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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA -UDESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT MESTRADO EM TEATRO MELIZE ZANONI DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVRA NAS CENAS DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO DE ROBERTO BIRINDELLI FLORIANÓPOLIS 2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA -UDESC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - PPGT

MESTRADO EM TEATRO

MELIZE ZANONI

DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVR A NAS CENAS

DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO

DE ROBERTO BIRINDELLI

FLORIANÓPOLIS

2008

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MELIZE ZANONI

DARIO FO NO BRASIL: A RELAÇÃO GESTUALIDADE - PALAVR A NAS CENAS

DE A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS DE JULIO ADRIÃO E IL PRIMO MIRACOLO

DE ROBERTO BIRINDELLI

Dissertação apresentada como requisito para a

obtenção do grau de Mestre em Teatro, Curso

de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa

Poéticas Teatrais.

Orientador: Prof. Milton de Andrade Leal Jr, Dr.

FLORIANÓPOLIS

2008

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AGRADECIMENTOS

Ao PROMOP, Programa de Bolsas de Monitoria de Pós-Graduação da Universidade do

Estado de Santa Catarina, pela Bolsa concedida a mim no primeiro ano do curso, que me

permitiu realizar a pesquisa da qual essa dissertação representa um primeiro resultado;

Ao professor Milton de Andrade Leal Jr., orientador da pesquisa, pelo suporte na construção

do trabalho;

Aos Professores Valmor Nini Beltrame e José Ronaldo Faleiro, pelos ensinamentos, apoio e

estímulo;

Aos atores Julio Adrião de A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de

Circo Pequenos Empreendimentos e Roberto Birindelli do espetáculo Il Primo Miracolo, da

Cia do Bebê, pelas entrevistas e pela disponibilidade;

À Alessandra Vannucci, diretora do espetáculo A descoberta das Américas, pelos textos

enviados;

À minha família, pelo apoio e amor incondicional;

À Profa. Beatriz Ângela Cabral, supervisora da Bolsa de Monitoria de Pós-Graduação, pelos

ensinamentos e pela amizade;

Ao amigo Ivo Godoi, pelo apoio e amizade;

Aos funcionários da biblioteca do CEART-UDESC, pela paciência e dedicação;

À Mila, funcionária do Programa de Pós-Graduação da UDESC, pela competência e amizade;

Aos amigos da turma de 2006, do Curso de Mestrado em Teatro da UDESC, pelas trocas

constantes.

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Penso que o teatro se faz mais vivo quando um elemento questiona sempre o outro. O movimento põe em questionamento a imobilidade, e a imobilidade o movimento. O texto questiona o silêncio, e o silêncio o texto; esta é certamente a importante função política do teatro, independentemente de posições ideológicas. Heiner Müller

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RESUMO

Esta pesquisa investiga em que dimensão a formalização de procedimentos

provenientes do teatro-solo de linha física, no qual a cena é determinante do texto falado,

oferece caminhos concretos para um problema específico da arte teatral: a relação

gestualidade - palavra. Para a verificação das hipóteses e problematização do tema desta

pesquisa, foram analisados dois trabalhos apresentados por grupos brasileiros que possuem

como base para sua dramaturgia os monólogos escritos pelo ator e dramaturgo italiano Dario

Fo: A descoberta das Américas, representado por Julio Adrião, dirigido por Alessandra

Vannucci e produzido pelo Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos

do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo, representado e dirigido por Roberto Birindelli, da Cia

do Bebê de Porto Alegre. A pesquisa está centrada na análise de alguns elementos que

constituem as partituras gestuais destes espetáculos e sua relação com o texto, tais como:

repetição, fragmentação, quebras, descrição, criação de sentido, corporificação do texto e suas

relações intertextuais.

Palavras-chave: gestualidade, palavra, dramaturgia, ações.

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ABSTRACT

This research investigates in which dimension the formalization of the procedures

from solo theater of physical line, in which the scene determines the spoken text, offers

concrete ways to a specific problem in the performing arts: the gesture-speech relation. To

check the hypothesis and problems of the theme of this research two works presented by

Brazilian groups that have as base for their dramaturgy the monologues written by the Italian

actor and dramaturg Dario Fo were analyzed: A descoberta das Américas, presented by Julio

Adrião, directed by Alessandra Vannucci and produced by the production team Leões de

Circo Pequenos empreendimentos from Rio de Janeiro and Il Primo Miracolo, presented and

directed by Roberto Birindelli, of the Cia do Bebê from Porto Alegre. The research focuses on

the analysis of some elements that constitute gestural score of these spectacles and their

relation to the text, such as: repetition, fragmentation, breaks, description, sense creation,

textual embodiment and its intertextual relations.

Keywords: gesture, speech, dramaturgy, actions.

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ÍNDICE DE FIGURAS

FIG. 01 Gestos - Julio Adrião em A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção

Leões de Circo Pequenos Empreendimentos............................................................................ 14

FIGS. 02 e 03 Posturas – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, da Cia do Bebê........... 16

FIG. 04 Alga Marinha - Julio Adrião em A descoberta das Américas................................... 46

FIG. 05 Gestual – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................ 58

FIG. 06 Gestual – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo ................................................. 58

FIG. 07 Jogo de Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................ 72

FIG. 08 Oposição – Julio Adrião em A descoberta das Américas......................................... 73

FIG. 09 Oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo............................................... 74

FIG. 10 Mães/oposição – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................... 74

FIG. 11 “Costura dos Índios” – Julio Adrião em A descoberta das Américas....................... 81

FIG. 12 Arrumando os órgãos – Julio Adrião em A descoberta das Américas...................... 83

FIG. 13 Linha – Julio Adrião em A descoberta das Américas.............................................. 85

FIGS. 14 e 15 Gestualidade – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo............................... 87

FIG. 16 Caricatura/ Índio – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................. 91

FIG. 17 Menino-Jesus – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo ...................................... 91

FIG. 18 Pausa – Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................. 103

FIG. 19 Mãos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................................104

FIG. 20 Pés – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo...................................................... 110

FIG. 21 Gestos – Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................. 110

FIG. 22 Retirantes (1944) - Cândido Portinari ..................................................................... 112

FIG. 23 Enterro na Rede (1944) - Cândido Portinari ........................................................... 113

FIG. 24 Criança Morta (1944) - Cândido Portinari ............................................................. 113

FIG. 25 Menino - Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................ 117

FIG. 26 Pérola - Julio Adrião em A descoberta das Américas............................................. 121

FIG. 27 Julio Adrião em A descoberta das Américas........................................................... 133

FIG. 28 Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo................................................................ 133

FIG. 29 Crítica de Bárbara Heliodora – Jornal O Globo de 27 de outubro de 2005 ............ 179

FIG. 30 Crítica de Fausto Wolff – Jornal do Brasil de 05 de fevereiro de 2006 .................. 180

FIG. 31 Crítica de Macksen Luiz – Jornal do Brasil de 26 de outubro de 2005................... 181

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO

1.1 De histriões, bufões e giullari: a gestualidade teatralizada ................................................ 01

1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot ............................................................ 11

1.3 A situação ........................................................................................................................... 18

1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público ......................... 23

1.5 O riso inteligente: o prólogo............................................................................................... 32

1.6 O ator – narrador................................................................................................................. 35

2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UM A

ABORDAGEM DOS ESPETÁCULOS A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS E IL PRIMO

MIRACOLO

2.1 O pöer nano que descobriu as Américas ............................................................................ 42

2.2 Mistério bufonesco: a alegoria ........................................................................................... 47

2.3 A mímica moderna e a estética do movimento................................................................... 53

2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação............................................................................ 59

2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il

Primo Miracolo....................................................................................................................... 67

3. O CORPO SUBLINHADO : A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO

3.1 A narrativa do corpo: repetição, quebras, descrição e criação de sentido na

construção das ações em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo.............................78

3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em

A descoberta das Américas ......................................................................................................97

3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra

de Portinari ............................................................................................................................ 104

3.4 O ponto de encontro: a construção da corporeidade em A descoberta

das Américas e Il Primo Miracolo ........................................................................................114

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 140

APÊNDICE ........................................................................................................................... 146

Apêndice I – Entrevista concedida por Roberto Birindelli de Il Primo Miracolo ................. 147

Apêndice II –Entrevista concedida por Julio Adrião de A descoberta das Américas ........... 158

ANEXO .................................................................................................................................. 167

Anexo I – Textos inéditos de Alessandra Vannucci de A descoberta das Américas ............ 168

Anexo II – Trechos de Críticas sobre o espetáculo Il Primo Miracolo ................................. 175

Anexo III – Críticas de jornais sobre o espetáculo A descoberta das Américas.................... 178

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa investiga os principais elementos que surgem da relação corpo-

dramaturgia em dois espetáculos encenados no Brasil: A descoberta das Américas (2005),

representado por Julio Adrião, com direção de Alessandra Vannucci, do Núcleo de produção

Leões de Circo Pequenos Empreendimentos do Rio de Janeiro, e Il Primo Miracolo (1992),

representado por Roberto Birindelli, da Cia do Bebê de Porto Alegre, espetáculos que

encenam textos do italiano Dario Fo (1926 -), que se configurou como um dos dramaturgos

mais encenados do mundo, sendo reconhecido por seu trabalho distinto no que diz respeito à

comunicação gesto-palavra.

Precisamente por sua dificuldade de permanência na memória histórica, a

gestualidade se empobrece nos relatos, no que diz respeito ao evento teatral, e a palavra acaba

alcançando uma melhor forma na análise da cena. Alicerçado na imediatez da comunicação e

do efêmero da vivência festiva, o teatro é um feito complexo resultante da combinação de um

conjunto de elementos heterogêneos, e que só em sua síntese, através da representação,

adquire sua plenitude.

Enquanto na obra literária as personagens e as ações “virtuais” (e o mundo

imaginário em que se encontram inseridas) dependem das palavras, no teatro as palavras

dependem das personagens e da ação real construída. Já não são as palavras a base das quais

se constituem as personagens ou as ações, mas estas que constituem aquelas.

Desde Aristóteles se tem pretendido erigir o texto literário no conteúdo essencial

da arte dramática, mas entender o teatro fundamentalmente como texto de palavras, significa

limitar e reduzir o alcance da arte cênica e fracionar sua especificidade.

O específico do espetáculo teatral reside na comunicação condicionada pelo lugar

e tempo em que se produz, e em cada obra existe a constante luta de uma técnica que se quer

fazer repetível, ou que é repetível, e o efêmero que pode ser visto apenas no momento

presente, como a gestualidade e seus impulsos correspondentes.

Se até o século XIX o teatro não mediu esforços para reforçar a credibilidade da

palavra como suporte da razão, a partir do século XX, com a renovação da tradição corporal, a

palavra perdeu a sua clássica transparência como um meio inocente a serviço da representação

da realidade.

Ceder alguns de seus privilégios ante o auge das tecnologias da imagem, não quer

dizer que a palavra tenha deixado de ocupar um lugar fundamental que dificilmente perderá

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dentro da comunicação humana. A era da eletrônica, da imagem, das telecomunicações, mas

também da reivindicação do corpo e das identidades, exige a reconsideração da palavra frente

a gestualidade, a luz de novos contextos, apesar de que sempre estará relacionada a antigos

conceitos fundadores.

O objetivo principal desta dissertação é estudar as relações entre matrizes e

partituras textuais e matrizes e partituras corporais, discutindo as relações entre gestualidade

e palavra escrita e corporificada.

Dario Fo, cujos textos e obras ajudarão a alimentar as reflexões desta pesquisa,

apreendeu as matrizes do ritmo narrativo e da arte de inebriar os ouvidos, sentado ao lado de

seu avô na carroça em que vendia verduras e contava fábulas para angariar clientes. Menino

criado à beira do Lago Maggiore, ajudava com suas pequenas mãos e imaginação arredia a

remendar as redes de pesca ouvindo estórias de pescadores e contadores de histórias, que sem

saber, se utilizavam de modelos medievais e renascentistas em sua narrativa.

Criado nos braços da narrativa oral onde o texto original desaparece e se

transforma em um texto inédito a cada recontar, e praticamente obriga o público a interagir,

Fo aprendeu a entender os fatos locais e adaptá-los às situações e às reações de cada público

ouvinte para vender seu peixe: suas estórias fantásticas.

Como as estórias possuíam apenas roteiros passados oralmente de um para outro,

Dario Fo prestou atenção no que justamente fazia a diferença nas estórias contadas: a

gestualidade. A gestualidade vinha da busca de clareza, vivacidade, frescor, ritmo e energia,

cujo principal objetivo era atingir diretamente o público.

Da época medieval, Fo traz os giullari , seus textos, e suas irreverências, e da

commedia dell’arte que tem nas veias, Fo reaproveitou seus zanni e seus procedimentos,

atualizando-os em espetáculos contemporâneos.

A partir daí, Dario Fo construiu uma teatralidade própria fundada nos gestos, na

mímica e na capacidade de dar vida sozinho a uma estória repleta de personagens.

E foi através da convivência com as estórias de loucos, de pescadores, de

mascates e de fabuladores, que Fo construiu o seu imaginário e aprendeu as matrizes de seu

teatro: a crítica social, a comunicação direta com o público, a improvisação, a teatralização de

fatos reais, a clareza do gesto, a hipérbole e o paradoxo, a importância da gestualidade e do

ritmo da fala.

A relação estabelecida entre os textos e as obras de Dario Fo, gestualidade,

mímica, palavra e ritmo (cerne de seu teatro) e a maneira distinta com que Fo constrói as

dramaturgias de seus monólogos, servem como base para as reflexões a cerca da

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corporalidade da palavra nos dois espetáculos encenados no Brasil. Os textos de Dario Fo,

suas pesquisas teórico-práticas contidas em seu Manual Mínimo do Ator (1998), os vídeos de

alguns de seus espetáculos e pesquisas sobre sua obra publicadas no Brasil, são as fontes

secundárias utilizadas nesta pesquisa. As entrevistas com os atores e diretores de A descoberta

das Américas e Il Primo Miracolo e os vídeos dos espetáculos se configuram como as fontes

primárias deste trabalho.

No primeiro capítulo, estão presentes os elementos que saltam dos textos escritos

de Fo para as montagens analisadas e que são de fundamental importância para uma

abordagem da relação gestualidade - palavra nos espetáculos analisados: a situação, a

gestualidade dos cômicos antigos, o improviso, a gestualidade e o grammelot, o ator -

narrador, a simultaneidade, o prólogo.

No segundo capítulo, elementos como as metáforas e alegorias, a figura do pöer

nano, a mímica, o espaço vazio e o jogo de oposições, alimentarão as reflexões sobre os

espetáculos analisados.

Como a obra escrita de Dario Fo impulsiona a criação por parte dos atores através

de suas estórias “incompletas”, nas quais os atores necessitam criar códigos de gestualidade

para comunicar-se diretamente com o público, foram escolhidos alguns elementos que serão

analisados dentro da relação corpo-dramaturgia nas duas montagens e que farão o recorte do

olhar sobre estas duas obras no terceiro capítulo: repetição, fragmentação, quebras, descrição,

criação de sentido. Neste capítulo, se encontram os elementos distintos como a pausa e a

construção de estruturas de ações através de imagens (como as imagens de Portinari utilizadas

por Roberto Birindelli) e os pontos de encontro entre a comunicação gesto – palavra nos dois

espetáculos.

Em termos metodológicos, as entrevistas e as análises dos espetáculos estão neste

trabalho como fonte primária para a problematização do tema e verificação das hipóteses,

apontando caminhos para a reflexão principal: os elementos identificados na relação

gestualidade - palavra nestas duas obras, que uma vez formalizados, podem representar

elementos inovadores ou uma herança de continuidade no teatro brasileiro.

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1. A ESCRITURA E O LUGAR DO TEXTO EM DARIO FO

1.1 De histriões, bufões e giullari1: a gestualidade teatralizada

Em teatro, o gesto precisa ser reinventado, do

mesmo modo como se reinventam as palavras. É

necessário aprender a partir da realidade, não

das convenções da realidade. (FO, 2004: 269)

As matrizes populares das fábulas grotescas e irônicas perpassam toda a obra e os

estudos de Fo em relação ao gesto e a palavra. Os estímulos do racconto somaram-se com o

gosto pelos puppi (bonecos) e seus movimentos, e aos meios expressivos vocais que utilizou

quando passou a trabalhar contando histórias na rádio.

Com o Teatro de Revista, Fo aprendeu o processo coletivo de criação do

espetáculo, as alegorias, os personagens que exprimem a lógica do povo, e ao trabalhar com a

música, combinou mímica, pantomima e ritmo musical.

Falar de espetáculos que possuem como base a dramaturgia de Dario Fo, é falar de

uma gestualidade intrínseca em sua obra escrita e que transparece no texto do espetáculo em

qualquer frase de palavras. A dramaturgia de Fo se configura como uma escritura de ações

pelo modo distinto como é codificada, pois suas palavras são absolutamente dependentes da

cena.

[...] acreditamos que o gesto e a gestualidade são sempre a salada, o

acompanhamento, enquanto o prato principal, a carne, é sempre a palavra. Inculcam-

nos esta idéia desde o jardim de infância. Desde então corrigiram-nos a pronúncia de

cada palavra, e nunca o gesto que poderia substituí-la ou apoiá-la. O gesto é

relegado até mesmo no trabalho do ator. (FO, 2004: 62)

1 Palavra italiana, traduzida para o português como jogral. Os jograis eram atores-contadores de estórias, que se utilizavam da mímica, do canto e da dança e atuavam durante o medioevo e o renascimento.

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A obra literária ou dramática e a obra teatral assumem dois caminhos diferentes,

tanto em sua materialidade (palavra escrita diante da voz e do corpo em ação) como em seus

modos de recepção (a abstração e a imaginação que supõe a leitura, diante da presença física

do ator e do espectador); mas mesmo um texto dramático dito “aberto”, fragmentário ou

circular, capaz de problematizar os limites do sistema da representação verbal, como as

dramaturgias de vanguarda ou mesmo a obra de Dario Fo, podem ser objeto de uma

representação de maneira tradicional. É claro que isto entra em contradição com os princípios

estéticos destas obras, pois possuem de modo implícito uma crítica radical da representação

tradicional, convertendo a cena em um espaço de desestabilização das bases da representação.

Este teatro de linha física alicerçado nas bases do teatro corporal dos farsantes de

feira e dos cômicos da commedia dell’arte, com seu despojamento cênico, volta a ser o centro

da cena no final dos anos sessenta, nos quais a reformulação de um teatro gestual se afina

perfeitamente com a proposta de Dario Fo, a qual se constitui imersa na situação dramática

com sua ação vocal e corporal também herdada de uma mesma geração artística de pedagogos

da mímica moderna e da pantomima.

Deste modo, a escritura composta por Fo, inevitavelmente, interfere fisicamente

na concepção de espetáculos que se propõe a seguir, mesmo que em parte, a dramaturgia

proposta por ele. Esta escritura está estruturada em uma linha física baseada na ação, sendo

portanto, difícil desenvolver a partir dela, um espetáculo que não siga esta mesma linha física

de partituras traçadas e recortadas para servir a uma determinada ação não naturalista, baseada

na mímica e na ação vocal.

[...] o conceito de ‘escritura’, que implica uma condição performativa como prática

real, substitui o de ‘texto’ como estrutura já realizada. Nesta qualidade processual e

performativa do texto como ato de escritura, estrutura em construção e exercício de

estruturação antes que estrutura, a obra se emancipa de sentidos únicos, discursos

ideológicos e leituras impostas desde pressupostos não artísticos, ao mesmo tempo

que conquista para si uma realidade específica não isenta de uma qualidade política

em tanto que ação. (CORNAGO, 2005:13, tradução nossa)2

2 [...] el concepto de ‘escritura’, que implica una condición performativa como práctica real, sustituye al de ‘texto’, como estructura ya realizada. En esta cualidad procesual y performativa del texto como acto de escritura, estructura en construcción y ejercicio de estructuración antes que estructura, la obra se emancipa de sentidos únicos, discursos ideológicos y lecturas impuestas desde presupuestos no artísticos, al mismo tiempo que conquista para sí una realidad específica no exenta de una cualidad política en tanto que acción.

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Como a escritura de Fo nasce da ação pensada e repensada, fazendo um caminho

contrário que nasce da cena para desembocar nela própria, a ação pensada na ação, e não a

partir da palavra, reflete na cena novos elementos que não estão presentes em textos que se

configuram como textos literários escritos para a cena e não na cena.

Portanto, para se propor uma análise de espetáculos que nascem deste tipo de

dramaturgia contada e recontada, e somente depois transcrita, como é o caso dos espetáculos

A descoberta das Américas3 e Il Primo Miracolo4, é necessário empreender uma análise

baseada nos elementos da cena e que também constituem a pesquisa e o imaginário do autor.

Como projeção desta concepção ativa da escritura, se levanta uma idéia

correspondente da leitura, entendida, antes que como produto, como atividade em

processo de realização na cena comum da comunicação artística, uma leitura como

praxis capaz de sentir a vibração interna que articula um texto, de voltar a

experimentar o estremecimento que guiou sua criação material, reencontrando-se

com o autor no prazer compartilhado da criação [...]. (CORNAGO, 2005:14,

tradução nossa)5

Como se nutre do improviso e de alguns códigos do antigo teatro para compor

suas obras, os elementos do teatro medieval e seus personagens histriônicos inspiram a

escritura de Fo e merecem um olhar atento, pois inspiram principalmente os seus monólogos,

em se tratando dos procedimentos utilizados pelos “profissionais” da narrativa medieval,

como os giullari.

Apesar da noção de teatro como atividade estruturada ser praticamente inexistente

na sociedade medieval, seus bufões, giullari e histriões compõe uma noção estrutural da

gestualidade do medioevo e renascimento.

O texto literário medieval, tanto do gênero épico ou lírico deixava uma grande

margem de liberdade a adaptadores e executantes, de maneira que podia ser lido, declamado,

3 Com tradução de Julio Adrião e Alessandra Vannucci, do monólogo Johan Padan a la descoverta de le Americhe de Dario Fo, o espetáculo é uma produção do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro) com direção de Alessandra Vannucci e atuação de Julio Adrião. 4 O espetáculo que é dirigido e representado por Roberto Birindelli da Cia do Bebê (Porto Alegre), também foi traduzido pelo próprio ator. O texto original de Dario Fo é o monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino. 5 Como proyección de esta concepción activa de la escritura, se levanta una idea correspondiente de la lectura, entendida, antes que como producto, como actividad en proceso de realización en la escena común de la comunicación artística, una lectura como praxis capaz de sentir la vibración interna que articula un texto, de volver a experimentar el temblor que guió su creación material, reencontrándose con el autor en el goce compartido de la creación [...].

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recitado de modo dialógico ou representado cenicamente segundo a ocasião e as condições

puntuais (festivas, litúrgicas, comemorativas, etc) e até mesmo conforme as disponibilidades

técnicas, materiais e humanas do momento e do lugar. Portanto, em se tratando do teatro

medieval, e até certo ponto do teatro renascentista, falar do texto literário para analisar seus

procedimentos, assim como dos textos de Fo, é acometer-se de um mal entendido, apesar de

que vale sempre destacar que a commedia dell’arte nunca foi o único gênero dominante na

Itália e na Europa no final da Idade Média e Renascimento. Existiam também autores como

Pietro Aretino (1492 - 1556) e Giordano Bruno (1548 - 1600), entre tantos outros, apesar de

alguns textos deste último, filósofo e amante das artes, assim como os textos de outros autores

medievais e renascentistas, terem sobrevivido apenas nos relatos.

Os procedimentos do teatro medieval e renascentista, cerne dos estudos de Fo, não

residem no estudo do texto literário, mas requerem mais que nenhum outro, uma investigação

de seus componentes espetaculares, plásticos e representativos. “Essa tradição popular dos

guitti [cômicos ambulantes] ofereceu a Fo uma técnica codificada que ultrapassa o conceito

de texto-espetáculo”. (VENEZIANO, 2002:124)

Há duas vertentes no teatro medieval em que se manifestam as formas

espetaculares dedicadas ao fazer rir, e nas quais podemos encontrar procedimentos que podem

servir de ponto de partida para a análise dos elementos presentes na escritura das cenas dos

espetáculos que serão analisados: por uma parte a tradição clássica de que são continuadores

os mimos, histriões e giullari , autênticos “profissionais” da diversão em suas mais diversas

bifurcações, e por outra, a tradição festiva popular. Em ambas beberam os gêneros cômicos

que só ao final do medioevo começam a por-se por escrito.

Até fins do século XIV e princípios do XV, quando o humanismo redescobre

obras de Plauto (250 a.C - 184 a.C) e Terêncio (185 a.C - 159 a.C), os únicos indícios claros

do espetáculo antigo durante o medioevo são ostentados pelas habilidades corporais dos

histriões, e por isso, duramente perseguidos sem trégua, e de certa forma, sem êxito, pela

instituição eclesiástica.

A atividade jogralesca é o verdadeiro fio condutor da teatralidade medieval graças

à universalidade de suas técnicas básicas: a mímica, a dança, a música, etc, permitindo aos

seus artífices uma grande mobilidade não só corporal, como geográfica e social.

Os jograis se caracterizarão pelo nomadismo e pela multiplicidade de sua oferta

lúdica, aspectos que lhes facilitarão a possibilidade de transpor fronteiras e de acudir a

qualquer evento festivo. Podemos os encontrar nas festas populares, mesclando-se nas

celebrações religiosas ou alegrando “criticamente” os cortesãos. A multiplicidade da oferta

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lúdica e a capacidade de “ler” e transmitir criticamente, é sem dúvida, o que mais deve

chamar a atenção de Fo, pois requer uma multiplicidade de habilidades presentes em um só

ator, que se apóia em seu próprio corpo e gestual para contar as histórias e aludir aos eventos

propostos.

Numerosas, variadas e contraditórias são essas figuras históricas, ou essas profissões

marginais e divertidas, que, durante séculos, ficaram conhecidas na Itália como

giullari : bufões, menestréis, trovadores, histriões, mimos, saltimbancos, cantastorie,

acrobatas, atores ambulantes, cuspidores de fogo, prestidigitadores, palhaços,

mágicos, bobos da corte. Com certeza, na maioria das vezes, o giullare reunia em si

mais de uma dessas funções, sobretudo em épocas muito remotas, quando ele

poderia, ao mesmo tempo, contar e cantar histórias, fazer malabarismos e compor

seus próprios versos. (VENEZIANO, 2002: 168)

Mas apenas os giullari que cantavam a vida dos santos não “queimariam no fogo

do inferno” segundo clérigos e cortesãos. O ator (mimo, jogral, histrião) é jogado à condição

marginal e infamante, pois ao mesmo tempo que lhe são concedidos os espaços das ruas e

feiras, os espaços sem hierarquias, nos quais lhe dão uma estética propriamente popular e de

gestual grande e teatralizado, lhe negam um espaço específico; e, ao mesmo tempo que lhe

condenam a palavra à censura, lhe condenam a pura corporeidade e a gestualidade com que se

exibe. É duplamente censurado, posto que sua atividade resulta impudica, e por tanto,

improdutiva, pois frente à gestualidade móvel do histrião (signo de efemeridade), estão os

gestos suspendidos e solenes (signo da eternidade) dos atributos da sacralidade, da divindade

ou do poder soberano.

Com a renovação da retórica no ensino das escolas urbanas, durante o século XII,

comportará uma revalorização do gesto, mas moderado do bom orador, em contraposição à

gesticulação excessiva do histrião.

Quando o corpo passa a converter-se em objeto de reflexão, a eloqüência do gesto

é assumida por monges e figuras religiosas, outorgando-se ao mimo e ao jogral um lugar de

ação (no qual serão chamados a atuar em solenidades oficiais) e uma função social que os

levará a um paradoxo: reprimir, por vezes, os jograis que possuíam, a habilidade crítica e, por

outro, a legitimar seu status cultural.

Nas manifestações teatrais durante o medioevo, pouco importava a

verossimilhança do gesto em relação à palavra, mas a forma clara de se aludir ao episódio a

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ser contado. O gesto não inspirava emoção, mas muitas vezes, ilustrava a palavra e, portanto,

se limitava a corroborar o que se estava dizendo.

Já no período quinhentista, o gesto introduz novos significados: já não é um signo

que redunda ao que expressa a palavra, mas se estabelece uma interação entre o código verbal

e o gestual que permite “imitar” mais ajustadamente a atitude do personagem. A interpretação

já não se limita a ser suporte do texto, mas começa a ter entidade própria a partir do momento

que não se cita a ação, mas se realiza. É neste momento que o espectador começa a captar a

emoção do ato.

O conceito de verossimilhança, como a autoridade de Aristóteles, era invocado

como argumento pelos partidos opostos; a relação entre arte e vida constituiu

questão importante no debate quinhentista. Os críticos desse período geralmente

interpretavam o conceito clássico de mimese como semelhança com a natureza, o

que levava, em sua forma mais extrema, à literalização do tempo e do espaço

dramáticos conforme pode ser vista em Castelvetro. [...] A partir da idéia de que um

personagem, se quisesse dar a mais cabal ilusão da realidade, deveria seguir idéias

aceitas de como pessoas de determinada idade, classe e profissão se comportam, o

conceito naturalmente evoluiu para uma doutrina de tipos físicos, consistentes ao

longo de cada obra e até de obra para obra. Ao final do século [XVI], escritores

como Guarini começavam a desafiar essa idéia opondo-lhe a verossimilhança:

qualquer que fosse a idéia geralmente acatada de um tipo, os indivíduos na natureza

nem sempre agem em concordância com esse tipo, de sorte que estilos e tons

contrastantes talvez representem melhor a realidade e, portanto, sirvam melhor à

ilusão dramática. (CARLSON, 1995:51)

A partir do século XVI inicia-se uma tímida vontade de se por em manifesto a

atitude e a emoção que o intérprete impõe ao texto. Para isso, a palavra teve de abandonar um

pouco a sua tendência narrativa e empenhar-se na emotividade, até chegar no jogo de

oposições iniciado com a commedia dell’arte (em que o gesto não acompanha

necessariamente a palavra de maneira lógica) e tão estudado posteriormente por Vsevolod

Meierhold (1894 - 1940), encenador e ator russo em sua biomecânica, por Antonin Artaud

(1896 - 1948) e outros.

Os procedimentos “inconscientes” dos fabulatori da região do Lago Maggiore

(Itália Setentrional), observados por Fo, como a sátira presente nas fábulas paradoxais,

grotescas e irônicas, ganham outros elementos importantíssimos como os pontos de referência

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que traz dos giullari medievais, “pais” dos fabulatori, e dos tipos fixos da commedia dell’arte,

seus Zanni6 e sua teatralidade fundada no gesto.

Fo pesquisará a figura do giullare e trará para seus monólogos sua maleabilidade,

suas músicas, seus ritmos, sua gestualidade, escrevendo sua obra-prima Mistero Buffo, uma

coletânea de textos-solo, na qual fala diretamente sobre a atividade dos giullari medievais.

Oh, gente, venham aqui que tem o giullare! Giullare sou eu, que salta e pirueta e

que vos faz rir, que zomba os poderosos e vos faz ver como são empolados e cheios

de si os orgulhosos que circulam a fazer guerras onde nós somos os explorados, e os

faço desfigurar, lhes tiro a tampa e ...pffs...se esvaziam. Venham aqui que é a hora e

o lugar que eu me faça de palhaço, que vos ensine. Faço um saltinho, faço uma

cançãozinha, faço as brincadeiras! (FO, 1999:73, tradução nossa)7

O que atrai o interesse de Fo é aquele jogral que trabalha para o povo, não aqueles

que eram propriedade de senhores ou que iam trabalhar nos palácios em troca de dinheiro.

Por outro lado, os elementos que atraem em relação aos bufões do palácio são as

formas da ironia e do grotesco com que satirizavam o rei e seus cortesãos, que riam de si

mesmos e se sentiam felizes por serem democráticos.

[...] a commedia dell’arte que interessa a Fo é aquela zanesca, quase obscena e

agressiva do início, combinada à de uma segunda fase, em que a dramaturgia evolui

rapidamente para uma forma plautina de comédia perfeita (até 1600), com a

ampliação do repertório, que incluía também obras ‘sérias’. (VENEZIANO,

2002:112)

6 Zanni eram apelidos dados pelos venezianos aos camponeses provindos do Vale do Rio do Pó, principalmente

da região de Bérgamo. Deriva-se do nome Gianni, Giovanni ou Zanonne. Os Zanni, segundo Dario Fo, foram

levados à falência pelo capitalismo, pois a economia conseguia se desenvolver devido à restauração do trabalho

escravo, e os produtos alimentícios chegavam aos mercados de toda a Itália pela metade do preço, levando os

Zanni a mais completa miséria. Os Zanni são tipos fixos que estão ligados diretamente às figuras do povo, como

os criados, esfomeados, andarilhos, malandros. 7 Oh, gente, venite qui che c’é il giullare! Giullare son io, che salta e piroetta e che vi fa ridere, che prende in

giro i potenti e vi fa vedere come sono tronfi e gonfi i palloni che vanno in giro a far guerre dove noi siamo gli

scannati, e ve li faccio sfigurare, gli tolgo il tappo e ...pffs... si sgonfiano. Venite qui che é l’ora e il luogo che io

faccia da pagliaccio, che vi insegni. Faccio il saltino, faccio la cantatina, faccio i giochetti!

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A gestualidade em Fo, se estrutura não só com o estudo do teatro medieval e da

commedia dell’arte, mas, como diz Neyde Veneziano em seu estudo A cena de Dario Fo: o

exercício da imaginação (2002), o modelo oitocentista, as farsas e os procedimentos do teatro

político também influenciaram suas obras.

A gestualidade dos giullari , a gestualidade exacerbada, teatral em todos os

sentidos da palavra, e a gestualidade do mimo apoiada não no que diz a palavra em si, mas na

sua essência, é o que traz Fo para sua escritura.

A essência do giullare, figura do povo, ou que serve ao povo, é a figura mais

presente em seus monólogos. Seja um Jesus-menino com características absolutamente

humanas ou quase “animais”, sujo e mal-educado, como em Il Primo Miracolo di Gesù

Bambino (1970), no qual Jesus faz seu primeiro milagre para impressionar os amigos, seja

um malandro fanfarrão, que se safa da Inquisição entrando em uma das caravelas de

Colombo, e que realiza todo o tipo de “pequenos milagres” para sobreviver a naufrágios,

tempestades, índios e espanhóis, como em A descoberta das Américas (1991).

