzidos pelas relaes dialgicas existentes
entre os Narcisos.
Palavras-chave: Mito, Narciso, Relaes dialgicas, Esfera artstica.
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CARDOSO, D. S. Le mythe de Narcisse et les interdiscours avec les arts plastiques: Caravaggio, Poussin e Lemoyne dans la perspective dialogique. 2015. 109 f. Dissertao (Mestrado em Lingustica)-Universidade Cruzeiro do Sul, So Paulo, 2015.
ABSTRACT FRANCES
Rsum: Ce travail se dveloppe dans le cadre des travaux du Groupe de
Recherche Thories et Pratiques Discursives et Textuelles, ligne Discours, Genre et
Mmoire et, de forme plus spcifique, du Projet Le verbe visualit: les hybridismes
dans les genres discursifs attach au cours de Matrise en Linguistique de
l'Universit Cruzeiro do Sul. Cette tude prsente une rflexion sur le mythe de
Narcisse daprs la version dOvide (2003). Il sagit de la version plus diffuse,
prsente dans diverses manifestations artistiques, dans diverses sphres du
discours. partir de cette version du mythe, trois tableaux sont analyss.
Chronologiquement: Narcisse (1599-1600), de Caravaggio; cho et Narcisse, de
1627, de Nicolas Poussin; et Narcisse contemplant son reflet dans l'eau , de 1728,
de Franois Lemoyne. Les trois tableaux sont compars entre eux et avec le texte
dOvide dans une interaction entre arts plastiques et littrature en cherchant les
interconnexions sur les rapports du verbal et du visuel. La base pistmologique
pour cette tude est lanalyse dialogique du discours et lemphase porte sur la
philosophie du langage, de Bakhtin (2006, 2003, 1997 e 1988), parce quil y a une
exploration des rapports dialogiques qui rsultent de la relation du Narcisse verbal et
du Narcisse visuel dans la sphre artistique. Les tableaux et le pome de Narcisse
sont vus comme des noncs, ainsi ils ne sont pas de simples reprsentations. Cette
position fait surgir le rapport entre le donn et le cr rflchi par Bakhtin. Il y a aussi
d'autres auteurs dans la base thorique, soit: Brait (2005), Faraco (2009) et, en ce
qui concerne les arts plastiques, Dewey (2010) dans une aproximation
philosophique, Sartre (2008) et sa thorie sur limage et Dondis (2007) sur la syntaxe
de limage. Le prsente texte vise tudier les effets de sens produits par les
relations dialogiques qui existent entre les Narcisses.
Mots-cls: Mythe, Narcisse, Relations Dialogiques, Sphre artistique.
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SUMRIO
CONSIDERAES INICIAIS ...................................................................................... 9
CAPTULO I .............................................................................................................. 12
REFLEXES SOBRE O MITO: HISTRIA E CRENA
1.1 Panorama sobre a mitologia greco-romana ............................................... 12
1.2 Narciso refletido: transcendncias ............................................................. 20
CAPTULO II ............................................................................................................. 29
BASES PARA A ANLISE DIALGICA DOS NARCISOS
2.1 A escolha do corpus..................................................................................... 29
2.2 Desgnios tericos ........................................................................................ 34
CAPTULO III ............................................................................................................ 45
LINGUAGEM VERBAL E PICTRICA: APROXIMAES
CAPTULO IV ............................................................................................................ 59
ENCONTRO DOS NARCISOS: DIALGOS ENTRE PALAVRAS E IMAGENS
4.1 Narciso em Caravaggio ................................................................................ 59
4.2 Narciso em Poussin...................................................................................... 78
4.3 Narciso em Lemoyne .................................................................................... 91
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 101
REFERNCIAS ....................................................................................................... 105
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CONSIDERAES INICIAIS
Este trabalho apresenta uma reflexo sobre o mito de Narciso segundo a
verso de Ovdio (2003), que o poema intitulado A histria de Eco e Narciso,
publicada na obra Metamorfoses. Partindo dessa verso, as pinturas Narciso (1599-
1600), de Caravaggio, Eco e Narciso (1627), de Poussin e Narciso na fonte (1728),
de Lemoyne, so analisadas dialogicamente.
Em uma interao entre literatura e artes plsticas, buscam-se interconexes
que so possveis destacar por meio das relaes entre o verbal e o visual.
Interconexes que tambm so expostas no mbito da filosofia, por meio de uma
aproximao entre Bakhtin e o Crculo (2006, 2003, 1997 e 1988) e Dewey (2010). A
proposta dissertativa no trata de uma anlise do verbo-visual, pois no h um s
corpo com elementos visuais e verbais que constituem um s discurso no qual a
linguagem verbal e a visual no podem ser separadas, como assim elucida Brait
(2013):
[...] dimenso verbo-visual de um enunciado, de um texto, ou seja, dimenso em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel constitutivo na produo de sentidos, de efeitos de sentido, no podendo ser separadas, sob pena de amputarmos uma parte do plano de expresso e, consequentemente, a compreenso das formas de produo de sentido desse enunciado, uma vez que ele se d a ver/ler, simultaneamente [...]. (BRAIT, 2013, p.44).
Porm, o referente estudo contribui tambm para anlises que tratam da
verbo-visualidade, j que mantm um dilogo constante entre palavra e imagem,
atentando-se s produes de sentido que se do na relao entre o Narciso verbal
e os pictricos. A filosofia bakhtiniana e o Crculo apresentam uma teoria da
linguagem no apenas verbal, e sim geral, como alerta Brait:
[...] os estudos de Bakhtin e do Crculo constituem contribuies para uma teoria da linguagem em geral e no somente para uma teoria da linguagem verbal, quer oral ou escrita [...]. No que se refere s sugestes sobre o visual, de forma especial, mas no exclusiva, poderamos citar O autor e a personagem na atividade esttica (...). (BRAIT, 2013, p.44).
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O presente trabalho segue, assim, os postulados de Bakhtin e o Crculo como
base terica, porm aponta convergncias possveis com textos que tratam,
especificamente, das artes visuais, por exemplo, a obra de Dondis (2007) intitulada
Sintaxe da linguagem visual, buscando auxlio para as anlises dos elementos
pictricos. J referente materialidade lingustica, s estruturas do texto, h como
base a Gramtica descritiva do portugus, de Perini (2009) e, tambm, sob uma
perspectiva discursiva, a obra Verbos e prticas discursivas, de Vargas (2011).
Logo, a dissertao torna-se oportuna para trabalhos que tratam do verbal e do
visual e da verbo-visualidade, ascendendo, sempre, tal relao, para o mbito
discursivo e com propostas que permitem a interdisciplinaridade.
Esta dissertao dividida em quatro captulos. O primeiro refere-se
contextualizao do mito, pois, pelo fato dos herois do corpus, os Narcisos, virem da
mitologia, torna-se imprescindvel um panorama a respeito do que se entende por
mito. Assim, a obra de Brando (2004) intitulada Mitologia grega figura neste estudo
expondo uma anlise diacrnica do termo mito. Outras bases tericas figuram com a
tarefa de explicitar questes relacionadas mitologia greco-romana como a obra
Mito e realidade, de Eliade (1998). O captulo tambm trata especificamente do mito
de Narciso, apresentando uma abordagem filosfica por meio dos postulados de
Bacon (2002).
J o segundo captulo trata da fundamentao terica e metodolgica. Nele,
h uma reflexo sobre a escolha do corpus e sobre a base terica, que formada,
principalmente, pelos postulados de Bakhtin e do Crculo (2006, 2003 1997 e 1988),
abordando conceitos como o de excedente de viso e o de cronotopo. Tambm,
como base, h outros autores como: Brait (2005), Faraco (2009) e, pela presena da
arte pictrica, postulados referentes ao estudo das imagens como o de Sartre
(2008).
No terceiro captulo, o tema a aproximao entre a arte verbal e a arte
visual, analisando os escritos de Bakhtin e do Crculo (2006, 2003, 1997 e 1988) e
os de Dewey (2010), apontando convergncias entre eles com o intuito de refletir a
filosofia bakhtiniana e o Crculo como algo no estranho ao universo das artes
plsticas. Sabe-se que essa filosofia por si s no se prende apenas ao verbal, pois
se trata de uma teoria geral da linguagem. Porm, ao aproxim-la de uma teoria que
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se concentra mais nas artes visuais, no caso a de Dewey, torna-se possvel
perceber de forma mais explcita como ela se adqua bem s artes, independente
de qual for a esfera artstica.
Quanto ao quarto e ltimo captulo, ele diz respeito anlise do corpus. As
relaes dialgicas entre os Narcisos pictricos e o verbal so analisadas, a fim de
construir uma reflexo sobre os efeitos de sentido produzidos nas interconexes da
esfera artstica, que envolve a literatura e as artes plsticas.
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CAPTULO I - REFLEXES SOBRE O MITO: HISTRIA E CRENA
O mito no se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, mas no substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo infinitamente sugestivo.
Barthes (1993)
Neste captulo, dividido em duas partes, ser apresentado, na primeira, um
panorama histrico e filosfico do mito greco-romano. Para esse panorama,
destacam-se como pressupostos tericos a obra de Alves (1988), Brando (2004) e
Jnior (1984). Na segunda, o mito de Narciso passa a ser o foco, com uma
abordagem filosfica por meio dos postulados de Bacon (2002), Fedeli (2005),
Carvalho (1998), entre outros.
1.1 Panorama sobre a mitologia greco-romana
A respeito do mito, independente do olhar que se pe sobre ele, seja o da
histria, o da crena, ou o da fico, o que prevalece como uma caracterstica
imutvel a sua vivacidade e autenticidade. Logo, ele no algo particular a um
determinado povo ou cultura, assim esclarece Junior (1984):
O mito no uma forma de pensamento prpria dos povos primitivos, das crianas e das pessoas de pouca cultura, seno que uma categoria eterna do pensamento racional.
