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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS II PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Reginaldo Andrade Silva Estrela CAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE (1871-1888) Alagoinhas, 2018

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reginaldo Andrade Silva Estrela

CAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE

(1871-1888)

Alagoinhas, 2018

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Reginaldo Andrade Silva Estrela

CAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE

(1871-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História, do Departamento de Educação – Campus II,

Alagoinhas, da Universidade do Estado da

Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em História, sob orientação

da Prof.ª Dr.ª Kátia Lorena Novais

Almeida.

Alagoinhas, 2018

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Reginaldo Andrade Silva Estrela

CAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE

(1871-1888)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade do Estado da Bahia –

Campus II como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em História.

Banca examinadora:

Profa. Dra. Kátia Lorena Novais Almeida – Orientadora Universidade do Estado da Bahia–UNEB /Campus II - Alagoinhas

Profa. Dra. Elciene Azevedo – Examinadora

Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Prof. Dr. Robério Santos Souza – Examinador

Universidade do Estado da Bahia–UNEB /Campus II – Alagoinhas

Suplente:

Prof. Dra. Maria Elisa Lemos Nunes da Silva Universidade do Estado da Bahia–UNEB /Campus II - Alagoinhas

Alagoinhas, 2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

FICHA CATALOGRÁFICA

Biblioteca do Campus II / Uneb

Bibliotecária: Iza Christina P. de A. Costa - CRB: 5/1042

E82c Estrela, Reginaldo Andrade Silva.

Caminhos da liberdade em Alagoinhas e Inhambupe (1871-1888)./

Reginaldo Andrade Silva Estrela – Alagoinhas, 2018.

130f. il.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia.

Departamento de Educação. Mestrado em História.

Orientador: Prof.ª Dr.ª Kátia Lorena Novais Almeida.

1. Brasil – História (Lei 2.040, 28 de setembro de 1871). 2.

Escravidão – Bahia – História- Século XIX. 3. Liberdade – Bahia –

História – Século XIX. I. Almeida, Kátia Lorena Novais. II.

Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. III.

Título.

CDD 326.098142

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A dona “Jovem” (in memoriam), minha mãe, incansável lutadora.

A “Rui” (in memoriam), irmão-amigo de todas as horas.

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AGRADECIMENTOS

O caminhar até aqui não foi solitário, pois ao longo da estrada pude contar com um

amigo capaz de me carregar toda vez que o caminho se tornava árduo demais. Por isso, muito

obrigado Deus, pela companhia constante.

Contei também com pessoas que me apoiaram de diferentes maneiras,

compreendendo minha quase abdução pelos livros, documentos, computador... os quais me

transportavam para o Oitocentos e descortinavam as histórias da História da Escravidão,

inquietando-me cada vez mais e fazendo com que, por vezes – muitas vezes – estivesse

ausente.

Obrigado, de todo coração, à minha família, a começar por Jovelina Estrela, minha

doce e sempre lembrada mãe (in memoriam), que plantou em mim o desejo de ser e saber,

apesar de ela mesma quase não ler e escrever. Meus filhos, Pedro Gabriel e Régis Matheus

que, do seu lugar de criança e adolescente, respectivamente, compreenderam a necessidade de

ausentar-me durante esse período de construção desse trabalho – foi por vocês, meus amores!

Mônica, minha companheira de todas as horas, que muito contribuiu como leitora atenta dos

textos produzidos, e, juntamente com os meninos, foram os mais penalizados, ficando sem

férias, viagens, passeios e programas em família, ao longo desse período.

Fazer os recortes necessários, buscar as fontes precisas, tabelar os dados encontrados,

ler, analisar, comparar, escrever, deletar, escrever de novo... nada disso resultaria nesse

trabalho se não fosse a prontidão da professora Kátia Lorena Novais Almeida em orientar-me!

Agradeço-a imensamente, pois, com a habilidade de quem conhece a importância da pesquisa,

me norteava os passos, levando-me a refazer o caminho com determinação e, ao mesmo

tempo, com leveza nos dias em que a vida tratou de me estagnar com suas intempéries – uma

cirurgia inesperada para a retirada de um câncer e a morte súbita de meu irmão/amigo Rui –

saudade eterna.

Visando a minha continuidade no Programa era preciso passar pela qualificação e,

nesse momento, contei com as contribuições da professora Elciene Azevedo e do professor

Robério Souza, os quais se propuseram a analisar o meu caminhar até ali e indicar os

próximos e possíveis passos a serem dados a partir de então. Agora retorno a eles, esperando

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ter percorrido o caminho proposto, agradecendo a participação na banca de defesa dessa

dissertação.

Para construir esse caminho muitos foram aqueles que dividiram comigo

conhecimento e me incitaram a buscá-lo, propondo leituras e discussões que hoje fazem parte

do meu arcabouço de referências. Foram eles os meus professores, a quem digo obrigado por

socializar o conhecimento. Nessa construção, contei também com o apoio dos colegas Edson

Silva, Marcelo Silva e Márcia Souza que anterior a mim, realizaram pesquisas referentes ao

mesmo período e espaços, e de bom grado compartilharam fontes, me auxiliando na

construção desse trabalho.

Facilitar o acesso a documentos ficou a cargo dos funcionários do Arquivo Público

do Estado da Bahia (APEB), do Fórum Desembargador Ezequiel Pondé e do Cartório do 1º

Tabelionato de Notas de Alagoinhas, na pessoa da tabeliã Valnísia Oliveira de Souza

Calazans, que solicitamente acolheram meus pedidos e se empenharam em trazer aquilo que

eu precisava. Não posso deixar de agradecer aos funcionários do Programa de Mestrado da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pela atenção dispensada nos momentos

necessários.

Passaria horas escrevendo os nomes de pessoas que colaboraram de alguma forma

para que eu pudesse dizer: Ufa, Cheguei! Irmãos, sogros, cunhados, sobrinhos, amigos,

colegas de trabalho e de turma... obrigado por torcerem pela minha conquista de hoje,

acreditando na minha capacidade de ir além do que eu mesmo, muitas vezes, duvidei. Suas

palavras de força e incentivo me fizeram ousar alçar um voo antes jamais imaginado.

Então, gratidão a todos que comigo compartilharam essa jornada, na minha história

de vida, e que, em ver-me sorrindo, sorriram, chorando, choraram, conquistando,

conquistaram e agora podem dizer: valeu a pena cada passo dado em direção ao sonho

realizado.

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RESUMO

Esta dissertação analisa a aplicação da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, nos municípios

de Alagoinhas e Inhambupe, Bahia, apresentando o contexto social e econômico dessas

localidades, partindo das experiências dos escravizados que acionaram a justiça nas últimas

décadas da escravidão para conseguir a liberdade. Identifica os caminhos utilizados pelos

cativos na luta cotidiana pela alforria, discutindo as novas possibilidades de manumissões

implantadas e os embates entre senhores e escravos, gerados pelos conflitos de interesses.

Processos cíveis, cartas de liberdade, correspondências das Câmaras e dos juízes, falas e

relatórios dos presidentes da província, ofícios, petições e jornais fazem parte do diversificado

leque de documentos analisados na pesquisa.

Palavras-Chave: Lei de 1871. Liberdade. Justiça. Escravidão. Ações de liberdade.

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ABSTRACT

This dissertation analyzes he application of the Law 2040, of September 28, 1871, in the

towns of Alagoinhas and Inhambupe, Bahia, presenting the social and economic contexto of

these localities through the experiences of the enslaved ones who took legal actions in the late

years of the slave system (1871 - 1888) to achieve freedom. It identifies the paths used by the

captives in the daily struggle for affranchisement, discussing the new possibilities of

manumission implanted and the clashes between masters and slaves, caused by conflicts of

interests. Civil cases, letters of liberty, correspondence of Chambers and judges, statements

and reports of the presidentes of the province, oficial letters, petitions and newspapers are part

of the diverse range of documents analyzed in this research.

Keywords: Law of 1871. Freedom. Justice. Slavery. Actions of freedom.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS

Figura 1: Carta Topográfica e Administrativa da Província da Bahia, 1848 (detalhe)............25

Figura 2: Registro de matrícula de Conrado............................................................................ 52

Tabela 1: Posse em escravos em Inhambupe, segundo a Lista de Classificação do Fundo de

Emancipação, 1882-1886..........................................................................................................30

Tabela 2: População de Inhambupe, considerada em relação às profissões, por categoria e

condição jurídica..................................................................................................................... ..40

Tabela 3: População de Alagoinhas, considerada em relação às profissões, por categoria e

condição jurídica..................................................................................................................... . 43

Tabela4: População livre e escrava nos municípios de Alagoinhas e Inhambupe, 1872.........49

Tabela 5: População por gênero e condição jurídica, Alagoinhas e Inhambupe, 1872............55

Tabela 6: Classificação por cor e gênero da população de Alagoinhas, 1872..........................56

Tabela 7: Classificação por cor e gênero da população de Inhambupe, 1872..........................57

Tabela 8: Registro e tipo de alforria em Inhambupe por década..............................................67

Tabela 9: Registro e tipo de alforria em Alagoinhas por década..............................................68

Tabela 10:Tipo de alforria por sexo do alforriado em Inhambupe, 1871 – 1888.....................69

Tabela 11: Tipo das alforrias por sexo do alforriado em Alagoinhas, 1872 – 1888................ 71

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino

APEB – Arquivo Público da Bahia

BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

FIGAM – Fundação Iraci Gama

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I: ECONOMIA E SOCIEDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE,

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX............................................................................. 21

Inhambupe: da formação do povoado à sociedade escravista na segunda metade do século

XIX............................................................................................................. ..............................22

Alagoinhas: da formação do povoado à criação da vila após a ilegalidade do tráfico............ 32

O universo do trabalho nos municípios de Alagoinhas e Inhambupe......................................39

CAPÍTULO 2: ESCRAVIDÃO E ALFORRIA NOS MUNICÍPIOS DE ALAGOINHAS E

INHAMBUPE.......................................................................................................................... 47

Inhambupe e Alagoinhas: percursos iniciais até a contagem do recenseamento de

1872..........................................................................................................................................47

A demografia da população escrava no Recenseamento de 1872........................................... 54

Alforrias em Alagoinhas e Inhambupe.................................................................................... 63

Libertos com o auxílio do Fundo de Emancipação................................................................. 74

CAPÍTULO 3: A LEI 2.040 E OS CAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E

INHAMBUPE...........................................................................................................................79

Novas possibilidades de liberdade a partir da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871............. 79

A matrícula dos escravos: o regulamento para a matrícula especial dos escravos e dos filhos

livres de mulher escrava............................................................................................................82

Propriedade versus liberdade: conflitos entre senhores e escravos.......................................... 86

A formação do pecúlio e o arbitramento.................................................................................. 96

Liberto por abandono............................................................................................................. 102

A lei de 1871 e o questionamento ao domínio senhorial....................................................... 104

A filiação desconhecida: a africana Benedicta e o juiz Antonio Ferreira Velloso................ 112

CONCLUSÃO.................................................................................................................... ... 120

ARQUIVOS E FONTES....................................................................................................... 122

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA....................................................................................... 125

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INTRODUÇÃO

A Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, há muito tem sido discutida pela

historiografia sobre a escravidão no Brasil. Uma vertente dessa historiografia aponta que alei

foi elaborada com a intenção de prolongar a escravidão, por meio de uma libertação lenta,

gradual e indenizatória, com a continuidade do poder senhorial sobre os cativos e uma

consequente dependência desses, após serem libertos. Por outro lado, a historiografia também

tem demonstrado que, contrariando as intenções do Estado e dos senhores, a Lei 2.040foi

utilizada pelos escravizados como um caminho possível para obter a liberdade. Este trabalho

intitulado Caminhos para a liberdade em Alagoinhas e Inhambupe (1871-1888) tem como

tema a Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. Interessa-nos compreender como essa lei foi

acionada pelos escravizados de Alagoinhas e Inhambupe, a fim de conseguir a liberdade. As

Leis emancipacionistas têm sido estudadas pela historiografia da escravidão no Brasil desde

ao menos a década de 1990, a exemplo dos trabalhos de Sidney Chalhoub, Elciene Azevedo e

Joseli Mendonça.1 Para a província da Bahia, destacamos os trabalhos de Ricardo Caires da

Silva, Isabel Cristina Ferreira dos Reis e José Pereira de Santana Neto, porém, no que diz

respeito aos municípios de Alagoinhas e Inhambupe, ainda desconhecemos muitos dos

percalços enfrentados pela população escravizada ao acionar essa lei.2

O espaço social aqui estudado, Alagoinhas e Inhambupe, eram municípios de

economias periféricas em relação às áreas mais dinâmicas da província da Bahia. Inhambupe

tornou-se uma freguesia ainda no período colonial e, administrativa e politicamente, passou

por várias mudanças sendo a mais importante ter sido alçada a vila em 1802. Dentre os

distritos que compunha a vila de Inhambupe, estava o de Alagoinhas, que ficou sob a sua

jurisdição até 1852, quando se tornou vila. Assim, a história dessas localidades esteve

conectada por muito tempo, gerando interdependência política, econômica e social o que

justifica analisá-los neste trabalho.

1 Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São

Paulo: Companhia das Letras, 1990; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na

imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da

Cultura, 1999; MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da

abolição no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999. 2 SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. “Os escravos vão à justiça: a resistência escrava através das ações de liberdade.

Bahia, século XIX.” (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2000); REIS, Isabel

Cristina Ferreira dos. “A Família Negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888.” (Tese de Doutorado em

História, Universidade Estadual de Campinas, 2007); NETO, José Pereira de Santana. “A alforria nos termos e

limites da lei: o Fundo de Emancipação na Bahia (1871-1888)”. (Dissertação de Mestrado em História,

Universidade Federal da Bahia, 2012).

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Segundo Robert Conrad, em Os últimos anos da escravatura no Brasil, a lei de 1871

foi criada por conta do declínio do sistema escravista no mundo ocidental e, sobretudo, pela

libertação de escravos nos impérios português, francês, dinamarquês e dos Estados Unidos.3

As autoridades brasileiras viram-se obrigadas a elaborar uma lei que tivesse objetivos

emancipacionistas, sem, contudo, deixar de ressaltar que a ideia central deveria ser a

manutenção do sistema, com uma gradual e indenizatória transformação para o trabalho livre,

a fim de garantir o direito da propriedade escrava e atender às condições mundiais, pois o

Brasil era visto como atrasado por se tratar do último país das Américas a permanecer com o

“estigma colonial da escravatura”.

No entanto, ressalta Conrad, depois de uma década de aplicação dessa lei, ficou

evidente o seu fracasso, até para aqueles que eram a favor da escravidão, devido à ineficiência

dos órgãos públicos e também pela “má fé e falta de patriotismo” dos proprietários, mesmo

diante de todos os privilégios que ela lhes proporcionara.4 Apesar de a Lei 2.040, de 28 de

setembro de 1871 não ter obtido resultados satisfatórios no cumprimento de seu intento

emancipatório e de prolongar a abolição, contribuiu para o início do desmantelamento da

escravidão e para trazer à tona as discussões acerca das suas injustiças, proporcionando uma

maior consciência da população sobre os revezes do escravismo.

A década de 1980 foi muito rica para a historiografia sobre a escravidão no Brasil.

Os historiadores que discutiam o tema foram fortemente influenciados pela obra de E. P.

Thompson e, a partir de então, a literatura sobre a escravidão passou a perceber o escravizado

como sujeito da história, capaz de agir autonomamente, tomando decisões, atuando

estrategicamente dentro do sistema, desconstruindo o pensamento freireano de que as relações

entre senhores e escravos eram harmoniosas.5 Ao contrário, havia um antagonismo de classes,

os que mandavam e os que obedeciam, uma política de domínio e controle que garantia a

subordinação dos dependente. 6 Segundo Thompson, “o paternalismo era não só

responsabilidade efetiva como teatro e gesto, e que, longe de uma relação calorosa, familiar,

face a face, podemos observar uma ensaiada técnica de domínio”. 7 Ou ainda, conforme

Chalhoub, “uma política de domínio na qual a vontade senhorial é inviolável, e na qual os

3 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850 – 1888. Tradução de Fernando de Castro

Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 88. 4 CONRAD. Os últimos anos da escravatura no Brasil, p. 89. Idem, p. 145. 5 LARA, Silvia H. “Blowin in The Wind”: Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História.

12(1995), pp. 43-56. 6 CHALLOUB. Sidney, Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 49. 7 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998, p. 62.

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trabalhadores e os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em

relação a essa vontade soberana”.8 Chalhoub foi um dos defensores da teoria do escravo como

sujeito da história, contrapondo-se à “teoria do escravo-coisa” o que influenciou sua

interpretação sobre a Lei 2.040.9 Para o autor, a lei reconheceu alguns direitos costumeiros e

acatou alguns objetivos pelos quais os escravizados lutavam há muito tempo, a exemplo do

pecúlio.10 Chalhoub ainda ressalta que a lei de 28 de setembro de 1871 foi uma conquista dos

escravos, contribuindo significativamente para o processo de abolição na Corte. 11

Acreditamos ter sido também fundamental para o processo de libertação dos escravos em todo

o país, como têm apontado os recentes estudos sobre o tema para diversas localidades do

Brasil monárquico.12

Ao analisar as ações cíveis em que os escravos recorreram à justiça na província da

Bahia, Ricardo Silva corrobora as interpretações de Chalhoub afirmando que a lei em questão

incorporou certos costumes, como o direito ao pecúlio, permitindo que os cativos

conseguissem a liberdade sem o consentimento senhorial, pois anteriormente a ela, os

conflitos judiciais entre senhores e escravos eram interpretados com base no Direito

Costumeiro, nas Ordenações Filipinas e no Direito Romano. Silva destaca a ausência de

matrícula por parte do senhor, como uma nova possibilidade utilizada pelos escravizados para

recorrerem à justiça, a fim de que tivessem sua condição de pessoa livre reconhecida.13

Em Caminhos e descaminhos da abolição, Silva, ao avaliar o impacto da Lei 2.040, de

28 de setembro de 1871, no cotidiano dos escravos baianos, reconheceu que funcionaram

certos princípios da política de alforria do sistema escravista brasileiro que atuaram bem até a

vigência do tráfico africano. Após a proibição do tráfico, em 1850, os cativos já haviam

adquirido o direito costumeiro em acumular pecúlio, o que lhes possibilitava acionar “a

Justiça para superar as dificuldades advindas da concessão das manumissões e da ameaça de

serem engajados no tráfico intra e interprovincial”. O uso da lei configurou-se em uma

8 CHALLOUB. Sidney, Machado de Assis, p. 46. 9 Cf. CHALLOUB. Visões da liberdade, p. 38. 10 CHALLOUB. Visões da liberdade, p. 159. 11 CHALLOUB. Visões da liberdade, p. 161. 12 As pesquisas sobre a Lei do Ventre Livre cobrem várias partes do Brasil e confirmam que os escravos

acionaram a justiça para serem libertos. Ver, entre outros, CHALLOUB. Visões da liberdade; XAVIER, Regina

Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Área de

Publicações CMU/UNICAMP, 1996; SILVA. “Os escravos vão à justiça”; GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da

ambiguidade, as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro:

Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008; ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas –

Bahia século XIX. Salvador: EDUFBA, 2012. 13 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, p. 8

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garantia de luta para dar cabo à escravidão, ainda que essa tenha sido gerada com a finalidade

de uma transformação lenta e gradual do trabalho escravo para o livre, “formando libertos

ordeiros e disciplinados”, servindo também para desgastar o “poder moral dos senhores e do

próprio regime escravista na Bahia”.14

Os historiadores Isabel Reis e José Pereira Neto também abordaram a aplicação da Lei

2.040 na Bahia, e em especial o Fundo de Emancipação. Reis, em A família negra no tempo

da escravidão, apresenta as experiências de busca da alforria pelas famílias escravas na Bahia

no período de 1871-1888, fazendo um recorte muito interessante sobre a utilização do fundo

de emancipação pelos escravizados de Inhambupe para conseguir a liberdade, com base no

livro de classificação de escravos para a libertação no município.15 Em A alforria nos termos

e limites da lei: o fundo de emancipação na Bahia, Santana Neto analisa a gestão do fundo de

emancipação na província da Bahia, artigo terceiro da lei de 1871, a partir da utilização de um

leque variado de fontes que possibilitaram ao autor investigar a estruturação das instituições

necessárias para sua implantação e discutir a intervenção e apropriação da lei pelos diversos

atores sociais envolvidos.16

Os trabalhos de Silva, Reis e Santana Neto são de grande importância para a

compreensão das últimas décadas da escravidão na província da Bahia, mas acreditamos que

os contextos específicos de Alagoinhas e Inhambupe merecem atenção. Em estudo pioneiro

sobre a escravidão em Alagoinhas, Janaína Laís Lima Amorim analisou as relações de

compadrio entre os escravos africanos na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas, entre

1818-1850. Sua pesquisa possibilitou conhecer o perfil da população escrava do povoado,

como também compreender a formação dos laços espirituais da comunidade escrava no

período anterior à criação da vila. 17 Outro estudo importante para compreendermos a

escravidão em Alagoinhas é o de Aline Soraia Saraiva Nascimento, que estudou a família

escrava em Alagoinhas a partir da análise de uma família senhorial, a família Leal. A autora

acompanhou a estabilidade dos laços familiares construído pelos escravizados privilegiando o

14 SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. “Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas

últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888)”. (Tese de doutorado em História, Universidade Federal do

Paraná, 2007), p. 151. 15 REIS. “A família negra no tempo da escravidão”, p. 245 - 262. 16 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”. 17 AMORIM, Janaína Laís L. S. “O parentesco espiritual: compadrio de escravos africanos na freguesia de Santo

Antônio das Alagoinhas (1818-1850)”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado

da Bahia, 2015).

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momento da morte daquela família senhorial, momento da partilha dos bens. 18 Outro trabalho

relevante para a compreensão da sociedade escravista que se formou em Alagoinhas ao longo

do século XIX é o de Monalisa Pereira Matos, que estudou as alforrias no município de

Alagoinhas entre 1871e1888. Além de analisar o processo da alforria tendo como fonte

privilegiada as cartas de alforria, a autora também se preocupou em compreender a influência

da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, para alcançar esse intento.19

O trabalho de Antônio Hertes Santana, Conflitos pela propriedade e reordenamento

do trabalho em Alagoinhas e Inhambupe (1860-1890), assim como essa dissertação, também

analisou as sociedades escravistas de Inhambupe e Alagoinhas nos seus aspectos econômicos

e sociais.20 Já Edson Pereira da Silva, em sua dissertação de mestrado O preço da liberdade:

experiências de escravos e libertos na vila de Inhambupe – Bahia (1870 – 1888), analisou as

experiências de vida de escravos e libertos em Inhambupe, identificando as dificuldades

enfrentadas para conseguir a liberdade.21 Os trabalhos desses autores ajudam a entender a

dinâmica social e as relações cotidianas das sociedades escravistas de Alagoinhas e

Inhambupe, mostrando o que conectava os dois municípios e a natureza da escravidão que ali

se estabeleceu. A despeito da importância desses trabalhos, consideramos que há lacunas no

que diz respeito à visibilidade dos escravizados que mobilizaram a lei de 1871, aspecto que

esse trabalho pretende minorar.

Assim, analisaremos nesta dissertação a recepção e aplicação da Lei 2.040, de 28 de

setembro de 1871, em Alagoinhas e Inhambupe, apresentando aspectos da economia e

sociedade dessas localidades que permite discutir os caminhos utilizados pelos escravos para

obter a alforria, por meio da utilização dos processos cíveis a partir da Lei 2.040. Discutimos

as possibilidades de alforria após a Lei de 1871, a exemplo da ausência de matrícula e, como a

lei atuou para a conservação de direitos adquiridos, a legitimação do pecúlio e o fundo de

emancipação, passando pela Lei do Sexagenário, até chegar a 1888, por ocasião da abolição

da escravidão no Brasil.

18 NASCIMENTO, Aline Soraia Saraiva. “A família escrava na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas: uma

análise longitudinal”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2015). 19 MATOS, Monalisa Silva Pereira. “Alforrias em Alagoinhas (1871-1888)”. (Trabalho de Conclusão de Curso

em História, Universidade do Estado da Bahia, 2016). 20 SANTANA, Antônio Hertes Gomes de. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do

trabalho em Alagoinhas e Inhambupe (1860-1890)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade

Federal Rural do Rio de Janeiro, 2015). 21 SILVA, Edson Pereira da. “O preço da liberdade: experiências de escravos e libertos na vila de Inhambupe –

Bahia (1870 – 1888)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade do Estado da Bahia, 2017).

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18

A análise da aplicação dessa lei permite entender o “apagar das luzes” da escravidão

no Brasil, no final do século XIX, bem como perceber, por meio das experiências dos

escravizados, as concepções que foram construídas e reconstruídas nos caminhos para a

liberdade em municípios como Alagoinhas e Inhambupe. Mesmo assim, é possível afirmar

que a sociedade desses lugares, em sua maioria, empregava a mão de obra livre, mas ainda

utilizava a prestação de serviços dos escravos para desenvolver as diversas atividades

econômicas existentes. Partindo desse pressuposto, pode-se salientar que existiam

particularidades da realidade dessas sociedades, as quais se assemelhavam em alguns

aspectos, mas divergiam em outros, mostrando que possuíam uma dinâmica própria, como

demonstram os estudos de Keite Lima e Robério Souza sobre Alagoinhas.22

Qual era o perfil demográfico de Alagoinhas e Inhambupe quando da promulgação

da Lei2.040? Como os escravos, em Alagoinhas e Inhambupe, utilizaram a lei de 1871 para

conseguirem a alforria? De que maneira essa legislação interferiu na relação entre senhores e

escravos nos referidos municípios? De que forma os escravos articulavam suas redes de

conhecimento para conseguirem pecúlio e curadores? Quem eram esses indivíduos que

argumentavam a favor da liberdade e, muitas vezes, questionavam a legitimidade da

propriedade escrava? Responder a essas questões é o que se propõe a narrativa dessa

dissertação.

As questões formuladas serão analisadas a partir do conceito de experiência de

Thompson. Ele aponta a história como o palco das ações sociais onde essas experiências são

construídas a partir das relações empreendidas entre as classes sociais. Segundo Sílvia Lara:

“as relações históricas são construídas por homens e mulheres num movimento constante,

tecidas por lutas, conflitos, resistências e acomodações, cheias de ambuiguidades”.23 Assim, a

documentação revela os conflitos de interesses dos atores sociais, ressaltando que o campo

jurídico configura-se no lugar onde os diferentes sujeitos históricos expressaram seus

interesses conflitantes.24

Entre as fontes utilizadas para conhecer as experiências dos indivíduos escravizados

em Alagoinhas e Inhambupe, destacamos 12 processos cíveis localizados no acervo do Fórum

22 LIMA, Keite M. S. do Nascimento. “Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em Alagoinhas

(1868- 1929)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2010); SOUZA, Robério

Santos. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892 -1909). Salvador:

Edufba/Fapesp, 2011. 23 LARA, Silva Hunold. “‘Blowin’ in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. In: Projeto

História. São Paulo: vol. 12, out, p. 43-56, 1995. 24 Ver TOMPSON. E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987;

THOMPSON. Costumes em comum.

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Des. Ezequiel Pondé na cidade de Alagoinhas, e no Arquivo Público da Bahia. A importância

das ações de liberdade foi destacada por Keila Grinberg, que chama a atenção para a

historiografia que interpreta o papel destas como cruciais na perda de legitimidade da

escravidão no Brasil.25 As ações de liberdade possibilitam o acesso a diversos aspectos do

cotidiano dos escravos, podendo-se extrair tanto informações quantitativas quanto

qualitativas.26 Além dessa documentação, analisamos 128 cartas de alforrias, encontradas nos

livros de notas de Inhambupe sob a guarda do Arquivo Público da Bahia, que alforriou 140

cativos entre1871 a 1888. Estas fontes apresentam várias informações sobre o perfil do

alforriado, bem como o tipo de alforria concedida, além de explicitar quando houve influência

da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871.27Analisamos ainda as correspondências das Câmaras

de Alagoinhas e Inhambupe e as correspondências dos juízes dessas localidades. Jornais do

período também foi alvo da nossa atenção. Essa documentação possibilitou apreender as

interpretações de escravos, senhores e advogados sobre a lei de 1871 e seus Decretos, além do

conhecimento da movimentação administrativa da aplicação da lei, bem como avaliar os

problemas e desdobramentos acerca do desempenho dos envolvidos na consecução, ou não,

da liberdade para os escravizados.

Nessa perspectiva, essa dissertação foi estruturada em três capítulos. No primeiro,

intitulado Economia e Sociedade em Alagoinhas e Inhambupe, segunda metade do Século

XIX, contextualiza-se, historicamente, Alagoinhas e Inhambupe, buscando entender a

dinâmica da escravidão que ali vicejava na segunda metade do século XIX. No segundo

capítulo, Escravidão e alforria nos municípios de Alagoinhas e Inhambupe analisam-se,

demograficamente a população de Alagoinhas e Inhambupe, apresentando algumas variáveis

do perfil dessa população, mobilizando o censo de 1872. Tecem-se algumas reflexões

acercada concessão de alforrias nesses municípios, destacando as experiências dos cativos no

processo a partir da análise de cartas de liberdade e, discutem-se ainda sobre as alforrias

concedidas pelo fundo de emancipação nessas localidades, destacando algumas histórias de

escravos que mobilizaram o artigo 3º da Lei 2.040, de 1871, regulamentado pelo Decreto

5.135, de 13 de novembro de 1872.

25 GRINBERG, Keila. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX”. In: LARA, Silvia Hunold;

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas-

SP: Editora UNICAMP, 2006, p. 103. 26 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, p. 3 27 ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas, p. 23

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As experiências dos escravizados em busca da liberdade em Alagoinhas e

Inhambupe, são discutidas no terceiro capítulo, A Lei 2.040 e os Caminhos da liberdade em

Alagoinhas e Inhambupe, tendo como fonte privilegiada as ações de liberdade e escravidão.

Procuramos compreender como os escravizados, libertos e senhores mobilizaram a Lei 2.040,

a exemplo. Ausência de matrícula dos escravos, domínio senhorial, conflitos entre

proprietários e cativos e filiação desconhecida são algumas das questões que emergem destes

documentos e são debatidas ao longo do capítulo. Outras fontes, tais como as cartas de

alforria, petições diversas a respeito da aplicação da lei e jornais, adensam a análise das

experiências desses diversos atores socais. O diálogo entre elas e a historiografia sobre o

tema, possibilita apreender as singularidades e semelhanças entre Alagoinhas, Inhambupe e

outras localidades da província da Bahia e do Brasil.

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CAPÍTULO I

ECONOMIA E SOCIEDADE EM ALAGOINHAS E INHAMBUPE,

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

A historiografia da escravidão tem demonstrado que a promulgação da Lei nº 2.040,

de 28 de setembro de 1871, contribuiu de forma significativa para ampliar o número de

alforrias a partir de processos movidos pela população escravizada em várias províncias do

Império. Guardadas as peculiaridades, essa foi uma realidade tanto nos centros urbanos como

Salvador quanto em municípios de economias periféricas, como Alagoinhas e Inhambupe. Os

cativos estavam inseridos nessas sociedades como mão de obra ativa, embora ali o seu

percentual fosse reduzido em relação às regiões economicamente mais dinâmicas da

província. Por meio das ocupações que exerciam, os escravos desses municípios conseguiam

acumular pecúlio com o qual criavam expectativas de alforria e, quando as negociações com

seus senhores falhavam, muitos deles acionaram a justiça utilizando-se da referida lei que

amparava tais pretensões. O objetivo deste trabalho é compreender as circunstâncias em que

os escravos desses dois municípios recorreram à justiça. Antes, porém, apresentaremos neste

capítulo os espaços socioeconômicos em que esses escravos viveram, para melhor entender o

contexto de suas reivindicações.

Alagoinhas e Inhambupe localizam-se ao norte do Recôncavo baiano, região com

morros, tabuleiros, penhascos e planícies que apresentam, em sua maior parte, “solos de

origem cretácea formados de misturas variadas de argila e areia” que podem ser pesados ou

leves.1 No norte dessa região, em várias partes, eram encontrados os solos mais pesados – os

massapés e salões – ideais para o cultivo da cana-de-açúcar. Conforme Bert Barickman, “a

distribuição de massapés e salões teve, de fato, grande influência na geografia da indústria

açucareira no Recôncavo”. 2 Essas localidades tiveram participação nessa indústria, sem,

contudo, configurarem-se em uma região monocultora do produto. Barickman criticou a

ênfase dada ao sistema de monocultura como única fonte de renda e sobrevivência no

Recôncavo baiano, tendo em vista que eram cultivados vários gêneros de subsistência para

atender ao mercado interno e externo, ressaltando a importância da produção de fumo e

1 BARICKMAN. B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-

1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 36-39. 2 BARICKMAN. Um contraponto baiano, p. 36

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farinha de mandioca, que envolvia a mão de obra escrava e livre.3 Segundo Durval Aguiar,

Alagoinhas e Inhambupe eram espaços aprazíveis, com rios de águas salubres e potáveis,

clima agradável e sadio, terras férteis e propícias para a lavoura e criação de gado. 4 O

desenvolvimento dos dois municípios deu-se com a agricultura, com cultivo de vários

produtos que utilizavam tanto a mão de obra livre quanto a escrava. Neste trabalho, não nos

ocuparemos do trabalhador livre, mas, oportunamente, demonstraremos a sua importância

quantitativa nas sociedades aqui analisadas.

Inhambupe: da formação do povoado à sociedade escravista na segunda metade do

século XIX

O município de Inhambupe no século XIX compreendia um território mais amplo do

que a atual cidade de Inhambupe. Distante de Salvador 153 quilômetros, o povoado

desenvolveu-se a partir da catequese dos índios, entre 1572 e 1582, pelo padre jesuíta José de

Anchieta que encontrou uma aldeia indígena à “margem esquerda de um braço do rio do

Inhambupe, denominado rio Inhambupe de Cima”.5 Os jesuítas, logo após colonizar o lugar,

estabeleceram-se com um colégio na freguesia de Água Fria e enviaram o fidalgo português

Alexandre Vaz Gouveia para tomar posse da localidade, construindo habitações e a capela de

Nossa Senhora da Conceição, retirando os nativos e substituindo-os por seus colonos.6

Em 1624, o governador-geral Diogo de Mendonça Furtado, concedeu a um marechal

da Casa da Torre dos Garcia d’Ávila uma sesmaria de seis léguas de terras que ficava entre os

rios Inhambupe e Subaúma, onde o marechal se estabeleceu, construiu casas e erigiu a Igreja

do Divino Espírito Santo do Inhambupe, surgindo ali uma nova comunidade. As terras férteis

e apropriadas para a lavoura e criação de gado tornaram-se fator de atração de novos colonos

e suas famílias que, contando com a mão de obra escrava, desenvolveram a localidade. Pelo

fato de pertencer à Casa da Torre, a Capela do Divino Espírito Santo do Inhambupe passou a

fazer parte da freguesia de Santo Amaro de Ipitanga. Ao perceber o progresso da Capela, os

jesuítas de Água Fria reivindicaram e obtiveram, em 1718, de D. Sebastião Monteiro da Vide,

3 BARICKMAN. Um contraponto baiano, p. 43-44. 4 AGUIAR, Durval Viera de. Descrições práticas da Província da Bahia com declaração de todas as distâncias

intermediárias das cidades, vilas e povoações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979, p. 88. 5 FERREIRA. “Enciclopédia dos municípios”. 6 FERREIRA. “Enciclopédia dos municípios”.

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o desmembramento de Santo Amaro de Ipitanga e posterior anexação à freguesia de Água

Fria.7

Segundo o vigário encomendado, Joaquim de Sant’Anna, em 1757a freguesia do

Divino Espírito Santo do Sertão de Inhambupe distava de norte a sul 16 léguas e do nascente

ao poente 20 léguas pouco mais ou menos; limitava-se ao sul com o rio Catu; ao norte, com a

freguesia do Itapecuru; ao nascente, com as freguesias de Itapecuru e Inhambupe da Praia e;

ao poente, com a freguesia de Água Fria. Era privilegiada por ser entrecortada pelos rios

Inhambupe, Catu, Quericó e Subaúma e pelos riachos Aramari, Prata, Quericó Mirim, Sauípe

e Estevão. Essa hidrografia privilegiada favorecia a agricultura e o transporte de passageiros,

pois “[...] usa-se de canoa para o progresso dos viadores; porque correm arrebatados, e

profundos com a cópia das águas, que levam, que totalmente proíbem o trânsito de pê”.8 A

freguesia era composta por 139 fazendas e sítios que, consequentemente, denominavam as

localidades onde residiam os paroquianos e as terras em que cultivavam suas lavouras.9O

vigário destacou as três capelas que se situavam na freguesia: a de Santo Antônio das

Lagoinhas, que distava oito léguas da igreja Matriz; a de Nossa Senhora dos Prazeres, que

ficava também a oito léguas e; a de Nossa Senhora da Conceição do Sobrado, com a distância

de sete léguas. O padre contabilizou 2.558 almas que formavam o corpo da referida

freguesia.10

Em 22 de fevereiro de 1798, Joaquim Antônio Gonzaga, ouvidor da Comarca de

Água Fria, a pedido dos moradores, enviou um ofício a D. Fernando José de Portugal,

informando a situação da freguesia de Inhambupe e a necessidade de elevá-la à condição de

vila para a boa administração da Justiça, por conta do aumento da povoação, àquela altura

com aproximadamente 906 fogos e 5.981 pessoas de confissão, 3 capelas filiais e “nos seus

distritos muitos lavradores de tabaco, com fábricas de vinte, de trinta e de quarenta

7 FERREIRA. “Enciclopédia dos municípios. 8 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante BNRJ). Relação da Freguesia do Divino Espírito Santo do Sertão do Inhambupe de Cima, apresentada pelo vigário encomendado Joaquim de Sant’Anna. Anais da

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXXI, p. 225. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/acervo_031_1909.pdf>. Acesso em 11/11/2017. 9 Vale ressaltar que ao relacionar esses lugares, percebem-se alguns nomes repetidos. Não se sabe se foi erro do

vigário ou se realmente existia duplicidade de denominação desses locais. “Relação da Freguesia do Divino”,

BNRJ, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXXI, p. 225. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/acervo_031_1909.pdf>. Acesso em 11/11/2017, p. 226. 10 “Relação da Freguesia do Divino”, BNRJ, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XXXI, p. 225.

Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_031_1909.pdf>. Acesso em: 11/11/2017.

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escravos”.11 Assim, em aproximadamente quatro décadas a população duplicou, talvez em

decorrência do ressurgimento do açúcar após a revolta escrava em São Domingos que

desestruturou a lavoura na ilha, mas possibilitou o aumento das exportações de açúcar na

capitania da Bahia, o revigoramento do comércio de escravos com a África e, dessa forma,

novos investimentos na cultura do tabaco.12 Em resposta, o então príncipe regente de Portugal

e Algarves, D. João, por meio de Carta Régia datada de 26 de junho de 1801, elevou a

freguesia à condição de vila “[...] pelo que nesta conformidade vos ordeno que assim

procedais na criação da nova vila, e a esse fim se vos remete cópia da sobredita informação do

ouvidor[...]”, mandou ainda que fosse expedido o alvará de criação da vila com as

formalidades e declarações necessárias, “[...] ficando a nova vila com o termo que até agora

forma o distrito daquela freguesia declarado na informação do ouvidor [...]”.13

Francisco da Cunha Meneses, em oficio ao Rei de Portugal, datado de 13 de junho de

1802, informou os limites geográficos e a população da nova vila do Inhambupe de Cima,

após o desmembramento da vila de São João de Água Fria. De acordo com o documento o seu

distrito ficou assim distribuído:

[...]com vinte e seis léguas de longitude, dezoito de latitude, mil duzentos e oitenta

fogos, e mais de seis mil e oitocentos habitantes. Divide-se ao nascente com a

freguesia do Itapicuru da Praia do termo da vila Abadia, no lugar chamado

Mocambo [...] e sítio dos Sete Paus; ao poente com a freguesia da vila de São João

de Água Fria na fazenda da Alagoa, que foi de Diogo Campos; ao norte com a

freguesia de Nossa Senhora de Nazaré da vila do Itapicuru de Cima, no lugar

chamado Nambi Genipapo, e tabuleiro do sobrado do engenho das Varas Brancas;

ao sul com a freguesia de São Pedro de Sauípe da Torre de Garcia D’Avila.14

Meneses destacou ainda, que não fora anexado arraial algum por não haver vizinhos nem

fazendas e engenhos, conforme apontou o ouvidor Joaquim Gonzaga, em carta que solicitava

a separação das localidades, pelos motivos já explicitados.