A gestualidade do giullare medieval, assim como o giullare di Fo, é a

gestualidade da emergência: da emergência da fome, da sobrevivência, da malandragem. É

uma gestualidade trágica e cômica, mentirosa e verdadeira, cruel e pura, portanto, paradoxal

no sentido mais profundo do termo.

A grande oferta lúdica dos atores antigos que faziam de tudo para sobreviver,

inclusive contar histórias fantásticas de forma fabuladora e com diversos tipos de

manifestações, como acrobacias, canto e dança, é o que as escrituras de Fo exigem de um ator

contemporâneo.

Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo

sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o

próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua

arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores,

instrumentos musicais etc).8

8 Texto escrito e enviado a autora via e-mail por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas,

peça representada por Julio Adrião e produzida por Leões de Circo Pequenos Empreendimentos (Rio de Janeiro),

vide anexo.

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As marionetes também tem papel fundamental na construção da gestualidade da

commedia dell’arte e de toda a tradição do teatro popular, assim como na construção da

gestualidade em Fo.

O autor de um texto excepcional sobre o assunto, Roberto Leydi, nota que grande

parte da mímica e do gestual das máscaras origina-se da articulação motora de

marionetes e fantoches. [...] constatei isso ao ensaiar um andar particular, incluindo

uma seqüência de meias voltas, no qual o súbito afastamento de uma perna e seu

giro ao contrário é a imitação clássica da marionete. (FO, 2004: 44)

Acreditando que a maior estupidez de um intérprete está em não estudar

“conscientemente” os impulsos que o leva a ser bem sucedido em determinadas passagens,

em não fazer o caminho inverso para descobrir os insights capazes de serem codificados e

repetidos, de modo a usar os estereótipos e as convenções de modo eficaz, fabulador e com

ritmo, Fo traz o movimento dos puppi (marionetes), pois a Itália possui uma grande tradição

no teatro de bonecos, tanto dos puppi como dos burattini (fantoches e bonecos de luva), para

lembrar que toda ação pode ser analisada de forma codificada. Para se mover uma marionete

com perfeição e dar-lhe alma, é necessário também conhecer suas articulações, sua estrutura,

seus padrões de movimento possíveis, suas combinações, suas partituras.

A partitura física de ações, apesar de ser um procedimento antigo de estruturação

das ações, é um conceito relativamente novo no que diz respeito ao ator humano no teatro,

mas a marionete desde tempos muito remotos já inspirava estudos detalhados de movimentos

e ações, transmitidos na relação mestre-aprendiz, que poderiam ser menos ou mais

convincentes, para cada tipo de discurso e emoção a ser suscitada.

Como instrumento de estruturação da cena, a partitura funciona como um

esquema diretivo que se baseia em pontos de referência e matrizes de criação, pontos de apoio

para uma elaborada e complexa relação entre dramaturgia do corpo, do texto de palavras e da

própria cena.

O conceito de partitura não é o mais adequado para se relacionar ao teatro de Fo,

pois sua escritura possui um modo distinto de construção, que apesar de possuir estruturas

fixas e repetidas é menos rígido e encadeado, mas é aplicável às ações dos espetáculos

analisados nesta pesquisa, pois a construção da cena em A descoberta das Américas, feita por

Julio Adrião e Alessandra Vannucci, e em Il Primo Miracolo, feita por Roberto Birindelli, é

realizada a partir da construção e montagem de partituras, como veremos mais adiante.

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No teatro medieval, e principalmente, no teatro renascentista, a noção de

estruturação da cena e da improvisação existia, mas não como elementos passíveis de

codificação e sistematização consciente em forma de partitura. A gestualidade estruturada a

partir do recorte de partes do corpo, como mãos e rosto, para redirecionar o olhar do público,

o exagero, a repetição de situações e a utilização do corpo como um todo para narrar a estória

estão na base da corporalidade deste tipo de teatro.

A reteatralização da gestualidade, a crítica através da sátira e do grotesco, o

improviso e os elementos acidentais incorporados à cena (como também faziam os

fabuladores do Lago Maggiore em sua contação), os movimentos dos bonecos, marionetes e

fantoches (Puppi e burattini), o paradoxo, os personagens-tipo carregados de atributos

hilariantes (elementos presentes no teatro medieval e renascentista, e nos quais se apoiam as

manifestações do teatro popular), somam-se a elementos também presentes neste tipo de

teatro e fundamentais para a construção dos textos (espetacular e narrativo) dos monólogos de

Fo: a narrativa que transita entre a primeira e a terceira pessoa, na qual os atores contam as

histórias como se tivessem participado ativamente delas (técnicas de contação de histórias), a

simultaneidade de personagens (em uma troca quase simultânea de máscaras9), a visão a

partir da ótica do povo, o espaço vazio e a comunicação direta com o público.

É a partir da análise destes elementos presentes na escritura, principalmente dos

monólogos de Fo, que estabeleceremos relações entre as ações propostas pela dramaturgia de

A descoberta das Américas, espetáculo interpretado por Julio Adrião10 e dirigido por

Alessandra Vannucci11, e de Il Primo Miracolo, espetáculo de Roberto Birindelli12, e os

elementos estruturais das ações e partituras físicas dos espetáculos encenados, propondo uma

relação entre corpo, cena, dramaturgia.

9 Máscaras, neste caso, são as expressões faciais que caracterizam os personagens. 10 Vide apêndice - breve curriculum e entrevista. 11 Vide anexo - breve curriculum e textos inéditos. 12 Vide apêndice - breve curriculum e entrevista.

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1.2 Falar sem palavras: a gestualidade e o grammelot

Os commici dell’arte, assim como alguns giullari e bufões medievais, não

utilizavam a língua materna para se comunicar na cena, mas uma outra inventada a partir de

vários dialetos existentes (principalmente na Itália), sílabas e onomatopéias sem nenhum

significado direto, a qual denominavam grammelot. Uma das hipóteses para explicar o uso

desta linguagem diferenciada, é a de que partes fundamentais do texto poderiam ser captadas

por um número maior de pessoas, e assim, cada região entenderia uma parte fundamental do

discurso, proporcionando uma maior mobilidade geográfica dos atores ambulantes.

Alguns ainda atribuem à censura parte importante na construção da linguagem do

grammelot, pois como entendia-se a essência do tema através da gestualidade e ações dos

atores, a igreja, os reis ou aristocratas, não poderiam comprovar a existência de trechos que os

criticavam, ou que de alguma forma, não eram interessantes para suas imagens ou para algo

ou alguém que protegiam. Outros atribuem a criação do grammelot a sociedades anteriores ao

período medieval, mas o importante neste momento, é entendermos o mecanismo da

linguagem do grammelot e o que ele suscita em relação à comunicação gesto-palavra.

Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’Arte e

italianizada pelos venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir

um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do

discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com

arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e

sonoridades particulares, um discurso completo. (FO, 2004: 97)

A chave principal para compreender a relação gesto-palavra que nasce a partir do

grammelot e dos dialetos, é entender que a assimilação da narrativa é tanto maior quanto mais

simples e claros forem os gestos que os acompanham. Essa clareza e simplicidade dos gestos

contribuem para uma síntese da gestualidade, em que o gesto deve captar a essência do que

diz o texto de palavras e utilizar o absolutamente necessário para a compreensão da ação a ser

executada.

A utilização da inteligência gestual e da agilidade corporal com o fim de atingir uma

síntese expressiva ganhou grande impulso a partir da invenção da tagarelice

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onomatopéica que, junto com a pantomima, determinou o feliz nascimento de um

gênero, e de um estilo único e inigualável: a Commedia dell’Arte. (FO, 2004:106)

Em primeiro lugar, Fo em quase todos os seus monólogos, informa através do

prólogo, o tema a ser desenvolvido e, a partir daí, acrescenta elementos-chave capazes de

demonstrar, por meio de ação gestual e sonora, o conteúdo e a essência das palavras.

Quando um autor inventa e constrói uma língua, é por que não está satisfeito com

a que tem a sua disposição. A língua inventada é construída nos vazios da que é falada, tendo

a língua materna como matéria-prima, mas contra ela, pois a mina por dentro e, expressando o

sofrimento da língua, lança uma luz insólita sobre o território dramático. Ilumina suas

insuficiências comunicativas e preenche seus hiatos em busca de uma conciliação entre a

língua e o corpo. Esta reconstrução da língua cria condições para uma forte teatralidade

elaborada neste “sofrimento” da conciliação.

[...] O dialeto mais arcaico era aquele dos velhos de alguns lugares onde não se

permitia, absolutamente, italianizar o dialeto, como acontece agora. Eles,

evidentemente, conheciam as formas idiomáticas, as metáforas e a própria estrutura

desta língua. Assim, eu aprendi a estrutura do dialeto, que é diferente de falar o

dialeto; sobretudo, aprendi a estrutura de uma língua primordial, íntegra. São essas

estruturas que se encontram nos meus monólogos teatrais. (FO apud ALLEGRI

apud VENEZIANO, 2002:81)

Trata-se de arejar a própria língua através do conhecimento de suas matrizes e de

suas raízes. Como diz Gilles Deleuze em outro contexto,

[...] ser bilíngue, mas em uma só língua, em uma língua única... Ser um estrangeiro,

mas em sua própria língua... Gaguejar, mas sendo gago com respeito a própria

língua e não somente com respeito a palavra... [...] É impor a língua, a todos os [sic]

elementos interiores da língua, fonológicos, sintáticos, semânticos, o trabalho da

variação contínua. (DELEUZE, 1979: 88-89, tradução nossa)13

13 [...] ser bilingüe, pero en una sola lengua, en una lengua única... Ser un estranjero, pero en su propia lengua... Tartamudear, pero siendo tartamudo com respecto a la lengua misma y no solamente com respecto a la palabra... [...] Es imponer a la lengua a todos los [sic] elementos interiores de la lengua, fonológicos, sintácticos, semánticos, el trabajo de la variación continua.

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Desta forma, a maior parte das escrituras de Fo traduzidas do grammelot para a

língua italiana formal, em sua maioria por sua esposa Franca Rame, apesar de estranhamente

se transformarem em textos literários sem muita similaridade com o texto contado em

grammelot, guardam resquícios desta linguagem, no sentido de algumas frases apenas

sugerirem a situação a ser desenvolvida, como veremos mais adiante na análise dos

espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo.

A opção pelo grammelot, mais do que um efeito cômico mostra o empenho de Fo

numa outra gramática cênica em que o gesto seria, então, o complemento absoluto

da palavra. Não se trata aqui da construção de uma partitura gestual para o ator ou

para o espetáculo. Trata-se de uma gestualidade inseparável da língua. Ou seja, o

gesto faz parte do texto, no qual palavra e gesto são de igual importância como

material da dramaturgia: o gesto com valor de palavra, e os sons com cor, ritmo e

valor de gesto – ações conjuntas que resultam em algo concreto e figurativo.

(VENEZIANO, 2002:185)

Para Fo, a gestualidade deve ser desenhada como num quadro, inclusive sua

progressão, mesmo sem palavras inteligíveis, pois mesmo em culturas diferentes adquirimos

uma quantidade infinita de noções de linguagem e comunicação comuns, mesmo que, por

vezes, seja necessário pronunciar algumas palavras-chave com clareza.

Fo, em o Manual Mínimo do Ator (1998), descreve sobre uma passagem onde

mima o vôo de um corvo em seu momento mais dramático. Primeiro, Fo demonstra toda a

movimentação do corvo sugerindo uma guinada. No segundo vôo, ele repete acentuando

momentos e o ar pesado, onde segundo ele, as repetições quase se sobrepõem.

No que se refere à opção de Dario pelo dialeto ou pelo grammelot, convém

examinar, mais atentamente, a mecânica de seu sistema de comunicação, que

combina sempre uma dessas “línguas” (grammelot e dialeto) a uma terceira: a

linguagem corporal. Juntas, elas resultarão num espetáculo rico de imagens

concretas. (VENEZIANO, 2002:184)

No espetáculo Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli se utiliza de sons

onomatopéicos para substituir partes que seriam narradas repetidamente:

[...] Por exemplo: “o menino quebrou os meus briquedos”. Como eu já havia dito, eu

usei um código: “Pacapatcha, Pacapatcha” [faz gestos referentes a brinquedos

quebrados]. No momento em que ele chora, por que vamos combinar uma coisa:

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precisa entender um menino que chora? Então: “biquibi, bipabá” [e faz gestos de um

menino que chora]. E quando ele explica do cavalo: “diquidi, diquidi, diquidi” [faz

gesto de cavalgada]. Então é a ação vocal. Ninguém em quinze anos disse que não

havia entendido. 14

O ator Julio Adrião, em A descoberta das Américas, através de onomatopéias,

ação vocal e gestual, materializa lutas épicas entre índios e espanhóis.

Fig. 1 A descoberta das Américas

Foto: Maria Elisa Franco

Os elementos que relacionam a corporalidade de Fo ao grammelot e aos dialetos

são sons onomatopéicos, gestualidade limpa e evidente, timbres, ritmos, coordenação,

recortes, repetição, e principalmente, uma grande síntese.

[...] a síntese expressa por meio de estereótipos com variações nítidas constitui uma

técnica já utilizada nas pinturas ânforas gregas e etruscas, assim como nos afrescos

de Giotto que retratam a vida de São Francisco ou de Cristo em uma seqüência de

imagens, considerados por alguns como as mais belas histórias em quadrinhos da

história da arte. (FO, 2004: 101)

À síntese gestual que suscita o trabalho com o grammelot, Fo acrescenta o trabalho

que empreende com as máscaras, também fruto de seus estudos sobre a commedia dell’arte e

cerne dos estudos de grandes nomes que trabalharam ou trabalham com a mímica e a

pantomima como Etiènne Decroux (1898 - 1991), Jacques Copeau (1879 - 1949) e Jacques

14 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora em 2007, vide apêndice.

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Lecoq (1921-). Este último fez a preparação corporal do elenco da Revista Il dito nell’occhio

(1953), na qual Fo era um dos atores principais.

A máscara impõe uma síntese do gesto, envolvendo a gestualidade corporal na

íntegra. Pois, se para atingir um certo efeito realizarmos uma multiplicidade

descabida de gestos, vamos estar apenas destruindo o valor do próprio gesto. É

necessário a seleção dos gestos e a consciência dos mesmos. O movimento, a atitude

geral, a colocação do corpo devem ser ponderados e essenciais. A síntese é um

elemento que está na base da commedia dell’arte e do teatro oriental. A máscara

também funciona como o impedimento de toda e qualquer mistifição. (FO,

2004:62)

Mais adiante:

A máscara serve para agigantar e, simultaneamente, fazer uma síntese do

personagem, conferindo uma ampliação e desenvolvimento do gesto. Esse gesto não

deve ser arbitrário, para que o público, o imediato reflexo do ator, possa acompanhar

com total compreensão o discurso, principalmente quando se trata de um efeito, uma

gag ou um fecho cômico. (FO, 2004: 63)

A máscara provoca os recortes da imagem chamada por Fo de “objetiva”, pois

recorta a visão do espectador, na qual uma atitude psicológica é imposta para que ele

enquadre diferentemente as imagens produzidas pelo ator. É uma atitude que parte da ação do

ator, na qual o espectador é condicionado a privilegiar uma particularidade ou a totalidade da

ação.

Esse recurso utilizado no cinema, faz com que o ator consiga direcionar o olhar do

público para uma parte de seu corpo ou para onde ele julgar mais importante para a

compreensão do ato, da cena ou da situação.

A máscara elimina o elemento fundamental da mistificação: o rosto e toda a sua

gama de estereótipos e clichês. O corpo do ator pode ser comparado ao da marionete, pois

precisa se exprimir com toda sua articulação e possibilidades de movimento total. Neste caso,

a máscara desloca para o restante do corpo a função significativa e comunicativa, levando

para pernas, pés e tronco, a mesma responsabilidade atribuída ao rosto.

Somente quando o restante do corpo adquire a mesma carga expressiva do rosto é

possível trabalhar com o recorte e com a síntese, pois a parte do corpo “recortada” e colocada

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em evidência não parecerá inexpressiva ou deslocada do resto, e a multiplicidade de gestos

transformados em síntese, serão suficientes para comunicar.

“[...] a síntese é a invenção que impõe a fantasia e a intuição ao espectador. É a

maneira de conceber a representação da grande tradição épica popular: limar todo o supérfluo,

toda a descrição entediante.” (FO, 2004:175)

É importante ressaltar que a síntese utilizada na obra e na escritura de Fo, não é o

recorte do essencial para o desenvolvimento da cena somente, ou um recorte explícito da

gestualidade para o essencial da expressão do corpo (o que suscita as máscaras e a construção

da linguagem do grammelot), mas também a síntese da própria cena (que não tem

necessariamente relação com a sintetização do gesto em si), que associada a uma seqüência de

repetição gradual se estabelece como um recurso cômico de altíssimo efeito. Este recurso

utilizado para demonstrar o resumo da cena é uma solução cômica das mais originais do teatro

de variedades, dos clowns e da commedia dell’arte.

Na encenação de Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli explica à platéia no

prólogo de seu espetáculo, quem são os personagens e demonstra as atitudes gestuais, o andar,

ou o jeito de cavalgar dos três Reis Magos para que o público consiga identificar cada

personagem através de uma seqüência de gestos. A partir daí, ele estabelece uma

comunicação direta com o público, na qual o ator repete as atitudes de todos os personagens

de forma resumida e muito mais rápida, sem explicar, falando apenas algumas palavras

principais. O público em uma mistura de prazer e surpresa identifica as atitudes das

personagens durante o espetáculo e ri abundantemente.

Figs. 2 e 3 Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Video Produções

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No espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião utiliza o recurso de

sintetização da cena ao mimar uma seqüência de “costura dos índios”, na qual, depois de um

massacre empreendido por inimigos, o Pagé pede a Johan Padan, “exímio costurador de

velas”, que o salve e salve também sua tribo que está toda mutilada e caída aos seus pés. O

ator mima e explica todas as ações que utiliza para desinfetar, arrumar os órgãos dentro do

abdômen e costurar. Quando passa para o segundo índio, ele repete todas as ações de forma

mais rápida pronunciando apenas as palavras principais. Do terceiro índio em diante, ele

mima utilizando apenas onomatopéias com um ritmo cada vez mais acelerado. Esta cena

compõe uma das passagens mais cômicas do espetáculo com uma construção de partituras

recortadas e sobrepostas que analisaremos mais profundamente no terceiro capítulo. Esta cena

foi desenvolvida pelo ator a partir de um parágrafo presente no texto, na qual a personagem

Johan Padan vai até sua cabana, pega linha e agulha para costurar velas, arruma os órgãos

dentro da barriga do Pagé e o costura. Na escritura de Fo, esta cena de quase oito minutos

executada pelo ator Julio Adrião, é apenas um parágrafo indicativo. Neste tipo de seqüência,

“as posições de maior efeito devem ser repetidas em imagens inalteradas, geradas pelos

diferentes casos que compõe as variantes do tema.” (FO, 2004: 101)

Não podemos esquecer, também, que há contínuas referências a sequências e

palavras já conhecidas. Somente os pontos essenciais são indicados, o restante é

atirado fora com grande velocidade, como se fosse picado no interior de um grande

moedor de palavras, sem pausas nem respirações. (FO, 2004: 245)

No caso da síntese da cena, as seqüências são cortadas e compactadas, causando

também uma compactação do tempo, e por isso, uma quebra do tempo da representação ou da

unidade de tempo, enquanto distinção da temporalidade do acontecimento da cena. O que é

desenvolvido, neste caso, é a situação como recurso cênico e cômico, independentemente de

sua verossimilhança relativa ao tempo da representação, pois ao tempo real, a representação já

é fatalmente inverossímil.

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1.3 A Situação

Uma das formas mais maduras surgidas na Idade Média do gênero cômico é a

farsa. Entretenimento que não pretendia nem edificar, nem instruir, mas fazer rir, toma os

temas da realidade cotidiana, e seus personagens não são indivíduos ou alegorias que

representam vícios e virtudes como nos Mistérios Medievais, mas tipos (o marido traído, a

mulher astuta, o malandro esperto). Mais que uma intriga, a farsa desenvolve situações ao

redor da autoridade, das funções naturais, dos defeitos físicos e intelectuais ou da astúcia.

O texto da farsa não é mais que um apoio, pois o verdadeiramente desencadeante

do riso é a fantasia gestual e mímica e os movimentos de corpo que acompanham a palavra,

ponte específica com o trabalho de pesquisa de Fo e que se estabelece em seus textos.

Os lazzi15, com suas situações cômicas do “teatro menor” impulsionam uma nova

visão para a gestualidade nas farsas populares, no teatro de variedades, nos espetáculos de

clowns e dos mimos. A hierarquia que enumerava a importância dos gêneros, principalmente

até o século XIX, geralmente começava com a tragédia, o drama, descendo para a comédia e

transformava em ínfimos o teatro de bonecos e os clowns que possuem sérios predecessores

como os jograis das atelanas e farsas antigas.

Um dos principais elementos que Dario Fo pinça do teatro popular, foco de seus

estudos práticos e teóricos, e que está presente em todos os seus textos, sejam monólogos ou

não, é a situação e o entendimento desta situação como o ponto principal para atrair a atenção

do espectador.

Na terceira jornada de seu Manual Mínimo do Ator (1998), Fo pergunta o que

significa situação, e responde: “Significa a estrutura básica que faz evoluir a trama narrativa,

envolvendo o público por meio da tensão resultante e que o torna participante das reviravoltas

do espetáculo.” (FO, 2004:147) Mais adiante, na mesma página, Fo simplifica: “[...] é o

mecanismo existente na narrativa pelo qual o espectador é capturado e grudado à poltrona”.

Dario Fo conhece bem os mecanismos da situação e inclusive os utiliza na

estrutura de seu livro Manual Mínimo do Ator, fazendo dos capítulos curtos e da separação

em jornadas, uma sucessão de situações reais ou fictícias (características do racconto) que dão

15 Os lazzi (laços), são as chamadas gags dos personagens-tipo da commedia dell’arte, uma série de intervenções

velozes, estudadas, que incluem paradoxos, nonsense, em meio a simples quedas, tombos e cambalhotas.

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suporte para as suas teorias e recorre à imaginação do leitor através da exemplificação por

imagens narradas, assim como em seus textos dramatúrgicos.

Fo cita Hamlet como uma “máquina de situações”, que mesmo encenado por

companhias ruins, mantém intacta a atenção do público pela habilidade que William

Shakespeare (1564 - 1616) possuía de contar uma estória através de situações bem definidas.

As situações são a estrutura que faz vivos os textos de grandes autores como

Shakespeare, pois desconectando trechos dos textos mais famosos, como Romeu e Julieta,

Hamlet, Sonho de uma noite de verão, das situações em que se encontram apoiados,

encontramos frases totalmente nonsenses. Então o que faz de Shakespeare, Molière (1622 -

1673), Eugène Labiche (1815 - 1888) e Jean Racine (1639 - 1699) grandes dramaturgos, é a

habilidade de trabalhar e desenvolver as situações. A partir dela, geram-se armadilhas,

equívocos, subterfúgios, enganos e mal entendidos que ressaltam o jogo teatral e prendem o

espectador à estória contada.

As situações são elementos estruturais não só da comédia, mas também da

tragédia, assim como a troca de identidade, travestimentos, equívocos e reviravoltas.

Trocando a situação, podemos fazer de uma cena absolutamente cômica, uma

tragédia, e vice-versa, pois a situação é determinante no significado absoluto da ação mímica,

alterando completamente o sentido de todos os gestos.

A troca de situações é um recurso muito utilizado por Fo em suas escrituras,

principalmente nos monólogos, nos quais cenas são repetidas igualmente modificando a

situação em que elas se inserem como recurso de grande efeito cômico e que necessita de uma

habilidade singular do ator executante.

Por vezes, a escolha de inverter situações é própria do ator que representa um

monólogo de Fo, como no caso de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo e Julio Adrião em

A descoberta das Américas, os quais criam situações e inversões que não se encontram

sugeridas no texto original ou não foram executadas por Fo em sua contação.

O diferencial das situações nos monólogos de Fo, é que estas são apresentadas e

modificadas pelos próprios atores e suas ações. Um ou dois olhares para o público transforma

a situação de imediato. A mudança é preparada através de uma comunicação direta com o

público, como se fossem “apartes”. Em um gesto de envolvimento, no qual o público é

convidado a se colocar em uma cumplicidade imediata, através de um olhar para o lado, os

atores comunicam que há mais personagens em cena. De repente, mimam ser empurrados

pelo personagem que acaba de entrar na estória.

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O próprio personagem ou o ator-narrador é quem faz a mudança de situação e

introduz o tom da narrativa que virá a seguir. Este exercício de imaginação no qual o público

vai sendo envolvido é que finaliza a construção das situações “incompletas” de Fo, no qual a

percepção do espectador termina de desenhar o significado geral da estória, portanto, distinto

como o olhar de cada um.

Na commedia dell’arte o jogo de situações era tão variado, que podia-se obter

diferentes histórias a cada apresentação baseando-se no mesmo tema, personagens e situação

inicial. Como os commici possuíam uma bagagem incalculável de gags, diálogos, ações e

situações experimentados de diversas maneiras (por isso, no momento certo as inseriam dando

a impressão de improvisarem o tempo todo), já sabiam onde e como aconteceriam as

mudanças. A partir de uma seqüência era possível fazer inúmeras variações modificando o

tempo e a progressão. O jogo dos encaixes era feito com facilidade, pois já haviam sido

repetidos várias vezes em diversas situações.

Os fabulatori, no caso de Dario Fo, também trouxeram a ele o entendimento da

situação. Fo ouvia a mesma estória recontada uma dezena de vezes em diferentes momentos,

e percebia que a capacidade de quem recontava, consistia em adaptar a estória às situações

diferentes da crônica em si, compreendendo os fatos locais e os personagens da vida real.

Dependendo da mudança da situação, o clima físico e psicológico era modificado, não

perdendo de vista a importância da audiência e nenhum elemento acidental.

Depois de sua passagem pelo cinema, no qual as estórias paradoxais de seus

personagens, que beiravam o nonsense, não sobreviveram ao realismo, Fo e Franca Rame, sua

esposa, fundaram sua própria companhia: a Compagnia Teatrale Fo – Rame. Nesta

companhia, Fo redescobriu as farsas como exercício para entender o mecanismo da narrativa

teatral. A farsa já possuía, por si só, uma característica de síntese e de situações independentes

e sobrepostas, recortando e remontando os mecanismos da comicidade de situações.

As comédias que lembravam Labiche e Molière eram repletas de situações

paradoxais e qüiproquós, adultérios, enganos, equívocos. Estas farsas eram destinadas ao riso

e apesar de não abarcarem críticas políticas explícitas como aconteceria mais adiante em seu

teatro, percebia-se uma leve crítica à burguesia dominante. Por trás dos enganos e confusões,

a estrutura elaborada a partir de modelos antigos como a triangulação, revelava o jogo de

situações e personagens através de estórias absurdas.

A companhia da Família de Franca Rame era um exemplo de companhia

mambembe que girava pela Itália apresentando várias peças em um mesmo dia, passando do

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drama ao melodrama e a farsa, misturados aos fatos da vida real, próximos ao circos-teatro

que fizeram muito sucesso no Brasil até a primeira metade do século XX.

Fo inspirou-se no trabalho da família de Franca, que persistiu por décadas a fio, e

desse teatro popular para desenvolver também seus estudos sobre a situação. A farsa

desenvolvia uma situação cômica que poderia partir de um simples fato ocorrido. Então a

partir de uma espécie de canovaccio (roteiro pré-estabelecido), uma gama de situações

sobrepostas eram desenroladas à frente do público e uma mesma situação poderia ser

desenvolvida de inúmeras maneiras.

Para impostarmos corretamente uma história que desejamos improvisar, é

conveniente revelar o argumento que queremos desenvolver, em seguida, o espaço

cênico onde irá se desenvolver o fato dramático ou cômico, e, por fim, é

fundamental deixarmos evidente a situação e os motivos. (FO, 1998: 292)

Esta técnica de desenvolvimento das situações diferencia-se muito da dramaturgia

convencional, pois é a cena em si, a ação dos atores, que determina a escritura, assim como os

outros elementos do espetáculo, como o figurino, as luzes, as pausas, o ritmo, ou seja, os

outros tipos de dramaturgia presentes no espetáculo.

As situações aparentemente simples impulsionam o desenvolvimento de inúmeros

equívocos, situações de encaixe, gags, e como em todas as farsas de Fo, impossibilitam

qualquer tipo de identificação.

Das farsas, Fo levou para outros textos, monólogos ou comédias políticas, um

estilo antinaturalista, aproximando-se de uma linguagem surreal, paradoxal e alegórica,

reforçando sempre a frase que diz no seu Manual: “em teatro, somente o falso é

autenticamente real.” (FO, 2004:314)

Em Il Primo Miracolo, monólogo que analisaremos nesta pesquisa, o Menino-

Jesus (sujo, maldoso e brincalhão, como qualquer criança de sua idade) faz seu primeiro

milagre para ser aceito pelos amiguinhos. Em A Descoberta das Américas, um malandro

fanfarrão, para fugir da Inquisição e da miséria, entra em uma das caravelas de Colombo que

parte para descobrir as Índias. Estas são as situações iniciais a serem desenvolvidas e que

darão suporte para o desenvolvimento cômico da narrativa.

Como a progressão cênica em Fo nasce de uma situação pré-estabelecida a ser

desenvolvida, ele estabelece uma espécie de processo colaborativo com o público, no qual a

escritura cênica faz um caminho contrário ao do teatro tido como tradicional e próximo ao do

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Teatro Físico16 ou de linha física mais enfática, nos quais as ações que partem do corpo do

ator e das reverberações que as reações do público imprimem neste corpo, é que reescrevem a

obra.

16 Termo criado primeiramente para designar o teatro de Eugenio Barba, foi cunhado na Inglaterra na década de

70 para designar um tipo de teatro híbrido, pois mistura em sua composição distintas linguagens, como dança,

teatro, circo e performance. O Teatro Físico encontra-se em uma zona fronteiriça entre as linguagens que as artes

cênicas abarcam, e possui um tratamento diferenciado do texto, pois este, é fisicalizado por ações exuberantes.

Quando há texto de palavras ele é construído em um processo colaborativo entre atores, diretor e público, que

constitui, apesar de muito distinto, a mesma ordem do trabalho de Fo: ações- improvisações- contato com a

audiência- codificações das ações escolhidas- repetições – texto “fixado”.

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1.4 O autor-ator: o improviso e o processo colaborativo entre ator e público

Dentro da perspectiva em que a fala é entendida como uma ação convencional ou

não, a composição lingüística do texto teatral, concebido para ser dito, pode ser entendida

como uma composição física.

Se a fala constitui uma ação com respectiva conseqüência, podemos dizer que as

relações de força que se desenvolvem na interlocução entre os personagens (eixo interno da

comunicação teatral) e a obra, são indissociáveis.

Assim como existe na antropologia teatral de Eugenio Barba (1936-) e seus

seguidores, um nível pré-expressivo no qual se verifica as diferentes unidades da composição

corporal, no drama, texto escrito ou falado, há um nível pré-expressivo no qual se identifica a

organização dinâmica do discurso. O nível pré-expressivo da composição física é qualificado

pela modulação da energia corporal, e o nível pré-expressivo do drama é qualificado pela

modulação da força performática da palavra na relação com os interlocutores, e

posteriormente, com o público.

A fisicalidade da palavra no caso do teatro de linha física, como o teatro de Dario

Fo, em que a escritura se confunde com a obra encenada, está no dinamismo implícito no

discurso das personagens. Este dinamismo do discurso se deve a vários elementos, mas

principalmente ao fato de o texto falado, muitas vezes, ser pensado na cena, e não fora dela.

O discurso das personagens parte da ação e do momento presente, no qual o ator

executa a fala e não somente a diz.

Quando Dario Fo conta uma estória sem se preocupar com a palavra em si, mas

com a essência desta, seu significado próprio e as ações que elas suscitam, ou com o que as

fazem mais claras, suas palavras se impregnam de uma fisicalidade particular. Elas ganham

corpo, pois são seu próprio corpo e pensamento que encontram a melhor maneira de dizê-las,

como acontece com Roberto Birindelli e Julio Adrião, intérpretes dos espetáculos Il Primo

Miracolo e A descoberta das Américas.

O diferencial que se expressa no dinamismo do discurso, é justamente o contrário

do processo que acontece na apropriação de um texto literário no teatro tido como tradicional,

pois neste, a palavra é decorada antes de ser inserida na cena. Isto não quer dizer, que a

palavra no teatro tradicional não possa se tornar ação física e vocal, mas os mecanismos que a

fazem tornar-se orgânica, ou crível, são diferentes.

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No teatro tradicional, principalmente do século XIX, no qual as ações se tornam,

por vezes, a ilustração do texto, este é decorado e acoplado às ações compostas por atores e

diretores da obra, e passam a se tornar críveis a partir do momento que elas são codificadas e

repetidas até adquirirem organicidade e tornarem-se uma só coisa: ação física indissociável.

No caso da escritura de Fo, principalmente nos monólogos, as palavras que já

foram transcritas, invariavelmente, já foram ditas. Isto faz com que a escritura de Fo contenha

seu ritmo particular, suas cadências e suas ações, mesmo que estas estejam apenas sugeridas,

como veremos no segundo capítulo na análise dos espetáculos.

O improviso que se estabelece a partir do imprevisto, do momento presente, do

contato com o diretor (quando este está incluído no processo) e com o público, é um elemento

importante que se transfere da ação para o texto.

O Teatro Físico, assim como diversos tipos de teatro que possuem uma linha

física mais enfática, utilizam a improvisação direcionada por temas para a construção do texto

dramatúrgico. Depois de improvisadas, as ações são repensadas na cena, revistas, codificadas,

repetidas, e só então, transcritas. O texto de palavras nasce durante o processo e comporta

diversas individualidades, pois é escrito pelos atores, pelo diretor e indiretamente pelo público

que interfere nas ações do espetáculo através de suas reações. Este processo, apesar de antigo,

é chamado de processo colaborativo, um termo absolutamente contemporâneo, se

constituindo como um processo singular no que diz respeito à relação corpo-palavra.

