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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA -UDESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT
MESTRADO EM TEATRO
MELIZE ZANONI
DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVR A NAS CENAS
DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO
DE ROBERTO BIRINDELLI
FLORIANÓPOLIS
2008
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MELIZE ZANONI
DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVR A NAS CENAS
DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO
DE ROBERTO BIRINDELLI
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso
de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa
Poéticas Teatrais.
Orientador: Prof. Milton de Andrade Leal Jr, Dr.
FLORIANÓPOLIS
2008
AGRADECIMENTOS
Ao PROMOP, Programa de Bolsas de Monitoria de Pós-Graduação da Universidade do
Estado de Santa Catarina, pela Bolsa concedida a mim no primeiro ano do curso, que me
permitiu realizar a pesquisa da qual essa dissertação representa um primeiro resultado;
Ao professor Milton de Andrade Leal Jr., orientador da pesquisa, pelo suporte na construção
do trabalho;
Aos Professores Valmor Nini Beltrame e José Ronaldo Faleiro, pelos ensinamentos, apoio e
estímulo;
Aos atores Julio Adrião de A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de
Circo Pequenos Empreendimentos e Roberto Birindelli do espetáculo Il Primo Miracolo, da
Cia do Bebê, pelas entrevistas e pela disponibilidade;
À Alessandra Vannucci, diretora do espetáculo A descoberta das Américas, pelos textos
enviados;
À minha família, pelo apoio e amor incondicional;
À Profa. Beatriz Ângela Cabral, supervisora da Bolsa de Monitoria de Pós-Graduação, pelos
ensinamentos e pela amizade;
Ao amigo Ivo Godoi, pelo apoio e amizade;
Aos funcionários da biblioteca do CEART-UDESC, pela paciência e dedicação;
À Mila, funcionária do Programa de Pós-Graduação da UDESC, pela competência e amizade;
Aos amigos da turma de 2006, do Curso de Mestrado em Teatro da UDESC, pelas trocas
constantes.
Penso que o teatro se faz mais vivo quando um elemento questiona sempre o outro. O movimento põe em questionamento a imobilidade, e a imobilidade o movimento. O texto questiona o silêncio, e o silêncio o texto; esta é certamente a importante função política do teatro, independentemente de posições ideológicas. Heiner Müller
RESUMO
Esta pesquisa investiga em que dimensão a formalização de procedimentos
provenientes do teatro-solo de linha física, no qual a cena é determinante do texto falado,
oferece caminhos concretos para um problema específico da arte teatral: a relação
gestualidade - palavra. Para a verificação das hipóteses e problematização do tema desta
pesquisa, foram analisados dois trabalhos apresentados por grupos brasileiros que possuem
como base para sua dramaturgia os monólogos escritos pelo ator e dramaturgo italiano Dario
Fo: A descoberta das Américas, representado por Julio Adrião, dirigido por Alessandra
Vannucci e produzido pelo Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos
do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo, representado e dirigido por Roberto Birindelli, da Cia
do Bebê de Porto Alegre. A pesquisa está centrada na análise de alguns elementos que
constituem as partituras gestuais destes espetáculos e sua relação com o texto, tais como:
repetição, fragmentação, quebras, descrição, criação de sentido, corporificação do texto e suas
relações intertextuais.
Palavras-chave: gestualidade, palavra, dramaturgia, ações.
ABSTRACT
This research investigates in which dimension the formalization of the procedures
from solo theater of physical line, in which the scene determines the spoken text, offers
concrete ways to a specific problem in the performing arts: the gesture-speech relation. To
check the hypothesis and problems of the theme of this research two works presented by
Brazilian groups that have as base for their dramaturgy the monologues written by the Italian
actor and dramaturg Dario Fo were analyzed: A descoberta das Américas, presented by Julio
Adrião, directed by Alessandra Vannucci and produced by the production team Leões de
Circo Pequenos empreendimentos from Rio de Janeiro and Il Primo Miracolo, presented and
directed by Roberto Birindelli, of the Cia do Bebê from Porto Alegre. The research focuses on
the analysis of some elements that constitute gestural score of these spectacles and their
relation to the text, such as: repetition, fragmentation, breaks, description, sense creation,
textual embodiment and its intertextual relations.
Keywords: gesture, speech, dramaturgy, actions.
ÍNDICE DE FIGURAS
FIG. 01 Gestos - Julio Adrião em A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção
Leões de Circo Pequenos Empreendimentos............................................................................ 14
FIGS. 02 e 03 Posturas – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, da Cia do Bebê........... 16
FIG. 04 Alga Marinha - Julio Adrião em A descoberta das Américas................................... 46
FIG. 05 Gestual – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................ 58
FIG. 06 Gestual – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo ................................................. 58
FIG. 07 Jogo de Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................ 72
FIG. 08 Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas......................................... 73
FIG. 09 Oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo............................................... 74
FIG. 10 Mães/oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................... 74
FIG. 11 “Costura dos Índios” – Julio Adrião em A descoberta das Américas....................... 81
FIG. 12 Arrumando os órgãos – Julio Adrião em A descoberta das Américas...................... 83
FIG. 13 Linha – Julio Adrião em A descoberta das Américas.............................................. 85
FIGS. 14 e 15 Gestualidade – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo............................... 87
FIG. 16 Caricatura/ Índio – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................. 91
FIG. 17 Menino-Jesus – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo ...................................... 91
FIG. 18 Pausa – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................. 103
FIG. 19 Mãos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................................104
FIG. 20 Pés – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................................... 110
FIG. 21 Gestos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................. 110
FIG. 22 Retirantes (1944) - Cândido Portinari ..................................................................... 112
FIG. 23 Enterro na Rede (1944) - Cândido Portinari ........................................................... 113
FIG. 24 Criança Morta (1944) - Cândido Portinari ............................................................. 113
FIG. 25 Menino - Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................ 117
FIG. 26 Pérola - Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................. 121
FIG. 27 Julio Adrião em A descoberta das Américas........................................................... 133
FIG. 28 Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................................ 133
FIG. 29 Crítica de Bárbara Heliodora – Jornal O Globo de 27 de outubro de 2005 ............ 179
FIG. 30 Crítica de Fausto Wolff – Jornal do Brasil de 05 de fevereiro de 2006 .................. 180
FIG. 31 Crítica de Macksen Luiz – Jornal do Brasil de 26 de outubro de 2005................... 181
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO
1.1 De histriões, bufões e giullari: a gestualidade teatralizada ................................................ 01
1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot ............................................................ 11
1.3 A situação ........................................................................................................................... 18
1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público ......................... 23
1.5 O riso inteligente: o prólogo............................................................................................... 32
1.6 O ator – narrador................................................................................................................. 35
2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UM A
ABORDAGEM DOS ESPETÁCULOS A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS E IL PRIMO
MIRACOLO
2.1 O pöer nano que descobriu as Américas ............................................................................ 42
2.2 Mistério bufonesco: a alegoria ........................................................................................... 47
2.3 A mímica moderna e a estética do movimento................................................................... 53
2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação............................................................................ 59
2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il
Primo Miracolo....................................................................................................................... 67
3. O CORPO SUBLINHADO : A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO
3.1 A narrativa do corpo: repetição, quebras, descrição e criação de sentido na
construção das ações em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo.............................78
3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em
A descoberta das Américas ......................................................................................................97
3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra
de Portinari ............................................................................................................................ 104
3.4 O ponto de encontro: a construção da corporeidade em A descoberta
das Américas e Il Primo Miracolo ........................................................................................114
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 140
APÊNDICE ........................................................................................................................... 146
Apêndice I – Entrevista concedida por Roberto Birindelli de Il Primo Miracolo ................. 147
Apêndice II –Entrevista concedida por Julio Adrião de A descoberta das Américas ........... 158
ANEXO .................................................................................................................................. 167
Anexo I – Textos inéditos de Alessandra Vannucci de A descoberta das Américas ............ 168
Anexo II – Trechos de Críticas sobre o espetáculo Il Primo Miracolo ................................. 175
Anexo III – Críticas de jornais sobre o espetáculo A descoberta das Américas.................... 178
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa investiga os principais elementos que surgem da relação corpo-
dramaturgia em dois espetáculos encenados no Brasil: A descoberta das Américas (2005),
representado por Julio Adrião, com direção de Alessandra Vannucci, do Núcleo de produção
Leões de Circo Pequenos Empreendimentos do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo (1992),
representado por Roberto Birindelli, da Cia do Bebê de Porto Alegre, espetáculos que
encenam textos do italiano Dario Fo (1926 -), que se configurou como um dos dramaturgos
mais encenados do mundo, sendo reconhecido por seu trabalho distinto no que diz respeito à
comunicação gesto-palavra.
Precisamente por sua dificuldade de permanência na memória histórica, a
gestualidade se empobrece nos relatos, no que diz respeito ao evento teatral, e a palavra acaba
alcançando uma melhor forma na análise da cena. Alicerçado na imediatez da comunicação e
do efêmero da vivência festiva, o teatro é um feito complexo resultante da combinação de um
conjunto de elementos heterogêneos, e que só em sua síntese, através da representação,
adquire sua plenitude.
Enquanto na obra literária as personagens e as ações “virtuais” (e o mundo
imaginário em que se encontram inseridas) dependem das palavras, no teatro as palavras
dependem das personagens e da ação real construída. Já não são as palavras a base das quais
se constituem as personagens ou as ações, mas estas que constituem aquelas.
Desde Aristóteles se tem pretendido erigir o texto literário no conteúdo essencial
da arte dramática, mas entender o teatro fundamentalmente como texto de palavras, significa
limitar e reduzir o alcance da arte cênica e fracionar sua especificidade.
O específico do espetáculo teatral reside na comunicação condicionada pelo lugar
e tempo em que se produz, e em cada obra existe a constante luta de uma técnica que se quer
fazer repetível, ou que é repetível, e o efêmero que pode ser visto apenas no momento
presente, como a gestualidade e seus impulsos correspondentes.
Se até o século XIX o teatro não mediu esforços para reforçar a credibilidade da
palavra como suporte da razão, a partir do século XX, com a renovação da tradição corporal, a
palavra perdeu a sua clássica transparência como um meio inocente a serviço da representação
da realidade.
Ceder alguns de seus privilégios ante o auge das tecnologias da imagem, não quer
dizer que a palavra tenha deixado de ocupar um lugar fundamental que dificilmente perderá
dentro da comunicação humana. A era da eletrônica, da imagem, das telecomunicações, mas
também da reivindicação do corpo e das identidades, exige a reconsideração da palavra frente
a gestualidade, a luz de novos contextos, apesar de que sempre estará relacionada a antigos
conceitos fundadores.
O objetivo principal desta dissertação é estudar as relações entre matrizes e
partituras textuais e matrizes e partituras corporais, discutindo as relações entre gestualidade
e palavra escrita e corporificada.
Dario Fo, cujos textos e obras ajudarão a alimentar as reflexões desta pesquisa,
apreendeu as matrizes do ritmo narrativo e da arte de inebriar os ouvidos, sentado ao lado de
seu avô na carroça em que vendia verduras e contava fábulas para angariar clientes. Menino
criado à beira do Lago Maggiore, ajudava com suas pequenas mãos e imaginação arredia a
remendar as redes de pesca ouvindo estórias de pescadores e contadores de histórias, que sem
saber, se utilizavam de modelos medievais e renascentistas em sua narrativa.
Criado nos braços da narrativa oral onde o texto original desaparece e se
transforma em um texto inédito a cada recontar, e praticamente obriga o público a interagir,
Fo aprendeu a entender os fatos locais e adaptá-los às situações e às reações de cada público
ouvinte para vender seu peixe: suas estórias fantásticas.
Como as estórias possuíam apenas roteiros passados oralmente de um para outro,
Dario Fo prestou atenção no que justamente fazia a diferença nas estórias contadas: a
gestualidade. A gestualidade vinha da busca de clareza, vivacidade, frescor, ritmo e energia,
cujo principal objetivo era atingir diretamente o público.
Da época medieval, Fo traz os giullari , seus textos, e suas irreverências, e da
commedia dell’arte que tem nas veias, Fo reaproveitou seus zanni e seus procedimentos,
atualizando-os em espetáculos contemporâneos.
A partir daí, Dario Fo construiu uma teatralidade própria fundada nos gestos, na
mímica e na capacidade de dar vida sozinho a uma estória repleta de personagens.
E foi através da convivência com as estórias de loucos, de pescadores, de
mascates e de fabuladores, que Fo construiu o seu imaginário e aprendeu as matrizes de seu
teatro: a crítica social, a comunicação direta com o público, a improvisação, a teatralização de
fatos reais, a clareza do gesto, a hipérbole e o paradoxo, a importância da gestualidade e do
ritmo da fala.
A relação estabelecida entre os textos e as obras de Dario Fo, gestualidade,
mímica, palavra e ritmo (cerne de seu teatro) e a maneira distinta com que Fo constrói as
dramaturgias de seus monólogos, servem como base para as reflexões a cerca da
corporalidade da palavra nos dois espetáculos encenados no Brasil. Os textos de Dario Fo,
suas pesquisas teórico-práticas contidas em seu Manual Mínimo do Ator (1998), os vídeos de
alguns de seus espetáculos e pesquisas sobre sua obra publicadas no Brasil, são as fontes
secundárias utilizadas nesta pesquisa. As entrevistas com os atores e diretores de A descoberta
das Américas e Il Primo Miracolo e os vídeos dos espetáculos se configuram como as fontes
primárias deste trabalho.
No primeiro capítulo, estão presentes os elementos que saltam dos textos escritos
de Fo para as montagens analisadas e que são de fundamental importância para uma
abordagem da relação gestualidade - palavra nos espetáculos analisados: a situação, a
gestualidade dos cômicos antigos, o improviso, a gestualidade e o grammelot, o ator -
narrador, a simultaneidade, o prólogo.
No segundo capítulo, elementos como as metáforas e alegorias, a figura do pöer
nano, a mímica, o espaço vazio e o jogo de oposições, alimentarão as reflexões sobre os
espetáculos analisados.
Como a obra escrita de Dario Fo impulsiona a criação por parte dos atores através
de suas estórias “incompletas”, nas quais os atores necessitam criar códigos de gestualidade
para comunicar-se diretamente com o público, foram escolhidos alguns elementos que serão
analisados dentro da relação corpo-dramaturgia nas duas montagens e que farão o recorte do
olhar sobre estas duas obras no terceiro capítulo: repetição, fragmentação, quebras, descrição,
criação de sentido. Neste capítulo, se encontram os elementos distintos como a pausa e a
construção de estruturas de ações através de imagens (como as imagens de Portinari utilizadas
por Roberto Birindelli) e os pontos de encontro entre a comunicação gesto – palavra nos dois
espetáculos.
Em termos metodológicos, as entrevistas e as análises dos espetáculos estão neste
trabalho como fonte primária para a problematização do tema e verificação das hipóteses,
apontando caminhos para a reflexão principal: os elementos identificados na relação
gestualidade - palavra nestas duas obras, que uma vez formalizados, podem representar
elementos inovadores ou uma herança de continuidade no teatro brasileiro.
1
1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO
1.1 De histriões, bufões e giullari1: a gestualidade teatralizada
Em teatro, o gesto precisa ser reinventado, do
mesmo modo como se reinventam as palavras. É
necessário aprender a partir da realidade, não
das convenções da realidade. (FO, 2004: 269)
As matrizes populares das fábulas grotescas e irônicas perpassam toda a obra e os
estudos de Fo em relação ao gesto e a palavra. Os estímulos do racconto somaram-se com o
gosto pelos puppi (bonecos) e seus movimentos, e aos meios expressivos vocais que utilizou
quando passou a trabalhar contando histórias na rádio.
Com o Teatro de Revista, Fo aprendeu o processo coletivo de criação do
espetáculo, as alegorias, os personagens que exprimem a lógica do povo, e ao trabalhar com a
música, combinou mímica, pantomima e ritmo musical.
Falar de espetáculos que possuem como base a dramaturgia de Dario Fo, é falar de
uma gestualidade intrínseca em sua obra escrita e que transparece no texto do espetáculo em
qualquer frase de palavras. A dramaturgia de Fo se configura como uma escritura de ações
pelo modo distinto como é codificada, pois suas palavras são absolutamente dependentes da
cena.
[...] acreditamos que o gesto e a gestualidade são sempre a salada, o
acompanhamento, enquanto o prato principal, a carne, é sempre a palavra. Inculcam-
nos esta idéia desde o jardim de infância. Desde então corrigiram-nos a pronúncia de
cada palavra, e nunca o gesto que poderia substituí-la ou apoiá-la. O gesto é
relegado até mesmo no trabalho do ator. (FO, 2004: 62)
1 Palavra italiana, traduzida para o português como jogral. Os jograis eram atores-contadores de estórias, que se utilizavam da mímica, do canto e da dança e atuavam durante o medioevo e o renascimento.
2
A obra literária ou dramática e a obra teatral assumem dois caminhos diferentes,
tanto em sua materialidade (palavra escrita diante da voz e do corpo em ação) como em seus
modos de recepção (a abstração e a imaginação que supõe a leitura, diante da presença física
do ator e do espectador); mas mesmo um texto dramático dito “aberto”, fragmentário ou
circular, capaz de problematizar os limites do sistema da representação verbal, como as
dramaturgias de vanguarda ou mesmo a obra de Dario Fo, podem ser objeto de uma
representação de maneira tradicional. É claro que isto entra em contradição com os princípios
estéticos destas obras, pois possuem de modo implícito uma crítica radical da representação
tradicional, convertendo a cena em um espaço de desestabilização das bases da representação.
Este teatro de linha física alicerçado nas bases do teatro corporal dos farsantes de
feira e dos cômicos da commedia dell’arte, com seu despojamento cênico, volta a ser o centro
da cena no final dos anos sessenta, nos quais a reformulação de um teatro gestual se afina
perfeitamente com a proposta de Dario Fo, a qual se constitui imersa na situação dramática
com sua ação vocal e corporal também herdada de uma mesma geração artística de pedagogos
da mímica moderna e da pantomima.
Deste modo, a escritura composta por Fo, inevitavelmente, interfere fisicamente
na concepção de espetáculos que se propõe a seguir, mesmo que em parte, a dramaturgia
proposta por ele. Esta escritura está estruturada em uma linha física baseada na ação, sendo
portanto, difícil desenvolver a partir dela, um espetáculo que não siga esta mesma linha física
de partituras traçadas e recortadas para servir a uma determinada ação não naturalista, baseada
na mímica e na ação vocal.
[...] o conceito de ‘escritura’, que implica uma condição performativa como prática
real, substitui o de ‘texto’ como estrutura já realizada. Nesta qualidade processual e
performativa do texto como ato de escritura, estrutura em construção e exercício de
estruturação antes que estrutura, a obra se emancipa de sentidos únicos, discursos
ideológicos e leituras impostas desde pressupostos não artísticos, ao mesmo tempo
que conquista para si uma realidade específica não isenta de uma qualidade política
em tanto que ação. (CORNAGO, 2005:13, tradução nossa)2
2 [...] el concepto de ‘escritura’, que implica una condición performativa como práctica real, sustituye al de ‘texto’, como estructura ya realizada. En esta cualidad procesual y performativa del texto como acto de escritura, estructura en construcción y ejercicio de estructuración antes que estructura, la obra se emancipa de sentidos únicos, discursos ideológicos y lecturas impuestas desde presupuestos no artísticos, al mismo tiempo que conquista para sí una realidad específica no exenta de una cualidad política en tanto que acción.
3
Como a escritura de Fo nasce da ação pensada e repensada, fazendo um caminho
contrário que nasce da cena para desembocar nela própria, a ação pensada na ação, e não a
partir da palavra, reflete na cena novos elementos que não estão presentes em textos que se
configuram como textos literários escritos para a cena e não na cena.
Portanto, para se propor uma análise de espetáculos que nascem deste tipo de
dramaturgia contada e recontada, e somente depois transcrita, como é o caso dos espetáculos
A descoberta das Américas3 e Il Primo Miracolo4, é necessário empreender uma análise
baseada nos elementos da cena e que também constituem a pesquisa e o imaginário do autor.
Como projeção desta concepção ativa da escritura, se levanta uma idéia
correspondente da leitura, entendida, antes que como produto, como atividade em
processo de realização na cena comum da comunicação artística, uma leitura como
praxis capaz de sentir a vibração interna que articula um texto, de voltar a
experimentar o estremecimento que guiou sua criação material, reencontrando-se
com o autor no prazer compartilhado da criação [...]. (CORNAGO, 2005:14,
tradução nossa)5
Como se nutre do improviso e de alguns códigos do antigo teatro para compor
suas obras, os elementos do teatro medieval e seus personagens histriônicos inspiram a
escritura de Fo e merecem um olhar atento, pois inspiram principalmente os seus monólogos,
em se tratando dos procedimentos utilizados pelos “profissionais” da narrativa medieval,
como os giullari.
Apesar da noção de teatro como atividade estruturada ser praticamente inexistente
na sociedade medieval, seus bufões, giullari e histriões compõe uma noção estrutural da
gestualidade do medioevo e renascimento.
O texto literário medieval, tanto do gênero épico ou lírico deixava uma grande
margem de liberdade a adaptadores e executantes, de maneira que podia ser lido, declamado,
3 Com tradução de Julio Adrião e Alessandra Vannucci, do monólogo Johan Padan a la descoverta de le Americhe de Dario Fo, o espetáculo é uma produção do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro) com direção de Alessandra Vannucci e atuação de Julio Adrião. 4 O espetáculo que é dirigido e representado por Roberto Birindelli da Cia do Bebê (Porto Alegre), também foi traduzido pelo próprio ator. O texto original de Dario Fo é o monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino. 5 Como proyección de esta concepción activa de la escritura, se levanta una idea correspondiente de la lectura, entendida, antes que como producto, como actividad en proceso de realización en la escena común de la comunicación artística, una lectura como praxis capaz de sentir la vibración interna que articula un texto, de volver a experimentar el temblor que guió su creación material, reencontrándose con el autor en el goce compartido de la creación [...].
4
recitado de modo dialógico ou representado cenicamente segundo a ocasião e as condições
puntuais (festivas, litúrgicas, comemorativas, etc) e até mesmo conforme as disponibilidades
técnicas, materiais e humanas do momento e do lugar. Portanto, em se tratando do teatro
medieval, e até certo ponto do teatro renascentista, falar do texto literário para analisar seus
procedimentos, assim como dos textos de Fo, é acometer-se de um mal entendido, apesar de
que vale sempre destacar que a commedia dell’arte nunca foi o único gênero dominante na
Itália e na Europa no final da Idade Média e Renascimento. Existiam também autores como
Pietro Aretino (1492 - 1556) e Giordano Bruno (1548 - 1600), entre tantos outros, apesar de
alguns textos deste último, filósofo e amante das artes, assim como os textos de outros autores
medievais e renascentistas, terem sobrevivido apenas nos relatos.
Os procedimentos do teatro medieval e renascentista, cerne dos estudos de Fo, não
residem no estudo do texto literário, mas requerem mais que nenhum outro, uma investigação
de seus componentes espetaculares, plásticos e representativos. “Essa tradição popular dos
guitti [cômicos ambulantes] ofereceu a Fo uma técnica codificada que ultrapassa o conceito
de texto-espetáculo”. (VENEZIANO, 2002:124)
Há duas vertentes no teatro medieval em que se manifestam as formas
espetaculares dedicadas ao fazer rir, e nas quais podemos encontrar procedimentos que podem
servir de ponto de partida para a análise dos elementos presentes na escritura das cenas dos
espetáculos que serão analisados: por uma parte a tradição clássica de que são continuadores
os mimos, histriões e giullari , autênticos “profissionais” da diversão em suas mais diversas
bifurcações, e por outra, a tradição festiva popular. Em ambas beberam os gêneros cômicos
que só ao final do medioevo começam a por-se por escrito.
Até fins do século XIV e princípios do XV, quando o humanismo redescobre
obras de Plauto (250 a.C - 184 a.C) e Terêncio (185 a.C - 159 a.C), os únicos indícios claros
do espetáculo antigo durante o medioevo são ostentados pelas habilidades corporais dos
histriões, e por isso, duramente perseguidos sem trégua, e de certa forma, sem êxito, pela
instituição eclesiástica.
A atividade jogralesca é o verdadeiro fio condutor da teatralidade medieval graças
à universalidade de suas técnicas básicas: a mímica, a dança, a música, etc, permitindo aos
seus artífices uma grande mobilidade não só corporal, como geográfica e social.
Os jograis se caracterizarão pelo nomadismo e pela multiplicidade de sua oferta
lúdica, aspectos que lhes facilitarão a possibilidade de transpor fronteiras e de acudir a
qualquer evento festivo. Podemos os encontrar nas festas populares, mesclando-se nas
celebrações religiosas ou alegrando “criticamente” os cortesãos. A multiplicidade da oferta
5
lúdica e a capacidade de “ler” e transmitir criticamente, é sem dúvida, o que mais deve
chamar a atenção de Fo, pois requer uma multiplicidade de habilidades presentes em um só
ator, que se apóia em seu próprio corpo e gestual para contar as histórias e aludir aos eventos
propostos.
Numerosas, variadas e contraditórias são essas figuras históricas, ou essas profissões
marginais e divertidas, que, durante séculos, ficaram conhecidas na Itália como
giullari : bufões, menestréis, trovadores, histriões, mimos, saltimbancos, cantastorie,
acrobatas, atores ambulantes, cuspidores de fogo, prestidigitadores, palhaços,
mágicos, bobos da corte. Com certeza, na maioria das vezes, o giullare reunia em si
mais de uma dessas funções, sobretudo em épocas muito remotas, quando ele
poderia, ao mesmo tempo, contar e cantar histórias, fazer malabarismos e compor
seus próprios versos. (VENEZIANO, 2002: 168)
Mas apenas os giullari que cantavam a vida dos santos não “queimariam no fogo
do inferno” segundo clérigos e cortesãos. O ator (mimo, jogral, histrião) é jogado à condição
marginal e infamante, pois ao mesmo tempo que lhe são concedidos os espaços das ruas e
feiras, os espaços sem hierarquias, nos quais lhe dão uma estética propriamente popular e de
gestual grande e teatralizado, lhe negam um espaço específico; e, ao mesmo tempo que lhe
condenam a palavra à censura, lhe condenam a pura corporeidade e a gestualidade com que se
exibe. É duplamente censurado, posto que sua atividade resulta impudica, e por tanto,
improdutiva, pois frente à gestualidade móvel do histrião (signo de efemeridade), estão os
gestos suspendidos e solenes (signo da eternidade) dos atributos da sacralidade, da divindade
ou do poder soberano.
Com a renovação da retórica no ensino das escolas urbanas, durante o século XII,
comportará uma revalorização do gesto, mas moderado do bom orador, em contraposição à
gesticulação excessiva do histrião.
Quando o corpo passa a converter-se em objeto de reflexão, a eloqüência do gesto
é assumida por monges e figuras religiosas, outorgando-se ao mimo e ao jogral um lugar de
ação (no qual serão chamados a atuar em solenidades oficiais) e uma função social que os
levará a um paradoxo: reprimir, por vezes, os jograis que possuíam, a habilidade crítica e, por
outro, a legitimar seu status cultural.
Nas manifestações teatrais durante o medioevo, pouco importava a
verossimilhança do gesto em relação à palavra, mas a forma clara de se aludir ao episódio a
6
ser contado. O gesto não inspirava emoção, mas muitas vezes, ilustrava a palavra e, portanto,
se limitava a corroborar o que se estava dizendo.
Já no período quinhentista, o gesto introduz novos significados: já não é um signo
que redunda ao que expressa a palavra, mas se estabelece uma interação entre o código verbal
e o gestual que permite “imitar” mais ajustadamente a atitude do personagem. A interpretação
já não se limita a ser suporte do texto, mas começa a ter entidade própria a partir do momento
que não se cita a ação, mas se realiza. É neste momento que o espectador começa a captar a
emoção do ato.
O conceito de verossimilhança, como a autoridade de Aristóteles, era invocado
como argumento pelos partidos opostos; a relação entre arte e vida constituiu
questão importante no debate quinhentista. Os críticos desse período geralmente
interpretavam o conceito clássico de mimese como semelhança com a natureza, o
que levava, em sua forma mais extrema, à literalização do tempo e do espaço
dramáticos conforme pode ser vista em Castelvetro. [...] A partir da idéia de que um
personagem, se quisesse dar a mais cabal ilusão da realidade, deveria seguir idéias
aceitas de como pessoas de determinada idade, classe e profissão se comportam, o
conceito naturalmente evoluiu para uma doutrina de tipos físicos, consistentes ao
longo de cada obra e até de obra para obra. Ao final do século [XVI], escritores
como Guarini começavam a desafiar essa idéia opondo-lhe a verossimilhança:
qualquer que fosse a idéia geralmente acatada de um tipo, os indivíduos na natureza
nem sempre agem em concordância com esse tipo, de sorte que estilos e tons
contrastantes talvez representem melhor a realidade e, portanto, sirvam melhor à
ilusão dramática. (CARLSON, 1995:51)
A partir do século XVI inicia-se uma tímida vontade de se por em manifesto a
atitude e a emoção que o intérprete impõe ao texto. Para isso, a palavra teve de abandonar um
pouco a sua tendência narrativa e empenhar-se na emotividade, até chegar no jogo de
oposições iniciado com a commedia dell’arte (em que o gesto não acompanha
necessariamente a palavra de maneira lógica) e tão estudado posteriormente por Vsevolod
Meierhold (1894 - 1940), encenador e ator russo em sua biomecânica, por Antonin Artaud
(1896 - 1948) e outros.
Os procedimentos “inconscientes” dos fabulatori da região do Lago Maggiore
(Itália Setentrional), observados por Fo, como a sátira presente nas fábulas paradoxais,
grotescas e irônicas, ganham outros elementos importantíssimos como os pontos de referência
7
que traz dos giullari medievais, “pais” dos fabulatori, e dos tipos fixos da commedia dell’arte,
seus Zanni6 e sua teatralidade fundada no gesto.
Fo pesquisará a figura do giullare e trará para seus monólogos sua maleabilidade,
suas músicas, seus ritmos, sua gestualidade, escrevendo sua obra-prima Mistero Buffo, uma
coletânea de textos-solo, na qual fala diretamente sobre a atividade dos giullari medievais.
Oh, gente, venham aqui que tem o giullare! Giullare sou eu, que salta e pirueta e
que vos faz rir, que zomba os poderosos e vos faz ver como são empolados e cheios
de si os orgulhosos que circulam a fazer guerras onde nós somos os explorados, e os
faço desfigurar, lhes tiro a tampa e ...pffs...se esvaziam. Venham aqui que é a hora e
o lugar que eu me faça de palhaço, que vos ensine. Faço um saltinho, faço uma
cançãozinha, faço as brincadeiras! (FO, 1999:73, tradução nossa)7
O que atrai o interesse de Fo é aquele jogral que trabalha para o povo, não aqueles
que eram propriedade de senhores ou que iam trabalhar nos palácios em troca de dinheiro.
Por outro lado, os elementos que atraem em relação aos bufões do palácio são as
formas da ironia e do grotesco com que satirizavam o rei e seus cortesãos, que riam de si
mesmos e se sentiam felizes por serem democráticos.
[...] a commedia dell’arte que interessa a Fo é aquela zanesca, quase obscena e
agressiva do início, combinada à de uma segunda fase, em que a dramaturgia evolui
rapidamente para uma forma plautina de comédia perfeita (até 1600), com a
ampliação do repertório, que incluía também obras ‘sérias’. (VENEZIANO,
2002:112)
6 Zanni eram apelidos dados pelos venezianos aos camponeses provindos do Vale do Rio do Pó, principalmente
da região de Bérgamo. Deriva-se do nome Gianni, Giovanni ou Zanonne. Os Zanni, segundo Dario Fo, foram
levados à falência pelo capitalismo, pois a economia conseguia se desenvolver devido à restauração do trabalho
escravo, e os produtos alimentícios chegavam aos mercados de toda a Itália pela metade do preço, levando os
Zanni a mais completa miséria. Os Zanni são tipos fixos que estão ligados diretamente às figuras do povo, como
os criados, esfomeados, andarilhos, malandros. 7 Oh, gente, venite qui che c’é il giullare! Giullare son io, che salta e piroetta e che vi fa ridere, che prende in
giro i potenti e vi fa vedere come sono tronfi e gonfi i palloni che vanno in giro a far guerre dove noi siamo gli
scannati, e ve li faccio sfigurare, gli tolgo il tappo e ...pffs... si sgonfiano. Venite qui che é l’ora e il luogo che io
faccia da pagliaccio, che vi insegni. Faccio il saltino, faccio la cantatina, faccio i giochetti!
8
A gestualidade em Fo, se estrutura não só com o estudo do teatro medieval e da
commedia dell’arte, mas, como diz Neyde Veneziano em seu estudo A cena de Dario Fo: o
exercício da imaginação (2002), o modelo oitocentista, as farsas e os procedimentos do teatro
político também influenciaram suas obras.
A gestualidade dos giullari , a gestualidade exacerbada, teatral em todos os
sentidos da palavra, e a gestualidade do mimo apoiada não no que diz a palavra em si, mas na
sua essência, é o que traz Fo para sua escritura.
A essência do giullare, figura do povo, ou que serve ao povo, é a figura mais
presente em seus monólogos. Seja um Jesus-menino com características absolutamente
humanas ou quase “animais”, sujo e mal-educado, como em Il Primo Miracolo di Gesù
Bambino (1970), no qual Jesus faz seu primeiro milagre para impressionar os amigos, seja
um malandro fanfarrão, que se safa da Inquisição entrando em uma das caravelas de
Colombo, e que realiza todo o tipo de “pequenos milagres” para sobreviver a naufrágios,
tempestades, índios e espanhóis, como em A descoberta das Américas (1991).
A gestualidade do giullare medieval, assim como o giullare di Fo, é a
gestualidade da emergência: da emergência da fome, da sobrevivência, da malandragem. É
uma gestualidade trágica e cômica, mentirosa e verdadeira, cruel e pura, portanto, paradoxal
no sentido mais profundo do termo.
A grande oferta lúdica dos atores antigos que faziam de tudo para sobreviver,
inclusive contar histórias fantásticas de forma fabuladora e com diversos tipos de
manifestações, como acrobacias, canto e dança, é o que as escrituras de Fo exigem de um ator
contemporâneo.
Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo
sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o
próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua
arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores,
instrumentos musicais etc).8
8 Texto escrito e enviado a autora via e-mail por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas,
peça representada por Julio Adrião e produzida por Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro),
vide anexo.
9
As marionetes também tem papel fundamental na construção da gestualidade da
commedia dell’arte e de toda a tradição do teatro popular, assim como na construção da
gestualidade em Fo.
O autor de um texto excepcional sobre o assunto, Roberto Leydi, nota que grande
parte da mímica e do gestual das máscaras origina-se da articulação motora de
marionetes e fantoches. [...] constatei isso ao ensaiar um andar particular, incluindo
uma seqüência de meias voltas, no qual o súbito afastamento de uma perna e seu
giro ao contrário é a imitação clássica da marionete. (FO, 2004: 44)
Acreditando que a maior estupidez de um intérprete está em não estudar
“conscientemente” os impulsos que o leva a ser bem sucedido em determinadas passagens,
em não fazer o caminho inverso para descobrir os insights capazes de serem codificados e
repetidos, de modo a usar os estereótipos e as convenções de modo eficaz, fabulador e com
ritmo, Fo traz o movimento dos puppi (marionetes), pois a Itália possui uma grande tradição
no teatro de bonecos, tanto dos puppi como dos burattini (fantoches e bonecos de luva), para
lembrar que toda ação pode ser analisada de forma codificada. Para se mover uma marionete
com perfeição e dar-lhe alma, é necessário também conhecer suas articulações, sua estrutura,
seus padrões de movimento possíveis, suas combinações, suas partituras.
A partitura física de ações, apesar de ser um procedimento antigo de estruturação
das ações, é um conceito relativamente novo no que diz respeito ao ator humano no teatro,
mas a marionete desde tempos muito remotos já inspirava estudos detalhados de movimentos
e ações, transmitidos na relação mestre-aprendiz, que poderiam ser menos ou mais
convincentes, para cada tipo de discurso e emoção a ser suscitada.
Como instrumento de estruturação da cena, a partitura funciona como um
esquema diretivo que se baseia em pontos de referência e matrizes de criação, pontos de apoio
para uma elaborada e complexa relação entre dramaturgia do corpo, do texto de palavras e da
própria cena.
O conceito de partitura não é o mais adequado para se relacionar ao teatro de Fo,
pois sua escritura possui um modo distinto de construção, que apesar de possuir estruturas
fixas e repetidas é menos rígido e encadeado, mas é aplicável às ações dos espetáculos
analisados nesta pesquisa, pois a construção da cena em A descoberta das Américas, feita por
Julio Adrião e Alessandra Vannucci, e em Il Primo Miracolo, feita por Roberto Birindelli, é
realizada a partir da construção e montagem de partituras, como veremos mais adiante.
10
No teatro medieval, e principalmente, no teatro renascentista, a noção de
estruturação da cena e da improvisação existia, mas não como elementos passíveis de
codificação e sistematização consciente em forma de partitura. A gestualidade estruturada a
partir do recorte de partes do corpo, como mãos e rosto, para redirecionar o olhar do público,
o exagero, a repetição de situações e a utilização do corpo como um todo para narrar a estória
estão na base da corporalidade deste tipo de teatro.
A reteatralização da gestualidade, a crítica através da sátira e do grotesco, o
improviso e os elementos acidentais incorporados à cena (como também faziam os
fabuladores do Lago Maggiore em sua contação), os movimentos dos bonecos, marionetes e
fantoches (Puppi e burattini), o paradoxo, os personagens-tipo carregados de atributos
hilariantes (elementos presentes no teatro medieval e renascentista, e nos quais se apoiam as
manifestações do teatro popular), somam-se a elementos também presentes neste tipo de
teatro e fundamentais para a construção dos textos (espetacular e narrativo) dos monólogos de
Fo: a narrativa que transita entre a primeira e a terceira pessoa, na qual os atores contam as
histórias como se tivessem participado ativamente delas (técnicas de contação de histórias), a
simultaneidade de personagens (em uma troca quase simultânea de máscaras9), a visão a
partir da ótica do povo, o espaço vazio e a comunicação direta com o público.
É a partir da análise destes elementos presentes na escritura, principalmente dos
monólogos de Fo, que estabeleceremos relações entre as ações propostas pela dramaturgia de
A descoberta das Américas, espetáculo interpretado por Julio Adrião10 e dirigido por
Alessandra Vannucci11, e de Il Primo Miracolo, espetáculo de Roberto Birindelli12, e os
elementos estruturais das ações e partituras físicas dos espetáculos encenados, propondo uma
relação entre corpo, cena, dramaturgia.
9 Máscaras, neste caso, são as expressões faciais que caracterizam os personagens. 10 Vide apêndice - breve curriculum e entrevista. 11 Vide anexo - breve curriculum e textos inéditos. 12 Vide apêndice - breve curriculum e entrevista.
11
1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot
Os commici dell’arte, assim como alguns giullari e bufões medievais, não
utilizavam a língua materna para se comunicar na cena, mas uma outra inventada a partir de
vários dialetos existentes (principalmente na Itália), sílabas e onomatopéias sem nenhum
significado direto, a qual denominavam grammelot. Uma das hipóteses para explicar o uso
desta linguagem diferenciada, é a de que partes fundamentais do texto poderiam ser captadas
por um número maior de pessoas, e assim, cada região entenderia uma parte fundamental do
discurso, proporcionando uma maior mobilidade geográfica dos atores ambulantes.
Alguns ainda atribuem à censura parte importante na construção da linguagem do
grammelot, pois como entendia-se a essência do tema através da gestualidade e ações dos
atores, a igreja, os reis ou aristocratas, não poderiam comprovar a existência de trechos que os
criticavam, ou que de alguma forma, não eram interessantes para suas imagens ou para algo
ou alguém que protegiam. Outros atribuem a criação do grammelot a sociedades anteriores ao
período medieval, mas o importante neste momento, é entendermos o mecanismo da
linguagem do grammelot e o que ele suscita em relação à comunicação gesto-palavra.
Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’Arte e
italianizada pelos venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir
um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do
discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com
arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e
sonoridades particulares, um discurso completo. (FO, 2004: 97)
A chave principal para compreender a relação gesto-palavra que nasce a partir do
grammelot e dos dialetos, é entender que a assimilação da narrativa é tanto maior quanto mais
simples e claros forem os gestos que os acompanham. Essa clareza e simplicidade dos gestos
contribuem para uma síntese da gestualidade, em que o gesto deve captar a essência do que
diz o texto de palavras e utilizar o absolutamente necessário para a compreensão da ação a ser
executada.
A utilização da inteligência gestual e da agilidade corporal com o fim de atingir uma
síntese expressiva ganhou grande impulso a partir da invenção da tagarelice
12
onomatopéica que, junto com a pantomima, determinou o feliz nascimento de um
gênero, e de um estilo único e inigualável: a Commedia dell’Arte. (FO, 2004:106)
Em primeiro lugar, Fo em quase todos os seus monólogos, informa através do
prólogo, o tema a ser desenvolvido e, a partir daí, acrescenta elementos-chave capazes de
demonstrar, por meio de ação gestual e sonora, o conteúdo e a essência das palavras.
Quando um autor inventa e constrói uma língua, é por que não está satisfeito com
a que tem a sua disposição. A língua inventada é construída nos vazios da que é falada, tendo
a língua materna como matéria-prima, mas contra ela, pois a mina por dentro e, expressando o
sofrimento da língua, lança uma luz insólita sobre o território dramático. Ilumina suas
insuficiências comunicativas e preenche seus hiatos em busca de uma conciliação entre a
língua e o corpo. Esta reconstrução da língua cria condições para uma forte teatralidade
elaborada neste “sofrimento” da conciliação.
[...] O dialeto mais arcaico era aquele dos velhos de alguns lugares onde não se
permitia, absolutamente, italianizar o dialeto, como acontece agora. Eles,
evidentemente, conheciam as formas idiomáticas, as metáforas e a própria estrutura
desta língua. Assim, eu aprendi a estrutura do dialeto, que é diferente de falar o
dialeto; sobretudo, aprendi a estrutura de uma língua primordial, íntegra. São essas
estruturas que se encontram nos meus monólogos teatrais. (FO apud ALLEGRI
apud VENEZIANO, 2002:81)
Trata-se de arejar a própria língua através do conhecimento de suas matrizes e de
suas raízes. Como diz Gilles Deleuze em outro contexto,
[...] ser bilíngue, mas em uma só língua, em uma língua única... Ser um estrangeiro,
mas em sua própria língua... Gaguejar, mas sendo gago com respeito a própria
língua e não somente com respeito a palavra... [...] É impor a língua, a todos os [sic]
elementos interiores da língua, fonológicos, sintáticos, semânticos, o trabalho da
variação contínua. (DELEUZE, 1979: 88-89, tradução nossa)13
13 [...] ser bilingüe, pero en una sola lengua, en una lengua única... Ser un estranjero, pero en su propia lengua... Tartamudear, pero siendo tartamudo com respecto a la lengua misma y no solamente com respecto a la palabra... [...] Es imponer a la lengua a todos los [sic] elementos interiores de la lengua, fonológicos, sintácticos, semánticos, el trabajo de la variación continua.
13
Desta forma, a maior parte das escrituras de Fo traduzidas do grammelot para a
língua italiana formal, em sua maioria por sua esposa Franca Rame, apesar de estranhamente
se transformarem em textos literários sem muita similaridade com o texto contado em
grammelot, guardam resquícios desta linguagem, no sentido de algumas frases apenas
sugerirem a situação a ser desenvolvida, como veremos mais adiante na análise dos
espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo.
A opção pelo grammelot, mais do que um efeito cômico mostra o empenho de Fo
numa outra gramática cênica em que o gesto seria, então, o complemento absoluto
da palavra. Não se trata aqui da construção de uma partitura gestual para o ator ou
para o espetáculo. Trata-se de uma gestualidade inseparável da língua. Ou seja, o
gesto faz parte do texto, no qual palavra e gesto são de igual importância como
material da dramaturgia: o gesto com valor de palavra, e os sons com cor, ritmo e
valor de gesto – ações conjuntas que resultam em algo concreto e figurativo.
(VENEZIANO, 2002:185)
Para Fo, a gestualidade deve ser desenhada como num quadro, inclusive sua
progressão, mesmo sem palavras inteligíveis, pois mesmo em culturas diferentes adquirimos
uma quantidade infinita de noções de linguagem e comunicação comuns, mesmo que, por
vezes, seja necessário pronunciar algumas palavras-chave com clareza.
Fo, em o Manual Mínimo do Ator (1998), descreve sobre uma passagem onde
mima o vôo de um corvo em seu momento mais dramático. Primeiro, Fo demonstra toda a
movimentação do corvo sugerindo uma guinada. No segundo vôo, ele repete acentuando
momentos e o ar pesado, onde segundo ele, as repetições quase se sobrepõem.
No que se refere à opção de Dario pelo dialeto ou pelo grammelot, convém
examinar, mais atentamente, a mecânica de seu sistema de comunicação, que
combina sempre uma dessas “línguas” (grammelot e dialeto) a uma terceira: a
linguagem corporal. Juntas, elas resultarão num espetáculo rico de imagens
concretas. (VENEZIANO, 2002:184)
No espetáculo Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli se utiliza de sons
onomatopéicos para substituir partes que seriam narradas repetidamente:
[...] Por exemplo: “o menino quebrou os meus briquedos”. Como eu já havia dito, eu
usei um código: “Pacapatcha, Pacapatcha” [faz gestos referentes a brinquedos
quebrados]. No momento em que ele chora, por que vamos combinar uma coisa:
14
precisa entender um menino que chora? Então: “biquibi, bipabá” [e faz gestos de um
menino que chora]. E quando ele explica do cavalo: “diquidi, diquidi, diquidi” [faz
gesto de cavalgada]. Então é a ação vocal. Ninguém em quinze anos disse que não
havia entendido. 14
O ator Julio Adrião, em A descoberta das Américas, através de onomatopéias,
ação vocal e gestual, materializa lutas épicas entre índios e espanhóis.
Fig. 1 A descoberta das Américas
Foto: Maria Elisa Franco
Os elementos que relacionam a corporalidade de Fo ao grammelot e aos dialetos
são sons onomatopéicos, gestualidade limpa e evidente, timbres, ritmos, coordenação,
recortes, repetição, e principalmente, uma grande síntese.
[...] a síntese expressa por meio de estereótipos com variações nítidas constitui uma
técnica já utilizada nas pinturas ânforas gregas e etruscas, assim como nos afrescos
de Giotto que retratam a vida de São Francisco ou de Cristo em uma seqüência de
imagens, considerados por alguns como as mais belas histórias em quadrinhos da
história da arte. (FO, 2004: 101)
À síntese gestual que suscita o trabalho com o grammelot, Fo acrescenta o trabalho
que empreende com as máscaras, também fruto de seus estudos sobre a commedia dell’arte e
cerne dos estudos de grandes nomes que trabalharam ou trabalham com a mímica e a
pantomima como Etiènne Decroux (1898 - 1991), Jacques Copeau (1879 - 1949) e Jacques
14 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora em 2007, vide apêndice.
15
Lecoq (1921-). Este último fez a preparação corporal do elenco da Revista Il dito nell’occhio
(1953), na qual Fo era um dos atores principais.
A máscara impõe uma síntese do gesto, envolvendo a gestualidade corporal na
íntegra. Pois, se para atingir um certo efeito realizarmos uma multiplicidade
descabida de gestos, vamos estar apenas destruindo o valor do próprio gesto. É
necessário a seleção dos gestos e a consciência dos mesmos. O movimento, a atitude
geral, a colocação do corpo devem ser ponderados e essenciais. A síntese é um
elemento que está na base da commedia dell’arte e do teatro oriental. A máscara
também funciona como o impedimento de toda e qualquer mistifição. (FO,
2004:62)
Mais adiante:
A máscara serve para agigantar e, simultaneamente, fazer uma síntese do
personagem, conferindo uma ampliação e desenvolvimento do gesto. Esse gesto não
deve ser arbitrário, para que o público, o imediato reflexo do ator, possa acompanhar
com total compreensão o discurso, principalmente quando se trata de um efeito, uma
gag ou um fecho cômico. (FO, 2004: 63)
A máscara provoca os recortes da imagem chamada por Fo de “objetiva”, pois
recorta a visão do espectador, na qual uma atitude psicológica é imposta para que ele
enquadre diferentemente as imagens produzidas pelo ator. É uma atitude que parte da ação do
ator, na qual o espectador é condicionado a privilegiar uma particularidade ou a totalidade da
ação.
Esse recurso utilizado no cinema, faz com que o ator consiga direcionar o olhar do
público para uma parte de seu corpo ou para onde ele julgar mais importante para a
compreensão do ato, da cena ou da situação.
A máscara elimina o elemento fundamental da mistificação: o rosto e toda a sua
gama de estereótipos e clichês. O corpo do ator pode ser comparado ao da marionete, pois
precisa se exprimir com toda sua articulação e possibilidades de movimento total. Neste caso,
a máscara desloca para o restante do corpo a função significativa e comunicativa, levando
para pernas, pés e tronco, a mesma responsabilidade atribuída ao rosto.
Somente quando o restante do corpo adquire a mesma carga expressiva do rosto é
possível trabalhar com o recorte e com a síntese, pois a parte do corpo “recortada” e colocada
16
em evidência não parecerá inexpressiva ou deslocada do resto, e a multiplicidade de gestos
transformados em síntese, serão suficientes para comunicar.
“[...] a síntese é a invenção que impõe a fantasia e a intuição ao espectador. É a
maneira de conceber a representação da grande tradição épica popular: limar todo o supérfluo,
toda a descrição entediante.” (FO, 2004:175)
É importante ressaltar que a síntese utilizada na obra e na escritura de Fo, não é o
recorte do essencial para o desenvolvimento da cena somente, ou um recorte explícito da
gestualidade para o essencial da expressão do corpo (o que suscita as máscaras e a construção
da linguagem do grammelot), mas também a síntese da própria cena (que não tem
necessariamente relação com a sintetização do gesto em si), que associada a uma seqüência de
repetição gradual se estabelece como um recurso cômico de altíssimo efeito. Este recurso
utilizado para demonstrar o resumo da cena é uma solução cômica das mais originais do teatro
de variedades, dos clowns e da commedia dell’arte.
Na encenação de Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli explica à platéia no
prólogo de seu espetáculo, quem são os personagens e demonstra as atitudes gestuais, o andar,
ou o jeito de cavalgar dos três Reis Magos para que o público consiga identificar cada
personagem através de uma seqüência de gestos. A partir daí, ele estabelece uma
comunicação direta com o público, na qual o ator repete as atitudes de todos os personagens
de forma resumida e muito mais rápida, sem explicar, falando apenas algumas palavras
principais. O público em uma mistura de prazer e surpresa identifica as atitudes das
personagens durante o espetáculo e ri abundantemente.