11 CARTA do Conselho Ultramarino ao príncipe regente [D. João] sobre à criação da vila de Inhambupe de

cima. Lisboa, 22 de abril de 1800. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU doravante) -Bahia, cx. 217, D.15196;

BNRJ. Ofício do ouvidor da comarca a D. Fernando José de Portugal sobre situação da freguesia de Inhambupe

de cima e necessidade de aí ser erigida uma vila. Manuscrito. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0000496/mssp0000496.pdf>. Acesso em: 11/11/2017. 12 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo:

Companhia da Letras, 1988, p. 284. 13 Percebe-se uma divergência de datas quanto à elevação da freguesia do Inhambupe de cima à condição de vila

entre o texto de Durval Aguiar e a Carta Régia. Aguiar afirma que a vila de Inhambupe foi criada em 1728, já a

Carta Régia apresenta a data de 1801. Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB, doravante). Colonial e

provincial, (microfilmado). Filme 55, flash 02 – 1800 a 1801 – livro 9, documento 52. 14 BNRJ. Oficio de Francisco da Cunha e Meneses a S.A.R. sobre a divisão da freguesia de Inhambupe e

Comarca de Água Fria. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0000197/mssp0000197.pdf>. Acesso

em: 11/11/2017.

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Ao longo do século XIX, os limites geográficos entre os povoados foram se

reorganizando à medida em que, administrativamente, eram alçados de povoado a vila. Este

também foi o caso da freguesia de Nossa Senhora do Monte do Itapicuru da Praia, termo de

Nossa Senhora da Abadia do Rio Real de Baixo, que fazia divisa ao nascente, com a vila de

Inhambupe. Em petição datada de 28 de setembro de 1806 à autoridade régia, o Dr. Luís

Tomás Navarro de Campos argumentou que a freguesia era populosa, contava com “mil e

trezentos e tantos fogos” e cinco mil almas, além de possuir embarcações próprias, engenhos

de mediana grandeza e o povo muito dado à lavoura. A freguesia possuía também uma boa

Igreja Matriz. 15 Assim, as diversas localidades do Sertão de Cima mudaram de status –

capela, freguesia/ povoado, vila, cidade – ganhando novas configurações políticas,

geográficas e econômicas e organizando-se política e administrativamente.

Figura 1: Carta Topográfica e Administrativa da Província da Bahia, 1848 (detalhe)

Fonte: VILLIERS DE L'ILE-ADAM, J. de. Carta topographica e administrativa da província de Bahia.

[S.l.]: Firmin-Didot, 1848. Disponível em: http://www.objdigital.bn.br/. Acesso em: 15/03/2018.

A carta topográfica e administrativa da província da Bahia, elaborada por Villiers de

L’Ile-Adam, em 1848, informa que Inhambupe era cabeça da comarca e compreendia as vilas

de: Inhambupe, Sant’Anna da Serrinha, Purificação, Pedrão, Ouriçangas e Conde. Em 24 de

março de 1869, a presidência da província, por meio da diretoria geral da Bahia, publicou um

mapa contendo os nomes dos inspetores de paróquia designados para as várias comarcas,

dentre as quais, a comarca de Inhambupe, que compreendia as freguesias de Inhambupe,

15 BNRJ. Informação sobre a pretendida elevação de vila a freguesia de N. S. do Monte do Itapicuru da Praia da

Bahia. Inhambupe: [s.n.]. Disponível em:

<<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0000282/mssp0000282.pdf>. Acesso

em: 11/11/2017.

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Purificação, Pedrão, Coração de Maria, Prazeres, Aporá, Serrinha e Alagoinhas. Naquela

ocasião, o inspetor da paróquia de Inhambupe era o dr. Cândido José de Figueiredo.16

Em 9 de dezembro de 1871, a presidência da província publicou um mapa com

informações sobre a comarca de Inhambupe que foi enviado para o ministério da justiça. No

ano anterior, havia sido criada na secretaria de governo uma seção de estatística com a

finalidade de efetuar um recenseamento geral da província. Para se cumprir os objetivos

expediram-se instruções para a criação de comissões municipais e paroquiais, mas, apesar do

ato oficial, foram poucos os que enviaram os mapas, impossibilitando que as informações de

1870 fossem emitidas. A partir dos dados coletados, a seção de estatística produziu dois

mapas, “[...]um da divisão judiciária, por comarca, termo, município e distrito de paz; e outro

pela importância de seu foro, afim de se fazer a designação de vilas e cidades que devem ser

cabeças de comarcas, segundo a novíssima reforma judiciária”. 17 Além desses mapas

elaborou-se um relatório informando que Inhambupe era uma comarca de Primeira Entrância,

distante da capital 29 léguas, com uma área aproximada de 448 léguas e renda provincial de

15:357$137 réis. A comarca tinha sob a sua jurisdição três vilas – com termos de juízes

municipais – Inhambupe, Alagoinhas e Entre Rios –, oito distritos com 283 eleitores e 14.810

votantes. No relatório consta ainda a informação de que a comarca era “central, distante 9

léguas do ponto terminal da via férrea (Alagoinhas), comunica diretamente com a capital

menos de 12 horas”.18 O Almanak Administrativo, Comercial e Industrial da Província da

Bahia para o ano de 1873, informa que a Comarca de Inhambupe compreendia os municípios

de Inhambupe, Purificação e Alagoinhas. Naquela ocasião, o juiz de direito da comarca era

Antônio Luiz Affonso de Carvalho e os juízes municipal e de órfãos em Inhambupe eram o

dr. José Pedreira França e, em Alagoinhas, Pedro Carneiro da Silva, sendo Manoel de Araujo

Góes o promotor público. 19 Já o mapa das províncias elaborado em 1876, informa que

Inhambupe continuava como cabeça da comarca e compreendia os termos de Inhambupe,

Entre Rios e Alagoinhas. Cabe lembrar que as vilas ora mencionadas eram sedes de seus

16 Relatório de Presidentes da Província. Documentos anexos ao relatório apresentado a Assembleia Legislativa da Bahia pelo excelentíssimo senhor Barão de São Lourenço em 11/04/1869. Disponível em: <http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/bahia>. Acesso em: 20/12/2017. 17 Relatório de Presidentes da Província. Fala de abertura do excelentíssimo senhor desembargador João Antônio

de Araujo Freitas Henriques, da Assembleia Provincial da Bahia, em 1 de março de 1872. Disponível em:

<http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/bahia>. Acesso em: 20/12/2017. 18 O documento não informa os nomes das três vilas nem cita os oito distritos. Relatório de Presidentes da

Província. Fala de abertura do excelentíssimo senhor desembargador João Antônio de Araujo Freitas Henriques,

da Assembleia Provincial da Bahia, em 1 de março de 1872. Disponível em: <http://www-

apps.crl.edu/brazil/provincial/bahia>. Acesso em: 20/12/2017. 19 PIMENTA, Altino Rodrigues. Almanak Administrativo, Comercial e Industrial da Província da Bahia, para o

ano de 1873. Bahia: Typografia de Oliveira Mendes, 1872, pp. 51-58.

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respectivos municípios, divididos em distritos e com autonomia administrativa, a exemplo de

Alagoinhas. Assim, cada uma das vilas e sede administrativa de seus respectivos municípios

era dividida em povoados e sede de paróquias.

A expressiva diferença entre o número de eleitores e de votantes estava relacionada à

condição social do indivíduo no Brasil Imperial. Aldrin Castellucci, citando Francisco

Belisário Soares de Souza, representante da elite na província da Bahia afirma que, “para ele,

só uma parte do povo – aquela que fosse proprietária e escolarizada – estava apta a valorizar e

sustentar a cidadania política, no que estava em sintonia perfeita com o pensamento das elites

políticas e econômicas do ocidente”.20 Cabe lembrar que a Constituição de 1824 excluiu

grande parte da população do processo eleitoral, tendo em vista que apenas uma diminuta

parcela era detentora de propriedade e escolaridade, naquele contexto marcado pela

escravidão.21 Os votantes eram homens livres e libertos com renda mínima de 100 mil réis

que atuavam nas eleições primárias. Aos eleitores, por sua vez, vedava-se a participação de

libertos, restringindo o voto em eleições secundárias e o direito de eleger-se a cargos

administrativos aos homens livres, com renda superior a 200 mil réis.22 Portanto, a exigência

de renda e condição jurídica configurava-se em alargamento de votantes e consequente

diminuição do número de eleitores na sociedade do Império do Brasil.

Do ponto de vista econômico, segundo Edson Ferreira da Silva, havia em Inhambupe

um comércio ativo dos gêneros de primeiras necessidades, tanto para subsistência quanto para

serem comercializados em localidades como Salvador, Santo Amaro e Cachoeira.23 Na feira

local, os produtos mais vendidos eram farinha de mandioca, milho, feijão, arroz, carne,

açúcar, café, sal e azeite, que advinham da produção local, e também de vendedores de outras

localidades, sendo autuados conforme as posturas municipais:

Todos os vendeiros que trouxerem seus gêneros a vender nesta vila e nas povoações

de seu termo pagarão para o município da Câmara uma multa na forma seguinte: por cada uma carga de fumo, sendo do termo desta vila, pagarão oitenta réis, e sendo de

fora trezentos e vinte réis; pagarão de farinha, milho, feijão, arroz e outros

quaisquer gêneros medíveis e pesáveis quarenta réis, pena de ao contrário fazendo

perderem o terço do que trouxerem para pagamento da multa, e a (ilegível), e isto e

20 O autor analisa o envolvimento dos trabalhadores com a política no Brasil imperial, mais especificamente a

classe operária de Salvador, destacando a sua inserção nos pleitos eleitorais da segunda metade do século XIX,

cf. CASTELLUCCI, Aldrin Armstrong Silva. “Muitos votantes e poucos eleitores: a difícil conquista da

cidadania operária no Brasil Império (Salvador, 1850 -1881)”. Varia História. [online]. 2014, vol. 30, nº 52, pp.

184-206. 21 Cf. CONSTITUICÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL, 25 demarço de 1824, artigos 90 a 97. 22 MATTA, Kátia Sausenda. “Votantes ou eleitores? Os impasses da participação política local no início do

oitocentos (1827-1828)”. In: Anais do XVIII ENCONTRO REGIONAL – ANPUH – Dimensões do poder na

História, 2013, Ouro Preto/MG. Anais... Ouro Preto: Editora EDUFOP, 2013, 1-12 (Anais eletrônicos). 23 SILVA, Edson Pereira da. “O preço da liberdade: experiências de escravos e libertos na vila de Inhambupe –

Bahia (1870 – 1888)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade do Estado da Bahia, 2017),p. 60.

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em atenção aos cômodos, que a custo da Câmara se lhes tem feito, outro sim que

nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja possa atravessar os

gêneros que se encaminharem as ditas terras [...].24

O município também se destacava na criação e comércio de gado. A criação de gado cabrum e

ovelhum era permitida na vila e suas povoações, desde que os proprietários recolhessem os

animais todas as tardes, sob pena de serem apreendidos e recolhidos ao curral público, caso

não cumprissem as determinações e de onde não sairiam sem o pagamento de um réis por

cabeça. O comércio de carne era praticado com a licença da Câmara nos matadouros públicos

e particulares e nos açougues particulares da vila.25 Segundo Antônio Hertes Santana, havia

preocupação da Câmara de Inhambupe com o dia e horário para o abate do gado destinado ao

consumo da população. Para tanto foi criado uma postura determinando que esse abate

acontecesse no mesmo dia da feira, porque “pernoitando ele no curral, [o gado] fica

descansando e a carne melhor”, também os compradores de fora poderiam adquirir a carne

que precisavam e chegar a tempo de tratá-la.26 Assim, a agricultura e a pecuária eram as

principais atividades econômicas da vila de Inhambupe.27

Segundo Barickman, os municípios localizados ao norte do Recôncavo como

Inhambupe, Itapicuru e Abadia, por terem um clima mais seco, eram mais propícios para a

plantação do algodão, no entanto, “[...] os principais centros da lavoura algodoeira na Bahia

situavam-se em Caetité, Rio de Contas, Jacobina e Bom Jesus dos Meiras, municípios do

sertão, muito distantes de Salvador”.28 Ou seja, apesar de contar com solo e clima apropriados

para a plantação de algodão, Inhambupe não figurava na lista dos principais produtores desse

produto na Província da Bahia. Entre outras razões, certamente por falta de mais

investimentos. Outro dado importante trazido pelo autor refere-se aos números de engenhos

identificados ao norte do Recôncavo, mais especificamente Inhambupe, Alagoinhas e

Itapicuru. Segundo informou, em 1818 eram 3 engenhos; em 1829, 22; em 1842, 54 e; em

1873, 54.29 Contudo, ao analisar a mesma fonte de Barickman, isto é, o Livro de matrícula de

engenhos da Bahia, Gemina Lima identificou “[...] um total de 52 engenhos registrados e

24 Arquivo Público do Estado da Bahia (doravante APEB). Colonial e Provincial. Posturas de Inhambupe, maço

857, 1831 - 1887. 25 APEB. Colonial e Provincial. “Posturas de Inhambupe”, maço 857, 1831 - 1887. 26 SANTANA, Antônio Hertes Gomes de. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho em

Alagoinhas e Inhambupe (1860-1890)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Rural do

Rio de Janeiro, 2015), p. 32. 27 LIMA, Gemima de Sousa. “Tecendo a liberdade: libertos no pós emancipação em Inhambupe (1880-

1890)”.(Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2017), p. 16. 28 BERICKMAN. Um contraponto baiano, p. 60. 29 BERICKMAN. Um contraponto baiano, p. 80.

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espalhados na região de Inhambupe, no ano de 1807”.30 Em sua pesquisa, a autora ressaltou a

importância econômica da vila de Inhambupe, tendo em vista que possuía um expressivo

número de engenhos, fazendas e sítios. Janaína Amorim, analisando a documentação de

Alagoinhas concluiu que, no período de 1820 a 1853, havia 16 engenhos na freguesia de

Santo Antônio das Alagoinhas, e cogitou a possibilidade de esse número ser maior, uma vez

que engenhos como Velho e Contigua, que pertenciam, respectivamente, a José da Silva

Paranhos e Francisca Xavier da Rocha, registrados nos assentos de batismos, não foram

relacionados na matrícula de engenho.31

A produção agrícola de Inhambupe abastecia os mercados da região e o excedente

era exportado. Segundo Santana, as Câmaras municipais de Inhambupe e Alagoinhas

editaram posturas obrigando os lavradores a plantar cana, café e tabaco como gêneros de

exportação, ressaltando a preocupação das autoridades locais com a economia agrícola, de

fundamental importância para a região, mantida, principalmente, com a mão de obra de

escravos, de libertos ou livres pobres. 32 A partir de 1850, os legisladores municipais

regulamentaram as terras agrícolas buscando a preservação da economia açucareira e

fumageira, consideradas as mais importantes da região. A regulamentação efetuada pela

Câmara, provavelmente foi pautada na Lei de Terras de 1850 que substituiu o sistema

colonial de concessão de terras. No entanto, essa legislação mostrou-se pouco eficaz para

controlar a aquisição das terras devolutas por particulares. Segundo Barickman, “poderosos

proprietários tiraram proveito primeiro da absoluta ausência de legislação e, depois, da

implementação pouco rigorosa da Lei de 1850 para aumentar suas propriedades mediante a

apropriação de grandes extensões de terras devolutas”.33

Ao descrever o sítio urbano de Inhambupe, Aguiar, que recolheu informações sobre

o sertão da Bahia entre 1883 e 1888, foi lacônico, limitando-se a informar que a edificação era

antiga, inclusive a igreja Matriz, a praça era espaçosa e a casa da Câmara e da cadeia ocupava

um edifício sólido. Também mencionou a existência de duas escolas de primeiras letras, onde

30 LIMA. “Tecendo a liberdade”, p. 15. 31 AMORIM, Janaína Laís L. S. “O parentesco espiritual: compadrio de escravos africanos na freguesia de Santo

de Santo Antônio das Alagoinhas (1818-1850)”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do

Estado da Bahia, 2015), p. 16 32 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho, p. 17. 33 BERICKMAN. Um contraponto baiano, p. 181.

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estudavam 105 crianças, sendo 64 meninos e 41 meninas.34 Em outras palavras, a vila de

Inhambupe era um centro administrativo que atendia aos moradores daquele município.

Segundo o Recenseamento de 1872, o município de Inhambupe – que compreendia

as freguesias do Divino Espírito Santo de Inhambupe e Nossa Senhora da Conceição do

Aporá – tinha uma população de 20.840 habitantes, sendo 18.175 livres e 2.665 escravos.35 A

população na faixa etária entre 11 e 60 anos, portanto, apta ao trabalho no município estava

assim distribuída: 10.943 (86%) livres e 1.799 (14%) escravos.36 Dessa forma, o percentual de

trabalhadores livres no município era significativamente superior à mão de obra escrava. No

entanto, a grande maioria desses trabalhadores livres era egressa da escravidão – como

veremos no próximo capítulo – e, possivelmente viviam em famílias com diferentes estatutos

jurídicos. Diante de tais dados, pode-se questionar qual era a importância da escravidão no

município de Inhambupe nas décadas de 1870 e 1880? Ao analisar a documentação do Fundo

de Emancipação de Inhambupe, Reis contabilizou 2.057 escravos classificados pelo Fundo de

Emancipação, entre os anos 1882 e 1886, que corresponde a um decréscimo de 23% em

relação ao percentual de escravos recenseados em 1872.37

Tabela 1: Posse em escravos em Inhambupe, segundo a

Lista de Classificação do Fundo de Emancipação, 1882-1886

Escravos classificados pelo

Fundo de Emancipação

Proprietários

No %

1 166 36,6

2-4 159 35,1

5-9 79 17,4

10-19 31 6,8

20-29 13 2,9

Acima 30 3 0,7

Sem informação 2 0,4

Total 453 100 Fonte: REIS, Isabel. “A Família Negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888”.

Tese (Doutorado em História), UNICAMP, 2007, p. 256.

34 AGUIAR. Descrições práticas, p. 88. 35 O município de Inhambupe possuía duas freguesias, conforme disposto no Quadro dos municípios da província da Bahia e suas respectivas freguesias. Cf. Recenseamento da Província da Bahia, 1872, fl. 513.

Discordo de Edson Ferreira da Silva que considerou o município de Inhambupe com três freguesias, incluindo a

freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres de Entre Rios. A referida freguesia foi considerada no Recenseamento

de 1872 como município independente. Cf. SILVA. “O preço da liberdade”, p.40. 36 Análise feita a partir da base de dados agregada pelo CEDEPLAR. Cf.

http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/pop-72-brasil/. Acesso em 37 REIS. “A Família Negra”, p. 251.

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Chama a atenção o grande número (71,7%) de pequenos escravistas (entre 1 e 4

escravos) listados em Inhambupe pelo Fundo de Emancipação. Apesar de não ter sido

possível no âmbito deste trabalho fazer uma análise socioeconômica sobre quem eram esses

escravistas e o lugar que ocupavam naquela sociedade, não se crê que fossem senhores de

parcos recursos, até porque naquele contexto as possibilidades de adquirir escravos eram

restritas. Segundo Reis, os escravos listados para a alforria pelo Fundo de Emancipação eram,

em sua grande maioria, ocupados na lavoura (83,5%). Em outras palavras, agregados,

sitiantes, lavradores, médios e grandes proprietários rurais usavam mão de obra escrava na

última década da escravidão em Inhambupe. Os demais escravos eram ocupados em diversas

atividades tanto rurais, a exemplo do vaqueiro, quanto urbanas, caso de sapateiros e alfaiates,

mas em percentual diminuto. 38 Assim, no ambiente mais urbanizado do município havia

poucos escravizados, sendo sua presença maior nas áreas rurais.

Segundo Reis, entre os quatro maiores escravistas de Inhambupe, listados pelo Fundo

de Emancipação estavam o dr. João dos Reis de Souza Dantas, com 93 escravos; o coronel

Maurício José de Souza Dantas, seu irmão, que tinha 81; o coronel Pedro Gomes Leão

Ferreira Velloso, com 74 e; d. Francisca Alexandrina de Vasconcelos, que possuía 30 cativos.

Os Souza Dantas era uma “destacada família da elite baiana, proprietária de terras e escravos

e com intensa participação no cenário político nacional”.39 De acordo com Santana, outros

grandes proprietários em Inhambupe, foram Bento José de Noronha, dono do Engenho Lagoa

e da Fazenda Canabrava, que possuía 50 bois de carro, 160 cabeças de gado de criar e alguns

cavalos; Bernardo José de Noronha, que possuía bens nos sertões e vilas do centro da

província e Francisco Caetano de Almeida, que tinha engenhos, escravos e fazendas de

gado. 40 Conforme destacou, frequentemente os inventariantes de Inhambupe solicitavam

prorrogação para concluir os inventários, alegando possuir bens nos sertões e vilas do centro

da província, e a dificuldade em juntar, contar e ferrar os gados no prazo estabelecido, a

exemplo do tenente coronel Bernardo José de Noronha e Francisco Caetano de Almeida que

possuíam engenhos, escravos e fazendas de gado em diversas localidades daquele sertão.41

Para Silva, o coronel Pedro Gomes Ferreira Velloso foi o proprietário do Engenho

Coité, hoje Fazenda Coité, situada às margens do rio Inhambupe, localização estratégica para

38 REIS. “A Família Negra”, p. 249. 39 REIS. “A Família Negra”, p. 256. 40 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do Trabalho”, p. 20-22. 41 O autor afirma que foram pesquisados 3 inventários de Alagoinhas e 14 de Inhambupe, ressaltando que

realizou uma análise qualitativa, o que possibilitou notar quem eram “os poucos ricos da região e o que

possuíam”. SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, p. 18-23.

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o plantio da cana-de-açúcar e de outros gêneros de primeira necessidade, como arroz, milho,

feijão, mandioca, dentre outros. Silva ressalta que o patriarca da família Ferreira Velloso foi o

idealizador e construtor de uma barragem para represamento de água, utilizada a fim de irrigar

a plantação e mover o moinho de moagem de cana. O coronel Pedro Velloso foi o primeiro a

administrar o engenho, seguido pelo coronel Marcos Leão Velloso, seu filho. 42 Outros

membros da família Velloso, como se verá oportunamente, teve papel destacado na

interpretação das leis emancipacionistas no município de Alagoinhas e em Inhambupe.

A localização geográfica de Inhambupe também favoreceu o comércio de gado,

transformando-o num considerado entreposto comercial entre a capital e o norte da província

baiana, interligando Salvador e Paulo Afonso; a Bahia e o Piauí. A conhecida “Estrada das

Boiadas”, por onde transitavam esses animais, teve fundamental importância para o

desenvolvimento da região, tanto na comercialização de mercadorias como no surgimento de

povoados. O comércio do gado proporcionou a Inhambupe algum destaque e a possibilidade

de abrigar novas atividades econômicas.43 Assim como Inhambupe, Alagoinhas também era

contemplada pelo comércio que transcorria por essa estrada, conforme se verifica na próxima

seção.

Alagoinhas: da formação do povoado à criação da vila após a ilegalidade do tráfico

Como já foi dito, a origem do município de Alagoinhas está entrelaçada com a

história de Inhambupe e esteve sob sua jurisdição eclesiástica e administrativa até o século

XIX.44 O surgimento do povoado de Alagoinhas é anterior a 1747, bem como a capela de

Santo Antônio das Alagoinhas, pois, como consta, entre os anos de 1747 e 1748, Maria

Teixeira de Andrade, moradora no sítio da Capoeira, tinha por hábito confessar-se na dita

42 SILVA. “O preço da liberdade”, p.62. 43 LIMA, Keite Maria Santos do Nascimento. “Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e a vida urbana em

Alagoinhas (1868 – 1929)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2010), p. 21;

SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, p. 11; LIMA. “Tecendo a liberdade”,

pp. 17-18. 44 Segundo o autor da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, “conta a tradição que, em fins do século XVIII,

um sacerdote português, cuja identidade a História não guardou, fundou a capela no sítio em que existe

atualmente, o município de Alagoinhas”. Provavelmente, esse vigário tenha sido Francisco Cardoso, citado no

documento do Tribunal do Santo Ofício.

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capela com o padre Francisco Cardoso e, anos depois, acusou o padre de assediá-la no

confessionário.45

Subordinada à Matriz do Divino Espírito Santo do Inhambupe, a capela de Santo

Antônio das Alagoinhas foi elevada à freguesia, pelo Alvará de D. João VI, de 7 de novembro

de 1816, atendendo à solicitação feita pelo padre José Rodrigues Pontes. A partir de então,

ganhou autonomia para realizar casamentos, batismos e óbitos.46 Contudo, enquanto povoado,

Alagoinhas continuou dependendo administrativa e juridicamente da vila de Inhambupe no

que se referia a documentos, cuja emissão dependia da sanção da Câmara Municipal, a

exemplo de licença para criar estabelecimentos comerciais, licença para vender nas feiras,

certidão de compra e venda de escravos e imóveis, registro de cartas de alforria, dentre outros

necessários ao atendimento à comunidade de Alagoinhas. A inexistência desse aparato

burocrático obrigava os habitantes a se deslocarem para a vila de Inhambupe que ficava a 8

léguas de distância.47

Podemos inferir que a distância entre a freguesia e a vila, a exigência de longas

viagens para resolver questões burocráticas, assim como o rápido crescimento ocasionado

pela imigração de pessoas vindas das zonas limítrofes de Inhambupe, Irará e Santo Amaro e o

fato do local ter-se tornado “ponto obrigatório de passagem dos que [se] encaminhavam para

o Norte, cortada por velha estrada de boiadas, a localidade não tardou em prosperar”,

surgindo, assim, um movimento da população, solicitando o desmembramento da freguesia de

Santo Antônio das Alagoinhas da vila de Inhambupe.48 Em 16 de junho de 1852 a freguesia

foi alçada a vila pela Resolução provincial nº 442, confirmada em 1853 pela nova Câmara

Municipal que, a partir de então, passou a ser presidida pelo coronel José Joaquim Leal,

escolhido para o cargo por ter sido o vereador mais bem votado. Os limites foram mantidos,

ficando a nova vila composta por três freguesias: a freguesia de Jesus, Maria e José de Igreja

45 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, 28º Caderno de

Solicitantes, p. 32. Amorim também analisou este documento. Cf. AMORIM, Janaína Laís L. S. “O parentesco espiritual: compadrio de escravos africanos na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas (1818-1850)”.

(Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2015), p. 13; NASCIMENTO,

Aline Soraia Saraiva. “A família escrava na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas: uma análise

longitudinal”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2015), p. 17;

MATOS, Monalisa Silva Pereira. “Alforrias em Alagoinhas (1871-1888)”. (Trabalho de Conclusão de Curso em

História, Universidade do Estado da Bahia, 2016), p. 13. Sobre crimes de solicitação no período colonial, cf.

FERREIRA, Elisangela O. “Mulheres de fonte e rio”: solicitação no confessionário, misoginia e racismo na

Bahia setecentista. Afro-Ásia, 48(2013), pp. 127-171. 46 NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 18-19; MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 13. 47 NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 18. 48 FERREIRA. “Enciclopédia dos municípios brasileiros”, p. 21.

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Nova (Boa União), a freguesia do Senhor Deus Menino dos Araçás e a freguesia Santo

Antônio das Alagoinhas.49

Os estudos sobre a região destacam que na primeira metade do século XIX, a

principal atividade econômica do município de Alagoinhas era a agricultura, com o cultivo do

milho, da mandioca, do fumo e da cana de açúcar, produzidos em engenhos, fazendas e sítios,

sendo a criação de gado diminuta.50 Aline Nascimento ressalta a importância da posição

geográfica da vila para o seu desenvolvimento econômico que, embora inicialmente voltado

para o abastecimento local, depois se transformou em um centro abastecedor por conta da

instalação da ferrovia. 51 Segundo Janaína Amorim e Monalisa Matos, havia pequenos e

médios proprietários possuidores de pequenas e médias escravarias que produziam para

atender às necessidades de subsistência, sendo o excedente comercializado nas feiras locais e

nas circunvizinhanças.52 De acordo com Matos, a produção do fumo foi importante para

Alagoinhas, pois serviu de argumento para a construção da estrada de Catolé, que

transportaria numerosos fardos de fumo ou tabaco em rama produzidos no município.53

Em 1875, a Câmara de Alagoinhas informou à presidência da Província que o

município possuía 46 engenhos, sendo 5 movidos a água, 16 por tração animal e 25 a vapor,

mas não possuía máquinas apropriadas para branquear o açúcar.54 Assim, a partir da segunda

metade do século XIX, os principais produtos da indústria agrícola do município continuavam

a ser o açúcar, o tabaco e a farinha. A criação de gado não estava sendo vantajosa, por conta

das “inconstâncias do tempo”. O município estava situado em diversas campinas e era cortado

por diversos rios correntes, com terrenos arenosos, por isso, não se faz preciso de abertura de

novas estradas e nem pontes”.55 Os homens mais abastados cultivavam o açúcar e o tabaco e

os mais pobres a mandioca, o milho, o feijão e outros cereais.56

49 Cópia da Ata de instalação da nova Câmara Municipal de Alagoinhas, em cumprimento a Resolução

Provincial 442 de 16 de junho de 1852. APEB. Colonial e provincial. Correspondência da Câmara de

Alagoinhas, maço 1241, 1853 -1886. 50 Cf. AMORIM. “O parentesco espiritual”, p. 15; NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 19-20; MATOS.

“Alforrias em Alagoinhas”, p. 15-16. 51 NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 20. 52 AMORIM. “O parentesco espiritual”, p. 15; MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p.15. 53 A fala da autora foi baseada no Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo de 1853. MATOS.

“Alforrias em Alagoinhas”, p. 16. 54 FIGAM/CENDOMA. Atas da Câmara Municipal. 1875. 55 APEB. Correspondência da Câmara de Alagoinhas enviada ao presidente da Província. 1853 - 1886, maço

1241. 56 APEB. Correspondência da Câmara de Alagoinhas enviada ao presidente da Província. 1853 - 1886, maço

1241.

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Segundo Santana, a riqueza em Alagoinhas e Inhambupe estava concentrada nas

mãos de poucas pessoas. 57 Para o autor, alguns proprietários da região garantiram suas

riquezas graças à exploração da mão de obra de homens livres, libertos e escravos, a exemplo

de José Joaquim Leal, proprietário do Engenho Ladeira Grande, Fazenda Poço e Sesmaria do

Madureira. Na segunda metade do século XIX, a família Leal possuía no município de

Alagoinhas 2 engenhos e 11 fazendas, além de casas na vila, e Manoel Pinto da Rocha, era

proprietário do Engenho Velho e das Fazendas Lotanda e Poço Grande, com 120 cabeças de

gado e 19 cavalos.58 De acordo com Nascimento, a família Leal monopolizava a estrutura

fundiária no município de Alagoinhas, sendo detentora de sete dos 22 engenhos localizados

no arraial de Igreja Nova, área mais próspera desse município. O prestígio da família era tal

que,

Os interesses comerciais da família Leal também se evidenciam na alternância da

feira – dia importante do calendário semanal dos povoados, vilas e cidade – da vila

de Alagoinhas e do povoado de Igreja Nova onde era realizada a comercialização de produtos. As Posturas Municipais da Câmara entre os anos de 1868 e 1870 indicam

que as feiras da vila de Alagoinhas e do povoado de Igreja Nova não poderiam

ocorrer no mesmo dia, sugerindo a existência de concorrência entre os vendedores

de ambas as localidades.59

Em 1857, a Câmara de Alagoinhas discutiu a questão da criação de gado. Havia um

embate entre criadores e lavradores acerca de qual local dever-se-ia criar ou plantar, se em

terreno aberto ou fechado. Para tentar solucionar a questão foram criadas posturas municipais,

definindo limites e outras determinações a exemplo de onde e como os proprietários deveriam

exercer essas atividades. Não ficaram claros os critérios que foram usados para a elaboração

das posturas, não se sabendo, exatamente, se a geografia, o clima ou outro qualquer. Em

1875, a criação de animais configurava-se na segunda principal atividade econômica do

município, contabilizando 120 fazendas que se dedicavam, exclusivamente, a essa atividade,

produzindo anualmente 2.200 cabeças de bovinos, 280 da raça cavalar, 500 cabrum, 50

muares e 2.000 suínos.60

A construção da estrada de ferro trouxe novos ventos de progresso para Alagoinhas e

região. Segundo Aguiar, até o ano de 1866 a vila “constava apenas de umas quatro casas de

telhas junto ao rio, de um trapiche, das acomodações da estrada de ferro e uma meia dúzia de

57 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, 18-23. 58 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do Trabalho”, p. 20-22. 59 NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 31. 60 FIGAM/CENDOMA. Atas da Câmara de Alagoinhas. 1875. Nascimento também analisou as atas da Câmara.

Cf. NASCIMENTO. “A família escrava”, p. 33-35.

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casas de palha perto do barracão da dita estrada”.61 O ano de 1863 representou um marco para

Alagoinhas, com a inauguração oficial da primeira estrada de ferro da província da Bahia que

ligava a capital, Salvador, à vila. O rápido crescimento da vila ocorreu por conta da instalação

da estrada de ferro que impulsionou a população a fixar residência em torno da estação, bem

como a mudança de casas comerciais e da feira para o mesmo local.62 O historiador Robério

Souza ressalta a importância que Alagoinhas adquiriu com a construção da ferrovia, tornando-

se,

com o passar do século XIX, um entroncamento ferroviário de importância na

Bahia. Ponto terminal da via férrea que se iniciava na capital com a companhia

inglesa, Alagoinhas passou a ser epicentro de partida de duas linhas ferroviárias:

uma que a ligava à cidade de Timbó, em busca do Estado de Sergipe, e outra [...] que levaria seus trilhos até o Rio São Francisco.63

Segundo Souza, a construção do prolongamento da via férrea iniciou-se em 25 de outubro de

1876 e contou com o trabalho de “[...] ajudantes, condutores, escriturários, desenhistas,

contínuos e cento e noventa e quatro trabalhadores, sem especialização, além de

engenheiros”.64 Souza nos informa que não se sabe a procedência dos trabalhadores utilizados

na construção, mas levanta a hipótese de que muitos desses trabalhadores foram empregados

em obras ferroviárias anteriores.65 Talvez, os trabalhos menos especializados, a exemplo da

limpeza da mata e florestas e da construção dos canteiros das obras, fossem também

executados pelos moradores de Alagoinhas quando da construção do prolongamento que

passou pelo município.66

A expectativa de desenvolvimento urbano e econômico era compartilhada pelos vários

setores da sociedade, levando o então presidente da Câmara, Manoel Teixeira Leal, a solicitar

recursos ao governo da província para a construção de um novo templo da Matriz, já que o

fluxo de pessoas possivelmente aumentaria, devido à circulação de mercadoria. Segundo

Lima,

Ocaso de Alagoinhas é exemplar. A instalação do Prolongamento da Estrada de

Ferro da Bahia ao São Francisco no final do século XIX, que a colocava em

contato com outras cidades do interior baiano, aliada ao adensamento populacional a

61 AGUIAR. Descrições práticas, p. 93. 62 LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio”, p. 57. 63 SOUZA. Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892 -

1909). Salvador: Edufba/Fapesp, 2011, p. 40. 64 SOUZA. Tudo pelo trabalho livre, pp. 39-40. 65 SOUZA. Tudo pelo trabalho livre, p. 40. 66 Sobre o trabalho no canteiro de obras, cf. SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e

nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed.

Unicamp, 2016, capítulo 3.

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torna altamente atrativa para a rede comercial, o que contribuiu para uma expansão

do comércio local. 67

Assim como o comércio, a feira de Alagoinhas estabeleceu-se nas proximidades da “estação

terminal da via férrea” e, conforme determinava o artigo 1º da Postura Municipal, de 05 de

abril de 1870, ocorria aos sábados. 68 A feira configurava-se como lugar de excelentes

oportunidades para negociar os mais diversos produtos e gêneros alimentícios,

proporcionando renda para a população da vila e para vendedores e compradores de outras

freguesias, que careciam de licença para comercializar as suas mercadorias. Por ela passavam

tropeiros e mascates e diversos produtos, evidenciando a importância da feira para o cotidiano

da população de Alagoinhas, dos comerciantes e para o crescimento econômico do

município.69 As atividades da feira eram regulamentadas pela Câmara Municipal por meio das

Posturas, que depois de propostas pelos vereadores, eram enviadas à Assembleia Legislativa

da Província para a sua aprovação antes de serem colocadas em prática. Em caso de não

cumprimento das determinações pelos vendeiros lhes eram aplicadas penalidades. Segundo

uma dessas posturas, “qualquer pessoa que vender os gêneros de primeira necessidade com

pesos e medidas que não forem aferidas no mês de janeiro e revista em julho nesta vila ou

termo, sofrerá a pena de 10 réis ou 8 dias de prisão”. Além da feira da freguesia de

Alagoinhas, acontecia também aos domingos a feira da freguesia de Igreja Nova.70

Aguiar expressou surpresa com a prosperidade e transformação da vila, questionando

os dados estatísticos da época que contabilizaram apenas 800 fogos e cinco mil almas: “[...]

tudo sob a garantia do mais ou menos, como todas as nossas estatísticas e descrições; pelo que

pode ser duplicado sem exagero”.71 O desenvolvimento foi tão acentuado que proporcionou à

vila, vinte e oito anos depois de sua criação, a elevação à categoria de cidade, em 7 de junho

de 1880, pela Lei provincial nº 1.957. 72 Assim, a ferrovia foi peça fundamental para o

crescimento de Alagoinhas, pois além de proporcionar mudanças do espaço urbano servia de

atração para o estabelecimento de outras atividades.73 Corroborando com Souza, Lima aponta

que a ferrovia favoreceu o fluxo de pessoas e a abertura de novas casas comerciais para

atender à população, contribuindo significativamente para desenvolver o comércio local.

67 LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio”, p. 77. Colocar em destaque. 68 APEB. Colonial e provincial. Posturas de Alagoinhas, maço 855, 1833-1887.

69 LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio”, p. 35. 70 APEB. Colonial e provincial. Posturas de Alagoinhas, maço 855, 1833-1887. Idem.

71 AGUIAR. Descrições práticas, p.94.

72 AGUIAR. Descrições práticas, p. 95. 73 SOUZA. Tudo pelo trabalho livre, p. 35.

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“Enfim, a ferrovia criaria condições capazes de estruturar a economia local e viabilizaria o

desenvolvimento urbano”.74

As transformações por conta da inserção do transporte ferroviário não ficaram

restritas às questões econômicas. As pesquisas de Souza, Lima e Matos apontam para um

desenvolvimento peculiar, com a organização de várias atividades inéditas, com o surgimento

de jornais, escolas, bandas de músicas, praças, iluminação pública e um trânsito maior de

pessoas que favoreceu o comércio e o progresso da cidade. O comércio de Alagoinhas era

“ativo, grande e animado”, transportava para Salvador, por meio da ferrovia, gêneros de

primeiras necessidades, tais como açúcar, farinha, tapioca, feijão, milho, café, fumo, gado,

dentre outros.75 A economia da cidade passou por mudanças, desenvolvendo atividades outras

que, provavelmente, possibilitaram melhores condições de sobrevivência para a população.