O mito, portanto, um fato vivo, autntico, que acompanha os povos em todo o seu ciclo de vida. Uma vez aflorado no permanece em sua forma primitiva, mas varia, desenvolvendo-se, primeiro oralmente, e depois fixado na escrita (JUNIOR, 1984, p. 18).
Sobre a fixao na escrita, Brando (2004) afirma que apenas por meio dela e
da arte figurada os mitos gregos se tornam conhecidos, o que tambm ocorre com
as demais mitologias antigas. Porm, a escrita ao mesmo tempo em que fixa o mito,
registrando-o, traz a ele, segundo o filsofo, o seguinte dano: retira-o de seu
contexto original, de sua ao sagrada. Para Brando: um mito escrito est para um
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mito em funo assim como uma fotografia para uma pessoa viva (BRANDO,
2004, p. 25).
Enquanto outras mitologias por meio da rigidez da escrita conseguiram
manter o carter religioso, a mitologia grega no o fez, sobre tal particularidade,
possvel afirmar que: (...) a Grcia antiga no nos legou um nico mito em contexto
ritual, embora se pudesse, talvez, defender, ao menos como parte de um rito (...)
alguns festejos dionisacos (BRANDO, 2004, p. 26).
Pode-se observar, pela tica da filosofia bakhtiniana, a preocupao do autor
com o que seria a perda total de um dado importante da enunciao, caso do
contexto ritualstico. Porm, vale aqui ressaltar que um texto se torna dinmico ao
ser constitudo por um discurso que se d no ato da leitura do outro, ou seja, do
leitor como um interlocutor no processo enunciativo que, por meio da memria
discursiva, pode atribuir diversos sentidos ao texto. Logo, a escrita no precisa ser
caracterizada como algo rgido, um dano, ou como uma mera tentativa de mimese
(quando o autor, por exemplo, compara o mito escrito a uma fotografia de uma
pessoa viva). Pela escrita, o mito se renova, acrescentam-se sentidos e sempre de
forma conjunta, pois seus sentidos se tornam potencialmente infinitos, conforme
elucida Bakhtin, em seus Apontamentos de 1970-71, a respeito da constituio do
discurso ao dizer que:
O sentido potencialmente infinito, mas pode atualizar-se somente em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreenso. Ele deve sempre contatar com outro sentido para revelar os novos elementos de sua perenidade (como a palavra revela os seus significados somente no contexto). Um sentido atual no pertence a um (s) sentido, mas to-somente a dois sentidos que se encontraram e se contactaram. No pode haver sentido em si. (BAKHTIN, 2003, p. 382)
O filsofo da linguagem alerta no haver um sentido em si, h sempre um
encontro entre sentidos, encontro que resulta em uma atualizao. Vale, aqui,
lembrar que o encontro com o outro sentido, ou seja, o encontro com o sentido do
outro envolve uma ao responsiva, que, por sua vez, pode abranger registros
diversos. A histria mostra, por exemplo, como o sentido dos mitos atualizado em
vrios registros.
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A mitologia grega, segundo Brando (2004), foi veiculada por meio de
registros profanos, utilizando-se a poesia, a arte figurativa e a literatura erudita o
autor alerta que ao escolher o vocbulo profano o faz em sentido lato, pois h o
suporte mito em tais registros. Entretanto, esse suporte, que se trata do carter
religioso na literatura e na arte figurativa, tem de dividir espao com uma
preocupao esttica por parte dos artistas. A lei das trs unidades do teatro grego
(ao, tempo e lugar) um exemplo de como o mito modelado, para que possa
adequar-se a manifestaes artsticas. Para Brando, essa lei limita o poder do mito,
pois ele se desloca livremente no tempo e no espao, multiplicando-se atravs de
um nmero indefinido de episdios (BRANDO, 2004, p.26), logo, segundo o autor,
o teatro restringe o poder do mito. No entanto, pelo vis da filosofia do discurso, uma
mudana de gnero, no caso o gnero teatral, no resulta em uma limitao, e sim,
numa transformao do mito. Alis, o mito algo vivo que tende adaptao,
conforme Junior (1984) explicita, ao dizer que ele:
adapta-se ao meio para onde transplantado, adquirindo feies locais, pois o mito profundamente popular e nacional, encontrando, nas representaes figuradas, matria para a sua transformao (JUNIOR, 1984, p.18).
Essa adaptao do mito se for vista pela tica bakhtiniana est ligada
prpria atualizao de sentido, que ocorre em cada processo enunciativo. Em outras
palavras, seguindo a ptica discursiva, pode-se afirmar que o mito um discurso
que pode ter como matria um texto, que por sua vez se d por meio de uma lngua,
que est em constante movimento, mudando assim como os interlocutores que a
utilizam; afinal, h sempre uma distncia temporal que acarreta mudana. Bakhtin
(2003), em seu texto intitulado Os estudos literrios hoje, elucida esse fenmeno
utilizando como exemplo a perspectiva dos gregos antigos sobre eles mesmos:
Na escola havia uma brincadeira: os gregos antigos desconheciam o mais importante sobre si mesmos, no sabiam que eram gregos antigos, e assim nunca se chamaram. Entretanto, essa distncia no tempo, que transformou os gregos em gregos antigos, tinha realmente um imenso significado transformador: era plena de descobertas, na prpria Antiguidade, de novos e novos valores semnticos que os gregos efetivamente desconheciam, ainda que o criassem (BAKHTIN, 2003, p.365).
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Para bem compreender a distncia temporal, preciso estar a par dos
elementos que a envolvem. O filsofo russo afirma que ela possibilita uma
descoberta de sentidos de valores sempre novos que os gregos no poderiam
conhecer, ou seja, trata-se da dinmica scio-histrico cultural que alm de
transformar a realidade e, por consequncia, os interlocutores, tambm faz parte dos
mesmos. Logo, os gregos no poderiam ter a percepo de algo que no constitua
a realidade deles.
Para Brando, pelo fato de o mito possuir diversas variantes, pode ser que
uma de um poeta se sobreponha s outras. Pode-se utilizar como exemplo o
prestgio da poesia na Grcia, que suprimiu a de cidades menos poderosas. No
entanto, o autor alerta que o verdadeiro perigo no est, por exemplo, nas
alteraes que os artistas fazem no mito para no faltar com suas exigncias
estticas, e sim, na viso racional, principalmente, dos pr-socrticos, j que muitos,
aponta Brando: tentaram desmitizar ou dessacralizar o mito em nome do lgos, da
razo (BRANDO, 1986, 27). O filsofo conclui citando Mircea Eliade: Se em todas
as lnguas europias o vocbulo mito denota fico, porque os gregos o
proclamaram h vinte e cinco sculos (ELIADE apud BRANDO, 2004, p. 27).
Com uma viso centrada no racionalismo frente aos mitos, o comportamento
dos deuses passou a ser alvo de crtica. Tal comportamento estaria de acordo com o
posto que eles ocupam? O posto de deuses, de soberanos? Brando defende que, a
partir de questes como essa, comea a ganhar mais espao a idia de como
deveria ser um verdadeiro Deus. O filsofo cita Xenfanes (576-480 a.C), nascido
em Clofon, sia Menor, que questionou o fato dos deuses repetirem os atos
vergonhosos dos humanos como roubo, adultrio etc. Questionamentos como esse
abrem espao para o pensamento racionalista, que ganha o seu pice frente ao mito
com a teoria dos tomos do filsofo Demcrito (520-440 a.C), nascido em Abdera,
na Trcia. Segundo ele, tudo que existe formado por partculas, tudo matria,
logo, tudo est sujeito morte, at mesmo os deuses.
A dicotomizao e a politizao, segundo Brando, foram tambm outros
graves entraves para o mito. Quanto dicotomizao, o autor, dentre outros
exemplos, cita o poeta Pndaro, (521-441 a.C), que fez uma leitura moral do mito,
dizendo que: O homem no deve atribuir aos deuses a no ser belas aes. Este
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o caminho mais seguro (PNDARO apud BRANDO, 2004, p. 29). Quanto
politizao, uma manobra poltica ganha destaque: trata-se da obrigao de fazer
com que muitos heris tenham a cidade de Atenas como lugar comum de
passagem. Para acentuar a questo poltica, Brando afirma que:
O desejo de defender a hegemonia poltica da cidadela de Aten levou seus poetas a depurarem e a castrarem [...] certos mitos de herois locais, acrescentando-lhes gestas de herois de cidades vizinhas, fabricando-lhes genealogias esprias, atribuindo-lhes importantes fatos histricos com total inverso da cronologia (BRANDO, 2004, p.29).
A crescente prevalncia do pensamento crtico sobre o mito continuou no
sculo V a.C. O autor exemplifica citando a obra Histria da guerra de Peloponeso,
de Tucdides, observando que os deuses so deixados de lado e a palavra mito
passa a remeter a algo apenas fabuloso. No sculo IV a.C, o filsofo Epicuro (341-
270 a.C) ganha destaque ao combater o mito, retomando a filosofia de Demcrito.
Segundo Epicuro, no h lgica em temer os deuses, j que eles tambm so
matria e, ainda, vai alm ao refletir sobre o que se entende a respeito da figura de
Deus ao afirmar que:
Deus ou quer impedir os males e no pode, ou pode e no quer, ou no quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e no pode, impotente: o que impossvel em Deus. Se pode e no quer, invejoso, o que igualmente, contrrio a Deus. Se nem quer nem pode, invejoso e impotente, portanto nem sequer Deus. Se pode e quer, o que a nica coisa compatvel com Deus, donde provm ento a existncia dos males? Por qu Deus no os impede? (EPICURO apud BRANDO, 2004, p.30).
Esses questionamentos s so possveis graas a uma mudana de
perspectiva que faz com que o divino passe a ser uma matria de reflexo. Procura-
se compreend-lo e, ao mesmo tempo, colocar em xeque a prpria crena que o
envolve, tudo em um processo que busca o raciocnio lgico. O pensamento
racionalista, assim, golpeia o mito, sem piedade, e parece encurral-lo nas cordas.