Em seu livro Caos/Dramaturgia, Rubens Rewald pensa o processo colaborativo

como um sistema complexo, que se reorganiza à medida que vem sofrendo interferências e

“ruídos” dos próprios atores envolvidos no processo, do diretor e do público. Estes “ruídos”

aleatórios ou provocados, podem levar o texto e o espetáculo a caminhos absolutamente

imprevistos. O objeto deixa de ser estável e passa a exigir uma mudança de percepção, “pois

na medida que não há um texto final definitivo, ele está sempre aberto a modificações e

experimentações.” (2005: XIV)

Apesar de o autor do livro ter analisado um tipo de processo em que o autor é ao

mesmo tempo espectador, e se encontra fora do processo de experimentação das ações, o

dramaturgo pode ver cenicamente o resultado de sua escrita (pelo desempenho dos atores e

diretor, do processo criativo dos outros profissionais envolvidos na confecção da obra, das

respostas destes aos estímulos lançados pelo autor e dos elementos acidentais) e reescrever o

texto.

No caso de Dario Fo, o autor encontra-se dentro do processo de experimentação

prática das ações, mas também está suscetível aos ruídos aleatórios ou provocados por ele

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mesmo, ou pelo público, assim como os atores dos espetáculos analisados, exigindo também

um constante retrabalhar não só do texto de palavras, mas do texto de ações. Neste caso, um

“ruído”, que seria um evento aleatório inesperado (como a incompreensão de informações por

parte do público) ou uma “flutuação” (como incidentes provocados pelos próprios atores),

pode causar um pequeno “movimento” dentro do processo que não o afeta, ou “pode

impregná-lo de tal forma que o tire do equilíbrio, originando uma crise, e obrigando-o a se

rearticular, em um novo estado de equilíbrio, diferente do anterior.” (REWALD, 2005:23)

Dario Fo e Franca Rame, por vezes, provocam incidentes para extrair uma reação

do público e fazer alguma improvisação já lançada como hipótese anteriormente e

minuciosamente estudada. Depois disso, a improvisação é reescrita de uma maneira que mais

se insira no texto.

“1.Incidente (previsto ou provocado) > 2. Revelação ao público do incidente > 3.

Improviso > 4. Estudo posterior > 5. Retomada e adaptação ao texto-espetáculo.”

(VENEZIANO, 2002:199)

Utilizando recursos de vídeo ou gravações do áudio, Fo identifica os incidentes

eficazes, incorpora-os ao texto e descarta ou reescreve trechos que não funcionam na cena.

Se o espetáculo fica em cartaz por muitos anos, o público vai se diferenciando e se

torna necessário modificar as pausas, os ritmos e até as palavras, para melhor comunicar a

estória.

Os commici dell’arte, como ficaram conhecidos os atores cômicos ambulantes do

renascimento, utilizavam o improviso para criar suas ações, e só depois repetí-las e codificá-

las, mesmo que este processo não fosse absolutamente consciente. Apesar do tratamento sério

dado à improvisação, os commici ficaram estigmatizados como improvisadores livres. Apesar

de calcarem seu trabalho na ação, o texto de palavras também era pensado anteriormente

através de uma seqüência de escaletas ou canovacci (roteiros).

A Commedia del1’arte é também chamada de comédia de atores, pois

“De fato, o jogo teatral se apoia em suas costas: o ator histrião é também autor,

diretor, montador, fabulista. Passa indiferentemente do papel de protagonista para o de

“escada”, improvisando, esperneando continuamente, surpreendendo não só o público,

mas inclusive os outros atores participantes do jogo. (FO, 2004: 23)

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Fo sempre referiu-se a commedia dell’arte como a propulsora de seus interesses

no estudo da gestualidade, mas analisando as obras de vários pesquisadores, ainda assim,

encontrou preconceito em relação a este teatro que para uns é pura fantasia e improviso livre.

‘Nada de texto (literário – dramatúrgico) nada de arte.’ Mas não vamos nos

envolver em polêmicas, pelo menos neste instante. É suficiente para contradizê-lo a

exposição de um argumento que não se origina da literatura de textos, mas

principalmente da prática: a commedia dell'arte se baseia na combinação de diálogo

e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima.

(FO, 2004: 22)

Explorar um incidente ou casualidade de um acontecimento, insere-se antes

mesmo da tradição da commedia dell’arte nos procedimentos dos jograis medievais,

chegando aos clowns e ao teatro de variedades de várias épocas. Esta permeabilidade que se

estabelece entre ator e público é uma das principais características do teatro popular,

independentemente de época e lugar.

Os cômicos, nunca utilizam as mesmas palavras em cada apresentação de suas

comédias, inventando toda vez, aprendendo antes a substância, depois transmitindo

por velozes fios condutores e nós apertados, gerando assim uma forma livre, natural

e graciosa. (FO, 2004: 106)

A incursão de Fo no Teatro de Revista italiano em Il dito nell’occhio trouxe a

experimentação de novos mecanismos que influenciaram sua vida artística e seus trabalhos

posteriores, como a adoção de “tipos inéditos”, as alegorias, a realidade e a atualidade no

cerne das situações, e principalmente, baseando-se em um antigo recurso do teatro popular,

colocou o trabalho de direção e da elaboração do texto, como um resultado coletivo de criação

do espetáculo.

Nesta tradição das famiglie d’arte, onde todos eram um pouco atores, autores e

diretores, é redefinida a função do autor-ator:

Essa formação de ‘autor-artista’, Dario Fo a desenvolveu a partir de três modelos

gerais:

1. o modelo medieval, revisto à luz da comicidade;

2. o modelo da commedia dell’arte e, posteriormente, molieneresco;

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3. e o modelo oitocentista, que ele revestiu com toques de ‘absurdo’.

(VENEZIANO, 2002:111)

O modelo oitocentista e a tradição da commedia dell’arte ensinaram a Fo a arte do

improviso, cerne do processo colaborativo de construção do espetáculo. Estudando a família

de Franca, Fo descobriu que a família fazia uma pesquisa sobre a cidade na qual iria se

apresentar, e estudava o momento político e histórico em que a cidade se inseria, mas a partir

de uma escaleta, entrava em cena somente com diversas situações já experimentadas em sua

memória.

[...] Assim como existia uma bagagem de memória de palavras, existia também uma

da gestualidade e das posições. Isto é, quando um ator entrava em uma determinada

posição, existia um contraponto da gestualidade, assim como existe na música.

Como no jazz: quando um improvisa, o outro se adapta de súbito à improvisação,

porque conhece o acompanhamento que deve realizar ou o contracanto da melodia.17

Para interpretar seus monólogos, Fo utiliza-se também de uma escaleta e passa a

contar a estória de diversas maneiras, a improvisar, para depois transcrever o texto. Ainda

assim, no decorrer das apresentações, Fo executa modificações no texto, na ordem, no ritmo,

principalmente depois que este entra em contato com o público, co-autor da obra.

Segundo Chiara Valentini, para Fo “o texto deve ser funcional ao espetáculo, deve

ser flexível às exigências da cena, ganhar corpo definitivo somente no momento da

representação, em contato com o público” (VALENTINI apud VENEZIANO, 2002: 125)

Logo depois, acrescenta: “Há poucos autores como ele, disponíveis para colocar

em discussão os próprios textos durante os ensaios, a reescrever cenas inteiras ou até a pular

uma página para improvisar”. (VALENTINI apud VENEZIANO, 2002: 125)

Os textos escritos por Dario Fo nunca serão exatamente aqueles que ele escreveu.

É do encontro com o público que nascem as modificações que lhe dão a certeza de que seu

texto jamais será tomado como texto final. É do atrito entre os dois elementos (autor-ator x

público) que se dá o resultado de sua dramaturgia. Na falta de um deles, o processo se torna

inviável, constituindo então, um processo colaborativo entre produtor e receptores, no qual os

“ruídos” e “flutuações” ocorrem neste constante retroalimentar entre as duas partes.

17 Entrevista concedida por Dario Fo a Neyde Veneziano, 2002, pág. 116.

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Com a participação do espectador na formulação do significado do espetáculo,

este grau de intimidade construído entre ator e observador é estabelecido não só pelas ações

do ator, mas pela organicidade de sua presença que enfatiza o “aqui e agora” da

representação, fazendo com que o público se torne criador do momento presente e parte

integrante do evento.

Vocês, platéia, vão fazer suas vontades, vão devolver a bola, vão captar seus

improvisos e decodificar seus hieroglíficos gestuais com uma competência de

peritos teatrais. Vocês vão ver. Os mil truques do ator são para isso: achar o jeito,

cada vez diferente, de jogar com aquela platéia e fazer aquela platéia jogar. Jogar

como? Adivinhando de que forma a história irá acontecer naquele dia.18

É por este motivo, que os espetáculos que tomam como base a dramaturgia de Fo,

mais especificamente A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de Circo

Pequenos Empreendimentos e Il Primo Miracolo, da Cia do Bebê, objetos analisados nesta

pesquisa, reconstróem a dramaturgia de Fo, pois refazem, tendo como base uma dramaturgia

já elaborada a partir da experimentação prática, um novo caminho de comunicação com o

público, dando origem à uma segunda dramaturgia de palavras e de ações.

A tradução que tinha no Brasil, naquela edição da Brasiliense, era impossível. Então

eu peguei [o texto] de livros dele [do Dario Fo] e de vê-lo ao longo dos anos. Claro,

eu estreei com a tradução da Brasiliense, muito ruim [por ser literária]. Alguns anos

depois, fui modificando, e hoje é uma tradução minha, uma adaptação minha, um

pouco diferente do texto, mas com elementos equivalentes. 19

Neste caso, a improvisação pode encontrar-se também em um nível mais interno

da representação, em que o ator vai modificando, por vezes, elementos quase imperceptíveis,

mas que influenciam no entendimento e na recepção do público (uma pausa, um respiração)

ou, por outras, até a modificação de cenas inteiras, servindo para estimular o ator a encontrar

o invisível (mas perceptível) de sua atuação, através do trabalho sobre o visível (ações e

gestos).

[...] E aí eu via as partes que tinham que permanecer sempre e escolhia as palavras

que funcionavam melhor e que tinham que permanecer. Às vezes, eu tinha que me

18 Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em texto enviado a autora, vide anexo. 19 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, ator do espetáculo Il Primo Miracolo, vide apêndice.

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impor as palavras, pois algumas eu jamais falaria normalmente. [...] Eu tinha, a meu

favor, umas cinqüenta apresentações feitas para um público durante um ano e um

amadurecimento deste processo. Eu nunca mais voltei ao texto que nós tínhamos

traduzido e, contando, ele ficou completamente diferente. Eu nunca transcrevi este

texto que eu falo hoje. Na medida que eu ia fazendo o espetáculo, eu ia encontrando

coisas novas. A narrativa foi se enriquecendo. Não só o texto, mas as partituras

físicas. [...] Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade

brasileira que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a

necessidade de enxugar o texto. [...] Eu nunca mais li o texto original. O texto que

você tem é um roteiro indicativo das ações.20

A improvisação funciona como um meio para se chegar ao resultado esperado,

resultado este, que nunca será o definitivo, pois depende da relação cinestésica estabelecida

com o público, e não como a forma em si, na qual o espetáculo de improviso se torna o

próprio resultado. A improvisação como forma se configura como uma outra linguagem

distinta, pois nos espetáculos analisados chega-se a uma estrutura mais ou menos fixa,

modificando no contato com o público, elementos, por vezes, imperceptíveis, mas sensíveis a

assistência.

Na fenomenologia cênica da linguagem improvisacional, a formalização não é

mais a fixação das ações, mas o estabelecimento de vias de acesso ou caminhos na

comunicação com o público, que é o único termômetro para se medir a eficácia do espetáculo.

Surge então um outro caminho na relação corpo - palavra, pois abre-se todo o

lugar possível para a “teatralidade” do discurso: inflexões, ritmos, entonações, gestos.

O conteúdo do discurso expresso por outros signos dramáticos como o gesto, faz

com que o ator precise ter consciência de que seu papel é uma estruturação dos signos mais

diversos.

Esta polissemia da arte teatral faz com que a mesma cena seja compreendida

diferentemente por espectadores distintos, muitas vezes ultrapassando a barreira da língua.

Faz com que o grammelot falado por Fo seja absolutamente compreensível através dos gestos

e das ações, preenchendo os hiatos provocados pelo não entendimento da palavra, nos quais o

corpo como um todo torna-se discurso.

A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação lingüística, isto é,

ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as

quais o autor do texto quis evocar; mas seu valor e seu significado pode ser modificado ou

20 Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, vide apêndice.

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reforçado na relação com a mímica do rosto, do gesto, do corpo, podendo sublinhar ou

desmentir a significação das próprias palavras.

Pelo fato de a semiologia lingüística estar bem mais desenvolvida do que a teoria

de qualquer outro sistema de signos, podemos assinalar que a análise semiológica da palavra

pode situar-se em diferentes níveis.

Segundo Jacó Guinsburg, em Semiologia do Teatro, na representação não existe

“somente o nível semântico (que concerne tanto às palavras como às frases e às unidades mais

complexas) mas ao nível fonológico, sintático, prosódico etc.” (1998:144) Neste caso, as

variações de tom, entonações, volume, ritmo podem ter um valor puramente estético ou

produzir verdadeiras escrituras signicas.

As rubricas ou didascálias (indicações e sugestões do autor) também constituem

um texto secundário e até quase a primeira metade do século XX, permaneciam no

espetáculo, quase como uma exigência do autor. No teatro contemporâneo as rubricas foram

reduzidas ao absolutamente necessário para a compreensão do texto e indispensável para a

construção das personagens, sendo muitas vezes completamente rechaçadas pelo diretor e

pelos atores.

No processo colaborativo de construção do espetáculo, termo que surge com as

artes contemporâneas, suas fragmentações e hibridações, e principalmente, com as

transformações das unidades de tempo e espaço, cunhadas por Aristóteles, as rubricas são

quase sempre inexistentes, pois as indicações dos autores já estão executadas no contexto da

obra.

Se os textos resultantes de processos colaborativos são transcritos, geralmente as

rubricas ou indicações dos autores já estão transformadas em texto, assim como as ações

sugeridas, por vezes, estão transformadas em palavras.

Em Fo, em se tratando de seus monólogos, as rubricas indicativas das ações são

muito sucintas e raras, pois o movimento e a ação já são ponto de partida para a criação do

texto.

A importância da encenação na dramaturgia de Fo, faz com que o espetáculo

torne-se incompreensível com a ausência das ações, gestos e ações vocais, sendo por isso,

uma literatura para ser vista e não lida, pois ela só se torna compreensível, no momento da

encenação. O trabalho com o grammelot, é um dos elementos que promovem na prática o

entendimento de que a gestualidade e as ações que o acompanham é que promovem o

entendimento da palavra.

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Existem, por vezes, ações executadas por Fo que são apropriadas por outros

atores, assim como suas palavras, por ser ele também ator de sua própria dramaturgia, mas

invariavelmente não permanecem as mesmas.

Contudo, o papel e a participação que a representação da linguagem tem na

constituição do universo representado são extremamente variados nos diferentes espetáculos

teatrais, e será de fundamental importância para o entendimento dos termos aqui levantados, o

exame de cada obra em particular, como faremos mais a seguir.

Na representação teatral das escrituras de Fo, as rubricas são eliminadas e os

hiatos que surgem na unidade do texto são preenchidos por um processo não arbitrário, mais

essencialmente, trata-se de uma questão de transpor significados lingüísticos para outros

sistemas semióticos. Todas as relações entre as figuras cênicas e personagens são projetadas

no espaço dramático, num conjunto de relações materiais que muda com o tempo à medida

que mudam as relações.

No teatro de Fo, os componentes sonoros interferem no significado semântico da

fala, como a entonação, timbre de voz e intensidade, e as falas são, por vezes, completamente

suprimidas, dando lugar às “frases de movimentos ou de ações”, o que acontece nas

montagens de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, nas quais os atores-autores

preenchem os hiatos deixados pelo texto de palavras por ações, absolutamente autorais, no

que diz respeito ao trabalho do ator. Toda a fábula21 da peça é contada através das ações dos

personagens.

Quando há texto, as entonações e intensidades estão diretamente ligadas ao

movimento em si. Este impulsiona o trabalho feito com as entonações, intensidade e volume.

Este fato revela, através da experimentação, inesperados deslocamentos semânticos e põe em

foco conotações dificilmente perceptíveis no que diz respeito ao que é do autor e ao que é do

ator.

21 A fábula é utilizada aqui, como a descrição e progressão da estória contada.

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1.5 O riso inteligente: o prólogo

Uma grande parte dos espetáculos da tradição popular começam com um prólogo,

pois este estabelece uma relação estreita de cumplicidade entre ator e público, servindo para

receber a assistência, inseri-la no clima do espetáculo, no contexto, mostrar-lhe as artimanhas

que serão utilizadas, os códigos “secretos”, enfim, aproximá-la.

O prólogo, na maior parte das vezes, é tão importante quanto o corpo do

espetáculo, pois é nele que estão contidas as chaves para a sua compreensão. A “chave”, neste

caso, tem dois significados: o que alude ao cerne, ao tema do espetáculo, a chave enquanto

material utilizado para a compreensão e decodificação do que será apresentado, e também, o

seu significado literal, como chave que o público recebe para abrir a porta e adentrar no

mundo ficcional.

Em Fo, por vezes, o prólogo se apresenta mais interessante e elaborado do que o

próprio restante da peça. Fo percebeu que o prólogo divertia muito as pessoas e era muito bem

recebido, mesmo em se tratando de temas polêmicos, pois o público tinha a falsa idéia de que

o prólogo ainda não era o espetáculo em si. A partir disto, Fo se utilizou deste

“descompromisso” e agrado do público com o prólogo, para transformá-lo em um espetáculo

quase independente e em uma das convenções mais personalizadas e fortes de seu teatro,

recuperando e reformulando de maneira contemporânea um procedimento do teatro antigo.

O prólogo se divide em duas partes: o pré-prólogo ou o “prólogo às avessas” (que

é como Fo chama o prólogo que vem antes do prólogo), no qual ele e seus atores ajudam o

público a se sentar, cumprimentam, empreendem diálogos personalizados e improvisados para

individualizar o caráter do público (um hábito do teatro à italiana de antigamente) e o prólogo

propriamente dito, que serve para explicar o tema do que será apresentado na seqüência,

principalmente, quando o quadro é falado em dialeto ou grammelot e para ver e “ouvir” quem

são as individualidades que assistem.

[...] Leva para um caminho diferente de entendimento. A palavra no Dario [Fo] tem

muito mais a ver com ação vocal do que com o conteúdo da palavra. Mesmo por que

ele fala em dialeto, e de milhões de dialetos, tu podes conhecer alguns, e em

grammelot mesmo, que é uma língua inventada. Primeiro ele explica na língua local

a estória que vai ser contada, e depois faz. Eu não explico a estória, eu faço direto.

Eu tenho o prólogo, que é muito clownesco, pois serve para sentir no momento este

somatório de espectadores. [...] Os Colombaioni dizem: os primeiros minutos do

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clown no picadeiro são para escutar, não para fazer. Você tem de saber se é um

público intelectual, se é um público ‘emo’, se é um público humilde. Essa é a

medida. Não existe isso: ‘hoje o público não estava acertado com a peça’. É a peça

que não estava acertada com o público. Então, ele tem que ser ouvido. E você vai

jogando anzóis, e conforme o que vem nos anzóis, você sabe que isca tem que usar.

Esse é o ‘prólogo inteligente’ para mim.22

Em alguns prólogos, Fo comenta as notícias do dia, as critica, fala sobre o quão

impressionante são as reviravoltas e o final do espetáculo, ou ainda, comenta as fontes de

pesquisa que foram utilizadas como base para a montagem.

Para ele, tudo deve ser claro, pois ser claro, não significa ser descritivo: “Não

ajudar o público na compreensão do espetáculo é uma conduta esnobe praticada por um bando

de idiotas que esconde, além do mais, uma impotência incorrigível. Qual seja: a impotência de

saber comunicar.” (FO, 2004:223)

Muitos recursos são utilizados e carregados de um certo grotesco, obrigando-o

posteriormente, como escritor, a adaptar o texto a determinadas situações e conformá-lo às

necessidades mais vivas e atuais que o público “pede e propõe”. Esta cumplicidade com o

público permite descobrir os erros e desequilíbrios graves do texto, as regiões mortas, os

hiatos sem sentido, as regiões prolixas ou pouco claras quando é necessário ser. Neste caso,

“não se trata de improviso, mas da participação do autor-ator-encenador enquanto narrador

que apresenta e vai contar o personagem, ao mesmo tempo em que observa seu público e cria

com ele.” (VENEZIANO, 2002:179)

O que é dito no prólogo nem sempre é confortável ao público, mas incômodo e

candente; e ao invés de varrer para baixo do tapete acontecimentos recentes que trazem

choque e desconforto, eles são trazidos à tona, muitas vezes, logo no início de maneira irônica

e grotesca.

Antes de dar início ao quadro La ressurrezione di Lazzaro, Dario recorda que os

giullari , que tomavam emprestados os temas bíblicos sem blasfemar contra Deus ou

a Virgem Maria, criticavam a exibição do milagre transformado em grande evento

para ser mostrado como mágica fantástica e sobrenatural, contrariando o que deveria

ser o milagre em sua essência: uma demonstração de amor e compaixão ao próximo.

‘Esta é a chave da narrativa’, explica Dario. Ao compreender a ‘mensagem’, o

público se sente ‘mais inteligente’ e acompanhará o monólogo que se seguirá, feito

em dialeto ou em grammelot. (VENEZIANO, 2002:179)

22 Roberto Birindelli, em entrevista concedida a autora em maio de 2007, vide apêndice.

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Indicar ao público as chaves da narrativa, não significa facilitar-lhe o caminho,

pelo contrário, é mostrar-lhe um caminho menos fácil e repleto de imaginação.

A leitura objetiva e aprofundada do que sabemos estar por trás dos fatos que permite

recriar hoje, de maneira grotesca, irônica ou trágica, o que a informação imediata

nunca poderá nos dar. Assim, iremos contrariar o programa e a estratégia que o

poder tenta levar adiante, ou seja, doutrinar o público a nunca usar o seu senso

crítico: achatamento mental, fantasia zero. (FO, 2004:201)

É justamente o elemento “fantasia” que Fo quer suscitar, quando pede ao público

que preste atenção em determinadas passagens, ou quando diz no prólogo que este se

surpreenderá com o final do espetáculo ou com as reviravoltas e, ao invés de revelar o que

vem a seguir, faz com que este público se torne atento a cada situação desenvolvida. O que

lhe é permitido compreender completamente, são as chaves necessárias para a compreensão

de momentos indispensáveis para o desenvolvimento da narrativa. O público se sente então,

parte importante para a construção do espetáculo desde o início, pois percebe que em

momento algum, as passagens são fáceis ou mastigadas completamente e, que é ele quem

precisa, a cada minuto, terminar de desenhar a situação.

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1.6 O ator-narrador

Os fabuladores que tanto inspiraram Fo, contavam suas estórias entre a primeira e

a terceira pessoa, como se tivessem assistido aos fatos épicos, absurdos e repletos de situações

hiperbólicas, inverossímeis, assim como os jograis medievais se apresentavam e se exibiam

mudando de um personagem para outro.

Os monólogos de Fo trazem para a cena as técnicas do racconto, nas quais o ator é

o narrador de uma estória, geralmente épica e surreal, e se utiliza de todo o seu corpo e de um

grande arsenal de “truques” para convencer a assistência dos fatos espetaculares de que foi

testemunha.

Na interpretação naturalista, cujos maiores defensores foram André Antoine (1858

- 1943) e Konstantin Stanislavski (1863 - 1938), quanto mais o ator colocar sua personalidade

à disposição do personagem, incorporando de forma consciente sua psicologia e se

aproximando o máximo possível da realidade quotidiana, maior será a qualidade do seu

trabalho. O ator-criador em Dario Fo, e no caso dos atores dos espetáculos A descoberta das

Américas e Il Primo Miracolo, atribui um alto grau de pessoalidade às ações que realiza em

cena. Isto significa que nesta linguagem que abarca a composição das ações por parte dos

executantes da obra, e a linguagem improvisacional durante o processo de criação, conta

menos a metamorfose do ator num outro, do que a inteireza e verdade de seu estado em cena.

Nestes casos, ao contrário, não há um tradicional processo de identificação do ator com o

personagem, como no teatro naturalista.

A qualidade da presença cênica é medida por um grau de comprometimento do

ator com aquilo que realiza, mais próximo neste sentido, apesar de muito distinto, do

estranhamento (verfremdungseffekt) brechtiano. A pessoalidade é a crença no fato de que o

intérprete deixa de ser o mediador de idéias de outrem e passa a ser ou parecer ele próprio o

autor das idéias que transmite.

Essa noção de pessoalidade não é a mesma da psicoterapia tributada ao americano

Carl Rogers (1902 - 1985), pois não necessariamente contém identificações pessoais entre

ator e personagem, sim, que este personagem parece ser o próprio intérprete que narra a

estória.

Apesar de as ações e a gestualidade serem mais teatrais no sentido exato do termo,

por tanto, mais “artificiais” ou distantes do real, por possuir uma corporalidade mais enfática

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e exagerada, os personagens dos monólogos de Fo parecem ser desdramatizados, ou seja,

personagens não fictícios, pois contando a estória à sua maneira, passam a apropriar-se dela.

Aproveitando-se de um amplo acervo de jogos dramáticos, de regras da Arte da

comédia e da narração, o ator conduz um processo onde cada ator/narrador se

apropria do texto da estória que deseja contar, tornando-se aos poucos o autor das

palavras que contam a estória, criando assim uma dramaturgia própria. Num

segundo momento, as dramaturgias individuais serão desenvolvidas, abandonando

por completo a literalidade do texto escrito para serem narradas em presença

interativa entre o narrador e o público. Entende-se esta ‘dramaturgia individual’

como um desenvolvimento tanto da oralidade quanto da fisicalização do narrador.23

O ator se apropria da estória a ser contada, e imprime sua própria identidade

gestual e vocal, seja ela criada a partir de um personagem ou não. Esta identidade passa a ser

não só identidade vocal ou gestual de agente físico, mas também de agente conceitual.

O narrador não tem o compromisso com a verdade, ele tem um compromisso com a

estória, e uma estória bem contada se torna verdade. Então ele não tem a obrigação

de saber que aquilo não era um tronco de árvore, que eram folhas colocadas uma em

cima da outra [ sobre a canoa dos índios]. Eu parto deste princípio: o Johan Padan é

um personagem fictício, mas que certamente já existiu na pele de vários outros. 24

O ator possui no teatro um status duplo: o de ser real e presente, mas ao mesmo

tempo, imaginário ou virtual, situado em uma outra cena, ou plano.

No Teatro Naturalista o ator necessita possuir todo tipo de técnica para não

quebrar a ilusão, ou o fio tênue que separa persona-personagem, para que o público “acredite”

que ele realmente “é” o personagem ao qual representa. No teatro não naturalista, como no

universo dos espetáculos de Fo, principalmente os monólogos, o ator pode parecer ser a

personagem por técnicas de autopersuasão, como iludir, fingir, ser outro, ou então, tomar

distância de seu papel, citá-lo, ironizá-lo, sair e entrar nele por diversas vezes. Para isto,

necessita ser o dono da codificação escolhida e das convenções de atuação que ele aceitou

assumir.

23 Texto enviado a autora via e-mail por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, vide anexo. 24 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da

cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os

personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o

pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-

pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à

cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela

contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às

marcas) decai diante da urgência da performance.25

O monólogo, peça para um só ator, retorna à cena com toda a força a partir dos

anos 60, pois além das contingências da produção (possuem um custo inferior e uma maior

mobilidade física e geográfica), facilitam a narrativa íntima e o testemunho direto, pois se

dirige ao público sem nenhum tipo de obstáculo e sem anteparo de uma ficção premeditada.

Tem raízes populares incontestáveis, como os rapsodas gregos, os giullari medievais, os

atores de feira, os mimos das ruas e palácios e os clowns, embora alguns atores de diferentes

épocas o conduzam à trucagem sistemática e a uma série de efeitos, se entregando a uma

espécie de meditação interior sem qualquer tipo de contato com o público, uma falação da

qual este, por convenção, se torna excluído.

A força dramática do monólogo e suas implicações ideológicas evidentemente não

são as mesmas em todas as situações de fala, mas o monólogo situado na linha física de

representação, no qual o corpo do ator e suas ações permanecem no centro, enfatiza a

presença imediata, real e física do ator, que enfrentando o público a partir de um espaço vazio,

propõe uma narrativa que se dirige a ele de forma quase pessoal.

Diferentemente da teoria dramática tradicional, que opunha o narrativo ao

dramático, a cena moderna redescobre o cenário como um espaço para a narração, o

relato e a reflexão; mas uma narração entendida como um ato realizado desde o aqui

e o agora, ato performativo por excelência, situado já nas origens do teatro e da

literatura em geral através da figura do rapsoda. (CORNAGO, 2005:24,

tradução nossa)26

25 Texto enviado a autora por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, vide anexo. 26 A diferencia de la teoría dramática tradicional, que oponía lo narrativo a lo dramático, la escena moderna redescubre el escenario como un espacio para la narración, el relato y la reflexión; pero una narración entendida como un acto realizado desde o aquí y el ahora, acto performativo por excelencia, situado ya en los orígenes del teatro y la literatura en general a través de la figura del rapsoda.

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O ator-rapsoda, uma referência aos rapsodas gregos que recitavam trechos da

Ilíada e da Odisséia, faziam com que as formas épica e dramática passassem a conviver em

um jogo de intercâmbios.

Podemos dizer então, que o ator das escrituras de Fo, são atores-rapsodas, pois

são aqueles que trabalham a composição de sua representação em uma cena na qual a própria

dramaturgia se encontra, de alguma forma, na categoria do épico. Esta atuação se torna

distanciada ou expositiva e é estruturada pela atitude narrativa do ator e pelas funções que este

mesmo ator exerce no sentido de comentar as ações, encaminhá-las, introduzir personagens e

criticá-los ao mesmo tempo que dialoga com eles, evidenciando o jogo entre a comunicação

verbal e a gestual.

Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, apesar de serem dois

monólogos do mesmo autor, podemos identificar uma postura diferente do narrador já na

escritura de Fo.

O personagem-narrador, como no caso de Johan Padan, representado por Julio

Adrião em A descoberta das Américas, se manifesta entre a primeira e a terceira pessoa, e sua

visão do relato será sempre uma parte da visão, apesar de “mais crível”, já que participou dos

eventos ficcionais como protagonista. O ator Julio Adrião se apresenta como o personagem

Johan Padan do início ao fim do espetáculo, citando os outros personagens que possuem

como primeira pele, o malandro fanfarrão Padan. Portanto, não é o intérprete se apresentando

como ele mesmo, mas é Johan Padan que cita os outros personagens, que por vezes,

representam figuras inanimadas como tempestade, alga marinha e lua.

Já o narrador-personagem, como na representação de Il Primo Miracolo, por

Roberto Birindelli, possui um menor grau de adesão afetiva ao relato e um maior grau de

opinião crítica em relação aos personagens e suas ações, pelo fato de analisá-los de fora e de

não ter participado como personagem dos momentos históricos que narra. O intérprete de Il

Primo Miracolo passa por vinte e dois personagens, mais se apresenta no prólogo como o

próprio intérprete e ao longo da representação “cita” os personagens através de ações, mas

não os “representa”, através de códigos pré-estabelecidos com a platéia, como veremos no

terceiro capítulo.

E aí tem uma diferença com o trabalho do Julio, que eu conheço, mas eu não sei

bem claro, que é: onde cada um está no meio do narrador. Talvez pelo próprio texto

do Fo, quem conta a história [no caso de A descoberta das Américas] é o

sobrevivente da visita às Américas, portanto, existe um personagem dialogando com

o espectador e no Il Primo Miracolo não tem. Existe o performer o tempo todo. É o

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Roberto que está dialogando contigo e juntos vamos construir uma ficção a partir

deste trabalho.27

O ator-rapsoda pode transitar entre estas duas posições, não permanecendo

necessariamente em um só tipo de narrador. Pode narrar ao mesmo tempo que seu corpo

presentifica e fisicaliza um personagem.

Mesmo o personagem-narrador, estará sempre em algum grau de distanciamento

que o permita revelar sua condição de manipulador das ações do relato.

Hoje temos a dificuldade de identificar o que é narrador e o que é personagem no

espetáculo, por que eu criei os códigos, as máscaras dos personagens. Então tem a

máscara do Johan Padan bem, para cima, e dele derrotado. Então, tem a cara dele

esgarçada, que é a cara dele. Existe sempre a máscara e a contra máscara. A cara de

qualquer índio é esta [demonstra]. A de qualquer espanhol é esta, que vem da

postura do capitão da commedia dell’arte e tal, mas eu tenho também cavalo, alga

marinha, tempestade, lua, coisas que são personagens da estória e que se

materializam ali. Um ator para bem narrar lança mão não só da palavra com tons e

variações, mas também de formas físicas e ritmo, e essas formas servem para ilustrar

a ausência de outras informações. Tem partes que não dá para modificar as

máscaras, pois a passagem de uma para outra é muito rápida. Eu não vi o Il Primo

Miracolo [espetáculo de Roberto Birindelli], mas eu já não identifico no meu

espetáculo esta quebra do narrador. Ele está todo o tempo mesclado neste Johan

Padan, e eu fazendo o índio, sou o Julio quem faz. Não me sinto Johan Padan

fazendo o índio. Claro, tem oras que o Johan faz só a máscara indicativa do índio

para dizer que o índio está na frente dele. Não consigo identificar claramente estas

diferenças. O que eu posso dizer, é que necessito de muita concentração para

percorrer estas partituras fisicas, sonoras e verbais. Então, para mim, existe o ator

em cena passando por estes códigos.28

Nesta tradição de linha física, as escrituras de Fo suscitam, assim como em Jerzy

Grotowski (1933 - 1999) e Eugenio Barba, mesmo que de maneira distinta, a fisicalização das

emoções. As emoções deixam de ser perturbações passageiras ou presentes apenas no

pensamento do ator, para se transformarem em movimento, ações físicas e ações verbais que

motivam a dinâmica do jogo e o espaço-tempo-ação da fábula na qual se insere.

27 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 28 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Na prática teatral contemporânea, o ator não remete mais sempre a uma pessoa

verdadeira, a um indivíduo formando um todo, a uma série de emoções. Não

significa mais por simples transposição e imitação; constrói suas significações a

partir de elementos isolados que toma emprestado de partes do seu corpo

(neutralizando todo o resto): as mãos que mimam uma ação inteira, boca unicamente

iluminada com exclusão de todo o corpo, voz do narrador que propõe enredos e

representa sucessivamente vários papéis. (PAVIS, 2005:55)

Neste caso, o ator-rapsoda dos monólogos de Fo, não é encarregado de mimar um

indivíduo completo e inalienável: não é mais um simulador, mas um estimulador; ele atua,

suas ausências, sua multiplicidade, suas insuficiências, suas dúvidas, assim como o ator

medieval, os giullari , os fabulatori, assim como a maior parte dos “atuadores solo” de

diferentes tipos de teatro popular ao longo dos séculos sugeriam a realidade por uma série de

convenções estabelecidas que são localizadas e identificadas pelo espectador.