Tratando da relação entre a ferrovia, o progresso e os trabalhadores na região, Souza

afirmou que nas vilas e cidades do interior da província por onde passou o transporte

ferroviário alterou-se a fisionomia urbana, “com a construção de estações ferroviárias, a

instalação de fios telegráficos e a edificação de armazéns para mercadorias ao longo da

estrada, além de barracões onde, a princípio, residiam os trabalhadores”. Ademais, pelas

localidades por onde “passaria a estrada de ferro, também ganharam túneis e pontes sobre os

rios”. 76 Dessa forma, a segunda metade do século XIX foi muito significativa para

Alagoinhas, pois a chegada da ferrovia trouxe como consequência várias transformações que

modificaram o cenário urbano e a vida dos moradores da cidade. No entanto, vale enfatizar

que ao longo do século XIX, a agricultura e a pecuária foram os principais meios de

sobrevivência e de produção de riqueza para a população de Alagoinhas e Inhambupe.

Outro ângulo para se mensurar o desenvolvimento de Alagoinhas é o crescimento da

população. Segundo Matos, em 1853, o vigário Antônio Martins da Silva Teles, por ocasião

da instalação da vila de Alagoinhas, anotou em ata a população do município. A população

livre era formada por 3.556 homens; 4.122 mulheres e 3.900 crianças, totalizando 11.578

pessoas, enquanto os escravos somavam 2.982 pessoas, sem distinção de sexo ou faixa etária.

Dessa forma, quando a vila foi criada, a população somava 14.560 pessoas.77 Decorridos 19

74 LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio, p. 41. 75 SOUZA. Tudo pelo trabalho livre, p. 35; LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio”, p. 21, 71 e 113 e MATOS.

“Alforrias em Alagoinhas”, p. 17. 76 SOUZA. Tudo pelo trabalho livre, p. 35. 77 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 18 e 19.

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anos, em 1872, a população do município era formada por 21.739 pessoas, sendo 17.976

livres e 3.763 escravos. Analisando o referido censo, Matos constatou que:

[...] a maior parte da população estava localizada na freguesia de Igreja Nova, com

um total de 51,8%, seguida por Santo Antônio de Alagoinhas, com 30,9% e Araçás,

com 17,3%. Em termos gerais, não existia diferença entre proporção de homens e

mulheres, porém, considerando cada freguesia de forma particular, percebemos que

a proporção de mulheres era um pouco maior em Araçás (51,6% de mulheres) e

Igreja Nova (50,7% de mulheres). No entanto, na freguesia de Santo Antônio das

Alagoinhas o número de homens (livres: 3.038 e cativos: 455) era um pouco maior

que o de mulheres (livres: 2.829 e cativas: 388), provavelmente por conta da construção da ferrovia e, da necessidade de mão de obra masculina na área voltada

para o comércio.78

Dessa forma, a população do município cresceu significativamente em decorrência da ferrovia

na década de 1860. Ao comparar os dados computados pelo vigário Teles em 1856 com o

Recenseamento de 1872, Matos constatou que houve um crescimento da população livre de

55,3%, e da população escrava de 26,2%. Segundo a autora,

Em 1856 a população escrava correspondia a 20,5% da população do município,

enquanto em 1872 essa proporção era 17,3%. A razão de dependência dos escravos, - que definimos aqui como sendo a razão entre o número de escravos em relação ao

número de pessoas livres em determinado recorte geográfico –, reduziu de 25,8%

para 20,9%, ou seja, em 1856 havia aproximadamente 26 escravos para cada 100

pessoas livres no município de Alagoinhas, já em 1872 para cada grupo de 100

pessoas livres existiam 21 escravos, demonstrando uma redução da oferta de mão de

obra escrava com o passar dos anos.79

Matos atribuiu o decréscimo da população escrava em Alagoinhas à proibição do tráfico em

1831, e o crescimento da população livre à construção da ferrovia e à seca que assolou

diversas áreas do sertão da província da Bahia, tornando esse um município de grandes

atrativos para homens e mulheres flagelados e/ou em busca de emprego.80

O universo do trabalho nos municípios de Alagoinhas e Inhambupe

O Recenseamento de 1872 possibilita uma aproximação ao universo do trabalho uma

vez que traz informações acerca das ocupações em Alagoinhas e Inhambupe, com dados sobre

as atividades desenvolvidas nesses municípios, como se vê exposto nas Tabelas 2 e 3. O

censo classificou tais ocupações em profissionais liberais: religiosos (seculares e regulares),

juristas (juízes, advogados, notários e escrivães, procuradores, oficiais de Justiça), médicos,

78 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 21. 79 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 20. 80 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 20-21.

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cirurgiões, farmacêuticos, parteiras, professores e homens de letras, empregados públicos e

artistas; militares, marítimos, pescadores, capitalistas e proprietários, sem incluí-los em uma

categoria mais ampla; industriais e comerciais: manufatureiros, fabricantes e comerciantes,

guarda livros e caixeiros; manuais e mecânicos: costureiras, operários (canteiros,

calcoteiros, mineiros e cavouqueiros, metais, madeiras, tecidos, edificações, couros e peles,

tinturaria, vestuário, chapéus, calçados); profissões agrícolas: lavradores e criadores; pessoas

assalariadas: criados e jornaleiros e; por fim, a categoria serviços domésticos e os sem

profissão declarada. Para fins de apresentação nas Tabelas 2 e 3 consideram-se capitalistas e

proprietários na categoria industriais e comerciais; e como outros, os militares, marítimos,

criados e jornaleiros.

Tabela 2: População de Inhambupe, considerada em relação às profissões,

por categoria e condição jurídica

PROFISSÕES

Livre

Total

Escrava

Total

Total

Geral Homem Mulher Homem Mulher

N % N % N % N % N % N %

Prof. Liberais 37 0,4 6 0,1 43 0,2 43

Outros 20 0,2 0,0 20 0,1 4 0,3 4 0,2 24

Prof. Industriais e

comerciais 139 1,4 89 1,1 228 1,3 228

Prof. Manuais e

Mecânicas 162 1,6 358 4,4 520 2,9 12 0,8 5 0,4 17 0,6 537

Serviços domésticos 1133 13,9 1133 6,2 56 3,8 36 3,1 92 3,5 1225

Prof. Agrícolas 6005 59,8 713 8,8 6718 37,0 878 59,0 488 41,4 1366 51,3 8.084

Sem profissão 3672 36,6 5841 71,7 9513 52,3 537 36,1 649 55,1 1186 44,5 10.699

Total 10035 100 8144 100 18175 100 1487 100 1178 100 2665 100 20.840

Fonte: Recenseamento do Brazil em 1872, Bahia, p. 316-321. Disponível em:

<http://biblioteca.ibge.gov.br/>. Acesso em: 24/03/2016.

As categorias relacionadas às atividades liberais tinham pouca representatividade

numérica em Alagoinhas e Inhambupe, mas eram funções estratégicas, isto é, justiça,

educação e saúde. Para esta pesquisa, importa detalhar a categoria dos juristas, subdivisão da

categoria profissionais liberais, uma vez que eram esses profissionais que atendiam as

demandas da população que buscava seus direitos junto à Justiça. Advogados, oficiais de

justiça e juízes, autuavam e faziam cumprir os trâmites legais dos processos cíveis, que

frequentemente ajudavam os escravos a conseguir suas alforrias. Dentre os 43 profissionais

liberais de Inhambupe, 10 foram classificados como juristas, sendo 3 notários e escrivães, 3

advogados, 1 juiz, 1 procurador e 2 oficiais de justiça. Já em Alagoinhas, dos 69 profissionais

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liberais, 13 eram juristas, sendo 2 juízes, 1 procurador, 4 oficiais de justiça, 4 notários e

escrivães e 2 advogados.81 Esses profissionais serão retomados adiante, o terceiro capítulo

desta dissertação, com o objetivo de mostrar como eles atuaram auxiliando os escravos na sua

luta por liberdade.82

Em 30 de agosto de 1884, em resposta à circular da presidência da Província da

Bahia, o juiz de direito da comarca de Inhambupe, Cypriano Almeida, informou a composição

das funções do judiciário da vila de Inhambupe:

[...] tenho a dizer que esta comarca se compõe de 2 municípios e são os desta vila e

o de Entre Rios. Ambos têm foro civil, aquele declarado pelos decretos números:

170 de 1842, 280 de1843, 312 de 1843, 1.218 de 1853, 2.240 de 1858, e o lugar da

residência do juiz de direito e do juiz municipal letrado. Tem dois tabeliães do

público judicial e notas, e escrivão do civil, acumulando o de escrivão da

provedoria, e oficial do registro das hipotecas, e tem mais o escrivão privativo de

órfãos e ausentes, servindo interinamente de escrivão do júri e execuções criminais e

da correção, são eles: Elesbão José de Avellar, Bonifácio Gil da Silva, Jacinto

Febronio de Oliveira.83

O juiz Almeida queixou-se da existência de cargos vagos, alegando ser esse o motivo pelo

qual ocorria o acúmulo de funções pelos profissionais existentes. Vale salientar que o escrivão

Jacinto Febronio de Oliveira atuou, em 1874, como curador da crioula Cândida e seu filho

José, em um processo de arbitramento de liberdade que será analisado adiante.

As Tabelas 2 e 3 agregam a população de Inhambupe e Alagoinhas segundo a

profissão e condição jurídica, sendo que algumas atividades, a exemplo das industriais e

comerciais, restringiam-se à população livre que atuavam como manufatureiros e fabricantes,

comerciantes, guarda-livros e caixeiros. Em Inhambupe foram listadas 228 pessoas, sendo

139 homens e 89 mulheres; e, em Alagoinhas, 191 homens e 2 mulheres ocupando as

atividades industriais e comerciantes. Interessante observar que 49 mulheres em Inhambupe e

33 em Araçás ocupavam-se em trabalhos agrupados como manufatura e fabricante,

possivelmente à frente de Engenhos de açúcar, produção de fumo e farinha, fossem solteiras,

viúvas e casadas, enquanto em Alagoinhas não foi listada mulheres com tais ocupações.

81 Inspirei-me em Matos que analisou o censo em relação às ocupações para o município de Alagoinhas. Cf.

MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 24. 82 Sobre a atuação da justiça cf. AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial

cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,

1999; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça.

São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001; SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. “Os escravos vão a justiça: a

resistência escrava através das ações de liberdade. Bahia, século XIX”. (Dissertação de Mestrado em História,

Universidade Federal da Bahia, 2000). 83 APEB. Correspondência recebida de juízes de Inhambupe. 1851 – 1889. Seção colonial e provincial, maço

2415. (Grifo nosso).

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Nessa última localidade elas ocupavam-se dos serviços de costura e domésticos, além do

expressivo contingente que trabalhava na lavoura.

As profissões manuais e mecânicas eram atividades exercidas pela população livre e

também pelos escravos. Apesar de pouco representativa nos municípios aqui estudados, é

importante explicitar a distribuição dos livres e escravos em tais ocupações. Entre os livres

em Alagoinhas, o censo computou 351 pessoas, sendo 292 homens ocupados em funções de

ferreiro, sapateiro, marceneiro, carpinteiro etc. e as mulheres aparecem nesta categoria como

costureiras: eram 31 no povoado de Igreja Nova; 17 em Araçás e; 11 na vila de Alagoinhas.

Foram recenseados 13 escravos – homens –, sendo 9 de edificações, 1 em metais, 1 em

vestuário e 2 de calçados. Ao analisar o Recenseamento de 1872 por freguesia no município

de Alagoinhas, Matos constatou que o número de escravos especializados em serviços

manuais era maior nas freguesias de Igreja Nova e de Araçás. Por outro lado, 68 escravos que

exerciam a função de criados e jornaleiros moravam na freguesia de Alagoinhas. A

historiadora atribuiu tal peculiaridade à existência da estrada de ferro e do crescente

desenvolvimento do comércio.84

Encontramos 520 pessoas livres e 17 escravos em ocupações mecânicas e manuais

no município de Inhambupe. Entre os homens livres, as ocupações que mais se destacavam

eram ofícios de sapateiros, carpinteiros, ferreiros e poucos escravos exerciam tais ofícios mais

especializados. A representatividade das mulheres nesta categoria foi expressiva, 69,8%, e o

ofício de costureira se destacou. Empregava, no município de Inhambupe, sobretudo às

mulheres livres: eram 244 em Inhambupe e 65 em Aporá, contra 4 escravas na primeira e 1 na

segunda freguesia. Eram poucos os escravos que possuíam algum tipo de especialização,

realidade também compartilhada por uma expressiva parcela da população livre. O número

informado pelo censo de pessoas sem ocupação é um dado que atesta essa informação.

O censo de 1872 aponta que em Inhambupe os sem profissão correspondiam a

51,3%. Entre os livres, os homens representavam 36,6% e as mulheres 71,7%; entre os

escravos, 36,1% eram homens e 55,1% mulheres. Em Alagoinhas, a população declarada

como sem profissão foi um pouco mais expressiva, isto é, 68,1%. Entre os livres, 42,7% eram

homens e a esmagadora maioria das mulheres, 97,1% foram declaradas sem profissão. Entre

os escravos, 37,7% dos sem profissão eram homens e 55,1% de mulheres. A população

declarada como sem profissão nessas localidades era formada por livres, libertos e escravos,

84MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 21.

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provavelmente não possuía uma ocupação específica, atuava na lavoura e em outras

atividades que não necessitassem de especialização. Os escravizados sem profissão de

Alagoinhas e Inhambupe trabalhavam, sobretudo, na lavoura, principal atividade produtiva da

região, além de outros trabalhos ligados à agricultura.85

O expressivo percentual de mulheres livres sem profissão em Inhambupe (71,7%) e,

em Alagoinhas (97,1%), pode ser atribuído ao fato de que não tinham conhecimento das

letras, realidade vivida pela maioria da população que não possuía escolarização, como

verificamos nas cartas de alforria e em outras fontes nas quais os senhores faziam constar, na

escrita dos documentos, solicitavam aos escrivães, tabeliães, parentes e outros: “A rogo de

[...] por não saber ler nem escrever”. As mulheres livres cuidavam das tarefas do lar,

atividades que não exigiam instrução, elas tinham menos oportunidades do que os homens na

inserção no mundo das letras. Conforme o censo, em Inhambupe eram 9 professores, sendo 4

homens e 1 mulher na paróquia do Divino Espírito Santo de Inhambupe e 2 homens e 2

mulheres na de Aporá. Para Alagoinhas o censo apresenta 2 mulheres na freguesia Jesus

Maria José de Igreja Nova, 3 homens na de Araçás e na de Santo Antônio das Alagoinhas, 4

homens e 1 mulher, somando um total de 10 professores. O universo de trabalho das

mulheres libertas certamente era muito distinto do das senhoras brancas que cuidavam do lar.

Elas ganhavam as ruas das vilas e povoados da região em busca de trabalho e as que moravam

em sítios e roças trabalhavam na lavoura.

Tabela 3: População de Alagoinhas, considerada em relação às profissões,

por categoria e condição jurídica

PROFISSÕES

Livre

Total

Escrava

Total

Total

Geral Homem Mulher Homem Mulher

N % N % N % N % N % N %

Prof. Liberais 63 0,7 6 0,1 69 0,4 69 69

Outros 60 0,7 6 0,1 66 0,4 68 3,7 68 1,8 134

Prof. Industriais e

comerciais 191 3,3 2 0,7 193 1,1 193

Prof. Manuais e

Mecânicas 292 3,3 59 0,7 351 2,0 13 0,7 13 0,3 364

Serviços

domésticos 89 1,0 89 0,5 4 0,2 116 6,2 120 3,2 209

Prof. Agrícolas 4537 50,5 101 1,1 4638 25,8 1116 61,4 206 11,0 1322 35,1 5960

Sem profissão 3838 42,7 8732 97,1 12570 69,9 686 37,7 1554 82,8 2240 59,5 14810

Total 8981 100 8995 100 17976 100 1819 100 1876 100 3763 100 21739

Fonte: cf Tabela 2.

85 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 25.

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Certamente esse expressivo percentual de homens e mulheres sem profissão buscava

alguma atividade para atender às suas necessidades básicas de sobrevivência. Santana sugere

que os indivíduos nessa condição podiam viver de trabalhos informais, sazonais ou também

atuar na lavoura.86 Ou ainda que os sem profissão “[...] viviam sobre si, com horários e dias

de trabalho alternados, ou até mesmo com ocupações não contempladas pelo censo”. 87

Segundo Robério Souza, não era uma prática incomum a utilização de anúncios na imprensa

com a finalidade de empregar mão de obra livre ou escrava na construção das estradas de

ferro em todo o Império brasileiro. Ainda que a legislação vigente proibisse a contratação de

cativos, “muitos construtores continuavam noticiando – abertamente sem a necessidade de

camuflagem – o engajamento de homens escravizados naquelas obras”.88 Concordamos com o

autor, tendo em vista que em sua maioria, essas eram pessoas pobres que dependiam de

trabalhos esporádicos para sobreviver.

Em Inhambupe essa população economicamente ativa representava 60,8 %, sendo

que os livres representavam 52,3% e os escravos 8,5%. Já em Alagoinhas, a população

economicamente ativa girava em torno de 51,8%, ficando 42,9% para a população livre e

8,9% para a população escrava. 89 Os números são semelhantes para as duas localidades

levando-nos a inferir o trabalho livre constituía-se na base da economia dessa região, ainda

que utilizasse o trabalho escravo. Assim, os dois municípios diferiam de Santo Amaro, área

açucareira do Recôncavo, que às vésperas da abolição ainda utilizava mão de obra escrava.90

No documento da Câmara de Alagoinhas, enviado à presidência da província em14

de maio de 1857, os legisladores já discutiam a questão do trabalho assalariado pela falta de

braços escravos, informando a dificuldade dos proprietários em conseguir pessoas livres para

o trabalho assalariado, pois não havia interesse da população livre nessa modalidade de

trabalho, mesmo com a possibilidade de receber um salário “[...] porque a população livre

mostra grande horror a qualquer contrato de serviço”.91 Segundo Barickman, a população

livre e pobre do Recôncavo evitava o trabalho assalariado de tempo integral, devido ao acesso

a grandes reservas de terras ociosas e não cultivadas que lhes assegurava “uma subsistência

muitas vezes precária, mas ainda assim independente”. O autor ressalta ainda que os senhores

86 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, p. 24. 87 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 24. 88 SOUZA. Trabalhadores dos trilhos, p. 62. 89 Tomamos como base, para calcular a população economicamente ativa de Alagoinhas e Inhambupe às idades

de 11 a 60 anos da população livre e escrava desses municípios. 90 BARICKMAN, Bert. Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo

baiano (1850-1881). Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), 177-238. 91 APEB, Colonial e provincial, correspondência recebida da Câmara de Alagoinhas, maço 1241, 1853-1886.

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de engenho e lavradores ou recorriam ao emprego da mão de obra cativa, ou então teriam que

se contentar “com a quantidade limitada de trabalho que eles próprios e suas famílias eram

capazes de fornecer” e, quando necessitavam de mão de obra extra por ocasião do plantio e

colheita da safra, alugavam escravos de vizinhos em vez de contratar trabalhadores livres.92

O censo de 1872 confirma essa realidade quando expõe que apenas 14 pessoas em

Inhambupe ocupavam a categoria criados e jornaleiros que se enquadra no subgrupo dos

assalariados, sendo 11 livres e 3 escravos, por certo escravos de ganho. Em Alagoinhas esse

número foi maior, especificamente na vila, por conta do ambiente mais urbanizado e do

comércio em franca ascensão nas décadas de 1870 e 1880, em decorrência da via férrea ali

construída que atraiu imigrantes e transeuntes. De um total de 124 indivíduos classificados

nessa categoria, 56 eram livres e 68 escravos.

Como dito, a agricultura e a criação de gado eram as principais atividades

econômicas e fonte de sobrevivência da população de Alagoinhas e Inhambupe. Essas foram

as atividades que empregaram um maior número de homens e mulheres tanto livre quanto

escravos, conforme se vê nas Tabelas 2 e 3. A categoria “lavrador”, apresentada no censo de

1872, é muito ampla e não dá conta da complexidade das experiências de trabalho da

população livre, uma vez que compreendia desde o fazendeiro, até o trabalhador despossuído,

mas comumente designado como agregado.93 Os agregados ou domésticos, como classifica

Berickman, trabalhavam nas lavouras e também desempenhavam outros serviços em troca de

casa e comida, viviam juntos sob o mesmo teto, assentavam-se à mesa para as refeições e

atuavam, muitas vezes, nas mesmas atividades desenvolvidas pelos membros da família. “Às

vezes, eram de fato membros da família: parentes mais pobres ou filhos adultos que ainda não

tinham estabelecido seus próprios fogos. Portanto, seria razoável argumentar que os

agregados e domésticos serviam para aumentar o “fundo comum” de mão de obra familiar

disponível na unidade doméstica”.94

Em Alagoinhas, os lavradores representavam 27%, considerando o total de 21.739

pessoas, e em Inhambupe, 38,2% do total de 20.840 habitantes, atuando em atividades

diversas, que exigiam ou não especialização. Assim, era expressivo o contingente

demográfico que sobrevivia da lavoura, mesmo porque, além dos identificados como

lavradores, havia uma massa populacional classificada como sem profissão, o que não

92 BARICMAN. Um contraponto baiano, p. 221. Idem, Ibidem, p. 217. 93 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, p. 25-27. 94 BARICMAN. Um contraponto baiano, p. 217 – 221.

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significa sem ocupação, pois esse grupo exercia algum tipo de atividade para sobreviver.

Grande parte dessa massa destinava-se a desenvolver as atividades agrícolas, principalmente

nas lavouras de subsistência. Vale destacar que, dentre os considerados sem profissão, havia

pessoas livres pobres, libertos e escravos que lutavam pela sobrevivência.

A atividade de criador era exercida por homens livres. Em Alagoinhas o censo

contabilizou 116 criadores, constam 87 em Inhambupe. Se a função de criador diz respeito à

propriedade de animais, então, justifica-se esse número tão reduzido, pois a região era

formada, em sua maioria, por pequenos e médios proprietários voltados para a produção

agrícola e os poucos animais que possuíam eram destinados para a sua subsistência e dos seus

comandados. A criação de animais era a segunda principal atividade econômica desenvolvida

nesses municípios. Segundo Santana, possuir terras, gado e escravos eram sinônimos de

riqueza, mas eram poucos os criadores que figuravam como grandes produtores de animais.

Em Inhambupe destacamos o tenente coronel Bernardo José de Noronha, que possuía bens

nos sertões e vilas do centro da província e queixava-se da dificuldade em juntar, contar e

ferrar o gado devido ao tamanho e distâncias entre as suas propriedades, e as famílias Dantas

e Velloso. Em Alagoinhas, a família Leal destacava-se pela quantidade de engenhos e

fazendas que desenvolviam a lavoura e criavam gado no município.95

Enfim, a formação dos povoados e vilas de Alagoinhas e Inhambupe foi marcada

pela escravidão, embora ali as atividades econômicas não demandassem uma quantidade

significativa de escravos. A despeito de ser uma área economicamente periférica, o trabalho

escravo marcou a sociedade que ali se formou, e para entender a dinâmica social e econômica

na qual estavam os escravos inseridos, faz-se necessário compreender e analisar mais

cuidadosamente a escravidão e os caminhos da liberdade trilhados por homens e mulheres

daqueles municípios.

95 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, pp. 20 – 22; ver também: REIS, “A

Família Negra”, p. 256; NASCIMENTO. “A família escrava”. SILVA; “O preço da liberdade”, p. 62.

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CAPÍTULO II

ESCRAVIDÃO E ALFORRIA NOS MUNICÍPIOS DE ALAGOINHAS E

INHAMBUPE

Inhambupe e Alagoinhas: percursos iniciais até o recenseamento de 1872

Nas últimas décadas a historiografia da escravidão no Brasil tem refinando as

temáticas em estudo bem como ampliado os espaços anteriormente pouco ou não estudados,

quais sejam, as áreas economicamente periféricas e como elas se conectavam às mais

dinâmicas. Neste sentido, é importante conhecer as relações escravistas que permearam a

sociedade de Inhambupe e Alagoinhas para compreender as suas conexões com o contexto

mais geral da província da Bahia. Essa incursão será feita, principalmente, com os dados do

primeiro recenseamento feito no Império do Brasil. Bert Barickman, ao analisar a população

do Recôncavo às vésperas da abolição, chama a atenção para as divergências do

recenseamento, mas considerou que, apesar de toscas, tais estimativas são importantes, por

sugerir que na década de 1870, os senhores de Engenho empregavam escravos em suas

propriedades.1 Diego Nones Bissigo discutiu a oposição entre liberdade e escravidão no censo

de 1872, mostrando a problemática dos libertos sob condição e dos africanos ilegalmente

traficados após 1831.2 Assim, a despeito dos problemas que a fonte pode suscitar, os dados

dela extraídos podem descortinar uma gama de possibilidades de análise.

O primeiro recenseamento da população do Império foi feito tardiamente, decorridos

meio século da independência, em 1822, uma vez que as primeiras décadas da construção do

Estado nacional foram permeadas por conflitos, insurreições e revoltas. Assim, conhecer

especificidades do perfil da população das vilas e cidades do Império do Brasil só foi possível

depois do censo de 1872.3 Antes disso, a prática de contabilizar os habitantes de determinado

local acontecia por meio das listas nominativas que foram instituídas em 1756, no Brasil

colonial, por resolução do Marques de Pombal. Segundo Renato Leite Marcondes, a aplicação

1 BARICKMAN, Bert. “Até a véspera: o trabalho escravo e a produção do açúcar no Recôncavo Baiano (1850-

1888)”,Afro-Ásia, n. 21-22(1998/1999), p. 197. 2 BISSIGO, Diego Nones. “O lugar dos africanos na estatística brasileira do século XIX”. Afro-Ásia, 56 (2017),

41-81. 3 Para a análise sobre a população do município de Alagoinhas e Inhambupe consultou-se, além do

Recenseamento do Império do Brazil de 1871, o software pop 72, elaborado pelo Núcleo de Pesquisa em

História Econômica e Demográfica, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Demografia e Economia da

UFMG, ambos disponível online, respectivamente em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/> Acesso em 24/03/2016 e

<http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/pop72/index.html/>. Acesso em: 21/10/2017.

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desse método em São Paulo data de 1765. Para fins de recrutamento militar, a Igreja realizava

levantamentos de caráter censitário por meio dos róis de confessionário, “compreendendo até

mesmo a população escrava”.4 A ênfase dada por Marcondes à população escrava interessa ao

nosso trabalho, sobretudo porque apresenta caminhos metodológicos para perscrutar os

números da população escrava de Alagoinhas e Inhambupe na segunda metade do século

XIX, tendo em vista que, antes do censo de 1872, são pontuais as informações acerca da

população desses municípios. Como foi dito no primeiro capítulo, a freguesia do Divino

Espírito Santo do Inhambupe de Cima, conforme a informação do vigário Joaquim

Sant’Anna, em 1757, contava com 2.558 almas. Vale lembrar que a população da capela de

Santo Antônio das Lagoinhas, que pertencia à referida freguesia estava inclusa nesse

quantitativo.5

Em 1802, a então vila de Inhambupe, por ocasião do seu desmembramento da vila de

São José de Água Fria, possuía mais de 6.800 habitantes, segundo informou o ofício de

Francisco da Cunha Meneses, mas sem distinguir a população por condição jurídica.6 Como

já dito no capítulo anterior, para Alagoinhas, os dados demográficos que se conhece foi

produzido pelo vigário Antônio Martins da Silva Teles que foi anexado à ata de instalação da

Câmara Municipal, em 1853. O vigário computou um total de 14.560 habitantes, com 11.578

pessoas livres, desses, 3.556 eram homens, 4.122 mulheres e 3.900 crianças e uma população

escrava de 2.982 almas. Não foi declarado o sexo das crianças e nem dos escravos.7

Analisando os registros de batismos da freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas, no

período entre 1827 e 1846, Monalisa Matos encontrou 11.099 pessoas batizadas naquela

freguesia e, destes, 1.978 (18%) eram escravos.8 Janaina Amorim, estudando as relações de

compadrio na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas no período entre 1818 e 1850,

4 MARCONDES, Renato Leite. “Fontes censitárias brasileiras e posse de cativos na década de 1870”. Revista de

Índias, vol. LXXI, n. 251 (2011), p. 232. 5 Até 1852, quando foi elevada à condição de vila, a população de Alagoinhas estava inserida na população de Inhambupe. BNRJ. “Relação da Freguesia do Divino Espírito Santo do Sertão do Inhambupe de Cima”, p. 225. 6 BNRJ. Oficio de Francisco da Cunha e Meneses a S.A.R. sobre a divisão da freguesia de Inhambupe e

Comarca de Água Fria. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0000197/mssp0000197.pdf>. Acesso em

11/11/2017. . 7 Este documento foi analisado por MATOS, Monalisa Silva Pereira. “Alforrias em Alagoinhas (1871-1888)”.

(Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2016), p. 18 e 19. Sobre a ata,

cf. FIGAM/CENDOMA. Ata de instalação da Câmara Municipal de Alagoinhas, 1853. 8 MATOS, Monalisa Pereira. “Escravidão e identidade étnica na freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas

(1827-1846)”. In: ANAIS XVIII JORNADA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA 18 Anos de IC na UNEB: Um

Olhar para o Futuro, 2014, Salvador/BA. Anais... Salvador, UNEB, 2014, p. 643-644 (Anais eletrônicos).

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baseada nos livros de batismos, contabilizou um total de 2.686 cativos.9 Em seu trabalho de

conclusão de curso sobre alforrias, entre 1871 e 1888, Matos analisou os dados demográficos

compulsados pelo vigário Teles, no ano de 1856 e os comparou com os dados do

recenseamento de 1872 para Alagoinhas. Segundo a autora, entre 1856 e 1872 a população

cresceu 49,3%, passando de 14.560 para 21.739, ocorrendo um crescimento da população

livre de 55,3% e da população escrava de 26,2%. Em 1872, o percentual de escravos era de

17,3% o que representou um decréscimo dessa população e, consequentemente, uma redução

na mão-de-obra.10 Já Laís Santos, que estudou o tráfico ilegal na Freguesia do Divino Espírito

Santo, entre 1824 a 1840, detectou a existência de 1.267 escravizados entre os que receberam

os primeiros sacramentos do batismo. 11 Mais adiante voltaremos a estes números para

discutirmos a escravidão em Alagoinhas e Inhambupe. Os dados computados pelas autoras

são de grande importância, pois dimensionam, quantitativamente, a escravidão nessas

freguesias desde a primeira metade do Oitocentos.

Tabela4: População livre e escrava nos municípios de Alagoinhas e

Inhambupe, 1872

Município

População

Livre Escrava Total

N % N % N %

Alagoinhas

17.976 82,7 3.763 17,3 21.739 100

Inhambupe 18.175 87,2 2.665 12,8 20.840 100

Fonte: Recenseamento do Brazil em 1872, Bahia, p. 316-321. Disponível

em:<http://biblioteca.ibge.gov.br/>. Acesso em: 24/03/2016.

Os documentos anteriormente citados para Inhambupe, bem como as informações do

padre Antônio Teles para Alagoinhas, não trouxeram informações acerca dos perfis

populacionais, a exemplo da profissão, estado civil, classificação étnica, entre outros, nem

expuseram dados que informassem sobre as atividades econômicas ali desenvolvidas. É o

censo de 1872 que possibilita conhecer e analisar tais perfis, comparando as duas localidades.

Os dados da Tabela 4 apontam para uma população majoritariamente livre para os dois

municípios e pequeno percentual de escravos. Ao comparar o crescimento da população do

9 AMORIM, Janaína Laís L. S. “O parentesco espiritual: compadrio de escravos africanos na freguesia de Santo

de Santo Antônio das Alagoinhas (1818-1850)”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do

Estado da Bahia, 2015), p. 21 10 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 18-26. 11 SANTOS, Laís de Jesus Freitas. “Tráfico ilegal na província da Bahia: estudo de caso sobre a freguesia do

Divino Espírito Santo (1824-1840)”. In: XX JORNADA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UNEB – Desafios

do século XXI: integração social e sustentável,2016 Salvador/BA. Anais... Salvador, UNEB, 2016, p. 387.

(Anais eletrônicos).

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município de Alagoinhas entre 1856 e 1872, Matos constatou que houve um crescimento de

49,3% da população como um todo, passando de 14.560 para 21.739, e concluiu que a

população livre (55, 3%) cresceu mais, se comparada com a população escrava (26,2%).

Dessa forma, os números sugerem que a força de trabalho nos municípios ora analisados era

formada, em sua maioria, por homens e mulheres livres.

Podem-se levantar algumas hipóteses para a proeminência da população livre em

Alagoinhas, a exemplo de essa ser uma região que atraiu pequenos agricultores, certamente

egressos do cativeiro. Além disso, o desenvolvimento econômico significativo que ocorreu na

segunda metade do Oitocentos, atraiu emigrantes advindos de outras localidades da província

da Bahia que estavam sendo acometidas pela seca, como salienta o Relatório do Conselho

Interino da Bahia, do ano de 1871: “[...] além de ser uma povoação que se desenvolve

rapidamente, cujos habitantes aumentam todos os dias, procurada ainda por milhares de

infelizes nas repetidas ocasiões da seca[..]”.12 No entanto, foi, possivelmente, o principal fator

de atração dos indivíduos que sofriam com a seca e de outros que buscavam melhores

condições de vida, possivelmente tenha sido a construção da ferrovia e a necessidade de mão

de obra.

Ao comparar os percentuais de escravos apresentados no censo de 1872 para

Alagoinhas (17,3%) e Inhambupe, (12,8%) com os municípios do Recôncavo açucareiro,

Santo Amaro (18,2%) e São Francisco do Conde (8,2%), fumageiro, Cachoeira (16,7%) e

produtor de mandioca, Maragogipe (11,4%), conclui-se que a população escrava de

Inhambupe acompanhava o decréscimo geral da província da Bahia. No entanto, este não foi

o caso de Alagoinhas que manteve o padrão anterior ao período da criação da vila em 1852,

isto é, uma população majoritariamente livre. Ao analisar o censo para diversos municípios do

Recôncavo, Barickman argumentou que pode ter havido uma sub contagem da população

escrava em São Francisco do Conde, área açucareira das mais importantes da província da

Bahia. 13 Comparados aos percentuais apresentados, referentes às populações escravas de

vários distritos do Recôncavo rural, fica evidente que os cativos desses lugares representavam

12 Cf. Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo - Fundação Biblioteca Nacional. Hemeroteca

Digital Brasileira, 1871. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader/. Acesso em: 21/06/2018. Ver: MATOS.

“Alforrias em Alagoinhas”, p. 20-21. 13 BARICKMAN. “Até a véspera”.

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grande parte da demografia dessas localidades, portanto, uma dependência maior da mão de

obra escrava.14

Conforme demonstramos, mesmo que economicamente periféricos, em relação ao

Recôncavo açucareiro, a mão de obra escrava ainda era utilizada em Alagoinhas e Inhambupe,

principalmente na lavoura, apesar de não dependerem exclusivamente dela. Segundo Aguiar,

a vila de Inhambupe “tem se conservado estacionária desde que Alagoinhas começou a

florescer”.15 Esse florescimento foi determinado por conta da instalação da estrada de ferro

pela empresa Bahia and San Francisco Railway Company. Referindo-se à ampliação da

ferrovia, com a construção da linha “Ramal do Timbó”, Walter Fraga Filho fez menção ao

decreto de 7 de abril de 1883, que determinava que a companhia responsável pela construção

da linha férrea ligando a cidade de Alagoinhas à povoação do Timbó não possuísse escravos

nem os empregassem em outros serviços. O autor não descarta a possibilidade de ter havido

determinações semelhantes a estas em obras anteriores.16

No entanto, Robério Souza argumenta que essas determinações nem sempre foram

cumpridas e sinaliza a utilização de escravos na construção dessa ferrovia. Segundo o

historiador, “[...] é bem provável que muitos negros livres, libertos ou escravos, juntamente

com os estrangeiros, trabalhassem na construção e no funcionamento de estradas de ferro na

Bahia”.17 Assim, apesar da proibição, a historiografia aponta a recorrência à mão de obra de

escravos fugitivos na construção das linhas da estrada de ferro. Conforme Fraga Filho,

As concessões feitas pelo governo provincial para as companhias que faziam as

obras de construção de ferrovias tinham como contrapartida a não contratação de

trabalhadores cativos. Ao empregarem-se naquelas obras como livres, os escravos

fugidos, provavelmente, avaliaram que dificilmente seriam localizados. [...] as obras

de construção de ferrovias tornaram-se locais suspeitos de refúgio de cativos

fugidos.18

É plausível que não apenas os livres e libertos de Alagoinhas e Inhambupe trabalhassem na

construção ou manutenção da ferrovia, mas também os escravos com consentimentos tácitos

dos senhores, ou como fugitivos, se ocupassem de tais atividades. Este pode ter sido o caso de

14 BARICKMAN, Bert. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-

1860.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 214-215. 15 AGUIAR, Durval Viera de. Descrições práticas da Província da Bahia com declaração de todas as distâncias

intermediárias das cidades, vilas e povoações. 2ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979, p. 88. 16 FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).

Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 61. 17 SOUZA, Robério Santos. Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892 -

1909). Salvador: Edufba/Fapesp, 2011, p. 60. 18 FRAGA FILHO. Encruzilhada da liberdade, p. 54-55.

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Conrado, escravo do vigário Antônio Martins da Silva Telles, pároco da freguesia de Jesus,

Maria e José, município de Alagoinhas.19

O vigário Teles matriculou Conrado em 10 de março de 1887, conforme determinação

da Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871.Cabe observar, que a matrícula era um documento

legal utilizado pelos senhores para provar a sua propriedade e imprescindível em qualquer

situação de conflito e negociação envolvendo escravos, e foi utilizada pelo vigário para

declarar a alforria de Conrado, pois, conforme Christianne Vasconcellos, como “[...]o escravo

estava fugido, decidiu colar ao documento uma fotografia dele. Não havendo campo

destinado à fotografia, esta foi fixada à esquerda do texto que lhe fazia referência”.20

Figura 2: Registro de matrícula de Conrado

Fonte: VASCONCELLOS, Christianne Silva de. “O circuito social da fotografia da gente negra, Salvador 1860-1916”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2006), p. 30.

A fuga de Conrado sinaliza as tensões que permeavam sua relação com Teles. Ele era

criado do vigário, uma relação próxima e, talvez difícil para ele suportar e, tal qual o crioulo

Basílio, estudado por Souza, Conrado pode ter alimentado expectativas de liberdade

19 PIMENTA, Altino Rodrigues. Almanak Administrativo, Comercial e Industrial da Província da Bahia, para o

ano de 1873. Bahia: Typografia de Oliveira Mendes, 1872, p. 30. 20 VASCONCELLOS, Christianne Silva de. “O circuito social da fotografia da gente negra, Salvador 1860-

1916”. Dissertação (Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2006), pp. 30-34.