Figs. 2 e 3 Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Video Produções
17
No espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião utiliza o recurso de
sintetização da cena ao mimar uma seqüência de “costura dos índios”, na qual, depois de um
massacre empreendido por inimigos, o Pagé pede a Johan Padan, “exímio costurador de
velas”, que o salve e salve também sua tribo que está toda mutilada e caída aos seus pés. O
ator mima e explica todas as ações que utiliza para desinfetar, arrumar os órgãos dentro do
abdômen e costurar. Quando passa para o segundo índio, ele repete todas as ações de forma
mais rápida pronunciando apenas as palavras principais. Do terceiro índio em diante, ele
mima utilizando apenas onomatopéias com um ritmo cada vez mais acelerado. Esta cena
compõe uma das passagens mais cômicas do espetáculo com uma construção de partituras
recortadas e sobrepostas que analisaremos mais profundamente no terceiro capítulo. Esta cena
foi desenvolvida pelo ator a partir de um parágrafo presente no texto, na qual a personagem
Johan Padan vai até sua cabana, pega linha e agulha para costurar velas, arruma os órgãos
dentro da barriga do Pagé e o costura. Na escritura de Fo, esta cena de quase oito minutos
executada pelo ator Julio Adrião, é apenas um parágrafo indicativo. Neste tipo de seqüência,
“as posições de maior efeito devem ser repetidas em imagens inalteradas, geradas pelos
diferentes casos que compõe as variantes do tema.” (FO, 2004: 101)
Não podemos esquecer, também, que há contínuas referências a sequências e
palavras já conhecidas. Somente os pontos essenciais são indicados, o restante é
atirado fora com grande velocidade, como se fosse picado no interior de um grande
moedor de palavras, sem pausas nem respirações. (FO, 2004: 245)
No caso da síntese da cena, as seqüências são cortadas e compactadas, causando
também uma compactação do tempo, e por isso, uma quebra do tempo da representação ou da
unidade de tempo, enquanto distinção da temporalidade do acontecimento da cena. O que é
desenvolvido, neste caso, é a situação como recurso cênico e cômico, independentemente de
sua verossimilhança relativa ao tempo da representação, pois ao tempo real, a representação já
é fatalmente inverossímil.
18
1.3 A Situação
Uma das formas mais maduras surgidas na Idade Média do gênero cômico é a
farsa. Entretenimento que não pretendia nem edificar, nem instruir, mas fazer rir, toma os
temas da realidade cotidiana, e seus personagens não são indivíduos ou alegorias que
representam vícios e virtudes como nos Mistérios Medievais, mas tipos (o marido traído, a
mulher astuta, o malandro esperto). Mais que uma intriga, a farsa desenvolve situações ao
redor da autoridade, das funções naturais, dos defeitos físicos e intelectuais ou da astúcia.
O texto da farsa não é mais que um apoio, pois o verdadeiramente desencadeante
do riso é a fantasia gestual e mímica e os movimentos de corpo que acompanham a palavra,
ponte específica com o trabalho de pesquisa de Fo e que se estabelece em seus textos.
Os lazzi15, com suas situações cômicas do “teatro menor” impulsionam uma nova
visão para a gestualidade nas farsas populares, no teatro de variedades, nos espetáculos de
clowns e dos mimos. A hierarquia que enumerava a importância dos gêneros, principalmente
até o século XIX, geralmente começava com a tragédia, o drama, descendo para a comédia e
transformava em ínfimos o teatro de bonecos e os clowns que possuem sérios predecessores
como os jograis das atelanas e farsas antigas.
Um dos principais elementos que Dario Fo pinça do teatro popular, foco de seus
estudos práticos e teóricos, e que está presente em todos os seus textos, sejam monólogos ou
não, é a situação e o entendimento desta situação como o ponto principal para atrair a atenção
do espectador.
Na terceira jornada de seu Manual Mínimo do Ator (1998), Fo pergunta o que
significa situação, e responde: “Significa a estrutura básica que faz evoluir a trama narrativa,
envolvendo o público por meio da tensão resultante e que o torna participante das reviravoltas
do espetáculo.” (FO, 2004:147) Mais adiante, na mesma página, Fo simplifica: “[...] é o
mecanismo existente na narrativa pelo qual o espectador é capturado e grudado à poltrona”.
Dario Fo conhece bem os mecanismos da situação e inclusive os utiliza na
estrutura de seu livro Manual Mínimo do Ator, fazendo dos capítulos curtos e da separação
em jornadas, uma sucessão de situações reais ou fictícias (características do racconto) que dão
15 Os lazzi (laços), são as chamadas gags dos personagens-tipo da commedia dell’arte, uma série de intervenções
velozes, estudadas, que incluem paradoxos, nonsense, em meio a simples quedas, tombos e cambalhotas.
19
suporte para as suas teorias e recorre à imaginação do leitor através da exemplificação por
imagens narradas, assim como em seus textos dramatúrgicos.
Fo cita Hamlet como uma “máquina de situações”, que mesmo encenado por
companhias ruins, mantém intacta a atenção do público pela habilidade que William
Shakespeare (1564 - 1616) possuía de contar uma estória através de situações bem definidas.
As situações são a estrutura que faz vivos os textos de grandes autores como
Shakespeare, pois desconectando trechos dos textos mais famosos, como Romeu e Julieta,
Hamlet, Sonho de uma noite de verão, das situações em que se encontram apoiados,
encontramos frases totalmente nonsenses. Então o que faz de Shakespeare, Molière (1622 -
1673), Eugène Labiche (1815 - 1888) e Jean Racine (1639 - 1699) grandes dramaturgos, é a
habilidade de trabalhar e desenvolver as situações. A partir dela, geram-se armadilhas,
equívocos, subterfúgios, enganos e mal entendidos que ressaltam o jogo teatral e prendem o
espectador à estória contada.
As situações são elementos estruturais não só da comédia, mas também da
tragédia, assim como a troca de identidade, travestimentos, equívocos e reviravoltas.
Trocando a situação, podemos fazer de uma cena absolutamente cômica, uma
tragédia, e vice-versa, pois a situação é determinante no significado absoluto da ação mímica,
alterando completamente o sentido de todos os gestos.
A troca de situações é um recurso muito utilizado por Fo em suas escrituras,
principalmente nos monólogos, nos quais cenas são repetidas igualmente modificando a
situação em que elas se inserem como recurso de grande efeito cômico e que necessita de uma
habilidade singular do ator executante.
Por vezes, a escolha de inverter situações é própria do ator que representa um
monólogo de Fo, como no caso de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo e Julio Adrião em
A descoberta das Américas, os quais criam situações e inversões que não se encontram
sugeridas no texto original ou não foram executadas por Fo em sua contação.
O diferencial das situações nos monólogos de Fo, é que estas são apresentadas e
modificadas pelos próprios atores e suas ações. Um ou dois olhares para o público transforma
a situação de imediato. A mudança é preparada através de uma comunicação direta com o
público, como se fossem “apartes”. Em um gesto de envolvimento, no qual o público é
convidado a se colocar em uma cumplicidade imediata, através de um olhar para o lado, os
atores comunicam que há mais personagens em cena. De repente, mimam ser empurrados
pelo personagem que acaba de entrar na estória.
20
O próprio personagem ou o ator-narrador é quem faz a mudança de situação e
introduz o tom da narrativa que virá a seguir. Este exercício de imaginação no qual o público
vai sendo envolvido é que finaliza a construção das situações “incompletas” de Fo, no qual a
percepção do espectador termina de desenhar o significado geral da estória, portanto, distinto
como o olhar de cada um.
Na commedia dell’arte o jogo de situações era tão variado, que podia-se obter
diferentes histórias a cada apresentação baseando-se no mesmo tema, personagens e situação
inicial. Como os commici possuíam uma bagagem incalculável de gags, diálogos, ações e
situações experimentados de diversas maneiras (por isso, no momento certo as inseriam dando
a impressão de improvisarem o tempo todo), já sabiam onde e como aconteceriam as
mudanças. A partir de uma seqüência era possível fazer inúmeras variações modificando o
tempo e a progressão. O jogo dos encaixes era feito com facilidade, pois já haviam sido
repetidos várias vezes em diversas situações.
Os fabulatori, no caso de Dario Fo, também trouxeram a ele o entendimento da
situação. Fo ouvia a mesma estória recontada uma dezena de vezes em diferentes momentos,
e percebia que a capacidade de quem recontava, consistia em adaptar a estória às situações
diferentes da crônica em si, compreendendo os fatos locais e os personagens da vida real.
Dependendo da mudança da situação, o clima físico e psicológico era modificado, não
perdendo de vista a importância da audiência e nenhum elemento acidental.
Depois de sua passagem pelo cinema, no qual as estórias paradoxais de seus
personagens, que beiravam o nonsense, não sobreviveram ao realismo, Fo e Franca Rame, sua
esposa, fundaram sua própria companhia: a Compagnia Teatrale Fo – Rame. Nesta
companhia, Fo redescobriu as farsas como exercício para entender o mecanismo da narrativa
teatral. A farsa já possuía, por si só, uma característica de síntese e de situações independentes
e sobrepostas, recortando e remontando os mecanismos da comicidade de situações.
As comédias que lembravam Labiche e Molière eram repletas de situações
paradoxais e qüiproquós, adultérios, enganos, equívocos. Estas farsas eram destinadas ao riso
e apesar de não abarcarem críticas políticas explícitas como aconteceria mais adiante em seu
teatro, percebia-se uma leve crítica à burguesia dominante. Por trás dos enganos e confusões,
a estrutura elaborada a partir de modelos antigos como a triangulação, revelava o jogo de
situações e personagens através de estórias absurdas.
A companhia da Família de Franca Rame era um exemplo de companhia
mambembe que girava pela Itália apresentando várias peças em um mesmo dia, passando do
21
drama ao melodrama e a farsa, misturados aos fatos da vida real, próximos ao circos-teatro
que fizeram muito sucesso no Brasil até a primeira metade do século XX.
Fo inspirou-se no trabalho da família de Franca, que persistiu por décadas a fio, e
desse teatro popular para desenvolver também seus estudos sobre a situação. A farsa
desenvolvia uma situação cômica que poderia partir de um simples fato ocorrido. Então a
partir de uma espécie de canovaccio (roteiro pré-estabelecido), uma gama de situações
sobrepostas eram desenroladas à frente do público e uma mesma situação poderia ser
desenvolvida de inúmeras maneiras.
Para impostarmos corretamente uma história que desejamos improvisar, é
conveniente revelar o argumento que queremos desenvolver, em seguida, o espaço
cênico onde irá se desenvolver o fato dramático ou cômico, e, por fim, é
fundamental deixarmos evidente a situação e os motivos. (FO, 1998: 292)
Esta técnica de desenvolvimento das situações diferencia-se muito da dramaturgia
convencional, pois é a cena em si, a ação dos atores, que determina a escritura, assim como os
outros elementos do espetáculo, como o figurino, as luzes, as pausas, o ritmo, ou seja, os
outros tipos de dramaturgia presentes no espetáculo.
As situações aparentemente simples impulsionam o desenvolvimento de inúmeros
equívocos, situações de encaixe, gags, e como em todas as farsas de Fo, impossibilitam
qualquer tipo de identificação.
Das farsas, Fo levou para outros textos, monólogos ou comédias políticas, um
estilo antinaturalista, aproximando-se de uma linguagem surreal, paradoxal e alegórica,
reforçando sempre a frase que diz no seu Manual: “em teatro, somente o falso é
autenticamente real.” (FO, 2004:314)
Em Il Primo Miracolo, monólogo que analisaremos nesta pesquisa, o Menino-
Jesus (sujo, maldoso e brincalhão, como qualquer criança de sua idade) faz seu primeiro
milagre para ser aceito pelos amiguinhos. Em A Descoberta das Américas, um malandro
fanfarrão, para fugir da Inquisição e da miséria, entra em uma das caravelas de Colombo que
parte para descobrir as Índias. Estas são as situações iniciais a serem desenvolvidas e que
darão suporte para o desenvolvimento cômico da narrativa.
Como a progressão cênica em Fo nasce de uma situação pré-estabelecida a ser
desenvolvida, ele estabelece uma espécie de processo colaborativo com o público, no qual a
escritura cênica faz um caminho contrário ao do teatro tido como tradicional e próximo ao do
22
Teatro Físico16 ou de linha física mais enfática, nos quais as ações que partem do corpo do
ator e das reverberações que as reações do público imprimem neste corpo, é que reescrevem a
obra.
16 Termo criado primeiramente para designar o teatro de Eugenio Barba, foi cunhado na Inglaterra na década de
70 para designar um tipo de teatro híbrido, pois mistura em sua composição distintas linguagens, como dança,
teatro, circo e performance. O Teatro Físico encontra-se em uma zona fronteiriça entre as linguagens que as artes
cênicas abarcam, e possui um tratamento diferenciado do texto, pois este, é fisicalizado por ações exuberantes.
Quando há texto de palavras ele é construído em um processo colaborativo entre atores, diretor e público, que
constitui, apesar de muito distinto, a mesma ordem do trabalho de Fo: ações- improvisações- contato com a
audiência- codificações das ações escolhidas- repetições – texto “fixado”.
23
1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público
Dentro da perspectiva em que a fala é entendida como uma ação convencional ou
não, a composição lingüística do texto teatral, concebido para ser dito, pode ser entendida
como uma composição física.
Se a fala constitui uma ação com respectiva conseqüência, podemos dizer que as
relações de força que se desenvolvem na interlocução entre os personagens (eixo interno da
comunicação teatral) e a obra, são indissociáveis.
Assim como existe na antropologia teatral de Eugenio Barba (1936-) e seus
seguidores, um nível pré-expressivo no qual se verifica as diferentes unidades da composição
corporal, no drama, texto escrito ou falado, há um nível pré-expressivo no qual se identifica a
organização dinâmica do discurso. O nível pré-expressivo da composição física é qualificado
pela modulação da energia corporal, e o nível pré-expressivo do drama é qualificado pela
modulação da força performática da palavra na relação com os interlocutores, e
posteriormente, com o público.
A fisicalidade da palavra no caso do teatro de linha física, como o teatro de Dario
Fo, em que a escritura se confunde com a obra encenada, está no dinamismo implícito no
discurso das personagens. Este dinamismo do discurso se deve a vários elementos, mas
principalmente ao fato de o texto falado, muitas vezes, ser pensado na cena, e não fora dela.
O discurso das personagens parte da ação e do momento presente, no qual o ator
executa a fala e não somente a diz.
Quando Dario Fo conta uma estória sem se preocupar com a palavra em si, mas
com a essência desta, seu significado próprio e as ações que elas suscitam, ou com o que as
fazem mais claras, suas palavras se impregnam de uma fisicalidade particular. Elas ganham
corpo, pois são seu próprio corpo e pensamento que encontram a melhor maneira de dizê-las,
como acontece com Roberto Birindelli e Julio Adrião, intérpretes dos espetáculos Il Primo
Miracolo e A descoberta das Américas.
O diferencial que se expressa no dinamismo do discurso, é justamente o contrário
do processo que acontece na apropriação de um texto literário no teatro tido como tradicional,
pois neste, a palavra é decorada antes de ser inserida na cena. Isto não quer dizer, que a
palavra no teatro tradicional não possa se tornar ação física e vocal, mas os mecanismos que a
fazem tornar-se orgânica, ou crível, são diferentes.
24
No teatro tradicional, principalmente do século XIX, no qual as ações se tornam,
por vezes, a ilustração do texto, este é decorado e acoplado às ações compostas por atores e
diretores da obra, e passam a se tornar críveis a partir do momento que elas são codificadas e
repetidas até adquirirem organicidade e tornarem-se uma só coisa: ação física indissociável.
No caso da escritura de Fo, principalmente nos monólogos, as palavras que já
foram transcritas, invariavelmente, já foram ditas. Isto faz com que a escritura de Fo contenha
seu ritmo particular, suas cadências e suas ações, mesmo que estas estejam apenas sugeridas,
como veremos no segundo capítulo na análise dos espetáculos.
O improviso que se estabelece a partir do imprevisto, do momento presente, do
contato com o diretor (quando este está incluído no processo) e com o público, é um elemento
importante que se transfere da ação para o texto.
O Teatro Físico, assim como diversos tipos de teatro que possuem uma linha
física mais enfática, utilizam a improvisação direcionada por temas para a construção do texto
dramatúrgico. Depois de improvisadas, as ações são repensadas na cena, revistas, codificadas,
repetidas, e só então, transcritas. O texto de palavras nasce durante o processo e comporta
diversas individualidades, pois é escrito pelos atores, pelo diretor e indiretamente pelo público
que interfere nas ações do espetáculo através de suas reações. Este processo, apesar de antigo,
é chamado de processo colaborativo, um termo absolutamente contemporâneo, se
constituindo como um processo singular no que diz respeito à relação corpo-palavra.
Em seu livro Caos/Dramaturgia, Rubens Rewald pensa o processo colaborativo
como um sistema complexo, que se reorganiza à medida que vem sofrendo interferências e
“ruídos” dos próprios atores envolvidos no processo, do diretor e do público. Estes “ruídos”
aleatórios ou provocados, podem levar o texto e o espetáculo a caminhos absolutamente
imprevistos. O objeto deixa de ser estável e passa a exigir uma mudança de percepção, “pois
na medida que não há um texto final definitivo, ele está sempre aberto a modificações e
experimentações.” (2005: XIV)
Apesar de o autor do livro ter analisado um tipo de processo em que o autor é ao
mesmo tempo espectador, e se encontra fora do processo de experimentação das ações, o
dramaturgo pode ver cenicamente o resultado de sua escrita (pelo desempenho dos atores e
diretor, do processo criativo dos outros profissionais envolvidos na confecção da obra, das
respostas destes aos estímulos lançados pelo autor e dos elementos acidentais) e reescrever o
texto.
No caso de Dario Fo, o autor encontra-se dentro do processo de experimentação
prática das ações, mas também está suscetível aos ruídos aleatórios ou provocados por ele
25
mesmo, ou pelo público, assim como os atores dos espetáculos analisados, exigindo também
um constante retrabalhar não só do texto de palavras, mas do texto de ações. Neste caso, um
“ruído”, que seria um evento aleatório inesperado (como a incompreensão de informações por
parte do público) ou uma “flutuação” (como incidentes provocados pelos próprios atores),
pode causar um pequeno “movimento” dentro do processo que não o afeta, ou “pode
impregná-lo de tal forma que o tire do equilíbrio, originando uma crise, e obrigando-o a se
rearticular, em um novo estado de equilíbrio, diferente do anterior.” (REWALD, 2005:23)
Dario Fo e Franca Rame, por vezes, provocam incidentes para extrair uma reação
do público e fazer alguma improvisação já lançada como hipótese anteriormente e
minuciosamente estudada. Depois disso, a improvisação é reescrita de uma maneira que mais
se insira no texto.
“1.Incidente (previsto ou provocado) > 2. Revelação ao público do incidente > 3.
Improviso > 4. Estudo posterior > 5. Retomada e adaptação ao texto-espetáculo.”
(VENEZIANO, 2002:199)
Utilizando recursos de vídeo ou gravações do áudio, Fo identifica os incidentes
eficazes, incorpora-os ao texto e descarta ou reescreve trechos que não funcionam na cena.
Se o espetáculo fica em cartaz por muitos anos, o público vai se diferenciando e se
torna necessário modificar as pausas, os ritmos e até as palavras, para melhor comunicar a
estória.
Os commici dell’arte, como ficaram conhecidos os atores cômicos ambulantes do
renascimento, utilizavam o improviso para criar suas ações, e só depois repetí-las e codificá-
las, mesmo que este processo não fosse absolutamente consciente. Apesar do tratamento sério
dado à improvisação, os commici ficaram estigmatizados como improvisadores livres. Apesar
de calcarem seu trabalho na ação, o texto de palavras também era pensado anteriormente
através de uma seqüência de escaletas ou canovacci (roteiros).
A Commedia del1’arte é também chamada de comédia de atores, pois
“De fato, o jogo teatral se apoia em suas costas: o ator histrião é também autor,
diretor, montador, fabulista. Passa indiferentemente do papel de protagonista para o de
“escada”, improvisando, esperneando continuamente, surpreendendo não só o público,
mas inclusive os outros atores participantes do jogo. (FO, 2004: 23)
26
Fo sempre referiu-se a commedia dell’arte como a propulsora de seus interesses
no estudo da gestualidade, mas analisando as obras de vários pesquisadores, ainda assim,
encontrou preconceito em relação a este teatro que para uns é pura fantasia e improviso livre.
‘Nada de texto (literário – dramatúrgico) nada de arte.’ Mas não vamos nos
envolver em polêmicas, pelo menos neste instante. É suficiente para contradizê-lo a
exposição de um argumento que não se origina da literatura de textos, mas
principalmente da prática: a commedia dell'arte se baseia na combinação de diálogo
e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima.
(FO, 2004: 22)
Explorar um incidente ou casualidade de um acontecimento, insere-se antes
mesmo da tradição da commedia dell’arte nos procedimentos dos jograis medievais,
chegando aos clowns e ao teatro de variedades de várias épocas. Esta permeabilidade que se
estabelece entre ator e público é uma das principais características do teatro popular,
independentemente de época e lugar.
Os cômicos, nunca utilizam as mesmas palavras em cada apresentação de suas
comédias, inventando toda vez, aprendendo antes a substância, depois transmitindo
por velozes fios condutores e nós apertados, gerando assim uma forma livre, natural
e graciosa. (FO, 2004: 106)
A incursão de Fo no Teatro de Revista italiano em Il dito nell’occhio trouxe a
experimentação de novos mecanismos que influenciaram sua vida artística e seus trabalhos
posteriores, como a adoção de “tipos inéditos”, as alegorias, a realidade e a atualidade no
cerne das situações, e principalmente, baseando-se em um antigo recurso do teatro popular,
colocou o trabalho de direção e da elaboração do texto, como um resultado coletivo de criação
do espetáculo.
Nesta tradição das famiglie d’arte, onde todos eram um pouco atores, autores e
diretores, é redefinida a função do autor-ator:
Essa formação de ‘autor-artista’, Dario Fo a desenvolveu a partir de três modelos
gerais:
1. o modelo medieval, revisto à luz da comicidade;
2. o modelo da commedia dell’arte e, posteriormente, molieneresco;
27
3. e o modelo oitocentista, que ele revestiu com toques de ‘absurdo’.
(VENEZIANO, 2002:111)
O modelo oitocentista e a tradição da commedia dell’arte ensinaram a Fo a arte do
improviso, cerne do processo colaborativo de construção do espetáculo. Estudando a família
de Franca, Fo descobriu que a família fazia uma pesquisa sobre a cidade na qual iria se
apresentar, e estudava o momento político e histórico em que a cidade se inseria, mas a partir
de uma escaleta, entrava em cena somente com diversas situações já experimentadas em sua
memória.
[...] Assim como existia uma bagagem de memória de palavras, existia também uma
da gestualidade e das posições. Isto é, quando um ator entrava em uma determinada
posição, existia um contraponto da gestualidade, assim como existe na música.
Como no jazz: quando um improvisa, o outro se adapta de súbito à improvisação,
porque conhece o acompanhamento que deve realizar ou o contracanto da melodia.17
Para interpretar seus monólogos, Fo utiliza-se também de uma escaleta e passa a
contar a estória de diversas maneiras, a improvisar, para depois transcrever o texto. Ainda
assim, no decorrer das apresentações, Fo executa modificações no texto, na ordem, no ritmo,
principalmente depois que este entra em contato com o público, co-autor da obra.
Segundo Chiara Valentini, para Fo “o texto deve ser funcional ao espetáculo, deve
ser flexível às exigências da cena, ganhar corpo definitivo somente no momento da
representação, em contato com o público” (VALENTINI apud VENEZIANO, 2002: 125)
Logo depois, acrescenta: “Há poucos autores como ele, disponíveis para colocar
em discussão os próprios textos durante os ensaios, a reescrever cenas inteiras ou até a pular
uma página para improvisar”. (VALENTINI apud VENEZIANO, 2002: 125)
Os textos escritos por Dario Fo nunca serão exatamente aqueles que ele escreveu.
É do encontro com o público que nascem as modificações que lhe dão a certeza de que seu
texto jamais será tomado como texto final. É do atrito entre os dois elementos (autor-ator x
público) que se dá o resultado de sua dramaturgia. Na falta de um deles, o processo se torna
inviável, constituindo então, um processo colaborativo entre produtor e receptores, no qual os
“ruídos” e “flutuações” ocorrem neste constante retroalimentar entre as duas partes.
17 Entrevista concedida por Dario Fo a Neyde Veneziano, 2002, pág. 116.
28
Com a participação do espectador na formulação do significado do espetáculo,
este grau de intimidade construído entre ator e observador é estabelecido não só pelas ações
do ator, mas pela organicidade de sua presença que enfatiza o “aqui e agora” da
representação, fazendo com que o público se torne criador do momento presente e parte
integrante do evento.
Vocês, platéia, vão fazer suas vontades, vão devolver a bola, vão captar seus
improvisos e decodificar seus hieroglíficos gestuais com uma competência de
peritos teatrais. Vocês vão ver. Os mil truques do ator são para isso: achar o jeito,
cada vez diferente, de jogar com aquela platéia e fazer aquela platéia jogar. Jogar
como? Adivinhando de que forma a história irá acontecer naquele dia.18
É por este motivo, que os espetáculos que tomam como base a dramaturgia de Fo,
mais especificamente A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de Circo
Pequenos Empreendimentos e Il Primo Miracolo, da Cia do Bebê, objetos analisados nesta
pesquisa, reconstróem a dramaturgia de Fo, pois refazem, tendo como base uma dramaturgia
já elaborada a partir da experimentação prática, um novo caminho de comunicação com o
público, dando origem à uma segunda dramaturgia de palavras e de ações.
A tradução que tinha no Brasil, naquela edição da Brasiliense, era impossível. Então
eu peguei [o texto] de livros dele [do Dario Fo] e de vê-lo ao longo dos anos. Claro,
eu estreei com a tradução da Brasiliense, muito ruim [por ser literária]. Alguns anos
depois, fui modificando, e hoje é uma tradução minha, uma adaptação minha, um
pouco diferente do texto, mas com elementos equivalentes. 19
Neste caso, a improvisação pode encontrar-se também em um nível mais interno
da representação, em que o ator vai modificando, por vezes, elementos quase imperceptíveis,
mas que influenciam no entendimento e na recepção do público (uma pausa, um respiração)
ou, por outras, até a modificação de cenas inteiras, servindo para estimular o ator a encontrar
o invisível (mas perceptível) de sua atuação, através do trabalho sobre o visível (ações e
gestos).
[...] E aí eu via as partes que tinham que permanecer sempre e escolhia as palavras
que funcionavam melhor e que tinham que permanecer. Às vezes, eu tinha que me
18 Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em texto enviado a autora, vide anexo. 19 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, ator do espetáculo Il Primo Miracolo, vide apêndice.
29
impor as palavras, pois algumas eu jamais falaria normalmente. [...] Eu tinha, a meu
favor, umas cinqüenta apresentações feitas para um público durante um ano e um
amadurecimento deste processo. Eu nunca mais voltei ao texto que nós tínhamos
traduzido e, contando, ele ficou completamente diferente. Eu nunca transcrevi este
texto que eu falo hoje. Na medida que eu ia fazendo o espetáculo, eu ia encontrando
coisas novas. A narrativa foi se enriquecendo. Não só o texto, mas as partituras
físicas. [...] Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade
brasileira que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a
necessidade de enxugar o texto. [...] Eu nunca mais li o texto original. O texto que
você tem é um roteiro indicativo das ações.20
A improvisação funciona como um meio para se chegar ao resultado esperado,
resultado este, que nunca será o definitivo, pois depende da relação cinestésica estabelecida
com o público, e não como a forma em si, na qual o espetáculo de improviso se torna o
próprio resultado. A improvisação como forma se configura como uma outra linguagem
distinta, pois nos espetáculos analisados chega-se a uma estrutura mais ou menos fixa,
modificando no contato com o público, elementos, por vezes, imperceptíveis, mas sensíveis a
assistência.
Na fenomenologia cênica da linguagem improvisacional, a formalização não é
mais a fixação das ações, mas o estabelecimento de vias de acesso ou caminhos na
comunicação com o público, que é o único termômetro para se medir a eficácia do espetáculo.
Surge então um outro caminho na relação corpo - palavra, pois abre-se todo o
lugar possível para a “teatralidade” do discurso: inflexões, ritmos, entonações, gestos.
O conteúdo do discurso expresso por outros signos dramáticos como o gesto, faz
com que o ator precise ter consciência de que seu papel é uma estruturação dos signos mais
diversos.
Esta polissemia da arte teatral faz com que a mesma cena seja compreendida
diferentemente por espectadores distintos, muitas vezes ultrapassando a barreira da língua.
Faz com que o grammelot falado por Fo seja absolutamente compreensível através dos gestos
e das ações, preenchendo os hiatos provocados pelo não entendimento da palavra, nos quais o
corpo como um todo torna-se discurso.
A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação lingüística, isto é,
ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as
quais o autor do texto quis evocar; mas seu valor e seu significado pode ser modificado ou
20 Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, vide apêndice.
30
reforçado na relação com a mímica do rosto, do gesto, do corpo, podendo sublinhar ou
desmentir a significação das próprias palavras.
Pelo fato de a semiologia lingüística estar bem mais desenvolvida do que a teoria
de qualquer outro sistema de signos, podemos assinalar que a análise semiológica da palavra
pode situar-se em diferentes níveis.
Segundo Jacó Guinsburg, em Semiologia do Teatro, na representação não existe
“somente o nível semântico (que concerne tanto às palavras como às frases e às unidades mais
complexas) mas ao nível fonológico, sintático, prosódico etc.” (1998:144) Neste caso, as
variações de tom, entonações, volume, ritmo podem ter um valor puramente estético ou
produzir verdadeiras escrituras signicas.
As rubricas ou didascálias (indicações e sugestões do autor) também constituem
um texto secundário e até quase a primeira metade do século XX, permaneciam no
espetáculo, quase como uma exigência do autor. No teatro contemporâneo as rubricas foram
reduzidas ao absolutamente necessário para a compreensão do texto e indispensável para a
construção das personagens, sendo muitas vezes completamente rechaçadas pelo diretor e
pelos atores.
No processo colaborativo de construção do espetáculo, termo que surge com as
artes contemporâneas, suas fragmentações e hibridações, e principalmente, com as
transformações das unidades de tempo e espaço, cunhadas por Aristóteles, as rubricas são
quase sempre inexistentes, pois as indicações dos autores já estão executadas no contexto da
obra.
Se os textos resultantes de processos colaborativos são transcritos, geralmente as
rubricas ou indicações dos autores já estão transformadas em texto, assim como as ações
sugeridas, por vezes, estão transformadas em palavras.
Em Fo, em se tratando de seus monólogos, as rubricas indicativas das ações são
muito sucintas e raras, pois o movimento e a ação já são ponto de partida para a criação do
texto.
A importância da encenação na dramaturgia de Fo, faz com que o espetáculo
torne-se incompreensível com a ausência das ações, gestos e ações vocais, sendo por isso,
uma literatura para ser vista e não lida, pois ela só se torna compreensível, no momento da
encenação. O trabalho com o grammelot, é um dos elementos que promovem na prática o
entendimento de que a gestualidade e as ações que o acompanham é que promovem o
entendimento da palavra.
31
Existem, por vezes, ações executadas por Fo que são apropriadas por outros
atores, assim como suas palavras, por ser ele também ator de sua própria dramaturgia, mas
invariavelmente não permanecem as mesmas.
Contudo, o papel e a participação que a representação da linguagem tem na
constituição do universo representado são extremamente variados nos diferentes espetáculos
teatrais, e será de fundamental importância para o entendimento dos termos aqui levantados, o
exame de cada obra em particular, como faremos mais a seguir.
Na representação teatral das escrituras de Fo, as rubricas são eliminadas e os
hiatos que surgem na unidade do texto são preenchidos por um processo não arbitrário, mais
essencialmente, trata-se de uma questão de transpor significados lingüísticos para outros
sistemas semióticos. Todas as relações entre as figuras cênicas e personagens são projetadas
no espaço dramático, num conjunto de relações materiais que muda com o tempo à medida
que mudam as relações.
No teatro de Fo, os componentes sonoros interferem no significado semântico da
fala, como a entonação, timbre de voz e intensidade, e as falas são, por vezes, completamente
suprimidas, dando lugar às “frases de movimentos ou de ações”, o que acontece nas
montagens de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, nas quais os atores-autores
preenchem os hiatos deixados pelo texto de palavras por ações, absolutamente autorais, no
que diz respeito ao trabalho do ator. Toda a fábula21 da peça é contada através das ações dos
personagens.
Quando há texto, as entonações e intensidades estão diretamente ligadas ao
movimento em si. Este impulsiona o trabalho feito com as entonações, intensidade e volume.
Este fato revela, através da experimentação, inesperados deslocamentos semânticos e põe em
foco conotações dificilmente perceptíveis no que diz respeito ao que é do autor e ao que é do
ator.
21 A fábula é utilizada aqui, como a descrição e progressão da estória contada.
32
1.5 O riso inteligente: o prólogo
Uma grande parte dos espetáculos da tradição popular começam com um prólogo,
pois este estabelece uma relação estreita de cumplicidade entre ator e público, servindo para
receber a assistência, inseri-la no clima do espetáculo, no contexto, mostrar-lhe as artimanhas
que serão utilizadas, os códigos “secretos”, enfim, aproximá-la.
O prólogo, na maior parte das vezes, é tão importante quanto o corpo do
espetáculo, pois é nele que estão contidas as chaves para a sua compreensão. A “chave”, neste
caso, tem dois significados: o que alude ao cerne, ao tema do espetáculo, a chave enquanto
material utilizado para a compreensão e decodificação do que será apresentado, e também, o
seu significado literal, como chave que o público recebe para abrir a porta e adentrar no
mundo ficcional.
Em Fo, por vezes, o prólogo se apresenta mais interessante e elaborado do que o
próprio restante da peça. Fo percebeu que o prólogo divertia muito as pessoas e era muito bem
recebido, mesmo em se tratando de temas polêmicos, pois o público tinha a falsa idéia de que
o prólogo ainda não era o espetáculo em si. A partir disto, Fo se utilizou deste
“descompromisso” e agrado do público com o prólogo, para transformá-lo em um espetáculo
quase independente e em uma das convenções mais personalizadas e fortes de seu teatro,
recuperando e reformulando de maneira contemporânea um procedimento do teatro antigo.
O prólogo se divide em duas partes: o pré-prólogo ou o “prólogo às avessas” (que
é como Fo chama o prólogo que vem antes do prólogo), no qual ele e seus atores ajudam o
público a se sentar, cumprimentam, empreendem diálogos personalizados e improvisados para
individualizar o caráter do público (um hábito do teatro à italiana de antigamente) e o prólogo
propriamente dito, que serve para explicar o tema do que será apresentado na seqüência,
principalmente, quando o quadro é falado em dialeto ou grammelot e para ver e “ouvir” quem
são as individualidades que assistem.
[...] Leva para um caminho diferente de entendimento. A palavra no Dario [Fo] tem
muito mais a ver com ação vocal do que com o conteúdo da palavra. Mesmo por que
ele fala em dialeto, e de milhões de dialetos, tu podes conhecer alguns, e em
grammelot mesmo, que é uma língua inventada. Primeiro ele explica na língua local
a estória que vai ser contada, e depois faz. Eu não explico a estória, eu faço direto.
Eu tenho o prólogo, que é muito clownesco, pois serve para sentir no momento este
somatório de espectadores. [...] Os Colombaioni dizem: os primeiros minutos do
33
clown no picadeiro são para escutar, não para fazer. Você tem de saber se é um
público intelectual, se é um público ‘emo’, se é um público humilde. Essa é a
medida. Não existe isso: ‘hoje o público não estava acertado com a peça’. É a peça
que não estava acertada com o público. Então, ele tem que ser ouvido. E você vai
jogando anzóis, e conforme o que vem nos anzóis, você sabe que isca tem que usar.
Esse é o ‘prólogo inteligente’ para mim.22
Em alguns prólogos, Fo comenta as notícias do dia, as critica, fala sobre o quão
impressionante são as reviravoltas e o final do espetáculo, ou ainda, comenta as fontes de
pesquisa que foram utilizadas como base para a montagem.
Para ele, tudo deve ser claro, pois ser claro, não significa ser descritivo: “Não
ajudar o público na compreensão do espetáculo é uma conduta esnobe praticada por um bando
de idiotas que esconde, além do mais, uma impotência incorrigível. Qual seja: a impotência de
saber comunicar.” (FO, 2004:223)
Muitos recursos são utilizados e carregados de um certo grotesco, obrigando-o
posteriormente, como escritor, a adaptar o texto a determinadas situações e conformá-lo às
necessidades mais vivas e atuais que o público “pede e propõe”. Esta cumplicidade com o
público permite descobrir os erros e desequilíbrios graves do texto, as regiões mortas, os
hiatos sem sentido, as regiões prolixas ou pouco claras quando é necessário ser. Neste caso,
“não se trata de improviso, mas da participação do autor-ator-encenador enquanto narrador
que apresenta e vai contar o personagem, ao mesmo tempo em que observa seu público e cria
com ele.” (VENEZIANO, 2002:179)
O que é dito no prólogo nem sempre é confortável ao público, mas incômodo e
candente; e ao invés de varrer para baixo do tapete acontecimentos recentes que trazem
choque e desconforto, eles são trazidos à tona, muitas vezes, logo no início de maneira irônica
e grotesca.
Antes de dar início ao quadro La ressurrezione di Lazzaro, Dario recorda que os
giullari , que tomavam emprestados os temas bíblicos sem blasfemar contra Deus ou
a Virgem Maria, criticavam a exibição do milagre transformado em grande evento
para ser mostrado como mágica fantástica e sobrenatural, contrariando o que deveria
ser o milagre em sua essência: uma demonstração de amor e compaixão ao próximo.
‘Esta é a chave da narrativa’, explica Dario. Ao compreender a ‘mensagem’, o
público se sente ‘mais inteligente’ e acompanhará o monólogo que se seguirá, feito
em dialeto ou em grammelot. (VENEZIANO, 2002:179)
22 Roberto Birindelli, em entrevista concedida a autora em maio de 2007, vide apêndice.
34
Indicar ao público as chaves da narrativa, não significa facilitar-lhe o caminho,
pelo contrário, é mostrar-lhe um caminho menos fácil e repleto de imaginação.
A leitura objetiva e aprofundada do que sabemos estar por trás dos fatos que permite
recriar hoje, de maneira grotesca, irônica ou trágica, o que a informação imediata
nunca poderá nos dar. Assim, iremos contrariar o programa e a estratégia que o
poder tenta levar adiante, ou seja, doutrinar o público a nunca usar o seu senso
crítico: achatamento mental, fantasia zero. (FO, 2004:201)
É justamente o elemento “fantasia” que Fo quer suscitar, quando pede ao público
que preste atenção em determinadas passagens, ou quando diz no prólogo que este se
surpreenderá com o final do espetáculo ou com as reviravoltas e, ao invés de revelar o que
vem a seguir, faz com que este público se torne atento a cada situação desenvolvida. O que
lhe é permitido compreender completamente, são as chaves necessárias para a compreensão
de momentos indispensáveis para o desenvolvimento da narrativa. O público se sente então,
parte importante para a construção do espetáculo desde o início, pois percebe que em
momento algum, as passagens são fáceis ou mastigadas completamente e, que é ele quem
precisa, a cada minuto, terminar de desenhar a situação.
35
1.6 O ator-narrador
Os fabuladores que tanto inspiraram Fo, contavam suas estórias entre a primeira e
a terceira pessoa, como se tivessem assistido aos fatos épicos, absurdos e repletos de situações
hiperbólicas, inverossímeis, assim como os jograis medievais se apresentavam e se exibiam
mudando de um personagem para outro.
Os monólogos de Fo trazem para a cena as técnicas do racconto, nas quais o ator é
o narrador de uma estória, geralmente épica e surreal, e se utiliza de todo o seu corpo e de um
grande arsenal de “truques” para convencer a assistência dos fatos espetaculares de que foi
testemunha.
Na interpretação naturalista, cujos maiores defensores foram André Antoine (1858
- 1943) e Konstantin Stanislavski (1863 - 1938), quanto mais o ator colocar sua personalidade
à disposição do personagem, incorporando de forma consciente sua psicologia e se
aproximando o máximo possível da realidade quotidiana, maior será a qualidade do seu
trabalho. O ator-criador em Dario Fo, e no caso dos atores dos espetáculos A descoberta das
Américas e Il Primo Miracolo, atribui um alto grau de pessoalidade às ações que realiza em
cena. Isto significa que nesta linguagem que abarca a composição das ações por parte dos
executantes da obra, e a linguagem improvisacional durante o processo de criação, conta
menos a metamorfose do ator num outro, do que a inteireza e verdade de seu estado em cena.
Nestes casos, ao contrário, não há um tradicional processo de identificação do ator com o
personagem, como no teatro naturalista.
A qualidade da presença cênica é medida por um grau de comprometimento do
ator com aquilo que realiza, mais próximo neste sentido, apesar de muito distinto, do
estranhamento (verfremdungseffekt) brechtiano. A pessoalidade é a crença no fato de que o
intérprete deixa de ser o mediador de idéias de outrem e passa a ser ou parecer ele próprio o
autor das idéias que transmite.
Essa noção de pessoalidade não é a mesma da psicoterapia tributada ao americano
Carl Rogers (1902 - 1985), pois não necessariamente contém identificações pessoais entre
ator e personagem, sim, que este personagem parece ser o próprio intérprete que narra a
estória.
Apesar de as ações e a gestualidade serem mais teatrais no sentido exato do termo,
por tanto, mais “artificiais” ou distantes do real, por possuir uma corporalidade mais enfática
36
e exagerada, os personagens dos monólogos de Fo parecem ser desdramatizados, ou seja,
personagens não fictícios, pois contando a estória à sua maneira, passam a apropriar-se dela.
Aproveitando-se de um amplo acervo de jogos dramáticos, de regras da Arte da
comédia e da narração, o ator conduz um processo onde cada ator/narrador se
apropria do texto da estória que deseja contar, tornando-se aos poucos o autor das
palavras que contam a estória, criando assim uma dramaturgia própria. Num
segundo momento, as dramaturgias individuais serão desenvolvidas, abandonando
por completo a literalidade do texto escrito para serem narradas em presença
interativa entre o narrador e o público. Entende-se esta ‘dramaturgia individual’
como um desenvolvimento tanto da oralidade quanto da fisicalização do narrador.23
O ator se apropria da estória a ser contada, e imprime sua própria identidade
gestual e vocal, seja ela criada a partir de um personagem ou não. Esta identidade passa a ser
não só identidade vocal ou gestual de agente físico, mas também de agente conceitual.
O narrador não tem o compromisso com a verdade, ele tem um compromisso com a
estória, e uma estória bem contada se torna verdade. Então ele não tem a obrigação
de saber que aquilo não era um tronco de árvore, que eram folhas colocadas uma em
cima da outra [ sobre a canoa dos índios]. Eu parto deste princípio: o Johan Padan é
um personagem fictício, mas que certamente já existiu na pele de vários outros. 24
O ator possui no teatro um status duplo: o de ser real e presente, mas ao mesmo
tempo, imaginário ou virtual, situado em uma outra cena, ou plano.
No Teatro Naturalista o ator necessita possuir todo tipo de técnica para não
quebrar a ilusão, ou o fio tênue que separa persona-personagem, para que o público “acredite”
que ele realmente “é” o personagem ao qual representa. No teatro não naturalista, como no
universo dos espetáculos de Fo, principalmente os monólogos, o ator pode parecer ser a
personagem por técnicas de autopersuasão, como iludir, fingir, ser outro, ou então, tomar
distância de seu papel, citá-lo, ironizá-lo, sair e entrar nele por diversas vezes. Para isto,
necessita ser o dono da codificação escolhida e das convenções de atuação que ele aceitou
assumir.
23 Texto enviado a autora via e-mail por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, vide anexo. 24 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
37
A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da
cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os
personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o
pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-
pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à
cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela
contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às
marcas) decai diante da urgência da performance.25
O monólogo, peça para um só ator, retorna à cena com toda a força a partir dos
anos 60, pois além das contingências da produção (possuem um custo inferior e uma maior
mobilidade física e geográfica), facilitam a narrativa íntima e o testemunho direto, pois se
dirige ao público sem nenhum tipo de obstáculo e sem anteparo de uma ficção premeditada.
Tem raízes populares incontestáveis, como os rapsodas gregos, os giullari medievais, os
atores de feira, os mimos das ruas e palácios e os clowns, embora alguns atores de diferentes
épocas o conduzam à trucagem sistemática e a uma série de efeitos, se entregando a uma
espécie de meditação interior sem qualquer tipo de contato com o público, uma falação da
qual este, por convenção, se torna excluído.
A força dramática do monólogo e suas implicações ideológicas evidentemente não
são as mesmas em todas as situações de fala, mas o monólogo situado na linha física de
representação, no qual o corpo do ator e suas ações permanecem no centro, enfatiza a
presença imediata, real e física do ator, que enfrentando o público a partir de um espaço vazio,
propõe uma narrativa que se dirige a ele de forma quase pessoal.
Diferentemente da teoria dramática tradicional, que opunha o narrativo ao
dramático, a cena moderna redescobre o cenário como um espaço para a narração, o
relato e a reflexão; mas uma narração entendida como um ato realizado desde o aqui
e o agora, ato performativo por excelência, situado já nas origens do teatro e da
literatura em geral através da figura do rapsoda. (CORNAGO, 2005:24,
tradução nossa)26
25 Texto enviado a autora por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, vide anexo. 26 A diferencia de la teoría dramática tradicional, que oponía lo narrativo a lo dramático, la escena moderna redescubre el escenario como un espacio para la narración, el relato y la reflexión; pero una narración entendida como un acto realizado desde o aquí y el ahora, acto performativo por excelencia, situado ya en los orígenes del teatro y la literatura en general a través de la figura del rapsoda.
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O ator-rapsoda, uma referência aos rapsodas gregos que recitavam trechos da
Ilíada e da Odisséia, faziam com que as formas épica e dramática passassem a conviver em
um jogo de intercâmbios.
Podemos dizer então, que o ator das escrituras de Fo, são atores-rapsodas, pois
são aqueles que trabalham a composição de sua representação em uma cena na qual a própria
dramaturgia se encontra, de alguma forma, na categoria do épico. Esta atuação se torna
distanciada ou expositiva e é estruturada pela atitude narrativa do ator e pelas funções que este
mesmo ator exerce no sentido de comentar as ações, encaminhá-las, introduzir personagens e
criticá-los ao mesmo tempo que dialoga com eles, evidenciando o jogo entre a comunicação
verbal e a gestual.
Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, apesar de serem dois
monólogos do mesmo autor, podemos identificar uma postura diferente do narrador já na
escritura de Fo.
O personagem-narrador, como no caso de Johan Padan, representado por Julio
Adrião em A descoberta das Américas, se manifesta entre a primeira e a terceira pessoa, e sua
visão do relato será sempre uma parte da visão, apesar de “mais crível”, já que participou dos
eventos ficcionais como protagonista. O ator Julio Adrião se apresenta como o personagem
Johan Padan do início ao fim do espetáculo, citando os outros personagens que possuem
como primeira pele, o malandro fanfarrão Padan. Portanto, não é o intérprete se apresentando
como ele mesmo, mas é Johan Padan que cita os outros personagens, que por vezes,
representam figuras inanimadas como tempestade, alga marinha e lua.
Já o narrador-personagem, como na representação de Il Primo Miracolo, por
Roberto Birindelli, possui um menor grau de adesão afetiva ao relato e um maior grau de
opinião crítica em relação aos personagens e suas ações, pelo fato de analisá-los de fora e de
não ter participado como personagem dos momentos históricos que narra. O intérprete de Il
Primo Miracolo passa por vinte e dois personagens, mais se apresenta no prólogo como o
próprio intérprete e ao longo da representação “cita” os personagens através de ações, mas
não os “representa”, através de códigos pré-estabelecidos com a platéia, como veremos no
terceiro capítulo.
E aí tem uma diferença com o trabalho do Julio, que eu conheço, mas eu não sei
bem claro, que é: onde cada um está no meio do narrador. Talvez pelo próprio texto
do Fo, quem conta a história [no caso de A descoberta das Américas] é o
sobrevivente da visita às Américas, portanto, existe um personagem dialogando com
o espectador e no Il Primo Miracolo não tem. Existe o performer o tempo todo. É o
39
Roberto que está dialogando contigo e juntos vamos construir uma ficção a partir
deste trabalho.27
O ator-rapsoda pode transitar entre estas duas posições, não permanecendo
necessariamente em um só tipo de narrador. Pode narrar ao mesmo tempo que seu corpo
presentifica e fisicaliza um personagem.
Mesmo o personagem-narrador, estará sempre em algum grau de distanciamento
que o permita revelar sua condição de manipulador das ações do relato.
Hoje temos a dificuldade de identificar o que é narrador e o que é personagem no
espetáculo, por que eu criei os códigos, as máscaras dos personagens. Então tem a
máscara do Johan Padan bem, para cima, e dele derrotado. Então, tem a cara dele
esgarçada, que é a cara dele. Existe sempre a máscara e a contra máscara. A cara de
qualquer índio é esta [demonstra]. A de qualquer espanhol é esta, que vem da
postura do capitão da commedia dell’arte e tal, mas eu tenho também cavalo, alga
marinha, tempestade, lua, coisas que são personagens da estória e que se
materializam ali. Um ator para bem narrar lança mão não só da palavra com tons e
variações, mas também de formas físicas e ritmo, e essas formas servem para ilustrar
a ausência de outras informações. Tem partes que não dá para modificar as
máscaras, pois a passagem de uma para outra é muito rápida. Eu não vi o Il Primo
Miracolo [espetáculo de Roberto Birindelli], mas eu já não identifico no meu
espetáculo esta quebra do narrador. Ele está todo o tempo mesclado neste Johan
Padan, e eu fazendo o índio, sou o Julio quem faz. Não me sinto Johan Padan
fazendo o índio. Claro, tem oras que o Johan faz só a máscara indicativa do índio
para dizer que o índio está na frente dele. Não consigo identificar claramente estas
diferenças. O que eu posso dizer, é que necessito de muita concentração para
percorrer estas partituras fisicas, sonoras e verbais. Então, para mim, existe o ator
em cena passando por estes códigos.28
Nesta tradição de linha física, as escrituras de Fo suscitam, assim como em Jerzy
Grotowski (1933 - 1999) e Eugenio Barba, mesmo que de maneira distinta, a fisicalização das
emoções. As emoções deixam de ser perturbações passageiras ou presentes apenas no
pensamento do ator, para se transformarem em movimento, ações físicas e ações verbais que
motivam a dinâmica do jogo e o espaço-tempo-ação da fábula na qual se insere.
27 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 28 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
40
Na prática teatral contemporânea, o ator não remete mais sempre a uma pessoa
verdadeira, a um indivíduo formando um todo, a uma série de emoções. Não
significa mais por simples transposição e imitação; constrói suas significações a
partir de elementos isolados que toma emprestado de partes do seu corpo
(neutralizando todo o resto): as mãos que mimam uma ação inteira, boca unicamente
iluminada com exclusão de todo o corpo, voz do narrador que propõe enredos e
representa sucessivamente vários papéis. (PAVIS, 2005:55)
Neste caso, o ator-rapsoda dos monólogos de Fo, não é encarregado de mimar um
indivíduo completo e inalienável: não é mais um simulador, mas um estimulador; ele atua,
suas ausências, sua multiplicidade, suas insuficiências, suas dúvidas, assim como o ator
medieval, os giullari , os fabulatori, assim como a maior parte dos “atuadores solo” de
diferentes tipos de teatro popular ao longo dos séculos sugeriam a realidade por uma série de
convenções estabelecidas que são localizadas e identificadas pelo espectador.