Quando a troca de personagens é muito rápida, assim como Fo, os atores não

esperam fazer a máscara do personagem e enquanto se deslocam já dão a réplica para

preencher o tempo morto, o que Fo dá o nome de seqüência cruzada, como no cinema. Por

vezes, é apenas o conteúdo da fala que faz entender que já é outro personagem e não sua

atitude em si.

Dario Fo, assim como os atores dos espetáculos analisados, algumas vezes, vai

até próximo aos espectadores e introduz um diálogo tête-à-tête destruindo atrás de si o lugar

da representação, o “cenário” onde acontece a situação, quebrando a quarta parede e

ocasionando um distanciamento diferenciado utilizado pelos clowns, no qual estes trocam

confidências com o público como em um aparte.

Os atores dos monólogos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo

necessitam construir em si mesmos maneiras diferentes para realizar as experiências cênicas

que fundamentam o processo de construção do espetáculo, pois somam uma busca de

conhecimentos solitária e pessoal, representam relações sociais, processos históricos e críticos

que não são os mesmos do lugar de origem do texto, trabalham com a não individualização do

personagem, ocupam um espaço vazio que deve ser preenchido por suas ações, encontram

seus próprios materiais textuais/gestuais sem a necessidade “impositiva” da orientação de um

diretor, e numa atitude totalmente dramatúrgica, movimentam o equilíbrio dinâmico entre

actante e assistência, reanimando a relação com a platéia, pois não possuem a recepção de

outros actantes, apenas a relação com o público que é a única força que sustenta suas ações.

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Seriam “quase” performers se a relação entre obra e vida dos atores fosse

absolutamente explícita, mas a comunicação com o termo está mais ligada à ênfase do evento.

No panorama pós-moderno da produção teatral, o conceito de performance

destaca o valor empírico da comunicação em detrimento das qualidades potenciais. Nas obras

analisadas estes dois elementos trabalham em equilíbrio e o uso do termo associado ao ator

enfatiza a sua presença material e sua relação emergencial com a cena, a qual modifica

também a relação com o corpo do espectador. Neste caso, “o corpo – performativo – se faz

mais visível na medida em que escapa aos sentidos lógicos impostos desde os diálogos e a

situação dramática, que se toma da situação real da comunicação cênica com o público.”

(CORNAGO, 2005:24, tradução nossa)29

Se o real é o que resiste à simbolização, podemos dizer, que os trabalhos feitos a

partir das escrituras de Fo, estão longe do real por trabalhar com a simbolização de maneira

explícita, pois como no terreno da performance, não oculta a estrutura que gera a “realidade”,

invocando um “real” absolutamente teatralizado. A ilusão cênica, provocada pela relação não

distanciada entre ator e personagem é rompida, e a linguagem surreal e grotesca, na maior

parte das vezes, dá origem a um modelo diferenciado que corrobora com o ficcional; e ao agir

materialmente, o intérprete produz novas combinações simbólicas no espaço e no tempo do

evento. A desdramatização do personagem está apenas no sentido de que este está introjetado,

e as codificações são tão autorais, ao ponto de parecer que a estória está sendo criada no exato

momento da representação. Esta relação paradoxal se deve ao fato de que quando o ator se

apropria de uma estória, a maneira da narrativa oral, mesmo que esta seja absolutamente

surreal e hiperbólica como as escrituras de Fo, ela se torna próxima de uma outra realidade

que apesar de inverossímil, pode ser crível.

O ator - rapsoda não necessita de uma psicologia que justifique suas ações, já que

a aproximação entre ator e personagem não se dá pela via da identificação, mas por um acesso

determinado pelo exercício constante e claro de um ponto de vista, que traz a lógica, os

objetivos, a linha de ação. O ponto de vista será sempre o do narrador, ou filtrado pelo

personagem que temporariamente assume.

29 El cuerpo – performativo – se hace más visible en la medida en que escapa a los sentidos lógicos impuestos

desde los diálogos y la situación dramática, que se toma de la situación real de la comunicación escénica con el

público.

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2. A CONSTRUÇÃO DO ESPETÁCULO: APONTAMENTOS PARA UM A

ABORDAGEM DOS ESPETÁCULOS A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS E IL PRIMO

MIRACOLO

Alguém garante que Shakespeare disse: ‘O

teatro é a palavra’. Jamais encontrei essa frase

entre os escritos de Shakespeare; de qualquer

modo, estou certo de que, se ele a disse, ela lhe

escapou. Não me venham dizer que alguém que

conta uma história onde há um sujeito que

conversa com o fantasma do pai, que mata

quatro pessoas, que deixa a noiva louca e, no

fim, morre de uma espada envenenada tinha

intenções exclusivamente literárias. (FO apud

VENEZIANO, 2002:144)

2.1 O pöer nano30 que descobriu as Américas

Alguns gêneros medievais apresentavam em sua estrutura a figura do louco ou do

malandro como figura principal que narra a estória. Desde a sua adolescência em Porto

Valtravaglia, a convivência com os sopradores de vidro, principal atividade profissional da

cidade, e suas histórias dementes, fez com que a figura do louco e do tonto ficasse muito

familiar para Fo.

Na década de cinqüenta, quando passou a trabalhar na rádio, surgiu o seu

personagem pöer nano, Anacleto. Dario Fo preocupou-se em desmontar o privilégio do herói

que se contrapõe às características do povo trabalhador, sujo, faminto e cansado. Por isso, seu

narrador em diversas obras é um pöer nano, um pobre coitado que tem suas ações e idéias

impulsionadas por seu estômago vazio.

30 Figura do povo, “malandro”, pobre, astuto.

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Critica a lógica do protagonista bonzinho e mescla maldade, ignorância, esperteza,

malandragem e bondade em um só personagem, tornando-o o mais próximo do humano

possível.

Fo, que havia partido do personagem mítico dos fabulatori e da Revista (onde

nasce o embrião da figura do povo) chega à figura do Zé Ninguém, a qual faz com que o

público possa ver a história a partir de um outro ângulo: aquele que se vê de baixo.

A figura deste Zé Ninguém, lembra a do clown, ofício afim ao do jogral e do

mimo greco-romano, no qual utilizavam-se recursos de voz, gestualidade acrobática, música,

canto, até “uma certa prática com animais ferozes”.

O termo clown nasce para designar camponeses que iam para as províncias em

busca de trabalho e acabavam sendo ridicularizados por suas roupas, sua fala e seu jeito, ou

seja, um tipo de pöer nano, este personagem do povo, malandro e astuto.

Fo teve um maior contato com o ofício dos clowns e seus artifícios, com os

Colombaioni, família tradicional na arte dos clowns na Itália, e transferiu a inquietude e a

astúcia destas figuras para suas escrituras. Segundo Fo, o clown foi deslocado para uma

puerilidade simplória e infantil, e perdeu a sua capacidade de provocação, o seu empenho

moral e político, pois em outros tempos, exprimia a sátira e a violência, a crueldade e a

condenação da hipocrisia e da injustiça, o que justamente sempre o interessou e o que tentou

“resgatar” em seus espetáculos.

O clown vem de muito longe: eles já existiam antes do nascimento da commedia

dell’arte. Podemos dizer que as máscaras à italiana nasceram de um casamento

obsceno entre jogralescas, fabuladores e clowns; e, posteriormente, depois de um

incesto, a commedia pariu dezenas de outros clowns. (FO, 2004: 305)

Os clowns existem em praticamente todos os gêneros teatrais de todos os países

ocidentais e orientais, e a fome é o motor de seu movimento. É o que os move fisicamente e

intelectualmente. Os clowns são a própria fome. A fome de poder, de comida, de dignidade,

de identidade, e atuam sobre a emergência da fome, assim como os jograis e os commici

dell’arte.

Existem no mundo dos clowns duas alternativas: dominar (o clown branco) ou ser

o dominado da commedia dell’arte, o submisso, a vítima. Os toni, os Auguste lutam para

sobreviver, rebelando-se algumas vezes, mas normalmente se viram e se safam como Johan

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Padan de A descoberta das Américas, um dos muitos personagens mort’de famme que se

engendram em todo o gênero de rolos para sobreviver.

Em Johan Padan La Descoverta de le Americhe, Dario Fo inspira-se em fatos

reais que foram contados pelo cronista medieval Cabeça de Vaca31 (1490 - 1557) e conta a

história da descoberta das Américas do ponto de vista dos “espertos”, porém miseráveis e

ignorantes.

O personagem-narrador Johan Padan, é um malandro fanfarrão, embusteiro, que

conta vantagens e vive fugindo da fogueira da Inquisição. Para fugir da miséria e da fogueira,

na qual sua namorada havia sido queimada, embarca por acaso em uma das caravelas de

Colombo. Passando por muitos percalços, já na América, Johan é testemunha da matança dos

índios promovida pelos espanhóis, sobrevive a um naufrágio, é negociado, escravizado e

quase devorado pelos índios. Aproveitando-se de conhecimentos trazidos do Velho Mundo,

Johan realiza “milagres” para safar-se de inúmeras situações com uma boa dose de

malandragem que aprendeu em uma dura vida de necessidades mil. Não só escapa de ser

comido pelos índios, como ainda passa a ser encarado por estes como uma divindade - O

Filho do Sol e da Lua. A partir daí, o personagem agrega um verdadeiro exército de índios e

acaba, ainda que esta não fosse sua primeira intenção, organizando um foco de resistência aos

espanhóis.

Johan Padan, assim como os Zanni da commedia dell’arte, possui um repertório

de lazzi que o possibilita entrar e sair de distintas situações.

Os Zanni (pais da máscara do arlecchino), morriam de fome literalmente. Em A

fome do Zanni, Dario Fo representa um Zanni que descreve a sua enorme fome e imagina

comer-se a si mesmo órgão por órgão. Fo a faz em grammelot e a utiliza para demonstrar a

distinta gestualidade quando se usa a máscara, e quando não se a usa.

A descoberta das Américas é um racconto histórico às avessas, como Fo já havia

feito na peça metateatral Isabella, tre caravelle e un cacciaballe, na qual um ator pobre

coitado, que interpretou uma comédia de sua autoria sobre a vida de um italiano chamado

Cristóvão Colombo, é enviado para a Inquisição e precisa representar a frente de todos, a obra

em questão que o levou àquela situação. O personagem malandro é um ator que interpreta um

outro personagem malandro e astuto: Cristóvão Colombo.

31 Alvar Núñes Cabeza de Vaca, cronista e explorador espanhol, acompanhou a expedição de Harves a Florida (EUA) em 1527. Esteve no Brasil por volta de 1540.

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Fo transforma o herói em um cacciaballe (contador de lorotas), construído, mais

uma vez, em cima da emergência da sobrevivência.

“O texto é, portanto, uma singular forma de anti-história ou, melhor, de história

narrada a voz, uma oralidade popular que não cria homens célebres e datas históricas, mas

evidencia a natureza real dos eventos.” (COLOMBO; PIRACCINI [org]. Johan Padan,

dèpliant dello espetáculo, 1998:281, tradução nossa)32

Em Johan Padan La descoverta de le Americhe, o reivindicador radical sai de

cena para dar lugar ao pöer nano, um “giullare reivindicador”, mas marginalizado e, por

vezes, lírico e pueril.

A partir de Johan Padan, seguido por Dario Fo racconta Ruzzante e, agora, com Lu

Santo Jullare Françesco, os monólogos perderam a dureza do impacto e do combate

social, o enrijecimento de uma política declarada. O compromisso político surge

menos evidente, mascarado por uma veia poética, que torna o espetáculo ainda mais

eficaz e, consequentemente, mais ferino. (VENEZIANO, 2002: 201)

Este compromisso de Fo em relação à política declarada e ao combate social que

apresenta em alguns de seus monólogos e textos políticos, aparece mascarado em Johan

Padan La descoverta de le Americhe através do lirismo e da poesia das situações e da

personagem, trazendo paradoxalmente, a despeito do “aparente” descompromisso político, de

maneira ainda mais chocante e evidente, situações relacionadas ao preconceito, ao abuso de

poder, a manipulação dos ignorantes, a disputa pelas riquezas.

Este recorte do olhar, evidencia a palavra e a gestualidade do povo, a gestualidade

que provém da fisicalidade de uma oralidade desesperada e teatral na sua essência.

Andarilhos, pícaros, bufões, rústicos e histriões são protagonistas de um mundo

virado pelo avesso e visto com o olhar satírico de quem sobrevive só para contar a

história. A adrenalina cômica deste teatro da resistência, produto de civilizações

famintas, aparecia quanto mais oportuna numa época como a nossa, em que, mesmo

na aparente liberdade propiciada pela sociedade de consumo, os mecanismos de

exclusão permanecem os mesmos.33

32 Il testo è quindi una singolare forma di anti-storia o, meglio, di storia narrata a voce, un’oralità popolare che non crea uomini celebri e date storiche ma evidenzia la natura reale degli eventi. 33 Texto inédito enviado a autora por Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em Julho de 2007, vide anexo.

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O feixe de tensões entre a palavra e a cena se projeta ao resto das linguagens, de

modo que se produz um complexo sistema de distâncias e contrastes que fazem mais visíveis

cada linguagem, e por isso, a palavra questiona o espaço, os corpos, e as ações questionam as

palavras.

Quando falamos de gestualidade e palavra separadamente, longe de criar uma

visão dualista, é para evidenciar que é necessário analisá-las, a priori, separadamente, e que

quanto mais estiverem juntas, paradoxalmente, mais evidenciadas estarão as duas linguagens.

A palavra destronada dos privilégios do texto literário formal, se torna abarcada

por outros fenômenos como o corpo, a ação e a voz, e perde a aparente inocência de um

racconto popular. Ela se faz visível como uma das ações definitórias do teatro ocidental, e no

século XX, volta a ter ligação estreita com o corpo, o movimento, o espaço, o tempo, mas

com isto, traz à tona pela primeira vez, um jogo de contrastes, que não necessariamente,

aspira à uma unidade de sentido.

Nos capítulos subseqüentes, a partir da análise do texto escrito e da descrição e

análise de cenas realizadas nos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, o

foco será o caráter processual e a dimensão material e sensorial da palavra frente a

gestualidade; o efeito de comunicação imediata e o protagonismo do receptor, referindo-se à

uma arte da experiência, própria da contemporaneidade, mas que se serve de recursos e de

elementos do antigo teatro para resgatar sua teatralidade e materialidade.

Fig. 4 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

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2.2 Mistério bufonesco: a alegoria

Mistero Buffo (1969), considerada a obra prima de Fo, é a reunião de mais de

vinte monólogos, traduzidos e representados em diversos países. Esta obra é uma espécie de

“moralidade contemporânea”, pois “Mistério”, nome dado as pequenas peças teatrais que

transmitiam a história da Bíblia e da vida dos santos aos antigos fiéis, juntou-se ao sarcasmo e

as zombarias dos giullari e bufões, por isso, Mistero Buffo.

A obra, assim como o monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino tem como

base os temas sagrados, revistos de maneira profana, mas não blasfema, carregados de sátira e

ironia à maneira do cômico popular. Contado e visto pelos olhos de um giullare do povo, se

tornam uma espécie de mistérios às avessas.

Na busca da história do povo, Dario chegou aos instrumentos de comunicação da

cultura popular (as sagradas representações dos Evangelhos, as moralidades e outras

histórias sacro-profanas racontadas pelos giullari ). Os episódios dramatizados e a

organização das diferentes formas da expressão teatral, que correram em paralelo à

historiografia oficial, manifestaram-se depois, de forma ideal, através do filão mais

importante da arte do ator, a commedia dell’arte. [...] E essa foi, de alguma forma,

sua expressão de religiosidade. (VENEZIANO, 2002:175)

Il Primo Miracolo di Gesù Bambino fala de uma época da infância de Cristo que

passa por seu nascimento, pela fuga de sua família para o Egito e por uma parte de sua

infância, na qual supostamente aconteceram os seus primeiros milagres. Este período da

infância de Cristo, até uma parte de sua juventude, na qual, segundo a teologia cristã, Jesus

esteve meditando no deserto e aprimorando seus conhecimentos, desperta a curiosidade e a

imaginação de muitos sobre o que pode ter acontecido. Soma-se aos poderes de Cristo, capaz

de fazer os mais incríveis milagres, como flutuar, desaparecer, derrotar qualquer tipo de

inimigos, vencer dezenas de homens, transformar tudo em qualquer coisa, a impetuosidade e

impulsividade da juventude.

Fo coloca este “desaparecimento” de Cristo como um universo fantástico que

pode mexer com o imaginário do povo e criar estruturas poéticas singulares.

Reconstruindo um Jesus-Menino com características infantis e humanas, por

vezes “animais”, exceto o poder de realizar milagres, Fo cria um anti-herói apelidado por seus

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amiguinhos de “O Palestina”, que discriminado, utiliza seus poderes para se afirmar dentro do

grupo.

Em Il Primo Miracolo, Dario Fo desmitifica a figura de Jesus e da Família Santa,

contando uma estória repleta de personagens construídos a partir da “lógica do povo”. Mostra

Jesus-Menino como outras crianças sujas, birrentas, maldosas e desobedientes, que faz seu

primeiro milagre para ser aceito, sem se preocupar com o mal que pode causar aos outros. Isto

é, Jesus faz um milagre em seu próprio benefício, e apesar dos apelos de sua mãe Maria, se

recusa a consertar as suas próprias trapalhadas.

Fo coloca a Família Santa como qualquer família pobre de retirantes, e Jesus,

como um menino que utiliza o poder que possui para ser aceito pelos outros. É claro, que

estas são só algumas das metáforas e alegorias utilizadas nos textos de Fo.

Apesar de antiacadêmico e absolutamente popular, esta veia de historiador,

pesquisador e antropólogo de Fo, oferece ao espectador o passado como metáfora para

entender o presente e criar conexões subjetivas com o futuro próximo ou distante.

Nos espetáculos que partem das escrituras de Fo, para construir o “exercício da

imaginação”, em termos utilizados por Neyde Veneziano, é impossível fugir das metáforas e

alegorias34 tanto das palavras, quanto dos gestos.

Em Il Primo Miracolo, espetáculo da Cia do Bebê, de Porto Alegre, construído à

partir da escritura de Fo de Il Primo Miracolo di Gesù Bambino, Roberto Birindelli enfatiza

no prólogo:

Explico porque este espetáculo tem uma série de alegorias que não podemos

esquecer no meio do caminho, senão não vamos entender nada. Como, por exemplo:

tinham três Reis Magos... mas, atenção! Muito importante: Um Rei Mago velho...

Fascista, ranzinza, racista, montado num cavalo preto – olha a alegoria! Um Rei

Mago loiro, jovem, lindo ... Leonardo Di Caprio, montado num cavalo muito

branco. E um Rei Mago negro montado num camelo. Decorou? Rei Mago velho no

cavalo preto, Rei Mago preto montado no camelo. Em caso de dúvida, pergunta!35

34 Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a idéia de outra, através de uma ilação moral. Etimologicamente, o grego allegoría significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido literal”, e veio substituir, ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.), um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer “significação oculta” e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero, como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais. A alegoria distingue-se do símbolo pelo seu caráter moral, e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. 35 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli do monólogo Il Primo Miracolo di Gesù Bambino, 1996.

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Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, a alegoria mostra uma coisa

pelas palavras e outra pelo sentido, e é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente

ao longo dos tempos.

Uma das formas de distinguir metáfora e alegoria, é a proposta pelos retóricos

antigos: a primeira, refere-se apenas a termos ou imagens isoladas; a segunda, amplia-se a

expressões ou textos complexos e imagens que podem constituir uma narrativa.

Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com

sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer numa simples frase, como num

texto inteiro). Estes sentidos duplos propiciam um recurso importantíssimo nas escrituras de

Fo: o princípio da oposição, segundo o qual palavra e gesto podem seguir caminhos

contrários.

É usual na alegoria, o recurso a personificações ou prosopopéias36, em especial de

noções abstratas, prática muito comum sobretudo na literatura medieval.

Os personagens na escritura de Fo, muitas vezes se transformam, como Johan

Padan, em máscaras de tempestade, lua, mar, fogo.

No fundamento de composição semiótica do tipo "alegórica", consiste em atribuir

uma condição de ser normalmente imprópria da coisa a que se refere. Concretude ao abstrato,

pessoalidade ao impessoal, vida, anima, ao que é bruto, estático. Esta condição, muitas vezes,

traz à tona, na troca das atribuições, como acontece nos textos de Fo, a comicidade.

Apesar de não pretendermos nos estender nas definições de alegoria, metáfora e

símbolo, para nos aprofundarmos nos estudos das relações entre corpo-palavra-gestualidade

em Il Primo Miracolo e A descoberta das Américas, é inevitável aceitarmos suas presenças

para uma melhor compreensão da escritura de Fo e para criar conexões intertextuais

concretas, pensando nos sentidos opostos que podem suscitar, por vezes, a gestualidade que

acompanha simultaneamente as palavras, o que veremos mais detalhadamente, no recorte de

algumas cenas, no terceiro capítulo.

A decifração de uma alegoria depende sempre de uma leitura intertextual, que

permita identificar num sentido abstrato um sentido mais profundo, sempre de caráter moral.

Numa alegoria, é também necessário que as abstrações que determinam o sentido alegórico

36 Figura que dá animação ou ação às coisas inanimadas.

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procurado sejam de imediata compreensão, pois apesar, de às vezes, se utilizar da metáfora

que suscita diferentes sentidos, é próprio da alegoria não fazer uso da ambigüidade ou da

plurissignificação, sob pena de se perder a didática moral procurada.

A linguagem alegórica não possui o mesmo dinamismo que a linguagem

metafórica, que é suscetível de variações semânticas mais profundas, ao ponto de não suportar

a repetição de um mesmo significado, nem depender de significados pré-fixados. As

Moralidades, tipo de evento teatral da Idade Média, se utilizava das alegorias para transmitir

o valor dos vícios e das virtudes.

Mas a abertura do sentido da alegoria é uma conquista apenas da teoria da

literatura do século XX. A distinção fundamental entre a alegoria e o símbolo foi estabelecida

durante o Romantismo, e em especial com Goethe e Schlegel.

De uma forma geral, podemos dizer que a crítica romântica da alegoria não é de

caráter rigorosamente científico, e rege-se mais por critérios de gosto de escola, embora tenha

sido recebida com tal entusiasmo, que ainda hoje a desconfiança com que se olha a alegoria

como processo criativo, pode dever-se a essa tradição. Goethe distinguiu assim os dois

procedimentos retóricos:

A simbólica transforma o fenômeno em idéia, a idéia em imagem, e de tal modo que

na imagem a idéia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível e, ainda que

pronunciada em todas as línguas, continuaria a ser indizível. A alegoria transforma o

fenômeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o

conceito permanece limitado e suscetível de ser completamente apreendido e usado,

e pronto para ser expresso por essa mesma imagem. (GOETHE, 1992:188,

Trad. José M. Justo).

A discussão sobre as diferenças entre símbolo e alegoria continua no século XX,

salientando-se as reflexões de Walter Benjamin, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e

Paul de Man. Todos tentam, de uma forma ou de outra, estabelecer a conciliação de ambos os

conceitos, que foi negada pelos românticos.

Enquanto os símbolos são tipos de signos cujo significado deriva de convenções

cristalizadas pelo uso, num dado contexto cultural, a semiose simbólica se estabelece ao modo

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do código e as metáforas e alegorias combinam diferentes signos em expressões que solicitam

um universo semântico hipertextual, a fim de se estabelecer um significado. Metáforas e

alegorias proporcionam ao intréprete uma gama maior de possibilidades de entendimento; são

construções semióticas com vocação natural para a chamada “interpretação aberta”.

A mímica moderna que também está presente na gestualidade e inclusive nas

palavras de Fo, não vem apenas da sua relação, um tanto conturbada, com Jacques Lecoq, por

causa das críticas relacionadas aos clichês passados por Lecoq para seus discípulos, mas da

subjetividade suscitada pela metáfora do gesto, que difere-se da literalidade da pantomima. Fo

conviveu de perto com mímicos de todos os estilos, mesclando em seu trabalho gestual, tanto

a mímica quanto a pantomima.

No teatro que parte da escritura de Fo, o intérprete é o suporte prioritário do signo

teatral, diferentemente de outros tipos de teatro, nos quais há outros componentes constituindo

o todo espetacular, e nos quais, a “significação” estaria mais diluída no todo do espetáculo.

No ‘Il Primo Miracolo’ não tem nenhum gesto imitativo: ‘Ó, te ligo depois’ [mima

ilustrando]. Nada. São gestos que significam. Tem uma palavra mágica no teatro

simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal coisa, e não, isto é tal coisa.

Mas no momento que tu dizes, me parece, não é o ‘parece’. Por que quando tu dizes

‘me’, a tua subjetividade já foi envolvida. Então, eu te dou um molho

suficientemente agridoce para tu não saberes do que é feito. Para tu dizeres: ‘isso me

parece uma comida que a minha avó fazia’. Pronto, estás no anzol. Então, eu te digo

algo que mexe com o teu emocional. Tem diferentes coisas neste molho para que

diferentes pessoas possam se identificar de maneira diferente. E desse caldo é que

sai esta relação.37

Nos espetáculos A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, a utilização que

se faz da palavra na cena, na medida em que se trata de um uso nunca transparente ou neutro,

apesar de claro em sua intenção, serviria como metáfora para entender os espaços que a

palavra não ocupa na sociedade atual. Mas neste caso, o estudo das alegorias e metáforas

explícitas e não explícitas que podem estar presentes no texto, ao contrário, podem nos ajudar

a compreender a ocupação destes espaços vazios, e a maneira como mudam de um lugar para

outro na própria cena, construindo significações distintas.

37 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora em maio de 2007, vide apêndice.

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Conforme Barba,

“É verdade que uma representação teatral comunica algo aos espectadores por

meio de sistemas diversos e complexos de sinais, mas um sinal neste caso não é um sinal em

si e para si mesmo: é algo que se pode tornar assim.” (BARBA; SAVARESE, 2000: 257)

Mais adiante:

Quando os semiólogos analisam uma representação como um complexo de sinais

variados e estratificados, eles examinam o fenômeno teatral pelo fim, pelo resultado.

Não há nada a indicar, entretanto, que seu processo é de qualquer forma útil para os

que devem começar pelo começo, isto é, pelos autores da representação, cuja meta

final é o que a representação será aos olhos dos espectadores. (2000: 257)

A subjetividade da ação, cerne do trabalho de Fo, permite que o espectador

participe da construção do significado, o qual está intimamente ligado as diferentes intenções

que uma palavra pode suscitar e não a literalidade da forma. Assim, o movimento e a ação,

não só a palavra escrita, mas principalmente a escritura que nasce da ação, como em Fo,

abandonam o seu estado virtual e se apresentam no corpo como resultado de um processo de

criação, que organiza diferentemente a relação entre ação e palavra e entre dentro e fora do

corpo, que também pode ser chamado de semiose.

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2.3 A mímica moderna e a estética do movimento

A designação de mimo é geralmente utilizada para nominar uma gestualidade sem

palavras; mas entre os gregos e romanos, mimar significava usar o corpo e a voz, realizar

jogos acrobáticos, cantar e dançar. Segundo Fo,

Em Nápoles, enfim, assegura-nos Bragaglia, assim como outros estudiosos, nasceu o

mimo entendido como um gênero de teatro total, no qual se empregava voz, corpo,

dança e acrobacia... ou seja, o pressuposto fundamental na origem da máscara

napolitana. (FO, 2004: 88)

Nos séculos XV e XVI os commicos dell’arte desenvolveram em outros países,

principalmente na França, procedimentos que saíram embrionários da Itália, quando entraram

em contato com textos satíricos de alta qualidade e a mímica mais desenvolvida.

Na mímica moderna, chamada de mímica subjetiva, nascida na França no século

XIX, o mimo age para sintetizar e sugerir, fazer imaginar, e só obtém êxito, ao contrário do

que se pensa muitas vezes, quando sua gestualidade assume efeitos claros e não cotidianos e

estereotipados que reiteram o jogo das palavras.

Dario Fo em suas obras mescla ação vocal e ação gestual, sons onomatopéicos,

síntese, isto é, os elementos - base da mímica moderna.

Para Jacques Lecoq, com quem Fo trabalhou na Revista Il dito nell’occhio, a

mímica é uma maneira de redescobrir a “coisa” com um frescor renovado, na qual a ação da

mímica redescobre o valor dos objetos e ações, e os atribui novos significados. Lecoq,

juntamente com Giorgio Strehler (1921-1997), foi um dos formadores do Piccolo Teatro de

Milão e alguns dos principais ensinamentos de sua escola passam pelo trabalho com as

máscaras e pela busca do clown pessoal, o qual não se trata de um personagem, mas da

ampliação dos aspectos humanos e “estúpidos” de cada um, isto é, a caricatura de si mesmo.

Foi com Lecoq que Fo aprendeu a usar seus longos braços e pernas e seu sorriso projetado

para fora dos lábios na construção de efeitos cômicos. A mímica para Lecoq é o próprio teatro

e não um universo à parte, como queria Etiénne Decroux (1898 – 1991).

[...] Todo verdadeiro artista é um mímico. A habilidade de Picasso de desenhar um

touro dependeu dele ter achado a essência do touro nele mesmo, que liberou a forma

dos gestos em sua mão. Ele fazia mímica. Pintores e escultores são artistas mímicos

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fantásticos porque eles dividem o mesmo ato da corporificação. (LECOQ apud

MALDONADO, 2005: 97)

O que Fo traz do trabalho com Jacques Lecoq, é a síntese e a idéia de aludir em

lugar de realizar a descrição completa. Colocar em foco detalhes e deixar escapar outros

(Barba nomina este procedimento de Fo de omissão), determinando um estilo e um ritmo

preciso da narrativa. Este trabalho com a síntese se reflete na escritura de Fo, como já vimos,

assim como a metáfora dos gestos e das palavras, na qual um preenche o lugar deixado pelo

outro.

Apesar de possuir conflitos conhecidos com Lecoq a respeito da linha ideológica e

dramatúrgica a ser dada ao mimo, na qual a palavra, por vezes, recebe um tratamento inferior

ao gesto, reiterando os esteriótipos repetidos por todos os mimos formados por ele, e da

permanência da “quarta parede” nos espetáculos, Fo aperfeiçoa, com a preparação corporal de

Jacques Lecoq, para a Revista Il dito nell’occhio ou anti-revista, como quer, a noção de

síntese, o trabalho com a oposição gesto-palavra iniciado com os estudos sobre a commedia

dell’arte, o grammelot e a codificação gestual que “domesticou” o furacão da espontaneidade

de Fo, ensinando-lhe a precisão do gesto.

Fo substitui por aludir a idéia de imitar, abrindo um espaço entre palavra e

gestualidade para que o público preencha através de um exercício imaginativo.

Sobre seu encontro com Jacques Lecoq, em um curso, Roberto Birindelli, ator de

Il Primo Miracolo, comenta em entrevista concedida a autora em maio de 2007:

A mímica. O Dario [Fo] também trabalhou com Lecoq. A precisão da mímica. A

precisão de meio gesto que significa muita coisa. Tem uma diferença brutal entre a

mímica e a pantomima. A pantomima diz respeito à forma, e a mímica diz respeito

ao sentido. Então tu aderes ao sentido. No mimo: [faz o gesto ilustrativo] ‘eu quero

sair contigo para nadar.’ Isso é uma pantomima que tem nos Arlequins. É lindo, é

bárbaro! Mas no Il Primo Miracolo não tem nenhum gesto imitativo que eu construí.

‘Ó, te ligo depois’ [faz o gesto ilustrativo]. Nada. São gestos que significam. Tem

uma palavra mágica no teatro simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal

coisa e não isto é tal coisa. Mas no momento que tu dizes me parece, não é o parece.

Por que quando tu dizes me, a tua subjetividade já foi envolvida. [...] O que eu trago

do Lecoq é o uso do corpo de uma maneira não cotidiana.38

38 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Justamente a idéia cara ao simbolismo era deixar a imaginação do espectador a

liberdade de completar o que não foi dito. Em outro contexto do de Fo, também sugeria o

mínimo de ação para permitir o máximo de tensão, sugerida no desenho plástico do corpo da

personagem.

Jacques Copeau (1879 - 1949), precursor da mímica moderna, trabalhou no teatro

a improvisação da commedia dell’arte e com ela a imaginação criativa, o trabalho com as

máscaras e o jogo; mas um dos elementos mais importantes recuperados por Copeau foi a

eliminação na cena de tudo o que prejudicasse a presença física do ator (idéias que seriam

reforçadas por Jerzy Grotovski mais adiante em seu “teatro pobre”), contribuindo assim para

reforçar a idéia de um ator-criador que pudesse se encontrar sozinho em cena, apesar de que,

para ele, esses recursos deveriam ser utilizados para que o ator servisse melhor ao autor.

Sem pensar em diminuir de modo algum a importância da palavra na ação

dramática, estabelecemos que para ela ser justa, sincera, eloqüente e dramática, seria

necessário que o verbo articulado, que a palavra enunciada fosse o resultado de um

pensamento sentido pelo ator em todo o seu ser, e o desabrochar de sua atitude

interior ao mesmo tempo que da expressão corporal que a traduz. Daí a importância

primordial dada à mímica em nossos exercícios. Fizemos dela a base da instrução do

ator, que deve ser, em cena, acima de tudo um ser que age, uma personalidade em

movimento. Levamos bastante longe este método para que o aprendiz de ator chegue

a ser capaz de ‘figurar’ toda e qualquer emoção, todo e qualquer sentimento e até

todo e qualquer pensamento pela atitude, pelo gesto e pelo movimento, sem o

auxílio da palavra. (COPEAU, 1974:114, trad. J. R. Faleiro)

Já Etiénne Decroux, um dos “pais” da mímica moderna, trava uma batalha radical

ao “império do texto”. Segundo ele, o ator é o poeta da Ação. “Ele é o autor da música

dramática: a que ele compõe, mesmo sem tomar nota, para as palavras daquele que leva o

nome de autor. (DECROUX apud MALDONADO, 2005: 28)

A mímica moderna se diferencia da pantomima, pois ela não só ilustra, mas

mergulha nos movimentos da emoção para tornar visível o invisível. A mímica de Decroux

exaltava a importância da metáfora gestual, diferente da mímica ilustrativa, chamada de

mímica objetiva.