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trabalhando na estrada de ferro, usando a ferrovia como esconderijo.21 Por outro lado, em uma

época em que a fotografia tornou-se, paulatinamente, instrumento de controle da população, o

vigário utilizou a foto de Conrado para dar visibilidade à sua fuga.22 Em suporte de carte-de-

visite, Conrado foi fotografado, segundo Vasconcellos, “por um dos mais empreendedores

fotógrafos da época, o alemão Albert Henschel”.23 Henschel possuía um ateliê em Recife e

Salvador, no final da década de 1860, mas Vasconcelos identificou a produção como posterior

a 1870, quando o fotógrafo abriu ateliês em São Paulo e Rio de Janeiro. Como criado,

Conrado acompanhava o vigário em suas viagens à capital da província e, em uma dessas

ocasiões, visitou o estúdio do fotógrafo. Esta foi, inclusive, a hipótese levantada por

Vasconcellos após a análise da produção da imagem. Vasconcellos também nos informa que

Conrado nasceu em Alagoinhas, no dia 28 de abril de 1860 e, foi levado a pia batismal oito

dias depois. Era filho de Jacob e Maria Joana, escravos de Joaquim Alves de Sá e, foi

batizado no oratório da propriedade do senhor pelo vigário Teles.24 Conrado foi vendido por

Sá, talvez a Teles, mas não foi possível confirmar essa informação. É provável que a sua

rebeldia tenha se originado pela troca de senhor e culminado na fuga. Ao se dar conta que o

escravo havia escapado dos seus domínios, o vigário pode ter calculado que a foto seria útil

para identificá-lo. Também não foi possível verificar se o vigário anunciou a fuga de Conrado

em algum jornal da capital ou do periódico dominical A verdade, que circulava em

Alagoinhas, o que certamente aconteceu. Assim, em 28 de setembro de 1887, o vigário

resolveu alforriar Conrado:

Desejando comemorar o aniversário jubilar do Santíssimo Padre Leão 13º com um

ato que lhe fosse agradável e sendo como tal lembrado pelo nosso bom Prelado o

Exmo. Senhor Arcebispo Dom Luiz Antônio dos Santos alguma carta de liberdade,

hei por bem libertar o meu criado de nome Conrado, único que me resta com o

vínculo de cativeiro, e que mandei matricular por se achar sem razão foragido. Do último de dezembro deste ano de 1887 em diante, pode o referido Conrado gozar de

sua liberdade como se de ventre livre nascesse, e designo esse dia por ser o faustoso

quinquagésimo aniversário da elevação do sacerdócio do Grande Pontífice Leão 13º

que ora governa a Igreja de Deus.25

21 SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção

da primeira ferrovia baiana (1858-1863), Salvador: Edufba/Fapesp, 2011, pp. 63-64. Sobre as visões de

liberdade, cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na

corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 22 Sobre a utilização da fotografia como instrumento de controle, cf. LIMA, Solange Ferraz; CARVALHO,

Vânia Carneiro de. Fotografias: usos sociais e historiográficos. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCCA, Tânia

Regina de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, pp. 31-32. 23 VASCONCELLOS. “O circuito social da fotografia”, p. 32. 24 VASCONCELLOS. “O circuito social da fotografia”, p. 33. 25 VASCONCELLOS. “O circuito social da fotografia”, pp. 31-32, grifos meus

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Conforme determinava o artigo 2º do Decreto nº 4.835, de 11 de dezembro de 1871, a

matricula dos escravos deveriam ser feitas no município em que eles residissem. Em março de

1887, quando Conrado foi matriculado, o vigário aparentemente ainda residia no município de

Alagoinhas. Naquela ocasião, o preto encontrava-se foragido há dois anos, conforme foi

registrado no documento. A matrícula de escravos consistia em um formulário impresso,

preenchido pelo senhor e registrado na coletoria do município, conforme se vê na Figura 4.

Segundo Teles, Conrado era de cor preta, com idade de 24 anos, solteiro, natural de

Alagoinhas, lavrador, filho de Maria Joana. Como não havia um campo específico no

documento para informar a fuga de Conrado, bem como a sua alforria, o vigário registrou-as

no campo observações, ocupando todo o espaço disponível do formulário, inclusive porque,

naquela ocasião, só possuía um escravo. Entre o registro da matrícula de Conrado e sua

alforria passaram-se seis meses. Ao outorgar a alforria, o padre determinou que o filho de

Maria Joana gozasse a sua liberdade a partir do último dia do mês de dezembro de 1887, após

três meses de sua outorga.

A excentricidade do vigário em registrar a alforria de Conrado na cópia da matrícula

que tinha sob seu poder, na prática, não o beneficiou. Sem dúvida, foi um instrumento

inusitado de alforria, comumente outorgada por meio de uma carta de alforria, alforria na pia

batismal, em testamento e inventário post mortem.26 A alforria de Conrado chama a atenção

pelo fato de o vigário Teles, apesar da fuga, àquela altura dos acontecimentos, não descartar a

oportunidade de registrar o domínio que acreditava possuir sobre o preto, valendo-se, para

isto, inclusive do uso de sua imagem, a fim de confirmar o seu discurso. Conforme assegurou

Vasconcellos, “para o escravo nada significou, pois já gozava da liberdade, graças à fuga bem

sucedida. Ademais, a carta de alforria nunca chegou as suas mãos, ficando enterrada no

arquivo eclesiástico”.27

A demografia da população escrava no Recenseamento de 1872

Além do tamanho e da condição jurídica, o recenseamento de 1872 também

possibilita a análise da população por gênero, cor e origem. Conforme se vê na Tabela

abaixo, em Alagoinhas, o número de homens livres era um pouco menor do que o de

26 Sobre as diversas formas de alforria, cf. EISENBERG, Peter. EISENBERG, Peter L. “A carta de alforria e

outras fontes para estudar a alforria no século XIX”. In: ______ Homens esquecidos: escravos e trabalhadores

livres no Brasil, século XVIII e XIX. Campinas. SP: Ed. Unicamp, 1989, pp. 245-254. 27 VASCONCELLOS. “O circuito social da fotografia”, p. 32.

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mulheres livres e, entre os escravos pendia levemente para os homens escravizados. Já em

Inhambupe, o percentual de homens livres e escravizados foi um pouco superior ao das

mulheres livres e escravizadas.

Tabela 5: População por gênero e condição jurídica, Alagoinhas e Inhambupe, 1872

Município

Homens Mulheres Subtotal Total

Livre Escrava Livre Escrava Livre Escrava

N % N % N % N % N % N % N

Alagoinhas 8.981 49,96 1.887 50,1 8.995 50,04 1.876 49,9 17.976 82,7 3.763 17,3 21.739

Inhambupe 10.034 55,20 1.487 55,8 8.141 44,80 1.178 44,2 18.175 87,2 2.665 12,8 20.840

Fonte: Cf. Tabela 4.

Como se observa na Tabela acima, a população escrava em Alagoinhas era um pouco

maior comparada à de Inhambupe, sendo a diferença maior entre as mulheres. A diferença no

percentual de mulheres entre os escravos para os dois municípios indica que em Inhambupe o

fenômeno da alforria vicejou mais em relação a Alagoinhas? A análise sobre a alforria

realizada no período – 1871 a 1888 – para os municípios estudados apresentam números

semelhantes. Em Alagoinhas, pesquisando as cartas de alforrias registradas no primeiro

Tabelionato de notas, Monalisa Matos encontrou 108 alforriados. Segundo Matos, os livros de

Alagoinhas não estão sequenciados e faltam “registros dos anos de 1871, 1875, 1878, 1886 e

1887”.28 Em Inhambupe encontramos 140 alforrias para o mesmo período. As lacunas nos

livros de Alagoinhas sugerem cautela, uma vez que o número de alforrias pode ter sido maior

do que o contabilizado por Matos. Talvez, o número maior de escravos em Alagoinhas esteja

relacionado ao desenvolvimento econômico ocasionado pela construção da ferrovia e pelo

crescimento do comércio que promoveu o aumento demográfico da localidade.

O Recenseamento também classificou a população por raça, como se vê nas Tabelas

6 e 7, elencando quatro categorias para classificar a população: brancos, pretos, pardos e

caboclos que não esgotavam a terminologia étnico-racial que vigorou no período da

escravidão, conforme discutido pela historiografia. 29 Ademais, a documentação sobre

28 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 12. 29 Para uma análise da demografia da escravidão na capitania e província da Bahia, cf. entre outros,

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988, pp.280-291; ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em

Salvador, 1811-1860. São Paulo: Corrupio, 1988; PARÉS, Luís Nicolau. A formação do candomblé: história e

ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, Editora da UNICAMP, 2006, pp. 63-76. ALMEIDA, Kátia Lorena

Novais. Alforrias em Rio de Contas, Bahia – Século XIX.Salvador: Edufba, 2012, pp. 103-115.

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Alagoinhas e Inhambupe menciona outros termos étnico-raciais em cartas de alforria,

inventários e outros documentos que não aparecem no censo de 1872, tais como: crioulo,

mulato e mestiço, os mais recorrentes. Segundo João José Reis, crioulo foi um vocábulo

empregado antes e ao longo do século XIX,

[...] como definidor do negro nascido no Brasil, para diferenciá-lo do africano, antes

frequentemente referido apenas como preto. Preto agora valia para descrever negro brasileiro ou africano, o que acredito ser mais um indicio de que a sociedade se

adaptava para conviver com apenas um tipo de negro: aquele nascido no Brasil. 30

Acreditamos que as reflexões sobre os termos crioulo e preto, feitas por Reis para Salvador –

cidade que mais recebeu africanos na província da Bahia ao longo de todo o período da

escravidão –, e apesar das diferenças de contextos da demografia da escravidão em relação a

Alagoinhas e Inhambupe, cuja população escrava, desde a primeira metade do século XIX,

era, sobretudo, crioula nos ajudam a compreender a complexidade do sistema de classificação

racial nos dois últimos municípios. Vale lembrar que a classificação racial era atribuída por

funcionários que produziam os documentos, tanto no domínio da Justiça – escrivães do juízo

municipal e de órfãos – quanto pelos funcionários que analisaram os dados das paróquias – os

padres continuaram anotando uma diversidade de temos étnico raciais ao batizarem e casarem

os escravos – e condensaram as informações no recenseamento da população escrava e livre

em 1872. Ademais, o dicionarista Antônio de Moraes Silva designou preto como o negro

forro ou cativo, não distinguindo a origem. 31 Não é demais lembrar que o vigário Teles

descreveu seu escravo Conrado na matrícula de 1887, como de cor preta, natural de

Alagoinhas. Assim, em Alagoinhas e Inhambupe nas últimas décadas da escravidão, preto

passou também a designar o negro nascido na região.

Tabela 6: Classificação por cor e gênero da população de Alagoinhas

Cor Livre Escrava Total

Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher

N % N % N % N % N % N %

Brancos 1.630 18,1 1.571 17,5 - - - - 1.630 15 1.571 14,4

Pardos 5.581 62,2 5.050 56,1 849 45 901 48 6.430 59,1 5.951 54,8

Pretos 1.664 18,5 2.259 25,1 1.038 55 975 52 2.702 24,9 3.234 29,8

Caboclos 106 1,2 115 1,3 106 1 115 1

Total 8.981 100 8.995 100 1.887

100 1.876

100 10.868 100 10.871 100

Fonte: Cf. Tabela 4.

30 O autor pesquisou sobre o trabalho dos escravos e libertos ganhadores de rua que atuavam em Salvador, no

final da década de 1880. REIS, “De olho no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição”. Afro-Ásia,

Salvador, n. 24, p. 233, grifos do autor. 31 SILVA, Antônio de Moraes e. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Typografia Lacerdinha, 1789, p. 500,

http://www.ieb.usp.br/online/dicionarios/moraes/, acesso em 15/06/2018.

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Em Alagoinhas, a maioria dos habitantes livres era formada por pardos, com 59,1%;

seguida pelos pretos, 21,8%; brancos, 17,8%; e, caboclos, 1,3%. Já em Inhambupe, a

população configurava-se da seguinte maneira: 67,7% de pardos; seguida pelos brancos,

22,4%; pretos; 8,1%; e, caboclos, 1,8%. Chama a atenção a diferença no percentual de pretos

nos dois municípios. Enquanto em Alagoinhas o percentual foi de 21,8%, em Inhambupe

apenas 8,1% dos homens livres foram classificados como pretos. Quando se compara a

população escrava dos dois municípios a diferença é menor, mas Alagoinhas supera

Inhambupe. Como explicar essa diferença? A questão é complexa, pois desconhecemos como

o recenseador identificava o recenseado. Por outro lado, a construção da ferrovia em

Alagoinhas atraiu uma população flutuante egressa do cativeiro e, conforme Fraga Filho e

Souza, escravos fugidos, a exemplo de Basílio, conforme abordaremos adiante.

Tabela 7: Classificação por cor e gênero da população de Inhambupe

Cor

Livre Escrava Total

Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher

N % N % N % N % N % N %

Brancos 2.220 22,1 1.852 22,7 - - - - 2.220 19,3 1.852 19,9

Pardos 6.789 67,7 5.514 67,7 454 30,6 404 34,3 7.243 62,9 5.918 63,5

Pretos 825 8,2 640 7,9 1.033 69,4 774 65,7 1.858 16,1 1.414 15,2

Caboclos 200 2 135 1,7 - - - - 200 1,7 135 1,4

Total 10.034 100 8.141 100 1.487 100 1.178 100 11.521 100 9.319 100

Fonte: Cf. Tabela 4.

Segundo Hebe Mattos, o termo pardo foi utilizado, inicialmente, para indicar a cor

mais clara de alguns escravos e depois para dissociar os mestiços – população livre de

ascendência africana – da experiência do cativeiro, que não se enquadrava na denominação de

preto ou crioulo, consolidando a categoria de “pardo livre”.32 Vale ressaltar que a população

de pardos livres em Alagoinhas era de 59,1% e de 67,7% em Inhambupe. Ainda segundo

Mattos, ser pardo livre indicava que o indivíduo havia adquirido certa mobilidade social.

Concordamos com a assertiva de Mattos, partindo da premissa de que os pardos livres eram

os filhos de libertos nascidos no Brasil, tornando-se uma categoria definidora de um lugar

social. Eram homens e mulheres que não passaram pelo estigma da escravidão atingindo um

nível de diferenciação dentre as outras categorias, pretendendo ser possuidora de escravos. A

autora, com base na obra de Stuart Schwartz, exemplifica com o Recôncavo Baiano, onde

cerca de 80% dos senhores eram pequenos proprietários que possuíam menos de 10 escravos,

32 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 17.

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como parte destes eram os descendentes de africanos.33 Podemos aludir que, assim como no

Recôncavo, em Alagoinhas e Inhambupe muitos dos pequenos proprietários de escravos

fossem pardos livres.

Conforme se vê nas Tabelas 6 e 7, a maioria da população dos dois municípios era

predominantemente mestiça, formada por escravos, libertos e livres descendentes de africanos

nascidos no Brasil. Como se sabe, o tráfico transatlântico foi a porta de entrada para a

formação da população escrava no Brasil. A historiografia argumenta que a contínua

importação de homens, mulheres e crianças das várias partes do continente africano, que aqui

foram escravizados, perdurou por mais de três séculos, formando a sociedade escravista que

vigorou até 1888. Convém lembrar que a lei 7 de novembro de 1831 proibiu o tráfico de

escravos mas, foi a Lei Eusébio Queiróz de 1850 que estabeleceu medidas para a repressão do

tráfico de africanos no Império. Contudo, de 1831 a 1850, decorridos quase duas décadas,

segundo Silva, “[...] o tráfico de escravos para o Império não só continuou a ser feito, como

sofreu incremento muito grande [...]”.34 Até 1851, quando o tráfico realmente deu sinais de

falência, já havia chegado centenas de milhares de escravos que entraram ilegalmente no país.

O Recôncavo baiano foi uma das regiões da província da Bahia com maior quantidade de

escravos, contudo, este número variava bastante, dependendo do tamanho da propriedade e do

tipo de lavoura praticada. Segundo Barickman, “senhores de engenho, lavradores de cana e de

fumo e roceiros, todos compravam escravos, mas em quantidades bem diferentes, e os

tamanhos de seus plantéis variavam muitíssimo”.35 Os engenhos e fazendas que cultivavam e

produziam a monocultura do açúcar possuíam mais escravos do que aquelas propriedades que

desenvolviam as lavouras de fumo e/ou mandioca.

Os municípios de Inhambupe e Alagoinhas, diferente do recôncavo açucareiro, não

possuíam grandes escravarias, caracterizando-se por pequenas e médias propriedades, e, de

igual modo, pequenas e médias posses em escravos. 36 Estudando a origem dos escravos

identificados em 14 inventários post mortem de Alagoinhas, entre 1835 e 1850, Amorim

recolheu dados de 173 cativos. Destes, 73,4% eram de nascidos no Brasil e 17,9% eram

africanos; 8,7% de não identificados. Estudando o mesmo município, entre 1827 e 1846,

Matos pesquisou 11.099 assentos de batismos, entre os quais 1.978 eram escravos recebendo

33 MATTOS. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p.18. 34 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, p. 124. 35 BARICKMAN. Um contraponto baiano, p. 237. 36 Cf. AMORIM. “O parentesco espiritual”; SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do

trabalho”; NASCIMENTO. “A família escrava na freguesia”; MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”.

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sacramentos e encontrou o seguinte perfil demográfico: 26,5% nascidos no Brasil, 10,5%

trazidos da África e 62,9% sem informação. Segundo ela, a partir de 1831 foram rareando as

informações sobre a origem dos escravos até desaparecer completamente dos registros de

batismos, o que não era de se estranhar, por conta da proibição do tráfico.

Ao analisar os registros de batismos de Inhambupe, entre 1824 e 1840, Laís Santos

encontrou um total de 1.267 escravizados, sendo 88% de nascidos no Brasil, 6,9% de

africanos e 5,1% sem informação sobre a origem. Segundo Amorim, em Alagoinhas, até a

década de 1830, os escravistas faziam a reposição de seus escravos também pela via do tráfico

transatlântico. Todavia, após a lei de 7 de novembro de 1831, aparentemente, adquirir

escravos nesse município ficou mais difícil para os proprietários da região.37 No conjunto, os

trabalhos sobre Alagoinhas e Inhambupe sugerem que a manutenção e ampliação da

escravidão nesses municípios se deram pela via da reprodução endógena.

A cessação do tráfico em 1850, com a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz, afetou

econômica e politicamente todo o Império brasileiro. Até mesmo regiões de economias

periféricas como Alagoinhas e Inhambupe não passaram ilesas a essa realidade. Não é nossa

pretensão aprofundar a discussão sobre o tema, no entanto, faz-se necessário ressaltar a forte

influência do fim do tráfico de escravos para as relações senhor/escravo. Segundo Ricardo

Silva, as exportações diminuíram significativamente na Bahia e ocasionaram a transferência

de milhares de cativos baianos para o sudeste.38 Barickman por sua vez, assegura que “o

comércio interprovincial de escravos também acelerou o declínio da população servil do

Recôncavo”. 39 Em Alagoinhas e Inhambupe, a população escrava era formada

majoritariamente por nascidos no Brasil. Conforme o censo de 1872, dentre os 105

estrangeiros moradores de Alagoinhas, 100 eram africanos, 2 italianos, 2 portugueses e 1

alemão. Entre os africanos, 66 foram recenseados como escravos e 34 como livres. Em

Inhambupe, dos 134 imigrantes, 129 eram africanos, 4 italianos e 1 inglês. Assim, a grande

maioria dos estrangeiros dos municípios era formada por africanos, sendo 107 escravos e 22

como livres. Como o censo de 1872 não utiliza o termo “africano livre”, não foi possível

identificar se entre os 100 africanos estrangeiros recenseados como homens livres, havia essa

categoria ou a de libertos. Segundo Enidelce Bertin,

37 AMORIM, “Parentesco Espiritual”, p. 22. 38 SILVA. “Os escravos vão a justiça”, p. 40. 39 BARICKMAN. “Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo

Baiano (1850-1881)”. Afro-Ásia, n. 21-22 (1998-1999), p. 193.

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No Brasil, a categoria dos africanos livres tem origem localizada no complexo

contexto de combate ao tráfico de escravos, mais precisamente a partir do Alvará de

26 de janeiro de 1818, que ratificava os tratados anteriores entre Portugal e

Inglaterra para a cessação do tráfico e definia a criação de comissões mistas que

apreendiam as embarcações e emancipariam os africanos embarcados.40

No entanto, nesse mesmo alvará, o governo português determinou que os africanos

confiscados fossem distribuídos para trabalhar como libertos no serviço público, podendo

também ser alugados a particulares. Ainda ficou estabelecido o prazo de 14 anos de prestação

de serviços pelos africanos, podendo ocorrer o decréscimo de dois anos ou mais para aqueles

que, conforme afirmou Afonso Florence Bandeira, “pela qualidade de seus serviços e

préstimos, demonstrassem merecer pleno direito da sua liberdade”.41

Bandeira aponta para o rígido controle no ambiente de trabalho a que eram

submetidos os libertos e os mecanismos que “funcionavam como um forte instrumento de

experimentação da política de sujeição pessoal e de formação de camadas de dependentes”.42

Para aqueles que em momento algum se consideraram escravos, a Lei de 7 de novembro de

1831 veio enfatizar a necessidade de continuar lutando contra as adversidades, acreditando na

efetiva liberdade a que teriam direito. Assim, a valorização dessa especial condição de

africano livre extrapolou “o cotidiano daqueles homens que faziam questão de lembrar que

não eram escravos, tampouco libertos, enfatizando a condição de ter sido ‘sempre livre’”.43

Veremos no último capítulo que nos municípios aqui estudados, alguns africanos também

reivindicaram na Justiça a sua condição de homem livre.

Embora não haja estudos sobre a posse de escravos nesses municípios na segunda

metade do século XIX, o baixo percentual de escravos apresentado no censo de 1872,

provavelmente concentrava-se em mãos de poucos proprietários. Ao analisar os conflitos pela

propriedade e reordenamento do trabalho em Alagoinhas e Inhambupe, entre 1860 e 1890,

Antônio Hertes Gomes de Santana mediu, qualitativamente, o nível dos proprietários dos dois

municípios a partir dos bens listados em 17 inventários post mortem, sendo 3 para Alagoinhas

e 14 para Inhambupe. O autor concluiu que o nível de riqueza do primeiro município era

maior se comparado ao segundo, cujos inventariantes não apresentavam bens em grande

40 BERTIN, Enidelce. “Africanos livres emancipados e a experiência da liberdade controlada”. III ENCONTRO

ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL – A experiência dos africanos e seus

descendentes no Brasil, 2007, Florianópolis/SC. Anais... Florianópolis, UFSC, 2007, p. 1 – 7 (Anais eletrônicos),

p. 1. 41 Nesse trabalho o autor discute as diferentes visões de liberdade dos africanos livres. FLORENCE, Afonso

Bandeira. “Entre o cativeiro e a emancipação: a liberdade dos africanos livres no Brasil (1818 – 1864)”.

(Dissertação de Mestrado em História, Universidade federal da Bahia, 2002), p. 7; Idem p. 36. 42 FLORENCE. “Entre o cativeiro e a emancipação”, pp. 36 – 37. 43 BERTIN. “Africanos livres emancipados”, p. 7.

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quantidade.44 Quantitativamente, os dados analisados são frágeis para ampliar tais conclusões,

uma vez que, se a posse de escravos ainda era sinônimo de riqueza os dois municípios não

diferiam significativamente, conforme se conclui pela análise do censo de 1872 (Tabela 4).

Como já foi dito, em 14 de maio de 1857os representantes da Câmara de Alagoinhas –

José Moreira de Carvalho Rego, Pedro Alves Barbosa, Francisco da Silva, Manoel Joaquim

Ribeiro de Vasconcelos e Francisco de Souza Dantas – em correspondência enviada à

presidência da província, queixaram-se da perda de braços nas lavouras do município, e

alegaram que os prejuízos atingiram todos os produtos cultivados no município, apontava

como causa a falta de escravos, por conta do fim do tráfico.45 Preocupados em como suprir a

ausência dos cativos nos serviços da lavoura, discutiram a possibilidade de contratar homens

livres para o trabalho nos canaviais. Contudo,

Não se tem podido alcançar empenho de gente livre para substituir a falta de braços

escravos, ainda mesmo mediante um valor e vantagens, não se consegue sujeitar-se

aqui o homem livre ao trabalho dos canaviais [...] porque a população livre mostra

grande horror a qualquer contrato de serviço.46

Ao analisar a região do Recôncavo baiano, Barickman argumentou que na agricultura

predominava o trabalho escravo, apesar de haver uma população livre no campo, por conta da

ausência de oferta de mão de obra confiável, ou seja, de pessoas que se dispusessem a

trabalhar no regime assalariado voluntário, pois preferiam assegurar uma sobrevivência

precária cultivando as grandes reservas de terras ociosas. A população livre e pobre tinha o

acesso à terra, o que lhes garantia a sua independência e a não sujeição aos senhores de

engenho e lavradores do Recôncavo.47 A preocupação dos vereadores em manter a produção

das lavouras em Alagoinhas explica-se pelo fato de representarem ali seus interesses.

Segundo Lima, os legisladores eram os donos de boa parte das propriedades no município .48

Em outubro de 1856, a Câmara de Inhambupe criou uma postura municipal impondo

uma multa de vinte mil réis sobre aqueles que vendiam escravos para fora do município e

solicitou ao presidente da província que interviesse, pois um ano depois de elaborada a

postura ainda não havia sido aprovada pela Assembleia Legislativa. Solicitavam autorização

para que a referida lei passasse a vigorar provisoriamente. A negociação de escravos estava

sendo colocada “[...]como primeiro ramo de interesse a bem dos traficantes”; ademais,

44 SANTANA. “Conflitos pela propriedade e reordenamento do trabalho”, p. 19. 45 APEB, Colonial e provincial, correspondência recebida da Câmara de Alagoinhas, maço 1241, 1853-1886. 46 APEB, Colonial e provincial, correspondência recebida da Câmara de Alagoinhas, maço 1241, 1853-1886. 47 BARICKMAN. Um contraponto baiano, p. 221. 48 LIMA. “Entre a ferrovia e o comércio”, p.33.

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compravam os escravos sem pagar a meia cisa e sem passar escritura, em lugar desta,

passavam uma procuração “[...]com a qual maliciosamente, figurando-se procuradores

conduzem esses escravos para onde maior vantagem oferece o comércio”.49

Os vereadores ainda ressaltaram que o comércio e a lavoura de fumo, açúcar,

mandioca, milho e feijão estavam sofrendo com a falta de braços, ou seja, havia interesse em

manter os benefícios que a mão de obra escrava proporcionava. Se por um lado, os

proprietários dependiam do escravizado para a manutenção da lavoura, por outro, muitas

vezes se rendiam ao lucrativo comércio interprovincial. Erivaldo Fagundes Neves constatou

que houve a transferência de escravizados de Caetité para as lavouras de café no Sudeste. Os

traficantes concediam procurações a vendedores a fim de que estes pudessem comercializá-

los. Assim como em Inhambupe, em Caetité e outros municípios, os comerciantes de escravos

burlavam o fisco imperial para não pagar os impostos referentes a comercialização de cativos.

O autor ressalta que essa foi uma prática generalizada em todo o Império pelos comerciantes

interprovinciais usada também, “no mascateamento intra-regional de homens escravizados”.50

No final da década de 1850, a agricultura passou por dificuldades motivadas por

secas e epidemias, porém, segundo correspondência emitida pela Câmara de Alagoinhas, em

cumprimento à circular da presidência da província, de 14 de maio de 1857, que solicitava

informações sobre a sua produção agrícola, a condição alegada da crise da lavoura atribuída à

cessação do tráfico de africanos, que elevou o preço dos escravos, causando a falta de braços.

Como consequência, as fazendas não estavam obtendo lucro e as propriedades apenas

produziam um terço de antes. Alguns dos engenhos de açúcar da freguesia de Jesus, Maria e

José encontrava-se em abandono e quase em ruína.51

Em 1860, ao responder à presidência da província que solicitava informações sobre a

indústria de mineração, a têxtil e a agrícola, a Câmara de Alagoinhas informou que a

agricultura encontrava-se em dificuldades. Os engenhos que trabalhavam em grande escala, e

que há tempos davam resultados de mais de trinta contos de réis de lucro, achavam-se

49 APEB. Colonial e provincial. Correspondência recebida da Câmara de Inhambupe, maço 1318, 1847-1859. 50 Nessa pesquisa, o autor indicou a transferência de mão de obra escrava de Caetité para o Oeste Paulista.

NEVES, Erivaldo Fagundes. “Sampuleiros traficantes: comércio de escravos no alto sertão da Bahia para o oeste

cafeeiro paulista”. Afro-Ásia, 24 (2000), pp. 97-128. 51 APEB. Colonial e provincial. Correspondência recebida da Câmara de Alagoinhas, maço 1241, 1853-1886.

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reduzidos a produzirem a décima parte daquele produto. Segundo o presidente da Câmara, o

principal motivo era a falta de braços.52 Segundo Aline Nascimento,

Em 1872 o número de escravos era maior na Freguesia de Igreja Nova (2.497), seguida por Alagoinhas (843) e Araçás (423). A partir desses dados, pode-se afirmar

que a maior parte da mão de obra escrava era empregada na produção de gêneros

agrícolas e estava concentrada na freguesia rural de Igreja Nova. Certamente, a

produção agrícola nesta freguesia superava a de Alagoinhas, fazendo com que esta

dependesse de seus produtos, uma vez que a região não os importava como afirma a

mesma ata.53

A autora aponta para a revitalização da economia nesta freguesia, destacando-a dentre as

outras que formavam o município de Alagoinhas. Concordamos com a posição de

Nascimento, pois é possível que entre 1860 e 1872, a referida freguesia tenha conseguido

reverter a situação de outrora.

Para Silva, as relações entre senhores e escravos foram diretamente afetadas pela Lei

de 1850, repercutindo, especialmente, sobre as conquistas de liberdade, pois os senhores já

não tinham mais interesse em negociar a alforria com os cativos, uma vez que, por conta da

elevação dos preços dos escravos, os proprietários lucravam mais com a comercialização

deles no tráfico interprovincial.54 Certamente as negociações para a alforria também foram

afetadas na segunda metade do Oitocentos em Alagoinhas e Inhambupe, como se depreende

das queixas dos vereadores sobre o declínio da lavoura, sugerindo que a proibição do tráfico

conferiu prejuízos à região. Porém, foge ao escopo deste trabalho a análise da alforria no

período anterior a 1870, mas vejamos as condições em que ocorreram nas últimas décadas da

escravidão.

Alforrias em Alagoinhas e Inhambupe

A redação de uma carta de liberdade é reveladora da prática de alforriar na sociedade

escravista que se formou no Brasil ao longo de todo o período em que vigorou a escravidão. A

manumissão era uma prerrogativa do senhor que tinha a posse do escravo e normalmente

iniciava declarando a sentença “sou senhor e possuidor de um escravo...”, ou ainda

apresentava-se como alguém imbuído de generosidade e benevolência, expressando amor,

caridade e afeto “a qual pelo amor que tenho e por ter criado...”, como declarou a senhora de

Luiza, mulatinha de 11 anos da Fazenda Coqueiro, em Alagoinhas.55 É possível que realmente

52 APEB. Colonial e provincial. Correspondência recebida da Câmara de Alagoinhas, maço 1241, 1853-1886. 53 NASCIMENTO. “A família escrava em Santo Antônio das Alagoinhas”, p. 34. 54 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, p. 40. 55 Carta de alforria de Luiza. 1º Tabelionato de Notas em Alagoinhas, Livro de Notas do tabelionato, s/n, 1877,

fl. 68. Agradeço a Edson Silva pela gentileza em compartilhar os livros de notas 15 e 17 do município de

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existissem esses sentimentos, no entanto, aqui ressaltamos o não escrito nas cartas, ou seja, o

protagonismo do escravizado que lutava, negociava e agia ativamente na busca de sua

liberdade.

A alforria era um direito costumeiro, legalizado por força da Lei 2.040, de 28 de

setembro de 1871, que dentre outras medidas, reconheceu o pecúlio. Nesta seção, reflete-se

sobre a alforria em Alagoinhas e Inhambupe, destacando as experiências dos cativos no

processo, não concebendo essa prática apenas como uma dádiva senhorial. Para isto,

discutiremos os tipos de alforria a partir de 128 cartas que libertaram 140 escravos no

município de Inhambupe, bem como 100 cartas de liberdade que alforriaram 108 escravizados

no município de Alagoinhas.56 O número de cartas de alforrias encontradas em ambos os

municípios provavelmente estão aquém dos alforriados, pois há varias lacunas nos livros do

Tabelionato de notas de Alagoinhas. Por outro lado, não se pode perder de vista que a alforria

era seletiva e poucos eram os escravos que a alcançavam.

Atualmente, há vários estudos sobre a prática de alforria na província da Bahia, mas

no âmbito desta seção comparam-se os dois municípios com aqueles mais próximos, a fim de

dimensionar os termos aqui estudados. Flaviane Nascimento estudou as alforrias em Feira de

Santana entre 1850 a 1888, e encontrou 435 cartas que libertaram 452 escravos.57 Também na

região agreste, em Riachão de Jacuípe, Eliete Mota Ferreira analisou 93 alforrias, sendo 52

localizadas em livros de notas, 34 em inventários e 7 em registros de batismos.58 A diferença

entre as duas localidades é significativa e se explica pelo fato de Nascimento analisar Feira de

Santana e seu termo, isto é, aproximadamente 18 distritos, enquanto Ferreira analisou um dos

distritos que formavam aquele termo. Por outro lado, Feira de Santana difere dos municípios

de Alagoinhas e Inhambupe pelo fato de o primeiro concentrar uma população muito mais

expressiva, inclusive a população escrava.

Inhambupe. O autor computou 160 alforriados no período estudado (1870 – 1888), número diferente do

encontrado por mim (140). A diferença resulta que ele contabilizou 18 anos, enquanto pesquisei 17, isto é, de

1871 - 1888. SILVA, Edson Pereira da. “O preço da liberdade: experiências de escravos e libertos na vila de

Inhambupe – Bahia (1870 – 1888)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade do Estado da Bahia,

2017). 56 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, 2º capítulo. 57 NASCIMENTO. “Viver por si”, p. 38. 58 Em sua dissertação a autora analisou as experiências de liberdade em Riachão de Jacuípe. FERREIRA, Eliete

Mota. “Nas veredas da Liberdade: experiências de homens e mulheres escravizados no sertão de Riachão do

Jacuípe – Ba, (1850-1888)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade do Estado da Bahia, 2017), p.

78.

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A escrita da carta de alforria revela as diferentes possibilidades que se apresentavam

para os escravos que conquistavam a liberdade. Marcolina, africana, morava em Inhambupe

quando negociou a sua alforria no ano de 1873 por 400$000 réis. Provavelmente, o valor pago

resultou de economias acumuladas ao longo de vários anos de trabalho, possivelmente na

lavoura, a exemplo da maioria dos escravos daquele município.59 Já a parda Gertrudes foi

alforriada em 1878, na vila de Alagoinhas, aparentemente sem ônus algum, “a qual poderá de

ora em diante para sempre gozar de plena liberdade, como se de ventre livre nascesse”.60 Ou

ainda, o escravo Calisto, crioulo, 58 anos, que residia e trabalhava na fazenda dos Patos,

Inhambupe, alforriado com a condição de servir e acompanhar ao senhor até a sua morte.61

A carta de alforria era um instrumento jurídico utilizado pelo senhor que transferia ao

escravizado a posse e a titularidade da propriedade que tinha sobre ele.62Para Maria Inês C. de

Oliveira, “libertar-se não significava adquirir novo estatuto legal. Mais do que isto,

significava sobreviver às próprias custas e poder se aproveitar dos espaços permitidos à sua

ascensão na sociedade livre. [...] A porta de ingresso a este novo mundo era a Carta de

Alforria”.63 A alforria poderia ser onerosa ou gratuita e agregada ou não de condições, e para

ser reconhecida, deveria ser registrada em cartório, no livro de notas do tabelião. Apesar de

não haver obrigatoriedade, o registro era importante para comprovar sua condição jurídica.

Assim, compreende-se a necessidade de os libertos a registrarem a carta em notas, a despeito

do custo que implicava.64

A historiografia sobre o tema tem demonstrado que a alforria era concedida por meio

de diferentes documentos: livro de batismo, testamento, inventários post mortem, cartas de

alforria registradas nos livros de notas.65 Ademais, outros documentos eram utilizados como

suporte para a alforria, a exemplo da matrícula de Conrado. A alforria era outorgada em vida

ou após a morte do senhor, a exemplo dos “fragmentos da história de Águida”, crioula,

59 Carta de alforria de Marcolina, africana, vila de Inhambupe, 20 de dezembro de 1873. APEB. Seção Colonial e

Provincial. Livro de notas nº 16 de Inhambupe, 1873, fl. 6. 60 Carta de alforria de Gertrudes, vila de Alagoinhas, 23 de abril de 1878. 1º Tabelionato de Notas em Alagoinhas, Livro de Notas do tabelionato, s/n, 1878, fl. 100. 61 Carta de alforria de Calisto, vila de Inhambupe, 13 de março de 1881. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas nº 19 de Inhambupe, 1881, fl. 16v e 17.

62 Definição de alforria extraída de ALMEIDA, Alforrias em Rio de Contas, p. 60. 63 OLIVEIRA, Maria Inês Cortês. O liberto: o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988, p. 21. 64 Sobre o registro da alforria em cartório, cf. ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Escravos e libertos nas minas

do Rio de Contas: Bahia, século XVIII. Salvador: Edufba, 2018, p. 18. 65 A historiografia sobre a alforria cresceu significativamente nas últimas décadas, inclusive para a Bahia. Cf.

entre outros, MATTOSO, Kátia M. de Queirós. “A propósito de Cartas de Alforria, Bahia 1779-1850”, Anais de

História (1972), nº4, p. 23-52; SCHWARTZ, Stuart. “Alforrias na Bahia”. In: ____. Escravos, roceiros e

rebeldes. Bauru: Edusc, 2001, pp. 171-218; ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas.

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apontando que a morte do senhor poderia trazer alguns benefícios. Águida foi alforriada em

testamento por José Barbosa da Silva Barros, com a condição de servir a d. Maria Amélia de

Barros Maia, sua filha, durante cinco anos e só após o cumprimento do prazo estabelecido

poderia gozar de liberdade plena. “Assim, a alforria de Águida foi um ato de última vontade

de Barros, que impôs uma condição para que ela se cumprisse”.66

A carta de alforria é uma fonte que possibilita conhecer o perfil do liberto de

Alagoinhas e Inhambupe, no entanto, diz pouco sobre as estratégias utilizadas pelos escravos

para conseguir a liberdade. Segundo Matos, que analisou as alforrias em Alagoinhas, “é

importante levarmos em consideração que a carta de alforria também se constitui como um

local de memória onde, por vezes, o senhor deixava registrado aspectos do cotidiano e sua

interpretação sobre aquele ato”.67 Assim, ao conceder a carta de alforria, o discurso senhorial

reforçava sua autoridade deixando claro a quem pertencia a prerrogativa daquele ato e o lugar

que cabia ao liberto, isto é, a dependência e subordinação.68 No entanto, a alforria não pode

ser vista apenas como uma dádiva senhorial, mas como uma conquista dos indivíduos

escravizados que desenvolviam táticas que lhes proporcionassem atingir os objetivos de

liberdade. “Negociar melhores condições de sobrevivência e até mesmo a liberdade sob as

circunstâncias do cativeiro exigiu dos cativos obediência, humildade, dependência... bem

como astúcia, sagacidade e imaginação”.69

O documento de alforria era um escrito particular que seguia um protocolo desde ao

menos o final do século XVII.70 Nele o senhor se identificava e declarava a posse do escravo

livre e desembargada de qualquer ônus, seguida do nome do escravo que estava sendo

alforriado, acompanhado da nação/cor/qualidade, às vezes, a filiação, o motivo e/ou a

justificativa da alforria e, se fosse onerosa, o valor da mesma, seguida da declaração do seu

novo estatuto jurídico, a data da outorga, a assinatura das testemunhas e do tabelião e a data

do registro em cartório. Ao longo da segunda metade do século XIX, os textos das cartas

foram sendo simplificados, conforme pontuou Kátia Mattoso.71 Peter Eisenberg afirma que

depois de 1871, por conta da aprovação da Lei 2.040, passou-se a incluir dados da matrícula

instituída por esta lei, tais como o lugar e o “número do escravo no município e na ordem de

66 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 27 – 28. 67 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 28. 68 Cf. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 23-50. 69 NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. “Viver por si”, p. 57. 70 SCHWARTZ. “Alforrias na Bahia”. 71 Cf. MATTOSO, “A propósito de Cartas”, p. 30-31.

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relação fornecida por seu senhor”.72 Informações adicionais, como o estado civil do senhor ou

do escravo eram mais raras, mas o local de moradia era frequentemente informado, o que

possibilita analisar a frequência da alforria nas áreas rurais ou urbanas da localidade estudada.