Sim! O mito caiu! E comea a contagem... Porm, ele se levanta antes do dez,
fortalecido. H sobre ele, agora, um novo olhar, que o torna novamente precioso. Se
a veracidade de suas histrias sofreu frente ao racionalismo, este se rendeu frente
ao carter alegrico dos mitos. A alegoria posta por Brando como uma das
salvaes do mito. Claramente, pode-se dizer que o autor defende uma leitura mais
profunda do mito, visando ao seu sentido oculto, e que v a filosofia socrtica como
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vil j que ela valoriza uma leitura pragmtica, denotativa. Tender para a alegoria
voltar-se, em parte, para o ficcional e valoriz-lo.
Seguindo a percepo discursiva, a da anlise dialgica do discurso, o leitor,
como ser dotado de ao responsiva, no tido como um ser passivo, ou seja, ele
sempre participa do processo de elaborao de sentido, no se tornando nunca um
ser meramente guiado, e isso independe do texto ser ficcional ou no, independe at
mesmo de se tratar do campo da escrita: trata-se de qualquer situao de
comunicao. Do ponto de vista discursivo, pode-se pensar em graus de
participao do leitor. Bakhtin, em seu texto intitulado Os gneros do discurso, pe
em destaque a participao ativa do leitor ou do ouvinte na significao do discurso
ao afirmar que:
At hoje ainda existem na lingustica fices como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante, do fluxo nico da fala, etc.). Tais fices do uma noo absolutamente deturpada do processo complexo em amplamente ativo da comunicao discursiva. Nos cursos de lingstica geral (inclusive em alguns to srios quanto o de Saussure), aparecem com frequncia representaes evidentemente esquemticas dos dois parceiros da comunicao discursiva o falante e o ouvinte (o receptor do discurso); sugere-se um esquema dos processos ativos de discurso no falante e de respectivos processos passivos de recepo e de compreenso do discurso no ouvinte. No se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que no correspondam a determinados momentos da realidade; contudo, quando passam ao objetivo pretendem real da comunicao discursiva eles se transformam em fico cientfica. Nesse caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingstico) do discurso, ocupa simultaneamente em relao a ele uma ativa posio responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) [...] (BAKHTIN, 2003, p.271).
De acordo com Brando (2004), a alegoria1 e o evemerismo2 salvaram a
mitologia helnica. Valoliriza-se agora a hipnoiai, termo que se refere quilo que
est oculto, e que no sculo I d.C recebe o nome de alegoria. Assim, passa a ser
necessrio transpor a superfcie do literal rumo a um sentido escondido. Tegenes
2 ALEGORIA (...). No seu primeiro significado especfico, a palavra indica um modo de interpretar as sagradas
escrituras e de descobrir, alm das coisas, dos fatos e das pessoas, de que elas tratam, verdades permanentes de
natureza religiosa ou moral. A primeira aplicao importante do mtodo alegrico o comentrio Gnesis de
Filo de Alexandria (sc. I) (ABBAGNANO, 1962, p. 22).
3 EVEMERISMO (...). A doutrina de Euevmero ou Evmero de Messina (sc. IV-III a. C), autor de uma
Sagrada Escritura traduzida em latim por nio, na qual se queira demonstrar que os deuses so homens corajosos
ou ilustres ou poderosos divinizados depois da morte (Ccero, De nat. Deor., I, 119) (ABBAGNANO, 1962, p.
371).
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18
de Rgio, no sculo VI a.C, tentou aplicar essa anlise na poesia Homrica. Porm,
lembra Brando que a alegoria descobriu somente no sculo IV a.C que os nomes
dos deuses representavam fenmenos naturais.
J o Evemerismo teve incio no final do sculo IV por meio da filosofia do
alexandrino Evmero. Ele publicou a obra intitulada Ier (Hier Anagraph). Nela, o
filsofo relata ter descoberto a origem dos deuses. Para ele, os deuses eram antigos
heris e reis que, com o passar do tempo, foram divinizados graas aos seus
grandiosos feitos, tornando-se, assim, mitos. Evmero chegou at a afirmar que, na
ilha dos Bem-Aventurados, encontrou um templo dedicado a Zeus, e que l havia
uma coluna de ouro em que Zeus, quando ainda vivia como mortal, esculpira a
histria da humanidade. Pode-se dizer que o Evemerismo contribuiu, com a sua
abordagem histrica, para que o mito se reerguesse, mesmo sem o requinte de
beleza do qual dotada a alegoria, j que ao ser desmitificado o encanto se perde.
Junior tambm cita Evmero, considerando-o como o primeiro a entender os deuses
como homens divinizados, ele afirma que: Evmero procurou nos relatos
mitolgicos uma significao racional (JUNIOR, 1984, p.19).
Quanto alegoria, e sua necessidade de buscar a mensagem subentendida,
posto aqui um exemplo bem mais atual, do sculo XX. Trata-se do seguinte texto
de Rubem Alves:
H pessoas que moram nos sentidos literais dos reflexos especulares, e por isto mesmo no podem perceber a verdade que mora do outro lado do espelho, nas funduras das guas escuras, de onde brotam as ninfias. (ALVES, 1988, p.20)
O trecho acima faz parte da obra intitulada Mares pequenos, mares grandes
(para comeo de conversa). No comeo desse texto, o autor relata uma pergunta
que sua filha lhe fazia depois de ouvir histrias que ele lhe contava na hora de
dormir. Ela questionava: Mas isto que voc contou, verdade? (ALVES, 1988,
p.13). Diz o autor que, ao ouvir tal pergunta, no sabia o que responder, pois em
parte elas so e em outra no. Para o autor, o mito no diz como as coisas se
deram, o que o mito faz : reconstruir a beleza trgica e comovente do destino
humano de que todos participamos (ALVES, 1988, p.20). Segundo Alves, a verdade
das histrias est no desejo: As estrias delimitam os contornos de uma grande
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19
ausncia que mora em ns. Em outras palavras: elas contam um desejo. E todo
desejo verdadeiro. (ALVES, 1988, p.14). Afirma, ainda, que sem as histrias de
encantamento, no h beleza, e sem a beleza a vida perde o sentido. Vale aqui
ressaltar que, para o homem primitivo, o mito no era visto como uma literatura
fantasiosa, como alerta Junior:
O homem primitivo nunca considerava a narrativa mtica como fico, lenda ou literatura fantasiosa. O mito lhe falava da verdadeira realidade, o evento que conferiu significado e consistncia a seu mundo (JUNIOR, 1984, p.21.)
Em outro trecho, o autor refere-se ao mito como algo que vai alm do
material:
O mito no uma superestrutura, na medida em que no se limita a ser translao de estruturas materiais; ele tambm no um vu ideolgico de algo que existe, mas que no gostaramos de ver; nem uma justificativa vulgar da realidade que considerada injusta. O mito muito mais do que tudo isso e, em certos casos, mais essencial do que a prpria estrutura material (JUNIOR, 1984, p.20).
Partindo desse posicionamento sobre o mito, torna-se possvel aproximar a
realidade mtica da realidade do discurso, principalmente quando Jnior afirma ser o
mito, em certos casos, mais essencial do que a prpria estrutura material, ou seja, o
mito vai alm do texto, pois um discurso que vai alm da materialidade textual.
Dessa maneira, podemos recorrer a Bakhtin e o Crculo para afirmar que h todo um
contexto scio-ideolgico que constitui o discurso, ou seja: cada poca e cada
grupo social tm seu repertrio de formas de discurso na comunicao scio-
ideolgica (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p.42). Em outro trecho, tratada a
situao da enunciao e do auditrio como elementos imprescindveis para o
fenmeno da enunciao. Compara-se a enunciao a uma ilha que emerge de um
oceano sem limites, ou seja, h uma rede de relaes, uma expresso exterior j
estabelecida que adentra na realidade discursiva, modificando-a. Assim elucida
Bakhtin/Volochnov:
A enunciao realizada como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimenses e as formas dessa ilha so determinadas pela situao da enunciao e por seu auditrio. A situao e o auditrio obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expresso exterior definida, que se insere diretamente no contexto no verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ao, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situao de enunciao (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p.127).
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Alerta, assim, sobre a importncia do auditrio do outro, da resposta
enunciativa e da situao de enunciao, que so os elementos extraverbais, para
que o discurso possa de fato emergir, ganhar vida. O mito, que tambm um
discurso, no pode ser separado da sua situao enunciativa especfica. Por
exemplo, o mito de Narciso, objeto deste estudo, na obra de Caravaggio no o
mesmo que aquele representado por Poussin ou por qualquer outro artista. Com
qualquer outro mito assim: h elementos fixos que permanecem para que o mito
seja identificado, mas h sempre elementos novos acrescidos a cada representao
do mito. Os interlocutores e a situao enunciativa mudam, e o mito possui a
capacidade de se adaptar.
1.2 Narciso refletido: transcendncias
Tu tens um ideal nobre em vista; mas s feito de uma pedra suficientemente nobre para tirar de ti semelhante imagem divina?
Nietzsche (2008)
Tirsias j havia previsto o triste fim de Narciso, caso este contemplasse a si
mesmo. O forte teor trgico do mito de Narciso j se revela na sntese de seu
enredo. O carter moralizante por trs de sua simbologia junto a sua potica faz
desse mito grego um dos mais influentes em diversas manifestaes artsticas e em
reas de estudo como a psicologia e a filosofia. Porm, o aspecto moralizante do
mito, que reala o perigo da vaidade, sintetiza sem prejuzo de perda, o significado
da imagem refletida nas guas?