Decroux e Jean Louis Barrault (1910 - 1994) desenvolveram na mímica corporal,

as metáforas, em que um gesto era compreendido e experienciado em termos de outro, com a

finalidade de revelar os sentimentos e as emoções ocultas, mas principalmente, no caso de

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Barrault, a ação vocal, diferencial das obras de Dario Fo e dos espetáculos A descoberta das

Américas e Il Primo Miracolo. Barrault, a quem Antonin Artaud nutria uma profunda

admiração, foi quem iniciou as descobertas no campo da ação vocal e a relação entre sons,

gestos, voz e potencial expressivo da mímica, no qual a respiração tem papel fundamental.

“Fala e gesto não são como pêra e maçã, cachorro e gato, mas uma só e mesma fruta, como

um pêssego de pomar e um pêssego selvagem.” (BARRAULT apud MALDONADO, 2005:

41)

As habilidades artísticas de Dario Fo, e que transparecem em sua própria

escritura, foram desenvolvidas no universo profícuo da mímica subjetiva e seus idealizadores.

Elementos como a síntese do gesto, a precisão, a estrutura do grammelot, a codificação

gestual e vocal, a conciliação entre gesto e palavra no mesmo nível da ação, a oposição entre

gestualidade e palavra e, a instituição do ator-autor-criador surgem embrionários na

commedia dell’arte e vem inspirar a mímica moderna que resgata os elementos e trancende-os

através do trabalho sobre a metáfora das palavras e dos gestos, os quais deixam de focar o

sentido literal e passam a corporificar emoções ao invés de suscitá-las. Estes elementos são os

mesmos que perpassam a obra de Fo e por ele também são lapidados e jogados na

estruturação de sua escritura, as quais, por sua vez, só conseguem alcançar seu valor artístico

através de intérpretes que assim como Fo, são criadores de seu próprio material gestual, como

os atores dos espetáculos analisados. Ambos vêm de uma tradição relacionada à mímica

moderna e ao teatro corpóreo, tendo em comum o trabalho empreendido com o grupo Potlach

na Itália, com Lecoq, com grupos de Teatro de Rua e com grupos brasileiros como o Lume

sediado em Campinas.

Fo enfatiza sempre que o perigo nas montagens de seus textos no exterior é o

excesso de gags gratuítas sem sobriedade nas falas colocadas, grimace (careta) e cacos

absurdos, comprometendo a subjetividade da ação, a qual permite que o espectador participe

da construção do significado, o qual está intimamente ligado as diferentes intenções que uma

palavra e um gesto podem suscitar.

Louis Jouvet (1887 - 1951), citado por Fo em seu Manual Mínimo do Ator,

resume: “o ator que recita cada palavra e não deixa escapar nada, não é inteligente.” (2004:

242). Mais adiante Fo complementa: “[...] é preciso aprender [...] a recitar as intenções

contidas no texto, não nas palavras. (2004: 283)

A construção dramatúrgica de Fo, apesar de possuir muitas distâncias em relação

ao Teatro Físico como tipo específico de teatro, se configura como um teatro corpóreo

baseado na ação e na mímica.

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A mímica, no que tange a qualidade, formalização e estética do movimento,

considera como central a construção de uma expressividade baseada no domínio da

fisicalidade do gesto; construção esta que se fundamenta na redescoberta de tradições teatrais

como a commedia dell’arte, dos mimos medievais e do teatro grego. Ela viabiliza o

desenvolvimento principalmente da precisão e consciência do movimento; mas o ator que

possui a mímica como instrumento para a construção dramatúrgica do texto e da cena deve

superar os limites expressivos da mímica pura e buscar suas próprias ferramentas do

pensamento em ação, como entende Dario Fo.

A mímica entra sempre em função da ação e dos assuntos, nunca como virtuosismo.

Porque o objetivo da gestualidade de Dario Fo é fazer visualizar os objetos e as

pessoas, sem que elas existam concretamente em cena. Nessas circunstâncias, a voz

não descreve, age e deixa, ao gesto, a indicação das circunstâncias; é em torno do

gesto que se organiza a cena inteira. Ao invés de sufocar a palavra, o gesto a

valoriza. (VENEZIANO, 2002:185)

O corpo como linguagem disponível ao exercício de linguagens variadas é o cerne

do teatro corpóreo, assim como a consciência das ações, a transformação das ações em ações

simbólicas, trabalhando com a estruturação de partituras e composição de sentido, nas quais o

corpo transforma-se em artífice e objeto, como nos espetáculos analisados.

O corpo como “espaço expressivo” torna-se metalinguístico, espaço no qual se dá

o aprendizado da expressividade do próprio corpo na relação com impulsos interiores e a

forma exterior. O corpo será tomado como expressivo em si mesmo, tratando de descobrir sua

fala corporal característica, bem como outras possibilidades articulatórias dessa mesma fala.

A mímica, neste caso, amplia a linguagem corporal favorecendo a escolha e

ampliação de gestos, bem como extrema limpeza de linhas e desenhos, criação mágica de

espaços e objetos, auxiliando na precisão necessária e no aumento da dramaticidade do

desempenho corpóreo - utilizando o mínimo de esforço e o máximo de resultado – análise e

improvisação.

Pertencendo a uma geração de pedagogos da mímica moderna, Dario Fo, ao

gênero dos criadores humanistas que se envolvem em todas as funções da prática teatral,

concebe sua escritura para servir ao ator e não o contrário, estando a eficácia de sua

dramaturgia dependente do conjunto de habilidades corporais e vocais do ator.

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A mímica moderna e principalmente a mímica contemporânea, trazem elementos

que fazem do corpo uma “máquina de narrar” capaz de extravasar os conflitos daquele corpo

que escreve, e, como diz Jean-Pierre Ruyngaert, apesar de sua inclinação para o teatro do

texto, o corpo do ator é o “aquilo” por onde a linguagem verbal tem de passar via respiração e

voz, “à procura do essencial, já que aquilo que não se pode falar é o que se deve dizer”.

(1998:178) Neste corpo que mima a narrativa, não necessariamente a narrativa das palavras,

podendo promover a oposição, a teatralidade está expandida materialmente no corpo do ator,

que determina as relações estéticas com os outros elementos, como o espaço.

A figura do mímico exalta esta idéia desde o seu surgimento. Embora a consciência

desse corpo só aconteça na fase contemporânea, ele pensa com ele e não por meio

dele; sua movimentação é o seu próprio pensamento, sua dramaturgia é a do corpo,

sua emoção, seus sentimentos e seu raciocínio estão no gesto e no andar, no busto.

Seu corpo é sentimento, objeto, natureza. A relação dentro/fora é integrada e

corporificada, constantemente, na interação de seu corpo com o espaço.

(MALDONADO, 2005:104)

Nesse teatro do corpo a dialética corpo-palavra compreende relações como corpo-

imagem, corpo-espaço e corpo-ritmo.

Fig. 5 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

Fig. 6 Il Primo Miracolo

Video produzido por SCAN Vídeo Produções

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2.4 O espaço vazio: o espaço da imaginação

Os mímicos modernos, principalmente Lecoq, aprofundam o estudo do teatro a

partir das relações entre o corpo e o espaço, entre a arquitetura, os efeitos de cor e do espaço

criado pelas formas e a relação entre gestualidade e espaço.

O corpo visto em seu estado material de corporeidade e a formalização expressiva

dos gestos e sons que se relacionam com o espaço, reforça a situação percebida a partir do

aqui e agora da representação narrativa.

Jacques Copeau introduziu escadas ligando o palco à platéia, quebrando assim a

quarta parede e, compartilhando das idéias de Adolphe Appia (1862 - 1928), queria manter o

palco livre de qualquer aparato que prejudicasse a presença física do ator. Por sua vez, o ator

deveria preencher o espaço com seu corpo, com as ilusões da mímica, construindo superfícies

e objetos imaginários em uma cumplicidade singular com o público, na qual o espaço

permanecesse como um prolongamento do corpo do intérprete.

O palco como espaço físico concreto, onde as percepções espaciais e temporais

são construídas pelo que surge fisicamente no espaço, a relação mecânica e material com este

corpo evidenciado de Fo e dos atores que trabalham a partir de sua escritura, como Julio

Adrião e Roberto Birindelli, auto-evidencia o espaço, causando uma revelação do não-visto,

do não-ouvido e do sem-lugar.

Peter Brook (1925 -), encenador contemporâneo, possui um estudo sobre o vazio

que vai além do espaço, mas converge para todos os tipos de espaço vazio, seja ele o vazio do

próprio físico do ator, como recipiente pronto para novas experiências, como para o vazio do

palco nu.

[...] a gente fala de espaço vazio e tem que falar de Peter Brook. Mas também tenho

que falar de Dario Fo. Se eu te coloco um cenário mais impositivo, menos a tua

imaginação vai estar livre para que se estabeleçam as conexões com o teu subjetivo.

‘Uma rosa é uma rosa e é uma rosa’. Agora, se a rosa que eu te coloco é de celofane

de uma carteira de cigarro queimada, esta rosa te diz muita coisa. Então, quanto mais

livre e neutro o espaço, para mim é melhor. 39

39 Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Partir do vazio significa antes, partir de um ponto infinito de possibilidades, assim

como requer um longo e rigoroso aprendizado. Retirar os excessos e provocar rupturas geram

um deslocamento que permite um permanente ajuste de posições e, que pode, efetivamente,

criar uma relação dinâmica entre o teatro e seu público.

Ao lado do desenvolvimento técnico que ampara, que sustenta o processo de

criação, deve haver sempre um espaço vazio, um lugar aberto para o inesperado. Brook fala

especificamente desta relação entre narrador e espectador, que através da emergência do

momento presente se coloca diante do público e começa a narrar. A esta liberdade que se

estabelece entre narrador e público, Brook compara à liberdade do romance, no qual a relação

entre escritor e leitor é fluída, sem entraves. Sobre este campo do imaginário, que se

estabelece através da relação entre narrador e espectador, está sempre presente uma idéia de

vazio como um campo de possibilidades e, que pode designar sem medo de errar, apesar das

diferenças, a obra de Dario Fo e o teatro que parte de suas escrituras, pois Fo se configura

mais como um ator-narrador de histórias.

Segundo Brook, é em Shakespeare que reside alguns dos princípios propulsores

dos esvaziamentos que, segundo ele, tecem a trama teatral, pois uma das maiores liberdades

do teatro elisabetano é a ausência de cenário que permitia a Shakespeare explorar o

imaginário do espectador, sugerindo sucessivas imagens capazes de dar conta de todo o

universo físico.

O teatro é codificado. No elizabetano, chega um cara, pega um galho e diz: ‘eu sou a

floresta de Sharwood’. Pronto, ele é a floresta de Sharwood. Dois segundos depois

ele está na corte de Henrique VIII, ou então é Macbeth, ou sei lá o que. Então, que

espaço te possibilita esta codificação e voar tão rápido de um espaço para o outro? O

espaço vazio. É que nem figurino. Eu faço vinte e duas personagens e se eu não usar

essa roupa neutra, preta, qualquer elemento que me ajudar para um, vai me

atrapalhar para o outro. 40

Para Peter Brook, a relação ideal com um ator verdadeiro num palco sem cenário

seria como a passagem contínua de um plano geral para um close, como no cinema.

Segundo Dario Fo, o ator sozinho em cena é a mente que dirige os ângulos das

“objetivas” que estão na mente de cada espectador, promovendo os recortes que deseja, hora

chamando a atenção para um “espaço” específico de seu corpo, hora para o corpo inteiro, hora

40 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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para o espaço que o circunda. É exatamente a liberdade e a mobilidade dos códigos que

partem apenas do corpo do ator, que lhe conferem maior flexibilidade, nudez e alcance.

Esta relação de esvaziamento do corpo e de esvaziamento do espaço, traz o

inesperado à tona, pois como diz Brook, deve-se fazer nascer o personagem e não construí-lo.

“O papel que foi construído é o mesmo todas as noites – só que lentamente se desgasta.

Enquanto que, para o papel nascido ser o mesmo, ele tem sempre que renascer, o que o torna

sempre diferente.” (BROOK, 1970: 121-122)

Este jogo de contrastes que é o jogo épico da narrativa, num cenário totalmente

aberto, permite a troca de ambiente numa simples mudança de direção do corpo do ator, ou a

fala narrativa resolve as passagens não só de tempo, como de espaço.

O espaço gestual segundo Pavis, “é o espaço criado pela presença, a posição

cênica e os deslocamentos dos atores: espaço ‘emitido’ e traçado pelo ator, induzido por sua

corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair.” (PAVIS, 2005: 142)

O espaço dramático que contém no texto as indicações sobre o espaço fictício, e o

espaço que o ator sugere com seu corpo como sendo o espaço fictício, interfere

necessariamente no espaço cênico concreto, pois há uma interferência entre iconicidade do

espaço físico concreto e o simbolismo da linguagem.

O espectador/auditor não está mais em condições de fazer diferença entre o que ele

vê com seus olhos e o que percebe em the mind’s eye. E no entanto, na tradição

ocidental, é mantida a todo custo a distinção entre linguagem e cena, donde a

separação entre literatura dramática e prática espetacular. [...] Ao fim dessa

promoção do visual em detrimento ao gestual, a teoria ocidental do espetacular

universaliza a dimensão visual e chega até a excluir, ou pelo menos desvalorizar,

qualquer outro tipo de experiência sensível. (PAVIS, 2005: 144)

O espaço vazio é um espaço psicologicamente concentrado, recaindo a atenção do

público no desempenho e intenções explícitas ou implícitas das personagens. É também, por

outro lado, um espaço aberto, intemporal, não datado, onde tudo pode acontecer.

Um cenário nu, a-histórico, sem referências explícitas, no qual os atores, usando a

excelência do gesto, do olhar, e sentindo o que as palavras designam, criam o cenário,

representando através das suas ações e desejos, um mundo paralelo, mais intenso, mais

grandioso, mais urgente de se resolver.

Logo no início do espetáculo A descoberta das Américas, Julio Adrião nos sugere

o lugar da ação através de sons. Sentimos o mar e o vento conversando, e mais adiante,

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através do som e das ações, vemos o navio flutuando sobre as ondas, as velas subindo e se

inflando, lutas épicas que envolvem alguns mil índios, fugas e perseguições, tempestades;

ações estas, que se passam em pelo menos oito lugares diferentes, em um só palco,

produzidos por um só ator que comunica diretamente para o público.

Um ator de talento não precisa de elementos sobressalentes para sustentá-lo, nem de

uma cenografia complexa às suas costas, tampouco de efeitos sonoros ou de uma

sonoplastia particular. Se ele é sensível, cumpre bem o seu ofício, e se o texto é de

qualidade, são suficientes sua voz e seu corpo para fazer-nos sentir que está

amanhecendo, que lá fora está chovendo, que está ventando, que há sol, que está

quente ou acontece uma tempestade. (MOLIÈRE Apud FO, 2004: 120)

A escritura de Fo, é uma escritura que já estabelece o espaço cênico sem a

restrição de uma quarta parede, pois para se concretizar, ela necessita da comunicação direta

e sem obstáculos entre ator e público. A escritura só se constrói a partir da relação cinestésica

entre a fisicalidade do ator e a fisicalidade do espectador, da troca de olhares, de impulsos e

até de palavras, elementos inseparáveis da arte épica da narrativa oral.

Dario Fo descreve o espectador de espetáculos separado pela quarta parede como

um voyer que assiste com a luz apagada passivamente, gerando uma atenção somente voltada

para a alteração emocional.

O fato de derrubar a quarta parede obcecava os commicos dell’arte e foi através

disto que Molière, também admirador das máscaras da Commedia, como a de Scapino, que

interpretou, entendeu a importância do envolvimento físico do espectador e não tardou em

avançar os atores para o proscênio, a avant-scène.

Por que eu jogo com este espaço circular, com a platéia iluminada? Porque é muito

interessante que as pessoas se vejam nos momentos diferentes em que elas estão.

[...] As reações. Então, é um espaço único, pois não há palco ou platéia, nem um

status quo, a ditadura daquele que está lá em cima.41

A geração de uma presença, de um corpo que se presentifica, mais do que

representa, provoca no espectador uma percepção sensível da pulsação dialética entre corpo e

voz, movimento e peso, energia e equilíbrio, ritmo e espaço, corpo fisiológico e corpo social.

41 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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A síntese é formulada pelo espectador guiado corporalmente pelos atores nesta relação corpo-

espaço.

[...] Então tu lidas com o mesmo nível de luminosidade, sem uma roupa, sem uma

maquiagem, sem nada de especial, sem trilha sonora, sem nada. Eu tiro qualquer

elemento que possa dar uma conotação cênica. São pessoas, e juntas, estas pessoas

podem fazer alguma coisa. É isso que eu trouxe da ‘essencialidade’.42

Patrice Pavis nomeia o espaço objetivo externo de Lugar Teatral; o prédio e sua

arquitetura, sua inscrição na paisagem; mas também um local não previsto para a

representação (espaço alternativo). Divide o espaço interno em Espaço Cênico e Espaço

Liminar: o primeiro é o lugar por onde evoluem os atores e pessoal técnico, como palco,

coxia, platéia; e o segundo é o espaço que marca a separação entre palco e platéia, mais ou

menos nítida, ou entre o palco e a coxia. A liminariedade pode ser marcada pelo “círculo de

atenção” que o ator traça mentalmente para separar-se do espaço do outro.

No caso da representação de Roberto Birindelli em Il Primo Miracolo, o espaço

cênico pode ser descrito em um espaço alternativo qualquer, desde que fechado, pois não é

um espetáculo para rua, mas pode também descrever-se encima de um palco italiano, desde

que o público permaneça também encima do palco, disposto de maneira circular (arena). O

espaço liminar, se configura como uma linha imaginária circular que separa público e ator, os

quais estão em um mesmo plano e no mesmo nível de luminosidade. O espaço liminar

também é descrito pelo corpo do ator e sua gestualidade que preenche todo o espaço circular.

O ator, neste caso, pode “negociar” o espaço com a platéia se esta invade seu espaço de

representação, pois estabelece uma maior liberdade no contato verbal com o público. A

assistência se coloca na platéia quando o ator já está em cena, e este pode ajudá-la a se colocar

em seu respectivo lugar, pois se utiliza do “prólogo” do espetáculo para isto.

Já em A descoberta das Américas, Julio Adrião entra em cena quando a platéia já

está acomodada e não estabelece um diálogo com a platéia, a não ser o essencial da

comunicação entre personagem e assistência, como troca de olhares, comunicação gestual e

vocal dirigida diretamente ao público; isto não quer dizer que o ator não estabeleça uma

comunicação explícita com a assistência, ao contrário, esta comunicação se dá quase que

completamente no nível cinestésico entre o corpo do ator e o corpo do espectador, não

existindo uma comunicação extra-cena. Julio Adrião não utiliza o prólogo em seu espetáculo,

42 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice

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já começando a narrar a estória propriamente dita. O espaço cênico estabelecido é sempre

frontal, podendo estar acomodado em um espaço alternativo ou em um teatro à italiana. A

liminariedade está descrita pelo próprio espaço físico, separado por cadeiras (em espaço

alternativo), onde o público deve sentar-se, ou separado pela disposição palco - platéia em

espaços com palco italiano. A platéia sempre está iluminada, pois a comunicação entre

público e ator se dá através do olhar e da comunicação direta, como já dito.

A configuração do espaço em ambos os espetáculos denotam o nível de

interferência permitida ao público na comunicação estabelecida. Julio Adrião possui uma

sucessão de partituras mais fechadas (o que não quer dizer definitivas), nas quais o ritmo ágil

e encadeado, não permite a interferência de perguntas ou respostas do público, ou de uma

improvisação para o inesperado exterior.

Se acontece alguma coisa, eu nunca paro, eu olho para o outro lado mesmo, pois eu

tenho que seguir o meu fluxo em respeito aos outros. O público, às vezes, fala

alguma coisa junto, pois já sabe o que eu vou dizer, mas eu não paro para comentar.

Tem partes que são muito importantes que as pessoas entendam o que está sendo

dito, por exemplo: ‘O mais difícil foi explicar que o terceiro da Santíssima Trindade

era um POMBO...’. Eu não falava claro, aí as pessoas diziam: ‘o que?’ e eu

respondia: ‘UM POMBO’. O que é importante ser entendido, tem de ser entendido

logo. Então, eu me esmero para que o público entenda, e o que não é importante, eu

não repito. Se o cara está rindo e eu acho que a risada não é importante ali, eu não

dou tempo para ele rir. Mas se eu acho que é, eu dou um tempo. Eu transformo o

público em índio, em espanhol [...].43

Em A descoberta das Américas, Julio Adrião provoca na platéia, com sua

gestualidade e virtuose corporal, reações dignas de um jogo de futebol, no qual a platéia torce

fisicamente pelo sucesso do anti-herói Johan Padan. Como é uma narrativa épica e grandiosa,

a gestualidade desenhada no espaço pelo intérprete Julio Adrião e seus recursos vocais, abrem

a cena para um plano maior do que o visto, abrindo as “objetivas” com muita freqüência para

um espaço virtual muito mais grandioso do que o real.

O espectador tem uma capacidade de intuição que lhe permite ir além da visualidade

proposta pelo espetáculo que está sendo apresentado. O comportamento desse

espectador é equivalente ao de um leitor que, seguindo as descrições literárias de um

romance ou de um conto, imagina e ‘vê’ o que está sendo narrado como se os

43 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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lugares e os espaços nos quais os ‘heróis’ estão agindo estivessem à sua frente. [...]

Penso que a proposta visual do espetáculo deveria sugerir e não impor, abrindo

espaço para a criatividade de quem está assistindo. (RATTO, 1999: 24)

Roberto Birindelli estabelece um jogo para ser visto de muito perto, com uma

gestualidade menor, com pequenos detalhes, no qual as “objetivas” escolhidas pelo ator,

estabelecem com maior freqüência planos recortados e focos mais fechados, priorizando

pequenas partes do corpo. A comunicação é rebatida pelo ator por menor que seja a

interferência, ruídos externos, perguntas do público. Como o público está muito perto, a maior

parte de seus movimentos interferem diretamente na cena e não podem escapar. Indagado

sobre a liberdade de interferência do público e a freqüência com que ela acontece, Roberto

Birindelli responde:

Direto. Eles cantam junto. Tem três músicas. Uma é um ‘mico’. Então eu estabeleço

essa relação já no prólogo. E quando eu conto a estória, eu propositalmente ‘esqueço’

algumas palavras: ‘Como se chama aquele bastão que tem os bispos? E aquele

chapéu?’ E fica claro que eles podem se meter a qualquer momento, e eu me viro,

claro, para responder.44

O palco vazio, o espaço vazio, como diz Peter Brook, está sempre à espera de ser

cheio com um mundo paralelo, e necessita para isso, de um teatro despojado de artifícios (sem

adereços e cenários) centrado no jogo inteligente dos atores (dotados de muita eficácia

técnica, ritmo, voz, expressão) utilizando a semiótica teatral, linguagem poderosa de

comunicação.

[...] A personagem que se movimenta nas áreas que lhe são atribuídas cria

constantemente novos espaços alterados, consequentemente, pelo movimento dos

outros atores: a soma dessas ações cria uma arquitetura cenográfica invisível para os

olhos mas claramente perceptível, no plano sensorial, pelo desenho e pela estrutura

dramatúrgica do texto apresentado. (RATTO, 1999: 38)

Dario Fo em suas escrituras estabelece códigos com o público em uma

comunicação de cumplicidade com a platéia. Os atores de A descoberta das Américas e Il

Primo Miracolo, estabelecem códigos gestuais que podem ser identificados pela platéia

44 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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durante o espetáculo, os quais permitem com que a fala possa ser suprimida, por vezes, e a

platéia num misto de prazer e surpresa identifica os códigos em uma comunicação que

podemos chamar de cinestésica e sensorial com o ator, como veremos no terceiro capítulo.

Uma das dimensões consideradas importantes para o desempenho do ator, não

apenas ao nível da técnica de representação (viver a personagem como certeza, mas também

como eterna possibilidade), mas também ao nível da mediação interior (predisposição do ator

em assumir o vazio), é encarar na sua atuação o vazio interior, o medo do vazio.

Nesse espaço simples mas limitado, nesse território de possessão e crença, o ator

vive as contradições próprias da sua personagem, tal como nas obras de Shakespeare.

Peter Brook entende o espaço essencialmente como ferramenta (daí empregar por

vezes o termo “espaço formal”), no sentido em que pode ser tratado tanto ao nível da

determinação dos seus limites físicos, como em termos de materiais empregues.

Temos então, duas principais vertentes do conceito de espaço vazio: uma, na

determinação de um espaço formal subjetivo (intemporal e a-histórico); outra, o vazio interior

que o ator deve conceder à personagem.

O importante é a criação do momento presente, a comunicação autêntica entre

atores e público, pois toda ação transformadora, nos diz o teatro de Peter Brook, é uma

superação do medo do vazio.

Um “teatro do vazio” valoriza a presença do espectador ao apresentar uma estória

na qual a sensibilidade e a inteligência do público são cutucadas com vara curta pela

inteligência, sensibilidade e inventividade dos artistas. Uma representação na qual os olhos

dos atores, contemplando o vazio, criam imagens que serão tão diferentes quanto numerosos

forem os espectadores.

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2.5 Gesto e palavra: o ritmo e a oposição em A descoberta das Américas e Il Primo

Miracolo

Quanto mais o teatro se afasta do realismo, mais cresce a importância do

movimento dentro da encenação; ele é uma possibilidade de codificação não-verbal de

extrema riqueza, um código a ser fielmente marcado, grafado e, tanto acompanha as palavras

como se insurge contra elas, denunciando suas lacunas, criando para o espectador um hiato

em uma coreografia de significados contrastantes.

Quando movimento e palavra perdem o vínculo que parecem ter na vida cotidiana,

se isolarmos, subtrairmos o gestual do ator de seu contexto e imprimirmos a ele outras

características, então chegaremos a uma seqüência que segue uma outra lógica como a dos

sonhos, que brincam e disfarçam seus verdadeiros motivos e significados até despistarem ou

recriarem os mais latentes sentidos.

A dialética entre corpo-gesto-palavra na cena de Fo emprega vantajosamente o

conflito dinâmico dos opostos. Jacques Lecoq ensinou a Fo a utilizar seu corpo desengonçado,

a utilisar ao máximo os recursos da cena, os mecanismos da risada, as gagues, as expressões

arregaladas, os diversos modos de gesticular e andar que permitem ao ator passar de um

personagem a outro sem a ajuda de nenhum recurso cênico, mas principalmente, a fazer

exatamente o oposto do que está sendo dito em palavras, procedimento que se transformou em

um dos preferidos de Fo.

Com a farsa, na qual a situação servia para impulsionar diversas gagues,

equívocos e qüiproquós, Fo afastava qualquer possibilidade de verossimilhança e,

Se de um lado havia o conjunto de gagues físicas, em contraste havia diálogos

surreais, destinados a inverter o sentido entre o banal e o literário, entre o figurado e

o literal, num jogo semelhante, porém mais desenvolvido, àquele já experimentado

com Lecoq, quando o corpo dizia o inverso das palavras. (VENEZIANO, 2002:

125)

As gagues nas farsas de Fo, reforçando as falas ou traindo o seu sentido,

resultavam em um ritmo mais intenso e eficiente para o desenvolvimento das ações. Os

monólogos de Fo, assim como outros tipos de espetáculo criados por ele, trazem este jogo de

oposições que trouxe da Revista e das farsas.

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O que dá o suporte para o funcionamento das gagues, para o efeito de oposição

entre gesto e palavra, para as chaves cômicas e timing da narrativa, é o ritmo.

Segundo Fo, a qualidade das tiradas do Boccaccione45, tipo de personagem que

aparecia nas comédias gregas de Aristófones e fazia comentários e pilhérias a respeito do

público, “não estava no texto, mas na velocidade, ritmo e timing que o ator conseguia

imprimir [...]”. (FO, 2004: 46)

O discurso verbal e o discurso corporal podem chocar-se ou corroborar com um

mesmo significado. É possível manter duas conversas paralelas, cada uma acontecendo em

um nível e levando a comunicação estabelecida para direções diferentes. O que as palavras

afirmam a cada instante parece ser negado pelas mensagens não verbais emitidas por meio de

gestos e de sinais.

Existiram estudiosos das relações gestualidade-palavra como Meierhold, Decroux

e Artaud, que apostaram justamente na oposição em relação ao gesto e a palavra, na qual o

corpo produz um contraste de forças, por vezes opostas, entre o que fala o corpo e o que diz a

palavra.

A oposição é o cerne das pesquisas de Meierhold, nas quais a plasticidade não

corresponde às palavras em muitos casos. Como a essência dos relacionamentos humanos é

determinada pelo corpo, pelos gestos, posturas, olhares e silêncios, as palavras não dizem

tudo. Conseqüentemente para Meierhold, em uma visão ainda superficial de sua obra, a

integração entre corpo e palavra, ou corpo e silêncio é a principal dialética do seu “novo

teatro”.

Isto significa que na oposição, corpo e gestual também podem seguir o ritmo

oposto ao ritmo das palavras: a sincronia entre os ritmos físicos e vocais também é rompida

em alguns casos.

As palavras atingem o ouvido, a plasticidade o olho, assim a imaginação do espectador

é exposta a dois estímulos: o oral e o visual. A diferença entre o velho e o novo teatro é

que no novo teatro, a palavra e a plasticidade seguem cada um seu próprio ritmo, sem

necessariamente coincidirem. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE,

1995, 154)

Meierhold acreditava que o jogo de oposições da biomecânica poderia ser

sustentado pela estética do grotesco. Apesar da multiplicidade de sentidos e referências já

45 Os personagens que mais se aproximam do Boccaccione são os Zanni e o Pulcinella.

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abordados de muitas maneiras, a estética do grotesco já é por si só paradoxal, pois o exagero

escatológico faz-nos rir de coisas chocantes e chorar diante de coisas normalmente risíveis,

trazendo à tona um princípio de estranhamento.

Segundo Dario Fo, na base das antigas e importantes formas da tragédia

conhecidas, encontramos a catarse do riso e do obsceno sexual, liberadores da luz e da

harmonia. Dessa maneira, o ressentimento, o ódio e o medo, em todas as representações

populares, são exorcizados e dissipados no jogo do grotesco. Para ele, o teatro didático

deveria utilizar-se do grotesco para impedir a catarse liberatória, promovendo uma catarse

consciente e permanente.

O grotesco, presente em quase todas as vanguardas artísticas do início do século

XX, nas manifestações cômicas da Idade Média e Renascimento e, nas quais o riso

acompanhava as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana, os bufões e giullari assistiam as

funções do cerimonial sério e parodiavam seus atos. O riso popular que se organiza no

grotesco e que satiriza o elevado, o espiritual, o ideal, sempre se manifesta no plano material

do corpo e da terra, portanto, na gestualidade mundana dos histriões e bufões na degradação

do sublime.

A formação básica do grotesco está no exagero, na caricatura, no satírico e no

fantástico, na imagem; unindo trágico e cômico ao mesmo tempo.

Apesar de o grotesco de que fala Meierhold e o grotesco de que fala Dario Fo

possuírem a mesma matriz baseada na gestualidade e no movimento, a estética grotesca de

Meierhold propositalmente terá um jogo de oposições criado e estudado a partir da

plasticidade que não se reduz a figuras de estilo. É através do grotesco que Meierhold

pretendia tirar o espectador do comodismo, provocando um deslocamento de significados e

surpresas constantes. Em Fo, a oposição aparecerá em diversas chaves cômicas, não

necessariamente só na chave grotesca. As oposições em Fo são menos aparentes e freqüentes,

mas estão assim como em Meierhold diretamente ligadas a gestualidade e ao ritmo.

A arte do grotesco está baseada numa luta entre o conteúdo e a forma. O grotesco

não opera apenas no alto e no baixo, mas confunde os contrastes, criando

deliberadamente contradições agudas. [...] O grotesco aprofunda a vida cotidiana até

que ela pare de representar somente o que é comum. O grotesco une, em síntese, a

essência de contrários e induz o espectador a tentar resolver o enigma do

incompreensível. [...] Por meio do grotesco obriga-se constantemente o espectador a

manter um duplo comportamento para a ação cênica, que passa por mudanças

súbitas e abruptas. No grotesco uma coisa é essencial: a tendência constante do

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artista de transportar o espectador de um plano recentemente alcançado para outro

totalmente inesperado. (MEIERHOLD apud BARBA; SAVARESE,

1995:156)

Os gestos passam a ser escutados através de seu plano material e rítmico, e as

palavras, passam a ser compreendidas por sua corporeidade rítmica e pela síntese do que elas

significam (através da gestualidade), não pela sua forma.

A coisa mais importante é a linguagem, que não significa usar determinados

advérbios ou uma determinada composição gramatical. Significa usar a totalidade do

teatro, com gestos, sons, cantos, palavras, cores, danças. Lembro, sobretudo, que

cada elemento tem um significado próprio para o ritmo: a tonalidade, os momentos

onomatopéicos, etc. Uma mesma frase pode ter um significado dramático ou

grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os diferentes atores, entre o ator

e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público. (FO apud

VENEZIANO, 2002: 218)

Ne representação de sua História da Tigresa (1970), Dario Fo, em uma passagem

que podemos tomar como exemplo para ilustrar os procedimentos utilizados por ele e pelos

atores de A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, utiliza a oposição baseada no ritmo

gestual e as onomatopéias que substituem as palavras.

Nesta estória que mima Fo, em um pequeno resumo, um camponês narra a sua

saga e inúmeras aventuras que passou quando integrava o Sétimo Exército (comandado por

Mao Tsé-tung e Chu-té). Quando realizaram a Grande Marcha com centenas de homens,

atravessando toda a China e, morrendo aos montes pelo caminho, em um certo momento, o

soldado (ele mesmo) foi atingido por um projétil na perna. Impossibilitado de continuar, pede

aos outros que sigam a marcha deixando-o para trás. Seus companheiros contrariados

deixaram-no, e pouco tempo depois, iniciou-se uma grande tempestade transformando tudo

em um imenso rio. O soldado se arrasta e consegue encontrar uma caverna escura, e dentro

dela, uma família de tigres enormes, com a qual terá de conviver e dividir a comida, ou quem

sabe, ser a comida. Quando Fo mima a tigresa querendo dar de mamar para ele, pois os

filhotes a rejeitavam com as barrigas cheias de água por causa da enchente, ele diz a ela: “não

quero, obrigado, não estou com fome” e, ao mesmo tempo, mama contrariado. A tigresa, com

as tetas cheias de leite, esmaga-o, enquanto ele continua a dizer: “não obrigado, já estou

satisfeito” e, simultaneamente, continua a mamar e a falar de boca cheia, mudando as

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“objetivas cinematográficas”, os enquadramentos, com sua própria gestualidade, hora para

ele, hora para a tigresa, em um jogo hilariante.