Analisando as cartas de alforria de Alagoinhas, Monalisa Matos percebeu que na

maioria dos casos as informações eram restritas, assim como as cartas de liberdade registradas

em Inhambupe, que muitas vezes apresentavam somente o nome do escravo e do proprietário,

o tipo de alforria e as datas que foram outorgadas e registradas. Ao analisarmos os tipos de

alforria por década (Tabela 8), fica perceptível que na década de 1870, o tabelião de

Inhambupe foi procurado com maior intensidade para registrar documentos de liberdade. A

historiografia vem demonstrando que, nas localidades do interior da província da Bahia, o

aumento das alforrias nesse período deveu-se ao fim do tráfico transatlântico, à aprovação da

Lei 2.040, de 1871, à mudança do eixo econômico do Nordeste para o Sudeste e ao crescente

movimento abolicionista.73 Cremos que a Lei de 1871 tenha influenciado para esse resultado

em Inhambupe, na medida em que legalizou o pecúlio, possibilitando maior acessibilidade da

liberdade para os cativos, seja por conta das negociações com os senhores na compra de suas

alforrias, ou mesmo por meio de ações na justiça quando falhavam os acordos. No entanto,

ainda que o pecúlio fosse reconhecido enquanto um direito pela lei, a alforria paga foi

diminuta na década de 1870 em Alagoinhas, “com o registro de apenas uma carta no ano de

1874, a de Desíderia, crioula, de 22 anos, escrava de Antônio Januario de Castro e sua mulher

Francisca Helisa de Jesus. Desíderia pagou por sua alforria o valor de 400$000réis”.74

Tabela 8: Registro e tipo de alforria em Inhambupe por década

Década

Tipo de alforria

Condicional e Paga

Condicional e Não Paga

Incondicional e Paga

Gratuita Total

N % N % N % N % N %

1871-1880 1 50 32 88,9 27 57,4 39 70,9 99 70,7

1881-1888 1 50 4 11,1 20 42,6 16 29,1 41 29,3

Total 2 100 36 100 47 100 55 100 140 100 Fonte: APEB. Seção Colonial e Provincial. Livros de notas de Inhambupe 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 (1871 –

1888).

72 EISENBERG, Peter L. “A carta de alforria e outras fontes para estudar a alforria no século XIX”. In: ______

Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil, século XVIII e XIX. Campinas. SP: Ed. Unicamp,

1989, p. 247. 73 Ver: SILVA. “Os escravos vão à justiça”; PIRES, Maria de Fátima Novaes. “Cartas de Alforria: ‘para não ter

o desgosto de ficar em cativeiro’”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v 26, nº 52, p. 141-174, 2006. 74 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 30.

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Na década de 1880 ocorreu o movimento inverso. Houve um decréscimo no

percentual em Inhambupe para todos os tipos de alforrias, enquanto em Alagoinhas

intensificou-se a concessão das alforrias pagas como se vê na Tabela 9. Para Matos em

Alagoinhas isso se explica pelo crescimento do movimento abolicionista e a aplicação do

Fundo de Emancipação, instituído pela Lei 2.040, de 1871.75 Concordamos com a autora,

considerando que, em Alagoinhas, houve 98 alforrias com o auxílio do Fundo de

Emancipação. Em Inhambupe dos 2.057 cativos classificados pelo Fundo, apenas 41 foram

alforriados com esse auxílio.76 Considerando-se os baixos números de alforriados por meio de

cartas de alforria nas duas últimas décadas em ambos os municípios, o Fundo representou

uma oportunidade para os escravos que almejavam alcançar a liberdade.

Tabela 9: Registro e tipo de alforria em Alagoinhas por década

Década

Tipo de alforria

Condicional

e Paga

Condicional e

Não Paga

Incondicional

e Paga Gratuita

Sem

Informação Total

N % N % N % N % N % N %

1872-1880

20 58,8 1 2,9 18 47,4 1 100

40 37

1881-1888 1 100 14 41,2 33 97,1 20 52,6 68 63

Total 1 100 34 100 34 100 38 100 1 100 108 100

Fonte: MATOS, Monalisa Pereira. Alforrias em Alagoinhas (1871-1888). (Trabalho de Conclusão de Curso em

História, Universidade do Estado da Bahia, 2016), p. 31.

Desde a década de 1970 que os estudos sobre a alforria apontam que as mulheres se

destacaram em relação aos homens e Alagoinhas e Inhambupe (Tabelas 10 e 11) confirmam

este perfil.77 Do total de alforriados em Alagoinhas, 58,3% eram mulheres e 41,7% homens e,

do contingente de libertos de Inhambupe, 54% eram do sexo feminino e 46% do sexo

masculino. Observa-se que em Alagoinhas, a vantagem das mulheres escravizadas foi maior

quando comparada ao desempenho das que moravam em Inhambupe.

Ao analisar as alforrias em Rio de Contas ao longo do século XIX, Kátia Almeida

constatou que as mulheres levaram vantagem sobre os homens em todos os períodos

75 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 30 – 31. 76 REIS. “A família negra no tempo da escravidão”, p. 246. 77 MATTOSO, “A propósito de Cartas”; OLIVEIRA. O liberto; EISENBERG. “A carta de alforria e outras

fontes”; SCHWARTZ. “Alforrias na Bahia”; ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas.

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estudados.78 Segundo Flaviane Nascimento, em Feira de Santana, 64,6% das alforrias foram

destinadas às mulheres, entre 1850 e 1888.79Estudando uma das freguesias que formava o

termo de Feira de Santana, Conceição do Jacuípe, Eliete Ferreira detectou que no período de

1850 a 1871, os homens superaram as mulheres, e entre 1871 e 1888, as mulheres lideraram.80

Almeida justifica que a supremacia feminina não se explica apenas por fatores econômicos,

[...] a mulher, em especial a brasileira, contava com maiores possibilidades de

estabelecer relacionamentos com suas senhoras e senhores, que facilitaram a

obtenção da alforria. Esses laços poderiam decorrer tanto das ocupações por elas

exercidas como domésticas, amas de leite e mucamas, quanto de relações sexuais

mantidas com os senhores. As alforrias tendiam a beneficiar mais as cativas que

conviviam diariamente com a família senhorial.81

Para Matos, em Alagoinhas a vantagem das mulheres em relação aos homens devia-se à

proximidade entre as escravas e os senhores que partilhavam os mesmos espaços de trabalhos

e moradia, geralmente pequenos proprietários que possuíam poucos escravos.82 Concordamos

com a autora e estendemos esse argumento para Inhambupe. Além disso, como afirmou

Lizandra Ferraz, “as alforrias eram também resultado das próprias experiências individuais

estabelecidas entre senhores e escravos, bem como dependiam de outras conjunturas”.83

Cf. Tabela 8

Em Inhambupe, as mulheres lideraram na alforria gratuita, enquanto os homens se

destacaram nas incondicionais e pagas, diferentemente de Alagoinhas, onde as mulheres

78 ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas, p.126. 79 NASCIMENTO. “Viver por si”, p. 60. 80 Segundo a autora, de 1850 a 1871, do total de 32 cartas, 14 eram de homens alforriados e 10 referia-se às

mulheres e 8 eram crianças. Já de 1871 a 1888, do total de 58 cartas, as mulheres lideraram com 35 alforrias,

ficando os homens atrás com 21, seguidos pelas crianças com 2. FERREIRA. “Nas veredas da liberdade”, p. 95 81 ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas, pp. 130 – 134. 82 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 32. 83 FERRAZ, Lizandra Meyer. “Entradas para a liberdade: forma e frequência da alforria em Campinas no século

XIX”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2010), p. 130.

Tabela 10: Tipo de alforria por sexo do alforriado em Inhambupe,

1871 - 1888

Tipos de Alforria

Sexo do Escravo

Homens Mulheres Total

N % N % N %

Condicional e paga 2 3,1

1 1,4

Condicional e não paga 18 28,1 18 24,0 36 25,9

Incondicional e paga 23 35,9 24 32,0 47 33,8

Gratuita 22 34,4 33 44,0 55 39,6

Total 65 100 75 100 140 100

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superaram os homens nas alforrias pagas e gratuitas, em detrimento das condicionais, em sua

maioria atribuída aos homens. 84 A vantagem dos homens nas alforrias condicionais em

Inhambupe assemelha-se com os resultados encontrados por Almeida para Rio de Contas e

por Ferreira para Riachão do Jacuípe. 85 É provável que esse tipo de alforria tenha sido

concedida mais aos homens porque, em sua maioria, atuavam nas lavouras e nos serviços

mais pesados; talvez os senhores quisessem mantê-los sob os seus domínios o máximo de

tempo possível, garantindo mão de obra dada a falta de braços no município segundo os

vereadores da Câmara de Alagoinhas.

O tipo de alforria que predominou em Inhambupe foi a onerosa, com 60,4% do total.

Enquadramos como onerosas também, as cartas condicionais, seguindo o entendimento de

que nesse tipo de carta, mesmo que não fosse efetuado pagamento em dinheiro ou mercadoria,

as condições impostas ao escravizado configuravam-se em uma espécie de pagamento.86

Nesse sentido, as alforrias onerosas foram assim divididas: 33,8%, em valor monetário;

25,9%, condicionais não pagas e uma condicional e paga. Este foi o caso de João, mulato, 27

anos, que além de pagar 400$000 réis, teria que prestar serviços à d. Joaquina Francisca

Domingas quatro dias da semana até que efetuasse o último pagamento do valor acordado.87

O documento não informa o tempo que João levou para quitar a dívida. O escravo não pagava

por sua liberdade apenas com o dinheiro, valia-se também de produtos agrícolas ou animais,

como aconteceu com a escrava Joviniana, cabra, solteira, que pertencia a Manoel Ferreira de

Carvalho, “[...] a qual oferecendo-me um carro de fumo e um ano de serviço a começar na

data de hoje [...].88 Outros 55 cativos receberam suas alforrias de forma gratuita, perfazendo

39,6% dos alforriados.

Em Alagoinhas, as cartas onerosas também foram as que mais vicejaram, com 63,9%

do total. Sendo assim, as alforrias onerosas foram divididas em: 31,5%, pagas em moeda

corrente; 31,5%, condicionais não pagas e uma condicional e paga. Outros 38 cativos foram

alforriados de forma gratuita, perfazendo um total de 35,2%.89 Os resultados obtidos para os

dois municípios revelam que a concessão de alforrias não resultava da benevolência e

generosidade do senhor, antes, os escravos tiveram que trabalhar arduamente e negociar, a fim 84 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 32. 85 ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas, p. 134; FERREIRA. “Nas veredas da Liberdade”, p. 95. 86 MATTOSO. “A propósito de Cartas”, p. 46. 87 Carta de Liberdade de João, vila de Inhambupe, 16 de dezembro de 1876. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas nº 16 de Inhambupe, 1876, fl. 100. 88 Carta de liberdade de Joviniana, vila de Inhambupe, 17 de abril de 1888. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas nº 19 de Inhambupe, 1888, fls. 144v e 145. Ver: SILVA. “O preço da liberdade”, p. 115. 89 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 35.

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de conseguir o valor necessário para pagar por suas manumissões. Nesse sentido, a alforria

seria o produto dos esforços dos cativos para extrair a liberdade dos seus senhores, utilizando-

se de todas as possibilidades para esse fim, a exemplo do Fundo de Emancipação. Essa foi

uma tendência percebida por Almeida para o município de Rio de Contas. Lá, também

prevaleceram as alforrias onerosas, que totalizaram 73,7%, divididas em pagas, 42,4%, e não

pagas condicionais 31,3%.90

Tabela 11: Tipo das alforrias por sexo do alforriado em Alagoinhas,

1872-1888

Tipos de alforria

Sexo do escravo

Mulheres Homens Total

N % N % N %

Condicional e paga 1 1,6 - - 1 0,9

Condicional e não paga 16 25,4 18 40 34 31,5

Incondicional e paga 22 34,9 12 26,7 34 31,5

Gratuita 23 36,5 15 33,3 38 35,2

Não informada 1 1,6 1 0,9

Total 63 100 45 100 108 100 Fonte: MATOS, Monalisa Pereira. “Alforrias em Alagoinhas (1871-1888)”. (Trabalho de Conclusão de

Curso em História, UNEB, 2015), p. 32.

Sendo a qualidade/cor e a origem variáveis determinantes do lugar social de um

indivíduo na sociedade escravista no Brasil, a política de alforria também é reveladora dessa

seletividade. Em Inhambupe, 70,9% dos alforriados eram nascidos no Brasil, 3,9% na África

e para 25,2% não havia informação. Em Alagoinhas, conforme Matos, 60,2% dos alforriados

eram nascidos no Brasil, 6,5% na África e o percentual dos não informados ficou em 33,3%.

Assim, nos dois municípios a esmagadora maioria dos libertos era de nascidos no Brasil.

Neste sentido, houve consonância entre a origem do escravizado e do alforriado, pois o censo

de 1872 mostra um percentual elevado de escravos nascidos no Brasil em Inhambupe e

Alagoinhas. A comunidade de escravizados nascidos na África era pequena – 129 africanos,

sendo 117 escravos e 22 livres em Inhambupe e, em Alagoinhas havia 100 africanos, dos

quais 66 eram escravos e 22 livres – a análise das alforrias confirma o baixo percentual de

africanos libertos nesses municípios.91

Em Alagoinhas, Matos identificou 7 africanos alforriados nas cartas de liberdade,

sendo que em uma delas foi mencionada a nação: “Antônio, africano de nação nagô, 50 anos

90 ALMEIDA. Alforrias em Rio de Contas, p. 75. 91 Recenseamento do Brazil em 1872, Bahia, p. 316-321. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/> Acesso

em 24/03/2016.

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de idade, escravo de Rita Maria de Vasconcelos, alforriado gratuitamente no ano de 1883”.92

Observa-se que pela idade, Antônio foi escravizado no período de ilegalidade do tráfico.

Alguns escravizados em sua condição procuraram a mediação da Justiça com o respaldo da

Lei 2.040 para adquirir alforria, como se verá no próximo capítulo. Antônio foi um dos cinco

africanos alforriados em Alagoinhas. Como ele, outros dois foram alforriados sem ônus e dois

indenizaram os seus senhores. Das duas mulheres africanas alforriadas, uma o foi

gratuitamente e a outra pagou 150$000 réis por sua alforria.93

Em Inhambupe, dentre os 5 africanos alforriados não houve menção à nação. A

ausência ou a quantidade diminuta de registros da nação dos africanos sugere que a lei de

1831, que proibiu o tráfico transatlântico, pode ter influenciado no cuidado dos senhores ao

registrarem em documentos cartoriais e eclesiásticos a origem dos africanos que chegaram ao

Brasil. 94 Dos cinco africanos alforriados em Inhambupe, três eram homens – Augusto, José e

Gerônimo. O primeiro e o segundo foram libertos gratuitamente por Simão Gomes Ferreira

Velloso, em 1871, e Geraldo de Souza, em 1877, respectivamente, e o terceiro pagou

1:600$000 réis por sua alforria, no ano de1878, a Domingos Dias Velloso que o recebera por

herança dos seus pais, o coronel Pedro Gomes Dias Ferreira Velloso e d. Joaquina Maria

Gomes Velloso. 95 Os Velloso constituíam uma das famílias abastadas de Inhambupe,

proprietários de terras, engenhos e muitos escravos. Entre os membros dessa família,

destacava-se o advogado Antônio Ferreira Velloso, juiz municipal da comarca de Alagoinhas,

conhecedor das leis e, aparentemente, militante da liberdade naquele município. Quanto às

duas mulheres alforriadas, uma foi mediante pagamento e a outra gratuitamente. Marcolina

desembolsou 400$000 réis para garantir a sua liberdade, em 1873, enquanto Antuza foi

alforriada gratuitamente “em atenção ao pedido do meu filho Marcos Muniz Leão Velloso”,

conforme registrou o tenente coronel Marcos Leão Velloso.96

Chama a atenção o valor da alforria de Gerônimo. Mesmo os engenhos e outras

propriedades possuindo uma variedade de produção econômica como criação de gado,

92 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 34. 93 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 33. 94 AMORIM. “O parentesco espiritual”, 21. 95 Chamou a atenção o valor pago por Guarino em sua alforria. No terceiro capítulo, discutimos um pouco sobre

esse tema quando analisamos a ação de liberdade de Miguel. As cartas não apresentam as idades dos libertos.

Cartas de liberdade de Augusto, José e Gerônimo, africanos, vila de Inhambupe, 26 de agosto 1871, 18 de

fevereiro de 1877 e 7 de dezembro de 1878. APEB. Colonial e Provincial. Livros de notas de Inhambupe, 15,

1871, fl. 125v; 16, 1877, fl. 102v e 103; e 18, 1878, fl. 12v e 13; respectivamente. 96 As cartas não apresentam as idades dos libertos. Cartas de alforria de Marcolina e Antuza, africanas, vila de

Inhambupe. APEB. Colonial e Provincial. Livros de notas de Inhambupe, 16, 1873, fl. 6v e 7; e 19, 1880, fl. 3;

respectivamente.

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pequenos animais, cana-de-açúcar, etc., o escravo era um dos bens mais valiosos. Edson

Silva, ao analisar as escrituras de compras e vendas de cativos em Inhambupe, concluiu que o

preço médio de um escravo adulto, no período em que Gerônimo negociou a sua alforria

girava em torno de 900$000 réis. É possível que o elevado preço se justificasse por conta da

intensificação do comércio interprovincial que supervalorizou o preço do escravo. O autor

ainda salienta que o alto preço atribuído ao escravizado dificultava seu acesso a alforria,

exigindo mais esforço do cativo para formar o pecúlio.97

Entre os nascidos no Brasil, alguns pagaram valores altos, inclusive as mulheres. Em

1879, segundo Kátia Mattoso, Eugênia, crioula, excelente cozinheira, lavadeira e passadeira,

foi alforriada em Alagoinhas mediante o valor de 1:000$000réis, a despeito de ter sido

avaliada em 1:200$000 réis. 98 Em 1877, Catharina, crioula, e seus filhos Octávio, Primitivo e

Fortunato, também crioulos, da fazenda Camamu de Fora, vila de Inhambupe, foram

alforriados condicionalmente por Joaquina Maria da Silva. 99 A família de Catharina é

ilustrativa de que os crioulos sobressaíram-se dentre os alforriados. Em Inhambupe, do total

de alforriados, 37,1% eram crioulos; seguidos por 20,7% de cabras; 7,9% de mulatos; 7,1%

de pretos e, 2,9% de pardos. Em Alagoinhas, os crioulos também se sobressaíram em relação

aos demais escravizados, totalizando 52,3% dos libertos, seguidos por 21,5% de pardos;

12,3% de cabras, e, 10,8% de mulatos.100 Cabe observar que, a terminologia étnico-racial

registrada nas cartas de alforria, manteve vocábulos utilizados na primeira metade do século

XIX, diferindo do recenseamento de 1872.101

Pelo exposto, tanto em Alagoinhas quanto em Inhambupe a alforria foi seletiva, mas

como não dispomos de dados relativos à composição étnico-racial dos escravizados em ambos

os municípios, não foi possível concluir quais os grupos com maior probabilidade de ser

alforriado. Não houve grandes disparidades entre os tipos de alforria, mas, cabe observar, que

o destaque ficou por conta das cartas outorgadas gratuitamente. Que experiência de liberdade

foi possível desfrutar com a alforria gratuita ou condicional é um aspecto que será explorado

no próximo capítulo, a partir das ações de liberdade.

97 SILVA. “O preço da liberdade”, p. 66 – 67. 98 MATTOSO, Kátia M. Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 191. 99 Carta de alforria dos escravos Catharina, Octávio, Primitivo e Fortunato, vila de Inhambupe, 17 de fevereiro

de 1877. APEB. Colonial Provincial. Livro de notas 17 de Inhambupe, 1877, fl. 116v. 100 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 34. 101 ALMEIDA. “Alforrias em Rio de Contas”, pp. 115 – 124.

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Libertos com o auxílio do Fundo de Emancipação

A Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como Lei do Ventre Livre,

em seu artigo 3º, estabeleceu a criação do Fundo de Emancipação, que deveria reunir recursos

advindos de taxas e impostos cobrados sobre os cativos, loterias, multas e contribuições. Para

a distribuição desses recursos tomariam como base os dados levantados pela matrícula dos

escravos, utilizados pela junta classificadora, que deveria obedecer ao perfil determinado pelo

Decreto nº 5.135, de 13 de novembro de 1872.Entre as regras gerais, a lei evidenciava os

critérios de classificação dos cativos a serem contemplados pelo Fundo, que a família escrava,

isto é, os cativos casados ou solteiros, com ou sem filhos, tinham prioridade.

Conforme Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo, referente ao ano

de 1882, foram libertados na Bahia, pela primeira e segunda cota do Fundo de Emancipação,

1.231 escravos; destes, 30 eram de Alagoinhas.102 Já o Relatório da Presidência da Província

de 1887, dava conta de que na Bahia havia 76.838 cativos matriculados, sendo 3.533 libertos

pelas sete cotas destinadas ao fundo. Em Alagoinhas foram libertos 98 escravos, com a

despesa de 36:773$037 réis, enquanto em Inhambupe foram apenas 41, gastando

27:764$876réis. 103 Isabel Reis computou 2.057 libertandos arrolados para a alforria pelo

Fundo de Emancipação em Inhambupe, destacando que foi a lista com o maior número de

cativos classificados, “distribuídos nas sete categorias, considerando a sua prioridade na

classificação, entre os anos 1882 – 1886”.104 Não dispomos da lista com o total dos arrolados

em Alagoinhas, mas consideramos o número de alforriados (98) para o município foi

expressivo, ocupando a nona posição em relação aos demais municípios da província:

Cachoeira e Curralinho (380), Capital (329), Santo Amaro (150), Feira de Santana (144),

Santo Antônio da Barra (137), Villa de São Francisco (134), Nazareth (121) e Maragogipe

(104). Alagoinhas também se sobressaiu em relação a Sant’Anna do Catu (43), Entre Rios

(42) e Inhambupe (41), municípios limítrofes.105 O fato de Alagoinhas haver alforriado um

102 Fundo de Emancipação 1º e 2º quota. Cf. Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino do Governo -

Fundação Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital Brasileira, 1853. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib =130605&pesq=Alagoinhas. Acesso em: 06/06/2016. 103 Falla com que o Ilm.º.e Exm. Conselheiro Dr. João Capistrano Bandeira de Mello, Presidente da Província,

abriu a 2ª sessão da 26a Legislatura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 4 de outubro de 1887. Bahia,

Typographia da Gazeta da Bahia, 1887. pp. 129-135. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/163/. Acesso.

06/06/2016 104 REIS. “A família negra no tempo da escravidão”, p. 246. 105 Falla com que o Illm.e Exm. Conselheiro Dr. João Capistrano Bandeira de Mello, Presidente da Província,

abriu a 2ª sessão da 26a Legislatura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 4 de outubro de 1887. Bahia,

Typographia da Gazeta da Bahia, 1887. p. 129-135. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/163/. Acesso.

06/06/2016. Ver também: MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, 51; BARBOSA, Hellen Laianne Pires. “Os

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número maior de escravos, talvez seja explicado por conta de uma ação mais efetiva da justiça

local, com a atuação de advogados e juízes simpatizantes à causa da liberdade, a exemplo do

juiz municipal de órfãos e ausentes de Alagoinhas, o dr. Antônio Ferreira Velloso.

Em correspondência de 14 de janeiro de 1885, o juiz Antônio Ferreira Velloso

informou ao presidente da província sobre a audiência realizada em 20 de dezembro de 1884,

declarando livres 19 escravos, cuja indenização dos senhores foi feita pela 6ª quota do Fundo

de Emancipação do município de Alagoinhas. Em anexo enviou um mapa detalhado, com o

número de ordem, número de matrícula, idade, valor do pecúlio com os juros, as razões

estabelecidas para a pretensão, nome dos senhores, indenização pelo tempo de emancipação e

um quadro minucioso que mostra as prioridades para a libertação desses escravos como, por

exemplo, Margarida, 19 anos, solteira, com um pecúlio de 50$000 réis, pertencia a 2

senhores; Engracia, 35 anos, solteira, com um pecúlio de 52$380réis, tinha filhos ingênuos;

Domingos, 35 anos, solteiro, com um pecúlio de 156$380 réis e com um filho menor;

confirmando o que determinava a regulamentação da lei de 28 de setembro de 1871, pelo

decreto nº. 5.135 de 13 de novembro de 1872, seguindo a ordem de classificação explicitada

na Lei.106

No entanto, vale ressaltar que a escrava Quitéria, 43 anos, solteira, pertencia a

diversos senhores, não possuía filhos e não tinha pecúlio, também fora listada para ser liberta

pela 6ªquota do Fundo. Os solteiros representaram 68,4% dos cativos citados na lista dos

classificados e os casados 3,6%, dentre os quais destacamos a presença de Antero e Thereza,

escravos de d. Maria Aurelina Leal, uma das famílias mais poderosas da região de

Alagoinhas.107 Da mesma forma, o juiz de órfãos de Inhambupe, o dr Arsênio de Almeida

Araújo Cavalcante, em audiência no dia 16 de maio de 1885, declarou libertos pela 6ª quota

do Fundo de Emancipação 8 escravos classificados pela Junta. Em acordo, o coletor de rendas

gerais e os respectivos senhores combinaram os valores, tendo sido despendida a quantia de

3:641$915 réis, “inclusive, 397$448 réis de pecúlios com que concorreram os escravos,

ficando 7$448 réis de resíduos”.108

caminhos para a liberdade: estratégias, conflitos e querelas no fundo de emancipação em alagoinhas – (1871-

1887)”. (Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade do Estado da Bahia, 2016), p. 41. 106 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida de juízes de Alagoinhas, maço 2227, 1885. 107 Sobre os escravos de d. Maria Aurelina Leal, ver: NASCIMENTO. “A família escrava na freguesia de Santo

Antônio das Alagoinhas”, pp. 62-65. 108 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida de juízes de Alagoinhas, maço 2416, 1885.

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Os oito alforriados de Inhambupe eram casados com cônjuges livres e contribuíram

com pecúlio. José Santana afirma que desde a segunda metade da década de 1870, a partir das

primeiras quotas liberadas do Fundo, os escravos baianos contribuíram com somas em

dinheiro.109 A apresentação de pecúlio aumentava as possibilidades na hora da escolha dos

candidatos à liberdade era: “[...] bastante pertinente no que se refere às características desses

sujeitos e a participação destes na composição do valor necessário à alforria”. Se notarmos

bem, no caso dos cativos casados, o pecúlio era menor do que a quantia paga por Domingos, o

escravo solteiro de Alagoinhas. Os solteiros precisavam oferecer um bom pecúlio para

aumentar a sua chance de conseguir a alforria. 110 Para a formação do pecúlio os cativos

dependiam do consentimento dos senhores; estes, por sua vez, se inicialmente apresentaram

resistência à nova legislação, a partir de 1885, passaram a disputar por ela, visto que brigavam

a fim de verem os seus escravos sendo alcançados pelo Fundo de Emancipação.111

Segundo Sidney Chalhoub, a concessão da alforria estava intrinsecamente ligada à

política de domínio e controle social. 112 “Excluindo as fugas e as ações mais radicais de

resistência, a esperança de liberdade estava atrelada ao tipo de relacionamento que mantivesse

com os seus senhores”. 113 A Lei de 1871 desgastou a autoridade senhorial eabriu novas

possibilidades para a alforria, atrelando as economias angariadas por eles, tendo em vista os

parcos recursos disponibilizados pelo Império para esse fim, através do Fundo de

Emancipação – 1 a 1,7%. Com o orçamento insuficiente, pouquíssimos escravos seriam

beneficiados nas várias províncias e municípios do país, assim, “[...] os libertandos

intervieram em todo Brasil para complementarem a verba estatal e conseguirem as suas

alforrias através da apresentação de pecúlio”.114 Em Alagoinhas não foi diferente, a exemplo

de Arthur, Joaquina e Anna, que contribuíram com somas em dinheiro e foram alforriados

com verbas do Fundo de Emancipação. Em 21 de outubro de 1882, o juiz municipal de órfãos

e ausentes de Alagoinhas, Antônio Ferreira Velloso, em conformidade com o disposto na Lei

2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 3º, e no Decreto 5.135, de 13 de dezembro de 1872,

artigo 4º, procedeu à alforria dos três escravos.115 Arthur, preto africano, da lavoura, com 40

109 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”, p. 86. 110 FERREIRA. “Nas veredas da liberdade”. Idem, p. 135. 111 REIS. “A família negra no tempo da escravidão”, p. 227. 112 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 23 – 34. 113 BARBOSA. “Os caminhos para a liberdade”, p. 47. 114 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”, p. 84. 115 Artigo 42º do Decreto 5.135 de 13 de novembro de 1872. “Os juízes de órphãos, em audiência previamente

anunciada, declararão libertos, e por editais os farão constar, todos os escravos que, segundo a ordem de

classificação, possam ser alforriados pela respectiva quota de emancipação; e entrega-lhes-hão suas cartas pelo

intermédio dos senhores; assim como remeterão aos presidentes, nas províncias e ao ministério da agricultura e

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anos, do domínio do tenente coronel Florindo Lúcio Leal, foi alforriado pela quantia de

1:200$000 réis, dos quais o Fundo de Emancipação indenizou em 1:000$000 réis e ele

contribuiu com 200$000 réis de seu pecúlio, fruto de economias provenientes de muito

esforço e trabalho.116 Joaquina, escrava de Joaquina de Souza Luna, preta, viúva, do serviço

da lavoura, com 45 anos, matriculada com o número de ordem da matrícula 1.949, recebeu a

alforria desembolsando 150$000 réis de suas economias e 200$000 réis do fundo, formando o

montante de 350$000 réis. 117 Já Anna, mulata, 36 anos, viúva, do serviço doméstico,

matriculada com o número geral da ordem 864, escrava do capitão Joaquim Alves de Sá,

alcançou a liberdade pagando 200$000 réis de seu pecúlio e contou com a indenização do

Fundo de Emancipação em 200$000 réis. Seu valor final ficou em 400$000 réis.118 Como

vimos, o libertando que dispunha de pecúlio levava vantagem, pois era um requisito que lhe

garantia o posicionamento à frente para ser liberto pelo Fundo de Emancipação.

No entanto, nas duas cartas de alforria que encontramos para Inhambupe, os

alforriados não contribuíram com pecúlio. O coronel Maurício José de Souza Dantas,

primeiro suplente do juízo municipal e de órfãos da vila de Inhambupe, em 18 de julho de

1882, em conformidade com o artigo 42 do Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872,

alforriou a escrava Antônia, matriculada sob o número 1.491, 45 anos de idade, casada com

Germano José Quinteliano, do serviço da lavoura, escrava de João Alves de Azevedo, no

valor de 700$000 réis, por conta do Fundo de Emancipação.119 Já Ambrosio, cabra, de 30

anos, casado com uma forra, de propriedade do capitão Manoel Alves Ferreira Baptista,

também foi manumitido pelo que está disposto no mesmo artigo e decreto, pelo Fundo de

Emancipação, no valor de 1:000$000 réis.120

Tanto os que foram alforriados em Alagoinhas quanto os de Inhambupe

enquadravam-se na lista das prioridades para alcançarem a alforria via Fundo de

obras públicas, na corte, uma relação em duplicada, a fim de ser ordenado o pagamento, publicando-se os nomes

do senhor e do liberto por edital impresso nas gazetas do lugar e afixado na porta da matriz de cada parochia,

com antecedência de um mez, para garantir direitos de quem quer que os tenha sobre o preço do mesmo liberto”.

Lei 2.040, de 1871 – Lei Rio Branco. Coleção de leis do império do Brasil, Tomo XXXI – parte I, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1871, pp. 1062 e 1063. 116 Carta de liberdade de Arhur, Alagoinhas, 21 de outubro de 1882. 1º Tabelionato de notas em Alagoinhas.

Livro de notas do tabelionato, s/n, 1882, fl. 15; ver MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 51. 117 Carta de liberdade de Joaquina, Alagoinhas, 25 de outubro de 1882. 1º Tabelionato de notas em Alagoinhas.

Livro de notas do tabelionato, s/n, 1882, fl. 15; ver MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 52. 118 Carta de liberdade de Ana, Alagoinhas, 6 de novembro de 1882. 1º Tabelionato de notas em Alagoinhas.

Livro de notas do tabelionato, s/n, 1882, fl. 15v e 16; ver MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p.52. 119 Carta de liberdade de Antonia, vila de Inhambupe,18 de julho de 1882. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas 19 de Inhambupe, 1882, fl. 32v. 120 Carta de liberdade de Ambrosio, vila de Inhambupe, 25 de abril de 1884. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas 21 de Inhambupe, 1884, fl. 65v.

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Emancipação, segundo determinava a legislação vigente. Os solteiros de Alagoinhas

apresentaram pecúlio, já os de Inhambupe eram casados com pessoas livres. Segundo Santana

Neto:

No tocante ao Fundo de Emancipação, mais especificamente, as estratégias dos

escravos foram várias para se apropriarem da lei e se libertarem: Casavam-se para

obterem prioridade na classificação; endereçavam ofícios às autoridades públicas e

entravam com recursos administrativos; acionavam alianças com os abolicionistas.121

Os escravos estavam cientes da legislação e dos critérios necessários para serem classificados

pelo Fundo de Emancipação, agiam de maneira autônoma e aproveitavam-se das brechas,

implementando astuta e eficazmente as estratégias que lhes proporcionavam a mudança de

sua condição jurídica.

A historiografia que se debruça sobre o tema, inicialmente apontou para o fracasso do

Fundo de Emancipação, afirmando que foi inexpressivo o número dos que alcançaram a

liberdade por esse instrumento. Aqui destacamos que a Lei 2.040 ao instituir o Fundo de

Emancipação possibilitou mudanças, sobretudo quando se observam os embates entre

senhores e escravos que se utilizavam dela para terem os seus objetivos alcançados. Assim, o

Fundo de Emancipação apresentou-se como mais uma possibilidade de luta dos escravos para

conquistarem a alforria, “[...] o fundo funcionou como mais uma brecha no sistema escravista,

utilizada politicamente pelos escravos para conseguir suas liberdades, estando justamente

neste a sua importância [...].122 Quando não era possível negociar a alforria com o senhor ou

acionar o Fundo de Emancipação, os escravos recorreram à Justiça aproveitando-se das novas

possibilidades abertas pela Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, conforme veremos no

capítulo que segue.

121 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”, p. 95. 122 BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: 1870 – 1888. Salvador: CEB, 2003, p. 52

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CAPÍTULO III

A LEI 2.040 E OSCAMINHOS DA LIBERDADE EM ALAGOINHAS E

INHAMBUPE

Os caminhos percorridos entre a escravidão e a liberdade eram árduos, como tem

demonstrado a historiografia da escravidão nas últimas décadas e, em Alagoinhas e

Inhambupe não foi diferente. Nesse capítulo, nos centraremos nas experiências dos

escravizados que reivindicaram as suas alforrias na justiça nas duas últimas décadas em que

vigorou a escravidão no Brasil, período que se destaca pela promulgação de uma legislação

sobre a escravidão. Neste sentido, é importante compreender o contexto em que os escravos

recorreram à justiça e as circunstâncias em que a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 foi

acionada.

Novas possibilidades de liberdade a partir da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871

As interpretações sobre a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, não são

unânimes. Para Emília Viotti da Costa e Robert Conrad, a lei não trouxe mudanças

significativas para a vida dos escravos, além de postergar, de fato, a abolição da escravidão.1

José Murilo de Carvalho, por sua vez, argumenta que a iniciativa da lei coubera à Coroa, mas

não encontrou explicações que justificasse aquela tomada de decisão.2 Segundo o autor, “é

certamente exagerado, em vista da evidência disponível, dizer que a Lei do Ventre Livre foi

resposta às inquietações dos escravos, pois não se conhecem rebeliões de vulto nesse

período”.3 Por sua vez, Ademir Gebara argumentou que o papel da lei foi o de controlar os

escravos e disciplinar a transição das relações de trabalho escravo para o livre.4

A partir da década de 1980, a historiografia da escravidão passou por transformações

teórico-metodológicas importantes. Sidney Chalhoub foi pioneiro em questionar a abordagem

1 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, pp.

132-146; COSTA, Emília V. Da Senzala à Colônia. 4ª edição, São Paulo: Unesp, 1998, p. 460. 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras:a política

imperial. 5ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 305. 3 CARVALHO. A construção da ordem, p. 307. 4 GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 72-75.

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sobre a ineficiência da lei de 28 de setembro de 1871. Para o historiador, essa lei “[...] foi o

reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume

e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros”.5 Chalhoub chama a atenção tanto para

a legitimação do pecúlio, direito costumeiro largamente praticado no Brasil ao menos desde o

Seiscentos, quanto para a indenização forçada e à liberdade do ventre, embora restringida e

tutelada pelos senhores e/ou Estado, ressaltando o protagonismo dos escravos nesse processo.

Chalhoub inspirou uma série de trabalhos sobre a aplicação e significados da Lei 2.040.

Ricardo Caires da Silva foi pioneiro em estudar os processos cíveis em que os escravos

recorriam à Justiça na província da Bahia. O autor argumentou que, para dimensionar os

significados da lei de 28 de setembro de 1871, era necessário priorizar as querelas judiciais

envolvendo escravos e senhores, tal qual havia feito Chalhoub ao analisar as “visões de

liberdade” dos escravizados na Corte do Rio de Janeiro.6 Sua dissertação foi tributária da

historiografia que deu visibilidade à voz dos escravos por meio das ações de liberdade e ações

de escravidão que correram nos tribunais do Brasil Imperial.

Até a promulgação da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, as ações cíveis de

liberdade ou escravidão impetradas por escravos ou senhores eram regidas pelos dispositivos

legais das Ordenações Filipinas, Direito Romano e as regras costumeiras.7 Muitos escravos,

libertos e senhores recorreram à justiça, mediados pela figura de curadores e advogados, que

acionavam essa legislação para justificar o estado de liberdade ou de escravidão. A

historiografia sobre o tema para diversas regiões do Brasil Império revela o protagonismo de

homens e mulheres que, embora na condição de escravos, não deixaram de participar de suas

demandas por liberdade, marcando presença e autonomia no processo de alforria,

barganhavam e dissimulavam, tanto para garantir direitos adquiridos como para alcançar

novos.8

5 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São

Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.159. 6 SILVA, Ricardo Tadeu Caires da. “Os escravos vão à Justiça: a resistência escrava através das ações de

liberdade. Bahia, século XIX”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2000), pp.

62-63. 7 Ordenações Filipinas é o resultado da reforma feita por Felipe II da Espanha (Felipe I de Portugal), ao Código

Manuelino, durante o período da União Ibérica. Continuou vigendo em Portugal ao final da União por

confirmação de D. João IV, bem como vigorou no Brasil até a promulgação do primeiro Código Civil Brasileiro,

em 1916. ALMEIDA, Cândido Mendes. Código Fhilipino ou Ordenações do Reino de Portugal. Disponível em:

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733>. Acesso em 04/07/2017; SILVA. “Os escravos vão à Justiça”,

p. 15. 8 Cf., MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a

história social da escravidão”. In: Revista Brasileira de História, vol. 8, nº 16, São Paulo (1988); SCHWARTZ,

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Segundo Keila Grinberg, a fundamentação legal das ações de manutenção da

liberdade e de reescravização na corte do Rio de Janeiro eram a legislação colonial, lei de 6 de

junho de 1755, a Constituição Imperial, artigo 179, e as Ordenações Filipinas, livro 4º, Títulos

11, § 4, e 63. Ao analisar 110 processos judiciais de escravização na Corte de Apelação do

Rio de Janeiro, em períodos distintos entre 1826 e 1870, a historiadora demonstra como esses

instrumentos legais davam conta dos vários assuntos relacionados ao cativeiro e a alforria.