Fedeli, ex-presidente da associao cultural Montfort entidade civil de
orientao catlica em seu texto intitulado Poa dgua, de 2005, que pela data j
exemplifica a vivacidade do mito em pleno sculo XXI, afirma que:
O mundo pago criou o mito de Narciso, espelhando-se na fonte. E to encantado teria ficado o tolo do Narciso com a sua linda figura, que se lanou gua, e na fonte se afogou. o que diz o mito pago e mentiroso. Foi o castigo da vaidade, explicam os professores superficiais e rasos como poas d gua, o que ensina o mito de Narciso. Da o narcisismo como designativo de uma auto-contemplao vaidosa e orgulhosa. No. Narciso no se apaixonou por sua prpria figura, mas por sua imagem. (FEDELI, 2005, p.4).
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Quando Fedeli utiliza a palavra imagem diferenciando-a da palavra figura,
introduz naquela um campo semntico mais amplo no presente nesta, um campo
que marca uma transcendncia na experincia de Narciso, que transpe o reflexo.
No dicionrio Houaiss (2004), a palavra figura e a palavra imagem se assemelham
em algumas acepes. Abaixo, a definio de ambas:
Fi.gu.ra s.f. 1 forma exterior de um corpo 2 forma geomtrica 3 representao visual; ilustrao, estampa 4 fig. Pessoa importante ou curiosa ou comum f. de linguagem loc. subst. GRAM forma de exprimir o pensamento para tron-lo mais incisivo, comovente, original, fugindo da maneira usual da comunicao f. de palavra loc. subst. GRAM recurso lingustico que est relacionado com a mudana de sentido das palavras (p. ex.: a metfora, a metonmia, a sindoque, a hiprbole) f. de sintaxe loc. subst. GRAM figura pela a construo da frase, a fim de criar um efeito de estilo, foge ao padro gramatical tradicional (p.ex. o zeugma, o anacoluto, o pleonasmo etc.) f. de ritmo loc. subst. MS sinal grfico que indica a durao de uma nota musical ou de uma pausa; figura (HOUAISS, 2004, p.342).
I.ma.gem s.f. 1 representao visvel de um ser ou objeto por meios artsticos ou tcnicos (i. desenhada, gravada, esculpida) 2 cena, quadro (i. urbanas) 3 reproduo visual por reflexo (i. no espelho) 4 fig. Rplica, retrato ( a i. do pai) 5 fig. Conceito de que uma pessoa goza junto a outras (teve a i. abalada pelo escndalo) COL iconografia, iconoteca (HOUAISS, 2004, p. 399).
Percebe-se que as duas palavras podem remeter a uma representao visual.
A palavra imagem j traz esse dado na sua primeira acepo, j a figura, apenas na
terceira. A palavra imagem, na terceira acepo, traz uma definio prxima
experincia de Narciso: 3. Reproduo visual por reflexo (...). Porm, no se trata,
aqui, de procurar nas acepes uma justificativa da escolha de Fedeli, ou de expor
que ambas possuem significados semelhantes e de que, assim, escolher uma no
lugar da outra, no resulta em diferenas significativas em tal discurso. O fato que
a escolha de Fedeli de extrema importncia para a formao discursiva. Ela
contribui, por exemplo, com a coerncia ideolgica do discurso dele. A palavra no
um depsito inviolvel de significados, ela no fechada em si mesma, ela no vem
pronta para o discurso. A palavra neutra no sentido de poder assumir qualquer
funo ideolgica, como assim alerta Bakhtin/Volochnov:
[...] a palavra no somente o signo mais puro, mais indicativo; tambm um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos especfico de algum campo particular da criao ideolgica. Cada domnio possui seu prprio material ideolgico e formula signos e smbolos que lhe so especficos e que no so aplicveis a outros domnios. O signo, ento,
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criado por uma funo ideolgica precisa e permanece inseparvel dela. A palavra, ao contrrio, neutra em relao a qualquer funo ideolgica especfica. Pode preencher qualquer espcie de funo ideolgica: esttica, cientfica, moral, religiosa (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p. 35).
No caso de Fedeli, a preferncia pela palavra imagem no lugar da palavra
figura j denuncia uma ideologia crist como fonte do seu dizer. Fedeli associa o
espelhamento presente no mito de Narciso ocorrncia bblica do infinito refletido
no finito, a poa dgua que reflete o cu, Deus refletido no homem. Logo, pode vir
tona para o leitor o termo imagem presente em um dito bblico j popular de que
Deus fez o homem a sua imagem e semelhana. E Fedeli deixa bem explcita tal
relao ao citar trechos do Gnesis em seu discurso:
Tambm o homem foi feito no Princpio. E Deus disse: Faamos o homem nossa imagem e semelhana e presida ele aos peixes do mar, e s aves do cu e aos animais selvticos e a toda a terra (Gen. I, 26).
E o Senhor Deus formou, pois o homem o homem do barro da terra, e inspirou no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma vivente (Gen. II, 7).
Assim Deus fez o homem de barro. Com terra e gua. E o fez sua imagem. O homem espelha a Deus em sua alma. Tal como a poa dgua espelha o cu, a alma humana espelha a Deus. Ao olhar uma poa dgua, vemos o cu nela refletido. Ao contemplarmos o rosto do homem, rosto em que Deus soprou, pode-se ver transparecer nele a imagem de Deus (FEDELI, 2005, p. 4 e 5).
Em alguns contextos a palavra imagem poderia ser veiculada palavra figura,
apresentando um sentido e uma entoao valorativa prximos. Porm, no discurso
de Fedeli, isso no ocorre. E um dos fatores dessa no ocorrncia se d pela
entoao valorativa que faz nascer na palavra imagem um sentido metafsico no
presente na palavra figura, um sentido formulado pelo discurso religioso.
Fundamentado nos escritos de Bakhtin e seu Crculo, Stella (2005) trata das quatro
propriedades definidoras da palavra. A primeira delas a pureza semitica, que se
refere capacidade da palavra de transitar em vrias esferas, trata-se da sua
circulao como signo ideolgico. Nessa propriedade, prevalece o sentido mais
estvel da palavra como aquele que se encontra nos dicionrios e poderia, no
discurso aqui estudado, causar certa estranheza no leitor ao ver no texto de Fedeli
uma diferenciao feita entre a palavra imagem e a palavra figura para tratar de um
reflexo. Na pureza semitica, impera uma noo comum, ou melhor, um signo
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internamente circulante na conscincia dos interlocutores. J a segunda
propriedade, intitulada possibilidade de interiorizao, trata do confronto entre o
signo internamente circulante e o externo, ou seja, o processo de interiorizao que,
segundo Stella, acontece: na compreenso dessas nuances de tons, circulantes no
signo externo. Os novos significados devem ser compreendidos pelo locutor
(STELLA, 2005, p. 187). E nesse sentido, na compreenso do interlocutor, que a
palavra imagem passa a ter uma ampliao em seu sentido, pois a pureza semitica
entra em choque com os valores entoados no/pelo discurso. A terceira propriedade,
intitulada participao em todo ato consciente, refere-se possibilidade da palavra
de ter um duplo funcionamento: funciona nos processos internos da conscincia e
tambm nas esferas ideolgicas. Em sntese, trata-se da circulao interna e
externa do signo. Porm, mesmo com tal convivncia funcional, ambos no
compartilham de uma mesma identidade perfeita, como alerta Stella:
O que importante notar o fato da no identidade perfeita entre os dois momentos de circulao. O signo interno, que circula na conscincia como resultado da integrao entre a experincia socioideolgica do sujeito sobre esse signo e o mundo exterior, no idntico ao signo original. E o signo externo, circulante nas vrias esferas ideolgicas e, portanto, inoculado pelos aspectos genricos e carregado de entoaes, tambm no idntico quilo que passa a circular internamente na conscincia do sujeito (STELLA, 2005, p. 187-188).
Pelo fato de no haver essa identidade perfeita, pode-se chegar quarta
propriedade, que a neutralidade, aqui j mencionada. Tal propriedade possibilita
palavra uma transio em diversas esferas ideolgicas e faz com que haja um elo,
uma mediao entre uma conscincia interna e quilo que h de externo, neste
caso, uma ponte para as entoaes valorativas que emanam da palavra imagem em
funcionamento no discurso de Fedeli.
Fedeli tambm menciona a viso gnstica do mito, afirmando ser ela a verso
mais profunda e tambm a mais falsa. Ela no o agrada por ser uma postura pag:
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Para a Gnose, o mito de Narciso ensina que o homem queria buscar a divindade, que existiria nele como uma semente divina posta no homem [...].
Para a Gnose, Narciso, -- o homem -- ento, deveria matar-se, para fugir deste mundo material, mergulhar em si mesmo, em busca do seu verdadeiro eu interior, que seria divino. A fuga do mundo material era simbolizada pelo mergulho de Narciso na fonte, em uma busca de sua imagem, invertida pelo espelho das guas. Seria preciso fugir da vida, fugir deste mundo material e buscar outro mundo inverso deste mundo em que Deus nos colocou.
Auto-contemplao vaidosa na superfcie, auto adorao gnstica no profundo das guas da fonte, de ambos os modos o narcisismo bem condenvel, em qualquer de suas explicaes pags feitas [...] (FEDELI, 2005, p.4).
O termo narcisismo, caracterizado por Fedeli como condenvel, ganhou
grande notoriedade nos escritos de Freud (2010), em sua obra intitulada Introduo
ao Narcisismo, lanada primeiramente em 1914. Nessa obra, ele trata tal termo
como uma pulso sexual. Borges (1996), em seu livro intitulado Metamorfoses do
Corpo: uma pedagogia freudiana, datado de 1996, faz um levantamento desse
narcisismo em que se amar por meio do outro o renascimento e a reproduo do
prprio narcisismo, o singular do outro anulado em favor de si. O autor afirma que
o narcisismo nasce do auto-erotismo, porm mesmo o auto-erotismo estando desde
o comeo na vida do indivduo, o narcisismo se manifesta, apenas, junto ao
nascimento do eu. Borges descreve assim o corpo de um narcsico:
Vejamos um retrato de um corpo narcsico, um Narciso: ser nico, todo-poderoso pelo corpo e pelo esprito encarnado no seu verbo, independente e autnomo sempre que queira, mas de quem os outros dependem sem que ele se sinta portador em relao a eles do menor desejo. Residindo entre os seus, os de sua famlia, de seu cl e de sua raa, eleito pelos signos evidentes da divindade, feita sua imagem. Ele o primeiro deles, Senhor do universo, do Tempo e da Morte, todo vaidoso do seu dilogo sem testemunhas com o Deus nico que o enche de favores inclusive na queda, pela qual o objeto escolhido de seu sacrifcio , intercessor entre Deus e os homens, vivendo no isolamento de sua luz. Esta sombra do Deus uma figura do mesmo, do imutvel, do intangvel, do imortal e do intemporal.