Quando a troca de personagens é muito rápida, assim como Fo, os atores não
esperam fazer a máscara do personagem e enquanto se deslocam já dão a réplica para
preencher o tempo morto, o que Fo dá o nome de seqüência cruzada, como no cinema. Por
vezes, é apenas o conteúdo da fala que faz entender que já é outro personagem e não sua
atitude em si.
Dario Fo, assim como os atores dos espetáculos analisados, algumas vezes, vai
até próximo aos espectadores e introduz um diálogo tête-à-tête destruindo atrás de si o lugar
da representação, o “cenário” onde acontece a situação, quebrando a quarta parede e
ocasionando um distanciamento diferenciado utilizado pelos clowns, no qual estes trocam
confidências com o público como em um aparte.
Os atores dos monólogos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo
necessitam construir em si mesmos maneiras diferentes para realizar as experiências cênicas
que fundamentam o processo de construção do espetáculo, pois somam uma busca de
conhecimentos solitária e pessoal, representam relações sociais, processos históricos e críticos
que não são os mesmos do lugar de origem do texto, trabalham com a não individualização do
personagem, ocupam um espaço vazio que deve ser preenchido por suas ações, encontram
seus próprios materiais textuais/gestuais sem a necessidade “impositiva” da orientação de um
diretor, e numa atitude totalmente dramatúrgica, movimentam o equilíbrio dinâmico entre
actante e assistência, reanimando a relação com a platéia, pois não possuem a recepção de
outros actantes, apenas a relação com o público que é a única força que sustenta suas ações.
41
Seriam “quase” performers se a relação entre obra e vida dos atores fosse
absolutamente explícita, mas a comunicação com o termo está mais ligada à ênfase do evento.
No panorama pós-moderno da produção teatral, o conceito de performance
destaca o valor empírico da comunicação em detrimento das qualidades potenciais. Nas obras
analisadas estes dois elementos trabalham em equilíbrio e o uso do termo associado ao ator
enfatiza a sua presença material e sua relação emergencial com a cena, a qual modifica
também a relação com o corpo do espectador. Neste caso, “o corpo – performativo – se faz
mais visível na medida em que escapa aos sentidos lógicos impostos desde os diálogos e a
situação dramática, que se toma da situação real da comunicação cênica com o público.”
(CORNAGO, 2005:24, tradução nossa)29
Se o real é o que resiste à simbolização, podemos dizer, que os trabalhos feitos a
partir das escrituras de Fo, estão longe do real por trabalhar com a simbolização de maneira
explícita, pois como no terreno da performance, não oculta a estrutura que gera a “realidade”,
invocando um “real” absolutamente teatralizado. A ilusão cênica, provocada pela relação não
distanciada entre ator e personagem é rompida, e a linguagem surreal e grotesca, na maior
parte das vezes, dá origem a um modelo diferenciado que corrobora com o ficcional; e ao agir
materialmente, o intérprete produz novas combinações simbólicas no espaço e no tempo do
evento. A desdramatização do personagem está apenas no sentido de que este está introjetado,
e as codificações são tão autorais, ao ponto de parecer que a estória está sendo criada no exato
momento da representação. Esta relação paradoxal se deve ao fato de que quando o ator se
apropria de uma estória, a maneira da narrativa oral, mesmo que esta seja absolutamente
surreal e hiperbólica como as escrituras de Fo, ela se torna próxima de uma outra realidade
que apesar de inverossímil, pode ser crível.
O ator - rapsoda não necessita de uma psicologia que justifique suas ações, já que
a aproximação entre ator e personagem não se dá pela via da identificação, mas por um acesso
determinado pelo exercício constante e claro de um ponto de vista, que traz a lógica, os
objetivos, a linha de ação. O ponto de vista será sempre o do narrador, ou filtrado pelo
personagem que temporariamente assume.
29 El cuerpo – performativo – se hace más visible en la medida en que escapa a los sentidos lógicos impuestos
desde los diálogos y la situación dramática, que se toma de la situación real de la comunicación escénica con el
público.
42
2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UM A
ABORDAGEM DOS ESPETÁCULOS A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS E IL PRIMO
MIRACOLO
Alguém garante que Shakespeare disse: ‘O
teatro é a palavra’. Jamais encontrei essa frase
entre os escritos de Shakespeare; de qualquer
modo, estou certo de que, se ele a disse, ela lhe
escapou. Não me venham dizer que alguém que
conta uma história onde há um sujeito que
conversa com o fantasma do pai, que mata
quatro pessoas, que deixa a noiva louca e, no
fim, morre de uma espada envenenada tinha
intenções exclusivamente literárias. (FO apud
VENEZIANO, 2002:144)
2.1 O pöer nano30 que descobriu as Américas
Alguns gêneros medievais apresentavam em sua estrutura a figura do louco ou do
malandro como figura principal que narra a estória. Desde a sua adolescência em Porto
Valtravaglia, a convivência com os sopradores de vidro, principal atividade profissional da
cidade, e suas histórias dementes, fez com que a figura do louco e do tonto ficasse muito
familiar para Fo.
Na década de cinqüenta, quando passou a trabalhar na rádio, surgiu o seu
personagem pöer nano, Anacleto. Dario Fo preocupou-se em desmontar o privilégio do herói
que se contrapõe às características do povo trabalhador, sujo, faminto e cansado. Por isso, seu
narrador em diversas obras é um pöer nano, um pobre coitado que tem suas ações e idéias
impulsionadas por seu estômago vazio.
30 Figura do povo, “malandro”, pobre, astuto.
43
Critica a lógica do protagonista bonzinho e mescla maldade, ignorância, esperteza,
malandragem e bondade em um só personagem, tornando-o o mais próximo do humano
possível.
Fo, que havia partido do personagem mítico dos fabulatori e da Revista (onde
nasce o embrião da figura do povo) chega à figura do Zé Ninguém, a qual faz com que o
público possa ver a história a partir de um outro ângulo: aquele que se vê de baixo.
A figura deste Zé Ninguém, lembra a do clown, ofício afim ao do jogral e do
mimo greco-romano, no qual utilizavam-se recursos de voz, gestualidade acrobática, música,
canto, até “uma certa prática com animais ferozes”.
O termo clown nasce para designar camponeses que iam para as províncias em
busca de trabalho e acabavam sendo ridicularizados por suas roupas, sua fala e seu jeito, ou
seja, um tipo de pöer nano, este personagem do povo, malandro e astuto.
Fo teve um maior contato com o ofício dos clowns e seus artifícios, com os
Colombaioni, família tradicional na arte dos clowns na Itália, e transferiu a inquietude e a
astúcia destas figuras para suas escrituras. Segundo Fo, o clown foi deslocado para uma
puerilidade simplória e infantil, e perdeu a sua capacidade de provocação, o seu empenho
moral e político, pois em outros tempos, exprimia a sátira e a violência, a crueldade e a
condenação da hipocrisia e da injustiça, o que justamente sempre o interessou e o que tentou
“resgatar” em seus espetáculos.
O clown vem de muito longe: eles já existiam antes do nascimento da commedia
dell’arte. Podemos dizer que as máscaras à italiana nasceram de um casamento
obsceno entre jogralescas, fabuladores e clowns; e, posteriormente, depois de um
incesto, a commedia pariu dezenas de outros clowns. (FO, 2004: 305)
Os clowns existem em praticamente todos os gêneros teatrais de todos os países
ocidentais e orientais, e a fome é o motor de seu movimento. É o que os move fisicamente e
intelectualmente. Os clowns são a própria fome. A fome de poder, de comida, de dignidade,
de identidade, e atuam sobre a emergência da fome, assim como os jograis e os commici
dell’arte.
Existem no mundo dos clowns duas alternativas: dominar (o clown branco) ou ser
o dominado da commedia dell’arte, o submisso, a vítima. Os toni, os Auguste lutam para
sobreviver, rebelando-se algumas vezes, mas normalmente se viram e se safam como Johan
44
Padan de A descoberta das Américas, um dos muitos personagens mort’de famme que se
engendram em todo o gênero de rolos para sobreviver.
Em Johan Padan La Descoverta de le Americhe, Dario Fo inspira-se em fatos
reais que foram contados pelo cronista medieval Cabeça de Vaca31 (1490 - 1557) e conta a
história da descoberta das Américas do ponto de vista dos “espertos”, porém miseráveis e
ignorantes.
O personagem-narrador Johan Padan, é um malandro fanfarrão, embusteiro, que
conta vantagens e vive fugindo da fogueira da Inquisição. Para fugir da miséria e da fogueira,
na qual sua namorada havia sido queimada, embarca por acaso em uma das caravelas de
Colombo. Passando por muitos percalços, já na América, Johan é testemunha da matança dos
índios promovida pelos espanhóis, sobrevive a um naufrágio, é negociado, escravizado e
quase devorado pelos índios. Aproveitando-se de conhecimentos trazidos do Velho Mundo,
Johan realiza “milagres” para safar-se de inúmeras situações com uma boa dose de
malandragem que aprendeu em uma dura vida de necessidades mil. Não só escapa de ser
comido pelos índios, como ainda passa a ser encarado por estes como uma divindade - O
Filho do Sol e da Lua. A partir daí, o personagem agrega um verdadeiro exército de índios e
acaba, ainda que esta não fosse sua primeira intenção, organizando um foco de resistência aos
espanhóis.
Johan Padan, assim como os Zanni da commedia dell’arte, possui um repertório
de lazzi que o possibilita entrar e sair de distintas situações.
Os Zanni (pais da máscara do arlecchino), morriam de fome literalmente. Em A
fome do Zanni, Dario Fo representa um Zanni que descreve a sua enorme fome e imagina
comer-se a si mesmo órgão por órgão. Fo a faz em grammelot e a utiliza para demonstrar a
distinta gestualidade quando se usa a máscara, e quando não se a usa.
A descoberta das Américas é um racconto histórico às avessas, como Fo já havia
feito na peça metateatral Isabella, tre caravelle e un cacciaballe, na qual um ator pobre
coitado, que interpretou uma comédia de sua autoria sobre a vida de um italiano chamado
Cristóvão Colombo, é enviado para a Inquisição e precisa representar a frente de todos, a obra
em questão que o levou àquela situação. O personagem malandro é um ator que interpreta um
outro personagem malandro e astuto: Cristóvão Colombo.
31 Alvar Núñes Cabeza de Vaca, cronista e explorador espanhol, acompanhou a expedição de Harves a Florida (EUA) em 1527. Esteve no Brasil por volta de 1540.
45
Fo transforma o herói em um cacciaballe (contador de lorotas), construído, mais
uma vez, em cima da emergência da sobrevivência.
“O texto é, portanto, uma singular forma de anti-história ou, melhor, de história
narrada a voz, uma oralidade popular que não cria homens célebres e datas históricas, mas
evidencia a natureza real dos eventos.” (COLOMBO; PIRACCINI [org]. Johan Padan,
dèpliant dello espetáculo, 1998:281, tradução nossa)32
Em Johan Padan La descoverta de le Americhe, o reivindicador radical sai de
cena para dar lugar ao pöer nano, um “giullare reivindicador”, mas marginalizado e, por
vezes, lírico e pueril.
A partir de Johan Padan, seguido por Dario Fo racconta Ruzzante e, agora, com Lu
Santo Jullare Françesco, os monólogos perderam a dureza do impacto e do combate
social, o enrijecimento de uma política declarada. O compromisso político surge
menos evidente, mascarado por uma veia poética, que torna o espetáculo ainda mais
eficaz e, consequentemente, mais ferino. (VENEZIANO, 2002: 201)
Este compromisso de Fo em relação à política declarada e ao combate social que
apresenta em alguns de seus monólogos e textos políticos, aparece mascarado em Johan
Padan La descoverta de le Americhe através do lirismo e da poesia das situações e da
personagem, trazendo paradoxalmente, a despeito do “aparente” descompromisso político, de
maneira ainda mais chocante e evidente, situações relacionadas ao preconceito, ao abuso de
poder, a manipulação dos ignorantes, a disputa pelas riquezas.
Este recorte do olhar, evidencia a palavra e a gestualidade do povo, a gestualidade
que provém da fisicalidade de uma oralidade desesperada e teatral na sua essência.
Andarilhos, pícaros, bufões, rústicos e histriões são protagonistas de um mundo
virado pelo avesso e visto com o olhar satírico de quem sobrevive só para contar a
história. A adrenalina cômica deste teatro da resistência, produto de civilizações
famintas, aparecia quanto mais oportuna numa época como a nossa, em que, mesmo
na aparente liberdade propiciada pela sociedade de consumo, os mecanismos de
exclusão permanecem os mesmos.33
32 Il testo è quindi una singolare forma di anti-storia o, meglio, di storia narrata a voce, un’oralità popolare che non crea uomini celebri e date storiche ma evidenzia la natura reale degli eventi. 33 Texto inédito enviado a autora por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em Julho de 2007, vide anexo.
46
O feixe de tensões entre a palavra e a cena se projeta ao resto das linguagens, de
modo que se produz um complexo sistema de distâncias e contrastes que fazem mais visíveis
cada linguagem, e por isso, a palavra questiona o espaço, os corpos, e as ações questionam as
palavras.
Quando falamos de gestualidade e palavra separadamente, longe de criar uma
visão dualista, é para evidenciar que é necessário analisá-las, a priori, separadamente, e que
quanto mais estiverem juntas, paradoxalmente, mais evidenciadas estarão as duas linguagens.
A palavra destronada dos privilégios do texto literário formal, se torna abarcada
por outros fenômenos como o corpo, a ação e a voz, e perde a aparente inocência de um
racconto popular. Ela se faz visível como uma das ações definitórias do teatro ocidental, e no
século XX, volta a ter ligação estreita com o corpo, o movimento, o espaço, o tempo, mas
com isto, traz à tona pela primeira vez, um jogo de contrastes, que não necessariamente,
aspira à uma unidade de sentido.
Nos capítulos subseqüentes, a partir da análise do texto escrito e da descrição e
análise de cenas realizadas nos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, o
foco será o caráter processual e a dimensão material e sensorial da palavra frente a
gestualidade; o efeito de comunicação imediata e o protagonismo do receptor, referindo-se à
uma arte da experiência, própria da contemporaneidade, mas que se serve de recursos e de
elementos do antigo teatro para resgatar sua teatralidade e materialidade.
Fig. 4 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
47
2.2 Mistério bufonesco: a alegoria
Mistero Buffo (1969), considerada a obra prima de Fo, é a reunião de mais de
vinte monólogos, traduzidos e representados em diversos países. Esta obra é uma espécie de
“moralidade contemporânea”, pois “Mistério”, nome dado as pequenas peças teatrais que
transmitiam a história da Bíblia e da vida dos santos aos antigos fiéis, juntou-se ao sarcasmo e
as zombarias dos giullari e bufões, por isso, Mistero Buffo.
A obra, assim como o monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino tem como
base os temas sagrados, revistos de maneira profana, mas não blasfema, carregados de sátira e
ironia à maneira do cômico popular. Contado e visto pelos olhos de um giullare do povo, se
tornam uma espécie de mistérios às avessas.
Na busca da história do povo, Dario chegou aos instrumentos de comunicação da
cultura popular (as sagradas representações dos Evangelhos, as moralidades e outras
histórias sacro-profanas racontadas pelos giullari ). Os episódios dramatizados e a
organização das diferentes formas da expressão teatral, que correram em paralelo à
historiografia oficial, manifestaram-se depois, de forma ideal, através do filão mais
importante da arte do ator, a commedia dell’arte. [...] E essa foi, de alguma forma,
sua expressão de religiosidade. (VENEZIANO, 2002:175)
Il Primo Miracolo di Gesù Bambino fala de uma época da infância de Cristo que
passa por seu nascimento, pela fuga de sua família para o Egito e por uma parte de sua
infância, na qual supostamente aconteceram os seus primeiros milagres. Este período da
infância de Cristo, até uma parte de sua juventude, na qual, segundo a teologia cristã, Jesus
esteve meditando no deserto e aprimorando seus conhecimentos, desperta a curiosidade e a
imaginação de muitos sobre o que pode ter acontecido. Soma-se aos poderes de Cristo, capaz
de fazer os mais incríveis milagres, como flutuar, desaparecer, derrotar qualquer tipo de
inimigos, vencer dezenas de homens, transformar tudo em qualquer coisa, a impetuosidade e
impulsividade da juventude.
Fo coloca este “desaparecimento” de Cristo como um universo fantástico que
pode mexer com o imaginário do povo e criar estruturas poéticas singulares.
Reconstruindo um Jesus-Menino com características infantis e humanas, por
vezes “animais”, exceto o poder de realizar milagres, Fo cria um anti-herói apelidado por seus
48
amiguinhos de “O Palestina”, que discriminado, utiliza seus poderes para se afirmar dentro do
grupo.
Em Il Primo Miracolo, Dario Fo desmitifica a figura de Jesus e da Família Santa,
contando uma estória repleta de personagens construídos a partir da “lógica do povo”. Mostra
Jesus-Menino como outras crianças sujas, birrentas, maldosas e desobedientes, que faz seu
primeiro milagre para ser aceito, sem se preocupar com o mal que pode causar aos outros. Isto
é, Jesus faz um milagre em seu próprio benefício, e apesar dos apelos de sua mãe Maria, se
recusa a consertar as suas próprias trapalhadas.
Fo coloca a Família Santa como qualquer família pobre de retirantes, e Jesus,
como um menino que utiliza o poder que possui para ser aceito pelos outros. É claro, que
estas são só algumas das metáforas e alegorias utilizadas nos textos de Fo.
Apesar de antiacadêmico e absolutamente popular, esta veia de historiador,
pesquisador e antropólogo de Fo, oferece ao espectador o passado como metáfora para
entender o presente e criar conexões subjetivas com o futuro próximo ou distante.
Nos espetáculos que partem das escrituras de Fo, para construir o “exercício da
imaginação”, em termos utilizados por Neyde Veneziano, é impossível fugir das metáforas e
alegorias34 tanto das palavras, quanto dos gestos.
Em Il Primo Miracolo, espetáculo da Cia do Bebê, de Porto Alegre, construído à
partir da escritura de Fo de Il Primo Miracolo di Gesù Bambino, Roberto Birindelli enfatiza
no prólogo:
Explico porque este espetáculo tem uma série de alegorias que não podemos
esquecer no meio do caminho, senão não vamos entender nada. Como, por exemplo:
tinham três Reis Magos... mas, atenção! Muito importante: Um Rei Mago velho...
Fascista, ranzinza, racista, montado num cavalo preto – olha a alegoria! Um Rei
Mago loiro, jovem, lindo ... Leonardo Di Caprio, montado num cavalo muito
branco. E um Rei Mago negro montado num camelo. Decorou? Rei Mago velho no
cavalo preto, Rei Mago preto montado no camelo. Em caso de dúvida, pergunta!35
34 Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a idéia de outra, através de uma ilação moral. Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”, e veio substituir, ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.), um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero, como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais. A alegoria distingue-se do símbolo pelo seu caráter moral, e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. 35 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli do monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino, 1996.
49
Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, a alegoria mostra uma coisa
pelas palavras e outra pelo sentido, e é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente
ao longo dos tempos.
Uma das formas de distinguir metáfora e alegoria, é a proposta pelos retóricos
antigos: a primeira, refere-se apenas a termos ou imagens isoladas; a segunda, amplia-se a
expressões ou textos complexos e imagens que podem constituir uma narrativa.
Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com
sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer numa simples frase, como num
texto inteiro). Estes sentidos duplos propiciam um recurso importantíssimo nas escrituras de
Fo: o princípio da oposição, segundo o qual palavra e gesto podem seguir caminhos
contrários.
É usual na alegoria, o recurso a personificações ou prosopopéias36, em especial de
noções abstratas, prática muito comum sobretudo na literatura medieval.
Os personagens na escritura de Fo, muitas vezes se transformam, como Johan
Padan, em máscaras de tempestade, lua, mar, fogo.
No fundamento de composição semiótica do tipo "alegórica", consiste em atribuir
uma condição de ser normalmente imprópria da coisa a que se refere. Concretude ao abstrato,
pessoalidade ao impessoal, vida, anima, ao que é bruto, estático. Esta condição, muitas vezes,
traz à tona, na troca das atribuições, como acontece nos textos de Fo, a comicidade.
Apesar de não pretendermos nos estender nas definições de alegoria, metáfora e
símbolo, para nos aprofundarmos nos estudos das relações entre corpo-palavra-gestualidade
em Il Primo Miracolo e A descoberta das Américas, é inevitável aceitarmos suas presenças
para uma melhor compreensão da escritura de Fo e para criar conexões intertextuais
concretas, pensando nos sentidos opostos que podem suscitar, por vezes, a gestualidade que
acompanha simultaneamente as palavras, o que veremos mais detalhadamente, no recorte de
algumas cenas, no terceiro capítulo.
A decifração de uma alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que
permita identificar num sentido abstrato um sentido mais profundo, sempre de caráter moral.
Numa alegoria, é também necessário que as abstrações que determinam o sentido alegórico
36 Figura que dá animação ou ação às coisas inanimadas.
50
procurado sejam de imediata compreensão, pois apesar, de às vezes, se utilizar da metáfora
que suscita diferentes sentidos, é próprio da alegoria não fazer uso da ambigüidade ou da
plurissignificação, sob pena de se perder a didática moral procurada.
A linguagem alegórica não possui o mesmo dinamismo que a linguagem
metafórica, que é suscetível de variações semânticas mais profundas, ao ponto de não suportar
a repetição de um mesmo significado, nem depender de significados pré-fixados. As
Moralidades, tipo de evento teatral da Idade Média, se utilizava das alegorias para transmitir
o valor dos vícios e das virtudes.
Mas a abertura do sentido da alegoria é uma conquista apenas da teoria da
literatura do século XX. A distinção fundamental entre a alegoria e o símbolo foi estabelecida
durante o Romantismo, e em especial com Goethe e Schlegel.
De uma forma geral, podemos dizer que a crítica romântica da alegoria não é de
caráter rigorosamente científico, e rege-se mais por critérios de gosto de escola, embora tenha
sido recebida com tal entusiasmo, que ainda hoje a desconfiança com que se olha a alegoria
como processo criativo, pode dever-se a essa tradição. Goethe distinguiu assim os dois
procedimentos retóricos:
A simbólica transforma o fenômeno em idéia, a idéia em imagem, e de tal modo que
na imagem a idéia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível e, ainda que
pronunciada em todas as línguas, continuaria a ser indizível. A alegoria transforma o
fenômeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o
conceito permanece limitado e suscetível de ser completamente apreendido e usado,
e pronto para ser expresso por essa mesma imagem. (GOETHE, 1992:188,
Trad. José M. Justo).
A discussão sobre as diferenças entre símbolo e alegoria continua no século XX,
salientando-se as reflexões de Walter Benjamin, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e
Paul de Man. Todos tentam, de uma forma ou de outra, estabelecer a conciliação de ambos os
conceitos, que foi negada pelos românticos.
Enquanto os símbolos são tipos de signos cujo significado deriva de convenções
cristalizadas pelo uso, num dado contexto cultural, a semiose simbólica se estabelece ao modo
51
do código e as metáforas e alegorias combinam diferentes signos em expressões que solicitam
um universo semântico hipertextual, a fim de se estabelecer um significado. Metáforas e
alegorias proporcionam ao intréprete uma gama maior de possibilidades de entendimento; são
construções semióticas com vocação natural para a chamada “interpretação aberta”.
A mímica moderna que também está presente na gestualidade e inclusive nas
palavras de Fo, não vem apenas da sua relação, um tanto conturbada, com Jacques Lecoq, por
causa das críticas relacionadas aos clichês passados por Lecoq para seus discípulos, mas da
subjetividade suscitada pela metáfora do gesto, que difere-se da literalidade da pantomima. Fo
conviveu de perto com mímicos de todos os estilos, mesclando em seu trabalho gestual, tanto
a mímica quanto a pantomima.
No teatro que parte da escritura de Fo, o intérprete é o suporte prioritário do signo
teatral, diferentemente de outros tipos de teatro, nos quais há outros componentes constituindo
o todo espetacular, e nos quais, a “significação” estaria mais diluída no todo do espetáculo.
No ‘Il Primo Miracolo’ não tem nenhum gesto imitativo: ‘Ó, te ligo depois’ [mima
ilustrando]. Nada. São gestos que significam. Tem uma palavra mágica no teatro
simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal coisa, e não, isto é tal coisa.
Mas no momento que tu dizes, me parece, não é o ‘parece’. Por que quando tu dizes
‘me’, a tua subjetividade já foi envolvida. Então, eu te dou um molho
suficientemente agridoce para tu não saberes do que é feito. Para tu dizeres: ‘isso me
parece uma comida que a minha avó fazia’. Pronto, estás no anzol. Então, eu te digo
algo que mexe com o teu emocional. Tem diferentes coisas neste molho para que
diferentes pessoas possam se identificar de maneira diferente. E desse caldo é que
sai esta relação.37
Nos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, a utilização que
se faz da palavra na cena, na medida em que se trata de um uso nunca transparente ou neutro,
apesar de claro em sua intenção, serviria como metáfora para entender os espaços que a
palavra não ocupa na sociedade atual. Mas neste caso, o estudo das alegorias e metáforas
explícitas e não explícitas que podem estar presentes no texto, ao contrário, podem nos ajudar
a compreender a ocupação destes espaços vazios, e a maneira como mudam de um lugar para
outro na própria cena, construindo significações distintas.
37 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora em maio de 2007, vide apêndice.
52
Conforme Barba,
“É verdade que uma representação teatral comunica algo aos espectadores por
meio de sistemas diversos e complexos de sinais, mas um sinal neste caso não é um sinal em
si e para si mesmo: é algo que se pode tornar assim.” (BARBA; SAVARESE, 2000: 257)
Mais adiante:
Quando os semiólogos analisam uma representação como um complexo de sinais
variados e estratificados, eles examinam o fenômeno teatral pelo fim, pelo resultado.
Não há nada a indicar, entretanto, que seu processo é de qualquer forma útil para os
que devem começar pelo começo, isto é, pelos autores da representação, cuja meta
final é o que a representação será aos olhos dos espectadores. (2000: 257)
A subjetividade da ação, cerne do trabalho de Fo, permite que o espectador
participe da construção do significado, o qual está intimamente ligado as diferentes intenções
que uma palavra pode suscitar e não a literalidade da forma. Assim, o movimento e a ação,
não só a palavra escrita, mas principalmente a escritura que nasce da ação, como em Fo,
abandonam o seu estado virtual e se apresentam no corpo como resultado de um processo de
criação, que organiza diferentemente a relação entre ação e palavra e entre dentro e fora do
corpo, que também pode ser chamado de semiose.
53
2.3 A mímica moderna e a estética do movimento
A designação de mimo é geralmente utilizada para nominar uma gestualidade sem
palavras; mas entre os gregos e romanos, mimar significava usar o corpo e a voz, realizar
jogos acrobáticos, cantar e dançar. Segundo Fo,
Em Nápoles, enfim, assegura-nos Bragaglia, assim como outros estudiosos, nasceu o
mimo entendido como um gênero de teatro total, no qual se empregava voz, corpo,
dança e acrobacia... ou seja, o pressuposto fundamental na origem da máscara
napolitana. (FO, 2004: 88)
Nos séculos XV e XVI os commicos dell’arte desenvolveram em outros países,
principalmente na França, procedimentos que saíram embrionários da Itália, quando entraram
em contato com textos satíricos de alta qualidade e a mímica mais desenvolvida.
Na mímica moderna, chamada de mímica subjetiva, nascida na França no século
XIX, o mimo age para sintetizar e sugerir, fazer imaginar, e só obtém êxito, ao contrário do
que se pensa muitas vezes, quando sua gestualidade assume efeitos claros e não cotidianos e
estereotipados que reiteram o jogo das palavras.
Dario Fo em suas obras mescla ação vocal e ação gestual, sons onomatopéicos,
síntese, isto é, os elementos - base da mímica moderna.
Para Jacques Lecoq, com quem Fo trabalhou na Revista Il dito nell’occhio, a
mímica é uma maneira de redescobrir a “coisa” com um frescor renovado, na qual a ação da
mímica redescobre o valor dos objetos e ações, e os atribui novos significados. Lecoq,
juntamente com Giorgio Strehler (1921-1997), foi um dos formadores do Piccolo Teatro de
Milão e alguns dos principais ensinamentos de sua escola passam pelo trabalho com as
máscaras e pela busca do clown pessoal, o qual não se trata de um personagem, mas da
ampliação dos aspectos humanos e “estúpidos” de cada um, isto é, a caricatura de si mesmo.
Foi com Lecoq que Fo aprendeu a usar seus longos braços e pernas e seu sorriso projetado
para fora dos lábios na construção de efeitos cômicos. A mímica para Lecoq é o próprio teatro
e não um universo à parte, como queria Etiénne Decroux (1898 – 1991).
[...] Todo verdadeiro artista é um mímico. A habilidade de Picasso de desenhar um
touro dependeu dele ter achado a essência do touro nele mesmo, que liberou a forma
dos gestos em sua mão. Ele fazia mímica. Pintores e escultores são artistas mímicos
54
fantásticos porque eles dividem o mesmo ato da corporificação. (LECOQ apud
MALDONADO, 2005: 97)
O que Fo traz do trabalho com Jacques Lecoq, é a síntese e a idéia de aludir em
lugar de realizar a descrição completa. Colocar em foco detalhes e deixar escapar outros
(Barba nomina este procedimento de Fo de omissão), determinando um estilo e um ritmo
preciso da narrativa. Este trabalho com a síntese se reflete na escritura de Fo, como já vimos,
assim como a metáfora dos gestos e das palavras, na qual um preenche o lugar deixado pelo
outro.
Apesar de possuir conflitos conhecidos com Lecoq a respeito da linha ideológica e
dramatúrgica a ser dada ao mimo, na qual a palavra, por vezes, recebe um tratamento inferior
ao gesto, reiterando os esteriótipos repetidos por todos os mimos formados por ele, e da
permanência da “quarta parede” nos espetáculos, Fo aperfeiçoa, com a preparação corporal de
Jacques Lecoq, para a Revista Il dito nell’occhio ou anti-revista, como quer, a noção de
síntese, o trabalho com a oposição gesto-palavra iniciado com os estudos sobre a commedia
dell’arte, o grammelot e a codificação gestual que “domesticou” o furacão da espontaneidade
de Fo, ensinando-lhe a precisão do gesto.
Fo substitui por aludir a idéia de imitar, abrindo um espaço entre palavra e
gestualidade para que o público preencha através de um exercício imaginativo.
Sobre seu encontro com Jacques Lecoq, em um curso, Roberto Birindelli, ator de
Il Primo Miracolo, comenta em entrevista concedida a autora em maio de 2007:
A mímica. O Dario [Fo] também trabalhou com Lecoq. A precisão da mímica. A
precisão de meio gesto que significa muita coisa. Tem uma diferença brutal entre a
mímica e a pantomima. A pantomima diz respeito à forma, e a mímica diz respeito
ao sentido. Então tu aderes ao sentido. No mimo: [faz o gesto ilustrativo] ‘eu quero
sair contigo para nadar.’ Isso é uma pantomima que tem nos Arlequins. É lindo, é
bárbaro! Mas no Il Primo Miracolo não tem nenhum gesto imitativo que eu construí.
‘Ó, te ligo depois’ [faz o gesto ilustrativo]. Nada. São gestos que significam. Tem
uma palavra mágica no teatro simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal
coisa e não isto é tal coisa. Mas no momento que tu dizes me parece, não é o parece.
Por que quando tu dizes me, a tua subjetividade já foi envolvida. [...] O que eu trago
do Lecoq é o uso do corpo de uma maneira não cotidiana.38
38 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
55
Justamente a idéia cara ao simbolismo era deixar a imaginação do espectador a
liberdade de completar o que não foi dito. Em outro contexto do de Fo, também sugeria o
mínimo de ação para permitir o máximo de tensão, sugerida no desenho plástico do corpo da
personagem.
Jacques Copeau (1879 - 1949), precursor da mímica moderna, trabalhou no teatro
a improvisação da commedia dell’arte e com ela a imaginação criativa, o trabalho com as
máscaras e o jogo; mas um dos elementos mais importantes recuperados por Copeau foi a
eliminação na cena de tudo o que prejudicasse a presença física do ator (idéias que seriam
reforçadas por Jerzy Grotovski mais adiante em seu “teatro pobre”), contribuindo assim para
reforçar a idéia de um ator-criador que pudesse se encontrar sozinho em cena, apesar de que,
para ele, esses recursos deveriam ser utilizados para que o ator servisse melhor ao autor.
Sem pensar em diminuir de modo algum a importância da palavra na ação
dramática, estabelecemos que para ela ser justa, sincera, eloqüente e dramática, seria
necessário que o verbo articulado, que a palavra enunciada fosse o resultado de um
pensamento sentido pelo ator em todo o seu ser, e o desabrochar de sua atitude
interior ao mesmo tempo que da expressão corporal que a traduz. Daí a importância
primordial dada à mímica em nossos exercícios. Fizemos dela a base da instrução do
ator, que deve ser, em cena, acima de tudo um ser que age, uma personalidade em
movimento. Levamos bastante longe este método para que o aprendiz de ator chegue
a ser capaz de ‘figurar’ toda e qualquer emoção, todo e qualquer sentimento e até
todo e qualquer pensamento pela atitude, pelo gesto e pelo movimento, sem o
auxílio da palavra. (COPEAU, 1974:114, trad. J. R. Faleiro)
Já Etiénne Decroux, um dos “pais” da mímica moderna, trava uma batalha radical
ao “império do texto”. Segundo ele, o ator é o poeta da Ação. “Ele é o autor da música
dramática: a que ele compõe, mesmo sem tomar nota, para as palavras daquele que leva o
nome de autor. (DECROUX apud MALDONADO, 2005: 28)
A mímica moderna se diferencia da pantomima, pois ela não só ilustra, mas
mergulha nos movimentos da emoção para tornar visível o invisível. A mímica de Decroux
exaltava a importância da metáfora gestual, diferente da mímica ilustrativa, chamada de
mímica objetiva.
Decroux e Jean Louis Barrault (1910 - 1994) desenvolveram na mímica corporal,
as metáforas, em que um gesto era compreendido e experienciado em termos de outro, com a
finalidade de revelar os sentimentos e as emoções ocultas, mas principalmente, no caso de
56
Barrault, a ação vocal, diferencial das obras de Dario Fo e dos espetáculos A descoberta das
Américas e Il Primo Miracolo. Barrault, a quem Antonin Artaud nutria uma profunda
admiração, foi quem iniciou as descobertas no campo da ação vocal e a relação entre sons,
gestos, voz e potencial expressivo da mímica, no qual a respiração tem papel fundamental.
“Fala e gesto não são como pêra e maçã, cachorro e gato, mas uma só e mesma fruta, como
um pêssego de pomar e um pêssego selvagem.” (BARRAULT apud MALDONADO, 2005:
41)
As habilidades artísticas de Dario Fo, e que transparecem em sua própria
escritura, foram desenvolvidas no universo profícuo da mímica subjetiva e seus idealizadores.
Elementos como a síntese do gesto, a precisão, a estrutura do grammelot, a codificação
gestual e vocal, a conciliação entre gesto e palavra no mesmo nível da ação, a oposição entre
gestualidade e palavra e, a instituição do ator-autor-criador surgem embrionários na
commedia dell’arte e vem inspirar a mímica moderna que resgata os elementos e trancende-os
através do trabalho sobre a metáfora das palavras e dos gestos, os quais deixam de focar o
sentido literal e passam a corporificar emoções ao invés de suscitá-las. Estes elementos são os
mesmos que perpassam a obra de Fo e por ele também são lapidados e jogados na
estruturação de sua escritura, as quais, por sua vez, só conseguem alcançar seu valor artístico
através de intérpretes que assim como Fo, são criadores de seu próprio material gestual, como
os atores dos espetáculos analisados. Ambos vêm de uma tradição relacionada à mímica
moderna e ao teatro corpóreo, tendo em comum o trabalho empreendido com o grupo Potlach
na Itália, com Lecoq, com grupos de Teatro de Rua e com grupos brasileiros como o Lume
sediado em Campinas.
Fo enfatiza sempre que o perigo nas montagens de seus textos no exterior é o
excesso de gags gratuítas sem sobriedade nas falas colocadas, grimace (careta) e cacos
absurdos, comprometendo a subjetividade da ação, a qual permite que o espectador participe
da construção do significado, o qual está intimamente ligado as diferentes intenções que uma
palavra e um gesto podem suscitar.
Louis Jouvet (1887 - 1951), citado por Fo em seu Manual Mínimo do Ator,
resume: “o ator que recita cada palavra e não deixa escapar nada, não é inteligente.” (2004:
242). Mais adiante Fo complementa: “[...] é preciso aprender [...] a recitar as intenções
contidas no texto, não nas palavras. (2004: 283)
A construção dramatúrgica de Fo, apesar de possuir muitas distâncias em relação
ao Teatro Físico como tipo específico de teatro, se configura como um teatro corpóreo
baseado na ação e na mímica.
57
A mímica, no que tange a qualidade, formalização e estética do movimento,
considera como central a construção de uma expressividade baseada no domínio da
fisicalidade do gesto; construção esta que se fundamenta na redescoberta de tradições teatrais
como a commedia dell’arte, dos mimos medievais e do teatro grego. Ela viabiliza o
desenvolvimento principalmente da precisão e consciência do movimento; mas o ator que
possui a mímica como instrumento para a construção dramatúrgica do texto e da cena deve
superar os limites expressivos da mímica pura e buscar suas próprias ferramentas do
pensamento em ação, como entende Dario Fo.
A mímica entra sempre em função da ação e dos assuntos, nunca como virtuosismo.
Porque o objetivo da gestualidade de Dario Fo é fazer visualizar os objetos e as
pessoas, sem que elas existam concretamente em cena. Nessas circunstâncias, a voz
não descreve, age e deixa, ao gesto, a indicação das circunstâncias; é em torno do
gesto que se organiza a cena inteira. Ao invés de sufocar a palavra, o gesto a
valoriza. (VENEZIANO, 2002:185)
O corpo como linguagem disponível ao exercício de linguagens variadas é o cerne
do teatro corpóreo, assim como a consciência das ações, a transformação das ações em ações
simbólicas, trabalhando com a estruturação de partituras e composição de sentido, nas quais o
corpo transforma-se em artífice e objeto, como nos espetáculos analisados.
O corpo como “espaço expressivo” torna-se metalinguístico, espaço no qual se dá
o aprendizado da expressividade do próprio corpo na relação com impulsos interiores e a
forma exterior. O corpo será tomado como expressivo em si mesmo, tratando de descobrir sua
fala corporal característica, bem como outras possibilidades articulatórias dessa mesma fala.
A mímica, neste caso, amplia a linguagem corporal favorecendo a escolha e
ampliação de gestos, bem como extrema limpeza de linhas e desenhos, criação mágica de
espaços e objetos, auxiliando na precisão necessária e no aumento da dramaticidade do
desempenho corpóreo - utilizando o mínimo de esforço e o máximo de resultado – análise e
improvisação.
Pertencendo a uma geração de pedagogos da mímica moderna, Dario Fo, ao
gênero dos criadores humanistas que se envolvem em todas as funções da prática teatral,
concebe sua escritura para servir ao ator e não o contrário, estando a eficácia de sua
dramaturgia dependente do conjunto de habilidades corporais e vocais do ator.
58
A mímica moderna e principalmente a mímica contemporânea, trazem elementos
que fazem do corpo uma “máquina de narrar” capaz de extravasar os conflitos daquele corpo
que escreve, e, como diz Jean-Pierre Ruyngaert, apesar de sua inclinação para o teatro do
texto, o corpo do ator é o “aquilo” por onde a linguagem verbal tem de passar via respiração e
voz, “à procura do essencial, já que aquilo que não se pode falar é o que se deve dizer”.
(1998:178) Neste corpo que mima a narrativa, não necessariamente a narrativa das palavras,
podendo promover a oposição, a teatralidade está expandida materialmente no corpo do ator,
que determina as relações estéticas com os outros elementos, como o espaço.
A figura do mímico exalta esta idéia desde o seu surgimento. Embora a consciência
desse corpo só aconteça na fase contemporânea, ele pensa com ele e não por meio
dele; sua movimentação é o seu próprio pensamento, sua dramaturgia é a do corpo,
sua emoção, seus sentimentos e seu raciocínio estão no gesto e no andar, no busto.
Seu corpo é sentimento, objeto, natureza. A relação dentro/fora é integrada e
corporificada, constantemente, na interação de seu corpo com o espaço.
(MALDONADO, 2005:104)
Nesse teatro do corpo a dialética corpo-palavra compreende relações como corpo-
imagem, corpo-espaço e corpo-ritmo.
Fig. 5 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
Fig. 6 Il Primo Miracolo
Video produzido por SCAN Vídeo Produções
59
2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação
Os mímicos modernos, principalmente Lecoq, aprofundam o estudo do teatro a
partir das relações entre o corpo e o espaço, entre a arquitetura, os efeitos de cor e do espaço
criado pelas formas e a relação entre gestualidade e espaço.
O corpo visto em seu estado material de corporeidade e a formalização expressiva
dos gestos e sons que se relacionam com o espaço, reforça a situação percebida a partir do
aqui e agora da representação narrativa.
Jacques Copeau introduziu escadas ligando o palco à platéia, quebrando assim a
quarta parede e, compartilhando das idéias de Adolphe Appia (1862 - 1928), queria manter o
palco livre de qualquer aparato que prejudicasse a presença física do ator. Por sua vez, o ator
deveria preencher o espaço com seu corpo, com as ilusões da mímica, construindo superfícies
e objetos imaginários em uma cumplicidade singular com o público, na qual o espaço
permanecesse como um prolongamento do corpo do intérprete.
O palco como espaço físico concreto, onde as percepções espaciais e temporais
são construídas pelo que surge fisicamente no espaço, a relação mecânica e material com este
corpo evidenciado de Fo e dos atores que trabalham a partir de sua escritura, como Julio
Adrião e Roberto Birindelli, auto-evidencia o espaço, causando uma revelação do não-visto,
do não-ouvido e do sem-lugar.
Peter Brook (1925 -), encenador contemporâneo, possui um estudo sobre o vazio
que vai além do espaço, mas converge para todos os tipos de espaço vazio, seja ele o vazio do
próprio físico do ator, como recipiente pronto para novas experiências, como para o vazio do
palco nu.
[...] a gente fala de espaço vazio e tem que falar de Peter Brook. Mas também tenho
que falar de Dario Fo. Se eu te coloco um cenário mais impositivo, menos a tua
imaginação vai estar livre para que se estabeleçam as conexões com o teu subjetivo.
‘Uma rosa é uma rosa e é uma rosa’. Agora, se a rosa que eu te coloco é de celofane
de uma carteira de cigarro queimada, esta rosa te diz muita coisa. Então, quanto mais
livre e neutro o espaço, para mim é melhor. 39
39 Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
60
Partir do vazio significa antes, partir de um ponto infinito de possibilidades, assim
como requer um longo e rigoroso aprendizado. Retirar os excessos e provocar rupturas geram
um deslocamento que permite um permanente ajuste de posições e, que pode, efetivamente,
criar uma relação dinâmica entre o teatro e seu público.
Ao lado do desenvolvimento técnico que ampara, que sustenta o processo de
criação, deve haver sempre um espaço vazio, um lugar aberto para o inesperado. Brook fala
especificamente desta relação entre narrador e espectador, que através da emergência do
momento presente se coloca diante do público e começa a narrar. A esta liberdade que se
estabelece entre narrador e público, Brook compara à liberdade do romance, no qual a relação
entre escritor e leitor é fluída, sem entraves. Sobre este campo do imaginário, que se
estabelece através da relação entre narrador e espectador, está sempre presente uma idéia de
vazio como um campo de possibilidades e, que pode designar sem medo de errar, apesar das
diferenças, a obra de Dario Fo e o teatro que parte de suas escrituras, pois Fo se configura
mais como um ator-narrador de histórias.
Segundo Brook, é em Shakespeare que reside alguns dos princípios propulsores
dos esvaziamentos que, segundo ele, tecem a trama teatral, pois uma das maiores liberdades
do teatro elisabetano é a ausência de cenário que permitia a Shakespeare explorar o
imaginário do espectador, sugerindo sucessivas imagens capazes de dar conta de todo o
universo físico.
O teatro é codificado. No elizabetano, chega um cara, pega um galho e diz: ‘eu sou a
floresta de Sharwood’. Pronto, ele é a floresta de Sharwood. Dois segundos depois
ele está na corte de Henrique VIII, ou então é Macbeth, ou sei lá o que. Então, que
espaço te possibilita esta codificação e voar tão rápido de um espaço para o outro? O
espaço vazio. É que nem figurino. Eu faço vinte e duas personagens e se eu não usar
essa roupa neutra, preta, qualquer elemento que me ajudar para um, vai me
atrapalhar para o outro. 40
Para Peter Brook, a relação ideal com um ator verdadeiro num palco sem cenário
seria como a passagem contínua de um plano geral para um close, como no cinema.
Segundo Dario Fo, o ator sozinho em cena é a mente que dirige os ângulos das
“objetivas” que estão na mente de cada espectador, promovendo os recortes que deseja, hora
chamando a atenção para um “espaço” específico de seu corpo, hora para o corpo inteiro, hora
40 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
61
para o espaço que o circunda. É exatamente a liberdade e a mobilidade dos códigos que
partem apenas do corpo do ator, que lhe conferem maior flexibilidade, nudez e alcance.
Esta relação de esvaziamento do corpo e de esvaziamento do espaço, traz o
inesperado à tona, pois como diz Brook, deve-se fazer nascer o personagem e não construí-lo.
“O papel que foi construído é o mesmo todas as noites – só que lentamente se desgasta.
Enquanto que, para o papel nascido ser o mesmo, ele tem sempre que renascer, o que o torna
sempre diferente.” (BROOK, 1970: 121-122)
Este jogo de contrastes que é o jogo épico da narrativa, num cenário totalmente
aberto, permite a troca de ambiente numa simples mudança de direção do corpo do ator, ou a
fala narrativa resolve as passagens não só de tempo, como de espaço.
O espaço gestual segundo Pavis, “é o espaço criado pela presença, a posição
cênica e os deslocamentos dos atores: espaço ‘emitido’ e traçado pelo ator, induzido por sua
corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair.” (PAVIS, 2005: 142)
O espaço dramático que contém no texto as indicações sobre o espaço fictício, e o
espaço que o ator sugere com seu corpo como sendo o espaço fictício, interfere
necessariamente no espaço cênico concreto, pois há uma interferência entre iconicidade do
espaço físico concreto e o simbolismo da linguagem.
O espectador/auditor não está mais em condições de fazer diferença entre o que ele
vê com seus olhos e o que percebe em the mind’s eye. E no entanto, na tradição
ocidental, é mantida a todo custo a distinção entre linguagem e cena, donde a
separação entre literatura dramática e prática espetacular. [...] Ao fim dessa
promoção do visual em detrimento ao gestual, a teoria ocidental do espetacular
universaliza a dimensão visual e chega até a excluir, ou pelo menos desvalorizar,
qualquer outro tipo de experiência sensível. (PAVIS, 2005: 144)
O espaço vazio é um espaço psicologicamente concentrado, recaindo a atenção do
público no desempenho e intenções explícitas ou implícitas das personagens. É também, por
outro lado, um espaço aberto, intemporal, não datado, onde tudo pode acontecer.
Um cenário nu, a-histórico, sem referências explícitas, no qual os atores, usando a
excelência do gesto, do olhar, e sentindo o que as palavras designam, criam o cenário,
representando através das suas ações e desejos, um mundo paralelo, mais intenso, mais
grandioso, mais urgente de se resolver.
Logo no início do espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião nos sugere
o lugar da ação através de sons. Sentimos o mar e o vento conversando, e mais adiante,
62
através do som e das ações, vemos o navio flutuando sobre as ondas, as velas subindo e se
inflando, lutas épicas que envolvem alguns mil índios, fugas e perseguições, tempestades;
ações estas, que se passam em pelo menos oito lugares diferentes, em um só palco,
produzidos por um só ator que comunica diretamente para o público.
Um ator de talento não precisa de elementos sobressalentes para sustentá-lo, nem de
uma cenografia complexa às suas costas, tampouco de efeitos sonoros ou de uma
sonoplastia particular. Se ele é sensível, cumpre bem o seu ofício, e se o texto é de
qualidade, são suficientes sua voz e seu corpo para fazer-nos sentir que está
amanhecendo, que lá fora está chovendo, que está ventando, que há sol, que está
quente ou acontece uma tempestade. (MOLIÈRE Apud FO, 2004: 120)
A escritura de Fo, é uma escritura que já estabelece o espaço cênico sem a
restrição de uma quarta parede, pois para se concretizar, ela necessita da comunicação direta
e sem obstáculos entre ator e público. A escritura só se constrói a partir da relação cinestésica
entre a fisicalidade do ator e a fisicalidade do espectador, da troca de olhares, de impulsos e
até de palavras, elementos inseparáveis da arte épica da narrativa oral.
Dario Fo descreve o espectador de espetáculos separado pela quarta parede como
um voyer que assiste com a luz apagada passivamente, gerando uma atenção somente voltada
para a alteração emocional.
O fato de derrubar a quarta parede obcecava os commicos dell’arte e foi através
disto que Molière, também admirador das máscaras da Commedia, como a de Scapino, que
interpretou, entendeu a importância do envolvimento físico do espectador e não tardou em
avançar os atores para o proscênio, a avant-scène.
Por que eu jogo com este espaço circular, com a platéia iluminada? Porque é muito
interessante que as pessoas se vejam nos momentos diferentes em que elas estão.
[...] As reações. Então, é um espaço único, pois não há palco ou platéia, nem um
status quo, a ditadura daquele que está lá em cima.41
A geração de uma presença, de um corpo que se presentifica, mais do que
representa, provoca no espectador uma percepção sensível da pulsação dialética entre corpo e
voz, movimento e peso, energia e equilíbrio, ritmo e espaço, corpo fisiológico e corpo social.
41 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
63
A síntese é formulada pelo espectador guiado corporalmente pelos atores nesta relação corpo-
espaço.
[...] Então tu lidas com o mesmo nível de luminosidade, sem uma roupa, sem uma
maquiagem, sem nada de especial, sem trilha sonora, sem nada. Eu tiro qualquer
elemento que possa dar uma conotação cênica. São pessoas, e juntas, estas pessoas
podem fazer alguma coisa. É isso que eu trouxe da ‘essencialidade’.42
Patrice Pavis nomeia o espaço objetivo externo de Lugar Teatral; o prédio e sua
arquitetura, sua inscrição na paisagem; mas também um local não previsto para a
representação (espaço alternativo). Divide o espaço interno em Espaço Cênico e Espaço
Liminar: o primeiro é o lugar por onde evoluem os atores e pessoal técnico, como palco,
coxia, platéia; e o segundo é o espaço que marca a separação entre palco e platéia, mais ou
menos nítida, ou entre o palco e a coxia. A liminariedade pode ser marcada pelo “círculo de
atenção” que o ator traça mentalmente para separar-se do espaço do outro.