Sua importância era tamanha que mesmo após a Lei de 28 de setembro de 1871, diversos

advogados continuaram fazendo uso dessa legislação para fundamentar suas defesas. 9 No

entanto, isto não significa dar menor importância à Lei 2.040, que representou um divisor de

águas na história da escravidão no Brasil. A historiografia tem demonstrado que apesar de não

haver uma legislação positiva sobre a escravidão antes de 1871, os escravos recorriam à

Justiça tendo ganhos e perdas e, após a lei, essas vitórias cresceram consideravelmente.10 Para

Silva, os “legisladores tinham perfeitamente em conta que não podiam desprezar aquilo que

os cativos entendiam com sendo seus ‘direitos’”.11 O historiador observou que muitos artigos

da lei de 1871 contemplaram algumas das reivindicações dos escravos que pleitearam, ao

longo do século XIX, a liberdade na Justiça.

A Lei 2.040 trouxe mudanças significativas para as relações escravistas: os filhos das

escravas, nascidos a partir de então – os ingênuos – estariam livres, porém, ficariam sob a

tutela do senhor até completar 21 anos de idade; instituiu o Fundo de Emancipação, que

libertava os cativos com recursos advindos de impostos sobre propriedade escrava, de loterias,

de multas para quem desrespeitasse a lei, dos orçamentos públicos e de doações e legados

com esse fim.12 O pecúlio – uma espécie de poupança proveniente de doações, legados e

Stuart B. “A historiografia recente da escravidão brasileira”. In: ______. Escravos, roceiros e rebeldes.

Tradução: Jussara Simões. Bauru, SP: EDUSC, 2001. 9 GRINBERG, Keila. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX”. In: LARA, Silvia H., e

MENDONÇA, Joseli M. N. (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 2006, p.106-110. 10 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade; MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silencio: os significados da

liberdade no sudeste escravista (Brasil, século XIX) Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013; GRINBERG,

Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século

XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994; MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a lei dos

sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1999; SILVA. “Os escravos

vão à justiça”. 11 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, p. 16. 12 Coleção das leis do Império – Câmara dos Deputados – Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871. Disponível

em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao7.html>. Acesso

em: 06/06/2016.

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heranças utilizadas para a compra da liberdade – prática costumeira utilizada pelos escravos

com o consentimento do senhor também foi legitimado pela lei.13

Conforme enfatiza Chalhoub, a lei questionou a política de domínio senhorial que

secularmente vigia no Brasil.14 O artigo 8º da Lei de 28 de setembro de 1871 determinava que

“o governo mandará proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes no Império,

com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for

conhecida”. 15 A intenção era fornecer dados essenciais para a efetivação do Fundo de

Emancipação e distribuição das cotas orçamentárias para a divisão proporcional entre as

províncias do país. De igual modo serviria de parâmetro para os presidentes de províncias

cotizar as verbas destinadas pelo governo central aos municípios e vilas.16

O Decreto nº 4.835, de 1º de dezembro de 1871, regulamentou a matrícula especial

dos escravos e dos filhos livres das escravas. No entanto, o regulamento geral para a execução

da Lei nº 2.040, só foi aprovado um ano depois, em 13 de novembro de 1872, por meio do

Decreto de nº 5.135 que entre outras questões, orientava sobre o registro dos ingênuos, a

matrícula dos escravos, pecúlio, direito à alforria, questões relativas aos contratos de

prestação de serviços com vistas à alforria, associações responsáveis por cuidar e educar os

libertos se os senhores não optassem pela continuidade dos serviços dos ingênuos, e multas e

penas para os envolvidos na administração da lei, caso não cumprissem as suas funções.17

A matrícula dos escravos: o regulamento para a matrícula especial dos escravos e dos

filhos livres da mulher escrava

O Estado imperial brasileiro instituiu duas matrículas para proceder à contagem da

população escrava. A primeira, como foi dito, estava prevista na Lei de nº 2.040 de 28 de

setembro de 1871, e a segunda foi decorrente da Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885. A

13 Artigo 4º da Lei n.º2.040 de 28 de setembro de 1871. “É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com

o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo

pecúlio”. Coleção das Leis do Império – Câmara dos Deputados – Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871.

Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao7.html>. Acesso em: 06/06/2016. 14 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 47. 15 Coleção das leis do Império – Câmara dos Deputados – Lei n.º 2.040 de 28 de setembro de 1871. Artigo 8º

Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao7.html>. Acesso em: 06/06/2016. 16 SANTANA NETO, José Pereira de. “A alforria nos termos e limites da lei: o Fundo de Emancipação na Bahia

(1871-1888)”. (Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal da Bahia, 2012), p. 32. 17 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”, p. 26.

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matrícula foi o primeiro passo para a aplicação da Lei 2.040 e, conforme José Santana Neto

tinha a finalidade de quantificar os escravos no Brasil, pois até então estes dados não eram

confiáveis.18 Ainda em 1871, precisamente no dia 1º de dezembro, foi aprovado o Decreto nº

4.835, que regulava a matrícula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava.

Este regulamento orientava os senhores, ou quem os representassem, a matricularem os seus

escravos nas coletorias de rendas do município em que residissem, informando seus nomes,

sexo, cor, idade, estado civil, filiação (se fosse conhecida), aptidão para o trabalho e profissão

do matriculando. O regulamento também orientava a matrícula dos filhos livres das mulheres

escravas e estabelecia o prazo de 1º de abril a 30 de setembro de 1872 para a referida

inscrição, que deveria ser anunciada pelos párocos de cada uma das freguesias do Império do

Brasil por ocasião das missas dominicais e dias santos.19 O regulamento previa o acolhimento

da matrícula fora do prazo até o dia 30 de setembro de 1873, com pagamento de multa. Por

fim, o art. Art. 19º determinava que:

[...]os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados à

matricula até o dia 30 de Setembro de 1873, serão por este facto considerados

libertos, salvo aos mesmos interessados o meio de provarem em ação ordinária, com

citação e audiência dos libertos e de seus curadores: 1º O domínio que têm sobre

eles; 2º Que não houve culpa ou omissão de sua parte em não serem dados à

matrícula dentro dos prazos [...].20

A historiografia da escravidão na Bahia argumenta que muitos escravos não matriculados por

seus senhores recorreram ao juízo ordinário para pleitearem as suas alforrias. Ao analisar o

contexto em que os escravos recorreram à Justiça na Bahia, Silva enfatiza que a não

efetivação da matrícula pelos senhores de escravos no prazo determinado, seja por omissão,

por dificuldades de acesso aos meios legais instituídos ou ainda por incorrerem em alguns

erros ao efetuar o cadastro, acabaram por favorecer os escravos. 21 Nos municípios de

Alagoinhas e Inhambupe, aparentemente, os escravos não aproveitaram a ausência de

matrícula para pleitearem suas alforrias, à exceção de Benedita, o que não significa que não

ocorreram outras alforrias por essa via. Em outras regiões da província da Bahia verificou-se a

existência de várias alforrias sob tal argumento, a exemplo de Mamédio, na vila de Rio das

18 SANTANA NETO. “A alforria nos termos e limites da lei”, p. 31. 19 Cf. Coleção das leis do Império – Câmara dos Deputados – Decreto Nº 4.835, de 1º dezembro de 1871.

Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao7.html>. Acesso em: 20/04/2018. 20 Artigo 19 do Decreto 4.385, de 1º de dezembro de 1871. 21 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, pp. 80-90.

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Éguas, atual Correntina; Felicidade, na vila de Viçosa, Fortunato Ferreira, em Barra do Rio de

Contas e Severino, no povoado do Senhor Bom Jesus, distrito da vila de Rio de Contas.22

No entanto, como ressaltou Silva não eram somente os escravos que ganhavam

processos por falta de matrícula. Em 1878, na vila de Inhambupe, uma ação judicial

envolvendo os escravos Eugênio, Severa, Josefa e Porfírio, teve por desfecho o retorno destes

ao poder do senhor Joaquim Honório Bispo, por determinação do juiz de órfãos.23 Apesar de

trabalharem na fazenda Areias, distrito de Inhambupe, os escravos, cientes que não foram

matriculados em tempo hábil pelo senhor, “solicitaram suas supostas certidões de matrícula

perante o escrivão da Coletoria Geral”, e confirmando que estas não existiam decidiram

recorrer à Justiça a fim de que Bispo provasse a posse legal que garantia o domínio sobre

eles. 24 Bispo, por sua vez, alegou não haver cumprido as exigências legais por já ter

concedido carta de alforria aos escravos com a condição de estes acompanhá-lo até a sua

morte. Segundo ele, os cativos sabiam da existência da carta, mas se deixaram levar pelos

maus conselhos, agindo de má fé. Feita a perícia ficou constatado que a carta fora concedida

antes do fim do prazo da matrícula, o que também ficou atestado pelo depoimento das

testemunhas apresentadas.

Observa-se que o senhor outorgou a carta de alforria, mas, aparentemente, não a

registrou em cartório, quiçá uma estratégia para exigir bom comportamento dos libertandos.

Por outro lado, os escravizados não se conformaram com o fato de serem libertos imperfeitos,

isto é cumprir a condição de esperar a morte do senhor para entrarem na posse plena de suas

liberdades. Segundo Silva, apesar da idade avançada de Bispo – 70 anos de idade – os

escravos ansiavam por liberdade, e por isso utilizavam-se de todas as possibilidades que

tinham ao seu alcance. O fato de Eugênio, Severa, Josefa e Porfírio residirem em uma fazenda

não foi obstáculo para que se informassem sobre as possibilidades de alforria advindas com a

Lei de 1871. Assim, se para os escravos a falta de matrícula configurou-se em possibilidade

de lograr a liberdade sem ônus, para os senhores transformou-se em problema o seu não

cumprimento.

Como dito, o regulamento da primeira matrícula estabelecia prazos para que fossem

efetuados os registros dos filhos livres das mulheres escravizadas e o não cumprimento

22 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, pp. 118-119; ALMEIDA, Alforrias em Rio de Contas, p. 96. 23 Este processo foi analisado por Ricardo T. Caires da Silva. Cf. SILVA. “Os escravos vão à Justiça”, p. 87.

Não localizei as alforrias de Eugênio, Severa, Josefa e Porfírio nos Livros de Notas do tabelião da vila de

Inhambupe. 24 SILVA. “Os escravos vão à Justiça”, p. 90.

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implicaria em multas.25 Manoel Ciriaco dos Santos, morador no município de Inhambupe, no

Sítio denominado Saquinho, solicitou ao Presidente da Província, em 19 de julho de 1873,

absolvição da multa de 200$000 réis, por não ter matriculado o ingênuo Jeronymo, filho de

sua escrava Hermenegilda. Santos seguiu o determinado no artigo 43 do Decreto 4.385, que

previa o recurso ao pagamento de multa e, justificando não ter matriculado o ingênuo pois “há

mais de um ano sofre alterações em sua saúde que o tem inibido de ir à vila de Inhambupe [...]

que é um camponês rústico [...] que se houve negligência de sua parte foi somente por

ignorância e de não lhe chegar ao conhecimento [...]”.26

Como previsto no artigo 35 do referido decreto, os proprietários de escravos tinham a

obrigação de renovar a matrícula a cada ano, além de informar à coletoria municipal ou órgão

competente as mudanças ocorridas na situação do escravo, declarando mudança de residência

para fora do município, transferência de domínio ou falecimento do escravizado. 27 Em

Alagoinhas, Maria da Cruz Lima, viúva de Francisco da Silva Neto, foi multada com base

nesse artigo, por não comunicar a transferência de domínio e falecimento do escravo

Martinho. Essa senhora recorreu ao Presidente da província justificando ser mulher, viúva,

sozinha, não tinha filhos e não tinha ciência nem costume de resolver as obrigações referentes

à administração das propriedades. A fonte não informou o valor da multa cobrada, porém, o

decreto estimava um valor que variava entre 10$000 réis a 50$000 réis.28

Manoel Ciriaco e Maria da Cruz Lima são exemplos que demonstram como a lei

atingiu os senhores de escravos nas cidades de Alagoinhas e Inhambupe. Segundo os

historiadores Ricardo Silva, Isabel Reis e José Santana Neto, em várias regiões da província

da Bahia, senhores de escravos reivindicaram absolvição de multas, apresentando as mais

variadas justificativas, inclusive, e muitas vezes, de forma fraudulenta, afim de não serem

25 Artigo 10 do Decreto 4.385, de 1º de dezembro de 1871: “Os funcionários encarregados da matrícula, em conformidade do art. 8º, logo que, por comunicação da autoridade superior, ou pelo Diário Oficial, tiverem

conhecimento da publicação deste Regulamento, mandarão anunciar pela imprensa, e por editais afixados nos

lugares mais públicos do município, que a matrícula dos escravos, ordenada pelo art. 8º da Lei nº 2040, de 28 de

Setembro do corrente ano, achar-se-á aberta, na respectiva repartição fiscal, desde o dia 1º de Abril até 30 de

Setembro de 1872, devendo ir inserida nos anúncios e editais a íntegra do § 2º do citado art. 8º”; Artigo 33 do

Decreto 4.385 de 1º de dezembro de 1871. 26 Arquivo Público do Estado da Bahia (doravante APEB). Seção Colonial e Provincial. (Escravos: assuntos),

maço 2888, 1875-1878. O documento citado está datado de 19 de julho de 1873, no entanto, encontrava-se nesse

maço com data posterior. 27 Artigo 35 do Decreto 4.385 de 1º de dezembro de 1871. 28 APEB. Seção Colonial e Provincial. Maço 2891. (Escravos: Assuntos) – 1863-1879.

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penalizados pelo não cumprimento da legislação.29 Se os senhores esforçavam-se em cumprir

a lei a fim de não terem seus direitos de propriedades subtraídos, os escravos, por sua vez,

também corriam atrás de sua liberdade ou manutenção dela, acionando a justiça por meio de

ações de liberdade que lhes possibilitavam lutar pela permanência dos direitos alcançados.

Propriedade versus liberdade: conflitos entre senhores e escravos

Os conflitos decorrentes da liberdade versus propriedade foram recorrentes entre

senhores e escravos nos municípios de Alagoinhas e Inhambupe. No dia 16 de dezembro de

1871, na vila de Alagoinhas, os escravos Estanislau, crioulo, 30 anos; Vicente, cabra, 23 anos;

Manoel, crioulo, 30 anos, e Marciana, mulata, 26 anos, entraram na justiça contra o tenente

Gabriel Ferreira Cordeiro com uma ação de liberdade, reivindicando a não anulação de suas

cartas de alforria.30 Os libertos pertenceram à dona Isabel Maria de São José, falecida que os

deixaram como herança “de seu casal”, primeiro ao tenente Gabriel Cordeiro, seu marido e,

este falecendo, os herdeiros seriam os parentes da falecida. Segundo os autos do processo,

Thomas Fernandes do Prado e Maria Vitória do Nascimento, irmão e cunhada de dona Isabel

Maria, alegaram terem sido constituídos seus herdeiros por verba testamentária e, como

legítimos senhores e possuidores de Estanislau, Vicente, Manoel e Marciana, passaram-lhes

carta de liberdade, em 20 de fevereiro de 1871, com a condição de os servirem e

acompanharem por 10 anos. Alegaram ainda, que se “[...] não for julgado nulo o testamento

que se apresenta atribuído a nossa irmã e cunhada, ainda assim terá todo vigor a presente carta

de liberdade, visto como nos obrigamos a indenização dos serviços dos mesmos

escravos[...]”.31 É possível que Thomas Prado, por meio da concessão da carta de alforria e

promessas de garantir a liberdade, tenha seduzido os libertandos, induzindo-os a procurarem a

justiça para reivindicarem a manutenção de seus status de libertos.

Na petição inicial, os libertandos também alegaram que o seu benfeitor Thomas

Prado indenizaria o tenente Gabriel Cordeiro pelos serviços que os escravos teriam de prestar,

em virtude do testamento que conferia ao réu o usufruto da herança. Por sua vez, o advogado

de Gabriel Cordeiro argumentou que Thomas não tinha nenhum direito sobre os escravos,

29 SILVA. “Os escravos vão à justiça”, pp. 80-90; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. “A Família Negra no tempo

da escravidão: Bahia, 1850-1888.” (Tese de Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2007),

p. 194-195; SANTANA NETO. “A alforria nos tempos e limites da lei”, p. 36-37. 30 Ação de Liberdade de Estanislau e outros (autores) versus Gabriel Ferreira Cordeiro (réu). APEB. Seção

Judiciário. Classificação 58/2065/14-1871.

31 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 3. A referida carta, anexada ao processo, foi registrada em cartório em 29

de dezembro de 1871. Em pesquisa no 1º Tabelionato de notas de Alagoinhas não encontramos os livros de notas

referentes a este ano.

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porque os herdeiros de Maria Isabel eram “indeterminados não se sabendo quais dos que hoje

existem, existirão na época do falecimento do réu”. 32 Sendo assim, o que garantiria que

Thomas do Prado e sua esposa seriam os herdeiros que sucederiam o tenente Gabriel

Cordeiro? Maria Isabel possuía outros irmãos e sobrinhos. Além disso, alegava que os

escravos estavam em seu poder por tê-los subtraídos e que, por conta da queixa do tenente

Cordeiro contra o cunhado, este foi “pronunciado pelo Juiz da Subdelegacia do 2º Distrito de

Catu (doc. nº 2)”.33 Portanto, segundo o advogado, ele não poderia exercer domínio algum

sobre os escravizados e a carta de alforria concedida por Thomas deveria ser considerada

nula.

O curador dos escravos justificou a ação argumentando que Thomas do Prado ao

conceder a carta de liberdade comprometeu-se a “pagar ao réu o usufruto a que o mesmo tem

durante sua vida”, caso não houvesse anulação do testamento e, que os autores tinham mais

“em seu favor e para as suas garantias a Lei do Elemento Servil, que autorizava a seu

benfeitor e a outro em casos idênticos, conferirem liberdades, sujeito os libertos aos ônus e às

condições das mesmas”.34 Supõe-se que ele referia-se aos parágrafos 3º e 4º do artigo 4º da

Lei 2.040, também citado pelo advogado Diocleciano Soares Albergaria, por ocasião da

apelação no Tribunal da Relação de Salvador.

[...] É, outrossim, permitido ao escravo, em favor da sua liberdade, contatar com terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete anos,

mediante o consentimento do senhor e aprovação do juiz de órfãos. O escravo que

pertencer a condôminos, e for libertado por um destes terá direito a sua alforria,

indenizando os outros senhores da quota do valor que lhes pertencer.35

Os advogados do tenente Gabriel Cordeiro, Joaquim da Rocha Fiennes e Constâncio Farias de

Brito, respectivamente primeira e segunda instância, justificaram o domínio sobre os escravos

com a verba 8ª do testamento de Maria Isabel, que instituía o cônjuge como seu primeiro

herdeiro e na certidão de matrícula, anexada aos autos, que concedia o título de propriedade

ao réu. Já os curadores Joaquim José da Costa Chaves, na primeira instância e Diocleciano

Albergaria, na segunda, recorreram aos dispositivos da Lei de 28 de setembro de 1871,

apontando Thomas Prado como herdeiro futuro de sua irmã, com autoridade para conferir

carta de liberdade aos escravos; além de se comprometer a indenizar Gabriel Cordeiro pelo

usufruto a que tinha direito. Albergaria ainda ressaltou “[...] a boa intenção do herdeiro futuro,

32 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 13. 33 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 13v. 34 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 57v. 35 Artigo 4º §§ 3º e 4º da Lei 2.040 de 1871.

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tanto mais, conferindo esse benefício qual o da liberdade que jamais pode ser reprovado em

oposta, principalmente em que toda sociedade tem [se] levantado em alto brado a favor desse

sagrado direito [...]”.36

Durante a tramitação do processo, que se arrastou por pouco mais de dois anos, os

herdeiros de d. Isabel Maria disputaram a quem caberia o direito de propriedade sobre

Estanislau, Vicente, Manoel e Marciana, os quais, representados por seu curador Joaquim

José da Rocha Chaves, mobilizaram a legislação e sua rede de solidariedade para enfrentar o

confronto, apresentando as razões que validariam a liberdade adquirida por meio da carta de

alforria.

Segundo o artigo 7º, § 1º da Lei de 1871, “nas causas em favor da liberdade”, a ação

seria sumária. Se o juiz sentenciasse contrariamente à liberdade, aplicava-se o § 2°: “haverá

apelações ex-officio quando as decisões forem contrárias à liberdade”. Na situação em que o

senhor era o autor do processo, este era considerado ordinário e a favor da escravidão,

portanto, não cabia recurso ex-officio, “sem que, no entanto, às partes seja tolhido o direito de

apelar”.37 Regina Célia Lima Xavier, ao pesquisar as experiências dos libertos em Campinas,

considerou que ali a tramitação das ações de liberdade foi rápida, sendo que a maior parte das

ações levou até três meses para chegar ao resultado final.38 Segundo Xavier, os processos

mais demorados, eram aqueles que instauravam debates e embargos e os que foram analisados

à luz do § 2º do artigo 7º e remetidos ao Tribunal da Relação.39 Dos doze processos analisados

para Alagoinhas e Inhambupe, seis tiveram fim em primeira instância e seis foram para o

Tribunal da Relação em Salvador. Na arena dos tribunais o jogo ficou bastante equilibrado,

apresentando cinco vitórias para os escravos, sendo quatro na primeira instância e uma na

segunda. E para os senhores, também cinco vitórias, sendo quatro na segunda instância e uma

na primeira. Assim, quando os escravos recorreram à justiça as oportunidades de alforrias

foram maiores no juízo da primeira instância. Em outros dois processos não foi possível saber

o resultado final.

A ação de manutenção de liberdade de Estanislau, Vicente, Manoel e Marciana foi

considerada improcedente e a carta de liberdade foi anulada em primeira e segunda instância,

em virtude do testamento deixado por d. Maria Isabel que indicava Gabriel Cordeiro como

36 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 74. 37 NEQUETE, Lenine. Escravos & Magistrados no Segundo Reinado: a aplicação da Lei 2.040, de 28 de

setembro de 1871. Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988, p.119. 38 XAVIER, Regina Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX.

Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996,p. 56. 39 XAVIER. A conquista da liberdade, p. 57.

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seu herdeiro universal.40 Conforme a lei vigente no Brasil Império, falecendo o homem ou a

mulher casado[a] e não tendo parente até o décimo grau, o[a] viúvo[a] ficaria com a posse dos

bens.41 Para reforçar o argumento de legítimo senhor e possuidor dos escravos demandantes, o

viúvo apresentou certidão de suas matrículas. A certidão foi peça importante para o resultado

da ação que confirmou o seu domínio e propriedade sobre os escravizados. A política de

domínio, presente no imaginário senhorial como vontade inviolável e soberana na qual os

subordinados posicionavam-se como dependentes em relação à sua vontade, foi corroborada

pela Justiça.42

Enquanto o processo tramitava na Justiça, Estanislau, Vicente, Manoel e Marciana,

ficaram sob a proteção de um depositário, de acordo com o rito legal. Contudo, a leitura do

processo demonstra que houve várias trocas de depositários, pois eles reagiam a toda tentativa

de domínio e exploração. Assim, Manoel José do Nascimento, um dos depositários, solicitou

à Justiça mandato de apreensão contra os escravizados, alegando que eles, “seduzidos por

Thomas Fernandes do Prado fugiram e se acham em casa do dito homem onde se apresentam

armados a resistir a qualquer ordem que determine a sua vista para o poder do depositário.43

Nessa disputa entre propriedade e liberdade, observa-se o protagonismo dos escravizados na

busca da alforria, lutando para garantir direitos que acreditavam possuir, resistindo, fugindo,

fazendo o que estivesse ao seu alcance para atingir os seus objetivos.

Segundo Eduardo Pena, o escravo, ciente de seus direitos costumeiros, passou a

defendê-los mesmo diante das investidas dos senhores na defesa intransigente da propriedade.

[...] os processos jurídicos em defesa da liberdade e outras evidências vêm sendo

sistematicamente levantados e analisados pelos historiadores, mostrando ter havido

um espaço de autonomia e ação por parte dos escravos e libertos na defesa dos

40 Sentença da primeira instância “[...] porque herdeiro de sua mulher é o réu em virtude da verba 8ª do

testamento e apenas por sua morte a herança se transmitirá aos herdeiros parentes dela que existirem a esse

tempo, assim como que no inventário esses escravos foram descritos e avaliados e na partilha aquinhoados ao

réu na sua meação, julgo improcedente a ação, nula a carta de alforria de fl. 3, em que se fundou os autores

escravos do réu[...]”, e no Tribunal da Relação, segunda instância “Acordão em Relação julga improcedente

apelação para o fim de confirmarem como confirmam a sentença apelada de fl. 64 por serem seus fundamentos conforme aberto e prova dos autos, Bahia, 10 de junho de 1873”.Ação de Liberdade de Estanislau e outros

(autores) versus Gabriel Ferreira Cordeiro (réu). APEB, Seção Judiciário, classificação 58/2065/14 – 1871, fl.

77. 41 A legislação civil portuguesa foi adotada no Brasil independente a partir de uma lei de 20 de outubro de 1823,

fazendo com que passasse a vigorar as Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e Resoluções do Direito

Português. Ver: MARQUES, Teresa Cristina Novaes; MELO, Hildete Pereira de. A partilha da riqueza na

ordem patriarcal. Anais do XXIX Encontro Nacional de Economia. Disponível em:

http://www.anpec.org.br/encontro2001/artigos/20010122, Acesso em 04/07/2017; ver também ALMEIDA.

Código Fhilipino ou Ordenações do Reino de Portugal, p.947. 42 CHALHOUB, Machado de Assis, pp. 44-50. 43 Ação de Liberdade de Estanislau, fl. 15.

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costumes e direitos alcançados, diante das exigências desmedidas ou da defesa

intransigente do direito de propriedade por parte dos senhores.44

Para Chalhoub, os escravos “aprenderam a fazer valer certos direitos que, mesmo se

compreendidos de maneira flexível, eram conquistas suas que precisavam ser respeitadas

[...]”.45 A historiografia tem demonstrado que desde o século XVIII, os escravos não mediam

esforços para conquistarem e manterem as suas liberdades pelos meios que lhes eram

possíveis.46

Também podemos questionar quais eram as reais pretensões de Thomas Prado. Será

que estava realmente com boas intenções, envolvido por sentimentos humanitários que

motivavam a libertação dos escravos, como argumentou o curador Albergaria, ou o seu desejo

era aproveitar-se dos seus serviços? Ao acenar com sua rede de proteção a Estanislau,

Vicente, Manoel e Marciana, Prado enquanto escravista não queria romper com a ideologia

paternalista que durante séculos permeou as relações entre senhores e seus escravos no

Brasil.47 Não é demais lembrar que a carta concedida por ele aos cativos foi com a condição

de os servirem por dez anos.

Apesar de a lei de 28 de setembro de 1871 ter contemplado alguns direitos que os

escravos haviam adquirido pelo costume ela não rompeu, a priori, com a prerrogativa de os

senhores os alforriarem. Como asseverou Chalhoub, “[...] a concentração de poder de alforriar

exclusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de

dependentes, de transformação de ex-escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a

seus proprietários”.48 Vejamos a situação dos filhos livres das mulheres escravizadas, nascidos

após a lei de 28 de setembro de 1871. A lei garantia ao senhor a tutela dos ingênuos até os

oito anos de idade e, após esse período, o senhor/tutor poderia optar entre uma indenização

governamental de 600$000 réis pelas despesas até então assumidas, ou usufruir os serviços do

menor até seus 21 anos de idade.49

44 PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial, escravidão e a lei de 1871. Capinas SP: Editora Unicamp. 2001, p. 27. 45 CHALLOUB. Visões da liberdade, p. 59.

46 Ver, entre outros: CHALLOUB. Visões da liberdade, p. 135; LARA, Silva Hunold. Campos da violência:

escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750 - 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; ALMEIDA,

Kátia Lorena Novais. “A vulnerabilidade da alforria e o recurso à Justiça na Bahia setecentista”. Afro-Ásia, n.

51(2015), p. 73-117. 47 CHALHOUB. Machado de Assis, p. 28. 48 CHALHOUB. Machado de Assis, p. 51. 49 Quando os ingênuos completassem 8 anos, o senhor teria a opção de ficar tutelando o filho da escrava, ou

entregá-lo ao Estado. Caso entregasse, receberia uma indenização de 600$000 réis, se ficasse, se utilizaria dos

serviços até a idade de 21 anos completos. Artigo 1º § 1º da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871.

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No município de Alagoinhas 26% dos escravos registrados no recenseamento de 1872

eram crianças entre 1 a 10 anos de idade, e destas 70,9% residiam na área mais dinâmica do

município, isto é, a freguesia de Jesus, Maria e José, produtora de cana-de-açúcar. 50 O

percentual de crianças na freguesia de Alagoinhas era significativamente menor, 21,6%,

enquanto na freguesia de Araçás era de 7,6%. No município de Inhambupe o percentual de

crianças escravas era de 28%, mas não havia grandes disparidades entre suas duas freguesias

– Inhambupe com 55,7% e Aporá com 44,3%. Poucos senhores no município de Alagoinhas e

Inhambupe renunciaram formalmente ao direito de tutelar as crianças nascidas de ventre livre,

bem como o de usufruir de seus serviços até que atingissem a maioridade. Em Alagoinhas,

encontramos duas crianças nascidas de ventre livre e alforriadas pelos senhores de suas mães.

Thimoteo, pardo, filho da escrava Ana Rosa, escrava de Feliciano Lima, nasceu em 22 de

agosto de 1872 e foi alforriado em 1º de setembro de 1872. Ao outorgar a carta de alforria,

Lima alegou que: “concedo-lhe desde já plena liberdade, cedendo todo direito e parte que

tenho nele, permitido pela lei de vinte e oito de setembro de mil oitocentos e setenta e um art.

1º, 2º, 3º, ficando a dita cria desta data em diante gozando de ampla liberdade”.51 José, 4 anos

de idade, filho de Felippa, escrava de Antônio de Sá, foi alforriado em 28 de novembro de

1877.52 Ao outorgar a alforria, Antônio de Sá ressaltou o direito que tinha sobre os seus

serviços, conferido pela lei de 1871.

A lei facultava aos menores poder remir-se de prestar serviços aos senhores, mediante

prévia indenização oferecida por si ou por outrem ao senhor de sua mãe. Em caso de

divergências em relação ao tempo que lhe restava a preencher, o menor seria avaliado e

estabelecido o valor. Lima renunciou aos serviços de Thimoteo mediante indenização e, lhe

concedeu “plena liberdade”, como se nascido de ventre escravo e não livre como determinava

a lei. Em seu discurso, Sá mostrou a restrição da Lei de 28 de setembro de 1871 em

considerar o ventre livre, ao argumentar que “desistiu em favor da liberdade do pardo”, e

depois renunciou ao “direito que tenho dos serviços do referido ingênuo forro, que este desde

a presente data se considere naturalmente livre como se assim nascesse”.53 Cabe observar

que, o fato de Ana Rosa e Felipa terem permanecido no cativeiro sob o domínio de seus

50 NASCIMENTO, Aline Soraia S. “A família escrava na freguesia de Alagoinhas: uma análise longitudinal”.

(Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia, 2015). 51 Carta de alforria de Thimoteo, vila de Alagoinhas, 25 de setembro de 1873. 1º Tabelionato de Notas de

Alagoinhas, Livro de Notas do Tabelionato, s/n, 1872, fl. 40 e verso, cf. MATOS, p. 45. 52 Cartas de alforrias de José, vila de Alagoinhas, 15 de março de 1878. 1º Tabelionato de Notas de Alagoinhas,

Livros de Notas do Tabelionato, s/n, 1877, fl. 79 e verso. Ver: MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 45. 53 Cartas de alforrias de José, vila de Alagoinhas, 15 de março de 1878. 1º Tabelionato de Notas de Alagoinhas,

Livros de Notas do Tabelionato, s/n, 1877, fl. 79 e verso. Ver: MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 45.

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senhores, na prática, estendia essa condição aos seus filhos.54 Ao outorgar cartas de alforria

aos ingênuos, Lima e Sá reiteravam o poder que possuía sobre os mesmos e sobre as suas

mães, quiçá para transformá-los em servidores fiéis e submissos. Segundo Robert Conrad, a

maioria dos senhores optou pela tutela dos ingênuos e poucos foram entregues ao Estado.55

Ao que parece, nos municípios aqui estudados isto também ocorreu, provavelmente porque os

senhores usufruíam do trabalho dessas crianças legalmente livres, amparados pelo domínio

sobre suas mães.

Em Alagoinhas, os senhores também recorreram à Justiça questionando a alforria

conquistada pelos escravos. Era o dia 10 de março de 1877 quando o escrivão Francisco

Siqueira Santos autuou uma petição de Antônio de Azevedo Chaves reivindicando o retorno à

escravidão de João, cabra, alegando que a liberdade concedida por Maria Olindina do

Nascimento Benevides, sua nora, não tinha validade, pois ela não tinha título de propriedade

sobre o escravo e, tampouco, poderia exercer domínio sobre ele. João, cabra, foi cedido por

Chaves ao seu filho Emiliano Benevides de Azevedo que precisava dos seus serviços por

achar-se doente e carente de cuidados, tendo falecido pouco tempo após casar-se. João ficou

em companhia de Maria Olindina, que lhe passou carta de alforria em 1º de janeiro de 1877,

em consideração aos bons serviços prestados, para que gozasse de plena liberdade, como se

de ventre livre tivesse nascido. Como o inventário dos bens de Emiliano não havia sido feito,

o valor do escravo ficaria por conta de sua meação, como consta na carta de liberdade

registrada no 1º Tabelionato de notas de Alagoinhas, em 11 de janeiro de 1877 e no jornal A

Verdade, de 11 de fevereiro de 1877, anexado ao processo.56

Maria Olindina possuía condições legais para alforriar o escravo João, tendo em vista

que não possuía o título de propriedade? Porque a benfeitora de João publicou a carta de

alforria em um periódico do município? Tanto poderia estar agindo motivada por bons

sentimentos em relação ao cabra João, quanto poderia estar produzindo provas para confrontar

o seu sogro por conta de desavenças antigas ou ainda, poderia estar apenas interessada em dar

conhecimento público de suas ações, em um momento em que a escravidão perdia

legitimidade. Enquanto tramitava a ação na Justiça, João foi mantido preso no depósito

54 ZERO, Arethuza. “O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888)”.

(Dissertação de Mestrado em História, Universidade Estadual de Campinas, 2004). 55 CONRAD. Os últimos anos da escravatura, pp. 141-145. 56 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves (autor)versus João Cabra (réu), Alagoinhas. APEB. Seção

Judiciário, classificação 58/2065/16 – 1878. O exemplar do jornal foi anexado aos autos, após a fl. 8.Carta de

alforria de João, cabra, passada por sua senhora d. Maria Olindina do Nascimento Benevides. Livro de Notas do

Tabelião, 1877, fl. 26.

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público por conta de um mandato de apreensão, assinado pelo juiz de órfãos da vila de

Alagoinhas, José Maria Rocha Carvalho. Da prisão João alegou que:

[...] achando-se preso sem que cometesse o mais leve crime, e apenas depois de preso soube por terceiras pessoas qual o motivo de sua prisão que tivera lugar a

requerimento de seu primitivo senhor Antônio de Azevedo Chaves, pai do seu dito

senhor falecido a pretexto de querer provar a nulidade de sua carta de liberdade e

como em virtude da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, não possa o suplicante

ser preterido de sua liberdade sem que primeiro seja convencido que a ação

competente de nulidade da sua carta publicada em jornal [...].57

O advogado de João fez referência à publicação da anulação da alforria pelo jornal local,

claramente uma estratégia de Chaves em decorrência da publicidade que Maria Olindina dera

à manumissão. As divergências entre Antônio Chaves e sua nora eram de longa data. Segundo

as testemunhas ouvidas no processo, o autor da ação não aceitou o casamento de Maria

Olindina com o seu filho por ela ser pobre. Chaves também argumentou que sua nora não

tinha bens a ser inventariado, pois o seu marido, Emiliano Azevedo, havia dilapidado os bens

que recebera da legítima materna e, por compaixão, permitiu que o escravo ficasse servindo-a,

após a morte do filho. No entanto, vindo a viúva morar na vila de Alagoinhas, após alguns

meses, Azevedo mandou buscar o cabra João. Estando ele em companhia do autor solicitou

“licença para vir a esta vila a buscar certos objetos que aqui deixara, sendo-lhe a licença

concedida”.58 Foi naquela ocasião que Maria Olindina lhe concedeu a carta de liberdade.

O processo de anulação da alforria de João sugere que os conflitos para determinar a

propriedade e domínio dos escravos em Alagoinhas foram recorrentes. A certidão de

matrícula, aliada a outros documentos, foi imprescindível para que a Justiça anulasse a carta

de liberdade e considerasse a ação procedente. Conforme discutido, a matrícula dos escravos,

ou a falta dela, configurava-se para senhores e escravos, meio para obterem bons resultados

frente a processos judiciais, caso de Antônio Chaves que provou “[...] que pelo documento de

fl. 17 vê-se está matriculado o réu, como pertencente ao A[autor] desde o ano de 1872, sem

que até hoje houvesse reclamação alguma, considerando finalmente que o réu nada provou do

que alegou, julgo nula a carta de liberdade concedida ao réu João Cabra [...]”.59 A sentença do

juiz Ignácio Accioli Almeida foi seguida de apelação, na forma da Lei de 28 de setembro de

1871, balizada no artigo 7º, parágrafo 2º, uma vez que a decisão fora contrária à liberdade.

No Superior Tribunal da Relação da Bahia, o curador de João, Augusto Araújo

Santos, argumentou que o apelante já estava liberto por força da carta de alforria concedida

57 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fl. 8. 58 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fl. 12v. 59 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fl. 51v.

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por Maria Olindina “[...] e que estando João no gozo de sua liberdade em virtude da carta

aludida, permaneceria no gozo, também, dos direitos civis [...]”.60 Partindo desse pressuposto,

o advogado afirmou que João deveria “ter sido citado ao menos para contestar, ouvir

testemunhas, arrazoar afinal, e por ter ciência da remessa desses autos para o Tribunal

Superior”. Além disso, o curador que defendeu João em primeira instância deixou o processo

correr à revelia dele, sendo que agora era senhor da causa e como tal não poderia ter sofrido a

“extorsão e violência contra ele praticadas e sancionadas pelo juiz a qual consta de fl. 6 e fl.

56”.61 Mesmo diante do argumento do advogado Augusto Santos, a apelação de João foi

considerada improcedente: “Acórdão em Relação que julgam improcedente a apelação ex-

officio interposta da sentença, assim, para mandar, como mandam que subsista a mesma

sentença por seus proclamantes conforme o direito e aos autos”. Tentou-se ainda embargar o

acórdão, decisão proferida em grau de recurso pelo Colegiado de um Tribunal Superior, mas

não obtiveram sucesso.62 Deveria ocorrer a revogação da liberdade de um indivíduo quando

este já adquirira o status de cidadão? Segundo Grinberg,

[...]se o regime do cativeiro ainda era aceitável, era cada vez mais difícil justificar a

possibilidade de um indivíduo passar da liberdade para a escravidão, principalmente

porque, no Brasil, a conquista da liberdade significava também adquirir direitos de

cidadania. Assim uma alforria revogada implicava não apenas uma escravização,

mas a perda de todos os direitos por parte de um cidadão [...]. 63

Este foi o caso de João que ao retornar à condição de escravo perdeu os direitos civis

adquiridos com a alforria. Segundo a Constituição de 1824, art. 6º, inciso I, eram cidadãos

brasileiros, “os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o

pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação”.64 Ao analisar uma

ação de liberdade cujo objetivo era libertar 32 escravos do eito em Barra Mansa, no ano de

1869, Hebe Mattos destaca que o curador apresentou a seguinte alegação:

[...] O indivíduo, pois, a quem foi concedida a liberdade, não pode mais voltar à

escravidão. Pela manumissão torna-se cidadão, e o cidadão não pode perder, em face

do artigo 7º da Constituição este direito, senão nos três seguintes casos: 1º

naturalização em país estrangeiro; 2º aceitação sem licença do Imperador de

emprego, condecoração ou pensão de qualquer governo estrangeiro; 3º banimento

por Sentença. Fora destes 3 casos não se pode mais perder este direito uma vez

60 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fl. 64v. 61 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fl. 65. 62 Ação de Escravidão, Antônio de Azevedo Chaves, fls. 78v, 90v e 91. 63 GRINBERG. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX”, p. 118. O significado de acórdão

foi colhido de: SANTOS. Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.30.