Quem no reconheceria, no segredo de seus fantasmas, esta figura, quer a sirvamos ou sustentemos o demente projeto de encarn-la? (BORGES, 1996, p.110)
Essa pergunta de Borges (1996), por seu carter de abrangncia, propondo,
assim, a existncia de um Narciso dentro de cada indivduo, e a postura de Fedeli
(2005) na qual ele encara o mito de Narciso afastando-o de interpretaes pags e
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empregando caractersticas que lhe convm, exemplificam as diversas facetas que
um mito pode assumir, dependendo da teoria que usada como via de
interpretao, ou seja, dependendo das entoaes valorativas que esto em jogo.
Assim posto, qual o olhar que se deve ter frente ao mito de Narciso? Qual o olhar
que se deve ter frente a um mito? H um olhar especfico que deve ser seguido?
Antes de refletir diretamente sobre tais questes, qual seria a melhor definio de
mito? Sabe-se que h uma tendncia da cultura ocidental a entender o mito como se
fosse mera fico. Tal entendimento comea a decair depois do sculo XIX, quando
estudiosos passam a analis-lo por meio de um novo ponto de vista. Mircea Eliade
(1998), em seu livro intitulado Mito e realidade, alerta para essa mudana de
perspectiva na qual o mito passa a ser estudado sem que se despreze a viso das
sociedades arcaicas que vem nele um carter sagrado, exemplar e significativo
(ELIADE, 1998, p.7).
Em A sabedoria dos antigos, obra de Francis Bacon (1561-1626), mitos
gregos so interpretados de forma alegrica e, dentre eles, o de Narciso. Bacon, no
prefcio dessa obra, alude s possveis distores que as fbulas podem sofrer nas
mos de homens que as utilizam em benefcio prprio. Exemplificando, ele
menciona os alquimistas que transferiram para suas experincias de fornalha os
passatempos e brincadeiras dos poetas (BACON, 2002, p.18). Bacon v nas
fbulas, e ele alerta no ser um nmero pequeno dessas, um mistrio e uma
alegoria, como se tais elementos fossem caractersticas inatas desse gnero.
Bacon acredita que, numa boa parte das fbulas, a forma e textura da
narrativa, assim como a simples escolha dos nomes das personagens, conspiram a
favor da coisa significada. Segundo o filsofo, outra caracterstica que aproxima
algumas fbulas de um significado oculto o absurdo de suas histrias que as torna
inverossmeis como se tal fato ocorresse para anunciar dentro delas uma parbola.
Para Bacon, essas fbulas so relquias sagradas e brisas de tempos melhores
(Ibid. p. 20), por razo de advirem de tradies de pases antigos e depois acolhidas
pela arte grega.
No mito de Narciso, as conexes que conspiram a favor da coisa significada
so explicitadas por Bacon, por exemplo, quando ele exalta o fato de ser justamente
uma flor da primavera a nascer no local em que Narciso faleceu. Ele v, em tal
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escolha, uma elegncia, pois a flor e a personagem principal se assemelham j que
desmentem na maturidade as promessas da juventude (Ibid. p. 29). O autor lembra
que tal flor mantm relao com as divindades infernais, pois o que no deixava
frutos e no prosperava era consagrado a tais divindades. O destino do prprio
Narciso, aps a sua morte, explica o porqu dessa consagrao, j que Narciso foi
condenado a viver no inferno a mesma condio que o levou morte, segundo
Ovdio: E mesmo no inferno ele encontrou uma lagoa para se mirar, admirando sua
imagem nas guas de Stygian (OVIDIO, 2003, p.65). Nessa fbula, segundo Bacon,
h a representao daquele que no soube lidar com uma graa (beleza ou dom)
dada pela natureza e, assim, vislumbrou-se por si mesmo.
Carvalho (1998), em seu ensaio intitulado O encontro impossvel de Eco e
Narciso, concentra-se tal qual Bacon neste conflito expresso pelo mito: o
relacionamento com o outro. O autor mantm o foco na dificuldade que os
personagens, Narciso e Eco, tm de construir um relacionamento afetivo; a primeira
personagem a representao da limitao da imagem, e a segunda a
representao da limitao da palavra. A ninfa Eco foi castigada por Hera, esposa
de Zeus, pelo fato de t-la distrado com sua lbia para que Zeus pudesse manter
relaes extraconjugais. O castigo foi condenar a ninfa a emitir somente as ltimas
palavras do outro. Abaixo, o trecho referente a esse castigo:
Juno, para castig-la, disse: A lngua que tentou me enganar encurtar, Ter pouco uso, a voz ser um resumo, Daqui em diante No eram palavras vs; eco ficou condenada a repetir sempre a ltima palavra que ouve e nada alm (OVIDIO, 2003, p. 62).
Quando Eco conhece Narciso e por ele acaba se apaixonando, ela j est
nessa condio, e o dilogo entre os dois, presente no livro III das Metamorfoses de
Ovdio expressa, em seu comeo, o entendimento entre ambos. Narciso gosta da
voz que ouve, que, alis, a sua prpria, e Eco admira a beleza do rapaz. O
desentendimento entre eles s se d quando se encontram cara a cara: E para
reforar suas palavras / saiu do bosque com os braos prontos / Para enlaar o
pescoo dele. Mas, Narciso se retraiu: / Fique longe de mim!. (OVIDIO, 2003, p.
62).
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Quanto aos trechos do dilogo presentes no ensaio de Carvalho (1998), a
parte mais promissora referente possibilidade de haver uma concretizao
amorosa entre ambos como um contato fsico ocorre quando Narciso diz
Unamo-nos! e Eco repete, logicamente, a sentena com satisfao. Porm, alm
da rejeio instaurada quando ela tenta tocar Narciso, o dilogo entre ambos
termina de forma trgica para qualquer possibilidade futura de concretizao.
Carvalho expe o dizer final de Narciso a Eco: Antes morrer que entregar-me inteiro
a ti. Assim, apenas resta a Eco, impulsionada pela maldio, repetir as ltimas
palavras de seu amado, que acabam por indicar o desejo da ninfa: Entregar-me
inteiro a ti. Eco, desprezada por Narciso, definha at morrer. Aps sua morte, a voz
dela continua a viver, porm ainda presa maldio.
A ninfa no foi a nica a ser desprezada por Narciso, Ovdio relata que
Niades ou Orades e jovens rapazes tambm foram vtimas de seu desprezo. At
que um deles clamou por justia.
At que finalmente um deles, rejeitado, Levantou seus braos para o cu e pediu Possa Narciso Amar um dia, de modo que ele prprio no consiga ganhar A criatura que ama! (OVIDIO, 2003, p. 63)
E Nmesis, a deusa da Vingana, ao ouvir esse clamor, resolve atend-lo. Ela
faz com que Narciso se apaixone pela imagem dele refletida num lago. L, na relva
frente ao lago, Narciso morre consumido por si mesmo. E a voz de Eco acompanha
os ltimos momentos de seu amado, compartilhando com ele a dor:
Narciso, consumido pelo fogo da paixo, Aproxima-se lentamente do fim, perdendo aos poucos sua cor, Sua fora, sua audcia e graa Esmaecendo, e at seu prprio corpo, Que Eco tanto amara. Ela lamenta por ele, Embora ainda magoada; seria possvel ouvi-la Responder maldio! quando Narciso Clama Maldio!. Seria possvel ouvir as mos dela batendo No peito enquanto ele batia no dele. Adeus amado rapaz Em vo adorado!Foram suas ltimas palavras, e Eco Repetiu-as para ele. Sua cabea fatigada Afundou no relvado, e a morte fechou os olhos Que outrora se maravilharam com a beleza de seu dono (OVIDIO, 2003, p.65).
Muitos choravam sua morte, suas irms niades/ O pranteavam, e as drades
choravam por ele e Eco/ Fazia o mesmo (OVIDIO, 2003, p.65). E quando foram em
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busca de seu corpo, para os preparativos funerrios, encontraram apenas uma flor
com um miolo amarelo/ Circundado por ptalas brancas (OVIDIO, 2003, p.65).
As reflexes aqui apontadas possibilitam a percepo do funcionamento do
mito como discurso, articulado por enunciados concretos nos quais personagens,
narrativa e o ponto de partida para o autor criador tornam-se essncias, assim como
o prprio cronotopo do autor-pessoa e da obra, conceitos que sero retomados
adiante.
No captulo seguinte, apresenta-se a fundamentao terico-metodolgica do
presente trabalho.
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CAPTULO II - BASES PARA A ANLISE DIALGICA DOS
NARCISOS
Neste captulo, primeiramente, ser apresentada a escolha do corpus da
anlise. Ele constitudo pelo o poema de Ovdio (2003) intitulado A histria de Eco
e Narciso e pelas seguintes obras pictricas: Narciso (1599-1600), de Caravaggio,
Eco e Narciso (1627), de Poussin, e Narciso na fonte (1728), de Lemoyne. Depois,
sero apresentados os pressupostos tericos para a anlise do corpus. Conceitos
da filosofia bakhtiniana e do Crculo sero colocados como elementos chave para a
anlise. E, especificamente, a respeito dos elementos pictricos, vem tona como
base terica a obra de Dondis (2007) e textos que tratam do tema do mito de
Narciso nas artes plsticas como o artigo de Marquetti (2010) intitulado Um corpo
desejoso: a figurativizao no mito de Narciso.