No caso da representação de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, o espaço
cênico pode ser descrito em um espaço alternativo qualquer, desde que fechado, pois não é
um espetáculo para rua, mas pode também descrever-se encima de um palco italiano, desde
que o público permaneça também encima do palco, disposto de maneira circular (arena). O
espaço liminar, se configura como uma linha imaginária circular que separa público e ator, os
quais estão em um mesmo plano e no mesmo nível de luminosidade. O espaço liminar
também é descrito pelo corpo do ator e sua gestualidade que preenche todo o espaço circular.
O ator, neste caso, pode “negociar” o espaço com a platéia se esta invade seu espaço de
representação, pois estabelece uma maior liberdade no contato verbal com o público. A
assistência se coloca na platéia quando o ator já está em cena, e este pode ajudá-la a se colocar
em seu respectivo lugar, pois se utiliza do “prólogo” do espetáculo para isto.
Já em A descoberta das Américas, Julio Adrião entra em cena quando a platéia já
está acomodada e não estabelece um diálogo com a platéia, a não ser o essencial da
comunicação entre personagem e assistência, como troca de olhares, comunicação gestual e
vocal dirigida diretamente ao público; isto não quer dizer que o ator não estabeleça uma
comunicação explícita com a assistência, ao contrário, esta comunicação se dá quase que
completamente no nível cinestésico entre o corpo do ator e o corpo do espectador, não
existindo uma comunicação extra-cena. Julio Adrião não utiliza o prólogo em seu espetáculo,
42 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice
64
já começando a narrar a estória propriamente dita. O espaço cênico estabelecido é sempre
frontal, podendo estar acomodado em um espaço alternativo ou em um teatro à italiana. A
liminariedade está descrita pelo próprio espaço físico, separado por cadeiras (em espaço
alternativo), onde o público deve sentar-se, ou separado pela disposição palco - platéia em
espaços com palco italiano. A platéia sempre está iluminada, pois a comunicação entre
público e ator se dá através do olhar e da comunicação direta, como já dito.
A configuração do espaço em ambos os espetáculos denotam o nível de
interferência permitida ao público na comunicação estabelecida. Julio Adrião possui uma
sucessão de partituras mais fechadas (o que não quer dizer definitivas), nas quais o ritmo ágil
e encadeado, não permite a interferência de perguntas ou respostas do público, ou de uma
improvisação para o inesperado exterior.
Se acontece alguma coisa, eu nunca paro, eu olho para o outro lado mesmo, pois eu
tenho que seguir o meu fluxo em respeito aos outros. O público, às vezes, fala
alguma coisa junto, pois já sabe o que eu vou dizer, mas eu não paro para comentar.
Tem partes que são muito importantes que as pessoas entendam o que está sendo
dito, por exemplo: ‘O mais difícil foi explicar que o terceiro da Santíssima Trindade
era um POMBO...’. Eu não falava claro, aí as pessoas diziam: ‘o que?’ e eu
respondia: ‘UM POMBO’. O que é importante ser entendido, tem de ser entendido
logo. Então, eu me esmero para que o público entenda, e o que não é importante, eu
não repito. Se o cara está rindo e eu acho que a risada não é importante ali, eu não
dou tempo para ele rir. Mas se eu acho que é, eu dou um tempo. Eu transformo o
público em índio, em espanhol [...].43
Em A descoberta das Américas, Julio Adrião provoca na platéia, com sua
gestualidade e virtuose corporal, reações dignas de um jogo de futebol, no qual a platéia torce
fisicamente pelo sucesso do anti-herói Johan Padan. Como é uma narrativa épica e grandiosa,
a gestualidade desenhada no espaço pelo intérprete Julio Adrião e seus recursos vocais, abrem
a cena para um plano maior do que o visto, abrindo as “objetivas” com muita freqüência para
um espaço virtual muito mais grandioso do que o real.
O espectador tem uma capacidade de intuição que lhe permite ir além da visualidade
proposta pelo espetáculo que está sendo apresentado. O comportamento desse
espectador é equivalente ao de um leitor que, seguindo as descrições literárias de um
romance ou de um conto, imagina e ‘vê’ o que está sendo narrado como se os
43 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
65
lugares e os espaços nos quais os ‘heróis’ estão agindo estivessem à sua frente. [...]
Penso que a proposta visual do espetáculo deveria sugerir e não impor, abrindo
espaço para a criatividade de quem está assistindo. (RATTO, 1999: 24)
Roberto Birindelli estabelece um jogo para ser visto de muito perto, com uma
gestualidade menor, com pequenos detalhes, no qual as “objetivas” escolhidas pelo ator,
estabelecem com maior freqüência planos recortados e focos mais fechados, priorizando
pequenas partes do corpo. A comunicação é rebatida pelo ator por menor que seja a
interferência, ruídos externos, perguntas do público. Como o público está muito perto, a maior
parte de seus movimentos interferem diretamente na cena e não podem escapar. Indagado
sobre a liberdade de interferência do público e a freqüência com que ela acontece, Roberto
Birindelli responde:
Direto. Eles cantam junto. Tem três músicas. Uma é um ‘mico’. Então eu estabeleço
essa relação já no prólogo. E quando eu conto a estória, eu propositalmente ‘esqueço’
algumas palavras: ‘Como se chama aquele bastão que tem os bispos? E aquele
chapéu?’ E fica claro que eles podem se meter a qualquer momento, e eu me viro,
claro, para responder.44
O palco vazio, o espaço vazio, como diz Peter Brook, está sempre à espera de ser
cheio com um mundo paralelo, e necessita para isso, de um teatro despojado de artifícios (sem
adereços e cenários) centrado no jogo inteligente dos atores (dotados de muita eficácia
técnica, ritmo, voz, expressão) utilizando a semiótica teatral, linguagem poderosa de
comunicação.
[...] A personagem que se movimenta nas áreas que lhe são atribuídas cria
constantemente novos espaços alterados, consequentemente, pelo movimento dos
outros atores: a soma dessas ações cria uma arquitetura cenográfica invisível para os
olhos mas claramente perceptível, no plano sensorial, pelo desenho e pela estrutura
dramatúrgica do texto apresentado. (RATTO, 1999: 38)
Dario Fo em suas escrituras estabelece códigos com o público em uma
comunicação de cumplicidade com a platéia. Os atores de A descoberta das Américas e Il
Primo Miracolo, estabelecem códigos gestuais que podem ser identificados pela platéia
44 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
66
durante o espetáculo, os quais permitem com que a fala possa ser suprimida, por vezes, e a
platéia num misto de prazer e surpresa identifica os códigos em uma comunicação que
podemos chamar de cinestésica e sensorial com o ator, como veremos no terceiro capítulo.
Uma das dimensões consideradas importantes para o desempenho do ator, não
apenas ao nível da técnica de representação (viver a personagem como certeza, mas também
como eterna possibilidade), mas também ao nível da mediação interior (predisposição do ator
em assumir o vazio), é encarar na sua atuação o vazio interior, o medo do vazio.
Nesse espaço simples mas limitado, nesse território de possessão e crença, o ator
vive as contradições próprias da sua personagem, tal como nas obras de Shakespeare.
Peter Brook entende o espaço essencialmente como ferramenta (daí empregar por
vezes o termo “espaço formal”), no sentido em que pode ser tratado tanto ao nível da
determinação dos seus limites físicos, como em termos de materiais empregues.
Temos então, duas principais vertentes do conceito de espaço vazio: uma, na
determinação de um espaço formal subjetivo (intemporal e a-histórico); outra, o vazio interior
que o ator deve conceder à personagem.
O importante é a criação do momento presente, a comunicação autêntica entre
atores e público, pois toda ação transformadora, nos diz o teatro de Peter Brook, é uma
superação do medo do vazio.
Um “teatro do vazio” valoriza a presença do espectador ao apresentar uma estória
na qual a sensibilidade e a inteligência do público são cutucadas com vara curta pela
inteligência, sensibilidade e inventividade dos artistas. Uma representação na qual os olhos
dos atores, contemplando o vazio, criam imagens que serão tão diferentes quanto numerosos
forem os espectadores.
67
2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il Primo
Miracolo
Quanto mais o teatro se afasta do realismo, mais cresce a importância do
movimento dentro da encenação; ele é uma possibilidade de codificação não-verbal de
extrema riqueza, um código a ser fielmente marcado, grafado e, tanto acompanha as palavras
como se insurge contra elas, denunciando suas lacunas, criando para o espectador um hiato
em uma coreografia de significados contrastantes.
Quando movimento e palavra perdem o vínculo que parecem ter na vida cotidiana,
se isolarmos, subtrairmos o gestual do ator de seu contexto e imprimirmos a ele outras
características, então chegaremos a uma seqüência que segue uma outra lógica como a dos
sonhos, que brincam e disfarçam seus verdadeiros motivos e significados até despistarem ou
recriarem os mais latentes sentidos.
A dialética entre corpo-gesto-palavra na cena de Fo emprega vantajosamente o
conflito dinâmico dos opostos. Jacques Lecoq ensinou a Fo a utilizar seu corpo desengonçado,
a utilisar ao máximo os recursos da cena, os mecanismos da risada, as gagues, as expressões
arregaladas, os diversos modos de gesticular e andar que permitem ao ator passar de um
personagem a outro sem a ajuda de nenhum recurso cênico, mas principalmente, a fazer
exatamente o oposto do que está sendo dito em palavras, procedimento que se transformou em
um dos preferidos de Fo.
Com a farsa, na qual a situação servia para impulsionar diversas gagues,
equívocos e qüiproquós, Fo afastava qualquer possibilidade de verossimilhança e,
Se de um lado havia o conjunto de gagues físicas, em contraste havia diálogos
surreais, destinados a inverter o sentido entre o banal e o literário, entre o figurado e
o literal, num jogo semelhante, porém mais desenvolvido, àquele já experimentado
com Lecoq, quando o corpo dizia o inverso das palavras. (VENEZIANO, 2002:
125)
As gagues nas farsas de Fo, reforçando as falas ou traindo o seu sentido,
resultavam em um ritmo mais intenso e eficiente para o desenvolvimento das ações. Os
monólogos de Fo, assim como outros tipos de espetáculo criados por ele, trazem este jogo de
oposições que trouxe da Revista e das farsas.
68
O que dá o suporte para o funcionamento das gagues, para o efeito de oposição
entre gesto e palavra, para as chaves cômicas e timing da narrativa, é o ritmo.
Segundo Fo, a qualidade das tiradas do Boccaccione45, tipo de personagem que
aparecia nas comédias gregas de Aristófones e fazia comentários e pilhérias a respeito do
público, “não estava no texto, mas na velocidade, ritmo e timing que o ator conseguia
imprimir [...]”. (FO, 2004: 46)
O discurso verbal e o discurso corporal podem chocar-se ou corroborar com um
mesmo significado. É possível manter duas conversas paralelas, cada uma acontecendo em
um nível e levando a comunicação estabelecida para direções diferentes. O que as palavras
afirmam a cada instante parece ser negado pelas mensagens não verbais emitidas por meio de
gestos e de sinais.
Existiram estudiosos das relações gestualidade-palavra como Meierhold, Decroux
e Artaud, que apostaram justamente na oposição em relação ao gesto e a palavra, na qual o
corpo produz um contraste de forças, por vezes opostas, entre o que fala o corpo e o que diz a
palavra.
A oposição é o cerne das pesquisas de Meierhold, nas quais a plasticidade não
corresponde às palavras em muitos casos. Como a essência dos relacionamentos humanos é
determinada pelo corpo, pelos gestos, posturas, olhares e silêncios, as palavras não dizem
tudo. Conseqüentemente para Meierhold, em uma visão ainda superficial de sua obra, a
integração entre corpo e palavra, ou corpo e silêncio é a principal dialética do seu “novo
teatro”.
Isto significa que na oposição, corpo e gestual também podem seguir o ritmo
oposto ao ritmo das palavras: a sincronia entre os ritmos físicos e vocais também é rompida
em alguns casos.
As palavras atingem o ouvido, a plasticidade o olho, assim a imaginação do espectador
é exposta a dois estímulos: o oral e o visual. A diferença entre o velho e o novo teatro é
que no novo teatro, a palavra e a plasticidade seguem cada um seu próprio ritmo, sem
necessariamente coincidirem. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE,
1995, 154)
Meierhold acreditava que o jogo de oposições da biomecânica poderia ser
sustentado pela estética do grotesco. Apesar da multiplicidade de sentidos e referências já
45 Os personagens que mais se aproximam do Boccaccione são os Zanni e o Pulcinella.
69
abordados de muitas maneiras, a estética do grotesco já é por si só paradoxal, pois o exagero
escatológico faz-nos rir de coisas chocantes e chorar diante de coisas normalmente risíveis,
trazendo à tona um princípio de estranhamento.
Segundo Dario Fo, na base das antigas e importantes formas da tragédia
conhecidas, encontramos a catarse do riso e do obsceno sexual, liberadores da luz e da
harmonia. Dessa maneira, o ressentimento, o ódio e o medo, em todas as representações
populares, são exorcizados e dissipados no jogo do grotesco. Para ele, o teatro didático
deveria utilizar-se do grotesco para impedir a catarse liberatória, promovendo uma catarse
consciente e permanente.
O grotesco, presente em quase todas as vanguardas artísticas do início do século
XX, nas manifestações cômicas da Idade Média e Renascimento e, nas quais o riso
acompanhava as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana, os bufões e giullari assistiam as
funções do cerimonial sério e parodiavam seus atos. O riso popular que se organiza no
grotesco e que satiriza o elevado, o espiritual, o ideal, sempre se manifesta no plano material
do corpo e da terra, portanto, na gestualidade mundana dos histriões e bufões na degradação
do sublime.
A formação básica do grotesco está no exagero, na caricatura, no satírico e no
fantástico, na imagem; unindo trágico e cômico ao mesmo tempo.
Apesar de o grotesco de que fala Meierhold e o grotesco de que fala Dario Fo
possuírem a mesma matriz baseada na gestualidade e no movimento, a estética grotesca de
Meierhold propositalmente terá um jogo de oposições criado e estudado a partir da
plasticidade que não se reduz a figuras de estilo. É através do grotesco que Meierhold
pretendia tirar o espectador do comodismo, provocando um deslocamento de significados e
surpresas constantes. Em Fo, a oposição aparecerá em diversas chaves cômicas, não
necessariamente só na chave grotesca. As oposições em Fo são menos aparentes e freqüentes,
mas estão assim como em Meierhold diretamente ligadas a gestualidade e ao ritmo.
A arte do grotesco está baseada numa luta entre o conteúdo e a forma. O grotesco
não opera apenas no alto e no baixo, mas confunde os contrastes, criando
deliberadamente contradições agudas. [...] O grotesco aprofunda a vida cotidiana até
que ela pare de representar somente o que é comum. O grotesco une, em síntese, a
essência de contrários e induz o espectador a tentar resolver o enigma do
incompreensível. [...] Por meio do grotesco obriga-se constantemente o espectador a
manter um duplo comportamento para a ação cênica, que passa por mudanças
súbitas e abruptas. No grotesco uma coisa é essencial: a tendência constante do
70
artista de transportar o espectador de um plano recentemente alcançado para outro
totalmente inesperado. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE,
1995:156)
Os gestos passam a ser escutados através de seu plano material e rítmico, e as
palavras, passam a ser compreendidas por sua corporeidade rítmica e pela síntese do que elas
significam (através da gestualidade), não pela sua forma.
A coisa mais importante é a linguagem, que não significa usar determinados
advérbios ou uma determinada composição gramatical. Significa usar a totalidade do
teatro, com gestos, sons, cantos, palavras, cores, danças. Lembro, sobretudo, que
cada elemento tem um significado próprio para o ritmo: a tonalidade, os momentos
onomatopéicos, etc. Uma mesma frase pode ter um significado dramático ou
grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os diferentes atores, entre o ator
e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público. (FO apud
VENEZIANO, 2002: 218)
Ne representação de sua História da Tigresa (1970), Dario Fo, em uma passagem
que podemos tomar como exemplo para ilustrar os procedimentos utilizados por ele e pelos
atores de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, utiliza a oposição baseada no ritmo
gestual e as onomatopéias que substituem as palavras.
Nesta estória que mima Fo, em um pequeno resumo, um camponês narra a sua
saga e inúmeras aventuras que passou quando integrava o Sétimo Exército (comandado por
Mao Tsé-tung e Chu-té). Quando realizaram a Grande Marcha com centenas de homens,
atravessando toda a China e, morrendo aos montes pelo caminho, em um certo momento, o
soldado (ele mesmo) foi atingido por um projétil na perna. Impossibilitado de continuar, pede
aos outros que sigam a marcha deixando-o para trás. Seus companheiros contrariados
deixaram-no, e pouco tempo depois, iniciou-se uma grande tempestade transformando tudo
em um imenso rio. O soldado se arrasta e consegue encontrar uma caverna escura, e dentro
dela, uma família de tigres enormes, com a qual terá de conviver e dividir a comida, ou quem
sabe, ser a comida. Quando Fo mima a tigresa querendo dar de mamar para ele, pois os
filhotes a rejeitavam com as barrigas cheias de água por causa da enchente, ele diz a ela: “não
quero, obrigado, não estou com fome” e, ao mesmo tempo, mama contrariado. A tigresa, com
as tetas cheias de leite, esmaga-o, enquanto ele continua a dizer: “não obrigado, já estou
satisfeito” e, simultaneamente, continua a mamar e a falar de boca cheia, mudando as
71
“objetivas cinematográficas”, os enquadramentos, com sua própria gestualidade, hora para
ele, hora para a tigresa, em um jogo hilariante.
A mudança de enquadramento, a “objetiva”, sempre foi largamente utilizada pelos
cômicos que através de uma ação mais ampla mudavam o foco de atenção do espectador para
todo o palco ou para um pequeno detalhe de seu rosto. Considerando que possuímos
“objetivas-clichês” já instaladas comodamente em nossos cérebros, é necessário um esforço
do ator para despadronizar estes “zoom”. Fo ainda fala no ritmo em que suga o leite,
aumentando em ritmo crescente, da mesma forma como aumenta a sua agonia por ver que não
pode contrariá-la, pois sabe que pode ser a próxima janta.
Cansado de assar as presas que a tigresa e seus filhotes caçam como se fosse uma
“dona de casa”, como ele mesmo diz, preparando sempre ele o jantar, o soldado-camponês
sai, enquanto o filhote grita: “Mama, l’scapa!” (Mamãe, ele está fugindo!). Durante toda a
encenação Fo empreende uma “construção de sentido”, elemento que iremos chamar assim e
do qual trataremos mais adiante, fazendo o rugido do tigre na mesma cantilena e ritmo da
frase a qual quer aludir. Depois diz a frase em italiano ou em dialeto no mesmo ritmo do
rugido. Nesta situação que narramos, Fo faz justamente o contrário, pois o próprio filhote fala
a frase no ritmo do rugido substituindo o OEAUHH!!!. Este é um recurso que se utiliza
diretamente do ritmo das palavras sem exatamente utilizar a própria palavra em si, no qual o
intérprete faz a construção de sentido para depois aludir a ele.
Há trinta anos, durante a montagem de Dito nell’occhio (Dedo no olho), ao lado de
Lecoq, aprendi a demarché (modo de andar) do felino [...]. A questão é que mesmo
conhecendo essa caminhada, que é elegante, de efeito e aproxima-se bem da real, eu
não a usei durante toda a apresentação [da História da Tigresa]. Por quê? Para evitar
ser descritivo, é justamente isso, pois teria banalizado o conto, em vez de reforçá-lo.
É preciso reunir a coragem e a inteligência de aludir em lugar de realizar a descrição
completa. [...] Isto determina um estilo e um ritmo mais denso da narrativa da
história. (FO, 2004: 241)
Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, assim como em várias
escrituras de Fo, a oposição gestualidade x gestualidade ou gestualidade x palavra, está
também diretamente relacionada à troca quase simultânea de personagens. Em “A história da
Tigresa”, Fo enquanto diz a fala do camponês contrariado, mima quase simultaneamente a
tigresa lhe impondo alguma ação. Em A descoberta das Américas, para citar alguns de
diversos exemplos, Julio Adrião faz Johan Padam abrir a porta da casa de sua “namorada-
72
bruxa” e, enquanto os inquisidores entram para levá-la, ele diz: “O que é isso?!!! Como vocês
entram assim?”, ao mesmo tempo que se coloca ele mesmo no corpo de sua namorada que
grita e, uma de suas mãos, personificando os inquisidores, a puxa pelos cabelos em uma
situação hilária. Estes “jogos de oposição” estão sempre relacionados a um jogo rítmico
encadeado e, por vezes, mais acelerado.
Fig. 7 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
Johan Padan e seus amigos embarcaram por acaso em uma caravela que estava de
partida para uma expedição que acaba por descobrir a América. Quando chegam a Flórida,
encontram uma tribo imensa de índios e em um determinado momento, os índios os prendem
pelas mãos e pelos pés. Johan diz que está com medo, que não sabe para onde os índios estão
os levando, ao mesmo tempo que mima ser puxado por eles, saindo aos pulinhos.
Em outro momento, as índias de uma tribo, para deixar Johan e seus amigos mais
contentes, os levam para a cachoeira. Elas os lambem, passam ungüento, os dão mordidinhas.
Johan faz os gestos das índias enquanto ele recua e ri com as cócegas. Mais adiante, quando
Johan vai domar os cavalos chucros trazidos da Europa na expedição, para mostrar aos índios,
ele descreve como domará o cavalo, enquanto ele mesmo faz o cavalo chucro que se debate e
relincha.
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Fig. 08 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
Um exemplo de oposição entre gestualidade e palavra está em uma das cenas
finais do espetáculo. Enquanto Johan diz: “antes que a situação degringolasse, eu ‘deixei’ que
os espanhóis seguissem pela floresta acompanhados dos canibais”. Enquanto isso, Johan
acena para eles e sorri, ao mesmo tempo que diz: “nunca mais ouvimos falar nem deles, nem
dos canibais”.
Já em Il Primo Miracolo, os jogos de oposições estão presentes nas ações
extracotidianas, e por vezes, abstratas. As palavras estão sobrepostas nestas partituras de
ações construídas passo a passo pelo intérprete e, as quais, identificam principalmente as
ações de cada personagem. Algumas das partituras de ações das personagens estão
construídas a partir de imagens de quadros da série “Retirantes” de Cândido Portinari (1903 –
1962), como veremos no próximo capítulo.
Quando entra em cena o mensageiro que traz uma ordem de Herodes para que os
pais levem até ele os meninos recém-nascidos, o intérprete mima com a gestualidade própria
do mensageiro e diz: “Ouçam mães, mulheres! Quem de vocês pariu nos últimos três dias um
menino, pode ficar contente porque o rei decidiu dar um prêmio ao menino mais bonito.
Levem-no ao palácio. Levem-no à casa de Herodes e, o menino mais bonito vai ter uma
coroinha onde se lê: Oh, como é bonito este menino!”. Toda vez que o mensageiro fala
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“menino”, ele coloca a mão espalmada sobre a cabeça, e faz um movimento para frente e para
trás, talvez identificando o ornamento da cabeça do mensageiro, desconectado de qualquer
verossimilhança.
Mais adiante, o intérprete narra o desespero das mães com seus filhos mutilados
por Herodes, determinado a encontrar o “salvador”. Enquanto o intérprete fala: “Neste
momento, ouve-se o choro pelas ruas. Ouvem-se os gritos desesperados das mulheres, das
mães com seus filhos ensangüentados, cortados em pedaços”, o intérprete anda devagar,
curvado, falando bem baixinho, em um ritmo contrário ao desespero das mães da cidade.
Figs. 09 e 10 – Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Vídeo Produções
Os jogos de oposições nos espetáculos analisados, muitas vezes, partem da
construção gestual, vocal e rítmica, isto é, da construção da linguagem, dos próprios atores
para o espetáculo. Na escritura de Fo e dos espetáculos analisados, a comunicação
gestualidade-palavra, ao fazer com que as palavras se choquem, que os fonemas se oponham
no grammelot e as variedades dialetais se enfrentem através de linhas melódicas distintas,
arrastam a linguagem (palavras e gestos) mais além de um sistema de oposições.
O ator, na sua ação, deve ser capaz de criar uma síntese que contém a essência dos
contrastes, e essa síntese deve ser materializada por meio da plasticidade, por meio
do desenho dos movimentos cênicos que Meyerhold também chama de dança.
(BARBA, SAVARESE, 1995:156)
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Com o Teatro de Revista, Fo também aprendeu a combinar mímica e pantomima
ao ritmo musical. Apossou-se da pesquisa musical, ampliou-a e imprimiu nela a sua própria
pesquisa gestual.
A escritura de Fo contém o próprio ritmo de seu espetáculo que Franca Rame, sua
esposa, não deixa desandar com suas batidas na coxia. Este reescrever da escritura, contém o
elemento mais importante para Fo: “o tempo teatral”.
O ritmo geral da encenação, dispõe as ações cênicas no tempo organizando os
materiais falantes em deslocamento no espaço e no tempo, isto é, a organização “musical” das
palavras e das ações.
É preciso ensinar aos atores a sentir o tempo em cena como o sentem os músicos.
Um espetáculo organizado de modo musical não é um espetáculo no qual se faz
música ou então se canta constantemente por trás da cena, é um espetáculo com uma
partitura rítmica precisa, um espetáculo cujo tempo está organizado com rigor.
(MEIERHOLD apud PAVIS, 2005: 134)
Uma encenação pode adotar um ritmo que parece muito lento, mas que devido à
relativa freqüência das mudanças na atuação, parece acelerar o movimento e mantém alerta a
atenção do espectador; ou pode durar muito tempo e dar a impressão, através do ritmo das
ações, que o tempo que se passou foi muito menor, como nos espetáculos analisados.
Para não denunciar o ritmo que está por vir, segundo Fo, é preciso encontrar
microrítmos dentro da ação, na consciência dos tencionamentos e destencionamentos.
O principal elemento visível comentado na literatura crítica em relação ao ritmo
nas obras de Dario Fo, é a quantidade de gagues, que, reforçando as falas ou traindo o seu
sentido, resultam em eficiente ritmo para o desenvolvimento das ações do espetáculo. Franco
Quadri, citado por Neyde Veneziano (2002), também comenta os movimentos conjuntos
exasperados e mecânicos que encontramos registrados em sua escritura. “Uma mesma frase
pode ter um significado dramático ou grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os
diferentes atores, entre o ator e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público.” (FO
apud MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 218)
Os elementos que podem servir de métodos de análise do ritmo, segundo Pavis,
podem estar também associados à palavra, pois ela se deixa melhor apreender pelos efeitos
binários como silêncio/palavra, fluência rápida/lenta, acentuação/não-acentuação,
destaque/banalização, tensão/relaxamento. Já no fôlego examina-se sua extensão, seu
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encadeamento, organização sintática e semântica de cada grupo e na função dos movimentos
de pausa, a estruturação do pensamento, momentos recaptulativos, conteúdo semântico. Na
prosódia, a intensidade, duração e altura formam a base para a percepção das mudanças de
quadros rítmicos.
O sucesso de uma obra depende muito do encadeamento rítmico dado à ela,
principalmente em um monólogo, que facilmente pode tornar-se monocórdio. Neste caso a
variação rítmica consciente, é de extrema importância para a criação da imaginação no
espectador.
Sobre a primazia do ouvido no teatro, no qual as ações são antes “escutadas” do
que percebidas diretamente, Deleuze comenta no contexto da obra de Carmelo Bene, mas
perfeitamente aplicável à obra de Dario Fo:
Na variação, o que conta são as relações de velocidade ou de lentidão, as
modificações destas relações, na medida em que comportam os gestos e os
enunciados, segundo coeficientes variáveis, ao longo de uma linha de transformação.
É neste sentido que a escritura e os gestos [...] são musicais: porque toda forma se
encontra deformada nesta linha por modificações de velocidade, que faz com que
não se repita duas vezes o mesmo gesto ou a mesma palavra sem obter
características diferentes de tempo. (DELEUZE, 2003: 92, tradução nossa)46
Ao lado da figura que o ator constrói em cena com os seus gestos, seus
movimentos e suas ações, o ritmo da narrativa constituirá o caminho para o encontro com a
linguagem teatral, linguagem física que se constitui não como espelho da vida mas como um
duplo, um outro tipo de jogo de oposições, palavra/gesto, peste/cólera, como queria Artaud. A
força intrínseca ao movimento do corpo, é capaz de desorganizar a razão, reenviando-a o
tempo todo para o fugidio campo das sensações. Os gestos traduzem a lógica interna da
produção do sentido, representa os ritmos pelos ritmos, as formas por si próprias.
Fundindo e alternando explicações com interpretações, Dario sobrecarrega-as com
farto gestual. Seu objetivo é deixar claro que o gesto é um dos principais meios da
comunicação popular e que a gestualidade existe para completar ou contradizer o
sentido da palavra e das frases. No popular, não existe divisão entre voz e corpo. [...]
46 En la variación, lo que cuenta son las relaciones de velocidad o de lentitud, las modificaciones de estas relaciones, en la medida en que comportan los gestos y los enunciados, según coeficientes variables, a lo largo de una línea de transformación. Es en este sentido que la escritura y los gestos [...] son musicales: porque toda forma se encuentra deformada en esa línea por modificaciones de velocidad, que hace que no se repita dos veces el mismo gesto o la misma palabra sin obtener características diferentes de tiempo.
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Parte então para a reconstituição da linguagem e do ritmo dos giullari .
(VENEZIANO, 2002: 176-177)
Sobre o ritmo da escritura de Fo, Franco Quadri comenta:
Não é verdade que os textos de Fo, como é comum dizerem os atores-autores que
confeccionam a história em conjunto, sejam somente um tipo de canovacci para
preencher com as interpretações. É necessário observar que as comédias publicadas
estão longe da prolixa arritmia dos escritos originais, enxugados e retocados durante
os ensaios [...]; no final das réplicas, chega-se a verdadeira transcrição do
espetáculo, que compreende também as invenções mímicas e pode sugerir, até,
novos espetáculos e caminhos para as interpretações. (QUADRI apud
VENEZIANO, 2002: 133)
Os gestos em Fo são alterados para atingir significados mais precisos e sutis e são
repetidos em momentos diferentes do espetáculo, isolados, aumentados, diminuídos em seu
tamanho e projeção, interrompidos, aglutinados e misturados a signos completamente opostos
ou reafirmados por signos idênticos em intensidade ou ritmo.
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3. O CORPO SUBLINHADO : A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO
3.1 A narrativa do corpo: repetição, quebras, descrição e criação de sentido na
construção das ações em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo
O meio mais direto, que traz a própria força e o estilo até
das entranhas do teatro popular, é o monólogo. (FO apud
VENEZIANO, 2002:170)
Desmontar o que o gesto tem de cotidianeidade para convertê-lo em ações teatrais
desde o exagero, a descrição, a fragmentação, as quebras, intervém diretamente nas
características do tempo, espaço e energia de sua essência, abre múltiplas possibilidades e
insuspeitadas variações.
Como uma escritura própria do corpo, a cena de Dario Fo apresenta-se como uma
das “visibilidades do teatro”, através da riqueza das imagens, da estratégia dos silêncios, de
quebras e de ritmos, dando lugar à criação de uma linguagem física a base de gestos e
palavras.
Podendo ser econômicos, abundantes ou repetidos, a ponto de nos confundir com
respeito ao seu significado original, os gestos em Fo podem ser deslocados para outros
contextos cênicos, os quais nos obrigam a achar novos sentidos para sua existência.
Analisando a obra de Dario Fo e as montagens de A descoberta das Américas por
Julio Adrião e Il Primo Miracolo por Roberto Birindelli, podemos encontrar procedimentos
principais para a criação da gestualidade nos espetáculos e para o trabalho com as palavras,
gestos e ações vocais, os quais denominaremos: descrição, quebras, criação de sentido e
repetição. Estes recursos sustentam a comicidade do jogo de situações destes espetáculos e
estão diretamente ligados à habilidade dos intérpretes no trabalho com os ritmos relacionados
à comunicação entre corpo-gestualidade-palavra.
Para Patrice Pavis, autor de A análise dos espetáculos (2005), existem duas
divisões relacionadas ao tempo: ritmo e tempo-ritmo.
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O tempo-ritmo é visível e interior; determina a lentidão ou a rapidez da
encenação, encurta ou prolonga a ação, acelera ou desacelera a dicção. Para o tempo-ritmo, o
espectador, o analista, revela uma impressão de rapidez ou de lentidão, determinando os
meios que produzem esta impressão: a aceleração – quando uma réplica começa antes que a
outra termine (como na troca de personagens em Fo), a retomada dos temas, a criação de
automatismos de percepção no espectador (como a criação de sentido). A desaceleração traz
as quebras propositais, a confirmação do quadro rítmico, ou negativamente, denota a ausência
de surpresas.
Já o ritmo “não é caso de velocidade, mas de acentuação [...]: é um tempo
cadenciado dentro de uma duração definida, o encadeamento das ações físicas segundo um
esquema preciso, uma ‘linha contínua de ação’ [...].” (PAVIS, 2005:135)
Mesmo sendo constituído por diferentes individualidades, muitas vezes o público
se homogeiniza e impõe um ritmo autônomo próprio. Fo escuta o ritmo do público e “ouve” o
que acontece para entrar em sincronia ou em negação a um ritmo clichê.
Existem outros tempos como objetivo e subjetivo, entre outros, ressaltando que o
tempo pode ser variável como uma impressão, um caso de percepção. Na repetição, recurso
muito utilizado na obra de Fo, principalmente a repetição das gagues nas farsas e dos recursos
cômicos em todos os seus espetáculos, tanto comédias políticas como monólogos, o ritmo é o
que sustenta e direciona o significado da ação.
Julio Adrião utiliza em A descoberta das Américas inúmeras vezes o recurso da
repetição de ações e palavras para concretizar situações hilárias. A repetição em A descoberta
das Américas se constitui como um dos principais recursos para a concretização da
“corporificação da palavra” no espetáculo.
Como já dito, as ações dos espetáculos analisados dão origem a partituras
codificadas que constituem uma estrutura fixa destes espetáculos, cujas variações giram em
torno desta rede de ações definidas, diferentemente dos monólogos encenados por Fo, os
quais possuem um esquema diretivo, mas propício a todo tipo de variação gestual, textual e
rítmica. É por isto que não é o mais adequado falar em partituras de ações quando se fala da
obra de Fo, pois diferentemente dos espetáculos encenados por Julio Adrião e Roberto
Birindelli, suas encenações se estabelecem mais como “palestras-espetáculo”. Em A
descoberta das Américas e Il primo Miracolo, o ritmo é absolutamente encadeado, donde
quebras acidentais podem destruir o ritmo da narrativa.
A partitura não existe sem o exercício da repetição, pois com ela, o ator apura sua
técnica e atinge a precisão do movimento. Repetir é assimilar a essência do movimento,
80
adaptando-o à estrutura do próprio corpo e da situação apresentada. É portanto uma releitura
autoral do movimento e da ação, através da repetição promovida durante os ensaios do
espetáculo. Mas a repetição de ações e situações nos espetáculos analisados não funciona
somente para assimilar a estrutura gestual do espetáculo, mas como um jogo de intensidades e
transgressão da própria linguagem. Ela é assumida a frente do público, desnudando a estrutura
que a sustém, na qual o mecanismo é tornado evidente em um jogo de revelação.
A repetição se situa no coração de toda re-presentação, quer dizer, de todo voltar a
presentar, é por isto que a categoria estética da repetição deve forçosamente uma
estreita relação com o teatral – e por tanto também com a morte -, relação que só nas
últimas décadas tem sido desenvolvida de modo explícito e com fins criativos desde
a própria cena teatral [...]. A intensificação deste aspecto reiterativo impulsionou a
teatralidade da maquinaria teatral ao extremo. (CORNAGO, 1999: Interludio,
s/p, trad. nossa)47
A repetição necessita de um ritmo cada vez mais encadeado e preciso para
funcionar como surpresa, pois é esta que possui a capacidade de arrancar o riso do público.
Existe neste recurso um elo paradoxal, pois a repetição de uma situação, se não for bem
codificada e apresentar um ritmo preciso, desacelera o tempo-ritmo do espetáculo causando o
efeito contrário: a falta de surpresa e repetição inútil de material já utilizado no espetáculo.
Em A descoberta das Américas, Julio Adrião apresenta um procedimento muito
utilizado pelos commici dell’arte, aumentando o número de repetições de códigos pré-
estabelecidos com a platéia.
Aquela cena da costura dos índios é uma frase indicativa. Eu a desenvolvi como um
lazzo da commedia dell’arte, de comicidade física. Você cria uma partitura física
bem detalhada e a repete outras vezes, cada vez modificando um pouco. Eu faço
uma vez bem detalhada com texto, faço outra vez quase tão detalhada quanto, mas
mais rápida, e faço uma terceira vez bastante acelerada, sem texto, só com a
sonoridade, e faço a última vez totalmente desmembrada, modificando as ações que
47 La repetición se sitúa en el corazón de toda re-presentación, es decir, de todo volver a presentar, es por esto
que la categoría estética de la repetición debe tener forsozamente una estrecha relación com lo teatral - y por
tanto también com la muerte - , relación que solo en las últimas décadas há sido desarrolla de modo explícito y
con fines creativos desde la propia escena teatral. [...] La intensificación de este aspecto reiterativo impulsó la
teatralidad de la maquinaria representacional al extremo.
81
as pessoas nesta altura já conhecem. [...] Eu aumentei o número de repetições. Isso
faz parte da comicidade. A repetição do código.48
Esta cena da “costura dos índios” é a que mais simplifica e identifica os
procedimentos principais utilizados neste recurso de repetição. O ator Julio Adrião criou esta
cena de quase oito minutos através de um parágrafo indicativo presente no texto de Dario Fo.
Johan Padan, depois de uma luta épica entre inimigos e os índios da tribo na qual se encontra,
avista o Pajé ferido aos seus pés, com um corte diagonal da axila esquerda até a virilha, como
Johan descreve, e a pedido do Pajé, busca seus “tenderetes” de remendar velas e começa a
costurar centenas de índios.
Fig. 11 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
Através do princípio da descrição, Johan através de gestos, palavras e ações
vocais, descreve como fez para desinfetar os órgãos do Pajé, para recolocá-los no abdômen e
suturá-lo. A linguagem criada pelo ator é a linguagem das ruas, próxima da utilizada por Fo,
propositalmente cheia de erros gramaticais. Para costurar o Pajé, Julio Adrião descreve a cena
com todos os detalhes, através de palavras, gestos detalhados e sons onomatopéicos para
ilustrar todos os procedimentos, em uma pantomima para corpo e voz. Com o entendimento
desta descrição, o público identificará os procedimentos nas cenas posteriores fazendo a
construção de sentido. O texto a seguir foi criado pelo ator Julio Adrião, e por não ter sido
transcrito pelo ator e possuir um farto gestual, inúmeras onomatopéias e ritmo acelerado, este
é aproximadamente o texto executado no vídeo do espetáculo:
48 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
82
Peguei a pexêra, dei um fritadão nas beiça da ferida que o bichinho quase virô do
avesso! [faz gesto correspondente]. Vâmo botá tudo no lugar! Vâmo dá uma
desinfetada aqui! Limão, limão, limão. Vâmo dá uma marinada! [faz como se
estivesse temperando]. Vâmo começá pelas Budela! EEEEEH! Tripão bonito!
[mostra a tripa]. Os intistino grosso... Putz, tá cheio de cocô! “Prrrr, Prrrrr” [expreme
tirando a sujeira da tripa]. Vâmo refazê o cuzinho.... Aqui... EEEEEH, cuzinho! [faz
como se estivesse modelando o ânus]. O estrambo! Ôooo estrambo!!! Vâmo arrumá
aqui que é pra podê comê papinha depois, né filho da mãe! “Tiplof, tiplof” [arruma o
estômago no abdômen]. O figo! Ô, o figo todo espapolado! Um orgão nobre desse!
Vâmo pegá com cuidado que é pra podê tomá uma cachacinha depois, né filho da
mãe! [pega o fígado e arruma]. Vâmo fechá agora! Ah! tá faltando a visícula! Cadê a
visícula?!! [procura a visícula]. Onde é que eu vou colocá a visícula? Ah! A Visícula
também não serve pra ‘porra’ nenhuma! Vai embora tamém! “Fiiiiiu” [Joga a
visícula fora]. Agora vâmo suturar! Calma! Agulha e linha! [mostra o comprimento
da linha puxando-a desde a agulha]. Vâmo começá pela sobaca! Vamo fechá o
peitoral do chefe! [costura] EEEH! Bonito! O peitoral! [costura]. Vâmo passá pro
bucho agora! [costura] EEEH buchão! Vâmo caprichá aqui no umbigo do chefe!
Vâmo fazê um ponto-cruz! Tá acabando! Tá acabando! Ôpa! A virilha! [arremata,
corta a linha com os dentes e cospe o pedaço]. O bichinho tá costuradinho! Vâmo
acordá agora! “Pow, pow”! [dá dois tabefes no pajé]. Abriu os olhos [faz gesto de
abrir os olhos com as mãos], pegou e me deu um beijo na boca! [mima o pajé
pegando-lhe pelo pescoço e beijando-lhe a boca] ‘Puta que pareva!’ [limpa a boca].
Tá costuradinho! Johan! Você salvou a minha vida! Muito Obrigada! ! [faz o Pajé].
Antes que eu pudesse dizer ‘de nada’, os índios me pegaram e foram me carregando.
- Me bota no chão casseta! Me bota no chão que eu acabei de salvá o chefe! Me
botaram no chão, quando eu olho - ‘puuuta que pareva!’ [repetição de palavras
como recurso cômico]. Não dava pra acreditar no que eu tava vendo! Brincadeira
não moça! Desde aqui onde a senhorita tá vendo, até lá embaixo onde a senhorita
não tá vendo, era quarenta e cinco metros de índio, deitado assim, um do lado do
outro, assim “va, va, va, va, va, va” [faz gesto de índios enfileirados], até lá
embaixo, tudo rasgadão aqui [mostra um corte diagonal no peito], as bodela, as
visícula [faz gesto de índio tremendo, agonizando]. ‘Puuuuuta que o pareva!’ [limpa
a boca].
- [Pajé] - Johan! Pode começá a costurar! [pausa]
- [Johan] Eu só rezei que a linha desse!49
49 Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.
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Fig. 12 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
No segundo índio, Johan descreve apenas algumas partes principais com texto, e
no restante utiliza as mesmas onomatopéias para cada procedimento e o mesmo gestual
resumido, pois o público já consegue identificar as ações sem que o intérprete precise
descrevê-las no todo.
– ‘Agooooora’ tem que se macho! E passei a pexêra dando-lhe um fritadão nas
beiça. “Tssss Tssss” [passa a peixeira no abdômen do índio], “pow, pow” [dá os
tabefes], vai dormir! Limão, limão, limão [faz várias onomatopéias e mima pegar os
órgãos e arrumar um a um muito rápido. Pega o intestino], cocô, “prrrr, prrr”
[expreme o intestino], o cuzinho [modela o ânus], o figo espapolado [ajunta e põe no
abdômen], a visícula, “fiiiiiu” [joga a visícula fora]. Vâmo suturá a sobaca! “Mi
corazón...” [canta e costura] Tem muita gente na fila, vai sem umbigo mesmo!
Vam’bora! Olha a virilha! [costura e corta a linha com os dentes]. Já tá
costuradinho! Vâmo acordá! “Pow, pow”! [dá os tebefes] Abriu os olhos, me beijou
[abre os olhos com as mãos, faz o índio pegando-lhe pelo pescoço e dando-lhe um
beijo de agradecimento]. Puuuta que pareva! [limpa]. O próximo!50
No terceiro índio, Johan descreve quase só com a ação vocal (onomatopéias e
grammelot) e gestual, a cena totalmente resumida, pois o público já memorizou todas as ações
e a ordem com que elas acontecem.
50 Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.
84
- Agoooora tem que...[continua no ritmo do texto falado anteriormente,
resmungando], lá, lá, lá [marinando], va, va, va, ba, ba, ba, [como são inúmeras as
onomatopéias e fica impossível transcrevê-las, iremos apenas demonstrar a
quantidade] rooooooooo, trrrrrrrrrr, bobobobobob, espapolado, prrr, prrr, prrrr,
cuzinho, fiiiiiiiiiu, “mi corazón” [corta alinha], plaft, plaft, beij..., o próximo!
[Johan faz gesto de passagem de tempo] - Vinte e seis horas depois, o último
índio!∗
No quarto índio, Johan, já muito cansado, faz as mesmas ações, modificando
algumas. Por causa das mudanças é necessário que o ator detalhe um pouco mais suas ações,
como faz Julio Adrião.
[Voz ralentada de cansaço] “Agoooooora teeeeem que sê maaaaaacho!” “Pow, pow”
[os tabefes], limão, limão, [desinfeta]. “Ooooo, oooo” [pega as “bodelas”], “prrrrrrr,
prrrrr” [expreme a tripa], cuzinho [faz gesto de modelar o ânus], a visícula.∗
Nesta parte, quando Johan vai jogar a visícula fora, pára, olha para ela e come-a
mastigando-a bem devagar, promovendo uma quebra de expectativa na ação, e uma criação
de sentido com o código estabelecido desde a primeira partitura de ações. Johan nunca
encontra o lugar certo para colocar a visícula e, como esta não serve para nada, Johan com
fome, agora depois de mais de um dia de costura, come a visícula.
Vamo suturá! [Pega a agulha e passa a mão na linha para ver o comprimento.
Assustado, vê que só resta um pedacinho de linha].∗
Neste momento há uma outra quebra de expectativa. Johan que já havia dito no
início da cena – Eu só rezei que a linha desse! – , faz apenas o gesto de verificar o
comprimento da linha que está minúscula. Sem que o ator precise descrever, o público
identifica a criação de sentido e ri abundantemente.
∗ Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.
85
Fig. 13 A descoberta das Américas - Vídeo produzido por Filmes do Serro
A seguir, Johan pega a pele do índio e torce-a, amontoando-a, como se estivesse
pensando em suturar todo o imenso corte com um ponto só. Costura com cuidado no mesmo
lugar, corta a linha com os dentes e solta devagar o monte de pele.
-“Pow, pow” [dá dois tabefes no índio], beijo, puuuuta que pareva! [limpa a boca e
mima o índio andando com o abdômem encurtado]. Fuxico! [nomina o ponto que
fez].51
Esta cena resume um dos procedimentos utilizados na commedia dell’arte, em
farsas e espetáculos de Vaudeville, que se concretiza na sintetização da cena através de
códigos pré-estabelecidos com o público durante o espetáculo. Para que estes códigos possam
ser identificados e repetidos em outros momentos do espetáculo, sem a necessidade do uso da
palavra, mas apenas do gestual e das ações vocais, é necessário que através da descrição, o
público receba as informações em algum momento do espetáculo, para que depois seja
promovida a identificação, as relações e a criação de sentido. Para que o princípio da
repetição funcione, é necessário que em algum momento haja a descrição do código
estabelecido, da ação ou da atitude dos personagens. A descrição pode ser feita com gestos e
palavras, ou apenas com um dos dois.
Através de seu efeito de dispersão, a repetição faz estalar a representação,
multiplicando seus significantes sem mais lógica que a de seu próprio
51 Texto criado por Julio Adrião e transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.
86
funcionamento estrutural, um excesso irresolúvel que empurra o sistema até fora da
escritura e o artifício, estratégias de superfície que pervertem os pensamentos de
profundidade. Este é o caso, por exemplo, da adição progressiva de termos que
fazem crescer um sintagma em um jogo de entrelaçamentos de palavras novas com
outras repetidas anteriormente [...]. (CORNAGO, 1999: Interlúdio, s/p, trad.
nossa)52
Dario Fo, muitas vezes, já estabelece a descrição de códigos no prólogo do
espetáculo, como o faz Roberto Birindelli na descrição das atitudes executadas pelos três Reis
Magos em Il Primo Miracolo.
Roberto Birindelli narra a atitude de cada Rei Mago, para que nas cenas seguintes
os personagens sejam identificados por suas ações ou gestualidade:
- O mais velho dos três Magos era um rei com muito ouro na cabeça, cabelos
brancos e barba grisalha; cara fechada, nariz adunco; xingava e mal-dizia todos os
santos porque tinha furúnculos desse tamanho na bunda e a cada cavalgada,
“NHAC!” Eram expremidos! O que causava uma grande dor. Havia outro rei,
jovem, montado em um cavalo branco, com uma coroa na cabeça; por debaixo da
coroa apareciam cachos de ouro e, um pouquinho mais embaixo, tinha olhos azuis.
Mantinha sempre um sorriso nos lábios. Havia ainda o terceiro, montado em um
camelo. Era um mago preto, mas tão preto, tão preto, que o camelo cinza que ele
montava, em comparação, parecia mais branco que o cavalo branco do mago loiro.
Com uma cara bonita e cento e quinze dentes brancos que deixavam ele mais preto
ainda, ia cantando sobre o camelo. E cantava – e o rei velho não agüentava – e
cantava, sem parar, a mesma cantilena.53
Mais adiante, faz a criação de sentido:
- Chega, chega! - o velho xingava o mago preto [fala fazendo as atitudes do mago
velho, tomando cuidado ao andar para não expremer os furúnculos] - Não dá! Há
quatro dias e quatro noites você canta é ‘belo no camelo’! Já entendi. É belo andar
52 Através de su efecto de dispersión, la repetición hace estallar la representación, multiplicando sus significantes
sin más lógica que la de su próprio funcionamiento estructural, un excesso irresoluble que empuja el sistema
hacia esse afuera de la escritura y el artificio, estrategias de superficie que pervierten los pensamientos de
profundidad. Este es el caso, por ejemplo, de la adición progresiva de términos que hacen crecer un sintagma en
un juego de entrelazamientos de palabras nuevas com otras repetidas anteriormente [...].
53 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.
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de camelo. Agora chega! Ele não é uma má pessoa. Mas precisa cantar o tempo
todo? Ele vai me deixando irritado. Eu sou capaz de chegar a Belém tão ‘brabo’, que
vejo o menino na manjedoura e arranco a cabeça fora! Pára! Pedaço de carvão com
alto-falante! Lembrem sempre da alegoria!54
Figs. 14 e 15 Il Primo Miracolo - Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções
A ação, no jogo de repetições, é impulsionada a uma velocidade crescente de
progressão, pois busca a exterioridade material do corpo e da cena, que é ao mesmo tempo,
transgressão do sentido comum. “A repetição pede um ritmo cada vez mais acelerado em uma
proliferação de signos sem mais sentido que o próprio exercício da proliferação [...].”
(CORNAGO, 1999: Interludio, s/p, trad. nossa)55
A repetição em si mesma constitui um mecanismo “excessivo”. O excesso de
significante, de materialidade sígnica, o próprio corpo como excesso. Para que a repetição
alcance seu fim, como em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, é necessário que
haja uma disciplina formal, a rígida ordenação dos elementos a serem repetidos, e um efeito
de distanciamento que reveste a repetição de uma noção de “naturalidade teatral”, como se
nada estranho ocorrera.