Disponível em: http://www.ceap.br/artigos/ART12082010105651.pdf. Acesso em: 04/07/2017. 64 CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPERIO DO BRAZIL, 1824. Disponível em:

http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1737, acesso em: 31 de jul. 2017.

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adquirido. É, pois, certo que a Constituição não admite que o liberto tornado

cidadão, possa voltar ao cativeiro.65

Assim, a revogação da liberdade pressupunha também a revogação da cidadania.

Possivelmente, esta tenha sido uma alegação utilizada por vários representantes de libertandos

em todo o país, em processos cíveis que visavam a manutenção da liberdade.

O que significava ser cidadão em Alagoinhas e Inhambupe no final do século XIX?

Quais eram os direitos de um cidadão liberto naquela sociedade? Como foi dito, a

Constituição de 1824 reconheceu os direitos civis aos brasileiros ingênuos ou libertos.

Contudo, conforme Mattos, essa cidadania era restrita, até mesmo no direito mais básico de ir

e vir que dependia da sua condição de liberdade. Quando eram confundidos com cativos, os

libertos poderiam sofrer arbitrariedades, caso não comprovassem a sua condição jurídica. A

autora salienta que nascer ingênuo, isto é, sem o estigma do cativeiro e renda suficiente eram

fatores determinantes para a definição do status de cidadão ativo na sociedade escravista

Imperial. Assim, a manutenção da escravidão legitimava as hierarquias sociais, em que os

brancos ricos eram detentores de direitos e privilégios tanto sociais quanto políticos.66

Segundo Chalhoub, os dados do censo de 1872 indicam que “42,7% dos habitantes

do país eram indivíduos livres de cor, logo egressos da escravidão e seus descendentes, pretos

e pardos; considerando-se apenas a população negra, 74% dela era livre”.67 A análise do censo

de 1872 para a província da Bahia indica que pretos e pardos formavam a maioria da

população livre, com 68,5%. Estes percentuais são maiores no município de Alagoinhas,

considerando pretos e pardos na população livre, isto é, 80,9% e, no município de Inhambupe,

onde pretos e pardos somavam 75,8%.68 Dessa forma, a população livre em Alagoinhas e

Inhambupe era majoritariamente de cor. No entanto, mesmo sendo livres e libertos não era

fácil para os homens e mulheres de cor que ali residiam usufruírem da sua condição de

cidadãos, a exemplo de João, cabra, que viu sua condição de liberto e cidadão ser questionada

e revogada judicialmente.

65 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, (Brasil Século

XIX). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 186. 66 MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, pp. 14-

35. 67 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil escravista. São Paulo:

Companhia das Letras, 2012, p. 229 68 Recenseamento do Brazil em 1872, Bahia, p. 316-321; 340-348 e 513. Disponível em:www.ibge.gov.br/.

Acesso em 31 de jul. 2017. As freguesias que formavam o município de Alagoinhas eram: Santo Antônio das

Alagoinhas; Jesus, Maria e José, de Igreja Nova e; Senhor Deus Menino dos Araçás. As freguesias que

formavam o município de Inhambupe eram Divino Espírito Santo de Inhambupe e Nossa Senhora da Conceição

do Aporá. Para uma análise da população do município de Alagoinhas, segundo o censo de 1872, cf. MATOS,

“Alforrias em Alagoinhas”, p. 18-21.

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Não é demais lembrar que o dispositivo da revogação da alforria por ingratidão,

previsto nas Ordenações Filipinas, foi revogado pelo parágrafo 9º do artigo 4º da Lei de 28 de

setembro de 1871.69 No entanto, a revogação da alforria sob outras justificativas ainda era

acolhida pela Justiça. O debate em torno da revogação da alforria por ingratidão mobilizou

juristas como Perdigão Malheiro, Antônio Joaquim Ribas e Lourenço Trigo Loureiro, que a

consideravam inadmissível. Para Malheiro, a alforria era como uma restituição da liberdade e

não podia ser anulada, independente dos motivos. Ribas e Loureiro argumentavam que,

somente os libertos imperfeitos poderiam ter as suas liberdades revogadas.70

A Constituição de 1824 “consagrou a liberdade como um direito natural, só tolerando

a escravidão enquanto uma herança do período anterior, em nome do direito de propriedade

[...]”, garantido pelo artigo. 71 Para o senhor, perder um escravo significava perder um

trabalhador e o capital que ele representava, além de ter seu domínio senhorial questionado.72

Antônio de Azevedo Chaves recorreu à Justiça para manter João, cabra como seu escravo. No

embate entre Chaves e a sua nora, a Justiça lhe garantiu o direito de propriedade, confirmando

o domínio senhorial com base no título de propriedade, isto é, a certidão de matrícula. Após

experimentar a liberdade, ainda que por pouco tempo, João se conformou com o retorno ao

cativeiro? Teria ele, por conta da autonomia conquistada, procurado outros meios para tornar-

se um liberto, como por exemplo, constituir pecúlio e assim adquirir a sua liberdade? Não

temos respostas para essas indagações. Contudo, outros escravizados em Alagoinhas e

Inhambupe formaram pecúlio e recorreram à Justiça para concretizar os planos de alforria, o

que nos faz concluir que as decisões judiciais contrárias aos escravos nem sempre eram

acatadas passivamente por estes.

A formação do pecúlio e o arbitramento

O crioulo Hilário, morador na vila de Inhambupe, maior de 60 anos, escravo de Luisa

Maria do Espírito Santo, foi autorizado por ela a pedir esmolas para formar pecúlio para sua

alforria. Hilário conseguiu doações entre as “pessoas caridosas que se compadeceram de seu

69 Artigo 4º § 9º da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. “Fica derrogada a Ord. liv. 4º, tit. 63, na parte que

revoga as alforrias por ingratidão”. 70 GRINBERG. “Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX”, p. 117 e 118. Libertos imperfeitos

eram aqueles que haviam sido alforriados sob condições. 71 MATTOS. Das cores do silêncio, p. 187. 72 Segundo Conrado, esta era a opinião de alguns deputados que se opuseram à Lei do Ventre Livre de 1871. Cf.

CONRADO, Os últimos anos da escravatura, p. 123.

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cativeiro em idade tão avançada” e entregou tais economias à sua senhora, que lhe prometeu

carta de liberdade em 24 de junho de 1872. A carta seria lavrada após os festejos juninos,

mediante pagamento de 100$000 réis.73 O pecúlio acumulado por Hilário, como já foi dito,

era uma prática costumeira entre os escravos. Conforme Chalhoub, “parecia ser desde muito

tempo a melhor chance de um escravo conseguir a liberdade [...]”.74 A sanção do pecúlio pela

Lei nº 2.040 foi regulamentada pelo Decreto de nº 5.135, de 13 novembro de 1872. O pecúlio

de Hilário estava de acordo com o determinado pelo artigo 4º da Lei de 1871, isto é, havia

recebido esmolas, com o consentimento de sua senhora e devidamente registrada no cartório

da vila do Inhambupe:

Concedo licença eu Luisa Maria do Espírito Santo, a Hilário, cabra de 60 anos de

idade mesmo ainda em bom estado de trabalhar, e [...] rogos lhe farei sua carta de

liberdade por me apresentar cento e cinquenta mil réis, que sendo seu valor de venda

lhe perdoou cinquenta, a vista do que acima declaro [...] pode tirar suas esmolas de

agora até o festejo de São João em junho vindouro[...].75

Para esmolar Hilário precisou do consentimento de sua senhora, porém, para receber

donativos de seus filhos e outras pessoas e para obter valores advindos do próprio trabalho e

economias, não dependia do consentimento de Luisa Maria. 76 O resultado das doações e

esmolas recebidas por Hilário foi entregue a Luisa, cumprindo o que estava previsto no artigo

49 do Regulamento 5.135:

[...] O pecúlio do escravo será deixado em mão do senhor ou do possuidor, se este o

consentir, salva a hipótese do art. 53, vencendo o juro de 6 % ao ano; e outrossim

poderá, com prévia autorização do juízo de órfãos, ser recolhido pelo mesmo senhor

ou possuidor às estações fiscais, ou a alguma caixa econômica ou banco de

depósitos, que, inspire suficiente confiança.77

Apesar da promessa de alforria e de Hilário ter entregado a quantia arrecadada, ele foi

inventariado e adjudicado pelo herdeiro Jesuíno Esmeraldo de Oliveira, filho de Luiza Maria,

que o vendera ao capitão Manuel Pinto de Carvalho por 150$000 réis. Diante de tal situação,

Hilário recorreu à Justiça para “tratar de sua liberdade pelos meios que a lei lhe permite, não

só por já ter feito algum pagamento, como por que está pronto a apresentar o restante da

73 Ação de Liberdade do crioulo Hilário (autor)versus Pinto de Carvalho (réu), Inhambupe. APEB. Seção

Judiciário, classificação 68/2432/06, 1872. 74 CHALHOUB. Visões da Liberdade, p. 147. 75 Ação de Liberdade do crioulo Hilário, fl. 5. 76 Os trabalhos de Xavier e Azevedo ajudaram a entender como os escravos formavam pecúlio para solicitar o

arbitramento. XAVIER. A conquista da liberdade, p. 74; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória

de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas - SP: Editora Unicamp, 1999. 77 Artigo 49 do Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872.

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quantia porque for avaliado”.78 O processo tramitou no juízo municipal da vila de Inhambupe

seguindo o seu rito judicial. Foram nomeados curador e depositário e escolhidos os

avaliadores para proceder ao arbitramento, reiteradamente remarcado. Ora Hilário estava

doente, ora o árbitro escolhido por ele precisava ausentar-se por diferentes razões. Durante a

tramitação do processou houve a tentativa de diminuir o valor atribuído ao escravo por

ocasião do inventário. Hilário foi inventariado pela quantia de 150$000 réis, valor pago pelo

capitão Carvalho, contudo, no arbitramento, o seu preço caiu para 50$000 réis. Como havia

entregado 23$000 réis à sua senhora, àquela altura falecida, Hilário requereu depositar apenas

27$000 réis para saldar a dívida.

Cabe observar que inicialmente, Hilário não solicitou arbitramento, o que só

aconteceu na segunda petição feita ao juiz Municipal de Inhambupe, Cândido Figueiredo, em

31 de maio de 1873, uma vez que, para requerê-lo, o escravo teria que apresentar em juízo, o

dinheiro ou títulos correspondentes a seu preço razoável. 79 À medida que o representante

oferecesse em juízo um valor razoável para indenizar o senhor e, caso ele não aceitasse, era

necessário nomear três árbitros para fazer a avaliação judicial. A escolha desses árbitros

efetuava-se da seguinte maneira:

[...] o representante do senhor - ou ele próprio - indicava uma lista de três nomes,

dentre os quais o representante do escravo escolhia um; o representante do escravo - seu curador - apresentava também sua lista tríplice e a outra parte escolhia um dos

nomes indicados; o terceiro árbitro era indicado pelo juiz e não poderia ser recusado

por nenhuma das partes a menos que se provasse a sua suspeição.80

O advogado de Manoel Pinto de Carvalho, Jacinto Febrônio de Oliveira, baseado no

inventário e no valor pago pelo seu cliente na compra que fizera do escravo, argumentou que

era desnecessária a avaliação “[...] visto como a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, art.

4º § 2º determina que o preço da alforria seja o da avaliação do inventário quando os escravos

tenham sido neles avaliados [...]”.81 Manoel Carvalho utilizou essa manobra legal, pois queria

resolver a situação a fim de minimizar o seu prejuízo, tendo em vista que o libertando estava

em mãos de Pedro Gomes, seu depositário, motivo pelo qual não poderia usufruir dos seus

serviços. Hilário, por sua vez, utilizou-se das estratégias já mencionadas anteriormente, e

78 Ação de Liberdade do crioulo Hilário, fl. 2. 79 NEQUETE. Escravos e Magistrados, p. 86. O Artigo 4º § 2º da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 diz: “O

escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para indenização de seu valor, tem direito a alforria. Se a

indenização não for fixada por acordo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos inventários o preço

da alforria será o da avaliação”. 80 MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis, p. 222 e 223. 81 Ação de Liberdade do crioulo Hilário, fl. 13.

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protelou o máximo possível o seu arbitramento, a fim de diminuir o valor a ele atribuído. A

estratégia logrou êxito, já que o valor do arbitramento foi reduzido a 50$000 réis, portanto,

um terço da quantia pela qual fora arrolado no inventário.

O capitão Carvalho não se conformou com o desfecho da situação e chamou à

responsabilidade o herdeiro Jesuíno Esmeraldo de Oliveira. Jesuíno Oliveira passou a

responder pela causa, contestando não mais o valor atribuído a Hilário no inventário, mas, a

sua proposta de só completar a quantia arbitrada. Hilário retrocedeu e pagou o valor do

arbitramento, talvez porque não quisesse ver o processo se arrastar por um longo período,

uma vez que obtivera a redução do seu preço. No dia 11 de maio de 1874, Oliveira recebeu o

valor da avaliação de Hilário e lhe passou a carta de liberdade.

Naquele contexto do final da década de 1870, os escravos certamente percebiam que

para conseguir a sua alforria, não precisavam, necessariamente, do consentimento senhorial.

Assim como Hilário, diversos escravos utilizaram de variadas formas de lutas, motivados

pelas experiências acumuladas e transmitidas ao longo dos anos por outros cativos. Ademais,

quando acionavam a Justiça, os escravos contavam muitas vezes com a atuação de juízes e

advogados simpatizantes à questão da liberdade, além da solidariedade de pessoas que

estavam em seu entorno e simpáticos à causa abolicionista. Havia também “as relações que

mantinham com as comunidades negras entre os libertos” que fortalecia os cativos para a

luta.82

O reconhecimento do pecúlio também favoreceu o rito sumário da alforria pelo juiz

de órfãos quando da morte do senhor. Este foi o caso se Thomé, crioulo, solteiro, 41 anos,

escravo da finada Anna Joaquina Luna Novais, matriculado no município de Inhambupe, que

recebeu do jurista Antônio Ferreira Velloso, juiz municipal de órfãos de Alagoinhas, sua carta

de liberdade, mediante pagamento de 450$000 réis, preço de sua avaliação no inventário “que

se procedeu, pelo que de hoje em diante gozará de sua liberdade”. 83 Cabe observar que

Thomé, a despeito de ter sido matriculado no município de Inhambupe, recorreu ao juiz de

82 Azevedo destaca a atuação dos profissionais supracitados em ações cíveis de liberdade impetrada pelos

escravos contra seus senhores, desestruturando assim, “a política de domínio senhorial minando as bases da

ideologia que sustentava o cativeiro”. AZEVEDO, Elciene. “Para além dos tribunais: advogados e escravos no

movimento abolicionista em São Paulo”. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs.).

Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas-SP: Editora UNICAMP, 2006, p. 199;

XAVIER. A conquista da liberdade, p.76. 83 Carta de alforria de Thomé, Alagoinhas, 15 de novembro de 1882. 1º Tabelionato de notas em Alagoinhas.

Livro de notas do tabelionato, s/n, 1882, fl. 16v. Ver MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 49.

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órfãos do município vizinho, talvez porque soubesse que ele assumia posição política a favor

da liberdade.84

O rito sumário também foi usado para resolver a situação dos escravos que

pertenciam a condôminos. Em tais situações, o escravo era obrigado a indenizar

individualmente a cada senhor. Em3 de maio de 1884, Claudina, crioula, 50 anos, que

pertencia a um condomínio de senhores, foi alforriada por meio de duas cartas de liberdade

registradas a 14 de maio de 1884, no livro do 1º Tabelionato de notas de Alagoinhas. Segundo

a Lei de 28 de setembro de 1871, art. 4º, § 4º, o escravo que pertencesse a um ou mais

senhores, e fosse libertado por um deles, poderia indenizar os demais no valor que lhes

pertenciam.85 A escrava Claudina recorreu a essa prerrogativa da lei e indenizou em 150$000

réis a Francisca Maria do Espírito Santo e a Manoel Barbosa de Souza, ficando “[...] sujeita a

pagar-nos com o que tiver pelo que lhe conferimos sua liberdade de que gozará de ora em

diante sem mais condição alguma [...]”. Já na segunda carta de alforria, Manoel Ferreira de

Souza, José Joaquim d’Aragão e Josefina Barbosa d’Aragão receberam de Claudina 100$000

réis da parte que lhes cabia.86 De acordo com o Decreto de nº 5.135, artigo 38, para se

proceder ao arbitramento de um escravo de propriedade de um condomínio de senhores, fazia-

se necessário escolher um dos condôminos para representar os demais.87

Em 1884 e 1885, quando os parlamentares discutiam a “questão servil” para a

implantação da lei do Sexagenário, a indenização pela liberdade constituía-se na melhor

forma de respeito ao “direito de propriedade”. Consoante Joseli Mendonça,

[...] Estava no “espírito da lei de 1871” o princípio de que à liberdade deveria

necessariamente corresponder uma indenização. Essa lei, enfim, em todas as formas

de libertação que introduzira, contemplara a indenização: pelo ventre, a prestação de

serviços dos ingênuos; para as demais alforrias, a restituição pecuniária.88

A regra para esse tipo de indenização foi uma realidade até mesmo em vilas distantes dos

principais centros do Império, a exemplo dos processos aqui analisados. Neste sentido, é

interessante dar visibilidade à história da parda Generosa, levada aos tribunais da vila de

Alagoinhas, em 20 de abril de 1877. Generosa era escrava da “interdicta” Mattilde Alves da

84 CHALHOUB. Visões da liberdade, p.108. 85 Artigo 4º § 4º da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871. Esse parágrafo da Lei é complementado com o

seguinte: “Esta indenização poderá ser paga com serviços prestados por prazo não maior de sete anos, em

conformidade do parágrafo antecedente”. 86 Cartas de alforria de Claudina, Alagoinhas, 14 de maio de 1884. 1º Tabelionato de Notas em Alagoinhas,

Livro de Notas do Tabelionato, s/n, 1884, fl. 1v e 3. 87 Artigo 38 do Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872. 88 MENDONÇA. Entre a mão e os anéis, p. 223.

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Silva, tutelada por Innocencio Alves Silva Pereira. De posse de um pecúlio de 350$000 réis,

Generosa acionou a justiça para obter a sua alforria, por meio de uma ação de liberdade,

solicitando que se procedesse ao seu arbitramento e a nomeação de um curador para

representá-la. O senhor José Justino Telles foi o escolhido para o exercício da função.89

A suplicante alegou que talvez a sua avaliação fosse bem menor do que 350$000

réis, pois ela sofria de uma enfermidade incurável desde tenra idade, atestada pelo dr. Antônio

Britto, conforme documento anexado ao processo. A alegação provavelmente diminuiria o

valor que seria estabelecido pelos árbitros em momento oportuno. Tendo em vista que

Innocencio Pereira, tutor de sua senhora, não residia em Alagoinhas, solicitou que fosse

enviada uma carta precatória para o termo de Santo Amaro, a fim de que o mesmo fosse

citado e se fizesse presente na data da audiência que seria designada pelo juiz municipal e de

órfãos, José Maria da Rocha Carvalho.

Generosa requereu o seu arbitramento com base nos artigos 4º da Lei de 28 de

setembro de 1871 e do artigo 56 e parágrafos, do Decreto de 13 de novembro de 1872, que

tratava da alforria do escravo indenizando o senhor por meio de pecúlio constituído, caso

houvesse acordo ou por arbitramento, caso não houvesse consentimento. 90 A suplicante

cumpriu a legislação, oferecendo o valor provável de sua liberdade e fazendo depósito como a

lei determinava.91 Por conta da enfermidade incurável que sofria, segundo declarou, pediu

para que se procedesse na forma do §1º do artigo 4º da Lei 2.040, de 1871, “por morte do

escravo, metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra

metade se transmitirá aos herdeiros, na forma da lei civil”.92

Em meio ao processo de arbitramento, Mattilde Alves da Silva faleceu e seus

herdeiros, sobrinhos ainda menores, representados pela tutora Anna da Silva Pereira,

conferiram-lhe carta de alforria. Generosa solicitou à Justiça a suspensão da ação judicial e o

reembolso do valor de 350$000 réis, que havia depositado em juízo. A despeito de o processo

judicial de Generosa ter transcorrido sem sobressaltos, o fato de ter recorrido à Justiça é um

indício de conflitos na relação que mantinha com a sua senhora. Tais conflitos não parecem

ter se estendido aos herdeiros, o que possibilitou negociação que resultaram em uma alforria

sem ônus e pôs fim à sua ação de liberdade.

89 Ação de Liberdade de Generosa (autora)versus D. Mattilde Alves da Silva Pereira (ré), tutelada por

Innocencio Alves Silva Pereira, 1876. Fórum Des. Ezequiel Pondé, Alagoinhas. Série Judiciário. 90 Artigo 56 do Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872. 91 Artigo 57 do Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872. 92 Artigo 4º § 1º da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871.

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Liberto por abandono

As histórias de escravos que recorreram à Justiça, ainda que possam parecer

repetitivas ao leitor, têm o mérito de dar visibilidade às experiências dos escravizados que se

empenharam de variadas formas para pôr fim ao cativeiro em que viviam, bem como

demonstram as formas pelas quais utilizaram a lei 2.040 para conseguir a liberdade. Miguel,

escravo de Anna Maria Sacramento, viúva de Manoel Muniz Cardoso, acumulou pecúlio em

suas horas de folga nos domingos e dias santos, com o objetivo de conseguir a sua carta de

alforria. Conforme prometido pela sua senhora, seria alforriado logo que adquirisse

1:100$000 réis, quantia pela qual fora avaliado em inventário, valor considerado vultoso para

um escravo na condição de saúde precária em que se encontrava, podendo dificultar o seu

arbitramento.93 O trabalho feito por Miguel no engenho Burahem, propriedade de Anna no

município de Alagoinhas, lhe possibilitou poupar 300$000 réis e dois cavalos. Ademais, o

escravo também possuía roças alugadas, talvez plantando mandioca, fumo ou alimentos de

subsistência. No entanto, contraiu uma grave enfermidade e d. Anna o desamparou, levando-o

a gastar todas as suas economias no tratamento da doença.94 Após consumir as economias

adquiridas em vários anos de trabalho, Miguel precisou contar com a boa vontade de

escravizados, libertos e livres, moradores de várias localidades do município de Alagoinhas,

pessoas que faziam parte de sua rede de sociabilidades para, por meio de empréstimos e

esmolas, ajudá-lo com a sua sobrevivência, pois a enfermidade o impedia de trabalhar, como

atestou o médico Demétrio Manoel da Silva, que o atendeu e lhe doou remédios.

Por meio de empréstimos, esmolas e venda de objetos, Miguel conseguiu reunir

290$000 réis que foram oferecidos a Anna Maria por sua alforria. O valor inicialmente foi

aceito por ela. Todavia, a senhora desistiu de alforriá-lo utilizando-se da prerrogativa de

conceder a liberdade quando e se quisesse. Instaurado o conflito, Miguel não teve alternativa

e recorreu à Justiça. Em sua petição inicial, narrou sua história e apresentou uma relação de

testemunhas, a fim de que fosse avaliado nos termos da Lei de 28 de setembro de 1871.

93 Miguel foi avaliado em inventário por 1:100$000 réis, por volta de 1860, por ocasião do falecimento de

Manoel Martins Cardozo, marido de d. Anna Sacramento, isto é, 16 anos antes de acionar a justiça solicitando

arbitramento. Levando-se em consideração o tempo decorrido e sua condição de saúde quando do arbitramento,

sua avaliação, certamente seria mais baixa, justificativa excelente para depreciar o seu preço. Ricardo Silva

discute várias ações de liberdade anteriores a 1871, em que os escravos buscavam fazer com que os senhores

aceitassem receber a quantia de sua avaliação. Apesar de os períodos serem diferentes, a tabela aprovada por

ocasião da Lei do Sexagenário, serve de parâmetro para estimar o valor mais elevado de um escravo menor de 30

anos, isto é, 900$000 réis, o que, provavelmente, não era o caso de Miguel. Ver: MENDONÇA, Entre a mão e

os anéis, p. 270. 94 Ação de Liberdade de Miguel Muniz Cardoso (autor)versus D. Anna Maria Sacramento (ré). Fórum Des.

Ezequiel Pondé, Alagoinhas. Série Judiciário. Ver: MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 47.

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Contudo, Miguel não conseguiu produzir provas para confirmar o alegado e sua petição de

alforria foi indeferida, talvez porque as pessoas às quais ele procurou para testemunhar não

quisessem se indispor com a sua proprietária.

A história de Miguel é singular, pois possibilita perceber como era possível formar

pecúlio. Enquanto gozava de boa saúde, Miguel trabalhava aos domingos e dias santos,

possuía cavalos e roças alugadas com as quais produzia uma economia própria. Alguns

historiadores interpretam essa concessão dos senhores aos seus escravos como um mecanismo

de controle, uma forma de sustentar o sistema escravista. 95 Tais atividades econômicas

praticadas pelos escravos se, por um lado, ajudavam a diminuir os custos com a escravaria,

por outro, criava expectativas de liberdade, caso de Miguel que possuía roças e lutava para

adquirir sua alforria. Contudo, ao constatar que um acordo com d. Anna não seria mais

possível Miguel acionou a Justiça, com base no artigo 4º da Lei de 28 de setembro de 1871,

que discorria sobre o pecúlio e arbitramento, bem como no artigo 6º, § 4º, que declarava

libertos os escravos abandonados por seus senhores.96 Apesar de não ter citado esse parágrafo

em sua petição inicial, no decorrer do processo Miguel queixou-se de que:

[...] No referido ano de 1867 caiu o suplicante gravemente enfermo, e sua senhora (a

suplicada) bem longe de tomar a seu cuidado o tratamento e sustentação do

suplicante, como por ser esse o seu dever, desamparou-o completamente, e em tais

emergências não teve o suplicante outro jeito senão o de lançar mão do seu pecúlio

para tratar-se, gastando até o último real, vendendo roças e animais que possuía,

visto como a moléstia prolongou, e por falta de um tratamento complicou-se o seu

estado de saúde até o presente.97

Em 7 de abril de 1876, o juiz Pedro Carneiro nomeou o cidadão Manuel Fausto Oliveira como

depositário e Joaquim José da Costa Chaves como curador de Miguel e intimou a suplicada e

as testemunhas para a primeira audiência, marcada para o dia 25 de julho de 1876, que não

aconteceu por conta de ausências “[...] pelo juiz, mandou pelo porteiro apregoar o nome dos

citados, e tendo feito deu fé de não terem comparecido[...]”. Até o término do processo não

ocorreu nenhuma audiência. Em 11 de agosto de 1876, Anna Maria reclamava da lentidão do

processo. Segundo consta nos autos, queixava-se de que a ação se arrastava “[...] desde o dia

28 de abril do corrente ano, como já tinham decorrido 99 dias sem que o referido seu escravo

95 REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São

Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 28-31. 96 Artigo 6º § 4º da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. 97 Ação de Liberdade de Miguel Muniz Cardozo, fl. 2v, grifo nosso.

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por seu curador tenha provado em juízo o alegado em sua petição [...]”. Alegava, também, que

era pobre e vivia na dependência do trabalho dos seus escravos.98

Sua queixa resultou em celeridade na ação, até que o juiz municipal de Alagoinhas, o

dr. Pedro Carneiro, remeteu a causa ao Curador Geral Francisco de Castro Rabello que opinou

“[...]pela improcedência e subsistência da Ação de Liberdade proposta por meio de

arbitramento[...]”. A decisão foi tomada com base em duas razões: a primeira, “[...] a

incompetência do juízo pelo qual foi proposta, visto ser privativo tal processo do Juízo de

Órfãos, conforme determina[va] o Regulamento 5.135, de 13 de novembro de 1872[...]”; e a

segunda justificativa foi “para que tivesse lugar o depósito requerido e se v[iesse] a proceder

ao arbitramento [era] necessário que [se procedesse] na forma do artigo 57 do citado

Regulamento[...]”.99 Este artigo declarava que não poderia requerer arbitramento o escravo

que não exibisse, no mesmo ato em juízo, dinheiro ou títulos de pecúlio, cuja soma não

correspondia a seu preço razoável. O juiz Pedro Carneiro acatou as alegações do Curador

Geral e Miguel teve o seu sonho de liberdade frustrado. Observa-se que algumas sentenças

proferidas em favor ou contra a liberdade em primeira instância era fruto de uma decisão

política dos magistrados que julgavam tais processos. Anna Maria do Sacramento, dona do

engenho Burahem, embora se declarasse pobre, talvez fosse pessoa de poder e prestigio

naquele município.

Miguel não foi o único escravo a alegar abandono dos seus senhores naquele

município. Anna alegou abandono por parte de sua senhora, Amália Joana Othani, desde o

ano de 1879, ocasião em que andava como livre no Hospital da Misericórdia da Bahia. O juiz

Antônio Velloso, então juiz de órfãos em Alagoinhas, aceitou as alegações de Anna e a

considerou livre de toda a escravidão. Ao contrário de Miguel, Anna obteve sucesso em sua

ação judicial, talvez por ter procurado o auxílio de pessoas instruídas para orientá-la sobre a

alforria, conforme ressaltou Matos.100

A lei de 1871 e o questionamento ao domínio senhorial

Era o ano de 1874 quando Cândida, crioula, escrava de Anna Amália de Jesus,

procurou a Justiça alegando maus tratos por parte de sua senhora. Acatada a denúncia,

Cândida foi examinada pela polícia que instaurou “processo crime contra a mesma senhora e

98 Ação de Liberdade de Miguel Muniz Cardozo, fl. 13. 99 Ação de Liberdade de Miguel Muniz Cardozo, fl. 14v. 100 MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 46. Cartas de alforria de Anna. 1º Tabelionato de Notas em

Alagoinhas, Livro de Notas do tabelionato, s/n, 1885, fl. 4 v.

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105

o padre Antônio Lourenço Boaventura pelas inúmeras sevícias nela praticada [...]”. 101 A

crioula também alegou em juízo que possuía pecúlio suficiente para requerer a sua liberdade,

solicitando que fosse nomeado curador para representá-la judicialmente, além de depositário,

solicitou que se procedesse a sua avaliação, juntamente com a do seu filho José, com oito

anos de idade.

O processo de avaliação de Cândida e seu filho teve início no dia 14 de outubro de

1874, e no dia seguinte o juiz municipal de órfãos, Camilo Accioli Silva, julgou o

arbitramento.102 Cabe lembrar, que o § 1º do artigo 7º da Lei de 28 de setembro de 1871,

determinava que os processos em favor da liberdade fossem de rito sumário. 103 O juiz de

órfãos nomeou como curador o regente Jacinto Febrônio de Oliveira que posteriormente

ocupara o cargo de escrivão de ausentes da vila de Inhambupe e, para depositário, o cidadão

Amâncio José dos Santos e designou o dia 15 de outubro de 1874 para a avaliação de mãe e

filho.104 Dado o ritmo sumário da causa, no mesmo dia da petição inicial, Anna Amália de

Jesus foi intimada, e a despeito de não ter sido encontrada, foi citada por meio de vizinhos.

Ainda no dia 14 de outubro foi acionado o curador, tendo procedido ao juramento, conforme

os termos do direito. Os mandados de busca e apreensão foram feitos, primeiro o de Cândida,

conforme relato do oficial de justiça,

[...]às nove horas da noite nesta vila de Inhambupe [...] encontrei no beco das casas

do finado João Meireles, saindo pelo portão, a escrava Cândida, crioula vestida em

trajes e acompanhada de alguns vultos conhecidos, os quais a conduziam com ela

em fuga, em cujo ato me dirigindo a ela apreendi e conduzi com as testemunhas a

casa do cidadão Amâncio José dos Santos, depositário nomeado por este juízo.105

Apreendida em fuga, talvez porque não tivesse expectativa de que fosse ganhar a causa,

Cândida foi levada para o depósito. Em seguida foi feita a apreensão de José, solicitada pela

escrava com a assistência do seu curador e foi declarado pelo oficial Augusto Correia da Silva

Sá que “Anna Amália de Jesus se achava oculta para não entregar o menor José, filho da

libertanda Cândida[...]”. 106 Diante do não comparecimento de Anna Amália, a audiência

aconteceu a sua revelia, sendo ambos avaliados no valor de 500$000 réis. No dia 15 de

101 Arbitramento de liberdade de Cândida (autora) versus Anna Amalia de Jesus (ré), Inhambupe. APEB, Seção

Judiciário, classificação 80/2878/04 – 1874. 102 Carta de alforria de Umbelino, vila de Inhambupe, 18 de março de 1875. APEB. Seção Colonial e Provincial.

Livro de notas nº 16 de Inhambupe, 1875, 47 e v.? 103 Artigo 7º § 1º da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. 104 Documento datado de 30 de agosto de 1884, quando o juiz de direito da comarca de Inhambupe, Cipriano

Almeida Librão informou à presidência da província os funcionários do judiciário com suas respectivas funções.

APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2415, 1851-1889. 105 Arbitramento de liberdade de Cândida, idem, fl. 8v. 106 Arbitramento de liberdade de Cândida, fl. 12v.

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106

outubro de 1874, o dr. Accioli concedeu carta de liberdade judicial a Cândida e a seu filho

José e intimou Anna Amália de Jesus para, no prazo de três dias, resgatar a importância do

arbitramento que se achava recolhida em uma repartição pública.

Na petição inicial, Cândida invocou a Lei de 28 de setembro de 1871, para solicitar o

seu arbitramento juntamente com o do seu filho José, sob a alegação de que possuía pecúlio e

por lei,

[...] tem direito em tal caso, exvi do art. 4º § 2º da Lei de 28 de setembro de 1871,

vem por meio deste, requerer de V. S.ª digne-se nomear-lhe um curador na forma do

art. 58 § 2º do Regulamento de 13 de novembro de 1872 para figurar por sua parte

no arbitramento, para o qual designara dia e hora de conformidade também com o

art. 56 do mesmo regulamento exibe a suplicante no ato o dinheiro de contado

correspondente ao respectivo valor de conformidade também com o art. 57 do dito

Regulamento e como a suplicante tem direito de não separar-se de seu filho menor

de oito anos (Art. 9º ibidem) requer igualmente a avaliação do mesmo [...]. 107

A partir do argumento exposto, Cândida, por intermédio de seu curador José Febrônio,

conseguiu a alforria à revelia de sua senhora. Solicitou e foi atendida pelo juízo de órfãos da

vila de Inhambupe que enviasse carta precatória de diligência citatória para a capital da Bahia,

a fim de notificar a Anna Amália da sentença judicial e de mandar levantar o valor atribuído

pelo arbitramento. Em 22 de outubro de 1874, Anna Amália, representada pelo advogado

João Ferreira Leite, embargou a intimação citatória e a sentença proferida pelo juiz de órfãos,

Camilo Accioli, alegando falta de formalidades na precatória, questionando o tempo utilizado

para cumprir as formalidades legais – 4 dias – e, também, o valor de 500$000 réis, quantia

correspondente à avaliação de Cândida e seu filho José.

Cândida chegou a fazer uma petição solicitando que os embargos não fossem aceitos

por haver passado o prazo, no entanto, não obteve sucesso. Em 23 de novembro de 1874, na

vila do Inhambupe de Cima, José Febrônio, agora procurador da liberta, autuou impugnações

aos embargos, alegando que não havia defeitos na precatória e que esta continha todos os

107Arbitramento de liberdade de Cândida, fl. 2. Os artigos 9º, 56º, 57º, e 58º § 2º do Decreto 5.135 de 13 de

novembro de 1872, estabelecem, respectivamente que: “A mulher escrava, que obtiver sua liberdade, tem o

direito de conduzir consigo os filhos menores de 8 anos (Lei - art. 1º § 4º), os quais ficarão desde logo sujeitos à legislação comum. Poderá, porém, deixá-los em poder do senhor, se este anuir a ficar com eles (Lei - ibid.); O

escravo que, por meio de seu pecúlio, puder indenizar o seu valor, tem direito à alforria. (Lei - art. 4º § 2º); Não

poderá requerer arbitramento, para execução do art. 4º, § 2º da lei, o escravo que não exibir, no mesmo ato em

juízo, dinheiro ou títulos de pecúlio, cuja soma equivalha ao seu preço razoável. No arbitramento figurará por

parte do escravo um curador nomeado pelo juiz. Quanto ao senhor, ou a quaisquer interessados no valor do

escravo, observar-se-á o disposto no art. 38”.

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107

requisitos necessários. Além disso, argumentou que o processo deveria ser sumário e por esse

motivo, não caberia embargos à sentença, somente o recurso de apelação.

Aos 31 dias do mês de dezembro de 1874, por meio de sustentação aos embargos, o

advogado de Anna Amália, pautado pelos artigos e parágrafos da Lei 2.040 e do Decreto

5.135, citados por Cândida em sua petição inicial, contrariou um a um, os argumentos do

procurador, levando o juiz a anular a sentença e, por consequência, sua carta de liberdade e a

do seu filho José. A celeridade da ação, deste modo, prejudicou a defesa da autora, pois levou

a falhas que foram aproveitadas pelo advogado da ré para anular a sentença.

O jurista João Ferreira Leite, procurador de Anna de Jesus, considerou que foram

efetuadas citações em “falso, erradas ou por crassa ignorância ou má fé”. Quando Cândida

solicitou o arbitramento deveria ter em mãos o pecúlio para que fosse apresentado em juízo, a

fim de ser depositado. Segundo o advogado isso não ocorreu, ela apenas citou a lei,

configurando oposição ao artigo 57 do Decreto 5.135, que preconizava: “não poderá requerer

arbitramento, para execução do art. 4º, § 2º da lei, o escravo que não exibir, no mesmo ato em

juízo, dinheiro ou títulos de pecúlio, cuja soma equivalha ao seu preço razoável”. 108 O

advogado alegou também que a libertanda só apresentou o pecúlio após o arbitramento, dando

a entender que ocorreu a liberalidade de terceiros na composição do pecúlio, e para fortalecer

o seu argumento apresentou a decisão do Tribunal da Relação da Corte confirmando a

sentença do juiz de direito de Sabará que foi utilizada como jurisprudência, notificada no

artigo do Jornal O Cruzeiro, de 5 de outubro de 1874.109 O juiz de órfãos de Inhambupe não

justificou a sentença de Cândida e seu filho José pautado no argumento da liberalidade de

terceiros. Em 11 de janeiro de 1875, o juiz Camilo Accioli sentenciou a causa nos seguintes

termos:

[...] Vistos e examinados estes autos, recebo e julgo provados os embargos de fl. 31

opostos à sentença de fl. 18, por sua matéria relevante, e de direito, provado no

ventre dos mesmos autos, para o fim de anular, como anulado tenho todo o presente

processado [...] sem que tivesse sido feita a primeira citação na forma da lei[...]

defeitos da certidão a fl. 4 v. [...] excessos por parte do oficial do respectivo

mandado também de fl. 4, defeitos e excessos que nulificam a diligência procedida bem como as que lhe seguiram, executadas com atropelo e tumultuariamente.110

108 Artigo 57 do Decreto 5.135 de 13 de novembro de 1872. 109 Artigo do Jornal O Cruzeiro, de 5 de outubro de 1874, anexado ao arbitramento de liberdade de Cândida, fl.

67. 110 Arbitramento de liberdade de Cândida, fl. 68v.

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108

Assim, observa-se que o jurista não acolheu a jurisprudência sobre o argumento da

liberalidade de terceiros, considerada por Lenine Nequete como “irracional e monstruosa”.111

Vimos nas seções anteriores a história do escravo Hilário que solicitou licença a sua

senhora para pedir esmolas a fim de constituir pecúlio. Para ser amparado por essa

jurisprudência Hilário só poderia aceitar esmolas para a constituição de parte do pecúlio e

esperar para completar o restante com alguma herança ou com o que, por consentimento de

sua senhora, angariasse com seu trabalho e economias. Se, por ventura, Hilário formasse seu

pecúlio apenas com esmolas, estaria transgredindo o que dispunha o artigo 57º § 1º do

Regulamento, de 13 de novembro de 1872.112 Deste modo, “desde que para a constituição do

pecúlio fosse imprescindível [...] o produto das economias e do trabalho do escravo, tornar-se-

ia letra morta a disposição legal que garante o direito à alforria”.113

A ação de liberdade de Cândida demonstra que o campo do direito não estava

definido a priori, e que cada causa trazia à tona experiências de embates jurídicos distintos.