A mudança de enquadramento, a “objetiva”, sempre foi largamente utilizada pelos

cômicos que através de uma ação mais ampla mudavam o foco de atenção do espectador para

todo o palco ou para um pequeno detalhe de seu rosto. Considerando que possuímos

“objetivas-clichês” já instaladas comodamente em nossos cérebros, é necessário um esforço

do ator para despadronizar estes “zoom”. Fo ainda fala no ritmo em que suga o leite,

aumentando em ritmo crescente, da mesma forma como aumenta a sua agonia por ver que não

pode contrariá-la, pois sabe que pode ser a próxima janta.

Cansado de assar as presas que a tigresa e seus filhotes caçam como se fosse uma

“dona de casa”, como ele mesmo diz, preparando sempre ele o jantar, o soldado-camponês

sai, enquanto o filhote grita: “Mama, l’scapa!” (Mamãe, ele está fugindo!). Durante toda a

encenação Fo empreende uma “construção de sentido”, elemento que iremos chamar assim e

do qual trataremos mais adiante, fazendo o rugido do tigre na mesma cantilena e ritmo da

frase a qual quer aludir. Depois diz a frase em italiano ou em dialeto no mesmo ritmo do

rugido. Nesta situação que narramos, Fo faz justamente o contrário, pois o próprio filhote fala

a frase no ritmo do rugido substituindo o OEAUHH!!!. Este é um recurso que se utiliza

diretamente do ritmo das palavras sem exatamente utilizar a própria palavra em si, no qual o

intérprete faz a construção de sentido para depois aludir a ele.

Há trinta anos, durante a montagem de Dito nell’occhio (Dedo no olho), ao lado de

Lecoq, aprendi a demarché (modo de andar) do felino [...]. A questão é que mesmo

conhecendo essa caminhada, que é elegante, de efeito e aproxima-se bem da real, eu

não a usei durante toda a apresentação [da História da Tigresa]. Por quê? Para evitar

ser descritivo, é justamente isso, pois teria banalizado o conto, em vez de reforçá-lo.

É preciso reunir a coragem e a inteligência de aludir em lugar de realizar a descrição

completa. [...] Isto determina um estilo e um ritmo mais denso da narrativa da

história. (FO, 2004: 241)

Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, assim como em várias

escrituras de Fo, a oposição gestualidade x gestualidade ou gestualidade x palavra, está

também diretamente relacionada à troca quase simultânea de personagens. Em “A história da

Tigresa”, Fo enquanto diz a fala do camponês contrariado, mima quase simultaneamente a

tigresa lhe impondo alguma ação. Em A descoberta das Américas, para citar alguns de

diversos exemplos, Julio Adrião faz Johan Padam abrir a porta da casa de sua “namorada-

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bruxa” e, enquanto os inquisidores entram para levá-la, ele diz: “O que é isso?!!! Como vocês

entram assim?”, ao mesmo tempo que se coloca ele mesmo no corpo de sua namorada que

grita e, uma de suas mãos, personificando os inquisidores, a puxa pelos cabelos em uma

situação hilária. Estes “jogos de oposição” estão sempre relacionados a um jogo rítmico

encadeado e, por vezes, mais acelerado.

Fig. 7 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

Johan Padan e seus amigos embarcaram por acaso em uma caravela que estava de

partida para uma expedição que acaba por descobrir a América. Quando chegam a Flórida,

encontram uma tribo imensa de índios e em um determinado momento, os índios os prendem

pelas mãos e pelos pés. Johan diz que está com medo, que não sabe para onde os índios estão

os levando, ao mesmo tempo que mima ser puxado por eles, saindo aos pulinhos.

Em outro momento, as índias de uma tribo, para deixar Johan e seus amigos mais

contentes, os levam para a cachoeira. Elas os lambem, passam ungüento, os dão mordidinhas.

Johan faz os gestos das índias enquanto ele recua e ri com as cócegas. Mais adiante, quando

Johan vai domar os cavalos chucros trazidos da Europa na expedição, para mostrar aos índios,

ele descreve como domará o cavalo, enquanto ele mesmo faz o cavalo chucro que se debate e

relincha.

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Fig. 08 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

Um exemplo de oposição entre gestualidade e palavra está em uma das cenas

finais do espetáculo. Enquanto Johan diz: “antes que a situação degringolasse, eu ‘deixei’ que

os espanhóis seguissem pela floresta acompanhados dos canibais”. Enquanto isso, Johan

acena para eles e sorri, ao mesmo tempo que diz: “nunca mais ouvimos falar nem deles, nem

dos canibais”.

Já em Il Primo Miracolo, os jogos de oposições estão presentes nas ações

extracotidianas, e por vezes, abstratas. As palavras estão sobrepostas nestas partituras de

ações construídas passo a passo pelo intérprete e, as quais, identificam principalmente as

ações de cada personagem. Algumas das partituras de ações das personagens estão

construídas a partir de imagens de quadros da série “Retirantes” de Cândido Portinari (1903 –

1962), como veremos no próximo capítulo.

Quando entra em cena o mensageiro que traz uma ordem de Herodes para que os

pais levem até ele os meninos recém-nascidos, o intérprete mima com a gestualidade própria

do mensageiro e diz: “Ouçam mães, mulheres! Quem de vocês pariu nos últimos três dias um

menino, pode ficar contente porque o rei decidiu dar um prêmio ao menino mais bonito.

Levem-no ao palácio. Levem-no à casa de Herodes e, o menino mais bonito vai ter uma

coroinha onde se lê: Oh, como é bonito este menino!”. Toda vez que o mensageiro fala

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“menino”, ele coloca a mão espalmada sobre a cabeça, e faz um movimento para frente e para

trás, talvez identificando o ornamento da cabeça do mensageiro, desconectado de qualquer

verossimilhança.

Mais adiante, o intérprete narra o desespero das mães com seus filhos mutilados

por Herodes, determinado a encontrar o “salvador”. Enquanto o intérprete fala: “Neste

momento, ouve-se o choro pelas ruas. Ouvem-se os gritos desesperados das mulheres, das

mães com seus filhos ensangüentados, cortados em pedaços”, o intérprete anda devagar,

curvado, falando bem baixinho, em um ritmo contrário ao desespero das mães da cidade.

Figs. 09 e 10 – Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Vídeo Produções

Os jogos de oposições nos espetáculos analisados, muitas vezes, partem da

construção gestual, vocal e rítmica, isto é, da construção da linguagem, dos próprios atores

para o espetáculo. Na escritura de Fo e dos espetáculos analisados, a comunicação

gestualidade-palavra, ao fazer com que as palavras se choquem, que os fonemas se oponham

no grammelot e as variedades dialetais se enfrentem através de linhas melódicas distintas,

arrastam a linguagem (palavras e gestos) mais além de um sistema de oposições.

O ator, na sua ação, deve ser capaz de criar uma síntese que contém a essência dos

contrastes, e essa síntese deve ser materializada por meio da plasticidade, por meio

do desenho dos movimentos cênicos que Meyerhold também chama de dança.

(BARBA, SAVARESE, 1995:156)

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Com o Teatro de Revista, Fo também aprendeu a combinar mímica e pantomima

ao ritmo musical. Apossou-se da pesquisa musical, ampliou-a e imprimiu nela a sua própria

pesquisa gestual.

A escritura de Fo contém o próprio ritmo de seu espetáculo que Franca Rame, sua

esposa, não deixa desandar com suas batidas na coxia. Este reescrever da escritura, contém o

elemento mais importante para Fo: “o tempo teatral”.

O ritmo geral da encenação, dispõe as ações cênicas no tempo organizando os

materiais falantes em deslocamento no espaço e no tempo, isto é, a organização “musical” das

palavras e das ações.

É preciso ensinar aos atores a sentir o tempo em cena como o sentem os músicos.

Um espetáculo organizado de modo musical não é um espetáculo no qual se faz

música ou então se canta constantemente por trás da cena, é um espetáculo com uma

partitura rítmica precisa, um espetáculo cujo tempo está organizado com rigor.

(MEIERHOLD apud PAVIS, 2005: 134)

Uma encenação pode adotar um ritmo que parece muito lento, mas que devido à

relativa freqüência das mudanças na atuação, parece acelerar o movimento e mantém alerta a

atenção do espectador; ou pode durar muito tempo e dar a impressão, através do ritmo das

ações, que o tempo que se passou foi muito menor, como nos espetáculos analisados.

Para não denunciar o ritmo que está por vir, segundo Fo, é preciso encontrar

microrítmos dentro da ação, na consciência dos tencionamentos e destencionamentos.

O principal elemento visível comentado na literatura crítica em relação ao ritmo

nas obras de Dario Fo, é a quantidade de gagues, que, reforçando as falas ou traindo o seu

sentido, resultam em eficiente ritmo para o desenvolvimento das ações do espetáculo. Franco

Quadri, citado por Neyde Veneziano (2002), também comenta os movimentos conjuntos

exasperados e mecânicos que encontramos registrados em sua escritura. “Uma mesma frase

pode ter um significado dramático ou grotesco, segundo o ritmo que foi determinado entre os

diferentes atores, entre o ator e o personagem e, principalmente, entre o ator e o público.” (FO

apud MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 218)

Os elementos que podem servir de métodos de análise do ritmo, segundo Pavis,

podem estar também associados à palavra, pois ela se deixa melhor apreender pelos efeitos

binários como silêncio/palavra, fluência rápida/lenta, acentuação/não-acentuação,

destaque/banalização, tensão/relaxamento. Já no fôlego examina-se sua extensão, seu

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encadeamento, organização sintática e semântica de cada grupo e na função dos movimentos

de pausa, a estruturação do pensamento, momentos recaptulativos, conteúdo semântico. Na

prosódia, a intensidade, duração e altura formam a base para a percepção das mudanças de

quadros rítmicos.

O sucesso de uma obra depende muito do encadeamento rítmico dado à ela,

principalmente em um monólogo, que facilmente pode tornar-se monocórdio. Neste caso a

variação rítmica consciente, é de extrema importância para a criação da imaginação no

espectador.

Sobre a primazia do ouvido no teatro, no qual as ações são antes “escutadas” do

que percebidas diretamente, Deleuze comenta no contexto da obra de Carmelo Bene, mas

perfeitamente aplicável à obra de Dario Fo:

Na variação, o que conta são as relações de velocidade ou de lentidão, as

modificações destas relações, na medida em que comportam os gestos e os

enunciados, segundo coeficientes variáveis, ao longo de uma linha de transformação.

É neste sentido que a escritura e os gestos [...] são musicais: porque toda forma se

encontra deformada nesta linha por modificações de velocidade, que faz com que

não se repita duas vezes o mesmo gesto ou a mesma palavra sem obter

características diferentes de tempo. (DELEUZE, 2003: 92, tradução nossa)46

Ao lado da figura que o ator constrói em cena com os seus gestos, seus

movimentos e suas ações, o ritmo da narrativa constituirá o caminho para o encontro com a

linguagem teatral, linguagem física que se constitui não como espelho da vida mas como um

duplo, um outro tipo de jogo de oposições, palavra/gesto, peste/cólera, como queria Artaud. A

força intrínseca ao movimento do corpo, é capaz de desorganizar a razão, reenviando-a o

tempo todo para o fugidio campo das sensações. Os gestos traduzem a lógica interna da

produção do sentido, representa os ritmos pelos ritmos, as formas por si próprias.

Fundindo e alternando explicações com interpretações, Dario sobrecarrega-as com

farto gestual. Seu objetivo é deixar claro que o gesto é um dos principais meios da

comunicação popular e que a gestualidade existe para completar ou contradizer o

sentido da palavra e das frases. No popular, não existe divisão entre voz e corpo. [...]

46 En la variación, lo que cuenta son las relaciones de velocidad o de lentitud, las modificaciones de estas relaciones, en la medida en que comportan los gestos y los enunciados, según coeficientes variables, a lo largo de una línea de transformación. Es en este sentido que la escritura y los gestos [...] son musicales: porque toda forma se encuentra deformada en esa línea por modificaciones de velocidad, que hace que no se repita dos veces el mismo gesto o la misma palabra sin obtener características diferentes de tiempo.

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Parte então para a reconstituição da linguagem e do ritmo dos giullari .

(VENEZIANO, 2002: 176-177)

Sobre o ritmo da escritura de Fo, Franco Quadri comenta:

Não é verdade que os textos de Fo, como é comum dizerem os atores-autores que

confeccionam a história em conjunto, sejam somente um tipo de canovacci para

preencher com as interpretações. É necessário observar que as comédias publicadas

estão longe da prolixa arritmia dos escritos originais, enxugados e retocados durante

os ensaios [...]; no final das réplicas, chega-se a verdadeira transcrição do

espetáculo, que compreende também as invenções mímicas e pode sugerir, até,

novos espetáculos e caminhos para as interpretações. (QUADRI apud

VENEZIANO, 2002: 133)

Os gestos em Fo são alterados para atingir significados mais precisos e sutis e são

repetidos em momentos diferentes do espetáculo, isolados, aumentados, diminuídos em seu

tamanho e projeção, interrompidos, aglutinados e misturados a signos completamente opostos

ou reafirmados por signos idênticos em intensidade ou ritmo.

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3. O CORPO SUBLINHADO : A CORPORIFICAÇÃO DO TEXTO

3.1 A narrativa do corpo: repetição, quebras, descrição e criação de sentido na

construção das ações em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo

O meio mais direto, que traz a própria força e o estilo até

das entranhas do teatro popular, é o monólogo. (FO apud

VENEZIANO, 2002:170)

Desmontar o que o gesto tem de cotidianeidade para convertê-lo em ações teatrais

desde o exagero, a descrição, a fragmentação, as quebras, intervém diretamente nas

características do tempo, espaço e energia de sua essência, abre múltiplas possibilidades e

insuspeitadas variações.

Como uma escritura própria do corpo, a cena de Dario Fo apresenta-se como uma

das “visibilidades do teatro”, através da riqueza das imagens, da estratégia dos silêncios, de

quebras e de ritmos, dando lugar à criação de uma linguagem física a base de gestos e

palavras.

Podendo ser econômicos, abundantes ou repetidos, a ponto de nos confundir com

respeito ao seu significado original, os gestos em Fo podem ser deslocados para outros

contextos cênicos, os quais nos obrigam a achar novos sentidos para sua existência.

Analisando a obra de Dario Fo e as montagens de A descoberta das Américas por

Julio Adrião e Il Primo Miracolo por Roberto Birindelli, podemos encontrar procedimentos

principais para a criação da gestualidade nos espetáculos e para o trabalho com as palavras,

gestos e ações vocais, os quais denominaremos: descrição, quebras, criação de sentido e

repetição. Estes recursos sustentam a comicidade do jogo de situações destes espetáculos e

estão diretamente ligados à habilidade dos intérpretes no trabalho com os ritmos relacionados

à comunicação entre corpo-gestualidade-palavra.

Para Patrice Pavis, autor de A análise dos espetáculos (2005), existem duas

divisões relacionadas ao tempo: ritmo e tempo-ritmo.

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O tempo-ritmo é visível e interior; determina a lentidão ou a rapidez da

encenação, encurta ou prolonga a ação, acelera ou desacelera a dicção. Para o tempo-ritmo, o

espectador, o analista, revela uma impressão de rapidez ou de lentidão, determinando os

meios que produzem esta impressão: a aceleração – quando uma réplica começa antes que a

outra termine (como na troca de personagens em Fo), a retomada dos temas, a criação de

automatismos de percepção no espectador (como a criação de sentido). A desaceleração traz

as quebras propositais, a confirmação do quadro rítmico, ou negativamente, denota a ausência

de surpresas.

Já o ritmo “não é caso de velocidade, mas de acentuação [...]: é um tempo

cadenciado dentro de uma duração definida, o encadeamento das ações físicas segundo um

esquema preciso, uma ‘linha contínua de ação’ [...].” (PAVIS, 2005:135)

Mesmo sendo constituído por diferentes individualidades, muitas vezes o público

se homogeiniza e impõe um ritmo autônomo próprio. Fo escuta o ritmo do público e “ouve” o

que acontece para entrar em sincronia ou em negação a um ritmo clichê.

Existem outros tempos como objetivo e subjetivo, entre outros, ressaltando que o

tempo pode ser variável como uma impressão, um caso de percepção. Na repetição, recurso

muito utilizado na obra de Fo, principalmente a repetição das gagues nas farsas e dos recursos

cômicos em todos os seus espetáculos, tanto comédias políticas como monólogos, o ritmo é o

que sustenta e direciona o significado da ação.

Julio Adrião utiliza em A descoberta das Américas inúmeras vezes o recurso da

repetição de ações e palavras para concretizar situações hilárias. A repetição em A descoberta

das Américas se constitui como um dos principais recursos para a concretização da

“corporificação da palavra” no espetáculo.

Como já dito, as ações dos espetáculos analisados dão origem a partituras

codificadas que constituem uma estrutura fixa destes espetáculos, cujas variações giram em

torno desta rede de ações definidas, diferentemente dos monólogos encenados por Fo, os

quais possuem um esquema diretivo, mas propício a todo tipo de variação gestual, textual e

rítmica. É por isto que não é o mais adequado falar em partituras de ações quando se fala da

obra de Fo, pois diferentemente dos espetáculos encenados por Julio Adrião e Roberto

Birindelli, suas encenações se estabelecem mais como “palestras-espetáculo”. Em A

descoberta das Américas e Il primo Miracolo, o ritmo é absolutamente encadeado, donde

quebras acidentais podem destruir o ritmo da narrativa.

A partitura não existe sem o exercício da repetição, pois com ela, o ator apura sua

técnica e atinge a precisão do movimento. Repetir é assimilar a essência do movimento,

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adaptando-o à estrutura do próprio corpo e da situação apresentada. É portanto uma releitura

autoral do movimento e da ação, através da repetição promovida durante os ensaios do

espetáculo. Mas a repetição de ações e situações nos espetáculos analisados não funciona

somente para assimilar a estrutura gestual do espetáculo, mas como um jogo de intensidades e

transgressão da própria linguagem. Ela é assumida a frente do público, desnudando a estrutura

que a sustém, na qual o mecanismo é tornado evidente em um jogo de revelação.

A repetição se situa no coração de toda re-presentação, quer dizer, de todo voltar a

presentar, é por isto que a categoria estética da repetição deve forçosamente uma

estreita relação com o teatral – e por tanto também com a morte -, relação que só nas

últimas décadas tem sido desenvolvida de modo explícito e com fins criativos desde

a própria cena teatral [...]. A intensificação deste aspecto reiterativo impulsionou a

teatralidade da maquinaria teatral ao extremo. (CORNAGO, 1999: Interludio,

s/p, trad. nossa)47

A repetição necessita de um ritmo cada vez mais encadeado e preciso para

funcionar como surpresa, pois é esta que possui a capacidade de arrancar o riso do público.

Existe neste recurso um elo paradoxal, pois a repetição de uma situação, se não for bem

codificada e apresentar um ritmo preciso, desacelera o tempo-ritmo do espetáculo causando o

efeito contrário: a falta de surpresa e repetição inútil de material já utilizado no espetáculo.

Em A descoberta das Américas, Julio Adrião apresenta um procedimento muito

utilizado pelos commici dell’arte, aumentando o número de repetições de códigos pré-

estabelecidos com a platéia.

Aquela cena da costura dos índios é uma frase indicativa. Eu a desenvolvi como um

lazzo da commedia dell’arte, de comicidade física. Você cria uma partitura física

bem detalhada e a repete outras vezes, cada vez modificando um pouco. Eu faço

uma vez bem detalhada com texto, faço outra vez quase tão detalhada quanto, mas

mais rápida, e faço uma terceira vez bastante acelerada, sem texto, só com a

sonoridade, e faço a última vez totalmente desmembrada, modificando as ações que

47 La repetición se sitúa en el corazón de toda re-presentación, es decir, de todo volver a presentar, es por esto

que la categoría estética de la repetición debe tener forsozamente una estrecha relación com lo teatral - y por

tanto también com la muerte - , relación que solo en las últimas décadas há sido desarrolla de modo explícito y

con fines creativos desde la propia escena teatral. [...] La intensificación de este aspecto reiterativo impulsó la

teatralidad de la maquinaria representacional al extremo.

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as pessoas nesta altura já conhecem. [...] Eu aumentei o número de repetições. Isso

faz parte da comicidade. A repetição do código.48

Esta cena da “costura dos índios” é a que mais simplifica e identifica os

procedimentos principais utilizados neste recurso de repetição. O ator Julio Adrião criou esta

cena de quase oito minutos através de um parágrafo indicativo presente no texto de Dario Fo.

Johan Padan, depois de uma luta épica entre inimigos e os índios da tribo na qual se encontra,

avista o Pajé ferido aos seus pés, com um corte diagonal da axila esquerda até a virilha, como

Johan descreve, e a pedido do Pajé, busca seus “tenderetes” de remendar velas e começa a

costurar centenas de índios.

Fig. 11 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

Através do princípio da descrição, Johan através de gestos, palavras e ações

vocais, descreve como fez para desinfetar os órgãos do Pajé, para recolocá-los no abdômen e

suturá-lo. A linguagem criada pelo ator é a linguagem das ruas, próxima da utilizada por Fo,

propositalmente cheia de erros gramaticais. Para costurar o Pajé, Julio Adrião descreve a cena

com todos os detalhes, através de palavras, gestos detalhados e sons onomatopéicos para

ilustrar todos os procedimentos, em uma pantomima para corpo e voz. Com o entendimento

desta descrição, o público identificará os procedimentos nas cenas posteriores fazendo a

construção de sentido. O texto a seguir foi criado pelo ator Julio Adrião, e por não ter sido

transcrito pelo ator e possuir um farto gestual, inúmeras onomatopéias e ritmo acelerado, este

é aproximadamente o texto executado no vídeo do espetáculo:

48 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Peguei a pexêra, dei um fritadão nas beiça da ferida que o bichinho quase virô do

avesso! [faz gesto correspondente]. Vâmo botá tudo no lugar! Vâmo dá uma

desinfetada aqui! Limão, limão, limão. Vâmo dá uma marinada! [faz como se

estivesse temperando]. Vâmo começá pelas Budela! EEEEEH! Tripão bonito!

[mostra a tripa]. Os intistino grosso... Putz, tá cheio de cocô! “Prrrr, Prrrrr” [expreme

tirando a sujeira da tripa]. Vâmo refazê o cuzinho.... Aqui... EEEEEH, cuzinho! [faz

como se estivesse modelando o ânus]. O estrambo! Ôooo estrambo!!! Vâmo arrumá

aqui que é pra podê comê papinha depois, né filho da mãe! “Tiplof, tiplof” [arruma o

estômago no abdômen]. O figo! Ô, o figo todo espapolado! Um orgão nobre desse!

Vâmo pegá com cuidado que é pra podê tomá uma cachacinha depois, né filho da

mãe! [pega o fígado e arruma]. Vâmo fechá agora! Ah! tá faltando a visícula! Cadê a

visícula?!! [procura a visícula]. Onde é que eu vou colocá a visícula? Ah! A Visícula

também não serve pra ‘porra’ nenhuma! Vai embora tamém! “Fiiiiiu” [Joga a

visícula fora]. Agora vâmo suturar! Calma! Agulha e linha! [mostra o comprimento

da linha puxando-a desde a agulha]. Vâmo começá pela sobaca! Vamo fechá o

peitoral do chefe! [costura] EEEH! Bonito! O peitoral! [costura]. Vâmo passá pro

bucho agora! [costura] EEEH buchão! Vâmo caprichá aqui no umbigo do chefe!

Vâmo fazê um ponto-cruz! Tá acabando! Tá acabando! Ôpa! A virilha! [arremata,

corta a linha com os dentes e cospe o pedaço]. O bichinho tá costuradinho! Vâmo

acordá agora! “Pow, pow”! [dá dois tabefes no pajé]. Abriu os olhos [faz gesto de

abrir os olhos com as mãos], pegou e me deu um beijo na boca! [mima o pajé

pegando-lhe pelo pescoço e beijando-lhe a boca] ‘Puta que pareva!’ [limpa a boca].

Tá costuradinho! Johan! Você salvou a minha vida! Muito Obrigada! ! [faz o Pajé].

Antes que eu pudesse dizer ‘de nada’, os índios me pegaram e foram me carregando.

- Me bota no chão casseta! Me bota no chão que eu acabei de salvá o chefe! Me

botaram no chão, quando eu olho - ‘puuuta que pareva!’ [repetição de palavras

como recurso cômico]. Não dava pra acreditar no que eu tava vendo! Brincadeira

não moça! Desde aqui onde a senhorita tá vendo, até lá embaixo onde a senhorita

não tá vendo, era quarenta e cinco metros de índio, deitado assim, um do lado do

outro, assim “va, va, va, va, va, va” [faz gesto de índios enfileirados], até lá

embaixo, tudo rasgadão aqui [mostra um corte diagonal no peito], as bodela, as

visícula [faz gesto de índio tremendo, agonizando]. ‘Puuuuuta que o pareva!’ [limpa

a boca].

- [Pajé] - Johan! Pode começá a costurar! [pausa]

- [Johan] Eu só rezei que a linha desse!49

49 Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.

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Fig. 12 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

No segundo índio, Johan descreve apenas algumas partes principais com texto, e

no restante utiliza as mesmas onomatopéias para cada procedimento e o mesmo gestual

resumido, pois o público já consegue identificar as ações sem que o intérprete precise

descrevê-las no todo.

– ‘Agooooora’ tem que se macho! E passei a pexêra dando-lhe um fritadão nas

beiça. “Tssss Tssss” [passa a peixeira no abdômen do índio], “pow, pow” [dá os

tabefes], vai dormir! Limão, limão, limão [faz várias onomatopéias e mima pegar os

órgãos e arrumar um a um muito rápido. Pega o intestino], cocô, “prrrr, prrr”

[expreme o intestino], o cuzinho [modela o ânus], o figo espapolado [ajunta e põe no

abdômen], a visícula, “fiiiiiu” [joga a visícula fora]. Vâmo suturá a sobaca! “Mi

corazón...” [canta e costura] Tem muita gente na fila, vai sem umbigo mesmo!

Vam’bora! Olha a virilha! [costura e corta a linha com os dentes]. Já tá

costuradinho! Vâmo acordá! “Pow, pow”! [dá os tebefes] Abriu os olhos, me beijou

[abre os olhos com as mãos, faz o índio pegando-lhe pelo pescoço e dando-lhe um

beijo de agradecimento]. Puuuta que pareva! [limpa]. O próximo!50

No terceiro índio, Johan descreve quase só com a ação vocal (onomatopéias e

grammelot) e gestual, a cena totalmente resumida, pois o público já memorizou todas as ações

e a ordem com que elas acontecem.

50 Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.

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- Agoooora tem que...[continua no ritmo do texto falado anteriormente,

resmungando], lá, lá, lá [marinando], va, va, va, ba, ba, ba, [como são inúmeras as

onomatopéias e fica impossível transcrevê-las, iremos apenas demonstrar a

quantidade] rooooooooo, trrrrrrrrrr, bobobobobob, espapolado, prrr, prrr, prrrr,

cuzinho, fiiiiiiiiiu, “mi corazón” [corta alinha], plaft, plaft, beij..., o próximo!

[Johan faz gesto de passagem de tempo] - Vinte e seis horas depois, o último

índio!∗

No quarto índio, Johan, já muito cansado, faz as mesmas ações, modificando

algumas. Por causa das mudanças é necessário que o ator detalhe um pouco mais suas ações,

como faz Julio Adrião.

[Voz ralentada de cansaço] “Agoooooora teeeeem que sê maaaaaacho!” “Pow, pow”

[os tabefes], limão, limão, [desinfeta]. “Ooooo, oooo” [pega as “bodelas”], “prrrrrrr,

prrrrr” [expreme a tripa], cuzinho [faz gesto de modelar o ânus], a visícula.∗

Nesta parte, quando Johan vai jogar a visícula fora, pára, olha para ela e come-a

mastigando-a bem devagar, promovendo uma quebra de expectativa na ação, e uma criação

de sentido com o código estabelecido desde a primeira partitura de ações. Johan nunca

encontra o lugar certo para colocar a visícula e, como esta não serve para nada, Johan com

fome, agora depois de mais de um dia de costura, come a visícula.

Vamo suturá! [Pega a agulha e passa a mão na linha para ver o comprimento.

Assustado, vê que só resta um pedacinho de linha].∗

Neste momento há uma outra quebra de expectativa. Johan que já havia dito no

início da cena – Eu só rezei que a linha desse! – , faz apenas o gesto de verificar o

comprimento da linha que está minúscula. Sem que o ator precise descrever, o público

identifica a criação de sentido e ri abundantemente.

∗ Texto inédito, criado por Julio Adrião, transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.

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Fig. 13 A descoberta das Américas - Vídeo produzido por Filmes do Serro

A seguir, Johan pega a pele do índio e torce-a, amontoando-a, como se estivesse

pensando em suturar todo o imenso corte com um ponto só. Costura com cuidado no mesmo

lugar, corta a linha com os dentes e solta devagar o monte de pele.

-“Pow, pow” [dá dois tabefes no índio], beijo, puuuuta que pareva! [limpa a boca e

mima o índio andando com o abdômem encurtado]. Fuxico! [nomina o ponto que

fez].51

Esta cena resume um dos procedimentos utilizados na commedia dell’arte, em

farsas e espetáculos de Vaudeville, que se concretiza na sintetização da cena através de

códigos pré-estabelecidos com o público durante o espetáculo. Para que estes códigos possam

ser identificados e repetidos em outros momentos do espetáculo, sem a necessidade do uso da

palavra, mas apenas do gestual e das ações vocais, é necessário que através da descrição, o

público receba as informações em algum momento do espetáculo, para que depois seja

promovida a identificação, as relações e a criação de sentido. Para que o princípio da

repetição funcione, é necessário que em algum momento haja a descrição do código

estabelecido, da ação ou da atitude dos personagens. A descrição pode ser feita com gestos e

palavras, ou apenas com um dos dois.

Através de seu efeito de dispersão, a repetição faz estalar a representação,

multiplicando seus significantes sem mais lógica que a de seu próprio

51 Texto criado por Julio Adrião e transcrito pela autora a partir do vídeo do espetáculo.

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funcionamento estrutural, um excesso irresolúvel que empurra o sistema até fora da

escritura e o artifício, estratégias de superfície que pervertem os pensamentos de

profundidade. Este é o caso, por exemplo, da adição progressiva de termos que

fazem crescer um sintagma em um jogo de entrelaçamentos de palavras novas com

outras repetidas anteriormente [...]. (CORNAGO, 1999: Interlúdio, s/p, trad.

nossa)52

Dario Fo, muitas vezes, já estabelece a descrição de códigos no prólogo do

espetáculo, como o faz Roberto Birindelli na descrição das atitudes executadas pelos três Reis

Magos em Il Primo Miracolo.

Roberto Birindelli narra a atitude de cada Rei Mago, para que nas cenas seguintes

os personagens sejam identificados por suas ações ou gestualidade:

- O mais velho dos três Magos era um rei com muito ouro na cabeça, cabelos

brancos e barba grisalha; cara fechada, nariz adunco; xingava e mal-dizia todos os

santos porque tinha furúnculos desse tamanho na bunda e a cada cavalgada,

“NHAC!” Eram expremidos! O que causava uma grande dor. Havia outro rei,

jovem, montado em um cavalo branco, com uma coroa na cabeça; por debaixo da

coroa apareciam cachos de ouro e, um pouquinho mais embaixo, tinha olhos azuis.

Mantinha sempre um sorriso nos lábios. Havia ainda o terceiro, montado em um

camelo. Era um mago preto, mas tão preto, tão preto, que o camelo cinza que ele

montava, em comparação, parecia mais branco que o cavalo branco do mago loiro.

Com uma cara bonita e cento e quinze dentes brancos que deixavam ele mais preto

ainda, ia cantando sobre o camelo. E cantava – e o rei velho não agüentava – e

cantava, sem parar, a mesma cantilena.53

Mais adiante, faz a criação de sentido:

- Chega, chega! - o velho xingava o mago preto [fala fazendo as atitudes do mago

velho, tomando cuidado ao andar para não expremer os furúnculos] - Não dá! Há

quatro dias e quatro noites você canta é ‘belo no camelo’! Já entendi. É belo andar

52 Através de su efecto de dispersión, la repetición hace estallar la representación, multiplicando sus significantes

sin más lógica que la de su próprio funcionamiento estructural, un excesso irresoluble que empuja el sistema

hacia esse afuera de la escritura y el artificio, estrategias de superficie que pervierten los pensamientos de

profundidad. Este es el caso, por ejemplo, de la adición progresiva de términos que hacen crecer un sintagma en

un juego de entrelazamientos de palabras nuevas com otras repetidas anteriormente [...].

53 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.

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de camelo. Agora chega! Ele não é uma má pessoa. Mas precisa cantar o tempo

todo? Ele vai me deixando irritado. Eu sou capaz de chegar a Belém tão ‘brabo’, que

vejo o menino na manjedoura e arranco a cabeça fora! Pára! Pedaço de carvão com

alto-falante! Lembrem sempre da alegoria!54

Figs. 14 e 15 Il Primo Miracolo - Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções

A ação, no jogo de repetições, é impulsionada a uma velocidade crescente de

progressão, pois busca a exterioridade material do corpo e da cena, que é ao mesmo tempo,

transgressão do sentido comum. “A repetição pede um ritmo cada vez mais acelerado em uma

proliferação de signos sem mais sentido que o próprio exercício da proliferação [...].”

(CORNAGO, 1999: Interludio, s/p, trad. nossa)55

A repetição em si mesma constitui um mecanismo “excessivo”. O excesso de

significante, de materialidade sígnica, o próprio corpo como excesso. Para que a repetição

alcance seu fim, como em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, é necessário que

haja uma disciplina formal, a rígida ordenação dos elementos a serem repetidos, e um efeito

de distanciamento que reveste a repetição de uma noção de “naturalidade teatral”, como se

nada estranho ocorrera.