Uma estrutura submetida a um jogo de repetição, seja ela oral ou não, faz visível
em sua exterioridade o tempo-ritmo compactado que gira sobre si mesmo. Evidenciando a
estrutura da representação, o jogo de repetições anula a lógica do próprio sistema lingüístico.
54 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996. 55 La repetición pide un ritmo cada vez más acelerado en una proliferación de signos sin más sentido que el
próprio ejercicio de la proliferación [...].
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Paradoxalmente, a medida que os recursos orais e rítmicos parecem adquirir uma
rara autonomia, como o princípio da repetição, as rimas consonantes e as estruturas
paralelísticas, usurpando o lugar da lógica e o sentido, se emancipa a própria
escritura como entidade autônoma e excessiva em um jogo de oposições. Isto lhe
permite reconquistar uma liberdade expressiva que se havia negado ao gênero
dramático nas últimas décadas ao conceber o teatral como oposto ao literário. Deste
modo, se a obra cresce em teatralidade com a intensificação de seus mecanismos de
destruição/construção, também cresce em autonomia como escritura literária [...]
donde a utopia final de uma linguagem fonética feita corpo, termina abocanhando o
texto até outro código escritural, ininteligível, para brilhar como puro signo, pura
materialidade escrita. (CORNAGO, 1999: Interludio, s/p, trad. nossa)56
Nos espetáculos analisados, podemos identificar três tipos de repetição: a que
volta sempre em diferentes momentos do espetáculo como código a ser identificado pelo
espectador - a repetição de códigos que retornam em uma mesma cena, como a da “costura
dos índios”, e a repetição momentânea, que possui apenas o objetivo cômico.
Em A descoberta das Américas, há uma cena de tempestade que se repete em três
momentos distintos do espetáculo, diferentemente da cena de “costura dos índios” que é
repetida em seqüência, mas possui o mesmo sistema de repetição. Em um primeiro momento,
no início do espetáculo, Johan está na praia com sua namorada acusada de ser “bruxa” pela
Inquisição. Ele descreve a ela com palavras e gestual, como a lua está enorme, linda, o céu
limpo, sem uma nuvem, o mar parecendo “uma mijada”. A moça se levanta desesperada
dizendo que isto é o “prenúncio do fim”, o prenúncio de uma tempestade horrorosa:
Johan - Calma amor, está tão bom aqui... não tem nenhuma nuvem no céu, o mar
parece uma ‘mijada’. Mas ela já me empurrava para o barco: ‘Vamos embora!
Vamos, vamos! depressa!’ Saímos remando feito loucos. Assim que chegamos à
56 Paradójicamente, a medida que los recursos orales y rítmicos parecen adquirir una rara autonomía, como el
principio de la repetición, las rimas consonantes y las estructuras paralelísticas, usurpando el lugar de la lógica y
el sentido, se emancipa la propia escritura como entidad autónoma y excessiva en un juego de oposiciones. Esto
le permite reconquistar una libertad expressiva que se le había negado al género dramático en las últimas décadas
al concebir lo teatral como opuesto a lo literario. De este modo, si la obra crece en teatralidad con la
intensificación de sus mecanismos de destrucción/construcción, también crece en autonomía como escritura
literaria [...] donde la utopía final de un lenguage fonético hecho cuerpo termina abocando el texto hacia outro
código escritural, ininteligible, para brillar como puro signo, pura materialidad escrita.
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praça São Marco, pegamos a rua, entramos em casa, fechamos a porta e desabou
uma ‘tromba d'água’, um temporal horroroso, com uma ventania que acabou com
tudo pela frente. Parecia o fim do mundo. [Johan narra com gestual, mas explica
com algumas palavras quando são os trovões, a intensidade da chuva, a enchente que
sobe em três dias de temporal, até se tranformar em poucos pingos e cessar].
Escapamos por milagre. A mulher era um fenômeno! Adivinhava tudo! Pena que
não adivinhou que os guardas iam prendê-la por ordem da Santíssima Inquisição!57
Como Johan aprendeu com a namorada que a lua cheia e o mar que parece “uma
mijada” traz a tempestade e as enchentes, em outro momento do espetáculo, Johan, depois de
fumar uma tal “folha de cinco pontas” que os índios fumam, “conversa com a lua”. Quando
chega o Pajé, Johan fala sobre a tempestade que virá, e o Pajé desacreditado diz: “Mas se o
mar parece uma ‘mijada’!”. Johan comenta: “Parece que foi a ‘deixa’”!, repetindo com o
gestual e as ações vocais os trovões (“orororororor”), os relâmpagos (“tra, tra, tra, tra”), a
chuva, a enchente, a água que sobe (“glub, glub, glub”), os pingos no final da tempestade
(“pin, pin, pin, pin”), o momento em que cessa. Na terceira tempestade, Johan faz uma outra
construção de sentido, após uma luta empreendida com os espanhóis. Johan e “sua tribo”
mandam os espanhóis embora depois de muita luta:
Johan - Resumindo, prendemos todos, inclusive os padres. Decidimos mandá-los de
volta pra casa em seus navios...mas não sem antes esperar a ‘lua boa’. Dalí a três
dias a lua aparecer …redondinha… com seu aro luminoso em volta. ‘Boa viagem
governador!’58
O público identifica imediatamente a intenção de Johan, que manda os espanhóis
para o mar em plena tempestade.
Ainda na repetição que retorna em diferentes momentos do espetáculo, Johan
Padan, em A descoberta das Américas, repete as mesmas ações e palavras toda vez que entra
em uma embarcação.
- Embora! Vamos partir! Soltar as amarras! Levantar âncora! Armar vela mestra!
- Ei precisam de alguém pra costurar as velas?
- Vem, sobe. Estamos de partida!59
57 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 58 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 59 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004.
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O mesmo procedimento acontece toda vez que Johan entra em uma oca a convite
dos índios:
Mesa com todo tipo de iguaria, carne de caça. Rede com foguinho em baixo [faz
com as mãos o foguinho e quantas indiazinhas tem na rede a sua disposição].60
Na primeira vez que Johan narra o que as índias faziam com ele quando o
queriam agradar, descreve todos os procedimentos com gestos e palavras: as índias o levavam
para a cachoeira, davam-no banho, mordidinhas, sugadinhas, passavam ungüênto em seu
corpo, faziam pinturas (riscos que remetiam à divisões), arrancavam seus pêlos.
Nas próximas vezes que descreve as atitudes das índias para com ele e seus
amigos, Johan faz o gestual e apenas profere algumas palavras principais: “cachoeira,
mordidinhas, sugadinhas, ungüênto, divisões, pêlo, pêlo, pêlo.”
Na repetição de ação vocal, quando Johan narra as lutas épicas com trocas de
flechas, faz o gestual e a ação vocal correspondente: “Zizizi vuvuvu, zi zi zi vu vu vu, zi zi zi
vu vu vu.”
Toda vez que Johan descreve suas fugas, repete: “Saí correndo igual ‘uma lôca’,
peguei, esquerda, direita, esquerda, direita, sobe ponte, desce ponte, sobe ponte, desce ponte.”
Em diversas passagens, o público já sabe, antes mesmo de o intérprete começar, o que ele vai
dizer.
Quando a tribo é invadida por outros índios, Johan coloca a escada na “cerca” da
tribo e dá de cara com um índio enorme e forte – Johan não fala nada, somente faz a máscara
do índio e aponta para ele. Neste caso o que é repetida sempre, em relação aos índios, é a
caricatura do personagem. É ela que faz a construção de sentido, como é o caso dos Reis
Magos em Il Primo Miracolo.
60 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004.
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Fig. 16 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro
Fig. 17 Il Primo Miracolo Vídeo Prod. por SCAN Vídeo Produções
Na caricatura,
toma-se um pormenor, um detalhe; esse detalhe é exagerado de modo a atrair para si
uma atenção exclusiva, enquanto todas as demais características de quem ou daquilo
que é submetido à caricaturização a partir desse momento são canceladas e deixam
de existir. A caricatura de fenômenos de ordem física [...] não se diferencia em nada
da caricatura de fenômenos de ordem espiritual, da caricatura dos caracteres.
(PROPP, 1992: 88)
92
Na caricatura ocorre o exagero de um pormenor, na hipérbole, recurso utilizado
por Fo, ocorre o exagero do todo. A paródia, a hipérbole e o grotesco, procedimentos
altamente utilizados por Fo, não fogem à caricatura.
O grau mais elevado e extremo do exagero é o grotesco. No grotesco o exagero
atinge tais dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso.
Ele extrapola completamente os limites da realidade e penetra no domínio do
fantástico. [...] Uma definição correta e simples do grotesco é a dita por Bóriev: ‘O
grotesco é a forma suprema do exagero e da ênfase cômica. É o exagero que confere
um caráter fantástico a uma determinada imagem ou obra’ (PROPP, 1992: 89)
Um dos inúmeros exemplos de repetição momentânea em A descoberta das
Américas, se dá quando Johan narra:
Embarcamos uns duzentos índios pra fazer lastro. Um calor insuportável, pouca
comida... nada pra beber. Até o fim do dia já morria índio aos montões. Começamos
a usar os índios de isca para pescar. Índio no mar, peixe no barco, índio no mar,
peixe no barco, índio no mar, peixe no barco [faz gesto de pescar].61
Em Il Primo Miracolo, em algumas vezes, a comicidade está na repetição das
palavras:
Na Praça havia uma fonte. Em torno dela, só terra. Terra do tipo argila, sabe, aquela
de fazer tijolo. O Menino Jesus pega um punhado de terra ... aquela de fazer tijolo, e
com suas mãozinhas delicadas...de fazer tijolo...62
Em Fo, assim como em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, os atores
jogam códigos para a platéia que durante o espetáculo são “chamados” em diferentes
momentos. O público exerce a função de identificá-los, relacioná-los, analisá-los e atribuí-los
diferentes significados em um jogo ativo de descobertas e criações de sentido.
Em A descoberta das Américas, Johan Padan ensina uma música para os índios
durante a catequização, em ritmo de samba. Quando Johan e os índios chegam na cidade de
Catchoches, do outro lado da Flórida, chegam cantando: Johan só faz o ritmo com as mãos e
61 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 62 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.
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a gesticulação com a boca. Mesmo assim, podemos sentir o ritmo da música como se todos
estivessem cantando. A criação de sentido permite que o público possa lembrar dos códigos
estabelecidos, não só das palavras e gestos, mas “sentir” de maneira cinestésica a mesma
sensação da primeira vez em que o código foi estabelecido, sem que o ator precise verbalizar
novamente ou realizar a ação completa.
Nos espetáculos analisados, algumas quebras propositais se dão entre a passagem
de um personagem para outro, quando o intérprete faz algum comentário entre os textos
proferidos pelos personagens, e também em textos inseridos que fogem propositalmente do
contexto da estória. São inúmeras as inserções feitas por Fo já no texto original, e pelos
intérpretes, como no trecho abaixo, em que Roberto Birindelli faz uma conversa entre o
Menino-Jesus e seus coleguinhas, quando aquele faz voar os passarinhos de barro:
- Porra meu, que bruxo! [sotaque paulistano] O Palestina fez voar um pássaro de
barro! E era de barro!
- Não, isso não é verdade!
- Não! Era de barro!.
- Mas é um truque mais velho que Deus!. O Palestina pegou um passarinho meio
aturdido, porque tinha caído da árvore. Passou na água, esfregou na terra, levantou
na mão, assoprou no cu, arrepio... ‘VCE, VCE’... o passarinho voou!
- Não, era de barro que eu vi! Mostra pra ele, Palestina... Um outro pedacinho de
barro, vai que é fácil... as asinhas... as pluminhas, vai!
- Espera aí!
- Quem tu é?
Aparece um garoto, um menino, de cabelos negros, encaracolados.
- Pára tudo, verifica!
- Mas quem tu é hein?
- Tomé!
- Ah! Tomé? [Quebra – para a platéia] De criança já era um pé no saco!
Tomé apanha um prego e... VUPT... fura o passarinho de barro.
- Confere, pode seguir!
- Então prestem atenção que vou assoprar! (Vai assoprar e pára, olha para os lados).
- Não sei se vai funcionar de novo. Vou precisar uma ajuda de todo mundo. Todos
pensando comigo: Voa! Voa! Voa! [Quebra - olha para a platéia] Não precisa falar,
pensa com as ‘coisa aqui dentro’! [aponta para a cabeça] (Assopra)
PPFFFUUUUUUUU... CIU, CIP, CIP! [quebra: imita novamente o vôo do
passarinho].
[...]
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Toda a criançada fazendo passarinhos. Mas teve um que fez um pão redondo, com
um uma cabeçona que caía; botou duas perninhas, TUM... Cai... Colocou quatro,
cinco patas.
- Um passarinho de quatro patas não dá!.
- Mas se não é pra ficar em pé... O importante é que voe, né?
Um outro fez uma lingüiça, uma cobra, uma cobra-lingüiça: doze asas em fila, sem
rabo, doze patas.
- É... parece um cachorrinho...
Outro fez uma massona - parecia uma torta -, a cabeça reta no meio, sem pescoço,
com o bico pra cima... as asas todas esparramadas. E sem rabo.
-Não sei se voa, vamos ver..
Outro tinha feito uns passarinhos que pareciam umas bostinhas. Outro, então, uma
bostona. E, por último, um gato!
- Não dá pra fazer um gato voar!
- Ah! Se aquela bostona lá voar, o meu gato voa!
- Não, não. Um mínimo de regras! Não dá pra fazer gato voar!
- Manhêee, o Palestina não quer fazer o meu gato voar! [Quebra - Imita a mãe que se
debruça na sacada e grita] - Palestina, faça voar imediatamente a gato do meu filho!
Senão, eu desço e te crucifico! [Quebra: imita o gesto do Menino-Jesus que observa,
preocupado, olha para as palmas das mãos]
- Sai pra lá! Toda a passarinhada em fila que eu vou assoprar! (Imita o vôo
extravagante de vários pássaros).
[Construção de sentido. O Menino Jesus assopra. Neste momento, o público lembra
da descrição de cada pedaço de barro e o intérprete faz o gestual de cada um
voando]
PFUUUUU... O pão: QUAC, QUIC, QUOC, QUA, TE, PU, QUA, TE, RAA.
PFEEEEE... A cobra: PICI, PETE, QUA, TE, CE, CHE, SE, TE, PE.
PPFUUUU... A torta: PSU, PSU, PSU.
PFFEEEE... A bostona: PCE, PQUE, PTE, PCI, PCE.
O gato PFFUUUU GNIAAAAAOOOO GNA GNAM! Come todos os passarinhos
no céu!63
As quebras propositais criadas por Fo ou pelos intérpretes dos espetáculos
analisados, estão diretamente ligadas à troca de personagem ou a comentários do narrador em
relação à estória e aos personagens. Estas quebras se já não estão previstas na escritura de Fo,
são estudadas e inseridas pelos intérpretes. Uma quebra mal posicionada, ou mal realizada,
pode destruir o fluxo interno da narratina e, conseqüentemente, seu tempo-ritmo. Uma
63 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.
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“quebra” não significa “um tempo”, pois a quebra pode ser produzida, por exemplo, através
de palavras e gestos.
Existe um outro tipo de “quebra” que está relacionada ao texto de palavras,
quando estas são inseridas propositalmente fora do contexto da história.
Quando Roberto Birindelli descreve os vários produtos trazidos para o Menino-
Jesus na mangedoura, promove uma outra “quebra” inserindo “presentes” contemporâneos:
- Os pastores se põem em marcha em direção à choupana, levando apenas coisas de comer.
Tem quem chega com queijo, cabrito, coelho, galinha, vinho, azeite, maçãs em calda,
tortas de castanhas, ‘picolé de creme, sanduíche, banana-split, chokito’... E tem quem
chega com polenta. Imagine dar polenta para uma criança recém-nascida! Só pode ser um
babaca!!!64
Em A descoberta das Américas, quando os Inquisidores invadem a casa de sua
“namorada-bruxa”, Julio Adrião na pele de Johan Padan, flagrado com ela no momento em
que os homens invadem a casa, se explica: “Eu só tava entregando uma pizza!”.
Como Roberto Birindelli estabelece um contato com a platéia, no qual pode, com
mais freqüência, parar e responder a perguntas, estabelece um maior número de quebras
propositais em momentos específicos, passando da cena para um contato com o público fora
do contexto da estória. Estas quebras são “ensaiadas” e quase sempre aparecem no mesmo
lugar.
A praça fica cheia de crianças. Aparecem meninos até de outros bairros. Todos
fazendo estatuetas de barro. Passarinhos de todas as cores e formas. Brincam, riem,
cantam! LA, LA LA LA LÁ... (canta uma música típica de realejo). 65
Neste momento, Birindelli ensina uma música para a platéia e organiza um coro,
hora com uma parte da platéia, hora com a outra, depois junta as vozes. Em vários momentos
pergunta para alguém do público: “Conhece a história? Então vem fazer!” ou então lembra
alguém: “Respira!”
As quebras são muito diferentes das pausas, pois possuem, muitas vezes, um fim
em sí mesmo. Seguem para passar de uma ação a outra, de um personagem a outro, enfatizar
64 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996. 65 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.
96
o lado cômico de uma situação, ou para estabelecer uma relação mais estreita com a platéia,
quando necessário. Nas pausas, a passagem de tempo sublinha ou modifica o significado das
ações precedentes ou subseqüentes e pode promover um tipo de distanciamento, como
veremos a seguir.
97
3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em A descoberta das
Américas
A dramaturgia das obras clássicas, principalmente entre os séculos XVI e XVIII,
estava centrada inteiramente na palavra e seus poderes, ignorando durante séculos o silêncio e
protegendo-se, por assim dizer, dele, à custa de um arsenal de formas. Durante muito tempo o
silêncio foi visto como um fracasso da ação, um insucesso dos atores que pareciam ter
esquecido o texto, ou como um tempo morto que desacelera o tempo-ritmo do espetáculo e
distrai a platéia. Como não se podia reconhecer uma tela sem pintura, também não era
possível reconhecer uma obra bela ser interrompida por silêncios. A pausa era sinônimo
justamente de ruptura.
O diálogo que se impunha como fundamento do teatro, consagrava
definitivamente o triunfo da palavra; quer se apresente de forma efetivamente dialógica, quer
adquira a aparência do monólogo, o seu caráter dialético fazia do verbo que chamava outro
sem cessar, um movimento que só terminava com a resolução do conflito ou o fim da peça.
“[...] Se não existe palavra sem silêncio, o silêncio na Idade Clássica é sempre servus verbi,
escravo fiel, e muitas vezes mal tratado, que apenas serve para fazer valer as palavras que
acolhe.” (RYKNER, 2004: 42)
Deste modo, a unidade da dramaturgia clássica se tornou um lugar de resistência
ao silêncio, assim como perdeu a desconfiança que se tinha na Idade Média e Renascimento
em relação à linguagem, nos quais a gestualidade do histrião era, por vezes, mais confiável
que o verbo, pois neste era preciso decifrar as chaves do mundo.
Apenas uma inversão e contestação radical dos pressupostos do drama clássico
finalmente concede ao silêncio e a pausa o lugar que tem hoje nas dramaturgias
contemporâneas.
No século XVIII, Denis Diderot (1713 - 1784) e as reflexões iluministas sobre a
mímica e a ação trouxeram com suas mudanças tanto ideológicas quanto estéticas, o silêncio
integrado no texto e na representação, e até, embrionariamente, a substituição do verbo pela
ação corporal narrativa. Mesmo de maneiras muito distintas das de Fo, Diderot acreditava que
as ações não necessariamente precisavam estar acompanhadas por palavras.
Para Diderot,
98
A pantomima, longe de ser o sinal de uma demissão do autor, é a marca de uma
necessária delimitação das competências de cada um. Não se trata de o ator não
poder substituir o autor, mas sim de o autor não se dever substituir ao ator. Cada um
intervém a um nível diferente. Ao autor cabe fazer passar no texto a emoção que
deverá sustentar a ação; ao ator descobrir esta emoção no seu corpo e deixar guiar-se
por ela. O próprio texto mais não é do que a superfície (a parte emersa do
icebergue). (RYKNER, 2004: 231)
O silêncio neste caso é frequentado pela palavra, no qual as ações devem ser
simples, ao contrário do discurso complexo materializado em palavras, como gostaria Artaud.
Ao contrário do silêncio passivo vem um silêncio produtor de sentido, de
significantes independentes, de tempo e de espaço, no qual palavra e silêncio entram em
conflito. Mas as soluções que Diderot propõe, em relação a pantomima66, são a curto prazo
tornadas ações esteriotipadas, sendo recuperadas e pervertidas principalmente pelo
melodrama.
Apesar das mudanças embrionárias que propunha Diderot,
A palavra mais não pode do que rompê-lo aqui e ali, sem nunca, contudo, ocupar a
dianteira do palco. As próprias palavras não se apresentam senão como
excrescências do silêncio. Erguem-se no seio deste último, mas mais não são do que
adjuvantes. (RYKNER, 2004: 227)
Somente a partir do século XVIII é possível ver com alguma freqüência as
rubricas ou didascálias indicando uma interrupção do texto. Até então o silêncio e a pausa não
são reconhecidos claramente como componentes da escritura dramática, mas são colocados
nas mãos dos encenadores.
Quanto ao termo ‘pausa’, parece-nos encontrá-lo pela primeira vez, sob a forma e a
acepção que nos interessam em Voltaire [...], é contudo em Diderot que o mesmo
será sistematizado, a partir de 1757, em Les Fils naturel e depois em Le Père de
famille (1758): o escritor não utiliza apenas a forma canônica ‘uma pausa’, como
ainda explora quase todas as possibilidades oferecidas pelo léxico e pela sintaxe.
(RYKNER, 2004:34)
66 É importante assinalar que a pantomima em Diderot é substancialmente diferente da pantomima dos mimos medievais e dos séculos XIX e XX , e da utilizada por Fo, tanto em seu significado quanto em sua praxis.
99
Na dramaturgia clássica, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, a ação e o
gesto estão absolutamante contidos na sucessão de réplicas.
O simbolismo, movimento que no século XIX instaura uma dramaturgia do
silêncio, na qual a palavra assume a forma deste, principalmente com Maurice Maeterlinck
(1862 - 1949), por outro lado, busca não a inação, mas a quase imobilidade por parte dos
atores.
No teatro tradicional até fins do século XIX, por conta do encadeamento das
ações, o silêncio não tem vida própria e em muitas vezes não “significa” em nome da “estética
do cheio”, na qual todos os silêncios devem ser preenchidos.
No teatro tradicional pré-século XX, apesar das tentativas de Anton Tchecov
(1860 – 1904), o silêncio acompanhado ou não pelo gesto, não tem uma outra função do que
ligar uma palavra a outra.
Na chamada pós-modernidade dos séculos XX e XXI, a fragmentação e as
quebras da unidade da ação aristotélica permitem com bastante freqüência a inserção de
silêncios significativos.
As tiradas cômicas e os apartes que exprimem uma reflexão interior, como nas
farsas e monólogos de Fo, se impõe sobre o silêncio preenchendo o seu espaço, pois
necessitam de um tempo cômico encadeado e, por vezes, acelerado; fora isto, correm o risco
de esvaziar-se e morrer. Por isso, por um lado, as tiradas cômicas e os apartes se colocam
como uma antítese do silêncio; mas por outro lado, a ação gestual cômica e encadeada deste
tipo de espetáculo baseado na ação, substitui muito bem as palavras, preenchendo o silêncio
através das ações, ao mesmo tempo que permite o silêncio das palavras.
A aproximação do monólogo e do aparte tem, no entanto, qualquer coisa de
enganadora. O aparte difere, de fato, profundamente do monólogo na medida em que põe em
causa a mecânica do diálogo (mesmo que o monólogo, pelo menos de um ponto de vista
formal, assegure a sua continuidade), situando-se, por assim dizer, a meio-caminho entre o
silêncio e a palavra.
No século XVIII, Diderot preconizará a substituição do aparte pela pantomima,
mas ela jamais conseguirá, em Diderot, a expressão necessária sem o uso da palavra. Diderot
bem sabia que era necessário para o tipo de teatro que desejava, nascerem autores, atores e
quiçá, um público.
O que afirma acerca da predominância do gesto sobre a palavra permite associar o
seu elogio da interjeição aos princípios de uma dramaturgia do real. O gesto, tal
100
como o discurso explosivo, é a forma mais possível de constituir uma expressão
natural das subjetividades em presença no drama. Este fala sem raciocinar. Designa
sem comentar. Impõe-se sem passar pela formulação da linguagem. É anterior ao
logos e, desse modo, está mais perto da natureza do que qualquer outro sistema
semântico. Além disso, toca imediatamente o espectador, sem reclamar,
forçosamente, um julgamento de entendimento. [...] Deste modo, privado de todo o
suporte verbal, o gesto reúne a espontaneidade do movimento natural – irreflectido –
e o poder significativo da palavra. (RYKNER, 2004: 210-211)
Somente a partir da segunda metade do século XIX é que a dramaturgia
encontrará soluções próximas as que Diderot pretendia. A unidade da dramaturgia clássica foi
contestada também, dentre muitos outros, por Samuel Beckett (1906 - 1989), em cujas obras
encontramos dramas sem palavras ou o diálogo desarticulado por silêncios repetitivos, nos
quais quem fala não tem esperança de resposta, mas de silêncio.
Em Dario Fo, os ritmos acelerados de suas narrativas épicas, principalmente em
seus monólogos, faz com que a ação preencha os espaços vazios, não deixando muito espaço
para as pausas. O silêncio pode, por sua vez, reforçar a palavra, negá-la ou substituí-la.
A pausa em Fo está mais ligada à criação de suspense, reflexão, ou a momentos de
respiração para ator e público. Inteligentemente colocada em lugares propícios (isto se deve a
ao conhecimento profundo que Fo possui do ritmo das platéias), juntamente com as situações
bem definidas, prendem a atenção do público, mesmo em momentos de relaxamento. Fo
também faz pausas para que o público possa rir em determinados momentos, como o faz
Roberto Birindelli na montagem de Il Primo Miracolo.
As tensões alternadas com breves silêncios são importantes. As pausas relaxadas são
propositais. Uso-as para respirar, pois um dos objetivos é fazer o público respirar
com você. O público precisa tomar fôlego, simultaneamente. Caso ele esteja afogado
ou agredido durante os momentos de tensão ou ao final de uma risada, sem que se
permita sua recuperação, sem deixá-lo respirar, ele acabará ficando cansado e
perderá a capacidade de se divertir e de participar adequadamente. (FO apud
MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 215)
Em seu Manual Mínimo do Ator (1998), Fo comenta:
101
“As passagens, os contratempos, as pausas particulares não foram pensadas
antecipadamente. São resultado da observação realizada em função da reação do público.”
(FO, 2004: 246)
Mais adiante: “[...] vocês podem perceber que em certos momentos faço pausas,
fico mais relaxado; são propositais. Uso-as para respirar com você. O público precisa tomar
fôlego simultaneamente.” (FO, 2004: 253)
Já na montagem de A descoberta das Américas, o intérprete se coloca contra a
vontade do público e do ritmo deste, que pretende que tudo se torne mais frenético, para
sublinhar uma ação ou promover a reflexão ou crítica de determinado momento. A pausa,
apesar de rara, surge como autenticidade, pois o ator se obriga a sair de si mesmo e do
personagem.
Julio Adrião age contra a unidade da ação que está presente, e insere, em A
descoberta das Américas, pausas nos raríssimos momentos que evidenciam a faceta dramática
de algumas cenas. O lógico seria fazer as pausas em momentos cômicos, como o fazem a
maior parte dos atores para sublinhar o efeito e as gagues, pois trata-se de um dos monólogos
mais cômicos escritos por Fo. Como o próprio texto retrata de forma cômica uma história
dramática, como as viagens das embarcações sujas e da dramática sobrevivência dos
tripulantes, com pouca água e comida, doenças e lutas sangrentas, a dramaturgia de Fo se
utiliza da sátira e do grotesco e, através da comicidade promove uma crítica ferina a diversos
dogmas e posturas do cristianismo e da história das descobertas. O intérprete Julio Adrião e a
diretora Alessandra Vannucci, tornam mais eficazes momentos de crítica e reflexão através de
pausas que promovem quebras de expectativa, nas quais o riso do público é interrompido
bruscamente.
Após a cena do “massacre dos índios”, na qual através de ações, Julio Adrião
demonstra a luta que dizimou quase todos os índios da tribo que o acolheu, Johan Padan
depois de uma cena de pantomima e ações vocais engraçadas, pára, fica em silêncio olhando
os mortos, dá alguns passos em direção ao proscênio e diz: “Fiquei deprimido”.
Depois da cena da “costura dos índios”, descrita no início do capítulo, e a qual é
uma das cenas mais hilariantes e virtuosas do espetáculo, Johan, depois de costurar uma
centena de índios, interrompendo a risada abundante do público, pára e fica em silêncio por
alguns segundos.
O silêncio anterior à batalha, essa vigília de armas, feita da espera do amanhecer, e
esse silêncio que sucede os combates, que se instaura no lugar dos ruídos.
102
Sim, ele permanece no silêncio, o herói. [...]
O silêncio dá vida a olhares nunca vistos, a gestos ainda não ousados.
Tudo é eminente; para que um braço que se ergue tenha um sentido, nós o
esperamos no silêncio da expectativa, que dá ao ato que se segue todo seu valor;
assim, a palavra é esperada como necessária ao encontro. [...]
É a partir do silêncio que nasce a qualidade do gesto e da palavra. É nesse crisol que
se preparam os impulsos e as pulsões que organizam, no espaço interior, os ritmos
em urgência de emergência: ele vai falar? agir? Ele ergueu-se, caminhou, voltou-se,
olhou-me por apenas um instante, um instante suficiente para a compreensão, e
continuou seu caminho.
O silêncio é investido de qualidades muito diferentes, conforme preceda ou suceda
uma ação, um ato, uma palavra. A urgência de uma ação que nos mobiliza
inteiramente requer um silêncio propício a essa ação. A ação o exige. [...] O silêncio
inicial assemelha-se à concentração que deve favorecer a ação subseqüente. [...]
O silêncio depois da ação conduz mais à reflexão, ao recolhimento em si mesmo.
[...] Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá a palavra sua
profundidade.67
Na cena em que Johan catequisa os índios e descreve a crucificação de Cristo que
olha sua mãe caída aos seus pés, o intérprete pára e permanece longos segundos em silêncio,
após sucessivas cenas baseadas no texto de palavras, encadeadas por um ritmo frenético e
uma comicidade quase sufocante.
Eu descobri há pouco tempo em relação a esta cena [do massacre dos índios], um
silêncio. Faz um mês que eu descobri isto. Eu me carrego daquilo e digo: “Fiquei
deprimido”. E mesmo assim as pessoas ainda riem. Mas pode ser uma risada nervosa
também. O mesmo movimento que é a espada espetando, depois virou um
movimento de corpo caindo. Narrando aqui com meu corpo, “va, va, va, va” [faz
movimentos de cravar a espada] e depois o narrador vendo aquilo horrorizado, só
depois vem o silêncio. Eu olho aqueles índios todos caídos e aí vem o texto. São
coisas que eu vou percebendo. A cruz também [imagem de Cristo crucificado], as
pessoas riam e eu deixei ele ali crucificado um tempo “enoooorme”. O Hugo Rodas
quando viu o espetáculo em Brasília veio chorando para mim, pois ele é o próprio
expatriado, ele é o cara que não voltou. Ele teve uma identificação com o Johan,
67 Jacques Lecoq in "Le Théâtre du geste", org. de Jacques Lecoq, Ed. Bordas, Paris, 1987. Trad. de Roberto
Mallet.
103
com a estória. Aí ele disse: ‘Posso te dizer uma coisa? Naquela hora do Cristo fica,
não tenha pressa de terminar, pois ali você vai botar o dedo na ferida’.68
Quem vê a frenética montagem de A descoberta das Américas pode perguntar-se
o porquê de tanta importância dada à pausa aqui, mas se não constitui o ponto mais
importante do espetáculo, como nunca será, pode vir a concretizar momentos de extrema
riqueza poética, por ser justamente um elemento raro dentro da encenação. Uma pausa em
outro espetáculo com um ritmo menos veloz, não causaria tanto impacto e interesse. O ator
Julio Adrião considera estes, momentos de descoberta em relação ao próprio espetáculo.
O corpo, a sua presença, o seu movimento, funda a realidade do feito teatral e
organiza a relação que se estabelece entre o palco e a sala. Antes de entender e de
analisar as combinações da linguagem, o espectador tropeça na visão global e
instantânea que lhe propõe o ator e seu silêncio. (RYKNER, 2004: 212)
Este procedimento, se o podemos assim chamar, se mostra até contrário a
linguagem de Fo, talvez porque os ritmos de sua narração épica e sua linguagem mais
próxima aos contatores de histórias não permita pausas muito longas, e é por isto, que as
pausas se tornam evidentes e eficazes em A descoberta das Américas, pois ao invés do
relaxamento, Julio Adrião propõe justamente o contrário: a tensão.
Fig. 18 A descoberta das Américas
Vídeo produzido por Filmes do Serro
68 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
104
3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra de
Portinari
Fig. 19 Il Primo Miracolo
Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções
Combinando a dialética e a expressão das obras de Fo a dinâmica dos quadros do
pintor brasileiro Cândido Portinari (1903 - 1962), Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo
Miracolo, relaciona a crítica social de Fo com a força expressionista do “pintor social”
Portinari. Birindelli utiliza a gestualidade de seus quadros, principalmente da série
“Retirantes” (sobre os retirantes nordestinos que migram para São Paulo), e do “Ciclo do
café” (que mostra os trabalhadores das lavouras de café), para construir partituras de ações,
posturas e máscaras de alguns de seus personagens.
Il Primo Miracolo conta a estória do nascimento de Jesus, da fuga de sua família
para o Egito e de sua infâcia como estrangeiro em outras terras, nas quais provavelmente
aconteceram os seus primeiros milagres. Dario Fo escreve esta estória de forma profana, sem
nenhum cunho religioso, mas não blasfema, tratando de elementos como a opressão, a fome, o
exílio, os preconceitos raciais e de nacionalidade. Humanizando o lado divino destas
personalidades, Fo satiriza os valores da sociedade contemporânea, mostrando a Família
Santa como uma família comum, e coloca em evidência, através da ironia, seus inúmeros
defeitos, mas também suas virtudes. Assim como Fo, Portinari também denuncia através de
seus personagens as falhas de toda uma sociedade.
105
Através dela, de sua força expressiva, de suas violências, de suas deformações não
raro sarcásticas, ele [Portinari] critica a sociedade, aponta as falhas da organização
política, instiga o público à revolta contra a ordem que considera errada das coisas.
Ele exprime e comunica a sua própria inquietação. (MILLIET apud FABRIS,
1990: 20)
Assim como a escritura de Fo, Portinari em suas obras, pinta através de suas
deformações, por vezes sarcásticas, a realidade de suas estórias através da ótica do povo,
construindo personagens que como o pöer nano de Fo, representam a gente humilde e
trabalhadora, o povo sofredor, faminto e cansado, com toda a sua carga de humanidade e
materialidade. O herói de Portinari, assim como na série de desenhos Dom Quixote, é um
herói humilde, faminto, mas por vezes, fabulador e sonhador.
“Invertendo a postura do teatro de Strindberg, que concebe a ação dramática como
um Calvário, Portinari faz de Cristo um homem, um irmão dos retirantes, dos trabalhadores.”
(FABRIS, 1990:71). Portinari fala para as massas assim como Fo, e seu expressionismo
lembra a arte “verdadeiramente humana”, assim como o grau expressivo do teatro de Fo.
Entre o Jeca Tatu e os cangaceiros de Portinari não vai diferença alguma, na missão
confiada a esses símbolos de trazerem até nós o grito daqueles infelizes que seus
traços ridículos e angustiados representam, mergulhados que estão naquela miséria e
naquele infortúnio e naquela mesma ignorância que em Juazeiro os tornaram heróis
e bandidos, quando, em verdade, foram apenas mártires. [...] É certamente obra de
pintura, de uma grande pintura iconográfica, rapsódica, vibrante, documentária,
violenta. (G.I∗ apud FABRIS, 1990:20)
A obra de Portinari é épica e rapsódica em sua narrativa, assim como os
monólogos de Fo, mas transmitem para a montagem de Il Primo Miracolo, uma contradição
evidente em um fecundo jogo de oposições.
Autora - Os quadros do Portinari transpiram melancolia [apesar de um fundo irônico
e sarcástico de algumas obras] e os textos do Fo, comicidade.
Roberto Birindelli - É isso! Eu te proponho uma charada. Uma que te faz rir e uma
que te deixa apreensiva. Então o que é proposto é um trabalho interno, de escolher o
tempo todo de que lado tu vais ficar. Inseto ou inseticida. O que é interessante, é que
∗ Folha de São Paulo, 1970, autor não identificado, apud Fabris, 1990.
106
muitas vezes tu te deixas ser inseticida e aí tu te cobras, por exemplo: a história do
rei negro, o camelo, o rei velho que escorraça o camelo, e aí tu te pegas rindo de
uma coisa que tu não gostarias.
Autora - Através da oposição.
Roberto Birindelli - Sim. O espetáculo ficou assim, mas isto não está presente no
texto original do Fo. É uma sucessão de armadilhas, que conforme mais ou menos
consciente, tu te deixas levar.69
Apesar de Roberto Birindelli fazer algumas paradas durante o riso do público, não
raro, este jogo de oposições traz o público de volta do riso com um nó na garganta, pois este
se dá conta, em alguns momentos, de que ri de algo reprovável, como das tiradas
preconceituosas que os amigos do Menino-Jesus proferem contra ele, com apelidos do tipo
“gringo” ou “Palestina”, do tratamento preconceituoso dos dois Reis Magos contra o Mago
preto, e diversas outras passagens que ao mesmo tempo engraçadas, recebem uma tragicidade
das ações, promovendo uma quebra de expectativa, surpreendendo em flagrante o riso do
público.
Birindelli traz da obra de Portinari uma gestualidade grave, intensa, em alguns
momentos sofrida e deformada, em contraponto à comicidade do texto.
A diferença claramente perceptível entre a gestualidade de A descoberta das
Américas e Il Primo Miracolo é que Julio Adrião possui uma gestualidade que desenha e
narra a estória, dando vida no palco a elementos invisíveis até então, de modo que se
tamparmos os ouvidos ainda será possível pela gestualidade do intérprete entender diversas
passagens. Já Roberto Birindelli, em uma linguagem gestual distinta, se utiliza de uma
gestualidade mais abstrata, mas não menos clara e limpa. A gestualidade de ambos os
espetáculos, que se encontra em um plano completamente oposto ao do quotidiano, necessita
mais do que outras do texto de palavras, mas trabalha com o texto de maneira diferente do
teatro tradicional, pois joga com ele, confrontando-o, e não reiterando o jogo de palavras.
“Primeiro eu levei uns três meses só trabalhando as situações. Isto tem a ver com
os pastores, isto tem a ver com Maria. Primeiro a corporeidade no relacionamento com as
figuras, depois é que eu fui para o texto”.70
69 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, vide apêndice. 70 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
107
Como talvez ninguém melhor do que Portinari tenha sabido dar vida através de
imagens a uma visão épica do homem do povo brasileiro, não uma visão épica perdida na oca
teatralidade dos grandes gestos, mas a uma visão épica conseguida através do enaltecimento
do trabalhador e do homem comum, Roberto Birindelli buscou em Portinari a ponte de
comunicação direta com a gestualidade brasileira. Com suas obras “Portinari está descobrindo
a paisagem e a gente brasileiras e se encanta com seu colorido, sua gestualidade, sua
expressividade.” (FABRIS, 1990: 95)
Em 1936, Portinari pinta a obra Fuga para o Egito, com seus temas religiosos e
alegóricos, que pode ser diretamente relacionada à peça Il Primo Miracolo, mas é nos
Retirantes que Roberto Birindelli encontra a tradução mais expressiva da gestualidade que
deseja.
O retirante torna-se em Portinari um símbolo universal do homem, vítima da
guerra, da fome, da miséria. “Sua arte pode resumir-se a uma única preocupação: o homem.
Não o homen entidade abstrata, mas o homem histórico, o homem que vive o devir, a
contingência da condição humana: o trabalhador, o retirante, a mãe que chora o filho morto...”
(FABRIS, 1990: 70)
E aí caiu a ficha. ‘Il Miracolo...’ fala de uma sagrada família que sai de Belém. [...]
O que isto tem a ver com a gente? É claro! Nós temos um monte de sagradas
famílias, que são nordestinos que saem do nordeste para buscar emprego em São
Paulo! Isso é um ponto de partida. E aí, é claro, me veio direto as imagens do
Portinari. Eu peguei toda a série dos retirantes nordestinos: ‘O ciclo do café’, ‘O
menino morto’, ‘As lavadeiras’ e os ‘Retirantes’. Olhei muitas vezes toda a série, a
linguagem, os homens, as figuras deformadas e comecei a trabalhar sobre isso. Pena
que você não está gravando em vídeo [levanta e começa a fazer as partituras]. Mas
no site [www.ilprimomiracolo.com.br] você pode ver as figuras. Do quadro “O
menino morto”, vieram várias seqüências. 71
A série dos Retirantes personifica a saga, a “diáspora”, a Via crucis destes homens
e mulheres castigados pela seca, ponte direta com a história de Cristo. O princípio é a “seca”,
o êxodo o meio, e a sobrevivência, a vida ou o “ressuscitar em outras terras”, como o fim. Os
heróis trágicos de esqueletos vacilantes, que lutam na batalha injusta contra os próprios
destinos, são heróis que como Dom Quixote lograram na vida ser grandes e humildes ao
mesmo tempo.
71 Roberto Birindelli , em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
108
Ao tratar novamente da morte, Portinari impregna a composição de uma atmosfera
de religiosidade. A rede [da obra Enterro na rede, 1944] evoca o lençol no qual o
corpo de Cristo foi levado à sepultura, o pathos da gestualidade feminina e a muda
resignação dos homens lembram as mulheres e os apóstolos em sua triste caminhada
para o sepulcro. O Cristo é anônimo como são anônimos todos os retirantes que
sulcam o sertão de cruzes. (FABRIS, 1990: 116)
Portinari não mostrou a sua inquietude apenas nos seus quadros, mas também em
seus poemas feitos geralmente para cada série ou quadro. Sobre a série Retirantes, escreveu o
poema Deus de Violência:
[...] Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado
Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo
Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas
Sobre a figura do menino morto, escreve:
[...] O filho menor está morrendo
As filhas maiores soluçam forte
Caem lágrimas de pedra. Mãe querendo
Levar menino morto: feio de sofrer, cara de morte
[...] Que santo nos poderia livrar?
Reza de velho louco
Deus pode a todos castigar.
Que é que esse menino tem? Está morto. (PORTINARI apud LUZ, 1986:
134)
109
O drama humano já subjacente na Via Sacra de Pampulha, toma corpo nos
Retirantes (1944), que também fazem a sua via sacra, esqueléticos, de rostos esquálidos, secos
como a paisagem árida em que nasceram, denotando a nova visão de Portinari.
Autora - É claro que os quadros do Portinari estão presentes na estética do
espetáculo, nas imagens, mas elas são muito dinâmicas e codificadas. Codificações
de um gesto presente no quadro, em diversos outros, formando o movimento, a
partitura.
Roberto Birindelli– [Demonstra] Uma mulher que está com o menino morto, outra
mulher que ampara e outra mulher que chora. Juntei uma música da resistência
chilena [canta no espetáculo, pois não utiliza música mecânica]. E aí tem toda a
dinâmica da Fuga para o Egito e a dinâmica “horrível” dos quadros do Portinari.
Isso ajudou assim: O texto [a peça] já de início te propõe uma luta interna. Porque a
dinâmica do Portinari é ‘horrível’ e o texto é hilário.72
Os pés de Roberto Birindelli parecem personagens à parte, em sua expressividade
agigantada, assim como as suas mãos, que para cada personagem assumem gestos
correspondentes. As mãos que amparam as lágrimas do Menino-Jesus despresado, são outras
muito diferentes das delicadas mãos de Maria, das mãos dos Magos, firmes que cortam o ar
com movimentos bruscos.
Birindelli, principalmente faz de suas mãos, símbolo inequívoco, como as grandes
mãos e pés de Portinari, com sua carga de força e de criatividade. “Na série, pintada em 1944,
Portinari parece ter experimentado a gama mais variada de sentimentos: das lágrimas de pedra
aos rostos atônitos e resignados, da dor gritada à dor surda, expressa pelo olhar e pelo gesto
vigoroso da mão:” (FABRIS, 1990:112)
[...] os corpos encurvados, tudo isto nos indica o êxodo, a retirada, a evasão daquela
gente. Já os pés amplamente apoiados, os cajados fincados na terra, os braços que se
elevam aos céus em apelo e súplica são, sem dúvida alguma, indicativos que
aparecem em alguns trabalhos desta fase, demonstrando a vontade de ficar. (LUZ,
1986: 18)
As alegorias presentes em toda a obra de Portinari, assim como em Fo, trazem a
busca de uma gestualidade representativa, que assim como a subjetividade da mímica
72 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
110
moderna, traz elementos diversos capazes de serem vistos por diferentes olhos, suscitando
sensações distintas. As ações podem se passar em qualquer lugar do mundo e seus agentes
podem ter qualquer nacionalidade, “[...] pois, além de fugir de qualquer notação realista, o
pintor confere à obra um caráter não arbitrário, quer pelo agenciamento espacial, quer pela
luminosidade que em nada lembra um cenário tropical”. (FABRIS, 1990: 61)
Figs. 20 e 21 Il Primo Miracolo - Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções
Nas obras de Portinari, como em A Primeira Missa no Brasil, defrontamo-nos
com uma realidade simbólica - o ato religioso - que resume em si toda a composição. Se não
fosse pelo título da obra, nenhum dos elementos que a compõe permitiria datar o
acontecimento. Portinari então busca para seus personagens os gestos representativos de toda
uma classe, de todo um povo; gestos essencias e universais ao mesmo tempo.
A gestualidade essencial, com o trabalhador captado nos momentos culminantes:
esse tratamento da figura por parte de Portinari lembra o momento fecundo de que
fala Lessing no Laocoonte. Não que o artista de Brodósqui reduza a pintura a uma
única dimensão, mas é patente a busca do gesto essencial, do gesto que resuma em si
toda a ação. É nisso que Portinari se aproxima da proposta de Lessing - colher e
magnificar a gestualidade mais significativa ou uma sequência de gestos produtivos,
que criam uma dinâmica espacial e psicológica. Na captação de gestos seqüenciais,
na tradução de movimentos refletidos, Portinari se aproxima da espacialidade dos
primitivos italianos, mas também nesse caso a ‘condensação’ temporal e psicológica
responde a razões expressivas: o artista cria registros temporais simultâneos, que
111
sugerem movimento numa composição classicamente estática. (FABRIS, 1990:
105)
Portinari, que pintou o universo do circo com seus palhaços e bufões que lhe
encantavam na infância com sua comicidade grotesca, também utilizou cenas alegóricas e
gestos simbólicos em suas telas como em Via Sacra e São Francisco, painel feito para a Igreja
da Pampulha em Belo Horizonte. A obra São Francisco, mais contida em sua gestualidade e
expressividade, marca um encontro entre o classicismo renascentista e o Portinari
expressionista: “A dramaticidade de Cristo na Cruz, em sua expressividade ‘tosca’ e contida,
lembra algumas Paixões medievais.[...] Através de Cristo, Portinari retrata o drama da
humanidade, dando a sua obra um caráter mais amplo que o do drama religioso.” (FABRIS,
1990: 61) Estas palavras resumem exatamente a ponte entre o Cristo de Portinari e o Cristo de
Fo que, através de sua proximidade com o homem comum, trazem reflexões profundas sobre
a humanidade.
A fabulação de Portinari, sua capacidade de fazer das suas memórias de infância,
imaginação repleta de realidade, traz um certo realismo teatral que se evidencia através de
uma patente representação dos fatos.
O herói trágico de Portinari, assim como o herói grego, tem consciência de seu
fatalismo, característica principal do herói trágico, pois sem ela, sua condição não seria a
mesma: a de herói que não pode fugir ao seu próprio destino, seja ele bom ou ruim. Os
narradores (heróis/anti-heróis) de Fo possuem uma grande maleabilidade nas ações e,
geralmente, nas escolhas, pois conduzem sua tragetória com muita perspicácia e
malandragem, mas interiormente sabem qual será o seu fim.
A simpatia pelo comunismo, vinda pelas artérias de Prestes, era para Portinari a
suspensão do conflito e a resolução da tragédia.
Para Portinari, “apenas a pintura poderia tornar real o segredo de nossa existência.
O homem apareceria enfim como ele é, representado através das contorções e distorções da
forma.” (LUZ, 1986: 98)
Coloca os atores principais de suas obras no centro, e assim como Fo, recorta as
“objetivas” do público para o acontecimento principal, como no quadro “A criança morta”, ou
“O menino morto” que inspirou Roberto Birindelli:
A Pietá central, que segura o pequeno cadáver já transformado em esqueleto, é
ladeada por dois grupos, cuja dor é expressa pelas lágrimas de pedra das figuras
112
femininas e pelo olhar perdido do menino. [...] Os elementos expressivos do rosto,
aliás, fazem pensar muito mais numa representação simbólica do que numa
fisionomia individualizada, pois lembram a iconografia medieval da máscara da
morte. [...] Há uma correspondência psicológica entre os dois grupos de figuras: a
mulher de marrom pode ser vista como um primeiro momento da mãe desolada; a
menina, que segura ternamente a cabeça do menino morto, parece projetar seu futuro
na mulher da direita, que traz pela mão uma informe esperança de vida. (FABRIS,
1990: 113)
Através das simbologias e de uma quebra da lógica da expectativa, Portinari choca
e promove um tipo de catarse que não é a mesma catarse liberatória tão criticada por Fo, mas
um tipo de sensação que permanece e vai embora com os assistentes. Para Fo, a ironia é a
única coisa que pode causar uma catarse duradoura, definitiva. Algumas obras de Portinari
são trágicas; mas mais do que chocar, demonstram através da teatralidade de suas figuras,
uma certa ironia da vida, ironia do destino.
Birindelli trouxe para sua gestualidade um pouco da essência das obras de
Portinari, que através da hipertrofia de seus personagens, revelou através de suas pinturas e
narrativas, assim como Fo, não exatamente o que aconteceu, mas o que poderia acontecer.
Fig. 22 RETIRANTES - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 190x180 cm
Museu de Arte de São Paulo - Coleção Assis Chateaubriand
113
Fig. 23 ENTERRO NA REDE - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 180x220 cm
Museu de Arte de São Paulo – Coleção: Assis Chateaubriand
Fig. 24 CRIANÇA MORTA - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 180x190 cm
Museu de Arte de São Paulo – Coleção: Assis Chateaubriand
114
3.4 O ponto de encontro: a construção da corporeidade em A descoberta das Américas e
Il Primo Miracolo
A figura cênica é uma complicada estrutura de signos que inclui vários
componentes, quer lingüísticos quer extralingüísticos, constantes ou variáveis. No teatro, o
signo criado pelo ator tende, por causa de sua esmagadora realidade, a monopolizar a atenção
do público à custa dos significados imateriais veiculados pelo signo lingüístico das palavras.