Em sua contrariedade, o procurador de Anna Amália contestou o artigo 9º do Regulamento,

que tratava dos filhos livres de mulheres escravas. Segundo João Leite, o filho de Cândida

não era ingênuo, razão pela qual ela solicitou a sua avaliação. Portanto, o juízo acolhendo

“essa apelação desse artigo ao menor escravo ou foi uma caçoada imprópria do caso [...] ou

então foi o resultado de supina ignorância”.114 Para além dos argumentos expostos acima, o

procurador ainda destacava que a escrava se fez libertar à revelia de sua senhora. O

arbitramento teria sido feito sem a concordância do valor pela senhora e sem o seu

consentimento. Ademais, foram citadas outras falhas processuais que possivelmente

influenciaram a decisão do juiz municipal de órfãos da vila de Inhambupe, em 11 de março de

1875, de anular todo o processo por conta dos excessos, atropelos e tumultos causados nas

diligências.115

Não é difícil perceber que era desejo de Cândida e das pessoas que formaram a sua

rede de solidariedade, uma ação judicial rápida. Todavia, a agilidade com que ocorreu o

processo terminou prejudicando a autora, fazendo com que algumas medidas essenciais

111 NEQUETE. Escravos e Magistrados, p. 91. 112 De acordo com o Artigo 57º § 1ª do Decreto 5.135 de 13 de novembro de 1872: “não é permitida a

liberalidade de terceiro para a alforria, exceto como elemento para a constituição do pecúlio: e só por meio deste

e por iniciativa do escravo será admitido o exercício do direito à alforria”. 113 NEQUETE. Escravos e Magistrados, p. 93. 114 Arbitramento de liberdade de Cândida, Artigo do Jornal O Cruzeiro de 05 de outubro de 1874, anexado aos

autos do processo, fl. 54 v. 115 Arbitramento de liberdade de Cândida, fl. 69.

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fossem negligenciadas como, por exemplo, atentar-se para o tempo necessário entre uma

petição e outra ou agir corretamente no cumprimento dos mandatos, ou ainda, fazer a primeira

citação como deveria. A celeridade que antes parecia benéfica para a situação de Cândida,

tornou-se desfavorável frente ao resultado obtido em primeira instância. A ação foi para o

Superior Tribunal da Relação que manteve a mesma sentença, anulando as cartas de liberdade

de Cândida e seu filho, “[...] deixou, contudo o direito salvo a mesma escrava para requerer

novo arbitramento[...]”.116

Cândida, por sua vez, retomou a batalha judicial em busca de sua liberdade perante o

juiz municipal e de órfãos, 2º suplente em exercício, o capitão Manoel Alves Ferreira Batista,

requereu – mais uma vez – o seu arbitramento e do seu filho José. O juiz nomeou como

curador o major Theodoro Ferreira Coelho, que solicitou a intimação de Anna Amália de

Jesus para apresentar em juízo os referidos escravos. Quando parecia que os trâmites

correriam normalmente, o 1º suplente, o capitão Tertuliano Carneiro da Silva Ribeiro,

compadre de d. Anna Amália, assumiu “[...] exercício da vara e, sem demora, fez subirem a

sua conclusão os respectivos autos, e desde então jamais permitiu que se pronunciasse o novo

arbitramento[...]”.117

Em 8 de maio de 1877, o curador Capitão Theodoro Coelho autuou uma petição ao

juiz de direito da comarca de Inhambupe, primeiro substituto, Joaquim José dos Reis,

solicitando que se fizesse uma perícia nos livros da Câmara Municipal da vila de Inhambupe,

a fim de comprovar a legalidade, ou não, do juramento do 1º suplente de juiz municipal, o

capitão Tertuliano Ribeiro, pois na ocasião ele afirmou ter tomado posse por procuração,

tendo como seu representante o capitão Manoel Alves Ferreira Batista. Por suspeitar da

ilegalidade de seu exercício no cargo, o curador buscava a sua suspeição pelo fato de ser o

capitão Tertuliano compadre da senhora de Cândida. A perícia realizada pelos tabeliães

Elesbão José de Avelar e Eduardo de Oliveira Dias tinha o objetivo de responder as seguintes

questões:

[...] primeiro, se o termo de juramento que se fizeram ter prestado o primeiro

suplente do juízo municipal capitão Tertuliano Carneiro da Silva Ribeiro se acha[va]

legalmente lavrado; segundo, se nele assinou o vereador da comarca que também se

116 Encontramos documentos referentes a continuação da história da escrava Cândida nas correspondências

enviadas pelos juízes de Inhambupe aos presidentes da província, fragmentados, espalhados nos maços 2413 e

2415. Organizamos por data para contar a luta da crioula Cândida depois da sentença do Superior Tribunal da

Relação. APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2415,

1851-1889. 117 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2415, 1851-

1889.

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110

fizeram presidente interino tenente Victoriano Ferreira Baptista; terceiro, finalmente

se no mesmo termo assinou o referido primeiro suplente ou alguém por ele

competentemente autorizado por procuração, e se consta no mesmo livro”.118

Depois de examinarem o termo de que se tratava,

[...] declararam os ditos peritos que o referido termo não se achava legalmente

lavrado. Quanto ao segundo se achava respondido com o que declarou no primeiro

quesito. Quanto ao terceiro finalmente que nem no dito termo, e nem em seguida se achava lançada a procuração de que tratou o referido termo como era necessário para

prova da veracidade do dito, e por isso são de opinião, que não houve juramento e

nem as solenidades exigidas em direito para a validade desse ato.119

Na audiência de 19 de junho de 1877, o curador Theodoro Coelho queria averbar como

suspeito o juiz municipal e de órfãos, 1º suplente, capitão Tertuliano Ribeiro, por ser

compadre da senhora dos ditos escravos. O suspeito passou vista e indeferiu o termo de

requerimento, dizendo que o major Theodoro não poderia fazer mais nada em favor dos

cativos, pois o mesmo estava demitido do cargo de curador. Depois do acontecido, o capitão

Ribeiro se ausentou da vila, levando consigo os autos do processo, sem passar o exercício da

função como era de lei. Em 9 de julho de 1877, Cândida questionou a demissão de seu

curador ao juiz de direito da comarca, solicitando informações acerca da data em que o juiz

fez a conclusão do arbitramento requerido pelos escravos e se havia nomeado outro curador.

O major Theodoro, por sua vez, julgava-se ainda curador dos escravos por considerar ter sido

exonerado ilegalmente. Ademais, tinha ciência de que o juiz não comparecia à vila. A sua

última audiência ocorrera em 23 de junho daquele ano.120

Em 12 de julho de 1877, o capitão Manoel Pinto de Carvalho encaminhou ao

presidente da província uma representação contra “[...]o ilegal procedimento do 1º suplente de

juiz municipal e de órfãos do termo desta vila de Inhambupe capitão Tertuliano Carneiro da

Silva Ribeiro[...]”, expondo todo o acontecido desde o primeiro processo de arbitramento,

quando em primeira instância, Cândida e seu filho receberam carta de alforria –

posteriormente anulada – e foram residir em casa do capitão Manoel Carvalho, em Salvador,

que até então, era depositário do pecúlio de 500$000 réis que Cândida e seu filho utilizaram

para conseguir a liberdade. Naquela data a soma encontrava-se em poder de Anna Amália de

Jesus, que embora tivesse recebido a quantia, apelou para o Tribunal da Relação. Manoel

118 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2413, 1871-

1881. 119 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2413, 1871-

1881. 120 As informações contidas nesse parágrafo foram extraídas de documentos do maço 2415. APEB. Seção

Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2415, 1851-1889.

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Carvalho acusou o juiz Tertuliano Ribeiro de se achar “[...]sob pressão do vigário desta

freguesia Antônio Lourenço Boaventura, amante de Anna Amália de Jesus, com quem vive

sob o mesmo teto e na mais imoral mancebia[...]”. O capitão ressaltou que somente o

presidente da província poderia atuar diante das circunstâncias, providenciando para que

Anna Amália apresentasse em juízo os escravos que estavam ocultos, sofrendo torturas e

castigos, buscando meios para desaparecer com os cativos ou até mesmo serem vendidos para

um lugar bem distante onde não pudessem achar quem promovesse seus direitos nem

reclamassem a injustiça de que estavam sendo vítima.121

Diante do exposto, o juiz, capitão Tertuliano Ribeiro, em 27 de agosto de 1877, por

determinação do juiz de direito da comarca, promotor público e, por ordem superior do

presidente da província, deveriam, no prazo de cinco dias, fazer diligências e apresentar

Cândida e seu filho José que estavam no serviço da lavoura no engenho Timbozinho, no

termo da vila de Itapicuru,

[...]envidei todos os esforços a fim de serem cumpridas as ordens recebidas. Tive a

satisfação de serem os referidos escravos apresentados a este juízo pela própria

senhora, sem a menor hesitação para proceder-se como me fora ordenado, a um

exame de sanidade na pessoa da escrava que dizia estar seviciada e em cárcere

privado para se lhe obstar o arbitramento de sua liberdade.122

Constituído o juízo pelo 1º suplente Tertuliano Ribeiro, presentes os médicos nomeados para

o referido exame, o delegado e o promotor adjunto, inesperadamente surgiu um grande

número de indivíduos “[...]capitaneados segundo observei, pelo capitão Manoel Pinto de

Carvalho [depositário] e major Theodoro Ferreira [curador], os quais por meio de vozerias e

toda casta de ameaças obrigaram-me a suspender os trabalhos[...]”.123 Em 25 de setembro de

1877, o capitão Tertuliano, ainda no exercício da função de 1º suplente, enviou

correspondência ao presidente da província, solicitando informações com urgência sobre o

requerimento da escrava Cândida, que pedia providências em favor de sua liberdade,

remetendo por cópia o referido requerimento. O 1º suplente, Tertuliano Ribeiro, ficou em

dúvida se atendia a solicitação ou se aguardava a chegada do novo juiz municipal e de órfãos

121 O capitão Manoel Carvalho ofereceu alguns nomes que poderiam testemunhar caso fosse necessário, são eles:

tenente João Cardoso de Araújo, tenente Geraldo Pereira da Rocha, Alferes Francisco José César de Almeida,

Alferes Bento Berillo de Oliveira, Antônio Ferreira Barbosa da Fonseca, João Agrepino de Gouveia Pinto, Pedro

celestino da Silva Pinto e Antônio Pinto Cardoso. APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida

dos juízes de Inhambupe, maço 2415, 1851-1889. 122 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2413, 1871 -

1881, s/n 123 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2413, 1871 -

1881, s/n

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do município, já nomeado, mas que ainda não tomara posse do cargo. Tendo em vista a

urgência das informações, respondeu o juiz Ribeiro: “[...]entro em dúvida se devo prestar

[informação], sendo [que] neste requerimento fui caluniosamente acusado ou se devo

aguardar que assuma o exercício mencionado para satisfazer o que determinou V. Exª no

citado ofício”.124

A história de Cândida e seu filho José demonstram as dificuldades pelas quais

passavam os escravos dos poderosos daquele município. Anna Amália de Jesus, senhora de

engenho, mantinha relações próximas com o juiz Ribeiro, o que a favoreceu no processo. O

arbitramento iniciado em 14 de outubro de 1874 passou pelo Superior Tribunal da Relação e

até 25 de setembro de 1877 não havia sido concluído. As expectativas de liberdade de

Cândida foram reiteradamente adiadas por conta da relação conflituosa com Anna Amália,

que não admitiu ter seu domínio senhorial questionado.125 As fontes nos levam a inferir que

Cândida possuía uma rede de solidariedade que possivelmente a amparou e lhe deu forças

para prosseguir com a causa na Justiça. Contudo, não foi possível acompanhar o desfecho

final de sua luta judicial com Anna Amália.

A filiação desconhecida: a africana Benedicta e o juiz Antônio Ferreira Velloso

Em 15 de abril de 1887, o juiz municipal de órfãos e ausentes da cidade de

Alagoinhas, Antonio Ferreira Velloso, publicou no periódico Alagoinhense, que a escrava

africana de nome Benedicta, com 40 anos, solteira, do serviço da lavoura, matriculada em 8

de agosto de 1872,pelo coronel José Emygdio Leal, na relação número 304,sob o número de

ordem 2.231 da matrícula no município e 76 da relação, foi liberta por força da lei de 7 de

novembro de 1831 e pelo fato de seu senhor não ter “matriculado ultimamente a

escravizada”.126 A cópia da matrícula de Benedicta, anexada à partilha amigável do inventário

124 APEB. Seção Colonial e Provincial. Correspondência recebida dos juízes de Inhambupe, maço 2413, 1871 -

1881, s/n 125 THOMPSON. Costumes em comum, p. 57. 126 O Alagoinhense, Alagoinhas, 28 abr. 1887, nº 275, folha não identificada. APEB. Sessão Colonial e

Provincial.

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de José Emygdio Leal, em 1884, informava que ela era solteira, natural da Bahia, 11 anos e de

filiação desconhecida.127

Consoante Silva, a filiação desconhecida foi um argumento mobilizado pelos

advogados para libertar os africanos ilegalmente escravizados após a proibição do tráfico em

1831, quando se esgotavam as possibilidades contidas nas leis de 1871 e 1885. O argumento

da filiação desconhecida inviabilizava o reconhecimento da condição de escravo, e foi

desenvolvido inicialmente pelo dr. João Marques, na Corte do Rio de Janeiro, transformado

em jurisprudência e utilizado nos tribunais do Brasil afora. A partir de então, cabia ao senhor

provar a posse legal do escravo, e matrículas como as de Benedicta, anexada ao inventário em

1884, demonstravam a ilegalidade da sua propriedade.128 Benedicta certamente foi uma entre

vários africanos ilegalmente escravizados em Alagoinhas e Inhambupe após 1831.

Provavelmente foi batizada pelo vigário sem informação sobre a sua origem para preservar

José Emygdio Leal, representante de uma das famílias mais abastadas do município de

Alagoinhas e proprietário de engenhos no distrito de Igreja Nova.129

Segundo Lenine Nequete, Antonio Velloso foi o primeiro juiz da província da Bahia

a aceitar o argumento da “filiação desconhecida”, em sentença julgada em 10 de julho de

1887.130 Contudo, a publicação da sentença de Benedicta no jornal Alagoinhense data de 15

de abril de 1887, sugerindo que talvez aquela fosse a primeira sentença julgada pelo

magistrado sob o referido argumento. Não é demais lembrar que Velloso militava em favor da

liberdade nas sentenças que proferiu no tribunal de primeira instância. Segundo o jornal o

Alagoinhense, Benedicta não foi matriculada, conforme a determinação da Lei nº 3.270, de 28

de setembro de 1885, que renovou a obrigatoriedade da matrícula com o objetivo de controlar

numericamente a população cativa existente no Império brasileiro. Não foi possível acessar os

autos de sua ação de liberdade, mas, a crer no periódico, seu curador também argumentou que

não havia sido matriculada em 1885.

Discordando de Nequete, Jailton Lima Brito argumentou que o primeiro juiz a

aplicar a Lei de 1831 foi Joaquim Antônio de Souza Spínola, juiz da Comarca de Caetité, vila

do Alto Sertão, que julgou sentença em favor da liberdade do africano Isaac, em 20 de

127 Partilha amigável, 1884. Inventário post- mortem de José Joaquim Leal e D. Josepha de Jesus Leal, Doc. 213,

fls. 15v a 16.Fórum Desembargador Ezequiel Pondé. 128 Sobre a mobilização da lei de 7 de novembro de 1831, cf. SILVA, “Os escravos vão à Justiça”, p. 123-143. 129 Cf. NASCIMENTO, “A família escrava”. 130 NEQUETE. Escravos e magistrados, p. 58.

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outubro de 1885.131 Para Silva, “outros juízes baianos também decidiram favoravelmente aos

escravos assim matriculados [...]” e libertaram africanos importados ilegalmente.132

O juiz Antônio Ferreira Velloso formou-se pela Faculdade de Direito do Recife no

ano de 1859.133 Os Velloso eram uma das famílias mais abastadas de Inhambupe, mas não foi

possível investigar quem eram os pais do juiz Velloso e sua trajetória como advogado.

Também não foi possível mapear sua relação com o coronel Pedro Gomes Leão Ferreira

Velloso, que teve 74 escravos classificados para serem alforriados pelo Fundo de

Emancipação. 134 Chama a atenção a atuação do juiz Velloso em vários processos de

escravizados no município de Alagoinhas e os embates com proprietários escravistas e

autoridades locais, sendo visível sua militância pela liberdade.

Elciene Azevedo argumenta que nos anos finais da escravidão a ação de juízes e

advogados simpatizantes à causa da liberdade, contribuiu para minar o domínio senhorial.135

Segundo Brito, na província da Bahia três juízes de direito se destacaram na militância em

favor da liberdade dos escravos: Amphilophio Botelho Freire de Carvalho, em Salvador;

Spínola, em Caetité e, Antonio Velloso, em Alagoinhas. Segundo Brito, o juiz Velloso

envolveu-se em conflitos com outras autoridades e escravocratas locais, ao solicitar ao coletor

das Rendas Gerais de Alagoinhas a relação com todos os escravos africanos matriculados no

município e outra com os escravos maiores de 60 anos, a fim de cumprir as leis de 1831 e de

1885, conferindo a liberdade aos que assim tivessem direito a ela.136

De acordo com Brito, já em 1872 o juiz Velloso atuava em defesa dos escravos,

citando a ação de arbitramento em que o ex-escravo Luiz Nepomuceno foi vendido pelo ex-

senhor, Abílio Pessoa de Andrade Campos, apesar de ter sido alforriado pelo juiz. 137 No

entanto, apesar da militância em defesa da liberdade, Velloso era também um escravocrata.

131 BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: 1870 – 1888. Salvador: CEB, 2003, p. 58. 132 Sobre filiação desconhecida ver também: SILVA, “Os escravos vão à justiça”, p. 150; SANTANA NETO.

“Alforrias nos termos e limites da Lei” p. 99; MATOS. “Alforrias em Alagoinhas”, p. 54; BARBOSA, Hellen

Laianne Pires. “Os caminhos para a liberdade: estratégias, conflitos e querelas no fundo de emancipação em Alagoinhas (1871 – 1888)”. (Trabalho de Conclusão de Curso em História, Universidade do Estado da Bahia,

2016), p. 51 – 56. Sobre os africanos livres cf. BANDEIRA, Florence Afonso. “Entre o cativeiro e a

emancipação: a liberdade de africanos livres no Brasil (1818-1864)”. (Dissertação de Mestrado em História,

Universidade Federal da Bahia, 2002), p. 36; REIS, “A família negra”, pp. 127-146. 133 MARTINS, Henrique. Lista Geral de todos os bacharéis e doutores que têm obtido o respectivo grau na

Faculdade de Direito do Recife desde sua fundação em Olinda, no ano de 1828, até o ano de 1931. 2ª edição,

Recife: Typ. Diário da Manhã, 1931, p. 6. 134 REIS. “A família negra”, p. 256-258. 135 AZEVEDO. “Para além dos tribunais”, p. 199. 136 BRITO. A abolição, p. 259. 137 BRITO. A abolição, p. 261-262.

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Segundo Brito, em um telegrama enviado por ele ao presidente da Província, em 23 de agosto

de 1887, noticiando a alforria de 13 escravos, informou que havia libertado quatro escravos de

sua propriedade, entre os quais um sexagenário e outro por filiação desconhecida.138 Como se

vê, Velloso era não apenas um escravocrata, mas adquiriu ou herdou escravos ilegalmente

traficados após a lei de 1831. Sua militância em favor da liberdade dos escravos era

oportunista e suas sentenças dirigidas aos seus desafetos, a exemplo da família Leal? A

análise de outros processos pode ajudar a elucidar sua posição.

Em 10 de setembro de 1886, o casal José e Rita, ambos com 44 anos, com uma filha

ingênua, escravos de Pedro Gomes de Carvalho Novais, morador de Araçás, distrito de

Alagoinhas, solicitaram a inclusão de seus nomes para serem libertos pelo Fundo de

Emancipação, pois tinham um pecúlio de 100$000 réis e enquadravam-se nas disposições do

Decreto 5.135, de 13 de novembro de 1872 para serem contemplados por este dispositivo

legal. Porém, eles não foram libertos por esta via, antes, o juiz Velloso, à revelia de Pedro

Gomes, alforriou Rita sem que houvesse tramitado e julgado qualquer ação civil no

judiciário. 139 O Juiz justificou a sua decisão “[...] visto que como foi ela ultimamente

matriculada como de filiação desconhecida, assim, pois, poderá desde já a dita escrava Rita

entrar no pleno gozo de sua liberdade”.140 Essa decisão não agradou ao senhor de Rita, que

por meio de ofício à presidência da província, em 7 de setembro de 1887, acusou o juiz de

cometer irregularidades e abuso de poder, afirmando que a alforria concedida era irregular,

não tinha efeito jurídico e nenhuma validade legal.

Pedro Gomes relatou ainda que os ditos escravos foram contemplados para serem

libertos pela 7ª cota do Fundo de Emancipação distribuído para o município de Alagoinhas.

Contudo, o dr. Antônio Velloso excluíra o nome de Rita da lista, consequentemente deixando-

o sem a escrava e sem a indenização prevista. Isso era inaceitável para os senhores, pois

significava abrir mão de seu direito à propriedade. Ele também alegou que o juiz não estava

agindo da mesma maneira que procedeu com outros senhores do município, como por

exemplo, com o escravo Constantino, de João Paulo do Nascimento, que também fora

matriculado com a declaração de filiação desconhecida, no entanto, fora liberto com o

dispositivo do Fundo de Emancipação. Pedro Gomes também denunciou que foram libertos

138 BRITO. A abolição, p. 262. 139 APEB. Seção Colonial e Provincial. Judiciário (Escravos: Assuntos). 1873 – 1887, maço, 2897. Brito também

analisou este caso, cf. BRITO, A abolição, p. 261. 140 APEB. Seção Colonial e Provincial. Judiciário (Escravos: Assuntos). 1873 – 1887, maço, 2897.

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escravos solteiros – Francisca e Januária – em detrimento de Rita e José que eram casados e

com filhos ingênuos livres, que estavam de acordo com as disposições legais.

O juiz Velloso continuou julgando favoravelmente causas sob o argumento da

filiação desconhecida, favorecendo a causa da liberdade em Alagoinhas. Joaquim Ferreira

Moura, morador no engenho Jacaré, situado na freguesia de Igreja Nova, distrito de

Alagoinhas, em 9 de setembro de 1887, acionou a justiça por meio de uma ação de

escravidão, autuando uma petição, opondo-se à sentença proferida pelo juiz Velloso. Após

tomar ciência de que seus escravos Julião e Marcelino foram declarados libertos pelo juiz de

órfãos de Alagoinhas “sob o fundamento de se acharem os mesmos escravos matriculados

com filiação desconhecida e não se conformando o suplicante com semelhante ato, que manda

citar aos ditos libertos” com base no artigo 19 do Decreto nº 4.835, de 1º de dezembro de

1872.141 Julião havia requerido a sua liberdade por ter sido matriculado com filiação ignorada,

de acordo com o julgado na “[...] relação da Corte pelo acórdão de 3 e de 17 de maio do

corrente, declaro pelo presente livre o referido escravizado Julião, o qual poderá desde já

entrar a gozo pleno de sua liberdade [...]”.142

O juiz municipal suplente, major Francisco de Souza Dantas nomeou curador Jayme

Lopes Villas Boas que prestou juramento em 17 de setembro de 1887. O advogado do tenente

coronel Joaquim Moura, Francisco de Souza Dias, argumentou que seu cliente era legítimo

possuidor de Julião e Marcelino, pois herdara os referidos escravos de seu sogro, o major João

de Lima Valverde, falecido, e seu direito de propriedade sobre os réus nunca havia sido

questionado. As testemunhas arroladas pelo advogado de Moura foram os capitães Manoel

Fausto Pereira de Oliveira e Antônio Henrique de Lima Valverde, além de Inocêncio Pereira de

Oliveira e José Apolinário de Argolo Ferreira, certamente eram pessoas de prestígio econômico e

social em Alagoinhas.

O tenente coronel Moura também apresentou certidão de compra e venda do escravo

Marcelino, crioulo, tentando provar que ele era filho da escrava Ignes. Para atestar a

maternidade de Julião convocou outras testemunhas por meio de correspondência enviada

para Ouriçangas, em 15 de outubro de 1887. Em resposta, José Amaro dos Santos afirmou

“conheço o escravo Julião, cabra que V. Sª possui por herança do finado seu sogro[...]” e

141 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura (autor)versus os escravos Julião e Marcelino (réus), 1887,

Seção Judiciário, Fórum Ezequiel Pondé. Alagoinhas, fl 2. Matos também analisou este processo, cf. MATOS.

“Alforrias em Alagoinhas”, pp. 53-57. 142 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, fls. 9 e verso.

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ainda “conheci Maria, mulata, brasileira, mãe do dito seu escravo Julião, cabra, e de outros

filhos que estão cativos[...]”. Assim como José Amaro, os demais responderam confirmando a

versão do autor do processo de que, apesar de terem sido matriculados com a declaração de

filiação desconhecida, os escravos eram filhos de mães brasileiras, portanto, com a condição

jurídica de escravos pelo ventre.143

Nas alegações finais, o advogado de Moura respaldou os seus argumentos nas leis de

1871 e 1885, contestando a decisão do Dr. Antônio Velloso de conceder liberdade por filiação

desconhecida. Segundo Dias, a lei de 1871, “em nenhuma de suas disposições, quer da lei,

quer dos regulamentos se estatuiu que fosse considerado livre o escravo cuja filiação deixasse

de ser mencionada pelo seu possuidor, declarando este não o conhecer” e ainda quanto

A nova lei de 28 de setembro de 1885 no seu artigo 1º exige que na nova matrícula

se declare a filiação – se for conhecida – (palavras da lei) e se estabelecendo casos

de liberdade como o de não ter feito no prazo marcado a competente matrícula, não

compreende entre esses casos o de não ser conhecida a filiação. 144

O advogado ressaltou o direito de propriedade como “indiscutível e irrecusável ante os

princípios de direito”, os favores do direito não podiam chegar a tanto, a ponto de conceder a

liberdade. Ele ainda afirmou que o juiz Velloso não observou o que preceituava o direito nas

causas de liberdade: “sem que ao menos houvesse mandado ouvir o A[utor], senhor dos réus

para defender-se” e ainda que “por um simples despacho declarar libertos os mesmos réus”.145

Em defesa de Julião e Marcelino, o curador Jayme Villas Boas, argumentou: “não

provada a maternidade escrava, não há escravo”. E como provar a maternidade? Segundo o

curador, só com o registro de batismo deveria ser comprovada a filiação e não por meio de

testemunhas como tentou fazer o autor. Em razão disso, a ação deveria ser julgada

improcedente, além do que, deveria ser considerada nula também “porque quando se quiser

chamar a escravidão mais de um indivíduo, embora sejam todos irmãos deve-se propor a ação

dirigidamente a cada um deles”. O autor propôs uma ação conjunta quando deveria ser

independente, logo era nula.146 Ademais, o curador destacou que só poderia existir a filiação

desconhecida para os africanos escravizados antes da lei de 1831 e, só a estes se referia a lei

de 1885, “quando no art. 1º falando da filiação acrescenta: se for conhecida, porque se assim

143 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, fl. 29. 144 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, ibidem, fl. 23v. 145 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, fl. 24. 146 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, fl. 37, Ibidem fl. 39.

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não for interpretada a lei, chegar-se-á ao absurdo de que todos podem, dando o seu rol para

matrícula perturbar o estado livre de quem quer que for”.147

As leis emancipacionistas de 1871 e 1885 foram interpretadas de várias maneiras à

luz dos argumentos de cada uma das partes interessadas. Para Julião e Marcelino importava

que a ação fosse considerada improcedente, a fim de garantir a manutenção da liberdade

concedida pelo juiz Velloso, sob o argumento de filiação desconhecida. Como já foi dito, a lei

de 7 de novembro de 1831 declarou livres todos os escravos vindos de fora do Império e

impôs penas aos importadores dos mesmos.148 Segundo Silva, na década de 1880 os escravos

passaram a contar com a solidariedade e ajuda do movimento abolicionista que promovera a

liberdade de muitos deles, fazendo uso da legislação disponível, a exemplo da lei de 7 de

novembro de 1831. Os abolicionistas utilizavam o artigo 1º da referida lei e muitos africanos

importados ilegalmente conseguiram a liberdade por meio de ações judiciais inclusive na

Bahia, a exemplo do que ocorreu em Alagoinhas com a escrava Benedicta cuja ação foi

julgada por Velloso. À primeira vista, o posicionamento de Velloso, conforme Brito, fora

oportunista – militando em favor da liberdade dos escravos, utilizando a lei de 1831 – e

hipócrita – possuía escravos adquiridos no período da ilegalidade do tráfico. Contudo, creio

que é preciso compreender melhor as especificidades das relações políticas envolvendo as

famílias abastadas de Inhambupe e Alagoinhas para melhor discernir o posicionamento do

juiz, o que não foi possível no âmbito desta pesquisa.

Em Inhambupe, município de origem da família Velloso, não parece ter sido

frequente ações de liberdade sob o argumento da filiação desconhecida.149 Jorge, preto, 22

anos, solteiro, escravo de João Calasans de Figueiredo, foi matriculado no distrito de Aporá,

em 7 de junho de 1887, sob número de ordem da matrícula anterior 399, com filiação

desconhecida, motivo que mobilizou o escravo Jorge a acionar a justiça, por meio de ação

sumária de liberdade, alegando:

147 Ação de escravidão de Joaquim Ferreira Moura, fl. 37. 148 Lei de 7 de novembro de 1831. Disponível em http://www2.camara.leg.br/: Acesso em 22 de abril de

2018.Sobre a luta empreendida nos tribunais pelos africanos que foram importados ilegalmente depois de 1831 e

seus descendentes para que fossem reconhecidos como “africanos livres”, cf. MAMIGONIAN, Beatriz G. “O

direito de ser africano livre: os escravos e as interpretações da lei de 1831”. In: LARA, Silvia H.; MENDONÇA,

Joseli Maria Nunes (orgs.). Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas-SP: Editora

UNICAMP, 2006, p. 130 – 131. 149 Marília de Jesus Souza estuda, em seu Trabalho de Conclusão de Curso, a família escrava em Inhambupe na

primeira metade do século XIX. Em comunicação oral feita por ocasião do Simpósio Escravidão e liberdade nos

sertões da Bahia: Alagoinhas, Inhambupe e Catu, século XIX, informou que a família Velloso batizou e casou

inúmeros escravos na década de 1820 a 1830.

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1º que brasileiro só pode ser escravo, tendo nascido de ventre escravo; 2º que o A

nasceu no Brasil; 3º que sua filiação é desconhecida; 4º que não sabendo quem seja

a mãe do A (documento nº 1 certidão de matrícula) a presunção jurídica é que o A

não é escravo: porque a liberdade sempre [...]sendo desconhecida a filiação do

A[utor], dar a ele ser incluído na classificação dos expostos, que a lei os considera

livres...150

Em 2 de setembro de 1887, Antônio Calmon de Britto, juiz de órfãos de Inhambupe, nomeou

Gustavo de Caldas Brito como curador para representar o escravo em seu processo de ação de

liberdade, e como depositário Manoel Estanislau de Sousa. O objetivo de Jorge era provar que

a sua filiação era desconhecida, portanto, incluído como exposto. No entanto, apesar de ser o

autor responsável pelo ônus da prova, ao contrário, foi o réu quem protocolou duas

testemunhas que confirmaram que Jorge era filho de Cirilla, escrava da esposa do falecido

José Correia Sampaio e fora vendida ao capitão Pedro Xavier de Souza, sogro do réu. João

Calasans herdara Jorge, escravo do capitão Xavier de Souza, por ser cabeça do seu casal.

Será que Jorge, de fato, não sabia quem era a sua mãe? Talvez por ter conhecimento

de que a lei de 1831 estava sendo mobilizada por advogados daquele município quis adotar

esta estratégia para conquistar sua liberdade. Por ocasião da inquisição das testemunhas, o

curador de Jorge, o tenente coronel Britto, não contestou as informações, e após a conclusão

do interrogatório ele deu “o processo por encerrado e que nada tinha a alegar mais nem provar

além da intenção que milita a favor do seu curatelado a liberdade, a declaração de filiação

desconhecida” (sic).151 Jorge não foi feliz em seu intento e em 10 de novembro de 1887, o

juiz de Inhambupe, Antônio Calmon de Britto, julgou improcedente a sua ação de liberdade e

remeteu o processo ao Tribunal da Relação de Salvador. O processo passou a tramitar no

Tribunal, até que no dia 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, Jorge tornou-

se um homem livre.

Assim, para muitos escravizados de Alagoinhas, Inhambupe e do Império do Brasil,

a Lei de 28 de setembro de 1871 possibilitou a conquista da alforria. Assim, ausência de

matrícula, legalização do pecúlio e arbitramento foram alguns dos instrumentos legais

mobilizados pelos escravos de Alagoinhas e Inhambupe para conseguirem a liberdade a partir

da Lei de nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Este não foi um caminho fácil, uma vez que

nem todos os que recorreram à Justiça foram vitoriosos, mas, certamente, logrou os seus

êxitos, conforme demonstramos nesta pesquisa.

150 Ação de liberdade de Jorge (autor) versus João Calasans de Figueiredo (réu), Inhambupe. APEB. Seção

Judiciário. Classificação 30/1054/10, 1887, fl. 2. 151 Ação de liberdade de Jorge, fl. 13.

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CONCLUSÃO

Nesse trabalho analisamos como a Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, foi

mobilizada por escravos, libertos e senhores municípios de Alagoinhas e Inhambupe nas

últimas décadas da escravidão. Adicionalmente, discutimos as alforrias tecendo algumas

reflexões das vivências dos escravizados no processo, destacando aquelas adquiridas pelas

vias judiciais, especialmente por meio da lei de 1871. Antes, porém, buscamos entender o

contexto socioeconômico da região, destacando como funcionava a economia e quem era a

população dessas localidades.

Detectamos por meio das fontes que as atividades econômicas exercidas na região

que determinava a sobrevivência da população eram a agricultura e a criação de animais.

Destacava-se a lavoura de subsistência, sendo o excedente comercializado nas feiras locais e

circunvizinhança. A criação e negociação de animais eram favorecidas por conta da existência

da “Estrada das Boiadas” que interligava a região ao norte da província da Bahia percurso

para a província do Piauí. Vale ressaltar a relevância da estrada de ferro em Alagoinhas,

contribuindo para o desenvolvimento econômico e demográfico da região.

A análise do recenseamento de 1872 permitiu traçar o perfil demográfico dos

escravos nos municípios aqui estudados que, possuíam uma população majoritariamente livre,

sendo que os cativos de Inhambupe formavam 12,8% da população e em Alagoinhas

correspondiam a 17,3%. A massa livre formava a maioria da população economicamente

ativa, sugerindo que os municípios não dependiam exclusivamente da mão de obra escrava.

No que se referem ao gênero, os dois municípios apresentaram um perfil equilibrado entre

homens e mulheres. Dentre os poucos estrangeiros, destacamos uma maior presença de

africanos tanto para um quanto para o outro município. E no que diz respeito à cor,

sobressaíram-se os pardos como maioria da população para essas localidades.

Analisando as ações de liberdade e escravidão e outras fontes encontradas para

Alagoinhas e Inhambupe, percebemos que os cativos acionaram as autoridades judiciais para

mobilizar a Lei 2.040 vislumbrando caminhos para conquistar a liberdade. A ausência de

matrícula, a legalização do pecúlio, o arbitramento e Fundo de Emancipação configuraram-se

em novas possibilidades utilizadas pelos escravizados para enfrentar os seus senhores nos

tribunais. Embora a legislação tivesse sido criada para atender às aspirações senhoriais, não

podemos perder de vista que ela atendeu aos interesses dos escravos na consecução de alguns

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direitos. A Lei 2.040 determinou a obrigatoriedade da matrícula dos escravos, mas muitos

senhores não cumpriram a determinação legal, deixando de matriculá-los em tempo hábil,

alegando motivos de saúde, moradia em regiões distantes ou por ignorância da lei. Por sua

vez, os cativos aproveitavam-se dessa brecha e solicitavam na justiça a sua liberdade,

baseados no Decreto instituído pela Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871.

A referida lei preconizava que para acionar a justiça o escravo deveria possuir um

pecúlio, o que era possível fazer a partir de seu trabalho, legados, doações e heranças. Para

isso, eles contavam com agenciamento de pessoas simpáticas à sua causa, parentes, amigos e

uma rede de solidariedade que lhes fornecia auxílio financeiro e muitas vezes os acoitavam

em ocasiões de fuga. Com a legitimação do pecúlio e do arbitramento, direitos costumeiros

anteriores à lei de 1871, os escravos tiveram ampliados o seu poder de barganha e de

negociação diante da intransigência senhorial, conseguindo muitas vezes reverter o processo

de avaliação por meio de expedientes que não agradavam os senhores, a exemplo da história

de Hilário, do município de Inhambupe, abordada neste trabalho. O fundo de emancipação

também foi importante para a consecução de manumissões nos municípios estudados e,

constituiu-se em mais um caminho para a conquista da liberdade.

A investigação sobre as cartas alforrias de Alagoinhas e Inhambupe, por sua vez,

revelaram algumas histórias de alforriados que, mobilizando a Lei 2.040, acionaram a justiça

para conseguir a liberdade, seja por possuírem pecúlio, para solicitar arbitramento, por causa

do fundo de emancipação, ou por terem sido abandonados pelo senhor. No entanto, as fontes

revelaram que não somente os escravos utilizavam a referida lei para conseguir seus intentos,

os senhores também autuavam ações de escravidão na justiça. Enfim, a Lei 2.040 foi

mobilizada tanto por escravos que a utilizavam como caminho para conquistar a liberdade,

quanto por senhores que buscavam por meio dela a manutenção do cativeiro, conforme foi

demonstrado neste trabalho.

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ARQUIVOS E FONTES

FONTES MANUSCRITAS:

ARQUIVO PÚBLICO DA BAHIA – APEB

Seção Colonial e Provincial:

Correspondências da Câmara Municipal de Alagoinhas, maços 1241 - 1242.

Correspondências da Câmara Municipal de Inhambupe, maços 1318 - 1319.

Correspondências de Juízes de Alagoinhas, maços 2226 - 2227.

Correspondências de Juízes de Alagoinhas, maços 2410 - 2416.

Série Escravos: Assuntos, maços 2885 - 2887 (fotograma 889)

Série Escravos: Assuntos, maços 2888 - 2900.

Seção Judiciário:

Ações de liberdade de Alagoinhas e Inhambupe.

Livros de Notas de Inhambupe.

Seção Legislativo:

Posturas da Câmara de Alagoinhas.

Posturas da Câmara de Inhambupe.

Seção Colonial e Provincial:

Jornal O Alagoinhense, Alagoinhas 17 e 28 de abril de 1887.

FÓRUM DES. EZEQUIEL PONDÉ

Fundo Judiciário, Série Ações Cíveis 1860 - 1887.

FIGAM/CEDOMA – FUNDAÇÃO IRACI GAMA

Ata de instalação da Câmara Municipal de Alagoinhas, 1853

Ata da Câmara de Alagoinhas 1875.

1º TABELIONATO DE NOTAS DE ALGOINHAS – BAHIA (Tabeliã Valnísia Oliveira

de Souza Calazans)

Série Livros de Notas do Tabelionato, 1871 - 1888.

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