Nos textos que constituem esse captulo, a obra de Bakhtin e do Crculo se
sobressaem como fundamentao terica chave, principalmente, por meio das
obras: Marxismo e filosofia da linguagem (2006) e alguns textos da coletnea
Esttica da criao verbal (2003) como O problema do texto na lingustica, na
filologia e em outras cincias humanas.
2.1 A escolha do corpus
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, Dobrado em dois sobre o meu prprio poo... Ah, que terrvel face e que arcabouo Este meu corpo lnguido escondia!
Trecho do poema Narciso, de Jos Rgio (2014)
Aquele que nunca se admirou frente ao espelho que atire a primeira pedra!
Quem, dentre aqueles que conhecem o mito de Narciso, no reprovou o ato do
rapaz que se apaixonou pelo seu prprio reflexo, ou esteve ciente da propagao da
interpretao desse ato visto como um pecado, ou at mesmo como uma tolice, j
que o objeto de amor de Narciso nunca poderia ser obtido?
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Este estudo trabalha o mito de Narciso na verso de Ovdio (2003). Trata-se
da verso mais difundida, atuante em diversas manifestaes artsticas e reas de
estudo. Na constituio do corpus, alm do texto do poeta, trs pinturas tambm
esto presentes. O ponto de partida a representao pictrica mais famosa do
mito: a obra barroca Narciso (1599-1600), de Caravaggio. A segunda, intitulada Eco
e Narciso, de 1627, de Nicolas Poussin, tambm pertence ao Barroco. A terceira
de autoria de Franois Lemoyne e recebe o nome de Narciso na fonte, de 1728,
mais de um sculo aps a obra de Caravaggio, demonstra uma diferena bem
acentuada na representao do mito.
As trs obras so comparadas entre si e com o texto de Ovdio em uma
juno entre a literatura e as artes plsticas, entre o verbal e o visual. No texto e em
cada pintura, acrescenta-se um novo dado, uma nova maneira de ver o mito,
contribuindo, assim, para um ganho de sentidos.
Na busca por esses sentidos, vm tona os temas de cada obra. O tema
um estgio superior da significao, que est ligado enunciao, aos elementos
extraverbais, e tambm aos elementos estveis da significao como assim disserta
Cereja apoiado no pensamento de Bakhtin:
[...] o tema indissocivel da enunciao, pois, assim como esta, a expresso de uma situao histrica concreta. Como decorrncia, nico e irrepetvel. Participam da construo do tema no apenas os elementos estveis da significao mas tambm os elementos extraverbais, que integram a situao de produo, de recepo e de circulao. Dessa forma, o instvel e o inusitado de cada enunciao se somam significao, dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construo de sentido. O sistema de significao, entretanto, no se configura como fixo e biunvoco: o tema se incorpora significao, de modo que o sistema sempre flexvel, mutvel, renovvel (CEREJA, 2005, p.202).
Assim, cada Narciso pictrico ou verbal constitudo por um tema especfico
que envolve elementos do extraverbal como os estilos de cada poca, que no
apenas permeiam as obras, como tambm, fazem parte de sua constituio. Um
exemplo o movimento artstico barroco referente ao Narciso de Caravaggio, no
qual os dualismos em voga na poca, como corpo e alma, contribuem para a
representao do espelhamento que demarca dois Narcisos. Um mais etreo,
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nebuloso, escuro, que a imagem. O outro o real, mais corpreo, na parte de
cima, com maior incidncia de luz. Em seguida, a pintura:
Fig. 1. Caravaggio. Narciso, 1599-1600, leo sobre tela. Galeria Nacional de
Arte Antiga, Roma. Fonte: Disponvel em:
Acesso em: 27, jul. 2014.
A obra de Poussin, Eco e Narciso, apresenta um acrscimo de personagens e
tambm barroca. Mas se trata de um barroco fundamentado em outras origens,
em outras influncias. So influncias de pintores clssicos venezianos, entre eles,
ecoa o nome de Ticiano. A notvel diferena entre Caravaggio e Poussin
mencionada por Arnold Hauser (1998) em seu livro intitulado Histria Social da Arte
e da Literatura: Somos as testemunhas do florescimento simultneo de tendncias
absolutamente opostas, e vemos artistas contemporneos, como Caravaggio e
Poussin [...] situarem-se em campos completamente diferentes. Em seguida, a
pintura de Poussin:
http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/caravaggio.htm#axzz38hzdAVBS
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Fig, 2. POUSSIN, Nicolas. Eco e Narciso, 1627, leo sobre tela. Museu Nacional
do Louvre, Paris. Disponvel em: . Acesso em: 10 jan. 2015.
Quanto pintura de Lemoyne, Narciso na fonte, diferente dos Narcisos das
pinturas de Caravaggio e Poussin, ela se situa no estilo Rococ, ligado primeira
metade do sculo XVIII, durante o reinado de Lus XV. O Rococ no apenas uma
variao do Barroco expresso principalmente na decorao. Ele combate os
exageros deste, clamando por uma arte mais harmoniosa que traga boas sensaes
aos olhos do espectador. Valoriza-se agora o bom gosto e nada que caia no vulgar
permitido. A seguir, a pintura de Lemoyne:
http://translate.googleusercontent.com/translate_c?hl=pt-BR&langpair=en|pt&u=http://www.nicolaspoussin.org/Echo-and-Narcissus-1628-30-large.html&rurl=translate.google.com.br&usg=ALkJrhiO31undlB91ndSnUzWREIyAhttp://www.infopedia.pt/$nicolas-poussin
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Fig. 3 LEMOYNE, Franois. Narciso na fonte, 1728, leo sobre tela. Amburgo,
Kunsthalle. Fonte: Disponvel em: . Acesso em: 27 jul. 2014.
Os Narcisos de Lemoyne, de Poussin e o de Caravaggio so relacionados
entre si e com o poema de Ovdio, com ateno s especificidades do verbal e do
visual na esfera artstica. As pinturas so analisadas em ordem cronolgica,
enfatizando o cronotopo no desenvolvimento da enunciao. O corpus, do presente
estudo, possibilita que haja reflexes sobre o dado e o criado na transposio de um
plano de expresso para outro. Trata-se de um fenmeno semelhante a este
descrito por Brait sobre uma obra de Guimares Rosa adaptada por Bial para o
cinema:
Tomando como objeto a organizao dos dois planos de expresso, o literrio e o cinematogrfico, e a recriao de personagens advindas diretamente de uma dada cultura, de sua constituio social, dos diferentes aspectos, a includo o imaginrio, que contribuem para sua identidade/diversidade, possvel arriscar que tanto Guimares Rosa, o grande escritor, e Bial, o cineasta, constituem seu estilo a partir da relao com o outro, e/ou esteticamente constitudo. E, assim, estabelecem as proximidades e as distncias que podem ser reconhecidas entre a prosa literria, conforme nos ensina Bakhtin, e a fico cinematogrfica, bem como a dimenso da autoria implicada no discurso potico de Guimares
http://www.epdlp.com/cuadro.php?id=3778
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Rosa e a dimenso de autoria de um filme cujo outro tomado como interlocutor, como motivo de dilogo, uma obra literria.
A questo essencial da passagem de um plano de expresso constitudo e reconhecido, j circulante na cultura, como acontece com a obra de Rosa, para outro, um fator que sem dvida deixa uma margem de autoria para o autor do texto de partida. Entretanto, o deslocamento inicial da autoria para um segundo plano, assombrada pela forte imagem de Guimares Rosa e sua forma particular de lidar com a cultura e com a linguagem, no elidem o manejo visual, esttico e cultural constitudo cinematograficamente pelo dilogo que o cineasta estabeleceu com seu objeto de conhecimento, prazer e desejo. (BRAIT, 2005, p. 93-94).
No caso da presente dissertao, os dois planos de expresso so a literatura
e a pintura, e Ovdio figura como o autor do texto de partida.
2.2 Desgnios tericos
Tudo meio, o dilogo o fim. Uma s voz nada termina e nada resolve. Duas vozes so o mnimo de vida, o mnimo de existncia. (BAKHTIN, 1997, p. 257).
Segundo Bakhtin, um discurso uma unidade de sentido, e essa unidade
deve ser compreendida como qualquer conjunto de signos. Assim afirma o filsofo
em seu texto intitulado O problema do texto na lingustica, na filologia e em outras
cincias humanas:
Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a cincia das artes (a musicologia, a teoria e a histria das artes plsticas) opera com textos (produtos da arte). So pensamentos sobre pensamentos, vivncias das vivncias, palavras sobre palavras, textos sobre textos (BAKHTIN, 2003, p. 307).
Logo, uma obra de arte, por exemplo, uma pintura, enquadra-se como um
discurso por se tratar de um conjunto de signos. Assim, o estudo em questo pode
ser intitulado como um estudo do visual e do verbal, pois apresenta uma variedade
nos produtos da arte ao aproximar a literatura (o poema de Ovdio (2003), intitulado
Eco e Narciso), as artes plsticas (por meio dos Narcisos pictricos de Caravaggio,
Poussin e Lemoyne) e com textos tericos do universo da filosofia da linguagem.
Em cada voz discursiva, em cada representao, apresenta-se um novo
Narciso, porm cada Narciso possui marcas de um dado que possibilita sua
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identificao, fato que traz tona os dizeres de Bakhtin, presentes no texto O
problema do texto na lingustica, na filologia e em outras cincias humanas. Assim
afirma o filsofo sobre o dado e o criado:
O dado e o criado no enunciado verbalizado. O enunciado nunca apenas um reflexo, uma expresso de algo j existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que no existia antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relao com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza, etc.). Contudo, alguma coisa criada sempre criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenmeno observado da realidade, o sentimento vivenciado, o prprio sujeito falante, o acabado em sua viso de mundo, etc.). Todo o dado se transforma em criado. Anlise do mais simples dilogo cotidiano (Que horas so? Sete horas). A questo mais complexa da pergunta. necessrio olhar para o relgio. A resposta pode ser verdadeira ou no, pode ter significado, etc. A que horas, a mesma pergunta feita no espao csmico, etc. (BAKHTIN, 2003, p.326).