Como a semiologia da linguagem e a semiologia da atuação são diametralmente opostas em
suas características principais, sempre há uma tensão dialética entre o texto dramático e o
ator.
Se por outro lado, a materialidade do corpo do ator é sobrepujada, o texto de
palavras perde inúmeras possibilidades de se abrir e dar vazão para jogos que podem ser
muito mais significativos, pois sendo o teatro diferente da literatura feita para ser lida, se a
corporeidade e a materialidade do corpo do ator perdem seu espaço, o teatro perde sua
principal função.
A criação de A descoberta das Américas empreendida por Alessandra Vannucci,
diretora do espetáculo, e Julio Adrião, intérprete, e a criação de Il Primo Miracolo, feita por
Roberto Birindelli, a partir das escrituras de Dario Fo, são exemplos claros de que a criação
do ator pode estar em consonância com o texto dramático, no sentido de que as linhas mestras
do texto são respeitadas e, ao mesmo tempo, dentro destes limites textuais (de onde emerge a
função do dramaturgo, que estabelece as linhas das situações que devem ser desenvolvidas), o
ator possui uma infinita liberdade de criação, pois pode, através de suas ações, gestualidade,
ações vocais e ritmo, provocar inúmeros deslocamentos semânticos, afirmando ou
provocando as palavras, e abrir todo um universo significativo de possibilidades de
entendimento, um universo paralelo que pode tornar mais rico o texto de um dramaturgo
como Dario Fo.
Julio Adrião e Roberto Birindelli, respeitando o texto do autor e as grandes linhas
de suas situações, inúmeras vezes, desenvolvem as ações ou enxertam nelas episódios criados
por eles. Nestes casos, quando se altera o ritmo de algumas ações, ou se modificam
determinadas relações de força, ou ainda, a interpretação de certas características sem intervir
na proposta básica, as variações e os recortes são geralmente benéficos para os efeitos
dramáticos visados.
115
A dialética entre a expressividade vocal, a expressividade do gesto e do texto, é a
tarefa mais difícil para os atores, cujos trabalhos procuram a transparência entre a proposta do
texto e a atitude corporal.
De todas as características da semiologia da linguagem, a mais importante neste
sentido é que o significado fica ligado ao material sensorial e corpóreo – os componentes
sonoros de que depende o significado lingüístico são, em larga medida, predeterminados pelo
próprio significado da palavra, mas geralmente podem ser modificados completamente. Isto
permite que os significados lingüísticos criem as mais complicadas relações.
O discurso das personagens em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo
são proferidos pelo próprio narrador que, por vezes, dá vida a outros personagens que também
dialogam entre si através do discurso direto. O discurso de narrador e personagens em Il
Primo Miracolo se contrapõe mais do que em A descoberta das Américas, justamente pela
distância que o narrador tem das personagens e suas ações, podendo discordar e criticar suas
ações com mais freqüência. O narrador em A descoberta das Américas, por ter participado
dos eventos, partilha da ilusão das personagens, do patriotismo, da revolta, da dor, das
comemorações com um grau muito maior de proximidade.
Neste jogo narrativo, as ações vocais dos espetáculos analisados estão
estreitamente relacionadas com o trabalho empreendido por Dario Fo a partir do grammelot e
dos dialetos. Cada uma das linguagens de Fo, dos dialetos italianos principalmente, revelam
uma visão de mundo, um universo ideológico próprio, assim como os grammelot de Fo que
imitam a linguagem inglesa ou francesa. A partir da regionalidade trabalhada por Fo em seus
textos, Roberto Birindelli traz os sotaques brasileiros para representar os dialetos, ou a
condição social e racial das personagens. Adaptando à nossa realidade, Birindelli tenta
resgatar as linguagens que seriam equivalentes no Brasil e, que poderiam, de certa forma,
representar o que Fo sugere para seus personagens.
Birindelli - [...] Também existe muita coisa do Gramellot, dos dialetos, não dialetos
que a gente não tem aqui...
Autora - Temos os sotaques.
Birindelli - Claro! Os sotaques. O estrangeiro, os tipos sociais que vem da commedia
dell’arte. A relação do soldado com o paulista engravatado que vai trabalhar, pois
estamos falando de nordestinos que vão para São Paulo. Então, os pastores, os Reis
Magos que vão à choupana, que tem um sotaque nordestino e que pensam muito na
116
terra; o mineiro que é desconfiado, e que no texto é a figura do São Tomé; é todo um
universo que a gente tem e que modifico em cada lugar.73
Em uma nota de rodapé na tradução de Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli
explica:
Optei por um linguajar o mais próximo possível do coloquial, da rua, adaptado
também aos diferentes tipos sociais e regionais. O próprio Dario Fo trabalha em
bergamasco, montanhês, napolitano, e outros dialetos, quando quer se referir aos
habitantes ricos do norte, que segregam os mais pobres do sul, etc.∗
Em Il Primo Miracolo, São José, “padrasto de Jesus”, fala um “portunhol”,
denotando a sua condição de estrangeiro:
- Aqui tem cossa. Yo atcho que es uma armadilia. Menino Jesus, o que é que tu
atcha?∗
Mais adiante:
- Es siempre assi, quando un homem piensa com la própria cabeça, todo mundo
agradece a Deus, que no fez nada!∗
Sobre a utilização do castelhano, Birindelli comenta em sua tradução:
São José cumpre, neste texto, a função social do estrangeiro segregado. No Brasil, a
figura do segregado é o CASTELHANO. Por isso uso este sotaque. Quando
apresentado na Argentina ou Uruguai, foi trabalhado um sotaque espanhol, o
GALEGO, que é a figura tradicionalmente segregada no Rio da Prata. E assim vai
sendo adaptado em cada local.∗
Geralmente a linguagem utilizada está gramaticalmente errada como nas falas dos
pastores:
73 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, ator de Il Primo miracolo, vide apêndice. ∗ Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996, texto inédito.
117
- Oh dotô, pediram pra nóis fazê o prisépio.∗
Sobre isto, Birindelli comenta em outra nota de rodapé:
Lembrando que busco sempre a expressão mais popular, mesmo que gramaticalmente errada.∗
Diferentemente de Roberto Birindelli, que utiliza os sotaques, em A descoberta
das Américas, Julio Adrião utiliza o castelhano para os espanhóis e uma linguagem típica de
“índio falando português” para o Pajé, mas utiliza-se o tempo todo principalmente de
onomatopéias que permeiam a gestualidade rápida, como vimos na descrição de cenas no
início deste capítulo. Roberto Birindelli também se utiliza das onomatopéias em várias
seqüências.
Fig. 25 Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Vídeo Produções
O gesto e a ação vocal nos espetáculos analisados ganham uma estatura idêntica
ao texto de palavras na sua intencionalidade de revelar o trabalho já realizado, pois tudo é
preparado cuidadosamente. A estrutura de construção das ações são reveladas a frente do
público, demonstrando a maestria dos atores que agora observam suas ações, do mesmo modo
que os assistentes, para obter informações precisas sobre as mudanças futuras.
Diferentemente, Dario Fo não ensaia ou prepara seus monólogos antes de
entrarem em contato com o público, mas estabelece as linhas de suas ações gestuais e vocais,
∗ Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996, texto inédito.
118
as situações a serem desenvolvidas e, juntamente com o público, vai estabelecendo o ritmo e
os tempos mais eficazes.
Apesar de Julio Adrião e Roberto Birindelli terem feito várias apresentações e
ensaios abertos antes da estréia propriamente dita dos espetáculos, estes foram criados a partir
de uma gestualidade pensada e repensada minuciosamente antes de entrarem em contato com
o público. Trabalhando com partituras de ações, ambos experimentaram profundamente a
relação da gestualidade de seus personagens com o texto dramático escrito por Fo. As
mudanças feitas na escritura foram estabelecidas através da experimentação das ações e
montagem das partituras, mas principalmente, através da contação das estórias repetidamente.
Este dado é fundamental para percebermos o frescor que os dois espetáculos possuem, pois as
estórias são apropriadas pelos atores a partir da linguagem de cada um. É por isto que as
cenas, apesar de terem uma estrutura mais formalizada do que os monólogos de Dario Fo,
possuem uma espontaneidade típica do racconto popular, no qual a estória aparenta estar
sendo construída no aqui e agora da “presentação” e do contato com o público.
Então eu nomeei as estórias, pois para compor esta estória grande, existem várias
estórias. Tem a estória da ida para Sevilha, da chegada em Santo Domingo, tem a
entrada na caravela de Colombo, o aprisionamento pelos índios, tem batalha, uma
série de coisas. Criamos um roteiro com as passagens e eu comecei a contar o que
me lembrava. Afastei as cadeiras em casa mesmo e comecei a contar. No primeiro
dia a gente viu que era isso. Que era um processo que tinha que ser contado e
amadurecido por meio da repetição. Era se apropriar da estória e contar da melhor
forma possível. Nós fomos fazendo e aos poucos vimos que não precisávamos de
nenhum aparato cênico e que era a função do ator reproduzir tudo aquilo com seu
canal de comunicação, ou seja, os elementos que fazem parte da tua história de ator.
Tanto o que você aprendeu tecnicamente, como o que você aprendeu como pessoa.
A tua maneira de se comunicar, tua voz, os teus gestos, os teus vícios de linguagem,
as tuas técnicas, tudo isto a serviço da estória a ser contada.74
Depois das seqüências gravadas, o contato com o público exigiu dos atores outras
tantas mudanças, mas dentro de linhas mestras já estabelecidas por eles. As mudanças
ocorrem no contato com o público, assim como o tempo e o ritmo dos espetáculos se alteram,
mas a diferença, é que o trabalho com as partituras de ações faz com que o ritmo seja de tal
forma encadeado, que como já dito, não permitem as paradas, retomadas e comentários feitos
74 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
119
por Fo na maioria de seus espetáculos, nos quais pode sugerir as ações a partir de seus painéis
pintados e suas imagens, pegar e deixar o microfone, interromper e recomeçar.
Para falarmos da construção das ações e da gestualidade de A descoberta das
Américas e Il Primo Miracolo, e da relação destas com o texto de Dario Fo, é de suma
importância falarmos das várias substituições provocadas pelos atores na criação de ambos os
espetáculos. As substituições de texto de palavras por ações ou de ações por texto, são feitas
com muita freqüência, principalmente em A descoberta das Américas:
[...] Todos esses quatro quintos do espetáculo estão em uma comicidade da forma
[até mais da metade do espetáculo, que possui por volta de 1h40m]. A partir da
catequese dos índios é uma comicidade de texto. O Alcione Araújo quando viu o
espetáculo pela primeira vez disse: ‘Olha, vocês correm um risco ali, mas vocês dão
conta.’ É uma outra linguagem, só que ninguém percebe mais, porque já está
alavancado, mas o riso é diferente. O Dario neste momento do texto faz uma crítica
religiosa e faz esta adaptação. A palavra ali se torna fundamental. Ali eu coloquei os
meus adendos também, onde eu criei uma Madalena que não tinha. Todas aquelas
formas são fruto da minha concepção do desenvolvimento da narrativa. Foi um
caminho que eu encontrei. Qualquer outro ator contaria de uma maneira
completamente diferente da minha. Ele iria encontrar a maneira dele, senão vira
imitação. Este mesmo texto contado pelo Dario Fo leva duas horas e meia, onde ele
usa imagens projetadas que tem os desenhos dele, e a partir dos desenhos, ele conta
a estória. [...] Então eu penso que se eu montasse outras estórias do Dario Fo, o meu
caminho seria sempre esse de ‘A descoberta das Américas.’ O que mudaria seria a
estória e os elementos que eu iria descobrir de narrativa fisica. [...] Os quatro quintos
iniciais do espetáculo, desde que ele chega a cidade dos espanhóis até a catequese, o
público ri da forma que está sendo contada a estória e não do texto. Eles riem das
minhas ações. Tem ações de mais de cinco minutos sem uma palavra.75
Os gestos metalingüísticos, termo utilizado por J. Guinsburg em Semiologia do
Teatro (2006), são aqueles que substituem a mensagem verbal, assim como nos monólogos
analisados.
Considerando que os espetáculos prevêem a existência de um texto verbal e de um
texto cênico, existe uma classificação que abarca a relação do gesto com a mensagem verbal
e, também, o gesto como mensagem independente. Entre estes dois pólos, encontramos alguns
signos gestuais que substituem a fala no sentido de terem sido a tal ponto convencionalizados
ou codificados que passaram a ser uma tradução da linguagem verbal, quando, por qualquer
75 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
120
razão, não se quer ou não se pode empregá-la. É sobre este tipo de gestos que se baseiam as
pantomimas e mímicas, subjetivas ou não, na escritura de Fo e nos espetáculos de Birindelli e
Adrião. Estes gestos são metalinguísticos em virtude desta característica de servirem para
substituir uma outra linguagem e serem significativos por si só. Já os gestos que acompanham
a fala podem reiterá-la ou contradizê-la (como nos jogos de oposições que já vimos).
A gestualidade pode dirigir-se a dois destinatários: outro personagem,
pertencendo à ficção estabelecida no palco, ou a platéia, pertencendo a uma ligação entre
mundo real e ficcional.
Os monólogos, peças para um só ator, já possuem, de qualquer forma, uma
linguagem dialógica, pois os personagens dialogam consigo mesmos, com personagens
imaginários, ou dialogam assumidamente com a platéia; mas os monólogos de Dario Fo,
possuem esta função dialógica ampliada, pois apresentam personagens que dialogam entre si,
mesmo sendo representados em seqüência.
Em A descoberta das Américas, como disse o ator Julio Adrião, a primeira metade
do espetáculo está na comicidade da forma; isto quer dizer que o público ri mais das ações do
que propriamente do texto em si. É nesta parte que acontece o maior número de substituições
de texto por ações, como na cena da “costura dos índios” de quase oito minutos, que substitui
um parágrafo indicativo no texto.
As cenas em que Johan Padan, personagem de Julio Adrião, mima colocar os
animais no porão do navio, também é um exemplo de desenvolvimento da narrativa através
das ações. O intérprete imagina e estabelece a partir das características do personagem e da
estória, o que poderia acontecer a partir da situação proposta pelo texto e, acrescenta uma
cena em que coloca, como guardião dos animais, cada um deles, porcos, galinhas, cavalos, no
porão da embarcação. Johan faz as ações opositivas de colocar cada animal no porão,
mimando, ao mesmo tempo, as ações de resistência provocadas por eles. Esta cena também
não está prevista na escritura de Fo, mas traz um “realismo teatral” que põe em evidência uma
parte da narrativa que não possuía a mesma importância no texto original, beneficiando a
ficção proposta pela escritura.
Outras cenas de ações criadas pelo intérprete e que substituem o texto de palavras,
evidenciam o aspecto cômico de determinadas passagens através de uma quebra de
expectativa descoberta pelo intérprete e pela diretora do espetáculo: quando Johan descreve
as trocas empreendidas com os índios, nas quais os espanhóis trocavam pérolas por espelinhos
e perfumes, Julio Adrião mima o mergulho de um índio para buscar uma pérola. Mima sua
descida até o fundo do mar, o encontro da pérola e a subida do índio que parece não terminar
121
mais, quando este já está sem fôlego, provocando situações hilárias. Estas cenas de ações
substituem a narração das palavras e mostra a leitura do intérprete e da diretora sobre
determinadas cenas, abrindo um campo muito fértil de ações inteligentemente desenvolvidas.
Fig. 26 A descoberta das Américas
Vídeo Produzido por Filmes do Serro
Lendo o texto traduzido ou mesmo o texto em italiano, podemos notar as
inúmeras substituições de texto por ações em A descoberta das Américas e a dimensão que
algumas cenas tomaram no espetáculo a partir de frases ou parágrafos indicativos presentes na
narrativa original.
Quando a embarcação em que Johan se encontra, chega a Santo Domingos, a frase
presente no texto traduzido por Alessandra Vannucci e Julio Adrião, diz: “Finalmente
chegamos à Ilha de Santo Domingos! Que Maravilha! Eu nunca tinha visto uma água tão
clara!”. A partir desta frase o ator descreve com seu corpo e gestualidade, os peixes, os
peixões que comiam os peixinhos, os sirizinhos, a alga marinha, narrando com seu corpo a
visão que possivelmente se teria da praia.
Em uma passagem na qual Johan narra sobre a situação em que os bichos ficavam
durante as tempestades, substitui mais uma vez os gestos pelas palavras: “Os bichos, atirados
contra as paredes do porão. Quando acabava a tempestade, estavam tão rasgados que eu tinha
que costurar todos, cavalo, porco, galinha, vaca... com a agulha de costurar velas. Salvei
todos. Me adoravam.” Julio Adrião substitui este texto por uma cena de ações em que costura
os animais. Adrião faz a reação dos animais através de ação vocal ao mesmo tempo que faz as
ações de Johan costurando-os. Em A descoberta das Américas podemos citar várias cenas de
122
substituição de palavras por ações, como a que Johan doma os cavalos chucros trazidos da
Europa na frente dos índios.
As substituições de texto de palavras por gestos em Il Primo Miracolo são bem
menos freqüentes, mas Roberto Birindelli faz substituições de texto por ações vocais com um
grammelot de onomatopéias, assim como Julio Adrião, e trabalha mais, como vimos, com um
jogo de oposições entre texto de palavras e texto gestual.
Adrião e Birindelli utilizam tanto onomatopéias como constróem um grammelot
com palavras em português. Este grammelot tem um efeito cômico duplo, pois é falado no
ritmo da ação a qual quer aludir, fazendo uma construção de sentido através de códigos já
estabelecidos durante o espetáculo, além de que, as palavras em português funcionam como
uma estrutura para o grammelot, evidenciando o aspecto cômico, pois não tem relação com a
época em que a estória se passa.
Quando Johan fala que vai pegar seus pertences para partir novamente, inclui nos
objetos que narra rapidamente, palavras como “cueca”, “desodorante”. Quando narra a
aparência dos índios depois de já ter narrado normalmente, diz: “tudo vegetariano, sarado,
peitoral, ‘Gatorade’”. Este recurso é o mesmo utilizado por Roberto Birindelli quando
descreve os presentes trazidos pelos pastores para Jesus: “picolé de creme, Banana Split,
Chokito”.
Quando descreve as índias, Johan Padan, depois de já tê-las descrito
normalmente, descreve-as apenas utilizando a gestualidade e algumas palavras, sendo que
dentro deste tipo de grammellot, aparecem termos como “escova progressiva”.
Alguns recursos cômicos estão diretamente ligados à ponte estabelecida com a
atualidade, o tempo todo mesclada com a estória. Esta ponte com a atualidade também é
estabelecida por Fo na própria escritura original.
Em A descoberta das Américas, os índios, segundo Johan Padan, pegam “caneta
e papel” e saem anotando tudo com muita atenção durante a catequese. Em Il Primo
Miracolo, “os soldados chegam, passam por todas as choupanas e param bem na frente da
Igreja da Candelária para ver se o Redentor tinha nascido”.
Em uma apresentação feita na cidade de Itajaí (SC), Julio Adrião em A descoberta
das Américas, inseriu a palavra Itajaí, termo indígena, na narração da cena em que ele e os
espanhóis proferiram todo o tipo de palavras indígenas que conheciam para estabelecer um
contato com uma tribo de índios.
Algumas destas “atualizações” feitas na escritura dependem de uma pesquisa
prévia no lugar que será feita a apresentação. Geralmente esta ponte está diretamente ligada
123
com o lugar e com a atualidade brasileira ou a atualidade do país em que o espetáculo será
apresentado:
[...] Em cada lugar eu tento remontar o perfil da sociedade que eu encontro. É por
isso que eu pergunto antes qual é o grupo social segregado e vou montando isto. [...]
Eu faço uma pesquisa. Por que eu vou me relacionar com essa sociedade, então o
que interessa não é só o que eu digo, é o que o espectador escuta através da realidade
dele. [...] Não só modifico a maneira de contar, como modifico as personagens! Por
que na Suécia, por exemplo, falar de racismo, é muito diferente do que falar sobre
isso em São Paulo. Mas a estrutura se mantém sempre. E como ela já está tão
codificada e tão orgânica para mim, que eu não preciso pensar, eu posso brincar do
que for. Por exemplo, eu apresentei em uma favela muito violenta em São Paulo que
nem a polícia entra. Como é que eu ia me relacionar com isso? Aí conversando,
chegamos a conclusão que somos todos ‘fodidos’ dentro de uma favela. Então eu
disse: eu vou contar a história de um ‘fodido’ que chegou em uma cidade que
ninguém conhecia ele, que tinha uns ‘amigos’ que não falavam com ele e inventou
histórias para ser reconhecido por eles. [...] Eu disse isso no prólogo! [...] Foi
bárbaro! Primeiro que eles entenderam que o Menino-Jesus era um “fodido” que
inventou de fazer milagre para ser aceito pelos amigos. Então isso é que ficou
parecido com eles.76
No jogo estabelecido pelos gestos metalinguísticos, em que as palavras são
substituídas pelas ações, procedimento que a escritura de Fo proporciona aos intérpretes
através das frases sugestivas de uma escritura pensada a partir da ação, existem outros
elementos, como a supressão de partes do texto que se encontram nas versões originais ou até
mesmo nas traduções (que nestas duas montagens não prejudicam ou interferem no
entendimento), e os acréscimos de texto feitos pelos intérpretes.
Nas partes enxertadas, como as palavras que já foram citadas e que fazem uma
ponte com a atualidade, os intérpretes criam e inserem situações cômicas que não estavam
presentes no texto original, assim como foram inseridas as cenas substituídas por ações.
Em A descoberta das Américas, um pouco depois da metade da peça, como o
intérprete já mencionou, o espetáculo passa a apoiar-se em uma comicidade mais existente no
texto, característica desta escritura de Fo. Podemos perceber nestes momentos, que Julio
Adrião enxerta trechos de texto de palavras, neste caso, não para provocar um
desenvolvimento da ação, como no caso das cenas de ações inseridas, mas com uma função
quase sempre de evidenciar o aspecto cômico da narrativa.
76 Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
124
Um exemplo de acréscimo está na parte da catequisação dos índios, na qual Johan
Padan descreve longamente uma Madalena sensual, com os bicos dos peitos que parecem
“duas bolachas Maria”. Outro exemplo está na parte que narra a crucificação de Cristo:
Quando cheguei a cena da crucificação, com a mãe aos pés da cruz esperando pela
morte do filho, foi uma tragédia! Parecia que tinha morrido um filho deles!
Choravam desesperados, arrancavam os cabelos, arranhavam o rosto...Calma! Três
dias depois de morrer, Jesus pensou bem e achou melhor ressuscitar! As índias
começaram a tirar as criancinhas: É mentira! Ele tá mudando o final só pra agradar a
gente! [grifo nosso]77
Mais Adiante:
Então eu vou ensinar uma música pra vocês antes de vocês saírem para o recreio.
[canta e dança uma música religiosa em ritmo de samba]. ‘Ai, mas que beleza... Ai
que alegria, o filho dos céus ressurgiu, tá vivo o filho de Maria’.78
Então, Johan resolve dar “férias” para eles. Esta parte final do texto foi acrescida,
assim como na cena em que Johan chega em outras terras e os indiozinhos, que nunca tinham
visto outros homens que não fossem os de sua tribo, começaram a gritar: “- Monstro!
Monstro! - Que monstro?!! É isso que dá deixar criança ver TV até tarde!”
Em Il Primo Miracolo, o texto de palavras quase não possui modificações,
também pelo fato de ser um monólogo mais curto.
Todos estes procedimentos de supressão, substituição, acréscimos, pausas, faz
com que o espetáculo passe por um processo paradoxal, pois apesar de haverem mais cortes e
substituições de texto por ações do que acréscimos de texto, os quais são muito raros e curtos,
geralmente, apesar do ritmo ágil que dá a impressão de compressão do tempo-ritmo da cena, o
tempo do espetáculo se dilata.
Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade brasileira
que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a necessidade de
enxugar o texto, pois o espetáculo tinha uma hora e dez minutos. Mas ao mesmo
tempo que eu ia sentindo a necessidade de cortar passagens que eu achava
reduntantes, eu fui encontrando também as pausas do espetáculo e as ações físicas
77 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004, texto inédito. 78 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004, texto inédito.
125
que foram desenvolvidas, pois algumas ações físicas se desenvolveram de uma
simples ação para uma cena de cinco minutos. O que era uma indicação no texto,
uma frase, se tornou uma cena de cinco minutos. E isso é coisa pra caramba! Eu fui
pesquisando cada vez mais as pausas e desenvolvendo as partituras físicas. O mais
engraçado é que com os cortes o espetáculo ganhou mais tempo, passou de uma hora
e dez, para uma hora e quarenta. Aumentou 30 minutos. Nós cortamos uma cena
inteira e outra nós reorganizamos e a colocamos em outro lugar. Foram cortes
cirúrgicos, pois eu cortava o texto, mais pegava a essência dele e desenvolvia em
alguns casos uma cena inteira só com ações [...]79
Fo conta em seu Manual Mínimo do Ator, que certa vez, em uma apresentação de
A história da tigresa, percebeu que muitas seqüências não funcionavam e existiam repetições
inúteis. Foi assistir a fita que sempre grava e assiste depois de cada apresentação e imaginou
como poderia substituir gestualmente trechos que havia narrado com as palavras. Na próxima
noite, enxugou vinte e cinco minutos de narração, cortando, acelerando, reduzindo e,
paradoxalmente, o espetáculo passou a ter cinqüenta e cinco minutos. “Em teatro,
freqüentemente, ao se cortar palavras, o tempo se dilata, pois entram em cena as pausas, as
risadas, a diversão do ator e do público.” (FO, 2004: 253)
A relação com o público é diversa nos dois espetáculos analisados, como já
pudemos ver, mas a revelação dos bastidores, da estrutura que envolve a representação,
evidenciando o evento teatral, está sempre presente em ambos.
Julio Adrião em um momento do espetáculo, no qual Johan precisa tirar a camisa,
diz: “Tira a camisa. Joga na mata. Não tem mata? Joga na ‘coxia’ mesmo!” Usa termos, como
“a folha daquela planta era do tamanho deste palco”. Ou então, “parece que foi a deixa!”. Em
Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli pára, pede ajuda para o público algumas vezes, ou
pergunta para alguns se não querem representar alguma cena em seu lugar.
Mais ou menos como em Brecht, este teatro de narrativa épica, constrói de
maneira diversa, uma série de signos encarregados de garantir ao espectador que ele está no
teatro e, não são estes momentos citados que garantem isto, mas a própria construção da
linguagem deste tipo de teatro promove este distanciamento da realidade, pois a teatralização
que possui a estória épica narrada através do grotesco, da hipérbole e da caricatura, aproxima-
se do circo, dos histriões e da commedia dell’arte, os quais praticavam todos os meios de
teatralização.
79 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
126
[...] o “teatro no teatro” diz não o real, mas o verdadeiro, mudando o signo da ilusão
e denunciando-a em todo o contexto cênico que a envolve. [...] Decorre daí uma
situação receptiva complexa, que obriga o espectador a tomar consciência do duplo
estatuto das mensagens que recebe e, portanto, a remeter à denegação, uma vez
isolada a zona onde se dá a reviravolta operada pela teatralidade. (UBERSFELD,
2005: 25)
A visão de fora, do público, no caso de Il Primo Miracolo, e da direção e do
público em A descoberta das Américas, é elemento fundamental para a construção da
narrativa. Todas as ações e textos são medidos pela eficácia de sua comunicação direta com o
público. Por serem dois espetáculos que dependem diretamente desta comunicação, não
sobrevivem sem uma criação conjunta da narrativa, diferentemente de espetáculos que
sugerem uma quarta-parede, nos quais a estrutura não se modifica com ou sem a relação
direta com os assistentes, mesmo que a importância da presença do espectador esteja em todas
as manifestações teatrais.
Um ponto a ser destacado, é que não apenas aquele que fala atua na produção do
discurso, mas também aquele a quem a fala é dirigida tem papel ativo, ajudando a construir a
a significação do discurso. O contraponto de idéias não é apenas objetificado, mas
corporificado através de vozes que representam pontos de vista, visões de mundo de
diferentes sujeitos.
Neste teatro que tem a narração e a oralidade imediata como ponto principal,
Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, resume como se dá a
comunicação entre ator-diretor-público:
A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da
cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os
personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o
pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-
pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à
cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela
contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às
marcas) decai diante da urgência da performance.80
Apesar destes espetáculos possuírem ações, por vezes, partiturizadas, não no
sentido de estarem presas em marcas, mas por garantir através de linhas de ações mais fixadas
80 Texto enviado a autora por Alessandra Vannucci, vide anexo.
127
e amarradas, um ritmo mais encadeado da narrativa, promovem mudanças significativas
através deste pingue-pongue imediato estabelecido entre ator e público e estão abertos a
mudanças e a acontecimentos inesperados previstos neste contato.
Entre os espetáculos analisados, existe uma diferença importante que é a presença
ou não de um diretor. Em Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli trabalha com uma auto-
direção. Como já dito, estes espetáculos dependem de atores que criam o seu próprio material
gestual-vocal, isto é, seu próprio texto de cena. Neste caso, a auto-direção encontra um
caminho propício, pois o ator já necessita desde o início de um senso de auto-direção que lhe
proporcione distinguir as ações que melhor se encaixam na dramaturgia escolhida. São
autores-atores-contadores de histórias que como Dario Fo, constróem o espetáculo juntamente
com o público que assume o papel de direcionador do ritmo, dos cortes daquilo que não
funciona e do caminho para as descobertas. Este tipo de teatro não necessita
fundamentalmente de um diretor, mas pode abarcá-lo de uma maneira, que não a mesma do
teatro tradicional, no qual as definições das ações e gestualidade, geralmente partem do autor
e do diretor da obra.
Já quando existe a figura do diretor, neste teatro corpóreo, no qual o ator está no
centro que movimenta a criação, ele porta-se de uma maneira diversa da tradicional, pois cabe
aos atores detalhar e especificar o seu modo pessoal-coletivo de elaboração vocal-gestual,
através da experimentação e da repetição. A partir disto, o diretor passa a observar com rigor o
que funciona ou não, apontar e sugerir caminhos para que o ator possa trilhar uma direção mais
segura, auxiliar no desenvolvimento de ações, sugerir cortes, assim como em A descoberta das
Américas.
O trabalho da Alessandra [Vannucci, diretora de A descoberta das Américas]
comigo foi fundamental, pois o trabalho dela não foi impor coisas, mas de identificar
e sugerir mudanças. Ela não quis ter o espaço de criação da cena, mas de me manter
no estímulo, pois várias vezes eu quis desistir. Ela me deu o chão. [...] Ela sabe que
o espetáculo é muito autoral no meu caso, e ela precisa me convencer das mudanças.
[...] O espetáculo exige muita concentração e eu colocava a atenção em um foco que
eu queria desenvolver ou melhorar, e prestava atenção mais naquelas passagens. Se
eu tinha um olhar de fora era melhor para me ajudar. Principalmente quando a
Alessandra assistia as apresentações, nós íamos para a minha casa e pegávamos um
pedaço e aprofundávamos as coisas que tinham funcionado ou tirávamos outras
coisas que tinham dado uma engessada, que não funcionava.81
81 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
128
O diretor, neste caso, tem a função de organizador do material criativo do ator, e
como possui uma visão mais ampla, que é sempre a visão distanciada, sugere caminhos para a
criação. Conduz o ator por caminhos antes não trilhados, por isso necessita de uma relação
cuja sustentabilidade é a confiança.
Mas a história não foi escrita por Dario Fo? Não, não, não: ela foi contada por Dario
em gromelô (uma língua híbrida, inventada pelos cômicos da Arte no século XVI)
num aperto memorável (os ‘festejos’ em Sevilha do quinto centenário da descoberta
da América). Mais tarde foi transcrita e traduzida para o italiano. Depois foi contada
por Julio em português, só para mim, e finalmente foi escrita. Ora, então: o que tem
a ver com direção neste espetáculo? Tem que eu fiquei observando, escutando e
presenciando como um espectador muito exigente. Quebrando as muletas do ator,
impedindo-lhe de cristalizar o fluxo da narração em marcas. Nem precisou comentar
muito: eu estava lá de espelho. E o teatro é isso: um espelho que determina a
imaginação perceptiva do ator.82
Os atores deste tipo de teatro necessitam de um trabalho gestual e vocal
diferenciado, pois como escreve Alessandra Vannucci, dependem apenas de seu corpo para
narrar a estória pretendida. Os atores Julio Adrião e Roberto Birindelli possuem em comum,
um trabalho singular sobre as ações e gestualidade, assim como um trabalho de ação vocal
altamente pormenorizado. Ambos são filhos do teatro corpóreo do século XX, que define e se
redefine continuamente no campo dos treinamentos e procedimentos metodológicos do
trabalho do ator, da mesma forma que os novos conhecimentos técnicos definem sua
“metafísica” em termos artaudianos. Esse campo aberto do teatro corpóreo na atualidade, que
tem sua estética a partir e como conseqüência de novas técnicas, deve ao desenvolvimento do
conhecimento técnico do ator no século XX, sua afirmação como linguagem. Etiénne
Decroux, Jacques Lecoq, Jacques Copeau, Giorgio Strehler, Grotowski, Barba, Ives Lebreton,
David Glass, Desmond Jones, Peter Brook, Philipe Gaulier são teórico-práticos que deram e
continuam dando sustentabilidade e estrutura a novas pesquisas relacionadas à comunicação
gestualidade- palavra.
Julio Adrião e Roberto Birindelli participaram do projeto Città Invisibile com o
grupo Potlach, que se destaca como um dos principais grupos de teatro experimental na
Europa, com seu trabalho interdisciplinar. Roberto Birindelli e Julio Adrião tem como base
82 Alessandra Vannucci, em texto enviado a autora, vide anexo.
129
ensinamentos de Lecoq, Thomas Leabhart, Eugenio Barba, Grotowski, Decroux, dentre
outros.
Sobre seus processos de treinamento, Adrião e Birindelli comentam:
Julio Adrião – Eu desenvolvi um processo de treinamento físico durante dez anos até
eu voltar para o Brasil, que englobava trabalho vocal, aeróbico, bastão, bolas,
trabalhos que criaram uma rotina de treinamento e que me deram uma base e
modificaram meu corpo. Depois de 1994, eu não treinei mais. Para este trabalho que
se revela muito com uma potência física, eu tive que voltar a trabalhar, [...] e nestas
três horas que antecedem ao espetáculo, eu faço aquecimento de forma global. Tudo
o que eu faço é técnica adquirida ao longo do tempo e tudo que eu teorizo vem da
prática e da experimentação. Eu não faço nenhum trabalho vocal e tudo o que eu sei
é da memória física, do que eu trabalho de vez em quando e permanece. Eu pratico
no espetáculo, pois eu já estou a três anos com ele. [...] O que eu levo é a disciplina
sempre. Eu sou que nem aluno que não estuda, mas entende a aula e faz o dever de
casa.83
Roberto Birindelli – [...] Agora eu dirijo um treinamento aqui [em Porto Alegre] e
quando eu posso, eu faço. Mas eu continuo dirigindo e dando muitas aulas, muitas
oficinas, pesquisando todos estes impulsos e estou sempre em ação. Sempre que eu
ensaio, eu reservo um tempo para trabalhar com o improviso. É livre, para que eu
possa buscar os estados que eu não consigo entender. Que é aonde eu digo: ‘o ator
descobriu a América’. O Eugenio [Barba] diz que quando um ator consegue fazer a
parada de mão, ele descobriu a América. Para mim não. Quando um ator age
primeiro antes de pensar, quando ele está alerta para estabelecer relações com aquilo
que ele fez, aí o ator descobriu a América. Este é o estado que eu busco antes de
começar os ensaios do ‘Miracolo’. Antes eu tinha que levar duas horas me cansando
e hoje em dez minutos eu chego neste estado de trabalho.84
A mímica e os procedimentos do teatro corpóreo dão sustentação a estrutura do
corpo deste ator que, como Julio Adrião e Roberto Birindelli,
Munido de seu arsenal de truques, dominando uma linguagem atorial que é quanto
mais autêntica, mais ‘nossa’ ao passo que é mais própria e peculiar ao indivíduo-
narrador, [...] enfrenta o público em roda, reintegrando a habilidade satírica
desenvolvida [...] - na grande tradição jogralesca da arte dos histriões. A dimensão
83 Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, vide apêndice. 84 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, vide apêndice.
130
pública desta arte, cuja relação frontal e improvisada com a platéia remete mais para
a instalação do que para a representação, exige a presença integral do ator-narrador
que, a partir de seu núcleo experiencial, deve produzir de imediato sua performance.
A narração, enquanto forma teatral radicalmente oral, apoiando-se na concreta
presença do ator diante de seu público, por outro lado estimula uma assistência
interativa, pois ao espectador cabe a tarefa de ‘executar’ a obra que está sendo
performada, de interpretar o evento comunicativo como sujeito competente na
decodificação das máscaras linguísticas e na montagem dos signos. A ‘literalidade’,
como critério de fidelidade textual ao autor, decai diante da ‘urgência’, como
objetivo de cativar e segurar o público junto ao narrador na viagem ao longo de
todos os possíveis desenvolvimentos da história.85
A construção de todos os pilares deste tipo de representação e do teatro de
Roberto Birindelli e Julio Adrião se sustentam através de elos paradoxais como comicidade-
tragicidade, poesia-ironia, texto narrado - texto “agido”, ação executada - ação aludida e
inúmeros outros. Essas combinações dialetais, estas comunicações dúbias são o que fazem de
A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo exercícios desafiadores para qualquer ator,
tenha ele qualquer origem ou linguagem.
É um trigrama: texto falado, sonoridades e partitura física. Esses três elementos
compõe a narrativa e eles estão juntos o tempo todo e hora um fala mais alto que o
outro. Tem uma coisa curiosa também, que é perigoso às vezes, mas que pouca
gente tem consciência disso, que é: é uma história trágica contada de forma irônica e
com uma pegada cômica.86
Julio Adrião e Roberto Birindelli fazem uma descoberta individual de seus
próprios limites, trilhando um caminho distinto e profundo na comunicação corpo-
gestualidade-palavra, seguindo caminhos por vezes diversos entre si e em relação as obras -
matrizes concebidas por Dario Fo.
Eu só vi o espetáculo feito pelo Fo este ano em vídeo, pois eu não queria ver mesmo.
É bonzão, mas é outra coisa. Ele não valoriza coisas que eu valorizo e ele valoriza
coisas que eu não valorizo. É a mesma estória, mas que passa por meandros e
desdobramentos diferentes.87
85 Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em texto enviado a autora, vide anexo. 86 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 87 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
131
Ambos sabem que os trabalhos possuem uma qualidade conquistada através da
repetição e da relação presencial entre ator e público e que, a cada apresentação e a cada
época, os espetáculos precisarão se renovar, se reescrever, pois atenderão a exigências e a
públicos diferentes.
O excesso de gagues em determinados momentos, o que poderia ser talvez um
ponto negativo, e que deve ser pensado a cada apresentação, ambos também tem consciência,
e empreendem um auto-vigiar-se para não caírem com freqüência no erro de se encantar com
o riso fácil de um público ávido por rir.
Julio Adrião - [...] Tinham os momentos que eu gostava muito, mas tive que cortar.
Tinha uma piada boa, por exemplo, onde tinha um índio sem as orelhas e sem o
nariz e aí eu pergunto o por quê. Eles dizem que ele não queria revelar onde estava o
ouro, fingia que não ouvia e eu digo: ‘as orelhas tudo bem, mas por que cortar o
nariz?’ E eles dizem: ‘Ah, mas aí foi culpa dele que virou a cara bem na hora!’
[risos] Mas isto não tinha importância. Tem coisas que a Alessandra [Vannucci,
diretora] ainda diz que tem que sair, mas tem outras coisas que eu incluí e que eu
acho que tem que ficar, e aos poucos eu vou me livrando das bengalas. Ás vezes, o
público passa a não responder mais como era. Não ri ou não faz o silêncio que tem
que fazer. Aí você tem que fazer o caminho de volta e ver o por quê. Às vezes, é um
detalhe de uma pausa, um ritmo, uma quebra entre um texto e outro.88
Sobre o excesso de gagues em alguns momentos, Roberto Birindelli comenta:
Mas há um cuidado para não cair na gag fácil americana, pois o Dario tem situações
cômicas e é preciso manter a pureza da situação cômica que o Dario cria, senão é um
riso fácil. [...] Você ri e dois segundos depois não lembra mais de nada. O próprio
“Miracolo” já teve passagens assim e eu tive que dar uma segurada.89
A relação corpo-gestualidade-palavra em A descoberta das Américas e Il Primo
Miracolo percorre exatamente esta ordem e não o contrário, como em outros tipos de teatro.
O frescor dos trabalhos analisados, assim como da escritura e da obra de Dario Fo,
está na comunicação direta e sem rodeios com o público, uma comunicação popular e de
massa, na qual se encontra a característica fundamental, a maneira não só de como se trabalha
o texto, a escritura que nasce do corpo como já dito, mas como diz Roberto Birindelli, a
maneira como esta escritura está inserida no trabalho.
88 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 89 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
132
Eu acho que a diferença não está em partir de um texto ou não, mas na maneira
como você insere o texto no seu trabalho. O que eu vejo sim, é que na maior parte
das vezes as pessoas se baseiam no conteúdo das palavras e acontece uma não
organicidade. [...] O Paulo José diz: ‘Antes de exprimir, é preciso imprimir’. Tem
que haver uma impressão. E esta impressão é o movimento corpóreo. Uma
professora da Marlene, minha primeira professora de técnica vocal, dizia: ‘o ser
humano só consegue por para fora uma palavra que não consegue mais reter dentro’.
Isso é uma imagem muito boa para a ação vocal. O que significa? Para eu falar
alguma coisa, há um impulso corpóreo que me faz colocar essa palavra para fora.
[...] Se você me perguntar: ‘que voz você vai fazer?’ É a mesma coisa que perguntar:
‘que tríceps você vai fazer?’ Eu sei qual é a minha tonicidade básica e a voz que sair
dela, é certo que está correta.90
Esta popularidade da comunicação sem rodeios da oralidade de Fo, é outro
elemento que pode se tornar um ponto-chave para o desenvolvimento de novos caminhos para
se pensar a relação gestualidade-dramaturgia.
Autora - Que elementos que você encontra no trabalho dele [de Fo] que podem ser
incorporados à nossa realidade? Ao trabalho dos atores brasileiros. O quê de mais
importante?
Roberto – Primeiro, a linguagem do povo. Até hoje se fala no palco de uma maneira
diferente com que se fala na vida. Eu não entendo o por quê. A primeira e grande
lição é esta. [...] Então, toda a manifestação artística é para um público de um
determinado momento. Shakespeare tinha um cuidado, pois trabalhava com classes
sociais diferentes e ele sabia falar com estas classes. [...] E com quem dialogamos
quando falamos de Ibsen na maneira que o Ibsen falava? Isso não é purismo. Isso é
parnasianismo, é outra coisa. [..] O Fo entende o que é popular e o que é vivo e essa
é a maior herança. Para mim essa é a grande dádiva. Para nós, popular virou
‘boquinha da garrafa’. [...] Dario Fo é popular e com altíssima qualidade. O que se
fazia há uns cinco séculos atrás. O importante não é só o que eu digo, mas o que tu
escutas.91
E o que o público escuta, nas obras de Dario Fo e nos espetáculos analisados,
estão justamente em consonância com sua linguagem, com suas aspirações, com seu
90 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 91 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.
133
entendimento. Além de todos os procedimentos teatrais utilizados nestes trabalhos para a
construção de uma relação diferenciada e concreta entre corpo-gestualidade-palavra, este é
um elemento muito importante que podemos pinçar do teatro de Dario Fo e das montagens de
A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo para uma herança de continuidade no teatro
brasileiro.
Fig. 27 A descoberta das Américas Fig. 28 Il Primo Miracolo
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No século XX, as transformações de padrões estéticos e de todo o pensamento que
organiza o processo criativo, tornaram o estudo de tudo o que permeia as relações entre
corpo/movimento/emoções e linguagem, uma opção praticamente inevitável para discutir a
arte contemporânea, principalmente o teatro.
Inúmeras formas para explicar as relações entre corpo, movimento, linguagem,
teatro, arte e cultura, já foram pensadas e discutidas em diversas épocas e por inúmeros
estudiosos, assim como foram formuladas em domínios distintos como o da antropologia, da
semiótica, da sociologia e dos estudos da comunicação, com suas metodologias e referenciais
específicos. Pensar no corpo como discurso, significa desconstruí-lo para pluralizá-lo e servir-
se deste mesmo corpo como pluralidade de sentidos e transgressão da própria linguagem.
Esta pesquisa debruçou-se justamente sobre a relação corpo-gestualidade-palavra,
partindo do ponto de vista do atuante, pois no estudo da relação verbal-não verbal, o corpo é o
instrumento básico para a análise e reflexão. É a matriz geradora dos gestos, das
performances, da ação vocal.
Após as teorias textocêntricas, nas quais o ator ficou relegado à posição de
transmissor literal do texto, foi preciso fazer um caminho de volta para reencontrar a
teatralidade da ação presente na gestualidade do histrião e dos giullari medievais, dos mimos
e commicci dell’arte com suas situações, improviso e gestualidade exacerbada.
Influenciado por Stanislavski, Grotowski rompeu com o chamado
“textocentrismo” (valorização excessiva do texto literário) para instituir um “teatro corpóreo”
na cena teatral do século XX. Ele estabeleceu as bases para o trabalho corporal do ator no
teatro contemporâneo, assim como Artaud, Meyerhold, Jacques Copeau e outros.
Se a materialidade do ator no teatro simbolista degradou a sublimação da palavra
e ameaçou o verbo poético, na modernidade procurou desmembrá-lo, desfigurá-lo, expremê-
lo, pois a separação redutora que tem marcado décadas tentando opor de forma excludente
texto escrito e linguagens cênicas, tornou-se impossível no teatro pós-moderno. A pós-
modernidade trouxe uma revisão da cultura e da economia, da moral e da ideologia, com um
ritmo e uma atitude diferente, mais imediata, mais física em seu modo de produção e
comunicação com o público.
Seja utilizando textos já escritos, criando textos coletivamente ou retomando a
figura ancestral do autor-ator, o teatro contemporâneo exige uma nova concepção de
135
dramaturgia cuja estrutura reflita os elementos espetaculares hoje privilegiados. O processo de
desvalorização da palavra no teatro após a década de sessenta, conseqüência da
desvalorização da figura do dramaturgo como primordial ser criador, reflete uma mudança
radical na estrutra de poder do teatro como instituição artística.
Estamos retornando à época dos mimos e acrobatas? A visão do teatro como
espaço no qual se coloca uma alta “gestualização da palavra” parece-nos legítima e reduntante
ao mesmo tempo: legítima pois são vastas as possibilidades expressivas do teatro, e sem a
ditadura do texto, torna-se mais democrática e talvez criativa. E redundante, porque os
grandes textos são feitos de pura matéria teatral, oticamente revelável, sensível como
emanação de luz, som, imagens, podendo projetar gestos e palavras em perfeita relação
simbiótica. Mas o teatro não só é feito disto, mas de uma dimensão intelectual por vezes
esquecida, é antes de tudo a expressão de um ou vários artistas-criadores, definida através de
palavras (diálogos, monólogos, apartes, didascálias) que se somam numa construção textual
cujo fim é a representação de ações socialmente significativas.
O desejo vanguardista de por a palavra em cena fazendo-a visível em sua
realidade imediata, e o desejo de que cada linguagem não se reduza a ilustração de outra, sim
que se emancipe em um jogo de contrastes, desestabiliza esta unidade de sentido que havia
sido garantida até então pela palavra dramática, fazendo com que tenhamos esperança no
arejamento que o teatro pode vir a alcançar.
Nesta distância, fica visível a diferença entre a obra, como resultado acabado,
fechado sobre um ou vários significados que lhe assinalam as instituições culturais e correntes
teóricas de cada momento, e o texto como escritura em funcionamento, tanto em seu processo
de criação como de recepção, escapando a sistemas fechados por meio de seu excesso de
materialidade, de um excesso de exterioridade teatralizante, mantendo o texto com vida em
um processo constante de reescritura.
O fato de o ator escrever o próprio texto, mais freqüente ao final do século XX e
início do século XXI, portanto mais do que recente, é ao mesmo tempo um procedimento
muito antigo, que não é mais do que um resgate, ao mesmo tempo, de costumes de atores
como Téspis, como os antigos mimos, os giullari medievais, os commici del’arte, os quais
transformavam a palavra em acontecimento coletivo, oral e visual e toda a sua dimensão física
e humana como realidades.
A estética dos espetáculos analisados, assim como a obra de Dario Fo, se
configuram como um teatro de histrião, de contadores de histórias, que se constrói a partir da
urgência da narração épica e do aqui e agora da “presentação”; e, por outro lado, apesar de
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beber nas correntes medievais e renascentistas, é um teatro pós-moderno, pois Fo é um
pensador, um crítico, que ao mesmo tempo que busca a tradição, transforma-a, renega-a,
critica-a e faz com que esta mesma tradição reflita os pensamentos de sua própria época.
Uma das contradições esteticamente mais produtivas e mais relevantes do teatro
do século XX e XXI é a que se produz entre a escritura e a oralidade, entre texto dramático e
texto cênico, entre a palavra escrita e o acontecimento verbal e gestual; e o teatro de Fo, é um
meio muito fértil para se pensar esta relação, pois não sobrevive sem o gesto, mas
principalmente sem a palavra, e vice-versa.
Fo utiliza-se de mecanismos da tradição oral, seguidos da dramaturgia concreta do
teatro corpóreo e mescla bonecos, mímica, máscara, músicas e ritmos frenéticos, como todas
as formas populares de expressão artística. Através de sua escritura pensa a oralidade que
contém o gesto e a gestualidade que contém as palavras. E no estilo épico de interpretar,
engloba o fazer e o mostrar esse mesmo fazer, através de procedimentos antigos como a
importância das situações, o ator como matéria central de sua arte (que só depende dele para
construir histórias grandiosas e cheias de imaginação), um ator de praça, de feira, de qualquer
lugar, no qual não se distingue um ator de um bêbado, ou de um rei. Este ator, por meio de
seus recursos corporais e vocais, narra, e simultaneamente retoma a forma da ação da
personagem, em determinada situação escolhida, para que o público melhor compreenda o
que está sendo contado. Este jogo permanente de entrar e sair do papel, exige que o corpo do
comediante envolva-se num certo fazer, enquanto que seu rosto, por exemplo, assume a
posição de comentador daquilo que está sendo feito.
Como giullare, Fo deu corpo e materialidade a uma tradição altamente popular
que nunca se colocou por escrito, trabalhando com uma dramaturgia que está longe da
condição literária e literal das palavras. A escritura de Fo traz uma relação estreita com a
materialidade do corpo, reafirmando o conceito de teatralidade, e obriga o público a rir
constrangido e embaraçado de acontecimentos trágicos, revistos através do grotesco e da
sátira. O gesto em Fo, vem antes da palavra, pois é ele quem a corporifica e desenha e depois
a diz, valorizando o gesto, a palavra e a ação vocal.
Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, Adrião e Birindelli, não só
gestualizam, por vezes, o inexprimível habitual das palavras, eles traduzem, complementam,
opõe, valorizam, silenciam, espacializam as palavras. As palavras parecem nascer dos gestos,
e não o contrário. As relações entre gestos – palavras se tecem em vários níveis de sentido, de
consciência e de ação, através de procedimentos tão simples quanto antigos, como a situação,
o prólogo, o grammelot, o discurso direto para o público, a mímica, o espaço vazio,
137
utilizando-se de procedimentos que ao mesmo tempo simples como a descrição, a repetição,
as quebras, a criação de sentido e a oposição, e que apesar de absolutamente compreensíveis e
populares, provocam complicadas e engenhosas relações de sentido, necessitando de atores
inteligentes, criadores, que no exercício do contato com o público se revelam, se escondem,
fazem imaginar, se entregam e se renovam.
Nas montagens analisadas, toda fala é um ato de fala. Toda fala se prolonga em
gestos virtuais e toda fala comporta múltiplos gestos. Neste contexto, a gestualidade
ilustrativa é procedimento fundamental para o estabelecimento da cena rapsódica. O gesto
ganha uma estatura idêntica ao texto e revela o trabalho já realizado.
O ator é incumbido de corporizar (dar corpo e voz) e fisicalizar em atitudes,
gestos, posturas e ações, de representar (em linguagem teatral) a interface entre o épico e o
dramático. Neste ato em que se apodera da voz autoral, tanto no sentido do autor do texto
quanto no do autor do espetáculo, o ator tem seu temperamento e aptidões revelado – pelo
simples fato da não metamorfose completa do papel que representa. Neste caso, o ator afirma
a disponibilização de um nível de consciência perceptiva, da orquestração do aparato
expressivo, da organização sequencial dos gestos criados. Tudo isto evidencia a sinceridade
da atuação e o compromisso do narrador, não com a verdade histórica, mas com a verdade de
sua disponibilidade em cena.
Estes trabalhos atestam a vitalidade do teatro destes atores, alicerçados pela obra
de Dario Fo, que procura caminhos novos e antigos ao mesmo tempo, em um teatro que tem
não somente algo a dizer, mas algo a que não dizer. Com todos os meios explorados, com
todas as armas-truques-procedimentos da comédia e da narração mostradas ao público sem
segredos e sem rodeios, armas forjadas pelos bons artesãos, produzem uma arte sem saída, um
meio e não um fim. Sem saída, pois seus corpos não poderão mais negar os feitos e exigirão
sempre algo no mesmo nível, lembrando sempre que o teatro fundamentalmente é arte de ator.
Se o monólogo moderno caiu na sua própria armadilha ao se encaminhar para a
elitização, a limpeza do diálogo e levou a uma subestimação da capacidade expressiva das
“pessoas comuns”, ao contrário, Julio Adrião e Roberto Birindelli, seja através da pausa, dos
gestos, da ponte com a realidade brasileira, com a imagem pintada da gente brasileira, trazem
até nós, através da escritura de Fo, o ponto de vista daquele que está lá em baixo. Enquanto
Jesus e sua família são despresados em outras terras, partem sem desejo de partir, e, vivem
assim como os sertanejos retirantes nordestinos, em terras que não lhe pertencem, Johan tem
a terra que não lhe pertence nas mãos. Johan, “deus do sol e da lua”, triunfou na colônia,
138
procriou, deu filhos a terra estrangeira, e morreu saudoso, mas feliz com as lembranças da
terra que deixou.
Nossos narradores são zanni, clowns, bufões, pobres, maltrapilhos, nômades, e,
sejam Johan ou Jesus, sobrevivem fazendo “milagres” como qualquer cidadão miserável de
todas as épocas, isto é, como um clown ou como um Zanni da commedia dell’arte.
Sobrevivem somente para contar a estória a algumas pessoas, em qualquer lugar, a qualquer
hora, que verdade ou mentira, dependem somente de matéria humana como o corpo do
narrador e do ouvinte; tão humana como os arrotos, as blasfêmias, os ruídos, as onomatopéias,
as caricaturas e a língua “menor” destes vagabundos que substitui o texto formal pela partitura
física e sonora.
Pensando na ação e na gestualidade como praxis da escritura política de Fo e do
trabalho de Julio Adrião e Roberto Birindelli, não pode-se pensar em neutralidade ou
inocência, pois o discurso de Fo é altamente popularizado e regionalizado, fazendo com que
os próprios intérpretes se perguntem de que forma o seu discurso atua sobre o interlocutor
(fazendo-o agir, provocando uma resposta, etc.) ou repercute no espaço social em que é
produzido, e faz pensar como pode ser reproduzido em outros contextos, países, sofrendo
distorções, alimentando reflexões.
Assim, fica a pergunta que Dario Fo faz em seu Manual, não só para o teatro, mas
para a vida quotidiana: “E nós, que vivemos em uma sociedade moderna e tecnológica, o que
nós podemos resgatar como gesto?” (FO, 2004: 68) Para Fo, o ator para reencontrar suas
raízes culturais, deve retornar as origens. O achatamento e o nivelamento provocados pela
cultura de massa, dificultam esse processo que parece ser hoje um dos mais difíceis para o
ator brasileiro; o olhar para os nossos homens comuns, os nossos sertanejos, os nossos
mendigos, os nossos bêbados, as nossas fofoqueiras, e todo e qualquer personagem, como diz
Fo, que estabeleça provocação e dialética.
Dario escuta através dessa relação gestualidade-palavra a sua própria época,
procura zonas de turbulência, zonas de caos, nas quais gestos sutis, por vezes inclassificáveis,
tomam origem. Penetra nestas zonas de risco e, o poder, qualquer poder, teme mais do que
tudo, o riso, a gargalhada, pois denotam senso crítico, fantasia, inteligência.
Este teatro habilmente dominado pelo intérprete, performance desenhada com
precisão cirúrgica, narração que transporta, que surprende, que alude, que faz imaginar, apesar
de aparentemente inocente, não consegue ser menos que perigosa, é realmente uma arma. Pois
este teatro de resistência, parece, no meio dos inextinguíveis mecanismos de poder, de
discriminação e de exclusão de nossa sociedade, sempre vivo e provocador.
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Nesta pesquisa, dentro do contexto teatral, foi possível estabelecer uma relação
entre as funções exercidas pelo gesto e outras exercidas pela palavra, e foi possível
estabelecer não só o grau de complementariedade entre as duas linguagens como também
especificar melhor a significação própria do gesto nas duas montagens, pois quanto mais se
configurar as relações entre corpo enquanto plataforma semântica cheia de significados, e
linguagem enquanto revelação da dimensão simbólica, e quanto mais se falar da relação entre
as diversas dramaturgias na cena, ter-se-á caminhado muito no conhecimento da estrutura não
só do espetáculo como do drama escrito, pois a linguagem fonética feita corpo evidencia-se
como pura materialidade escrita.
140
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Adrião. Direção de Alessandra Vannucci e interpretação de Julio Adrião do Núcelo de
Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos, Casa Mercado 45, Rio de Janeiro,
produzido por Filmes do Serro – org. Antônio Andrade, 2005.
A descoberta das Américas. Texto de Dario Fo, Tradução de Alessandra Vannucci e Julio
Adrião. Direção de Alessandra Vannucci e interpretação de Julio Adrião do Nucleo de
Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos, Teatro Leblon, Rio de Janeiro, 2007.
Il Primo Miracolo . Tradução, direção e interpretação de Roberto Birindelli da Cia do Bebê,
Porto Alegre, produzido por SCAN Video Produções, 2005.
Mistero buffo I e II. Texto e direção de Dario Fo, com Dario Fo e Franca Rame. Turim:
Einaudi, 1999.
Lu Santo Jullare Françesco. Texto, direção e interpretação de Dario Fo. Turim: Einaudi,
1999.
Il sesso dei giullare. Texto e direção de Dario Fo. Turim: Einaudi, 1999.
PESQUISA VIDEOGRÁFICA WEB - VÍDEOS DISPONÍVEIS EM:
http://www.youtube.com
L’anomalo Bicefalo. Texto, direção e atuação de Dario Fo e Franca Rame, 2003, 2:19’37”
La Farina del diavolo. Texto, direção e atuação de Dario Fo e Franca Rame, 1:11’48”
Il Papa e la strega. Texto e direção de Dario Fo, 56”
Satira Berlusconi, Dario Fo, 13’24”
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Settimo ruba un po´meno. Texto e direção de Dario Fo, atuação de Dario Fo e Franca Rame,
1:37’06”
Ubú, la vera storia di Berlusconi, Dario Fo, 40’23”
ÁUDIO
Dario Fo (sem referências): Grammelot della famme, Grammelot dello Zanni, Grammelot del
vivere, Confezionati, Grammelot sulla morte, Grammelot del potere, Commento a “Rosa
fresca aulentissima” di Ciullo d’Alcamo.
SITES RELACIONADOS A VIDA E OBRA DE DARIO FO
http://www.archivio.francarame.it
http://www.dariofo.it
http://www.francarame.it
http://www.ilprimomiracolo.com.br
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APÊNDICE
As entrevistas contidas neste trabalho constituem, juntamente com os vídeos dos espetáculos,
a fonte primária da pesquisa. Elas foram concedidas pessoalmente a autora por Julio Adrião,
ator de A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos
Empreendimentos - Rio de Janeiro, em Curitiba, por ocasião de uma temporada realizada no
Teatro da Caixa, em junho de 2007, e por Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, da
Cia do Bebê - Porto Alegre, na Casa de Cultura Mário Quintana em Porto Alegre, em maio de
2007.
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APÊNDICE I Entrevista concedida a autora por Roberto Birindell i, ator e diretor do espetáculo Il Primo Miracolo , da Cia do Bebê , de Porto Alegre, em maio de 2007. ROBERTO BIRINDELLI, ator, diretor, participa desde 1990 de projetos, cursos, oficinas e encontros ligados à pesquisa da construção da presença cênica, dentre eles: Le Théâtre de la Nature Humaine (Pedagogie d´un enseignement) - Jacques Lecoq, PARIS, 1991; Open Week - Odin teatret – 1991, Dinamarca; Usina do trabalho do ator - Pesquisa de 30 horas semanais envolvendo estágios supervisionados por Carlos Simione e Luis Otávio Burnier – Lume, 1992 - 95 em P. Alegre; trabalho de graduação no Departamento de Arte Dramática da UFRGS com Orientação de Maria Helena Lopes, resultando no espetáculo O Primeiro Milagre do Menino Jesus apresentado no Brasil e exterior; cursos e projetos com Potlach (Itália - Fara Sabina), Curso com Daniele Finzi Pasca (Sunil -Suíça) em São Paulo; Curso O Corpo Suspenso - Victor Varela (Cuba) em P. Alegre; participação na 8ª Sessão Aberta da ISTA -Tradições e Fundadores de Tradições em Londrina; Poética e Gramática do Mimo Corpóreo com Thomas Leabhart (California-U.S.A.) em P. Alegre, Retiro para o estudo do Clown – Lume, Unicamp, em 1996; Encontro da ISTA The performer´s bios e o simpósio The whispering winds on theatre and dance; Encontro técnico - prático com a presença de Dario Fo e Franca Rame, Thomas Leabhart, Odin Teatret, Jerzy Grotowski, entre outros, em 1996 na Dinamarca; participa em Citta Invisibile - projeto internacional coordenado pelo Teatro Potlach (Itália) realizado em Liverpool e Birkenhead, participa do espetáculo Invisible cities, em Morpeth Dock – Merseyside, Estocolmo, e Roma; funda em 1997 o Centro de artes “El Patio de Arte & Cultura” onde ministra a oficina-treinamento permanente Trabalho preparatório para portar máscaras, em P. Alegre; participa do curso Teatro da cumplicidade - Clown e bufão com Philippe Gaulier, em P. Alegre, participa do X Encontro de Teatro de Grupo, com Eugenio Barba, onde ministra a oficina Artes y oficios del director, em 1999, Argentina. Melize – Roberto, eu queria que você falasse sobre a escolha do texto: Como foi a escolha? Por que montar Dario Fo hoje no Brasil? Roberto - Começou na Interpretação 6 e no meu trabalho de Conclusão do curso de Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre. Então, na verdade, o texto não foi o início. Precisava ter um trabalho individual. Eu já tinha lido alguns textos do Dario Fo e já tinha utilizado uns trechos de “Morte Acidental de um Anarquista”, de “A Tigresa” e de outros textos dele para exercícios de aula. Este texto estava em um livrinho que é da coleção Brasiliense e que se chama “Morte Acidental de um Anarquista e outras peças subversivas”, onde tinha “A Tigresa” e o “Il Primo Miracolo”. Quando eu li, eu rolei de rir e disse: “Não, tem que ser um idiota pra montar” e larguei de mão. Ok. Alguns anos depois no trabalho de conclusão, precisava ter um monólogo. Eu busquei para cá, busquei para lá e não tinha. O meu projeto original era fazer um Pulcinella que foi recusado, por que a Maria Helena Lopes, com quem eu queria realmente fazer o trabalho de conclusão, me disse: “Olha, tu tens um semestre e em um semestre tu não montas um Pulcinella”. Hoje eu sei, mas na época eu não sabia. Não sabia o que fazer e ela me sugeriu assim: “tu tens um trabalho codificado, tu tens um material de ator, partituras, por que tu não coloca isto ‘a serviço de um texto?’ ”. Tá, mas o que pode
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ser? Aí eu fui lá buscar de novo e caiu o texto na minha mão mais uma vez. “Então tá aqui o idiota que vai montar o ‘Il Primo Miracolo!’”. Aí eu comecei a ler e o processo foi ler muitas, muitas vezes, até eu entender o que ele falava para mim. O que isso significava. [...]∗ Então, depois de ler muitas vezes, eu guardei o texto na gaveta e fui para a sala com o que sobrou. Eu confio muito na intuição. O trabalho de improviso e o trabalho de exaustão, o trabalho corpóreo, me fez ficar amigo de coisas que eu não entendo com a cabeça. Trabalho muito bem com coisas que eu não consigo dar nomes, que eu não consigo entender, e deixo andar pra ver o que é. Então eu vou com o que tenha sobrado do que eu li, do que eu entendi, e passo a improvisar livre, com o que eu sei: com o samurai, commedia dell’arte, dança dos ventos, um trabalho para recuperar os meus materiais de partituras e daqui a pouco eu vejo que tem alguma conexão, mas falta um eixo central. É quase como uma ilustração não imitativa. Eu tinha o molho, mas eu não sabia ainda se ia ser um bife, faltava o eixo da coisa. Eu tinha os temperos. E aí caiu a ficha. “Il Miracolo” fala de uma sagrada família que sai de Belém. O que isto tem a ver com a gente? É claro! Nós temos um monte de “sagradas famílias”, que são nordestinos que saem do nordeste para buscar emprego em São Paulo! Isso é um ponto de partida! E aí, é claro, me veio direto as imagens do Portinari. Eu peguei toda a série dos retirantes nordestinos: “O ciclo do café”, “O menino morto”, “As lavadeiras” e os “Retirantes”. Olhei muitas vezes toda a série, a linguagem, os homens, as figuras deformadas e comecei a trabalhar sobre isso. Pena que você não está gravando em vídeo [levanta e começa a fazer as partituras], mas no site [http//www.ilprimomiracolo.com.br] você pode ver as figuras. Do quadro “O menino morto”, vieram várias seqüências. Melize - É claro que os quadros do Portinari estão presentes na estética do espetáculo, nas imagens, mas elas são muito dinâmicas e codificadas. Codificações de um gesto presente no quadro em diversos outros, formando o movimento, a partitura. Roberto – [Demonstra] Uma mulher que está com o menino morto, outra mulher que ampara e outra mulher que chora. Juntei uma música da resistência chilena [canta, pois não existe música mecânica no espetáculo]. E aí tem toda a dinâmica da fuga para o Egito e a dinâmica “horrível” dos quadros do Portinari. Isso ajudou assim: o texto [de Dario Fo] já de início te propõe uma luta interna, porque a dinâmica do Portinari é “horrível” e o texto é hilário. Melize- Os quadros do Portinari transpiram melancolia e os textos do Fo transpiram comicidade. Roberto: É isso! Eu te proponho uma charada. Uma que te faz rir e uma que te deixa apreensiva. Então o que é proposto é um trabalho interno, de escolher o tempo todo de que lado tu vais ficar. Inseto ou inseticida. O que é interessante, é que muitas vezes tu te deixas ser inseticida e aí tu te cobras, por exemplo: a história do rei negro, o camelo, o rei velho que escorraça o camelo, e aí tu te pegas rindo de uma coisa que tu não gostarias. Melize- Através da oposição.
∗ Trechos não significativos, como frases incompletas e expressões onomatopéicas.
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Roberto- Sim. O espetáculo ficou assim, mas isto não está presente no texto original. É uma suscessão de armadilhas, que conforme mais ou menos consciente, tu te deixas levar. E aí tem muitas imagens da commedia dell’arte, uma salada de coisas que com o tempo, é claro, foi dando uma organicidade. E aí tem uma diferença com o trabalho do Julio, que eu conheço, mas eu não sei bem claro, que é: onde cada um está no meio do narrador. Talvez pelo próprio texto do Fo, quem conta a história [no caso de “A descoberta das Américas”] é o sobrevivente da visita às Américas, portanto, existe um personagem dialogando com o espectador e no “Il Primo Miracolo” não tem. Existe o performer o tempo todo. É o Roberto que está dialogando contigo e juntos vamos construir uma ficção a partir deste trabalho. E aí existe um jogo duplo, porque sim, a história vai mudando, mas o jogo com o espectador também vai mudando, através de coisas que aparecem no momento. Há uma coisa verdadeira sendo dialogada. E uma ficção que te leva à uma metáfora de outras coisas. É uma diferença que o texto propõe. Não estou dizendo que é melhor, nem pior. Melize – Claro! Voltando um pouquinho, quais os elementos que você vê no trabalho prático do Fo, que permanecem nos textos dele, e por conseqüência, saltam aos olhos no seu trabalho? Claro, existem elementos da commedia dell’Arte, do Teatro de Situação... Roberto – O Teatro de Situação, a imaginação do espectador. O que o Barba [Eugenio] pinça do trabalho do Fo para a Antropologia Teatral é a omissão. O que é? Ele omite algumas coisas, e com um pequeno gesto, ele te conta toda uma situação. O essencial. Melize- O essencial. Roberto- É que as palavras são complicadas. É claro que não vamos confundir com o “Teatro Essencial” da Denise [Stoklos] que é outro caminho. Porque o Fo joga uma humanidade que eu não vejo no trabalho da Denise. É outra questão. A imaginação. O Fo diz que a imaginação é um músculo que gosta de ser exercitado. Então vamos deixar ele exercitar. Em nenhum momento eu te dou a estória completa. Se tu não colocar a tua cabeça pra funcionar, ela não tem sentido. Ele é propositalmente aberto e incompleto pra que a tua subjetividade que é diferente da do outro, termine de costurar. Então isto é lindo, pois tu vê reações muito diferentes na platéia. Se eu digo chicote, tu podes imaginar pelo menos dois caminhos diferentes, conforme o lado do chicote que tu te imaginas. E eu jogo com esta dubiedade. É isto que me interessa. Por que eu jogo com este espaço circular, com a platéia iluminada? Por que é muito interessante que as pessoas se vejam nos momentos diferentes em que elas estão. Melize – Suas reações. Roberto – As reações. Então, é um espaço único, porque não há palco ou platéia, nem um status quo, a ditadura daquele que está lá em cima. Melize- Todos estão no mesmo nível.
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Roberto – Tudo igual. Então tu lidas com o mesmo nível de luminosidade, sem uma roupa, sem uma maquiagem, sem nada de especial, sem trilha sonora, sem nada. Eu tiro qualquer elemento que possa dar uma conotação cênica. São pessoas, e juntas, estas pessoas podem fazer alguma coisa. É isso que eu trouxe da “essencialidade”. Também existe muita coisa do grammelot, dos dialetos. Não dialetos, pois a gente não tem aqui. Melize- Temos os sotaques. Roberto – Claro! Os sotaques. O estrangeiro, os tipos sociais que vem da commedia dell’Arte. A relação do soldado com o paulista engravatado que vai trabalhar, pois estamos falando de nordestinos que vão para São Paulo. Então, os pastores que vão a choupana, que tem um sotaque nordestino e que pensam muito na terra; o mineiro que é desconfiado, que é a figura do São Tomé. É todo um universo que a gente tem e que modifico em cada lugar. Em cada lugar eu tento remontar o perfil da sociedade que eu encontro. É por isso que eu pergunto antes qual é o grupo social segregado e vou montando isto. Melize – Você faz uma pesquisa prévia em cada lugar? Roberto – Eu faço uma pesquisa. Porque eu vou me relacionar com essa sociedade, então o que interessa não é só o que eu digo, é o que o espectador escuta através da realidade dele. Se eu quero dizer laranja e encontro uma realidade amarela, eu tenho que dizer vermelho, pois junto com esse amarelo desta sociedade, vai dar o laranja que eu quero dizer. E é assim em cada lugar que eu vou. Melize – E quanto ao texto? Você modifica as palavras ou somente a intenção ao dizê-las? Roberto – Não. Quase nada. Criei uma ou duas coisinhas. A tradução que tinha no Brasil, naquela edição da Brasiliense, era impossível. Então eu peguei de livros dele [do Dario Fo], de vê-lo ao longo dos anos. Claro, eu estreei com a tradução da Brasiliense, muito ruim [por ser literária]. Alguns anos depois, fui modificando, e hoje é uma tradução minha, uma adaptação minha, um pouco diferente do texto, mas com elementos equivalentes. Melize – Há uma liberdade na maneira de contar e não na modificação do texto em si? Roberto - Não só modifico a maneira de contar, como modifico as personagens! Porque na Suécia, por exemplo, falar de racismo, é muito diferente do que falar sobre isso em São Paulo. Mas a estrutura se mantém sempre. E como ela já está tão codificada e tão orgânica para mim, que eu não preciso pensar, eu posso brincar do que for. Por exemplo: eu apresentei em uma favela muito violenta em São Paulo que nem a polícia entra. Como é que eu ia me relacionar com isso? Aí conversando, chegamos a conclusão que somos todos “fodidos” dentro de uma favela. Então eu disse: “eu vou contar a história de um ‘fodido’ que chegou em uma cidade que ninguém conhecia ele, que tinha uns ‘amigos’ que não falavam com ele, e inventou histórias pra ser reconhecido.”
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Melize - Mas você disse isso no prólogo? Roberto – Eu disse isso no prólogo! Foi bárbaro! Primeiro que eles entenderam que era um “fodido” que inventou de fazer milagre pra ser aceito pelos amigos. Então isso é que ficou parecido com eles. Melize – E até onde vai este contato com o público, Roberto? Ele pode interferir diretamente? Roberto – Direto. Eles cantam junto. Tem três músicas. Uma é um “mico”. Então eu estabeleço essa relação já no prólogo. E quando eu conto a história, eu propositalmente “esqueço” algumas palavras. “Como se chama aquele bastão que tem os bispos? E aquele chapéu?” E fica claro que eles podem se meter a qualquer momento, e eu me viro, claro, para responder. Primeiro eu levei uns três meses só trabalhando as situações. Isto tem a ver com os pastores, isto tem a ver com Maria. Primeiro a corporeidade no relacionamento com as figuras, depois é que eu fui para o texto. Então, mudando para a construção civil, mesmo porque Dario Fo também é arquiteto, eu vou fazer uma catedral. Mas de que? Eu não sei. Eu vou fazer uma catedral em Barcelona, então tem pedras brancas porque isto tem a ver com Barcelona, e talvez alguns espelhinhos de cristal cortadinhos em homenagem a Gaudí. E eu ainda não fiz nada de catedral. Eu só preparei o material para a construção. E quando os materiais são jogados para cima, vão se organizando na queda, e aí eu vou construindo a catedral, a minha catedral que tem a ver com Barcelona. E foi assim que eu comecei a montar o espetáculo. Essa é a metáfora de como o espetáculo foi feito. Melize – Eu queria saber como é essa autodireção. Você tem um olhar de fora? Roberto – É horrível. Uma merda. Porque o pior problema de uma autodireção é que tu não tens ninguém que pensa diferente de ti. Melize – Para te questionar, para te estimular... Roberto – Exato. Esse é o pior. Porque quando eu peguei o texto, tiveram coisas que eu tive que cortar, pois eu achava que iam “matar a pau” e isso não acontecia, ou o contrário, retomar coisas que eu achava que não iriam funcionar. Melize – Era isso que eu ia lhe perguntar, pois a partir daquilo que você viu que funciona ou não (com o seu corpo, com as suas ações) você vê o que pode funcionar no texto. É uma relação contrária com o texto. Roberto – É contrário porque é como um roteiro de clown. Se as pessoas não riram, não funciona! Aí eu pensava: isso aqui eu vou cortar! Mas hoje são os melhores momentos. Melize – E isso só dá pra ver no contato com público. Roberto – Só no contato com o público. Eu fiz dois ensaios abertos que já deu para entender um pouco, mas nas apresentações na faculdade é que ele foi sendo
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modificado e continua até hoje, depois de quinze anos. Claro que não é uma gambiarra. Pois você sabe, é claro, que improvisação significa duas coisas completamente diferentes. Uma coisa é improvisar, como os italianos falam, te jogar para o imprevisto, pra juntar materiais. Outra coisa é um trabalho não técnico segundo um monte de grupos, “à la louca”: “eu tive que improvisar porque saiu tudo errado”. Eu estou falando de buscar coisas que a tua mente não conhece para incorporar ao teu trabalho. Criar sentido através de algo imprevisto. Melize- Improvisação também pode ser em um nível interno... Roberto – E é na sala de trabalho e não no espetáculo, como acontecia na Commedia dell’arte. O pessoal diz: é uma comédia de improviso. O c........! Eles tinham tanto material e tantos lazzi prontos pra jogar, que eles diziam: “ah, este lazzo funciona, então eu vou fazer agora”. É que nem uma cozinheira que tem cinqüenta anos fazendo um molho maravilhoso e um dia achou um coentro e resolveu colocar dentro. Ela está improvisando? Não. Ela fez o que já tinha feito há anos atrás, e agora viu de novo que podia repetir aquilo. Então, eu tenho um material guardado de quinze anos, e para essa platéia em São Leopoldo vai servir o que eu fiz em 1994 na Bélgica. Melize - Eu queria que você falasse um pouco sobre o trabalho de clown, o trabalho com as máscaras, pois eu sei que você tem um contato com isso. Como isto reverbera no “Il Primo Miracolo”? Roberto – O Dario também vem de um trabalho mascarado, de uma tradição. O que acontece é que o trabalho com máscaras tira a expressão do rosto. O Decroux também partiu da mesma coisa. Ele pegou uma camiseta preta, botou na cabeça dos caras e disse: “Ó gente! Sem a expressão do rosto o que é que nós vamos fazer?” Isso dá uma corporeidade maior, uma expressão maior. Melize – Leva a intenção e a expressão também para o resto do corpo. Roberto – Exato. E não só isso. Leva para um caminho diferente de entendimento. A palavra no Dario [Fo] tem muito mais a ver com ação vocal do que com o conteúdo da palavra. Mesmo por que ele fala em dialeto e de milhões de dialetos, tu podes conhecer alguns e, em gramellot mesmo, que é uma língua inventada. Primeiro ele explica na língua local a história que vai ser contada e depois faz. Eu não explico a história, eu faço direto. Eu tenho o prólogo, que é muito clownesco, pois serve para sentir no momento este somatório de espectadores. Melize – É o “prólogo inteligente” de que fala Dario. Roberto – Os Colombaioni dizem: os primeiros minutos do clown no picadeiro é para escutar, não para fazer. Você tem que saber se é um público intelectual, se é um público “emo”, se é um público humilde. Essa é a medida. Não existe isso: “hoje o público não estava acertado com a peça”. É a peça que não estava acertada com o público. Então ele tem que ser ouvido. E você vai jogando anzóis e conforme o que vem nos anzóis, tu sabes que isca tens que usar. Esse é o “prólogo inteligente” para mim.
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Melize – E o trabalho com o Lecoq? Em relação a comunicação gesto – palavra? O que você apreendeu e utiliza? Roberto – A mímica. O Dario também trabalhou com Lecoq. A precisão da mímica. A precisão de meio gesto que significa muita coisa. Porque tem uma diferença brutal entre a mímica e a pantomima. A pantomima diz respeito à forma, e a mímica diz respeito ao sentido. Então tu aderes ao sentido. No mimo: [faz o gesto ilustrativo] eu quero sair contigo para nadar. Isso é uma pantomima que tem nos Arlequins. É lindo, é bárbaro! Mas no “Il Primo Miracolo” não tem nenhum gesto imitativo. “Ó, te ligo depois” [faz gesto imitativo]. Nada. São gestos que significam. Tem uma palavra mágica no teatro simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal coisa e não, isto é tal coisa. Mas no momento que tu dizes me parece, não é o “parece”. Porque quando tu dizes “me”, a tua subjetividade já foi envolvida. Então, eu te dou um molho suficientemente agridoce para tu não saberes do que é feito. Para tu dizeres: “isso me parece uma comida que a minha avó fazia”. Pronto, estás no anzol. Então, eu te digo algo que mexe com o teu emocional. Tem diferentes coisas neste molho para que diferentes pessoas possam se identificar de maneira diferente. E desse caldo é que sai esta relação. O que vem do Lecoq é o uso do corpo de uma maneira não cotidiana. Do Eugenio [Barba] também, do Lume, do trabalho com “A usina do trabalho do ator”. Mas do Lecoq vem muito o jogo, que não é tanto uma característica do trabalho do Eugenio. E é um somatório de coisas, mas o que mais ensina, é a estrada. Melize - E você tem um treinamento permanente ou o seu treinamento é o próprio processo de montagem, os ensaios. Roberto – Não, porque agora eu dirijo um treinamento aqui e quando eu posso, eu faço. Mas o meu treinamento mais violento é criar um filho que agora tem sete anos [risos]. Quando eu treinava sete horas por dia, eu não terminava tão exausto quanto segurar a onda desse moleque. O Carlo e mais três amigos em casa, é como se eu fizesse seis horas de “dança dos ventos”. Mas eu continuo dirigindo e dando muitas aulas, muitas oficinas, pesquisando todos estes impulsos e estou sempre em ação. Sempre que eu ensaio, eu reservo um tempo para trabalhar com o improviso. É livre, para que eu possa buscar os estados que eu não consigo entender. Que é aonde eu digo: “o ator descobriu a América”. O Eugenio diz que quando um ator consegue fazer a parada de mão, ele “descobriu a América”. Para mim não. Quando um ator age primeiro antes de pensar, quando ele está alerta para estabelecer relações com aquilo que ele fez, aí o ator “descobriu a América”. Este é o estado que eu busco antes de começar os ensaios do “Miracolo”. Antes eu tinha que levar duas horas me cansando e hoje em dez minutos eu chego neste estado de trabalho. Melize – Eu queria que você falasse um pouco do espaço. Os outros espetáculos que você monta tem a mesma disposição cênica? Roberto – Tem. Claro, a gente fala de espaço vazio e tem que falar de Peter Brook. Mas também tenho que falar de Dario Fo. Se eu te coloco um cenário mais impositivo, menos a tua imaginação vai estar livre para que se estabeleçam as conexões com o teu subjetivo. “Uma rosa é uma rosa e é uma rosa”. Agora, se a rosa que eu te coloco é de celofane de uma carteira de cigarro queimada, esta rosa te diz muita coisa. Então, quanto mais livre e neutro o espaço, para mim é melhor.
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Nunca trabalhei com cenários realistas. Eu faço muito cinema, onde a imagem é soberana, mas mesmo assim eu consigo deturpá-la e colocar coisas impossíveis, que via organicidade acabam sendo crível e bom. O teatro é codificado. No elizabetano, chega um cara, pega um galho e diz: “eu sou a floresta de Sharwood”. Pronto, ele é a floresta de Sharwood. Dois segundos depois ele está na corte de Henrique VIII, ou então é Macbeth ou sei lá o que. Então, que espaço te possibilita esta codificação e voar tão rápido de um espaço para o outro? O espaço vazio. É que nem figurino. Eu faço vinte e duas personagens e se eu não usar essa roupa neutra, preta, qualquer elemento que me ajudar para um, vai me atrapalhar para o outro. Eu até tenho vontade de trabalhar um dia com telões, com projeções, microfones, mas da maneira com que eu trabalho hoje, não dá. A gente montou um Ítalo Calvino, “As cidades invisíveis”, que começava em dois lugares ao mesmo tempo: aqui na Mário Quintana [Casa de Cultura em Porto Alegre] e num museu que fica há umas quinze quadras daqui. E cada um optava por onde ia começar a assistir. Depois tinham duas peregrinações e terminava na praça matriz. Não tinha unidade de espaço, nem de platéia. Os espectadores não viam todo o espetáculo e para entender tudo, um tinha que conversar com o outro. Que também é uma quebra com as “regras” do teatro. O espectador não é onipresente, ele não vê tudo. Melize – Roberto, vamos voltar um pouco ao texto: você sentiu a necessidade de voltar ao texto muitas vezes para readaptá-lo? Roberto – Muitas vezes. Pois conforme o espetáculo ia ganhando organicidade, eu me dei conta que em algumas passagens, não era eu que não conseguia fazer direito, era porque a tradução era literária e o Dario é das ruas, é do povo. Então imagina o “José” falando: “Meu filho eu gostaria que tu tivesses mais cuidado com os teus pertences”. Tu conhece alguém do povo que fale desse jeito? “Neguinho, vai ‘buscá’ tuas ‘coisa’, não deixa assim tudo esparramado!”. É assim. E a minha tradução e adaptação é nessa linguagem do povo. Melize – Você em algum momento suprimiu frases de texto (palavras) e substituiu somente por ações? Roberto – Sim. Ou por ação vocal. Por exemplo: “o menino quebrou os meus briquedos”. Como eu já havia dito, eu usei um código: “Pacapatcha, Pacapatcha” [faz gestos referentes a brinquedos quebrados]. No momento em que ele chora. Por que vamos combinar uma coisa: precisa entender um menino que chora? Então: “biquibi, bipabá” [e faz gestos de um menino que chora]. E quando ele explica do cavalo: “diquidi, diquidi, diquidi” [faz gesto de cavalgada]. Então é a ação vocal. Ninguém em quinze anos disse que não havia entendido. Isso é Dario Fo. Ele cria códigos com o público e se refere a eles muito rapidamente. Melize – E o público sente prazer em identificá-los depois. Mas digamos que um dia, o público não irá entender. O que você fará? verbalizará? Ou repetirá as mesmas ações? Roberto – Eu faria um “mico”. Pois é nesse momento que a gente tem de abrir a bula. A gente não toma remédio sem bula. Então onde eu fiz “popopó, popopó, popopó” no português significa... Eu criaria toda uma outra estória não cotidiana. Eu verbalizaria a brincadeira de que não entenderam. “Popopó, popopó, popopó”
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significa vão se “fuder”. Se eu vejo que o entendimento de tal passagem é vital, aí não dá para deixar. Mas tem outras coisas que as pessoas não entendem, por exemplo: o primeiro milagre é um assassinato? ou é os passarinhos...Isso não precisa ser entendido. É o que lhe parece. Isto está totalmente dúbio no texto. Melize – E o número de repetições, você aumentou? Roberto – No Julio [A descoberta das Américas] isto funciona, por exemplo: “esquerda, direita, esquerda, direita.” É o que mais funciona. Eu criei uma: o rap do negão [do Rei Mago negro]. Mas há um cuidado para não cair na gag fácil americana, pois o Dario tem situações cômicas e é preciso manter a pureza da situação cômica que o Dario cria, senão é um riso fácil. Melize – E que acaba destruindo o resto. Roberto – Claro! Se não vira um pastelão demais. Você ri e dois segundos depois não lembra mais de nada. O próprio “Miracolo” já teve passagens assim e eu tive que dar uma segurada. É claro que este não é o caso do Julio, só estou dando um exemplo. Melize – É a questão da oposição que traz o público devolta do riso. Eu gostaria que você falasse um pouco da relação gestualidade-palavra no seu trabalho. Eu pergunto, pois algumas pessoas separam isto no treinamento ou na construção do espetáculo. Roberto – Daí vem um pouco do trabalho do Lecoq e do Decroux. Principalmente do Decroux que eu conheci via Lume, ainda com o Burnier e depois com o Thomas Leabheart e outros. Melize – Que elementos você acha que diferenciam este tipo de teatro mais autoral (no que diz respeito ao ator) do teatro tradicional que parte do texto? Roberto – Eu acho que a diferença não está em partir de um texto ou não, mas na maneira como tu inseres o texto no teu trabalho. O que eu vejo sim, é que na maior parte das vezes, as pessoas se baseiam no conteúdo das palavras e acontece uma não organicidade. Nós aqui no sul temos muito contato com o cinema uruguaio e argentino. O cinema argentino está maravilhoso e a gente não consegue ter um cinema assim no Brasil, com esta qualidade. Ok, nós temos um problema de roteiro e tal, mas o teatro argentino e uruguaio que são um “teatro da palavra”, vendo através do “Porto Alegre em Cena” e outros festivais, muita gente acha que é chato. Que são quatro caras falando em volta de uma mesa. Sim é. Mas o lado bom disso, é que a gente acredita em cada palavra do que eles dizem em volta da mesa. Eu vou fazer uma generalização muito burra, mas que seja. O teatro brasileiro, eu sei que tem muitas exceções, mas eu estou falando de 85%, é um teatro de imagem, com uma iluminação, uma fotografia maravilhosa, até o primeiro ator abrir a boca. Aí acabou a magia. Eu não acredito em nada do que ele diz. A gente vê o ator seguindo a marcação do diretor. E aí é onde falta o corpo. O Paulo José diz: “Antes de exprimir, é preciso imprimir”. Tem que haver uma impressão. E esta impressão é o movimento corpóreo. Uma professora da Marlene, minha primeira professora de técnica vocal, dizia: “o ser humano só consegue por para fora uma palavra que não
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consegue mais reter dentro”. Isso é uma imagem muito boa para a ação vocal. O que significa? Para eu falar alguma coisa, há um impulso corpóreo que me faz colocar essa palavra para fora. [...] Dar o texto já é uma expressão constrangedora, pois não vai vir nada disso. Eu entendo que os impulsos necessários, deixam que saia um texto coerente com esses impulsos. O Barba [Eugenio] falava muito dos equivalentes não cotidianos da vida. Estes equivalentes é que vão se transformar na tua subpartitura. Então tu vais ter essa tonicidade. Aí tu não precisas te preocupar, pois a voz que sair com o corpo naquela tonicidade, está correta. O contrário é que é complicado. Se você me perguntar: que voz você vai fazer, é a mesma coisa que perguntar: “que tríceps você vai fazer?” Eu sei qual é a minha tonicidade básica e a voz que sair dela, é certo que está correta. Melize – Roberto, você poderia falar um pouco sobre o seu trabalho com o Potlach, na Itália? Quais as reverberações no seu trabalho hoje? Roberto – O Potlach tem um projeto que se chama “Città invisibile” que eu participei de 92 a 98 (eu acho) e o Julio [ator de “A descoberta das Américas”] também fez parte deste projeto e de outros. Uma vez nós fomos almoçar em Santa Tereza, na Lapa, e eu disse: “ó nego, o nosso trabalho é muito parecido, vamos levantar o tapete para ver o que tem embaixo.” Tem muitos pontos em comum. Eu digo que nós somos parceiros de estrada sem nunca ter andado juntos. Melize – Eu não ia fazer esta pergunta, mas já que você tocou no assunto... O que você acha que, mais explicitamente, os dois trabalhos tem em comum? Roberto – Claro que eu não vou nem falar das coisas óbvias que são as escolhas, o Dario Fo, etc. Mas eu acho que é o trabalho essencial com o corpo, o trabalho essencial do performer, do ator em detrimento de qualquer outra coisa, qualquer cenografia, espaço; mas isto também vem do Dario Fo. Seria interessante ver como nós montaríamos Nelson Rodrigues, aí teria que ver. Um cuidado com a gestualidade, com a palavra, com a organicidade. Melize – Quais os elementos concretos que você encontrou no trabalho prático do Fo, que reverberam no texto dele, como já falamos, e que podem trazer uma herança de continuidade para os atores brasileiros? Roberto – Como? Melize – Elementos que você encontra no trabalho dele que possam ser incorporados à nossa realidade. Ao trabalho dos atores brasileiros. O que de mais importante? Roberto – Primeiro, a linguagem do povo. Até hoje se fala no palco de uma maneira diferente com que se fala na vida. Eu não entendo o por quê. A primeira e grande lição é esta. Nós estamos ainda montando “Lago dos Cisnes”? “Tchaikovski”? Ontem eu estava fazendo aula de técnica vocal com o meu professor agora, o Zé Carlos, e ele disse uma coisa fantástica: só no século XIX é que se começou a ouvir música do passado. Por que isso é popular ou erudito? Ele disse que essa definição é completamente burra e de agora. Bethoven era popular, era o que se ouvia naquela época. O erudito veio com as primeiras guerras, pois como não se tinha
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nada, “vamos preservar o passado”. Então toda a manifestação artística é para um público de um determinado momento. Shakespeare tinha um cuidado, pois trabalhava com classes sociais diferentes e ele sabia falar com estas classes. Hamlet chega para alguém e diz: “eu posso enfiar a minha cabeça entre as suas pernas?” Isso era para um determinado público e quando ela [a personagem a quem Hamlet se dirige] se apavora, ele diz: “eu posso deitar no seu regaço?” Então ele sabe como dialogar com cada uma das classes sociais. E com quem dialogamos quando falamos de Ibsen na maneira que o Ibsen falava? Isso não é purismo. Isso é parnasianismo, é outra coisa. Melize – Há uma falta de olhar das pessoas de teatro, no Brasil, para a linguagem do povo? Roberto – E mais. O Fo entende o que é popular e o que é vivo e essa é a maior herança. Para mim essa é a grande dádiva. Para nós, popular virou “boquinha da garrafa”. Melize – O pejorativo, o ruim. Roberto – Exatamente. Dario Fo é popular e com altíssima qualidade. O que se fazia há uns cinco séculos atrás. O importante não é o que eu digo, mas o que tu escutas. É tu quem vais te adequar ao trabalho do outro. Melize – É impossível pensar o trabalho do Fo com uma “quarta parede”... Roberto – Claro! De vinte e cinco séculos de teatro, de história que o teatro tem, cem anos foram de “quarta parede” e isso não é significativo. E parece que a “Quarta parede” é que virou padrão. Senão vira um telão de duas mil polegadas sem sentido. A “quarta parede” mata com isso. Como na pintura. Veio a fotografia e a pintura viu que não precisava mais fazer retrato, pois não ia conseguir chegar tão próximo. O teatro não precisa mais mostrar a vida como ela é, o Jornal Nacional faz isso e é de graça.