Uma estrutura submetida a um jogo de repetição, seja ela oral ou não, faz visível

em sua exterioridade o tempo-ritmo compactado que gira sobre si mesmo. Evidenciando a

estrutura da representação, o jogo de repetições anula a lógica do próprio sistema lingüístico.

54 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996. 55 La repetición pide un ritmo cada vez más acelerado en una proliferación de signos sin más sentido que el

próprio ejercicio de la proliferación [...].

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Paradoxalmente, a medida que os recursos orais e rítmicos parecem adquirir uma

rara autonomia, como o princípio da repetição, as rimas consonantes e as estruturas

paralelísticas, usurpando o lugar da lógica e o sentido, se emancipa a própria

escritura como entidade autônoma e excessiva em um jogo de oposições. Isto lhe

permite reconquistar uma liberdade expressiva que se havia negado ao gênero

dramático nas últimas décadas ao conceber o teatral como oposto ao literário. Deste

modo, se a obra cresce em teatralidade com a intensificação de seus mecanismos de

destruição/construção, também cresce em autonomia como escritura literária [...]

donde a utopia final de uma linguagem fonética feita corpo, termina abocanhando o

texto até outro código escritural, ininteligível, para brilhar como puro signo, pura

materialidade escrita. (CORNAGO, 1999: Interludio, s/p, trad. nossa)56

Nos espetáculos analisados, podemos identificar três tipos de repetição: a que

volta sempre em diferentes momentos do espetáculo como código a ser identificado pelo

espectador - a repetição de códigos que retornam em uma mesma cena, como a da “costura

dos índios”, e a repetição momentânea, que possui apenas o objetivo cômico.

Em A descoberta das Américas, há uma cena de tempestade que se repete em três

momentos distintos do espetáculo, diferentemente da cena de “costura dos índios” que é

repetida em seqüência, mas possui o mesmo sistema de repetição. Em um primeiro momento,

no início do espetáculo, Johan está na praia com sua namorada acusada de ser “bruxa” pela

Inquisição. Ele descreve a ela com palavras e gestual, como a lua está enorme, linda, o céu

limpo, sem uma nuvem, o mar parecendo “uma mijada”. A moça se levanta desesperada

dizendo que isto é o “prenúncio do fim”, o prenúncio de uma tempestade horrorosa:

Johan - Calma amor, está tão bom aqui... não tem nenhuma nuvem no céu, o mar

parece uma ‘mijada’. Mas ela já me empurrava para o barco: ‘Vamos embora!

Vamos, vamos! depressa!’ Saímos remando feito loucos. Assim que chegamos à

56 Paradójicamente, a medida que los recursos orales y rítmicos parecen adquirir una rara autonomía, como el

principio de la repetición, las rimas consonantes y las estructuras paralelísticas, usurpando el lugar de la lógica y

el sentido, se emancipa la propia escritura como entidad autónoma y excessiva en un juego de oposiciones. Esto

le permite reconquistar una libertad expressiva que se le había negado al género dramático en las últimas décadas

al concebir lo teatral como opuesto a lo literario. De este modo, si la obra crece en teatralidad con la

intensificación de sus mecanismos de destrucción/construcción, también crece en autonomía como escritura

literaria [...] donde la utopía final de un lenguage fonético hecho cuerpo termina abocando el texto hacia outro

código escritural, ininteligible, para brillar como puro signo, pura materialidad escrita.

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praça São Marco, pegamos a rua, entramos em casa, fechamos a porta e desabou

uma ‘tromba d'água’, um temporal horroroso, com uma ventania que acabou com

tudo pela frente. Parecia o fim do mundo. [Johan narra com gestual, mas explica

com algumas palavras quando são os trovões, a intensidade da chuva, a enchente que

sobe em três dias de temporal, até se tranformar em poucos pingos e cessar].

Escapamos por milagre. A mulher era um fenômeno! Adivinhava tudo! Pena que

não adivinhou que os guardas iam prendê-la por ordem da Santíssima Inquisição!57

Como Johan aprendeu com a namorada que a lua cheia e o mar que parece “uma

mijada” traz a tempestade e as enchentes, em outro momento do espetáculo, Johan, depois de

fumar uma tal “folha de cinco pontas” que os índios fumam, “conversa com a lua”. Quando

chega o Pajé, Johan fala sobre a tempestade que virá, e o Pajé desacreditado diz: “Mas se o

mar parece uma ‘mijada’!”. Johan comenta: “Parece que foi a ‘deixa’”!, repetindo com o

gestual e as ações vocais os trovões (“orororororor”), os relâmpagos (“tra, tra, tra, tra”), a

chuva, a enchente, a água que sobe (“glub, glub, glub”), os pingos no final da tempestade

(“pin, pin, pin, pin”), o momento em que cessa. Na terceira tempestade, Johan faz uma outra

construção de sentido, após uma luta empreendida com os espanhóis. Johan e “sua tribo”

mandam os espanhóis embora depois de muita luta:

Johan - Resumindo, prendemos todos, inclusive os padres. Decidimos mandá-los de

volta pra casa em seus navios...mas não sem antes esperar a ‘lua boa’. Dalí a três

dias a lua aparecer …redondinha… com seu aro luminoso em volta. ‘Boa viagem

governador!’58

O público identifica imediatamente a intenção de Johan, que manda os espanhóis

para o mar em plena tempestade.

Ainda na repetição que retorna em diferentes momentos do espetáculo, Johan

Padan, em A descoberta das Américas, repete as mesmas ações e palavras toda vez que entra

em uma embarcação.

- Embora! Vamos partir! Soltar as amarras! Levantar âncora! Armar vela mestra!

- Ei precisam de alguém pra costurar as velas?

- Vem, sobe. Estamos de partida!59

57 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 58 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 59 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004.

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O mesmo procedimento acontece toda vez que Johan entra em uma oca a convite

dos índios:

Mesa com todo tipo de iguaria, carne de caça. Rede com foguinho em baixo [faz

com as mãos o foguinho e quantas indiazinhas tem na rede a sua disposição].60

Na primeira vez que Johan narra o que as índias faziam com ele quando o

queriam agradar, descreve todos os procedimentos com gestos e palavras: as índias o levavam

para a cachoeira, davam-no banho, mordidinhas, sugadinhas, passavam ungüênto em seu

corpo, faziam pinturas (riscos que remetiam à divisões), arrancavam seus pêlos.

Nas próximas vezes que descreve as atitudes das índias para com ele e seus

amigos, Johan faz o gestual e apenas profere algumas palavras principais: “cachoeira,

mordidinhas, sugadinhas, ungüênto, divisões, pêlo, pêlo, pêlo.”

Na repetição de ação vocal, quando Johan narra as lutas épicas com trocas de

flechas, faz o gestual e a ação vocal correspondente: “Zizizi vuvuvu, zi zi zi vu vu vu, zi zi zi

vu vu vu.”

Toda vez que Johan descreve suas fugas, repete: “Saí correndo igual ‘uma lôca’,

peguei, esquerda, direita, esquerda, direita, sobe ponte, desce ponte, sobe ponte, desce ponte.”

Em diversas passagens, o público já sabe, antes mesmo de o intérprete começar, o que ele vai

dizer.

Quando a tribo é invadida por outros índios, Johan coloca a escada na “cerca” da

tribo e dá de cara com um índio enorme e forte – Johan não fala nada, somente faz a máscara

do índio e aponta para ele. Neste caso o que é repetida sempre, em relação aos índios, é a

caricatura do personagem. É ela que faz a construção de sentido, como é o caso dos Reis

Magos em Il Primo Miracolo.

60 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004.

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Fig. 16 A descoberta das Américas Vídeo produzido por Filmes do Serro

Fig. 17 Il Primo Miracolo Vídeo Prod. por SCAN Vídeo Produções

Na caricatura,

toma-se um pormenor, um detalhe; esse detalhe é exagerado de modo a atrair para si

uma atenção exclusiva, enquanto todas as demais características de quem ou daquilo

que é submetido à caricaturização a partir desse momento são canceladas e deixam

de existir. A caricatura de fenômenos de ordem física [...] não se diferencia em nada

da caricatura de fenômenos de ordem espiritual, da caricatura dos caracteres.

(PROPP, 1992: 88)

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Na caricatura ocorre o exagero de um pormenor, na hipérbole, recurso utilizado

por Fo, ocorre o exagero do todo. A paródia, a hipérbole e o grotesco, procedimentos

altamente utilizados por Fo, não fogem à caricatura.

O grau mais elevado e extremo do exagero é o grotesco. No grotesco o exagero

atinge tais dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso.

Ele extrapola completamente os limites da realidade e penetra no domínio do

fantástico. [...] Uma definição correta e simples do grotesco é a dita por Bóriev: ‘O

grotesco é a forma suprema do exagero e da ênfase cômica. É o exagero que confere

um caráter fantástico a uma determinada imagem ou obra’ (PROPP, 1992: 89)

Um dos inúmeros exemplos de repetição momentânea em A descoberta das

Américas, se dá quando Johan narra:

Embarcamos uns duzentos índios pra fazer lastro. Um calor insuportável, pouca

comida... nada pra beber. Até o fim do dia já morria índio aos montões. Começamos

a usar os índios de isca para pescar. Índio no mar, peixe no barco, índio no mar,

peixe no barco, índio no mar, peixe no barco [faz gesto de pescar].61

Em Il Primo Miracolo, em algumas vezes, a comicidade está na repetição das

palavras:

Na Praça havia uma fonte. Em torno dela, só terra. Terra do tipo argila, sabe, aquela

de fazer tijolo. O Menino Jesus pega um punhado de terra ... aquela de fazer tijolo, e

com suas mãozinhas delicadas...de fazer tijolo...62

Em Fo, assim como em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, os atores

jogam códigos para a platéia que durante o espetáculo são “chamados” em diferentes

momentos. O público exerce a função de identificá-los, relacioná-los, analisá-los e atribuí-los

diferentes significados em um jogo ativo de descobertas e criações de sentido.

Em A descoberta das Américas, Johan Padan ensina uma música para os índios

durante a catequização, em ritmo de samba. Quando Johan e os índios chegam na cidade de

Catchoches, do outro lado da Flórida, chegam cantando: Johan só faz o ritmo com as mãos e

61 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004. 62 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.

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a gesticulação com a boca. Mesmo assim, podemos sentir o ritmo da música como se todos

estivessem cantando. A criação de sentido permite que o público possa lembrar dos códigos

estabelecidos, não só das palavras e gestos, mas “sentir” de maneira cinestésica a mesma

sensação da primeira vez em que o código foi estabelecido, sem que o ator precise verbalizar

novamente ou realizar a ação completa.

Nos espetáculos analisados, algumas quebras propositais se dão entre a passagem

de um personagem para outro, quando o intérprete faz algum comentário entre os textos

proferidos pelos personagens, e também em textos inseridos que fogem propositalmente do

contexto da estória. São inúmeras as inserções feitas por Fo já no texto original, e pelos

intérpretes, como no trecho abaixo, em que Roberto Birindelli faz uma conversa entre o

Menino-Jesus e seus coleguinhas, quando aquele faz voar os passarinhos de barro:

- Porra meu, que bruxo! [sotaque paulistano] O Palestina fez voar um pássaro de

barro! E era de barro!

- Não, isso não é verdade!

- Não! Era de barro!.

- Mas é um truque mais velho que Deus!. O Palestina pegou um passarinho meio

aturdido, porque tinha caído da árvore. Passou na água, esfregou na terra, levantou

na mão, assoprou no cu, arrepio... ‘VCE, VCE’... o passarinho voou!

- Não, era de barro que eu vi! Mostra pra ele, Palestina... Um outro pedacinho de

barro, vai que é fácil... as asinhas... as pluminhas, vai!

- Espera aí!

- Quem tu é?

Aparece um garoto, um menino, de cabelos negros, encaracolados.

- Pára tudo, verifica!

- Mas quem tu é hein?

- Tomé!

- Ah! Tomé? [Quebra – para a platéia] De criança já era um pé no saco!

Tomé apanha um prego e... VUPT... fura o passarinho de barro.

- Confere, pode seguir!

- Então prestem atenção que vou assoprar! (Vai assoprar e pára, olha para os lados).

- Não sei se vai funcionar de novo. Vou precisar uma ajuda de todo mundo. Todos

pensando comigo: Voa! Voa! Voa! [Quebra - olha para a platéia] Não precisa falar,

pensa com as ‘coisa aqui dentro’! [aponta para a cabeça] (Assopra)

PPFFFUUUUUUUU... CIU, CIP, CIP! [quebra: imita novamente o vôo do

passarinho].

[...]

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Toda a criançada fazendo passarinhos. Mas teve um que fez um pão redondo, com

um uma cabeçona que caía; botou duas perninhas, TUM... Cai... Colocou quatro,

cinco patas.

- Um passarinho de quatro patas não dá!.

- Mas se não é pra ficar em pé... O importante é que voe, né?

Um outro fez uma lingüiça, uma cobra, uma cobra-lingüiça: doze asas em fila, sem

rabo, doze patas.

- É... parece um cachorrinho...

Outro fez uma massona - parecia uma torta -, a cabeça reta no meio, sem pescoço,

com o bico pra cima... as asas todas esparramadas. E sem rabo.

-Não sei se voa, vamos ver..

Outro tinha feito uns passarinhos que pareciam umas bostinhas. Outro, então, uma

bostona. E, por último, um gato!

- Não dá pra fazer um gato voar!

- Ah! Se aquela bostona lá voar, o meu gato voa!

- Não, não. Um mínimo de regras! Não dá pra fazer gato voar!

- Manhêee, o Palestina não quer fazer o meu gato voar! [Quebra - Imita a mãe que se

debruça na sacada e grita] - Palestina, faça voar imediatamente a gato do meu filho!

Senão, eu desço e te crucifico! [Quebra: imita o gesto do Menino-Jesus que observa,

preocupado, olha para as palmas das mãos]

- Sai pra lá! Toda a passarinhada em fila que eu vou assoprar! (Imita o vôo

extravagante de vários pássaros).

[Construção de sentido. O Menino Jesus assopra. Neste momento, o público lembra

da descrição de cada pedaço de barro e o intérprete faz o gestual de cada um

voando]

PFUUUUU... O pão: QUAC, QUIC, QUOC, QUA, TE, PU, QUA, TE, RAA.

PFEEEEE... A cobra: PICI, PETE, QUA, TE, CE, CHE, SE, TE, PE.

PPFUUUU... A torta: PSU, PSU, PSU.

PFFEEEE... A bostona: PCE, PQUE, PTE, PCI, PCE.

O gato PFFUUUU GNIAAAAAOOOO GNA GNAM! Come todos os passarinhos

no céu!63

As quebras propositais criadas por Fo ou pelos intérpretes dos espetáculos

analisados, estão diretamente ligadas à troca de personagem ou a comentários do narrador em

relação à estória e aos personagens. Estas quebras se já não estão previstas na escritura de Fo,

são estudadas e inseridas pelos intérpretes. Uma quebra mal posicionada, ou mal realizada,

pode destruir o fluxo interno da narratina e, conseqüentemente, seu tempo-ritmo. Uma

63 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.

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“quebra” não significa “um tempo”, pois a quebra pode ser produzida, por exemplo, através

de palavras e gestos.

Existe um outro tipo de “quebra” que está relacionada ao texto de palavras,

quando estas são inseridas propositalmente fora do contexto da história.

Quando Roberto Birindelli descreve os vários produtos trazidos para o Menino-

Jesus na mangedoura, promove uma outra “quebra” inserindo “presentes” contemporâneos:

- Os pastores se põem em marcha em direção à choupana, levando apenas coisas de comer.

Tem quem chega com queijo, cabrito, coelho, galinha, vinho, azeite, maçãs em calda,

tortas de castanhas, ‘picolé de creme, sanduíche, banana-split, chokito’... E tem quem

chega com polenta. Imagine dar polenta para uma criança recém-nascida! Só pode ser um

babaca!!!64

Em A descoberta das Américas, quando os Inquisidores invadem a casa de sua

“namorada-bruxa”, Julio Adrião na pele de Johan Padan, flagrado com ela no momento em

que os homens invadem a casa, se explica: “Eu só tava entregando uma pizza!”.

Como Roberto Birindelli estabelece um contato com a platéia, no qual pode, com

mais freqüência, parar e responder a perguntas, estabelece um maior número de quebras

propositais em momentos específicos, passando da cena para um contato com o público fora

do contexto da estória. Estas quebras são “ensaiadas” e quase sempre aparecem no mesmo

lugar.

A praça fica cheia de crianças. Aparecem meninos até de outros bairros. Todos

fazendo estatuetas de barro. Passarinhos de todas as cores e formas. Brincam, riem,

cantam! LA, LA LA LA LÁ... (canta uma música típica de realejo). 65

Neste momento, Birindelli ensina uma música para a platéia e organiza um coro,

hora com uma parte da platéia, hora com a outra, depois junta as vozes. Em vários momentos

pergunta para alguém do público: “Conhece a história? Então vem fazer!” ou então lembra

alguém: “Respira!”

As quebras são muito diferentes das pausas, pois possuem, muitas vezes, um fim

em sí mesmo. Seguem para passar de uma ação a outra, de um personagem a outro, enfatizar

64 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996. 65 Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996.

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o lado cômico de uma situação, ou para estabelecer uma relação mais estreita com a platéia,

quando necessário. Nas pausas, a passagem de tempo sublinha ou modifica o significado das

ações precedentes ou subseqüentes e pode promover um tipo de distanciamento, como

veremos a seguir.

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3.2 A descoberta do silêncio: as pausas na construção das ações em A descoberta das

Américas

A dramaturgia das obras clássicas, principalmente entre os séculos XVI e XVIII,

estava centrada inteiramente na palavra e seus poderes, ignorando durante séculos o silêncio e

protegendo-se, por assim dizer, dele, à custa de um arsenal de formas. Durante muito tempo o

silêncio foi visto como um fracasso da ação, um insucesso dos atores que pareciam ter

esquecido o texto, ou como um tempo morto que desacelera o tempo-ritmo do espetáculo e

distrai a platéia. Como não se podia reconhecer uma tela sem pintura, também não era

possível reconhecer uma obra bela ser interrompida por silêncios. A pausa era sinônimo

justamente de ruptura.

O diálogo que se impunha como fundamento do teatro, consagrava

definitivamente o triunfo da palavra; quer se apresente de forma efetivamente dialógica, quer

adquira a aparência do monólogo, o seu caráter dialético fazia do verbo que chamava outro

sem cessar, um movimento que só terminava com a resolução do conflito ou o fim da peça.

“[...] Se não existe palavra sem silêncio, o silêncio na Idade Clássica é sempre servus verbi,

escravo fiel, e muitas vezes mal tratado, que apenas serve para fazer valer as palavras que

acolhe.” (RYKNER, 2004: 42)

Deste modo, a unidade da dramaturgia clássica se tornou um lugar de resistência

ao silêncio, assim como perdeu a desconfiança que se tinha na Idade Média e Renascimento

em relação à linguagem, nos quais a gestualidade do histrião era, por vezes, mais confiável

que o verbo, pois neste era preciso decifrar as chaves do mundo.

Apenas uma inversão e contestação radical dos pressupostos do drama clássico

finalmente concede ao silêncio e a pausa o lugar que tem hoje nas dramaturgias

contemporâneas.

No século XVIII, Denis Diderot (1713 - 1784) e as reflexões iluministas sobre a

mímica e a ação trouxeram com suas mudanças tanto ideológicas quanto estéticas, o silêncio

integrado no texto e na representação, e até, embrionariamente, a substituição do verbo pela

ação corporal narrativa. Mesmo de maneiras muito distintas das de Fo, Diderot acreditava que

as ações não necessariamente precisavam estar acompanhadas por palavras.

Para Diderot,

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A pantomima, longe de ser o sinal de uma demissão do autor, é a marca de uma

necessária delimitação das competências de cada um. Não se trata de o ator não

poder substituir o autor, mas sim de o autor não se dever substituir ao ator. Cada um

intervém a um nível diferente. Ao autor cabe fazer passar no texto a emoção que

deverá sustentar a ação; ao ator descobrir esta emoção no seu corpo e deixar guiar-se

por ela. O próprio texto mais não é do que a superfície (a parte emersa do

icebergue). (RYKNER, 2004: 231)

O silêncio neste caso é frequentado pela palavra, no qual as ações devem ser

simples, ao contrário do discurso complexo materializado em palavras, como gostaria Artaud.

Ao contrário do silêncio passivo vem um silêncio produtor de sentido, de

significantes independentes, de tempo e de espaço, no qual palavra e silêncio entram em

conflito. Mas as soluções que Diderot propõe, em relação a pantomima66, são a curto prazo

tornadas ações esteriotipadas, sendo recuperadas e pervertidas principalmente pelo

melodrama.

Apesar das mudanças embrionárias que propunha Diderot,

A palavra mais não pode do que rompê-lo aqui e ali, sem nunca, contudo, ocupar a

dianteira do palco. As próprias palavras não se apresentam senão como

excrescências do silêncio. Erguem-se no seio deste último, mas mais não são do que

adjuvantes. (RYKNER, 2004: 227)

Somente a partir do século XVIII é possível ver com alguma freqüência as

rubricas ou didascálias indicando uma interrupção do texto. Até então o silêncio e a pausa não

são reconhecidos claramente como componentes da escritura dramática, mas são colocados

nas mãos dos encenadores.

Quanto ao termo ‘pausa’, parece-nos encontrá-lo pela primeira vez, sob a forma e a

acepção que nos interessam em Voltaire [...], é contudo em Diderot que o mesmo

será sistematizado, a partir de 1757, em Les Fils naturel e depois em Le Père de

famille (1758): o escritor não utiliza apenas a forma canônica ‘uma pausa’, como

ainda explora quase todas as possibilidades oferecidas pelo léxico e pela sintaxe.

(RYKNER, 2004:34)

66 É importante assinalar que a pantomima em Diderot é substancialmente diferente da pantomima dos mimos medievais e dos séculos XIX e XX , e da utilizada por Fo, tanto em seu significado quanto em sua praxis.

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Na dramaturgia clássica, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, a ação e o

gesto estão absolutamante contidos na sucessão de réplicas.

O simbolismo, movimento que no século XIX instaura uma dramaturgia do

silêncio, na qual a palavra assume a forma deste, principalmente com Maurice Maeterlinck

(1862 - 1949), por outro lado, busca não a inação, mas a quase imobilidade por parte dos

atores.

No teatro tradicional até fins do século XIX, por conta do encadeamento das

ações, o silêncio não tem vida própria e em muitas vezes não “significa” em nome da “estética

do cheio”, na qual todos os silêncios devem ser preenchidos.

No teatro tradicional pré-século XX, apesar das tentativas de Anton Tchecov

(1860 – 1904), o silêncio acompanhado ou não pelo gesto, não tem uma outra função do que

ligar uma palavra a outra.

Na chamada pós-modernidade dos séculos XX e XXI, a fragmentação e as

quebras da unidade da ação aristotélica permitem com bastante freqüência a inserção de

silêncios significativos.

As tiradas cômicas e os apartes que exprimem uma reflexão interior, como nas

farsas e monólogos de Fo, se impõe sobre o silêncio preenchendo o seu espaço, pois

necessitam de um tempo cômico encadeado e, por vezes, acelerado; fora isto, correm o risco

de esvaziar-se e morrer. Por isso, por um lado, as tiradas cômicas e os apartes se colocam

como uma antítese do silêncio; mas por outro lado, a ação gestual cômica e encadeada deste

tipo de espetáculo baseado na ação, substitui muito bem as palavras, preenchendo o silêncio

através das ações, ao mesmo tempo que permite o silêncio das palavras.

A aproximação do monólogo e do aparte tem, no entanto, qualquer coisa de

enganadora. O aparte difere, de fato, profundamente do monólogo na medida em que põe em

causa a mecânica do diálogo (mesmo que o monólogo, pelo menos de um ponto de vista

formal, assegure a sua continuidade), situando-se, por assim dizer, a meio-caminho entre o

silêncio e a palavra.

No século XVIII, Diderot preconizará a substituição do aparte pela pantomima,

mas ela jamais conseguirá, em Diderot, a expressão necessária sem o uso da palavra. Diderot

bem sabia que era necessário para o tipo de teatro que desejava, nascerem autores, atores e

quiçá, um público.

O que afirma acerca da predominância do gesto sobre a palavra permite associar o

seu elogio da interjeição aos princípios de uma dramaturgia do real. O gesto, tal

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como o discurso explosivo, é a forma mais possível de constituir uma expressão

natural das subjetividades em presença no drama. Este fala sem raciocinar. Designa

sem comentar. Impõe-se sem passar pela formulação da linguagem. É anterior ao

logos e, desse modo, está mais perto da natureza do que qualquer outro sistema

semântico. Além disso, toca imediatamente o espectador, sem reclamar,

forçosamente, um julgamento de entendimento. [...] Deste modo, privado de todo o

suporte verbal, o gesto reúne a espontaneidade do movimento natural – irreflectido –

e o poder significativo da palavra. (RYKNER, 2004: 210-211)

Somente a partir da segunda metade do século XIX é que a dramaturgia

encontrará soluções próximas as que Diderot pretendia. A unidade da dramaturgia clássica foi

contestada também, dentre muitos outros, por Samuel Beckett (1906 - 1989), em cujas obras

encontramos dramas sem palavras ou o diálogo desarticulado por silêncios repetitivos, nos

quais quem fala não tem esperança de resposta, mas de silêncio.

Em Dario Fo, os ritmos acelerados de suas narrativas épicas, principalmente em

seus monólogos, faz com que a ação preencha os espaços vazios, não deixando muito espaço

para as pausas. O silêncio pode, por sua vez, reforçar a palavra, negá-la ou substituí-la.

A pausa em Fo está mais ligada à criação de suspense, reflexão, ou a momentos de

respiração para ator e público. Inteligentemente colocada em lugares propícios (isto se deve a

ao conhecimento profundo que Fo possui do ritmo das platéias), juntamente com as situações

bem definidas, prendem a atenção do público, mesmo em momentos de relaxamento. Fo

também faz pausas para que o público possa rir em determinados momentos, como o faz

Roberto Birindelli na montagem de Il Primo Miracolo.

As tensões alternadas com breves silêncios são importantes. As pausas relaxadas são

propositais. Uso-as para respirar, pois um dos objetivos é fazer o público respirar

com você. O público precisa tomar fôlego, simultaneamente. Caso ele esteja afogado

ou agredido durante os momentos de tensão ou ao final de uma risada, sem que se

permita sua recuperação, sem deixá-lo respirar, ele acabará ficando cansado e

perderá a capacidade de se divertir e de participar adequadamente. (FO apud

MELDOLESI apud VENEZIANO, 2002: 215)

Em seu Manual Mínimo do Ator (1998), Fo comenta:

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“As passagens, os contratempos, as pausas particulares não foram pensadas

antecipadamente. São resultado da observação realizada em função da reação do público.”

(FO, 2004: 246)

Mais adiante: “[...] vocês podem perceber que em certos momentos faço pausas,

fico mais relaxado; são propositais. Uso-as para respirar com você. O público precisa tomar

fôlego simultaneamente.” (FO, 2004: 253)

Já na montagem de A descoberta das Américas, o intérprete se coloca contra a

vontade do público e do ritmo deste, que pretende que tudo se torne mais frenético, para

sublinhar uma ação ou promover a reflexão ou crítica de determinado momento. A pausa,

apesar de rara, surge como autenticidade, pois o ator se obriga a sair de si mesmo e do

personagem.

Julio Adrião age contra a unidade da ação que está presente, e insere, em A

descoberta das Américas, pausas nos raríssimos momentos que evidenciam a faceta dramática

de algumas cenas. O lógico seria fazer as pausas em momentos cômicos, como o fazem a

maior parte dos atores para sublinhar o efeito e as gagues, pois trata-se de um dos monólogos

mais cômicos escritos por Fo. Como o próprio texto retrata de forma cômica uma história

dramática, como as viagens das embarcações sujas e da dramática sobrevivência dos

tripulantes, com pouca água e comida, doenças e lutas sangrentas, a dramaturgia de Fo se

utiliza da sátira e do grotesco e, através da comicidade promove uma crítica ferina a diversos

dogmas e posturas do cristianismo e da história das descobertas. O intérprete Julio Adrião e a

diretora Alessandra Vannucci, tornam mais eficazes momentos de crítica e reflexão através de

pausas que promovem quebras de expectativa, nas quais o riso do público é interrompido

bruscamente.

Após a cena do “massacre dos índios”, na qual através de ações, Julio Adrião

demonstra a luta que dizimou quase todos os índios da tribo que o acolheu, Johan Padan

depois de uma cena de pantomima e ações vocais engraçadas, pára, fica em silêncio olhando

os mortos, dá alguns passos em direção ao proscênio e diz: “Fiquei deprimido”.

Depois da cena da “costura dos índios”, descrita no início do capítulo, e a qual é

uma das cenas mais hilariantes e virtuosas do espetáculo, Johan, depois de costurar uma

centena de índios, interrompendo a risada abundante do público, pára e fica em silêncio por

alguns segundos.

O silêncio anterior à batalha, essa vigília de armas, feita da espera do amanhecer, e

esse silêncio que sucede os combates, que se instaura no lugar dos ruídos.

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Sim, ele permanece no silêncio, o herói. [...]

O silêncio dá vida a olhares nunca vistos, a gestos ainda não ousados.

Tudo é eminente; para que um braço que se ergue tenha um sentido, nós o

esperamos no silêncio da expectativa, que dá ao ato que se segue todo seu valor;

assim, a palavra é esperada como necessária ao encontro. [...]

É a partir do silêncio que nasce a qualidade do gesto e da palavra. É nesse crisol que

se preparam os impulsos e as pulsões que organizam, no espaço interior, os ritmos

em urgência de emergência: ele vai falar? agir? Ele ergueu-se, caminhou, voltou-se,

olhou-me por apenas um instante, um instante suficiente para a compreensão, e

continuou seu caminho.

O silêncio é investido de qualidades muito diferentes, conforme preceda ou suceda

uma ação, um ato, uma palavra. A urgência de uma ação que nos mobiliza

inteiramente requer um silêncio propício a essa ação. A ação o exige. [...] O silêncio

inicial assemelha-se à concentração que deve favorecer a ação subseqüente. [...]

O silêncio depois da ação conduz mais à reflexão, ao recolhimento em si mesmo.

[...] Não há conflito entre a palavra e o silêncio; o silêncio dá a palavra sua

profundidade.67

Na cena em que Johan catequisa os índios e descreve a crucificação de Cristo que

olha sua mãe caída aos seus pés, o intérprete pára e permanece longos segundos em silêncio,

após sucessivas cenas baseadas no texto de palavras, encadeadas por um ritmo frenético e

uma comicidade quase sufocante.

Eu descobri há pouco tempo em relação a esta cena [do massacre dos índios], um

silêncio. Faz um mês que eu descobri isto. Eu me carrego daquilo e digo: “Fiquei

deprimido”. E mesmo assim as pessoas ainda riem. Mas pode ser uma risada nervosa

também. O mesmo movimento que é a espada espetando, depois virou um

movimento de corpo caindo. Narrando aqui com meu corpo, “va, va, va, va” [faz

movimentos de cravar a espada] e depois o narrador vendo aquilo horrorizado, só

depois vem o silêncio. Eu olho aqueles índios todos caídos e aí vem o texto. São

coisas que eu vou percebendo. A cruz também [imagem de Cristo crucificado], as

pessoas riam e eu deixei ele ali crucificado um tempo “enoooorme”. O Hugo Rodas

quando viu o espetáculo em Brasília veio chorando para mim, pois ele é o próprio

expatriado, ele é o cara que não voltou. Ele teve uma identificação com o Johan,

67 Jacques Lecoq in "Le Théâtre du geste", org. de Jacques Lecoq, Ed. Bordas, Paris, 1987. Trad. de Roberto

Mallet.

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com a estória. Aí ele disse: ‘Posso te dizer uma coisa? Naquela hora do Cristo fica,

não tenha pressa de terminar, pois ali você vai botar o dedo na ferida’.68

Quem vê a frenética montagem de A descoberta das Américas pode perguntar-se

o porquê de tanta importância dada à pausa aqui, mas se não constitui o ponto mais

importante do espetáculo, como nunca será, pode vir a concretizar momentos de extrema

riqueza poética, por ser justamente um elemento raro dentro da encenação. Uma pausa em

outro espetáculo com um ritmo menos veloz, não causaria tanto impacto e interesse. O ator

Julio Adrião considera estes, momentos de descoberta em relação ao próprio espetáculo.

O corpo, a sua presença, o seu movimento, funda a realidade do feito teatral e

organiza a relação que se estabelece entre o palco e a sala. Antes de entender e de

analisar as combinações da linguagem, o espectador tropeça na visão global e

instantânea que lhe propõe o ator e seu silêncio. (RYKNER, 2004: 212)

Este procedimento, se o podemos assim chamar, se mostra até contrário a

linguagem de Fo, talvez porque os ritmos de sua narração épica e sua linguagem mais

próxima aos contatores de histórias não permita pausas muito longas, e é por isto, que as

pausas se tornam evidentes e eficazes em A descoberta das Américas, pois ao invés do

relaxamento, Julio Adrião propõe justamente o contrário: a tensão.

Fig. 18 A descoberta das Américas

Vídeo produzido por Filmes do Serro

68 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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3.3 Os retirantes da Terra Santa: a gestualidade de Il Primo Miracolo e a obra de

Portinari

Fig. 19 Il Primo Miracolo

Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções

Combinando a dialética e a expressão das obras de Fo a dinâmica dos quadros do

pintor brasileiro Cândido Portinari (1903 - 1962), Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo

Miracolo, relaciona a crítica social de Fo com a força expressionista do “pintor social”

Portinari. Birindelli utiliza a gestualidade de seus quadros, principalmente da série

“Retirantes” (sobre os retirantes nordestinos que migram para São Paulo), e do “Ciclo do

café” (que mostra os trabalhadores das lavouras de café), para construir partituras de ações,

posturas e máscaras de alguns de seus personagens.

Il Primo Miracolo conta a estória do nascimento de Jesus, da fuga de sua família

para o Egito e de sua infâcia como estrangeiro em outras terras, nas quais provavelmente

aconteceram os seus primeiros milagres. Dario Fo escreve esta estória de forma profana, sem

nenhum cunho religioso, mas não blasfema, tratando de elementos como a opressão, a fome, o

exílio, os preconceitos raciais e de nacionalidade. Humanizando o lado divino destas

personalidades, Fo satiriza os valores da sociedade contemporânea, mostrando a Família

Santa como uma família comum, e coloca em evidência, através da ironia, seus inúmeros

defeitos, mas também suas virtudes. Assim como Fo, Portinari também denuncia através de

seus personagens as falhas de toda uma sociedade.