Neste estudo, a respeito dessa relao entre o dado e o criado, pode ser
percebida ao comparar o mito de Narciso, segundo a verso de Ovdio, como algo
dado nas representaes pictricas. Por exemplo, pode-se analisar a maneira de
como construdo o reflexo de Narciso no mito de Ovdio e depois de como ele
trabalhado, criado, nas pinturas. As comparaes so possveis graas s relaes
dialgicas entre os Narcisos. Tais relaes so extralingusticas, elas so
constitudas no encontro das vozes discursivas, logo, vo alm da lngua como
fenmeno integral concreto. Entretanto ir alm no resulta em uma separao, como
alerta Bakhtin:
Assim, as relaes dialgicas so extralingusticas. Ao mesmo tempo, porm, no podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da lngua enquanto fenmeno integral concreto. A linguagem s vive na comunicao dialgica daqueles que a usam. (BAKHTIN, 1997, p. 183).
O estudo das relaes dialgicas se estabelece com a seguinte disciplina
proposta pelo filsofo russo: a metalingustica. Tal disciplina surge para tratar,
exatamente, das relaes que se situam no plano do discurso, ou seja, das relaes
dialgicas, que no se limitam s fronteiras definidas, por exemplo, pela lingustica
estruturalista, que se situa apenas no plano da lngua. Di Fanti (2003) assim
argumenta sobre o surgimento da metalingustica:
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Bakhtin [...]. Mostra, assim, que o interesse da sua teoria por anlises efetuadas a partir de relaes dialgicas, no plano do discurso, e no por anlises lingusticas, no sentido rigoroso do termo, no plano da lngua. Prope, ento, uma nova disciplina - a metalingustica - como um estudo dos aspectos da vida do discurso que ultrapassam os limites da lingustica estruturalista. No entanto, deixa claro que as anlises lingusticas no podem ser ignoradas e seus resultados devem ser aplicados pelas pesquisas metalingusticas (DI FANTI, 2003, p.97).
O estudo dos aspectos da vida do discurso por meio das relaes dialgicas
abrange tambm o fenmeno da autoria que permeia e ajuda a constituir tais
relaes. Reflete-se sobre o autor, mas no apenas sobre o autor dito real. Assim
observa Pessoa em sua dissertao: Para que possamos identificar as relaes
dialgicas, ns precisamos atribuir os enunciados a um autor que pode, at mesmo,
ser distinto do autor real (PESSOA, 2009, p. 19). Em outro trecho, Pessoa coloca
como imprescindvel a importncia do entendimento da relao entre diferentes
autores. Entre as relaes dialgicas h sempre mais de um autor ou mais de uma
cosmoviso diferente:
Embora a definio das relaes dialgicas vincule-as, num primeiro momento, aos enunciados integrais, Bakhtin acrescenta que elas podem ocorrer entre parte dum enunciado e parte doutro e tambm entre um enunciado e uma parte isolada do prprio enunciado. Em um nvel macro, as relaes dialgicas tambm so possveis entre estilos de linguagem, dialetos sociais etc. Em quaisquer desses nveis de relaes dialgicas, elas s existem se pudermos entender os dois plos da relao como duas posies de autores diferentes ou duas cosmovises diferentes (PESSOA, 2009, p.19).
Os conceitos de autor pessoa, autor criador e heri figuram como base para o
presente estudo. Na filosofia bakhtiniana, o autor pessoa o escritor ou artista, j o
autor criador aquele que engendra a obra, que se relaciona axiologicamente com o
heri e com o mundo deste como assim explica Faraco:
O autor criador entendido fundamentalmente como uma posio esttico-formal cuja caracterstica bsica est em materializar certa relao axiolgica com o heroi e seu mundo: ele os olha com simpatia ou antipatia, distncia ou proximidade, reverncia ou crtica, gravidade ou deboche, aplauso ou sarcasmo, alegria ou amargura, generosidade ou crueldade, jbilo ou melancolia, e assim por diante (FARACO, 2009, p.89).
Faraco alerta, dessa maneira, que esse posicionamento axiolgico no
uniforme e homogneo, muito pelo contrrio, ele agrega mltiplas e heterogneas
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coordenadas (FARACO, 2009, p.89). Logo, no se trata da simples identificao de
plos como alegria ou amargura. A complexidade presente no todo esttico j se
mostra desde as escolhas das construes composicionais, que logo demonstram
as marcas axiolgicas e de linguagem do autor criador. Na pintura Narciso de
Caravaggio, por exemplo, a composio do heroi Narciso, na parte de baixo,
enquanto reflexo, difere do Narciso no reflexo presente na parte de cima:
Fig. 10. Caravaggio. Narciso, 1599-1600, leo sobre tela. Galeria Nacional de
Arte Antiga, Roma. Fonte: Disponvel em:
Acesso em: 27, jul. 2014.
Tais escolhas referentes composio, como o espao e a tonalidade dos
elementos pictricos, podem, por exemplo, resultar no surgimento de uma certa
hierarquia de um Narciso sobre o outro. Mas, qualquer que seja o efeito discursivo,
ele aponta para um posicionamento valorativo do autor criador. Como auxlio para a
anlise dessas propriedades pictricas, a obra de Dondis (2007) vem tona,
refletindo sobre a sintaxe da linguagem visual, tambm h como base artigos sobre
representaes pictricas do mito de Narciso como ocorre com o postulado de
Marquetti (2007). J referente s propriedades lingusticas, ganha destaque a obra
http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/caravaggio.htm#axzz38hzdAVBS
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de Vargas (2011), principalmente, a respeito do aspecto verbal, e a de Fiorin (2005)
referente s debreagens, ambas com ascendncia para o mbito discursivo. O mito
de Narciso em cada obra, por ser antes de tudo um enunciado, apresenta um
recorte axiolgico nico pertencente a um autor criador que no se repete cuja
posio refratada e refratante, assim elucida Faraco:
Refratada porque se trata de uma posio axiolgica conforme recortada pelo vis valorativo do autor pessoa; e refratante porque partir dela que se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida (FARACO, 2009, p.91).
A posio refratada e a refratante do autor criador remetem mxima de
Bakhtin/Volochnov de que qualquer signo reflete e refrata:
Um signo no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreend-la de um ponto de vista especfico, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica [...]. (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p. 30).
O autor assim sintetiza: O ser, refletido no signo, no apenas nele se reflete,
mas tambm se refrata (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p. 45). Logo, nunca
haver dois enunciados idnticos, ainda que se assemelhem muito, ou seja, ainda
que seja percebido mais o refletido do que o refratado. Esse carter nico mais
perceptvel quando se parte do conceito de enunciado concreto. J que esse termo
est extremamente ligado ao fenmeno da enunciao, que a situao especfica
em que se d a situao comunicativa, a interao, o desenrolar do processo que
faz com que cada discurso seja compreendido como um evento nico. A enunciao
remete sempre situao social mais imediata, que faz parte de sua estrutura, como
assim elucida o autor:
A situao social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu prprio interior, a estrutura da enunciao.
Na verdade, qualquer que seja a enunciao considerada, mesmo que no se trate de uma informao factual (a comunicao, no sentido estrito), mas da expresso verbal de uma necessidade qualquer, por exemplo, a fome, certo que ela, na sua totalidade, socialmente dirigida. Antes de mais nada, ela determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explcitos ou implcitos, em ligao com uma situao bem precisa; a situao d forma enunciao, impondo-lhe esta ressonncia em vez daquela [...]. A situao e os participantes mais imediatos determinam a
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forma e o estilo ocasionais da enunciao (BAKHTIN (VOLOCHNOV), 2006, p.115 e 116).
O estreito relacionamento do enunciado concreto enunciao, a essa
situao imediata que envolve os interlocutores, possibilita a reflexo sobre o
seguinte conceito chave bakhtiniano para o presente estudo: o cronotopo. Amorim
promove um estudo sobre as origens desse conceito:
Quanto ao conceito de cronotopos, este traz no nome um maior equilbrio entre as dimenses de espao e tempo. Bakhtin toma-o emprestado matemtica e teoria da relatividade de Einstein para exprimir a indissolubilidade da relao entre espao e tempo, sendo este ltimo definido como a quarta dimenso do primeiro (AMORIM, 2006, p. 102).
O cronotopo antes de tudo uma maneira de encarar tempo e espao como
fenmenos interligados. Assim afirma Bakhtin em seu ensaio Apontamentos de
1970-1971: O ponto de vista cronotpico e abrange tanto o elemento espacial
quanto o temporal (BAKHTIN, 2003, p.369). Cada enunciado traz consigo um
cronotopo especfico. Logo, quando h o encontro entre enunciados pode ser
percebida a manifestao de mais de um cronotopo como no caso do
encadeamento entre o sujeito compreendente e o compreendido: As complexas
relaes entre os sujeitos interpretados e o sujeito interpretador, entre o cronotopo
criado e o interpretador criativamente renovador (BAKHTIN, 2003, p.408). O
cronotopo no Narciso de Caravaggio que envolve, por exemplo, o tempo e o
espao barroco possibilita a renovao do mito, que difere do cronotopo presente
no Narciso verbal de Ovdio e das demais obras pictricas do presente estudo. Cada
cronotopo mantm constante relao com outros cronotopos, eles so regidos e
regem junto do grande tempo. Tal fato faz com que nenhuma obra esteja presa
apenas sua atualidade, assim esclarece Machado:
O homem no vive apenas no tempo, ele vive no grande tempo das culturas e das civilizaes. Uma das grandezas da criao literria para Bakhtin o fato de toda narrativa mostrar-se como sntese desse grande tempo. As obras literrias vivem um grande tempo, pois nascem num presente, mas no se alimentam apenas de sua atualidade (MACHADO, 1998, p.35).