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APÊNDICE II Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, ato r do espetáculo A descoberta das Américas , do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos - Rio de Janeiro, em junho de 2007. JULIO ADRIÃO é ator, produtor, diretor, poeta e cozinheiro. Formado pela CAL - RJ, trabalhou seis anos na Itália com o Teatro Potlach e outras companhias. Construiu o espetáculo solo de rua The cash and carry international show, apresentado em toda a Itália e no Brasil. De volta ao Brasil, em 1994, dirigiu o espetáculo de circo-teatro Roda saia, gira vida do Teatro de Anônimo e a Ópera Cômica O elixir de amor, de Donizetti, na Escola de Música da UFRJ. Integrou o trio cômico Cia. do público desde a sua formação até 2002, quando realizaram Ruzante com direção de Sidnei Cruz e Alessandra Vannucci. Nesta ocasião, criou com Sidnei Cruz e Alessandra Vannucci o Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos. Em 2005, dirigido por Alessandra Vannucci em A descoberta das Américas, de Dario Fo, ganhou o Prêmio Shell/RJ de melhor ator. Ministrou, ainda na Itália, oficinas que tinham como base técnicas de interpretação e improvisação para a montagem Alegorias do Caos, baseada em poemas de William Blake. De volta ao Brasil, ministrou aulas avulsas de commedia dell’Arte no curso ReAtor, coordernado por Hélvio Garcez. Com a Cia do Público desenvolveu, juntamente com Sérgio Machado e Márcio Libar, a oficina de comicidade O Ator é o Riso que, em 1999, percorreu vários estados brasileiros no Projeto do SESC/Nacional Palco Giratório. Em 2001 foi responsável junto ao SESC – Prainha, em Florianópolis, pela condução de uma oficina de narrativas - Estórias Contadas – realizada em cinco etapas ao longo do ano, culminando com apresentações públicas em áreas populares e carentes como praças, escolas e o presídio feminino. Como membro da CASA – Coop. de Artistas Autônomos – ministrou oficinas em 2001/2 nos Projetos Escola de Paz, da UNESCO, e Território Cultural, realizado em cinco comunidades do Rio de Janeiro com patrocínio da Petroquisa, onde aprofundou a idéia das Estórias Contadas. Atualmente ministra a oficina O Ator sem caráter, cujo objetivo é o desenvolvimento do solo narrativo. Melize – Como se deu o processo de escolha do texto? Por que montar Dario Fo? Julio - Foram várias coisas. Eu tinha visto Dario Fo em vídeo quando eu morava na Itália, inclusive o “Il Primo Miracolo” e fiquei impressionado com o que ele fazia com o palco nú, com a forma com que ele contava [as estórias] e eu nem falava tão bem o italiano ainda e entendia tudo. Ele falava em grammelot e eu fiquei impressionado com aquilo. Eu ainda estava participando de um processo de treinamento físico e vocal nos anos de 1987 e 1988. Quando eu voltei para o Brasil, eu trouxe este livro, “A descoberta das Américas”. Li e achei muito interessante porque ele é feito em duas colunas (o texto falado em grammelot e o texto traduzido para o italiano) e achei muito curioso, mas guardei e ficou lá. Em 2000, já no Brasil, eu conheci a Alessandra Vannucci. Ela falava muito bem o português, e eu, como tinha morado seis anos na Itália, falava bem o italiano. Ela necessitava de alguém para ajudá-la nesta tradução que ela ia fazer do livro por encomenda. Ela me convidou e eu aceitei. Nós sentávamos no computador, cada um com o seu livro, e nós íamos por período, entendíamos bem o que ele estava dizendo, e eu de uma vez, dizia em português como eu achava que era. E assim foi. A gente fez o livro todo e quando terminamos e lemos, achamos ruim e fraco ainda. Pegamos o nosso texto e começamos a trabalhar em cima da nossa tradução. Fizemos isto umas cinco vezes. Isso tudo em três semanas, trabalhando diariamente, e eu fiquei impregnado
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daquela história. No final, a gente viu que por mais que pudéssemos melhorá-lo, ele iria permanecer sempre um texto literário, como havia se tornado o texto traduzido pela Franca Rame do original falado por Dario Fo. No máximo seria um bom texto literário. Ele no original inspirou-se nos textos do Cabeça de Vaca, que foi um cronista, navegador destes tempos de 1500, que veio ao sul do Brasil, até. Se você vir o livro do Cabeça de Vaca, você identificará várias passagens que inspiraram Fo, inclusive o próprio personagem Cabeça de Vaca, que se transforma nesse Johan Padan. Então a Alessandra disse: “Bom, aqui quem é o ator, é você. Então, por que você não conta essa estória? É isso! Você aprende a história, entende o que você vai contar e conta. Mas tem que ser sem papel, sem texto na mão”. Então eu nomeei as histórias, pois para compor esta história grande, existem várias estórias. Tem a história da ida para Sevilha, da chegada em Santo Domingo, tem a entrada na caravela de Colombo, o aprisionamento pelos índios, tem batalha, uma série de coisas. Criamos um roteiro com as passagens e eu comecei a contar o que me lembrava. Afastei as cadeiras em casa mesmo e comecei a contar. No primeiro dia a gente viu que era isso. Que era um processo que tinha que ser contado e amadurecido por meio da repetição. Era se apropriar da estória e contar da melhor forma possível. Nós fomos fazendo e aos poucos vimos que não precisávamos de nenhum aparato cênico e que era a função do ator reproduzir tudo aquilo com seu canal de comunicação, ou seja, os elementos que fazem parte da tua história de ator. Tanto o que você aprendeu tecnicamente, como o que você aprendeu como pessoa. A tua maneira de se comunicar, tua voz, os teus gestos, os teus vícios de linguagem, as tuas técnicas, tudo isto a serviço da estória a ser contada. Eu tive uma certa resistência porque era um trabalho que eu não entendia muito. Eu travava, pois eu queria lembrar da palavra. Eu esquecia e ela me xingava, e dizia para eu não pensar na palavra, mas na estória. “Se liga no fluxo narrativo. É um épico. Narra esta estória como se você fosse contar ‘Os três porquinhos’, o ‘Chapeuzinho vermelho’ para o teu filho!” . Então em duas semanas nós fizemos uns cinco, seis ensaios, e aí nós vimos que não dava mais para continuar assim, nós precisávamos do público. Com duas semanas nós fomos para o público e naquele ano fazia 500 anos da descoberta do Brasil, em 2000. Em setembro houve uma comemoração no Museu da República patrocinada por um instituto italiano. Nos deram uma verba para bancar a tradução e como contrapartida nós apresentamos a tradução. Então eu costumo dizer que foram vinte anos e dez dias de ensaio. Aqueles dez dias de experimentação aconteceram daquela forma, pois nós já estávamos impregnados da estória. Nós já tínhamos a estória, o ator, a energia da estória, o fluxo energético da narrativa e vimos que aquilo tudo precisava de muita repetição, na medida que a gente precisava desenvolver a estrutura cênica de cada pequena estória. A gente entendeu que era um ótimo processo de trabalho, mas que ia demorar um pouco, embora não tivesse demorado para chegar num primeiro momento de exposição pública. Do final de 2000 para a metade de 2001, em seis meses, eu apresentei umas cinco, seis vezes, no Rio, na UNIRIO, em Florianópolis, no Sesc Prainha, onde eu dei uma oficina de contação de estórias e apresentei isso no último dia. Eu fiquei ainda lutando contra mim mesmo, porque eu tinha dificuldade de memorizar a estória e cada vez que eu ia contar, eu contava de um jeito diferente. Embora fosse a mesma estória, eu esquecia umas coisas, lembrava de outras, precisava de gancho, parava, quebrava o fluxo energético, pensava, e aquela espontaneidade começou a fazer parte do processo. As apresentações foram importantes porque eu filmei, mas acabando isso, a gente se envolveu com coisas mais urgentes para nós. Ela acabou voltando para a Itália e nós voltamos a trabalhar juntos em 2002 para
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fazer o “Ruzzante”, que foi uma das três traduções que nós fizemos. O outro era de um anônimo, “Diário de Salomão Marcolfo”, que é um outro maravilhoso. Nós começamos a trabalhar na versão para a montagem, pois o Sidnei [Cruz] queria montar porque era apaixonado pelo texto. Ela [Alessandra Vannucci] queria montar também e a apresentei ao Sidnei. Eu ainda era da “Companhia do Público” e queríamos montar um novo espetáculo, depois de oito anos rodando com o mesmo, que era “Sua melhor companhia” e que fez sucesso no Brasil inteiro. Era um espetáculo de trio cômico, de números, para três atores e uma atriz. Montamos na “Casa Mercado 45”, que é uma casa no Rio de Janeiro que pertence a vários grupos de teatro e música. Esta casa pegou fogo e nós compramos a ruína dela e até hoje ela é assim. Nós só fizemos algumas melhorias com a intenção de fazer o “Ruzzante” lá. Foi a retomada da casa enquanto espaço de utilização pública. E fizemos o “Ruzzante” com a “Companhia do Público”. Alessandra e Sidnei na direção, eu e ela fizemos a tradução, eu e o Sidnei a produção, e vimos que ali tinha uma potencialidade enquanto produção. E assim nasceu o “Leões de Circo Pequenos Empreendimentos”, pois eles são assim: nascem pequenos e não podem ser menores. Só podem crescer ou não. Melize – Julio, vamos voltar um pouco ao texto de “A descoberta das Américas”. É claro que traduzir e adaptar um texto te faz ter uma relação diferente com ele. É diferente de você pegar uma tradução de alguém e partir para a montagem do espetáculo. O que eu queria saber, é se você sentiu necessidade de voltar ao texto várias vezes depois do texto já contado e transcrito, e se você sentiu necessidade de cortar coisas depois, no contato com o público, que modifica esta relação, e se você sentiu necessidade de substituir partes do texto por ações ou ações vocais. Eu sei que nós já falamos um pouquinho sobre isto, mas eu gostaria de saber mais. Há substituição das palavras em alguns momentos que eu consigo identificar no espetáculo e que não são poucos. Julio – Bom, depois do “Ruzzante”, que eu saí da “Companhia do Público”, e o “Leões de Circo” continuou, em 2004, a Alessandra Vannucci me disse que estava fazendo um projeto de leituras dramatizadas de dez peças do Mediterrâneo, e dentre elas, tinham três traduções nossas que são: “Ruzzante”, “Salomão e Marcolfo” e “A descoberta das Américas”. Todas iriam ser dirigidas e apresentadas no Rio, no Teatro Maria Clara Machado. E depois de quatro anos, foi a retomada de “A descoberta das Américas”. Foi o momento de maior esforço, pois eu não mexia nele desde 2000. Eu tinha um vídeo, mas ela disse que não tinha sentido fazermos uma leitura depois de tudo que nós tínhamos feito e trabalhado. Aí eu comecei a assistir o vídeo e com quinze minutos eu não conseguia mais ver aquilo. Era horrível, era insuportável de ver, era muito quebrado. Aí eu peguei a última versão do texto e nunca mais olhei para ele. Fomos para a sala de trabalho e em três dias nós fizemos. Foi um parto. Eu fui determinado a chegar ao fim. Tinha bastante gente assistindo e depois que eu contei a estória, as pessoas diziam: “Você não quer montar um monólogo? Está pronto!” E o Sidnei disse que estava praticamente pronto, era só começar a fazer. A Alessandra estava voltando para a Itália, em setembro de 2004, e eu fiquei de setembro de 2004 a setembro de 2005 sem a Alessandra. Ela me disse que eu precisava de disciplina para trabalhar sozinho. Então eu criei uma dinâmica, entrei na sala de trabalho e comecei a fazer, mas eu não conseguia ensaiar as cenas separadas, por causa do ritmo. O que eu fazia, era burilar as cenas em casa. Pegava a estrutura e tentava ver o que estava faltando ou
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sobrando, tentava fazer ela em pensamento e depois encenava algumas partes, na cozinha as vezes, cozinhando mesmo. E aí eu via as partes que tinham de permanecer sempre, e escolhia as palavras que funcionavam melhor. Às vezes eu tinha que me impor as palavras, pois algumas eu jamais falaria normalmente. Então ela viajou e eu fiquei com a batata quente na mão, pois eu é que tinha que levar este trabalho para frente. Então eu ia para a casa onde nós trabalhávamos e na qual eu vim a fazer a estréia depois, em setembro de 2005, e eu coloquei a minha meta de ensaiar pelo menos uma vez por semana. Eu levava meu filho na escola e trabalhava na peça de manhã. Eu fazia na segunda-feira, por que daí eu ganhava a semana, pois eu estava fazendo por primeiro a coisa mais importante da minha vida naquele momento, enquanto trabalho de pesquisa. Eu ensaiei durante dois meses. A minha meta era rodar o espetáculo, e quando chegou em fevereiro eu comecei a rodar pelo Ceará, porque eu tinha uma parceria com o SESC de lá. Eles compraram uma apresentação, pagaram a minha passagem e lá eu fechei várias apresentações. E eu fiquei um ano, de setembro de 2004 a setembro de 2005, fazendo o espetáculo onde eu conseguia. Eu fiz também pelo SESC do Rio, onde eu chamei um técnico para fazer uma luz básica e que ficou interessante, pois nós chamamos de “não luz”. A iluminação era só para iluminar mesmo e criar um clima no início e no fim, quando tem as passagens de tempo. Isto foi um amadurecimento. E aí depois de todo este contato já com o público, depois destas apresentações, nós resolvemos estrear. A Alessandra estava chegando, nós ensaiamos mais duas semanas, e aí eu levantei a produção com o Sidnei, onde nós criamos um espaço com cadeiras antigas dentro da ruína daquela casa queimada, como está no DVD, e estreamos no dia 14 de setembro de 2005. Então foi diferente dos outros espetáculos que estréiam a toque de caixa praticamente sem ensaios. Eu tinha a meu favor umas cinqüenta apresentações feitas para um público durante um ano e um amadurecimento deste processo. Eu nunca mais voltei ao texto que nós tínhamos traduzido e, contando, ele ficou completamente diferente. Eu nunca transcrevi este texto que eu falo hoje. Na medida que eu ia fazendo o espetáculo, eu ia encontrando coisas novas. A narrativa foi se enriquecendo. Não só o texto, mas as partituras físicas. O espetáculo exige muita concentração e durante a apresentação eu colocava a atenção em um foco que eu queria desenvolver ou melhorar, e prestava atenção mais naquelas passagens. Se eu tinha um olhar de fora era melhor para me ajudar. Principalmente quando a Alessandra assistia as apresentações, nós íamos para a minha casa e pegávamos um pedaço e aprofundávamos as coisas que tinham funcionado, ou tirávamos outras coisas que tinham dado uma engessada, que não funcionava. Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade brasileira que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a necessidade de enxugar o texto, pois o espetáculo tinha uma hora e dez minutos. Mas ao mesmo tempo que eu ia sentindo a necessidade de cortar passagens que eu achava reduntantes, eu fui encontrando também as pausas do espetáculo e as ações físicas que foram desenvolvidas, pois algumas ações físicas se desenvolveram de uma simples ação para uma cena de cinco minutos. O que era uma indicação no texto, uma frase, se tornou uma cena de cinco minutos. E isso é coisa pra caramba! Eu fui pesquisando cada vez mais as pausas e desenvolvendo as partituras físicas. O mais engraçado é que com os cortes o espetáculo ganhou mais tempo, passou de uma hora e dez, para uma hora e quarenta. Aumentou 30 minutos. Nós cortamos uma cena inteira e outra nós reorganizamos e colocamos ela em outro lugar. Foram cortes cirúrgicos, pois eu
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cortava o texto, mais pegava a essência dele e desenvolvia em alguns casos uma cena inteira só com ações. Melize – E o olhar de fora? A direção da Alessandra? Julio - O trabalho da Alessandra comigo foi fundamental, pois o trabalho dela não foi impor coisas, mas de identificar e sugerir mudanças. Ela não quis ter o espaço de criação da cena, mas de me manter no estímulo, pois várias vezes eu quis desistir. Ela me deu o chão. Ela sabe que o espetáculo é muito autoral no meu caso, e ela precisa me convencer das mudanças. É um espetáculo hoje que está mais próximo da música e da dança, do que do teatro, pois embora eu não seja nem músico e nem bailarino, fazer um corte é muito complexo, porque eu estou em um fluxo narrativo que eu não posso simplesmente tirar uma coisa, senão eu caio num vazio e não volto nunca mais. Não é que isto já esteja engessado, mas está de uma forma encadeado, que a memória física da ação é o que puxa. Para eu mudar alguma coisa eu tenho que me preparar antes. É claro que cada dia é um dia novo. Eu chego três horas antes no teatro para fazer o meu processo, que é falar com as pessoas do teatro e passar o espetáculo inteiro. Eu procuro não fazer todo o texto em si, as ações, mas todas as intenções do texto pequenininhas. Faço o reconhecimento do espaço, vejo se a luz está boa na platéia, pois eu preciso ver o público. Tem pedaços que é uma partitura física mais fechada e que eu tenho mais confiança. Essas eu passo de uma maneira muito objetiva, passando por todas as intenções e impulsos, mas não exatamente o espetáculo como ele é. Eu levo uma hora e meia para fazer um ensaio de um espetáculo que dura uma hora e meia. Eu marco no espaço a minha área de atuação, pois eu já fiz num espaço de três por três e já fiz no Teatro Amazonas. O texto atualmente é muito fixado. Tem cerca de um ano que ele está muito definido. Eu tenho investido em pausas novas. Eu tenho a sensação de que é agora que eu estou começando a entender o espetáculo. Estou investindo agora em uma redescoberta dele mesmo. Por exemplo, o espetáculo tem uma noção de circularidade, de junção de movimentos, onde termina um começa o outro, que hoje eu tenho muita noção disso e nada é aleatório. A estória é muito cíclica. Eu crio códigos com o público e esses códigos voltam, de maneira que eu possa abrir mão do texto. Então, quanto mais aprimoro os códigos, mais eu vou abrindo mão do texto. Às vezes eu falo o texto com a intenção de que o público não entenda mesmo, mas eu tenho certeza que eles entendem a estória. Uma vez aqui em Curitiba, tinham três cegos na platéia, anteontem. Eram dois negros de Angola, um outro rapaz branco e o senhor que trouxe eles. Eles com os cabelos “rastafari”, óculos escuros, e eu pensei: “poxa, esses caras vem ai e ficam dormindo no espetáculo!” Os caras não se mexiam, e ainda, o cara que trouxe eles, ficava cochichando no ouvido deles. No final eles vieram falar comigo. Eles eram cegos e estavam “felizões” por terem entendido o espetáculo através do texto. Isso é maravilhoso! Um ex-secretário de cultura de Belo Horizonte que assistiu o espetáculo também é deficiente visual e ele disse para mim: “eu vi tudo, cara!” Eu também já tive na platéia deficientes auditivos e o cara que fica de costas para o palco para transmitir o que ele está ouvindo para a linguagem de sinais, disse que chegou um momento em que eles não estavam mais olhando para ele, mas para mim. Eles estavam preocupados em ver as minhas ações. Também os estrangeiros de língua não latina, porque italianos, espanhóis, tudo bem, viram, gostaram; mas dinamarqueses, alemães, ingleses assistiram e identificaram as coisas, os arquétipos. Eu estou falando isto, pois este foi um espetáculo que se revelou além
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das nossas expectativas de desdobramento. Eu nunca mais li o texto. O texto que você tem é um roteiro indicativo das ações. Melize - Foi uma construção lado a lado (textos e ações). Julio - Sim. São três coisas que compõe. Não é um pentagrama, pois não é música. É um trigrama: texto falado, sonoridades e partitura física. Esses três elementos compõe a narrativa e eles estão juntos o tempo todo e hora um fala mais alto que o outro. Tem uma coisa curiosa também, que é perigoso às vezes, mas que pouca gente tem consciência disso, que é: é uma estória trágica contada de forma irônica e com uma pegada cômica. Os quatro quintos iniciais do espetáculo, desde que ele chega a cidade dos espanhóis até a catequese, o público ri da forma que está sendo contada a estória e não do texto. Eles riem das minhas ações. Tem ações de mais de cinco minutos sem uma palavra. Melize – Quando eu vi o espetáculo novamente ontem, depois de ler o texto que vocês traduziram, me surpreendi com a dimensão que algumas ações tomaram no espetáculo. Lendo o texto você não tem a mínima idéia da diferença das ações indicadas no texto e delas encenadas. Julio – Aquela cena da “costura dos índios” é uma frase indicativa. Eu a desenvolvi como um lazzo da commedia dell’arte, de comicidade física. Você cria uma partitura física bem detalhada e a repete três vezes, cada vez modificando um pouco. Eu faço uma vez bem detalhada com texto, faço outra vez quase tão detalhada quanto, mas mais rápida, e faço uma terceira vez bastante acelerada, sem texto, só com a sonoridade e faço a última vez totalmente desmembrada, modificando as ações que as pessoas nesta altura já conhecem. Melize – Você aumentou o número de repetições ao longo do tempo? Julio – Aumentei. Isso faz parte da comicidade. A repetição do código. Todos esses quatro quintos do espetáculo estão em uma comicidade da forma. A partir da catequese dos índios é uma comicidade de texto. O Alcione Araújo quando viu o espetáculo pela primeira vez, disse: “olha, vocês correm um risco ali, mas vocês dão conta”. É porque é uma outra linguagem, só que ninguém percebe mais, pois já está alavancado, mas o riso é diferente. O Dario neste momento do texto faz uma crítica religiosa e faz esta adaptação. A palavra ali se torna fundamental. Eu coloquei os meus adendos também, onde eu criei uma Madalena que não tinha. Todas aquelas formas são fruto da minha concepção do desenvolvimento da narrativa. Foi um caminho que eu encontrei. Qualquer outro ator contaria de uma maneira completamente diferente da minha. Ele iria encontrar a maneira dele, senão vira imitação. Este mesmo texto contado pelo Dario Fo leva duas horas e meia, onde ele usa imagens projetadas que tem os desenhos dele e a partir dos desenhos, ele conta a estória. Ele não tem a preocupação com o ritmo. Ele quebra, pega e deixa o microfone. O Fo é plano americano (cara, boca e mão), mas isto é Dario Fo. Então eu penso que se eu montasse outras estórias do Dario Fo, o meu caminho seria sempre esse de “A descoberta das Américas”. O que mudaria seria a estória e os elementos que eu iria descobrir de narrativa fisica.
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Melize – Julio, se o público não entendesse os códigos em algum momento e você percebesse isso, você verbalizaria novamente? Julio – Não. Eu acho que o amadurecimento do espetáculo vem do contato com o público. O que funciona eu deixo, o que não funciona eu tiro. Não só em relação ao riso, pois tem momentos que eu descobri que eu não quero que o público ria. Então, o meu trabalho hoje é aperfeiçoar estes momentos, pois eu tenho que construí-los. Melize – O massacre dos índios, por exemplo. Julio – Eu descobri há pouco tempo em relação a esta cena, um silêncio. Faz um mês que eu descobri isto. Eu me carrego daquilo e digo: “fiquei deprimido”. E mesmo assim as pessoas ainda riem. Mas pode ser uma risada nervosa também. O mesmo movimento que é a espada espetando, depois virou um movimento de corpo caindo. Narrando aqui com meu corpo, “va, va, va, va” [faz movimentos de cravar a espada] e depois o narrador vendo aquilo horrorizado, só depois vem o silêncio. Eu olho aqueles índios todos caídos e aí vem o texto. São coisas que eu vou percebendo. A cruz também [imagem de Cristo crucificado], as pessoas riam e eu deixei ele ali crucificado um tempo “enoooorme”. O Hugo Rodas quando viu o espetáculo em Brasília veio chorando para mim, pois ele é o próprio expatriado, ele é o cara que não voltou. Ele teve uma identificação com o Johan, com a estória. Aí ele disse: “posso te dizer uma coisa? Naquela hora do Cristo fica, não tenha pressa de terminar, pois ali você vai botar o dedo na ferida”. Então eu ouço as pessoas muito, experimento. Mas já me disseram, quando eu falo do paraíso e de Adão e Eva, eu coloco a manga no lugar da maçã. Me disseram que manga era das Índias e não tinha ainda, mas eu gosto de falar manga como o Fo. Eu já tentei falar abacaxi, outras frutas nativas, mas não dá certo. Um outro cara disse, um historiador, que ainda não existiam canoas como eu falo, um tronco comprido cavado no meio, eram folhas amarradas, mas eu tentei explicar que eram folhas amarradas e não funcionou. O narrador não tem o compromisso com a verdade, ele tem um compromisso com a estória, e uma estória bem contada se torna verdade. Então ele não tem a obrigação de saber que aquilo não era um tronco de árvore, que eram folhas colocadas uma em cima da outra. Eu parto deste princípio: o Johan Padan é um personagem fictício, mas que certamente já existiu na pele de vários outros. Ele sofre esta transformação de alma, de quando ele tem a oportunidade de voltar para a Itália e não volta. Melize – Eu queria que você falasse um pouco da construção do Johan Padan, pois há uma diferença nos monólogos do Fo na relação persona-personagem. Em alguns textos, como em “Il Primo Miracolo”, é o intérprete o tempo inteiro no contato com o público e ele passa por personagens, cita frases que outros personagens dizem (22 personagens no caso da montagem do Birindelli) e em outros, como em “A descoberta das Américas”, é um personagem que narra e interpreta os outros. Julio – Hoje temos a dificuldade de identificar o que é narrador e o que é personagem no espetáculo, pois eu criei os códigos, as máscaras dos personagens. Então tem a máscara do Johan Padan bem, para cima e dele derrotado. Então tem a cara dele esgarçada, que é a cara dele. Existe sempre a máscara e a contramáscara. A cara de qualquer índio é esta [demonstra]. A de qualquer espanhol é esta [demonstra], que vem da postura do capitão da commedia dell’arte e tal, mas
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eu tenho também cavalo, alga marinha, tempestade, lua, coisas que são personagens da estória e que se materializam ali. Um ator para bem narrar lança mão não só da palavra com tons e variações, mas também de formas físicas e ritmo, e essas formas servem para ilustrar a ausência de outras informações. Tem partes que não dá para modificar as máscaras, pois a passagem de um para outro é muito rápida. Eu não vi o “Il Primo Miracolo”, mas eu já não identifico no meu espetáculo esta quebra do narrador. Ele está todo o tempo mesclado neste Johan Padan e eu fazendo o índio, sou o Julio quem faz. Não me sinto Johan Padan fazendo o índio. Claro, tem horas que o Johan faz só a máscara indicativa do índio para dizer que o índio está na frente dele. Não consigo identificar claramente estas diferenças. O que eu posso dizer é que necessito de muita concentração para percorrer estas partituras fisicas, sonoras e verbais. Então, para mim, existe o ator em cena passando por estes códigos. Melize – Você vê elementos da prática do Fo que sobrevivem nos textos dele, e que por sua vez, permanecem em “A descoberta das Américas”? Julio – O Fo é autor dos textos dele e quando ele faz, ele faz de uma maneira Fodiana. O que eu preservo e que ele sugere fazendo e escreve, é abrir mão de qualquer aparato cênico, trilha sonora. Se tem de cantar ele canta e para mim isto é o ideal. Eu queria fazer isto. Eu queria pegar um avião só com uma bolsa e saltar sem passar pela esteira [risos]. Eu só levo a rede que eu uso no final, mas que eu também posso fazer sem. Eu tenho um plano B. Eu posso viajar sozinho, entendeu? Já fiz isso muito. Quando eu tenho condições de levar um técnico, eu levo para operar o pouco de iluminação que tem, mas eu sou o próprio produtor da minha empresa. Eu sou ator, produtor, e nesse espetáculo eu sou de certa forma autor também. Eu só vi o espetáculo feito pelo Fo este ano em vídeo, pois eu não queria ver mesmo. É “bonzão”, mas é outra coisa. Ele não valoriza coisas que eu valorizo e ele valoriza coisas que eu não valorizo. É a mesma estória, mas que passa por meandros e desdobramentos diferentes. O meu espetáculo é fruto da repetição da estória diversas vezes, da descoberta de coisas durante o processo. Na medida que eu ia esquecendo de coisas, eu ia substituindo, melhorando, ou então, tinham os momentos que eu gostava muito, mas tive que cortar. Tinha uma piada boa, por exemplo, onde tinha um índio sem as orelhas e sem o nariz e aí eu pergunto o por quê. Eles dizem que ele não queria revelar onde estava o ouro, fingia que não ouvia, e eu digo: “as orelhas tudo bem, mas por que cortar o nariz?” E eles dizem: “Ah, mas aí foi culpa dele que virou a cara bem na hora!” [risos]. Mas isto não tinha importância. Tem coisas que a Alessandra ainda diz que tem que sair, mas tem outras coisas que eu incluí e que eu acho que tem que ficar, e aos poucos eu vou me livrando das bengalas. Ás vezes, o público passa a não responder mais como era. Não ri ou não faz o silêncio que tem que fazer. Aí você tem que fazer o caminho de volta e ver o por quê. Às vezes, é um detalhe de uma pausa, um ritmo, uma quebra entre um texto e outro. Melize – E até onde vai a liberdade no contato com o público? Se o público falar com você ou interferir mais fisicamente, você ignora? Julio – Ontem você viu que tinha uma mulher falando no celular na primeira fila e eu ignorei, porque aquilo é insuportável, né? Pois as pessoas não tem noção de quanto isto atrapalha, porque o meu espetáculo é puro ritmo. É que nem você interromper
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uma orquestra ou um ballet. Você cai no vazio, no sentido de você ter que recuperar aquilo. Se acontece alguma coisa, eu nunca paro, eu olho para o outro lado mesmo, pois eu tenho que seguir o meu fluxo em respeito aos outros. O público às vezes fala alguma coisa junto, pois já sabe o que eu vou dizer, mas eu não paro para comentar. Tem partes que são muito importantes que as pessoas entendam o que está sendo dito, por exemplo: “o mais difícil foi explicar que o terceiro da Santíssima Trindade era um ‘POMB...’”. Eu não falava claro, aí as pessoas diziam: “o que?” e eu respondia: “UM POMBO”. O que é importante ser entendido, tem que ser entendido logo. Então, eu me esmero para que o público entenda, e o que não é importante, eu não repito. Se o cara está rindo e eu acho que a risada não é importante ali, eu não dou tempo para ele rir. Mas se eu acho que é, eu dou um tempo. Eu transformo o público em índio, em espanhol, e aquela coisa de “esquerda, direita e esquerda, direita”, da chuva, aquilo tudo não tem no texto, é meu. Melize – E você possui um treinamento permanente ou o seu treinamento se dá durante o processo de montagem? Julio – Eu desenvolvi um processo de treinamento físico durante dez anos até eu voltar para o Brasil, que englobava trabalho vocal, aeróbico, bastão, bolas, trabalhos que criaram uma rotina de treinamento, que me deram uma base e que modificou meu corpo [trabalhou também com o Potlach na Itália]. Depois de 1994, eu não treinei mais. Para este trabalho que se revela muito com uma potência física, eu tive que voltar a trabalhar, pois eu tive algumas contusões. Tive que cancelar espetáculos, até. Faço Pilates, alongamento também, e nestas três horas que antecedem ao espetáculo, eu faço aquecimento de forma global. Tudo o que eu faço é técnica adquirida ao longo do tempo e tudo que eu teorizo vem da prática e da experimentação. Eu não faço nenhum trabalho vocal e tudo o que eu sei é da memória física, do que eu trabalho de vez em quando e permanece. Eu pratico no espetáculo, pois eu já estou a três anos com ele. Quando eu perdia a voz, eu tentei descobrir o que estava fazendo isto, então, eu passei a apoiar a voz em outros lugares e a trabalhar a respiração, mas não pratico fora disto. O que eu levo é a disciplina sempre. Eu sou que nem aluno que não estuda, mas entende a aula e faz o dever de casa [risos]. Não sou um bom exemplo como estudioso de técnicas e treinamentos. Melize – Para você existem elementos diferentes, neste tipo de trabalho solo, no qual o ator está no centro do processo e que tem uma linha física mais enfática, dos outros espetáculos de um teatro mais tradicional, calcado mais na palavra? Julio – Sem dúvida. Este espetáculo está mais associado à música e a dança e é muito complicado as interferências, pois ele tem um ritmo diferente do teatro mais tradicional. Eu faço uma narrativa que até as pausas fazem parte deste tipo de fluxo energético. Eu estou o tempo inteiro fazendo as ações físicas e mesmo quando eu digo “estou em um estado psicofísico lamentável”, depois que ele costura todos aqueles índios, eu estou com o meu corpo todo ali embuído naquela ação física. Neste sentido, pouco tem a ver com o teatro tradicional ou com o teatro que se pode improvisar o tempo todo, onde se pára e fala com a platéia. Se eu erro, a platéia vê que eu errei mesmo, pois eu perco a energia. Em nenhum momento eu relaxo e fico o Julio ali.
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ANEXO
Os anexos deste trabalho estão constituídos pelos textos inéditos escritos pela diretora do
espetáculo A descoberta das Américas, a italiana Alessandra Vannucci, enviados a autora
deste trabalho via e-mail; pelos trechos de críticas de jornais presentes no site oficial do
espetáculo Il Primo Miracolo de Roberto Birindelli e pelas imagens de críticas de jornais
sobre o espetáculo A descoberta das Américas do Núcleo de Produção Leões de Circo
Pequenos Empreendimentos.
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ANEXO I Textos inéditos escritos e enviados via e-mail pela autora Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas , do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos , em Julho de 2007. ALESSANDRA VANNUCCI, é dramaturga e diretora italiana, formada pela Universidade de Bolonha, Mestre em teatro pela Uni-Rio e Doutora em Letras pela PUC – Rio. Formou-se na Itália como assistente de direção de Federico Tiezzi, Luca Ronconi, Benno Besson e Pippo Delbono. No Brasil, foi assistente de Augusto Boal em 1996. Traduziu e dirigiu obras de Dario Fo, como: A descoberta das Américas (2004-2006) e Fábula Obscena (2002). No Brasil ainda dirigiu A Morte da Sacerdotisa, Dürenmatt (2000); Ludwig e as irmãs, de Thomas Bernhardt (direção com Maurício Parroni, 2001); Ruzante, de Angelo Beolco (direção com Sidnei Cruz, 2002). Traduziu e adaptou O Castiçal, de Giordano Bruno (Teatro Carlos Gomes, direção Amir Addad, 2003). Em 2004 escreveu Partenze, montado pelo Teatro Cargo em Genova, Itália (direção de Laura Sicignano). Em 2005, para a mesma companhia, escreveu Sudore; escreveu e dirigiu a Ópera Infantil I Magi (Teatro Dell’opera Carlo Felice, Genova). Em 2006, escreveu Mercenari Spa (Teatro Stabile, Genova) e Vola, Colomba! (Ex-Siderúrgica Cornigliano). Dirigiu também em 2006, Pocilga, de Pier Paolo Pasolini. Hoje Morando na Itália, colabora com várias companhias e participa do Teatro Cargo em Genova. No Brasil, faz parte do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos. A descoberta das Américas
Por incrível que pareça, nos últimos anos tenho vivido de teatro. Participo como autora e diretora do trabalho coletivo de duas companhias: o Teatro Cargo, em Gênova, e os Leões de Circo, no Rio de Janeiro. Incrível porque, pela evidência dos dados estatísticos, o teatro é um bem de consumo espantosamente precário e elitário. Não se sustenta sobre as pernas: precisa de mecenas, públicos ou particulares. Teatro é um luxo que se mantém fora da lógica do mercado: mas o que há de mais sedutor do que ser alternativos e sofisticados ao mesmo tempo? Meu desafio primeiro, de operária numa arte tão caprichadamente inútil como a nossa (se comparada com a arte de um padeiro ou de qualquer outro artesão), tem sido provar a necessidade do ofício. Ora, mesmo que o teatro seja arte inútil ou até morta, como dizem a "teatralidade", a percepção de si mesmo em alguma situação, como num espelho imaginário, é prerrogativa humana por excelência. O teatro é o que faz o homem ser outro dos animais. Porque – como provocou uma vez Augusto Boal – o homem caça igualzinho ao leão, sim, mas o leão não costuma se retratar enquanto caça: coisa que o homem faz desde a idade da pedra. Aí está, antes da invenção do fogo, a descoberta da teatralidade como princípio fundador da comunicação humana. Por isso, a elite dos espectadores teatrais é mais uma elite intelectual do que econômica. Uma elite que busca o encontro direto com o ator em carne, nervos, sangue e ossos, no território livre da imaginação e da emoção. Como escreveu Luis
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Jouvet, o teatro é uma "idéia espiritual que se encarna no ser vivo". Teatro tem a ver com liturgia. E não há muito espetáculo na liturgia de qualquer religião que se trate? Bem como num ritual místico, no teatro acontecem encontros impossíveis e se dá vida a seres inexistentes, "comungando" grandes emoções através de "gestos" mínimos. Só que o teatro (para mim) é leigo e mundano: nada de transcendência ou mistério. Teatro é arte: coisa do humano, comunicação entre experiências humanas. Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores, instrumentos musicais etc.) A ausência de outros recursos faz com que o ator se engenhe. Inventar e se reinventar, treinar truques para cativar a platéia, emocionar, mentir: esta é a arte do ator. A cada noite, uma platéia, um espetáculo único. Por não ser mecanicamente reproduzível, mas só em presença do ser humano ator e do ser humano espectador, o teatro vai ficar para sempre fora da lógica do consumo de massa. A partir do princípio de que o teatro, enquanto artesanato, deve primar por sua qualidade de manufatura, bem como contar com uma estrutura que viabilize sua comercialização, nós dos Leões de Circo traçamos uma estratégia estética e produtiva que faça de nossa arte um pequeno empreendimento auto-sustentável. Somos mecenas e operários do nosso trabalho. Desde 2002, traduzimos e encenamos peças que expõem o laço poético e humano entre a cultura mediterrânea e o Brasil de hoje. Os que mais marcaram foram Ruzante! de Angelo Beolco (que empurrava o público pelas ruelas atrás da Praça Quinze até a Rua do Mercado) e A descoberta das Américas, de Dario Fo, com a qual viajamos pelo Nordeste, regressamos ao Rio em 2005, ganhamos um importante Prêmio e partimos novamente pelos Festivais Brasil afora. Temos tido parceiros valiosos, como a RioArte e o Istituto Italiano de Cultura, com os quais realizamos em 2004 o ciclo de leituras “Brasil Mediterrâneo”: onze comédias da dramaturgia italiana e latina, seja erudita ou popular, especialmente traduzidas (como O castiçal, de Giordano Bruno e o Diálogo de Salomão e Marcolfo, de anônimo). Andarilhos, pícaros, bufões, rústicos e histriões são protagonistas de um mundo virado pelo avesso e visto com o olhar satírico de quem sobrevive só para contar a história. A adrenalina cômica deste teatro da resistência, produto de civilizações famintas, aparecia quanto mais oportuna numa época como a nossa, em que, mesmo na aparente liberdade propiciada pela sociedade de consumo, os mecanismos de exclusão permanecem os mesmos. Neste fim de 2006, enquanto a Descoberta volta ao Rio de Janeiro (na Caixa Cultural, de 11 a 22 de outubro), apresentamos nosso novo “pequeno empreendimento” no Teatro Planetário (11 de outubro a 9 de novembro, h.21): Pocilga, de Pier Paolo Pasolini. Trata-se da estréia nos palcos brasileiros da obra teatral de um dos maiores intelectuais do século XX, de imensa produção poética, cuja incidência no panorama da cultura brasileira segue contudo reduzida à fama de cineasta “maldito”. Pocilga é, segundo Pasolini, “a trágica história de um pecador que faz do pecado a sua beatificação, a desesperada história de um amor impossível com seu desesperado fim, o terrível embate entre o velho capitalismo industrial e o novo capitalismo multinacional, que termina com a condenação de ambos”. Contado assim, só poderia dar um tédio. Só que Pasolini monta a história como um thriller. O segredo, vício do jovem Julian (o pecador) é descoberto por um espião e negociado
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no duelo mortal entre dois industriais (um deles é o pai de Julian) os quais, ao invés de se destruir, resolvem fundir suas indústrias e aumentar o capital. O humor negro faz da peça, que começa com um aniversário, anuncia mas não festeja um casamento e termina com um funeral, uma sequência hilária de metáforas trágicas. Escrita em versos, sugere à encenação uma estética sublime, porém emocionante, como uma tragédia de Sófocles no teatro de revista. Leve, surreal, intensa, divertida. Por que montar uma desconhecida peça deste ambíguo e maldito poeta, hoje, no Brasil? Não se trataria então de um luxo que poucos poderão compreender? Antes de morrer em 1975, esfacelado pela barbárie de um brutal assassinato, Pasolini entregou-se com apetite renascentista ao cinema, ao teatro, à pintura, à militância política e à polêmica intelectual. Porém, ao contrário dos artistas da Renascença, tratou de medir distância abismal dos poderosos. Pactuou sempre com os simples, os livres de espírito, os pobres e os primitivos. Não encontrou na Itália sistema, partido ou ideologia que encampasse sua utopia de felicidade agrária, pré-capitalista, permissiva e anti-progressista. Permaneceu solitário, projetando sua utopia no “imundo e fabuloso sol” do Terceiro Mundo, da África, da Índia, do Brasil: lugares do espírito que julgava (ainda) não contaminados pelo vírus do bem-estar consumista. Se o radicalismo desse pensamento tinha futuro é questão a ser em boa hora discutida. Hoje, quando o debate cultural gagueja na esterilidade de um mercado dominado pela compra-venda e tudo se passa como se a cultura autêntica fosse inacessível ao grande público, voltar ao ambíguo Pasolini tem então o sentido de um resgate da complexidade. O exercício da emoção na arte, como veículo de idéias. O fato é que, eu acho, o estado atual da cultura pede a injeção de adrenalina que o vulcão Pasolini pode ministrar.
DDaa ddii rreeççããoo
Respeitável público... hoje a noite e aqui nesta praça vocês, meus senhores, minhas damas, verão uma comédia narrada por um ator só, numa roda. Verão uma trama, uma teia, uma textura, uma barafunda de tramóias e de heróicas aventuras. Esta comédia não foi escrita direito, não foi traduzida com respeito, não foi ensaiada pra ter tudo no jeito. A gente pensa o seguinte: melhor que fazer a comédia certinha, vamos ver se dá para contar uma história. A história poderia ser bem daqui, da terra. Acontece que um zé ninguém chamado Johan, malandro, andarilho e fanfarrão, embarca por engano numa das Caravelas de Cristovão Colombo após ter a namorada bruxa fritada pela Inquisição. No Novo Mundo, o nosso herói sobrevive a um naufrágio, testemunha a matança, aprende a língua dos nativos, é preso, escravizado e quase engolido pelos índios antropófagos. Passando-se por “santíssimo Filho da Lua”, arma e guia um exército de libertação indígena que acaba caçando os invasores. Mais ou menos é isso. Johan é bem do povão: seus antecessores são os zanni (camponês que se vira na cidade grande, como Arlequim na commedia dell’arte), os pícaros (viajante mata-mouros, como Lazarillo de Tormes) e os bufões contadores de histórias da tradição oral. Sua roupa maltrapilha e suas astúcias para nada fazer são marcas cômicas do personagem, sua corporeidade abusada é marca cômica do contador – arrotos,
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blasfemias, caretas e gargalhadas caem como tapas na cara do espectador indiferente ou embasbacado. Aqui diante dos vossos olhos, um só ator vai ser o velho Johan (que sabe dos fatos, mas pode mentir), o contador de história (que sabe mais do que a platéia) e todos os personagens (que sabem menos do que a platéia). Como é que pode? Julio é um monstro? Una bestia da palcoscenico? É sim. O cara tem um monte de truques para cativar o público. Cá para nós, cuidado para que ele não enfie a mão na carteira numa dessas! Mas vocês não vão resistir, eu sei, vão entrar no jogo dele, vão até ajudar! Talvez os senhores não saibam, mas já conhecem a brincadeira. A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às marcas) decai diante da urgência da performance. Aqui o absurdo capricho histriônico do ator Julio Adrião é precioso. Vocês, platéia, vão fazer suas vontades, vão devolver a bola, vão captar seus improvisos e decodificar seus hieroglíficos gestuais com uma competência de peritos teatrais. Vocês vão ver. Os mil truques do ator são para isso: achar o jeito, cada vez diferente, de jogar com aquela platéia e fazer aquela platéia jogar. Jogar como? Adivinhando de que forma a história irá acontecer naquele dia. Como assim? Mas a história não foi escrita por Dario Fo? Não, não, não: ela foi contada por Dario em gromelô (uma língua híbrida, inventada pelos cômicos da Arte no século XVI) num aperto memorável (os “festejos” em Sevilha do quinto centenário da descoberta da América). Mais tarde foi transcrita e traduzida para o italiano. Depois foi contada por Julio em português, só para mim, e finalmente foi escrita. Ora, então: o que tem a ver com direção neste espetáculo? Tem que eu fiquei observando, escutando e presenciando como um espectador muito exigente. Quebrando as muletas do ator, impedindo-lhe de cristalizar o fluxo da narração em marcas. Nem precisou comentar muito: eu estava lá de espelho. E o teatro é isso: um espelho que determina a imaginação perceptiva do ator. Em grego teatron é isso: o lugar onde se é observado. Digo mais: o teatro, enquanto espelho imaginário, é a prerogativa humana por excelência: a percepção de si mesmo em alguma situação. O homem primitivo retrata a si mesmo enquanto caça, o que não faz o leão. O espelho é a terceira dimensão: ali se vê o que se é, o que não se é, o que se pode vir a ser. Por isso, sem retórica, o espectador é indispensável ao jogo. Por isso, sem moralismo, o ator é histrião. Quanto mais exibido e carente, melhor. Teatro é a visão da visão do outro. Parece com pingue-pongue, não è? Quem gostar, por favor, seja generoso com as palmas. DDaa eenncceennaaççããoo
Munido de seu arsenal de truques, dominando uma linguagem atorial que é quanto mais autêntica, mais ‘nossa’ ao passo que é mais própria e peculiar ao indivíduo-
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narrador, Julio Adrião enfrenta o público em roda, reintegrando a habilidade satírica desenvolvida ao longo dos 8 anos de trabalho com a Cia. do Público-RJ - na grande tradição jogralesca da arte dos histriões. A dimensão pública desta arte, cuja relação frontal e improvisada com a platéia remete mais para a instalação do que para a representação, exige a presença integral do ator-narrador que, a partir de seu núcleo experiencial, deve produzir de imediato sua performance. A narração, enquanto forma teatral radicalmente oral apoiando-se na concreta presença do ator diante de seu público, por outro lado, estimula uma assistência interativa pois ao espectador cabe a tarefa de ‘executar’ a obra que está sendo performada, de interpretar o evento comunicativo como sujeito competente na decodificação das máscaras linguísticas e na montagem dos signos. A ‘literalidade’, como critério de fidelidade textual ao autor, decai diante da ‘urgência’, como objetivo de cativar e segurar o público junto ao narrador na viagem ao longo de todos os possíveis desenvolvimentos da história. Esta, construída, como qualquer estrutura dramática, em ‘climax’ (crescimento) da tensão até a ‘catástrofe’ (reviravolta que antecede a conclusão-resolução), apresenta-se porém disponível para inúmeras variáveis, improvisadas naquela ou em outras ocasiões – é o arsenal de truques para o ator acertar o jeito de ‘jogar’ com aquela platéia, intuindo como a história irá acontecer naquele dia.
O ator redescobre assim, alguns dos rudimentos do jogo cômico, como o riporto (it. para triangulação) com que os cômicos da Arte apelavam à cumplicidade da platéia, ingênua pelo truque da ignorância simplória da máscara, que tudo estranha e se surpreende de qualquer coisa. No Johan Padan, onde um só ator interpreta ao mesmo tempo o narrador da história (que sabe mais que todos), o protagonista-narrador (que diz saber de tudo, mas poderia mentir) e seus personagens (que sabem menos do que a platéia e nada ainda um do outro), a triangulação estabelece desde o começo um pacto de cumplicidade entre ator-narrador e público, pois através das alusões narrativas, a platéia consegue antecipar o que vai acontecer ao protagonista contra sua vontade e surpreendendo suas previsões – nisso o efeito cômico. Johan, figura teatralmente vivíssima por suas ascendências entre zanni (literalmente um zé, como Arlequim: um rude camponês perdido na grande cidade e pior, no imenso oceano) e pícaro (um andarilho, como Lazarillo de Tormes ou o capitão matamouros) traz em sua memória cênica a componente aventurosa da viagem e da conquista, porém combinando a autoridade conferida pela experiência de viajante com a aparência maltrapilha do servo, com a indolência fanfarrã do malandro e com a excessiva corporalidade carnavalesca do bufão, sempre pronto, em caso de indiferença do público, à subversão do pacto de cumplicidade e a extrapolação fisiológica – arrotos, blasfêmias, gargalhadas histéricas e metafóricos tapas na cara no espectador embasbacado.
Aproveitando-se de um amplo acervo de jogos dramáticos, de regras da Arte da comédia e da narração, o ator conduz um processo onde cada ator/narrador se apropria do texto da estória que deseja contar, tornando-se aos poucos o autor das palavras que contam a estória, criando assim uma dramaturgia própria. Num segundo momento, as dramaturgias individuais serão desenvolvidas, abandonando por completo a literalidade do texto escrito para serem narradas em presença interativa entre o narrador e o público. Entende-se esta ‘dramaturgia individual’ como um desenvolvimento tanto da oralidade quanto da fisicalização do narrador.
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Intervista libri
Libro: Uma amizade revelada. Corrispondenza tra dom Pedro II e Ristori. Artisti viaggianti, cioè arte per tradizione nomade ne fa portatori di idee alla confluenza delle latitudini e catalizzatori delle proiezioni collettive. 150 anni di scambi d’idee e espatri teatrali tra Brasile e Italia. Proiezione invertite tra Brasil-colonia-periferia e Italia-centro: oggi non c’è più centro ma tutte periferie, tradizioni localissime che diventano globali e molte più idee viaggianti in cui riconoscersi. Una idea brasiliana in cui mi riconosco è la democrazia partecipativa, che è all’origine del sogno di un mondo migliore possibile nei Forum Sociali di Porto Alegre e che in molti municipi brasiliani viene realizzata con il teatro-forum. L’idea è che qualsiasi desiderio può diventare legge. Come? Con la pazienza dell’impegno e il coraggio d’essere felici. Sembra una folle idea tutta edonista e brasiliana, invece quando ne parlavo con Boal lui m’ha fatto notare che in verità la democrazia senza deleghe è un’idea greca. Un’idea “nostra” che ha attraversato l’oceano una volta o mille volte. Io ho passato anni a scoprire nodi e stringere lacci tra cultura mediterranea e cultura brasiliana. Un po’ per riconoscermi, come italocarioca che sono, al di là del trio di comunione un po’ restrittivo donne-macchine-futebol; un po’ per contribuire al processo culturale che è anche eccessivamente calibrato in Brasile sull’asse capitalista, borghese, “nordico” e nordamericano e protestante. Invece per me il Brasile è un paese anarchico, popolare, meridionale, latino e cattolico al miglior modo cioé magico, scaramantico, liturgico. Il mio teatro negli ultimi anni ha attinto da un pannello bruegeliano di picari astuti ed intellettuali vagabondi eretici ed istrionici come Ruzante, come Giordano Bruno, come Bertoldo che affronta il saggio Salomone. Il nostro umanesimo nella sua espressione antiaccademica e contro la cultura dominante, ancora è un’arma critica affilatissima e crudele, anche nelle sue punte di più accesa comicità, perché i meccanismi di esclusione sono sempre gli stessi. Il riso qui contagia e non fa catarsi, anzi al contrario sovverte convinzioni sociali rassicuranti. È una bella iniezioni di adrenalina scoprire quanto sia sottile la nostra patina di civiltà. Ultimo spettacolo: la Storia vista dal basso, raccontata da un poveraccio in fuga perenne, uno zanni che sopravvive all’Inquisizione, ai cannibali e ai soldati spagnoli solo per raccontar la storia, però la sua e a suo modo. A descoberta das Americas. Dario Fo. Che butta la Storia a gambe all’aria. Un solo attore dotato di una presenza viscerale e insieme molto tecnica, in uno spazio nel centro di Rio, una vecchia casa coloniale svuotata dal fuoco, solo quattro mura, senza bagni, senza scene senza costumi. Sedie imprestate e in vendita. È una sfida che abbiamo accettato un po’ per arte un po’ per necessità, cioè per totale indigenza. Facciamo parte di una cooperativa di dieci gruppi teatrali che condividono tutto. Dai riflettori alle stoffe agli attori alle idee. Il teatro è un’arte miserabile. Sorge dall’economia della fame. L’attore non ha nient’altro da vendere oltre al proprio corpo e voce. L’assenza di strumenti gli fa aguzzar l’ingegno ed accettare sfide. Perciò cerca trucchi per cattivare la platea almeno fino alla fine della storia. Trucchi, lazzi. L’attore della Descoberta fa tutto lui: la regina Isabella, naufraghi, soldati spagnoli, diverse tribù indigene, animali fiori pesci e alberi, battaglie e tempeste. In fondo il teatro è tutto qui. La sorpresa è che questo spettacolo prodotto con 1.000 euro e molto sudore ha vinto il Premio Shell, miglior attore per il 2005. Non perché abbiamo così vinto la sfida, in realtà il riconoscimento della stampa in un mondo molto fashon come quello carioca cambia tutto, questo è vero, ma noi avevamo un pubblico affezionato e molto folto già dai tempi del Ruzante, nostro primo spettacolo nel 2002. Mi sono sorpresa
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perché il massimo riconoscimento della critica brasiliana ha saputo cogliere il senso artistico ed umano della nostra sfida, e l’ha premiata.
Un’altra idea latino-brasiliana è gentilezza genera gentilezza. È una specie di fede laica che contrasta l’interpretazione protestante dell’amore di Cristo come sacrificio necessario al premio. Fede nell’amore come energia che muove il comportamento minimo, endorfina amorosa alla portata di tutti. Un po’ edonista ma funziona. Rio è capitale mondiale della gentilezza.
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ANEXO II
TRECHOS DE CRÍTICAS
ESPETÁCULO: IL PRIMO MIRACOLO
FONTE: http/www.ilprimomiracolo.com.br
“PORTO VERÃO ALEGRE 2004 - Assim como Tangos e Tragédias, Se meu ponto G falasse, O marido do dr. Pompeu e Bailei na curva, o espetáculo de Roberto Birindelli está se tornando patrimônio cultural da cidade de Porto Alegre. Não sem motivos. Por volta de uma hora no palco, Birindelli se transforma em dezenas de personagens para contar a história do primeiro milagre do menino Jesus. O ator tem a habilidade de aliar, junto a sua excelente narrativa oral – texto do ‘Nobel’ Dario Fo – uma invejável inventividade. Com total domínio da platéia e ótima projeção corporal, Birindelli tem a façanha de deixar-nos atentos, num monólogo praticamente sem nenhum objeto em cena, multiplicando-se num piscar de olhos. Um espetáculo divertido, diferente do teatrão de sempre.” SITE ARGUMENTO 22/01/2004 Paulo Ricardo Kralik Angelini "Sem qualquer artifício de luz ou maquiagem, sem cenários, sem trilha sonora para sublinhar climas e emoções, Birindelli convence em sua história. Melhor ainda: aparentemente, nem faz força para isso (...) fazendo teatro puro, consegue uma total cumplicidade com a platéia. Não é pouca coisa, não. (...) Um pequeno e simpático mirácolo em sua despretensão." O GLOBO - Rio de Janeiro 24/08/2003 Jefferson Lessa “Roberto Birindelli faz valer o que há de mais nobre no teatro popular (...) com uma generosa cumplicidade com a platéia, ‘Il Primo Mirácolo’ promove a mais emocionante defesa da fé verdadeira desde o ‘Tartufo’ de Molière. (...) Não importam tanto os recursos ou o endereço do espetáculo: será sempre pleno o palco em que pisam atores como Roberto Birindelli.” FOLHA DE SÃO PAULO 20/07/2003 sergio salvia coelho - crítico da Folha "Em IL PRIMO MIRÁCOLO, o ator Roberto Birindelli interpreta os 21 personagens da trama com técnica irretocável. (...) A cena tem total singeleza como prega o autor: um ator, luz fixa, nenhum objeto cênico. Só o corpo do qual se tiram sons, movimentos e palavras." GAZETA MERCANTIL - S. Paulo
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13/07/2003 Maria Lúcia Candeias “Com seu projeto de circulação, a Cia. Stravaganza conseguiu montar um panorama que representa bem a produção gaúcha. Momento marcante foi a apresentação do ator Roberto Birindelli, que seduziu a platéia mostrando a precisão de movimentos no espetáculo Il Primo Miracolo (...)” JORNAL O LIBERAL - Belém 19/11/2002 Cláudio Marinho "Aqui o elo entre a imaginação do ator e a imaginação virtual do espectador se efetua exclusivamente na transformação do corpo em objeto mágico. Tarefa que Birindelli, sob orientação de Maria Helena Lopes, cumpre com grande êxito em uma performace sensível e criativa: revela-se um corpo que fala na sua totalidade (...)" REVISTA A CRÍTICA 01/01/1999 Marta Isaacsson - Doutora em Estudos Teatrais. “Mais de 200 pessoas foram ao espaço cultural Babilônia, no centro de Buenos Aires, para assistir a O Primeiro Milagre do Menino Jesus na noite de sexta-feira, dia 8 de março. No final, aplausos entusiásticos para o diretor e ator Roberto Birindelli, que dispensa iluminação, figurino, palco italiano, e cenário para contar a infância de Jesus." ZERO HORA 16/03/1996 "Sin perder en ningún momento el domínio total de la escena incluyendo en esto al público, con el que broméo y al que incluyó en su actución Birindelli realizó una interpretación impecable." LA MAGA 16/03/1996 "O texto mistura o profano e o religioso numa crítica bem humorada e termina por questionar as relações sociais, o racismo e a possibilidade de resistir-se à opressão. Isto através do fino humor de Dario Fo e do trabalho primoroso e detalhista de Birindelli." Crítica Teatral 01/01/1996 Eliane Lisbôa "‘Policromia do gestual para um conto eterno.’ (...) O Primeiro Milagre (...) exercita o retorno às origens do gesto teatral com toda a intensidade possível. (...) Entre este homem que se expõe, se divide e se multiplica, e os circundantes, que passam a emoldurar seu quadro, o pacto é selado com sorrisos de quem divide segredos. E com os olhos da infância, de quem pode viajar sem sair do lugar."
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CORREIO DO POVO 18/09/1993 Maristela Bairros Schmidt
"Birindelli mostra capacidade excepcional de domínio sonoro, de expressão corporal, de inventividade, atendendo plenamente ao requerido pelo texto italiano. (...) A reação do público, primeiro de curiosidade, depois de empatia, e enfim de franca adesão, mostram o quanto Roberto acertou enquanto diretor e intérprete no seu trabalho." JORNAL DO COMÉRCIO 22/07/1993 Antônio Hohlfeldt
“(...)Mas o público que assistiu a ‘O Primeiro Milagre do Menino Jesus’, por exemplo, não só saiu elogiando como voltou à Sessão Maldita uma, duas, três vezes (é um caso raro de peça cult em Porto Alegre)." ZERO HORA 03/03/1993 Cristina Gustkoski
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ANEXO III
FIGURAS 29, 30, 31 - CRÍTICAS DE JORNAIS SOBRE O ESPETÁCULO A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS, DO NÚCLEO DE PRODUÇÃO LEÕES DE CIRCO PEQUENOS EMPREENDIMENTOS
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Fig. 29
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Fig. 30
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Fig. 31
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