O homem no grande tempo das culturas e das civilizaes vive tambm um
cronotopo s seu, vive sua atualidade, vive o tempo nico de sua existncia. H
assim uma natureza bifocal do cronotopo, conforme explica Sacramento:
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Nesse sentido, a anlise do cronotopo possibilita tanto, de modo mais restrito, a anlise narrativa de obras literrias tomadas a partir de sua singularidade cronotpica quanto, de modo mais amplo, a anlise das estruturas genricas mais estveis, que tendem invariabilidade e que perduram ao longo da histria, sendo assim reconhecidas como parte de um mesmo gnero. Nesse sentido, o cronotopo de natureza bifocal, j que pode ser usado como lupa reveladora do pormenor caracterstico do texto nico e como binculo adequado para a viso distanciada [...] (SACRAMENTO, 2013, p.88).
O homem em seu tempo, ele nico, fala de um lugar que no pode ser
ocupado por outro, trata-se do seu lugar no mundo, conforme Bakhtin: [...] nesse
momento e nesse lugar, em que sou o nico a estar situado em dado conjunto de
circunstncias, todos os outros esto fora de mim (Bakhtin, 2003, p.21). Porm esse
lugar s seu, por si s, no lhe garante o acabamento, ele necessita do outro, e s o
olhar do outro pode lhe dar acabamento, o outro sempre ver algo que o eu no
pode ver. O eu precisa do outro e o outro precisa do eu, todo eu o outro para
algum, tudo uma questo de perspectiva e de inter-relao contnua entre o eu e
o outro. Para efetuar esse acabamento, preciso que o eu saia de seu lugar e v ao
lugar do outro, olhar de l e, depois, retornar para o seu lugar j com a experincia
do outro lugar adquirida. Esse olhar de fora, ou seja, todo esse processo o que
Bakhtin denomina de excedente de viso. Tal excedente o responsvel pelo
acabamento, assim afirma o filsofo russo:
O excedente de viso o broto em que repousa a forma e de onde ela desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha viso complete o horizonte do outro indivduo contemplado sem perder a originalidade deste. Eu devo entrar em empatia com esse outro indivduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o v, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de viso que desse meu lugar se descortina fora dele, convert-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente de minha viso [...] (BAKHTIN, 2003, p.23).
No retorno ao seu lugar, aps ter ido ao lugar do outro, o eu comea a
organizar a sua experincia referente ao olhar obtido de fora. E precisamente o
retorno do eu para o lugar dele o ponto alto para o processo do excedente de viso,
segundo Bakhtin:
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Relacionar ao outro o vivenciado condio obrigatria de uma compenetrao eficaz e do conhecimento tanto tico quanto esttico. A atividade esttica comea propriamente quando retornamos a ns mesmos e ao mesmo lugar (BAKHTIN, 2003, p.24-25).
Afirma o filsofo que, caso no houvesse esse retorno ao mesmo lugar, a
compenetrao realizada no teria sentido: A rigor, a compenetrao pura,
vinculada perda do nosso nico lugar fora do outro, quase impossvel e, em todo
caso, totalmente intil e sem sentido (BAKHTIN, 2003, p.24). Neste estudo, o
excedente de viso ser trabalhado, precisamente, na relao entre Narciso e seu
reflexo. Outro conceito vem tona ao trabalhar com essa relao, trata-se da
exotopia, que se refere posio exterior necessria para que haja o excedente de
viso. A exotopia, esse lugar de fora, permite que se possa ver o outro como um
todo, assim explica Todorov no Prefcio edio francesa da obra Esttica da
criao verbal:
O super-homem existe mas no no sentido nietzschiano de ente superior; sou o super-homem do outro, como ele o de mim: minha posio exterior (minha exotopia) me d o privilgio de v-lo como um todo.
(TODOROV, 2003, p. XXVIII)
Amorim (2006), ao tratar do termo exotopia, tambm se refere a este como
um lugar exterior, elogiando o emprego de tal termo que partiu da traduo efetuada
por Todorov para o francs: exotopie. Ela afirma: (...) a expresso criada por
Todorov bastante feliz, pois sintetiza o sentido que se produz na obra de Bakhtin e
que o de situar em um lugar exterior (AMORIM, 2006, p.96). Amorim alerta que a
exotopia como posio exterior remete tanto a uma dimenso temporal quanto
espacial, sendo que esta recebe destaque por estar ligada ideia de acabamento:
[...] o conceito de exotopia, embora possa designar uma posio no tempo, por exemplo, de um pesquisador que analisa um texto de outra poca, enfatiza a dimenso espacial. Essa nfase no casual. O conceito est relacionado ideia de acabamento, de construo de um todo [...] (AMORIM, 2012, p.100).
Essa ideia de acabamento remete s relaes entre o eu e o outro e
condio da resposta que nasce dessa relao, cada resposta leva a uma pergunta
e vice-versa. A exotopia um princpio imprescindvel no processo de perguntas e
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respostas. Cada resposta e cada pergunta nascem de uma exotopia prpria, ou
seja, de uma distncia recproca como alerta Bakhtin:
Pergunta e resposta no so relaes (categorias) lgicas; no podem caber em uma s conscincia (una e fechada em si mesma); toda resposta gera uma nova pergunta. Perguntas e respostas supem uma distncia recproca (BAKHTIN, 2003, p.408, grifo do autor).
Essa distncia que remete ao lugar exterior, exotopia, indispensvel para
que o ser da expresso se efetue, pois sua natureza bilateral, formada pela
conscincia do eu e pela do outro, a conscincia do outro graas sua exotopia
nica permite o acabamento do eu, permite a expresso deste. Assim explica o
Bakhtin:
O ser da expresso bilateral: s se realiza na interao de duas conscincias (a do eu e a do outro); a penetrao mtua com manuteno da distncia; o campo de encontro de duas conscincias, a zona do contato interior entre elas (BAKHTIN, 2003, p.395 e 396).
O mito de Narciso propicia a discusso sobre os limites entre o eu e o outro,
sobre o lugar de fora, exotpico, que cada um ocupa e como ele se manifesta no
processo do dilogo, tornando possvel, por meio das relaes dialgicas do
presente estudo, discutir o ser nas guas, o reflexo, com base no postulado de
Sartre (2008), que define e caracteriza o que coisa e imagem. A complexa relao
entre Narciso e seu reflexo tambm foi matria de reflexo para Bakhtin. Ele estudou
o mito como um caso de exceo regra no que diz respeito a amar a si mesmo
como se ama o outro, assim reflete o filsofo:
Pode-se amar o prprio corpo, sentir por ele uma espcie de ternura, mas isso significa apenas uma coisa: o anseio permanente e o desejo daqueles estados e vivenciamentos puramente interiores que se realizam atravs do meu corpo, e esse amor no tem nada de essencialmente comum com o amor pela imagem externa e individual de outra pessoa; o caso de Narciso interessante precisamente como uma exceo que caracteriza e explica a regra. Posso experimentar o amor do outro por mim, posso desejar ser amado, posso imaginar e prever o amor do outro por mim, mas no posso amar a mim mesmo como se amasse o outro, de forma imediata. Se me preocupo comigo mesmo como me preocupo com o outro o que amo, no posso concluir por isso que haja identidade de relao volitivo-emocional que nutro por mim mesmo e pelo outro, isto , que eu me ame como amo o outro: so realmente diversos os tons volitivo-emocionais que em ambos os casos levam a mesma preocupao. No posso amar o prximo como amo a mim mesmo, ou melhor, no posso amar a mim mesmo como amo o prximo, posso apenas transferir para ele todo o conjunto de aes que costumo realizar para mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p.44-45).
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Assim, uma das questes que sero levantadas na anlise se refere ao amor
de Narciso para com seu reflexo, abordando o que esse sentimento ajuda a
constituir entre ambos. E com essa reflexo surge a relao volitivo-emocional, que
se d por meio dos tons, da entonao, tal caracterstica inerente em cada ato
discursivo, Lima (2011) assim afirma: O ato discursivo sempre uma resposta que
comporta uma responsabilidade, uma tomada de posio, expressa no tom
apreciativo e valorativo (LIMA, 2011, p.74). O tom emocional-volitivo permite a
realizao do ato responsivo/responsvel, conforme complementa Lima:
Segundo Bakhtin, somente o tom emocional-volitivo permite a realizao de qualquer contedo, de qualquer pensamento, ou seja, somente o tom emocional-volitivo o que podemos considerar sinnimo de intencionalidade que possibilita o experimentar ativo e propicia o ato responsivo/responsvel, uma vez que , no a indiferena, mas a atitude participativa, valorativa, que afirma o pensamento, realiza o ato (LIMA, 2011, p.76).
Ao propiciar o ato responsivo/responsvel, o tom emocional-volitivo ocorre de
forma imediata em relao ao corpo do outro. A sua ao imediata aponta para a
existncia do corpo exterior. O eu v no corpo do outro uma realidade axiolgica
inacessvel a sua auto-sensao interior, assim explica Bakhtin:
O corpo do outro um corpo exterior, cujo valor eu realizo de modo intuitivo-manifesto e que me dado imediatamente. O corpo exterior est unificado e enformado por categorias cognitivas, ticas e estticas, por um conjunto de elementos visuais esternos e tteis que nele so valores plsticos e picturais. Minhas reaes volitivo-emocionais ao corpo exterior do outro so imediatas, e s em relao ao outro eu vivencio imediatamente a beleza do corpo humano, ou seja, esse corpo comea a viver para mim em um plano axiolgico inteiramente diverso e inacessvel auto-sensao interior e viso exterior fragmentria. S o outro est personificado para mim em termos tico-axiolgicos (BAKHTIN, 2003, p.47).
O corpo do outro e o tom emocional-volitivo sero matria de reflexo na
relao entre Narciso e seu reflexo medida que o papel deste na enunciao
passa a ser estudada.