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Através dela, de sua força expressiva, de suas violências, de suas deformações não

raro sarcásticas, ele [Portinari] critica a sociedade, aponta as falhas da organização

política, instiga o público à revolta contra a ordem que considera errada das coisas.

Ele exprime e comunica a sua própria inquietação. (MILLIET apud FABRIS,

1990: 20)

Assim como a escritura de Fo, Portinari em suas obras, pinta através de suas

deformações, por vezes sarcásticas, a realidade de suas estórias através da ótica do povo,

construindo personagens que como o pöer nano de Fo, representam a gente humilde e

trabalhadora, o povo sofredor, faminto e cansado, com toda a sua carga de humanidade e

materialidade. O herói de Portinari, assim como na série de desenhos Dom Quixote, é um

herói humilde, faminto, mas por vezes, fabulador e sonhador.

“Invertendo a postura do teatro de Strindberg, que concebe a ação dramática como

um Calvário, Portinari faz de Cristo um homem, um irmão dos retirantes, dos trabalhadores.”

(FABRIS, 1990:71). Portinari fala para as massas assim como Fo, e seu expressionismo

lembra a arte “verdadeiramente humana”, assim como o grau expressivo do teatro de Fo.

Entre o Jeca Tatu e os cangaceiros de Portinari não vai diferença alguma, na missão

confiada a esses símbolos de trazerem até nós o grito daqueles infelizes que seus

traços ridículos e angustiados representam, mergulhados que estão naquela miséria e

naquele infortúnio e naquela mesma ignorância que em Juazeiro os tornaram heróis

e bandidos, quando, em verdade, foram apenas mártires. [...] É certamente obra de

pintura, de uma grande pintura iconográfica, rapsódica, vibrante, documentária,

violenta. (G.I∗ apud FABRIS, 1990:20)

A obra de Portinari é épica e rapsódica em sua narrativa, assim como os

monólogos de Fo, mas transmitem para a montagem de Il Primo Miracolo, uma contradição

evidente em um fecundo jogo de oposições.

Autora - Os quadros do Portinari transpiram melancolia [apesar de um fundo irônico

e sarcástico de algumas obras] e os textos do Fo, comicidade.

Roberto Birindelli - É isso! Eu te proponho uma charada. Uma que te faz rir e uma

que te deixa apreensiva. Então o que é proposto é um trabalho interno, de escolher o

tempo todo de que lado tu vais ficar. Inseto ou inseticida. O que é interessante, é que

∗ Folha de São Paulo, 1970, autor não identificado, apud Fabris, 1990.

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muitas vezes tu te deixas ser inseticida e aí tu te cobras, por exemplo: a história do

rei negro, o camelo, o rei velho que escorraça o camelo, e aí tu te pegas rindo de

uma coisa que tu não gostarias.

Autora - Através da oposição.

Roberto Birindelli - Sim. O espetáculo ficou assim, mas isto não está presente no

texto original do Fo. É uma sucessão de armadilhas, que conforme mais ou menos

consciente, tu te deixas levar.69

Apesar de Roberto Birindelli fazer algumas paradas durante o riso do público, não

raro, este jogo de oposições traz o público de volta do riso com um nó na garganta, pois este

se dá conta, em alguns momentos, de que ri de algo reprovável, como das tiradas

preconceituosas que os amigos do Menino-Jesus proferem contra ele, com apelidos do tipo

“gringo” ou “Palestina”, do tratamento preconceituoso dos dois Reis Magos contra o Mago

preto, e diversas outras passagens que ao mesmo tempo engraçadas, recebem uma tragicidade

das ações, promovendo uma quebra de expectativa, surpreendendo em flagrante o riso do

público.

Birindelli traz da obra de Portinari uma gestualidade grave, intensa, em alguns

momentos sofrida e deformada, em contraponto à comicidade do texto.

A diferença claramente perceptível entre a gestualidade de A descoberta das

Américas e Il Primo Miracolo é que Julio Adrião possui uma gestualidade que desenha e

narra a estória, dando vida no palco a elementos invisíveis até então, de modo que se

tamparmos os ouvidos ainda será possível pela gestualidade do intérprete entender diversas

passagens. Já Roberto Birindelli, em uma linguagem gestual distinta, se utiliza de uma

gestualidade mais abstrata, mas não menos clara e limpa. A gestualidade de ambos os

espetáculos, que se encontra em um plano completamente oposto ao do quotidiano, necessita

mais do que outras do texto de palavras, mas trabalha com o texto de maneira diferente do

teatro tradicional, pois joga com ele, confrontando-o, e não reiterando o jogo de palavras.

“Primeiro eu levei uns três meses só trabalhando as situações. Isto tem a ver com

os pastores, isto tem a ver com Maria. Primeiro a corporeidade no relacionamento com as

figuras, depois é que eu fui para o texto”.70

69 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, vide apêndice. 70 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Como talvez ninguém melhor do que Portinari tenha sabido dar vida através de

imagens a uma visão épica do homem do povo brasileiro, não uma visão épica perdida na oca

teatralidade dos grandes gestos, mas a uma visão épica conseguida através do enaltecimento

do trabalhador e do homem comum, Roberto Birindelli buscou em Portinari a ponte de

comunicação direta com a gestualidade brasileira. Com suas obras “Portinari está descobrindo

a paisagem e a gente brasileiras e se encanta com seu colorido, sua gestualidade, sua

expressividade.” (FABRIS, 1990: 95)

Em 1936, Portinari pinta a obra Fuga para o Egito, com seus temas religiosos e

alegóricos, que pode ser diretamente relacionada à peça Il Primo Miracolo, mas é nos

Retirantes que Roberto Birindelli encontra a tradução mais expressiva da gestualidade que

deseja.

O retirante torna-se em Portinari um símbolo universal do homem, vítima da

guerra, da fome, da miséria. “Sua arte pode resumir-se a uma única preocupação: o homem.

Não o homen entidade abstrata, mas o homem histórico, o homem que vive o devir, a

contingência da condição humana: o trabalhador, o retirante, a mãe que chora o filho morto...”

(FABRIS, 1990: 70)

E aí caiu a ficha. ‘Il Miracolo...’ fala de uma sagrada família que sai de Belém. [...]

O que isto tem a ver com a gente? É claro! Nós temos um monte de sagradas

famílias, que são nordestinos que saem do nordeste para buscar emprego em São

Paulo! Isso é um ponto de partida. E aí, é claro, me veio direto as imagens do

Portinari. Eu peguei toda a série dos retirantes nordestinos: ‘O ciclo do café’, ‘O

menino morto’, ‘As lavadeiras’ e os ‘Retirantes’. Olhei muitas vezes toda a série, a

linguagem, os homens, as figuras deformadas e comecei a trabalhar sobre isso. Pena

que você não está gravando em vídeo [levanta e começa a fazer as partituras]. Mas

no site [www.ilprimomiracolo.com.br] você pode ver as figuras. Do quadro “O

menino morto”, vieram várias seqüências. 71

A série dos Retirantes personifica a saga, a “diáspora”, a Via crucis destes homens

e mulheres castigados pela seca, ponte direta com a história de Cristo. O princípio é a “seca”,

o êxodo o meio, e a sobrevivência, a vida ou o “ressuscitar em outras terras”, como o fim. Os

heróis trágicos de esqueletos vacilantes, que lutam na batalha injusta contra os próprios

destinos, são heróis que como Dom Quixote lograram na vida ser grandes e humildes ao

mesmo tempo.

71 Roberto Birindelli , em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Ao tratar novamente da morte, Portinari impregna a composição de uma atmosfera

de religiosidade. A rede [da obra Enterro na rede, 1944] evoca o lençol no qual o

corpo de Cristo foi levado à sepultura, o pathos da gestualidade feminina e a muda

resignação dos homens lembram as mulheres e os apóstolos em sua triste caminhada

para o sepulcro. O Cristo é anônimo como são anônimos todos os retirantes que

sulcam o sertão de cruzes. (FABRIS, 1990: 116)

Portinari não mostrou a sua inquietude apenas nos seus quadros, mas também em

seus poemas feitos geralmente para cada série ou quadro. Sobre a série Retirantes, escreveu o

poema Deus de Violência:

[...] Corpos disformes, uns panos sujos,

Rasgados e sem cor, dependurados

Homens de enorme ventre bojudo

Mulheres com trouxas caídas para o lado

Pançudas, carregando ao colo um garoto

Choramingando, remelento

Mocinhas de peito duro e vestido roto

Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

Olhos de catarata e pés informes

Aos velhos agarradas

Pés inchados enormes

Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

Sobre a figura do menino morto, escreve:

[...] O filho menor está morrendo

As filhas maiores soluçam forte

Caem lágrimas de pedra. Mãe querendo

Levar menino morto: feio de sofrer, cara de morte

[...] Que santo nos poderia livrar?

Reza de velho louco

Deus pode a todos castigar.

Que é que esse menino tem? Está morto. (PORTINARI apud LUZ, 1986:

134)

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O drama humano já subjacente na Via Sacra de Pampulha, toma corpo nos

Retirantes (1944), que também fazem a sua via sacra, esqueléticos, de rostos esquálidos, secos

como a paisagem árida em que nasceram, denotando a nova visão de Portinari.

Autora - É claro que os quadros do Portinari estão presentes na estética do

espetáculo, nas imagens, mas elas são muito dinâmicas e codificadas. Codificações

de um gesto presente no quadro, em diversos outros, formando o movimento, a

partitura.

Roberto Birindelli– [Demonstra] Uma mulher que está com o menino morto, outra

mulher que ampara e outra mulher que chora. Juntei uma música da resistência

chilena [canta no espetáculo, pois não utiliza música mecânica]. E aí tem toda a

dinâmica da Fuga para o Egito e a dinâmica “horrível” dos quadros do Portinari.

Isso ajudou assim: O texto [a peça] já de início te propõe uma luta interna. Porque a

dinâmica do Portinari é ‘horrível’ e o texto é hilário.72

Os pés de Roberto Birindelli parecem personagens à parte, em sua expressividade

agigantada, assim como as suas mãos, que para cada personagem assumem gestos

correspondentes. As mãos que amparam as lágrimas do Menino-Jesus despresado, são outras

muito diferentes das delicadas mãos de Maria, das mãos dos Magos, firmes que cortam o ar

com movimentos bruscos.

Birindelli, principalmente faz de suas mãos, símbolo inequívoco, como as grandes

mãos e pés de Portinari, com sua carga de força e de criatividade. “Na série, pintada em 1944,

Portinari parece ter experimentado a gama mais variada de sentimentos: das lágrimas de pedra

aos rostos atônitos e resignados, da dor gritada à dor surda, expressa pelo olhar e pelo gesto

vigoroso da mão:” (FABRIS, 1990:112)

[...] os corpos encurvados, tudo isto nos indica o êxodo, a retirada, a evasão daquela

gente. Já os pés amplamente apoiados, os cajados fincados na terra, os braços que se

elevam aos céus em apelo e súplica são, sem dúvida alguma, indicativos que

aparecem em alguns trabalhos desta fase, demonstrando a vontade de ficar. (LUZ,

1986: 18)

As alegorias presentes em toda a obra de Portinari, assim como em Fo, trazem a

busca de uma gestualidade representativa, que assim como a subjetividade da mímica

72 Roberto Birindelli em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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moderna, traz elementos diversos capazes de serem vistos por diferentes olhos, suscitando

sensações distintas. As ações podem se passar em qualquer lugar do mundo e seus agentes

podem ter qualquer nacionalidade, “[...] pois, além de fugir de qualquer notação realista, o

pintor confere à obra um caráter não arbitrário, quer pelo agenciamento espacial, quer pela

luminosidade que em nada lembra um cenário tropical”. (FABRIS, 1990: 61)

Figs. 20 e 21 Il Primo Miracolo - Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções

Nas obras de Portinari, como em A Primeira Missa no Brasil, defrontamo-nos

com uma realidade simbólica - o ato religioso - que resume em si toda a composição. Se não

fosse pelo título da obra, nenhum dos elementos que a compõe permitiria datar o

acontecimento. Portinari então busca para seus personagens os gestos representativos de toda

uma classe, de todo um povo; gestos essencias e universais ao mesmo tempo.

A gestualidade essencial, com o trabalhador captado nos momentos culminantes:

esse tratamento da figura por parte de Portinari lembra o momento fecundo de que

fala Lessing no Laocoonte. Não que o artista de Brodósqui reduza a pintura a uma

única dimensão, mas é patente a busca do gesto essencial, do gesto que resuma em si

toda a ação. É nisso que Portinari se aproxima da proposta de Lessing - colher e

magnificar a gestualidade mais significativa ou uma sequência de gestos produtivos,

que criam uma dinâmica espacial e psicológica. Na captação de gestos seqüenciais,

na tradução de movimentos refletidos, Portinari se aproxima da espacialidade dos

primitivos italianos, mas também nesse caso a ‘condensação’ temporal e psicológica

responde a razões expressivas: o artista cria registros temporais simultâneos, que

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111

sugerem movimento numa composição classicamente estática. (FABRIS, 1990:

105)

Portinari, que pintou o universo do circo com seus palhaços e bufões que lhe

encantavam na infância com sua comicidade grotesca, também utilizou cenas alegóricas e

gestos simbólicos em suas telas como em Via Sacra e São Francisco, painel feito para a Igreja

da Pampulha em Belo Horizonte. A obra São Francisco, mais contida em sua gestualidade e

expressividade, marca um encontro entre o classicismo renascentista e o Portinari

expressionista: “A dramaticidade de Cristo na Cruz, em sua expressividade ‘tosca’ e contida,

lembra algumas Paixões medievais.[...] Através de Cristo, Portinari retrata o drama da

humanidade, dando a sua obra um caráter mais amplo que o do drama religioso.” (FABRIS,

1990: 61) Estas palavras resumem exatamente a ponte entre o Cristo de Portinari e o Cristo de

Fo que, através de sua proximidade com o homem comum, trazem reflexões profundas sobre

a humanidade.

A fabulação de Portinari, sua capacidade de fazer das suas memórias de infância,

imaginação repleta de realidade, traz um certo realismo teatral que se evidencia através de

uma patente representação dos fatos.

O herói trágico de Portinari, assim como o herói grego, tem consciência de seu

fatalismo, característica principal do herói trágico, pois sem ela, sua condição não seria a

mesma: a de herói que não pode fugir ao seu próprio destino, seja ele bom ou ruim. Os

narradores (heróis/anti-heróis) de Fo possuem uma grande maleabilidade nas ações e,

geralmente, nas escolhas, pois conduzem sua tragetória com muita perspicácia e

malandragem, mas interiormente sabem qual será o seu fim.

A simpatia pelo comunismo, vinda pelas artérias de Prestes, era para Portinari a

suspensão do conflito e a resolução da tragédia.

Para Portinari, “apenas a pintura poderia tornar real o segredo de nossa existência.

O homem apareceria enfim como ele é, representado através das contorções e distorções da

forma.” (LUZ, 1986: 98)

Coloca os atores principais de suas obras no centro, e assim como Fo, recorta as

“objetivas” do público para o acontecimento principal, como no quadro “A criança morta”, ou

“O menino morto” que inspirou Roberto Birindelli:

A Pietá central, que segura o pequeno cadáver já transformado em esqueleto, é

ladeada por dois grupos, cuja dor é expressa pelas lágrimas de pedra das figuras

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femininas e pelo olhar perdido do menino. [...] Os elementos expressivos do rosto,

aliás, fazem pensar muito mais numa representação simbólica do que numa

fisionomia individualizada, pois lembram a iconografia medieval da máscara da

morte. [...] Há uma correspondência psicológica entre os dois grupos de figuras: a

mulher de marrom pode ser vista como um primeiro momento da mãe desolada; a

menina, que segura ternamente a cabeça do menino morto, parece projetar seu futuro

na mulher da direita, que traz pela mão uma informe esperança de vida. (FABRIS,

1990: 113)

Através das simbologias e de uma quebra da lógica da expectativa, Portinari choca

e promove um tipo de catarse que não é a mesma catarse liberatória tão criticada por Fo, mas

um tipo de sensação que permanece e vai embora com os assistentes. Para Fo, a ironia é a

única coisa que pode causar uma catarse duradoura, definitiva. Algumas obras de Portinari

são trágicas; mas mais do que chocar, demonstram através da teatralidade de suas figuras,

uma certa ironia da vida, ironia do destino.

Birindelli trouxe para sua gestualidade um pouco da essência das obras de

Portinari, que através da hipertrofia de seus personagens, revelou através de suas pinturas e

narrativas, assim como Fo, não exatamente o que aconteceu, mas o que poderia acontecer.

Fig. 22 RETIRANTES - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 190x180 cm

Museu de Arte de São Paulo - Coleção Assis Chateaubriand

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Fig. 23 ENTERRO NA REDE - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 180x220 cm

Museu de Arte de São Paulo – Coleção: Assis Chateaubriand

Fig. 24 CRIANÇA MORTA - Cândido Portinari - 1944, óleo s/ tela, 180x190 cm

Museu de Arte de São Paulo – Coleção: Assis Chateaubriand

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114

3.4 O ponto de encontro: a construção da corporeidade em A descoberta das Américas e

Il Primo Miracolo

A figura cênica é uma complicada estrutura de signos que inclui vários

componentes, quer lingüísticos quer extralingüísticos, constantes ou variáveis. No teatro, o

signo criado pelo ator tende, por causa de sua esmagadora realidade, a monopolizar a atenção

do público à custa dos significados imateriais veiculados pelo signo lingüístico das palavras.

Como a semiologia da linguagem e a semiologia da atuação são diametralmente opostas em

suas características principais, sempre há uma tensão dialética entre o texto dramático e o

ator.

Se por outro lado, a materialidade do corpo do ator é sobrepujada, o texto de

palavras perde inúmeras possibilidades de se abrir e dar vazão para jogos que podem ser

muito mais significativos, pois sendo o teatro diferente da literatura feita para ser lida, se a

corporeidade e a materialidade do corpo do ator perdem seu espaço, o teatro perde sua

principal função.

A criação de A descoberta das Américas empreendida por Alessandra Vannucci,

diretora do espetáculo, e Julio Adrião, intérprete, e a criação de Il Primo Miracolo, feita por

Roberto Birindelli, a partir das escrituras de Dario Fo, são exemplos claros de que a criação

do ator pode estar em consonância com o texto dramático, no sentido de que as linhas mestras

do texto são respeitadas e, ao mesmo tempo, dentro destes limites textuais (de onde emerge a

função do dramaturgo, que estabelece as linhas das situações que devem ser desenvolvidas), o

ator possui uma infinita liberdade de criação, pois pode, através de suas ações, gestualidade,

ações vocais e ritmo, provocar inúmeros deslocamentos semânticos, afirmando ou

provocando as palavras, e abrir todo um universo significativo de possibilidades de

entendimento, um universo paralelo que pode tornar mais rico o texto de um dramaturgo

como Dario Fo.

Julio Adrião e Roberto Birindelli, respeitando o texto do autor e as grandes linhas

de suas situações, inúmeras vezes, desenvolvem as ações ou enxertam nelas episódios criados

por eles. Nestes casos, quando se altera o ritmo de algumas ações, ou se modificam

determinadas relações de força, ou ainda, a interpretação de certas características sem intervir

na proposta básica, as variações e os recortes são geralmente benéficos para os efeitos

dramáticos visados.

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A dialética entre a expressividade vocal, a expressividade do gesto e do texto, é a

tarefa mais difícil para os atores, cujos trabalhos procuram a transparência entre a proposta do

texto e a atitude corporal.

De todas as características da semiologia da linguagem, a mais importante neste

sentido é que o significado fica ligado ao material sensorial e corpóreo – os componentes

sonoros de que depende o significado lingüístico são, em larga medida, predeterminados pelo

próprio significado da palavra, mas geralmente podem ser modificados completamente. Isto

permite que os significados lingüísticos criem as mais complicadas relações.

O discurso das personagens em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo

são proferidos pelo próprio narrador que, por vezes, dá vida a outros personagens que também

dialogam entre si através do discurso direto. O discurso de narrador e personagens em Il

Primo Miracolo se contrapõe mais do que em A descoberta das Américas, justamente pela

distância que o narrador tem das personagens e suas ações, podendo discordar e criticar suas

ações com mais freqüência. O narrador em A descoberta das Américas, por ter participado

dos eventos, partilha da ilusão das personagens, do patriotismo, da revolta, da dor, das

comemorações com um grau muito maior de proximidade.

Neste jogo narrativo, as ações vocais dos espetáculos analisados estão

estreitamente relacionadas com o trabalho empreendido por Dario Fo a partir do grammelot e

dos dialetos. Cada uma das linguagens de Fo, dos dialetos italianos principalmente, revelam

uma visão de mundo, um universo ideológico próprio, assim como os grammelot de Fo que

imitam a linguagem inglesa ou francesa. A partir da regionalidade trabalhada por Fo em seus

textos, Roberto Birindelli traz os sotaques brasileiros para representar os dialetos, ou a

condição social e racial das personagens. Adaptando à nossa realidade, Birindelli tenta

resgatar as linguagens que seriam equivalentes no Brasil e, que poderiam, de certa forma,

representar o que Fo sugere para seus personagens.

Birindelli - [...] Também existe muita coisa do Gramellot, dos dialetos, não dialetos

que a gente não tem aqui...

Autora - Temos os sotaques.

Birindelli - Claro! Os sotaques. O estrangeiro, os tipos sociais que vem da commedia

dell’arte. A relação do soldado com o paulista engravatado que vai trabalhar, pois

estamos falando de nordestinos que vão para São Paulo. Então, os pastores, os Reis

Magos que vão à choupana, que tem um sotaque nordestino e que pensam muito na

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terra; o mineiro que é desconfiado, e que no texto é a figura do São Tomé; é todo um

universo que a gente tem e que modifico em cada lugar.73

Em uma nota de rodapé na tradução de Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli

explica:

Optei por um linguajar o mais próximo possível do coloquial, da rua, adaptado

também aos diferentes tipos sociais e regionais. O próprio Dario Fo trabalha em

bergamasco, montanhês, napolitano, e outros dialetos, quando quer se referir aos

habitantes ricos do norte, que segregam os mais pobres do sul, etc.∗

Em Il Primo Miracolo, São José, “padrasto de Jesus”, fala um “portunhol”,

denotando a sua condição de estrangeiro:

- Aqui tem cossa. Yo atcho que es uma armadilia. Menino Jesus, o que é que tu

atcha?∗

Mais adiante:

- Es siempre assi, quando un homem piensa com la própria cabeça, todo mundo

agradece a Deus, que no fez nada!∗

Sobre a utilização do castelhano, Birindelli comenta em sua tradução:

São José cumpre, neste texto, a função social do estrangeiro segregado. No Brasil, a

figura do segregado é o CASTELHANO. Por isso uso este sotaque. Quando

apresentado na Argentina ou Uruguai, foi trabalhado um sotaque espanhol, o

GALEGO, que é a figura tradicionalmente segregada no Rio da Prata. E assim vai

sendo adaptado em cada local.∗

Geralmente a linguagem utilizada está gramaticalmente errada como nas falas dos

pastores:

73 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, ator de Il Primo miracolo, vide apêndice. ∗ Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996, texto inédito.

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- Oh dotô, pediram pra nóis fazê o prisépio.∗

Sobre isto, Birindelli comenta em outra nota de rodapé:

Lembrando que busco sempre a expressão mais popular, mesmo que gramaticalmente errada.∗

Diferentemente de Roberto Birindelli, que utiliza os sotaques, em A descoberta

das Américas, Julio Adrião utiliza o castelhano para os espanhóis e uma linguagem típica de

“índio falando português” para o Pajé, mas utiliza-se o tempo todo principalmente de

onomatopéias que permeiam a gestualidade rápida, como vimos na descrição de cenas no

início deste capítulo. Roberto Birindelli também se utiliza das onomatopéias em várias

seqüências.

Fig. 25 Il Primo Miracolo – Vídeo Produzido por SCAN Vídeo Produções

O gesto e a ação vocal nos espetáculos analisados ganham uma estatura idêntica

ao texto de palavras na sua intencionalidade de revelar o trabalho já realizado, pois tudo é

preparado cuidadosamente. A estrutura de construção das ações são reveladas a frente do

público, demonstrando a maestria dos atores que agora observam suas ações, do mesmo modo

que os assistentes, para obter informações precisas sobre as mudanças futuras.

Diferentemente, Dario Fo não ensaia ou prepara seus monólogos antes de

entrarem em contato com o público, mas estabelece as linhas de suas ações gestuais e vocais,

∗ Fo, Dario. Il Primo Miracolo. Tradução de Roberto Birindelli, 1996, texto inédito.

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as situações a serem desenvolvidas e, juntamente com o público, vai estabelecendo o ritmo e

os tempos mais eficazes.

Apesar de Julio Adrião e Roberto Birindelli terem feito várias apresentações e

ensaios abertos antes da estréia propriamente dita dos espetáculos, estes foram criados a partir

de uma gestualidade pensada e repensada minuciosamente antes de entrarem em contato com

o público. Trabalhando com partituras de ações, ambos experimentaram profundamente a

relação da gestualidade de seus personagens com o texto dramático escrito por Fo. As

mudanças feitas na escritura foram estabelecidas através da experimentação das ações e

montagem das partituras, mas principalmente, através da contação das estórias repetidamente.

Este dado é fundamental para percebermos o frescor que os dois espetáculos possuem, pois as

estórias são apropriadas pelos atores a partir da linguagem de cada um. É por isto que as

cenas, apesar de terem uma estrutura mais formalizada do que os monólogos de Dario Fo,

possuem uma espontaneidade típica do racconto popular, no qual a estória aparenta estar

sendo construída no aqui e agora da “presentação” e do contato com o público.

Então eu nomeei as estórias, pois para compor esta estória grande, existem várias

estórias. Tem a estória da ida para Sevilha, da chegada em Santo Domingo, tem a

entrada na caravela de Colombo, o aprisionamento pelos índios, tem batalha, uma

série de coisas. Criamos um roteiro com as passagens e eu comecei a contar o que

me lembrava. Afastei as cadeiras em casa mesmo e comecei a contar. No primeiro

dia a gente viu que era isso. Que era um processo que tinha que ser contado e

amadurecido por meio da repetição. Era se apropriar da estória e contar da melhor

forma possível. Nós fomos fazendo e aos poucos vimos que não precisávamos de

nenhum aparato cênico e que era a função do ator reproduzir tudo aquilo com seu

canal de comunicação, ou seja, os elementos que fazem parte da tua história de ator.

Tanto o que você aprendeu tecnicamente, como o que você aprendeu como pessoa.

A tua maneira de se comunicar, tua voz, os teus gestos, os teus vícios de linguagem,

as tuas técnicas, tudo isto a serviço da estória a ser contada.74

Depois das seqüências gravadas, o contato com o público exigiu dos atores outras

tantas mudanças, mas dentro de linhas mestras já estabelecidas por eles. As mudanças

ocorrem no contato com o público, assim como o tempo e o ritmo dos espetáculos se alteram,

mas a diferença, é que o trabalho com as partituras de ações faz com que o ritmo seja de tal

forma encadeado, que como já dito, não permitem as paradas, retomadas e comentários feitos

74 Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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por Fo na maioria de seus espetáculos, nos quais pode sugerir as ações a partir de seus painéis

pintados e suas imagens, pegar e deixar o microfone, interromper e recomeçar.

Para falarmos da construção das ações e da gestualidade de A descoberta das

Américas e Il Primo Miracolo, e da relação destas com o texto de Dario Fo, é de suma

importância falarmos das várias substituições provocadas pelos atores na criação de ambos os

espetáculos. As substituições de texto de palavras por ações ou de ações por texto, são feitas

com muita freqüência, principalmente em A descoberta das Américas:

[...] Todos esses quatro quintos do espetáculo estão em uma comicidade da forma

[até mais da metade do espetáculo, que possui por volta de 1h40m]. A partir da

catequese dos índios é uma comicidade de texto. O Alcione Araújo quando viu o

espetáculo pela primeira vez disse: ‘Olha, vocês correm um risco ali, mas vocês dão

conta.’ É uma outra linguagem, só que ninguém percebe mais, porque já está

alavancado, mas o riso é diferente. O Dario neste momento do texto faz uma crítica

religiosa e faz esta adaptação. A palavra ali se torna fundamental. Ali eu coloquei os

meus adendos também, onde eu criei uma Madalena que não tinha. Todas aquelas

formas são fruto da minha concepção do desenvolvimento da narrativa. Foi um

caminho que eu encontrei. Qualquer outro ator contaria de uma maneira

completamente diferente da minha. Ele iria encontrar a maneira dele, senão vira

imitação. Este mesmo texto contado pelo Dario Fo leva duas horas e meia, onde ele

usa imagens projetadas que tem os desenhos dele, e a partir dos desenhos, ele conta

a estória. [...] Então eu penso que se eu montasse outras estórias do Dario Fo, o meu

caminho seria sempre esse de ‘A descoberta das Américas.’ O que mudaria seria a

estória e os elementos que eu iria descobrir de narrativa fisica. [...] Os quatro quintos

iniciais do espetáculo, desde que ele chega a cidade dos espanhóis até a catequese, o

público ri da forma que está sendo contada a estória e não do texto. Eles riem das

minhas ações. Tem ações de mais de cinco minutos sem uma palavra.75

Os gestos metalingüísticos, termo utilizado por J. Guinsburg em Semiologia do

Teatro (2006), são aqueles que substituem a mensagem verbal, assim como nos monólogos

analisados.

Considerando que os espetáculos prevêem a existência de um texto verbal e de um

texto cênico, existe uma classificação que abarca a relação do gesto com a mensagem verbal

e, também, o gesto como mensagem independente. Entre estes dois pólos, encontramos alguns

signos gestuais que substituem a fala no sentido de terem sido a tal ponto convencionalizados

ou codificados que passaram a ser uma tradução da linguagem verbal, quando, por qualquer

75 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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razão, não se quer ou não se pode empregá-la. É sobre este tipo de gestos que se baseiam as

pantomimas e mímicas, subjetivas ou não, na escritura de Fo e nos espetáculos de Birindelli e

Adrião. Estes gestos são metalinguísticos em virtude desta característica de servirem para

substituir uma outra linguagem e serem significativos por si só. Já os gestos que acompanham

a fala podem reiterá-la ou contradizê-la (como nos jogos de oposições que já vimos).

A gestualidade pode dirigir-se a dois destinatários: outro personagem,

pertencendo à ficção estabelecida no palco, ou a platéia, pertencendo a uma ligação entre

mundo real e ficcional.

Os monólogos, peças para um só ator, já possuem, de qualquer forma, uma

linguagem dialógica, pois os personagens dialogam consigo mesmos, com personagens

imaginários, ou dialogam assumidamente com a platéia; mas os monólogos de Dario Fo,

possuem esta função dialógica ampliada, pois apresentam personagens que dialogam entre si,

mesmo sendo representados em seqüência.

Em A descoberta das Américas, como disse o ator Julio Adrião, a primeira metade

do espetáculo está na comicidade da forma; isto quer dizer que o público ri mais das ações do

que propriamente do texto em si. É nesta parte que acontece o maior número de substituições

de texto por ações, como na cena da “costura dos índios” de quase oito minutos, que substitui

um parágrafo indicativo no texto.

As cenas em que Johan Padan, personagem de Julio Adrião, mima colocar os

animais no porão do navio, também é um exemplo de desenvolvimento da narrativa através

das ações. O intérprete imagina e estabelece a partir das características do personagem e da

estória, o que poderia acontecer a partir da situação proposta pelo texto e, acrescenta uma

cena em que coloca, como guardião dos animais, cada um deles, porcos, galinhas, cavalos, no

porão da embarcação. Johan faz as ações opositivas de colocar cada animal no porão,

mimando, ao mesmo tempo, as ações de resistência provocadas por eles. Esta cena também

não está prevista na escritura de Fo, mas traz um “realismo teatral” que põe em evidência uma

parte da narrativa que não possuía a mesma importância no texto original, beneficiando a

ficção proposta pela escritura.

Outras cenas de ações criadas pelo intérprete e que substituem o texto de palavras,

evidenciam o aspecto cômico de determinadas passagens através de uma quebra de

expectativa descoberta pelo intérprete e pela diretora do espetáculo: quando Johan descreve

as trocas empreendidas com os índios, nas quais os espanhóis trocavam pérolas por espelinhos

e perfumes, Julio Adrião mima o mergulho de um índio para buscar uma pérola. Mima sua

descida até o fundo do mar, o encontro da pérola e a subida do índio que parece não terminar

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mais, quando este já está sem fôlego, provocando situações hilárias. Estas cenas de ações

substituem a narração das palavras e mostra a leitura do intérprete e da diretora sobre

determinadas cenas, abrindo um campo muito fértil de ações inteligentemente desenvolvidas.

Fig. 26 A descoberta das Américas

Vídeo Produzido por Filmes do Serro

Lendo o texto traduzido ou mesmo o texto em italiano, podemos notar as

inúmeras substituições de texto por ações em A descoberta das Américas e a dimensão que

algumas cenas tomaram no espetáculo a partir de frases ou parágrafos indicativos presentes na

narrativa original.

Quando a embarcação em que Johan se encontra, chega a Santo Domingos, a frase

presente no texto traduzido por Alessandra Vannucci e Julio Adrião, diz: “Finalmente

chegamos à Ilha de Santo Domingos! Que Maravilha! Eu nunca tinha visto uma água tão

clara!”. A partir desta frase o ator descreve com seu corpo e gestualidade, os peixes, os

peixões que comiam os peixinhos, os sirizinhos, a alga marinha, narrando com seu corpo a

visão que possivelmente se teria da praia.

Em uma passagem na qual Johan narra sobre a situação em que os bichos ficavam

durante as tempestades, substitui mais uma vez os gestos pelas palavras: “Os bichos, atirados

contra as paredes do porão. Quando acabava a tempestade, estavam tão rasgados que eu tinha

que costurar todos, cavalo, porco, galinha, vaca... com a agulha de costurar velas. Salvei

todos. Me adoravam.” Julio Adrião substitui este texto por uma cena de ações em que costura

os animais. Adrião faz a reação dos animais através de ação vocal ao mesmo tempo que faz as

ações de Johan costurando-os. Em A descoberta das Américas podemos citar várias cenas de

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substituição de palavras por ações, como a que Johan doma os cavalos chucros trazidos da

Europa na frente dos índios.

As substituições de texto de palavras por gestos em Il Primo Miracolo são bem

menos freqüentes, mas Roberto Birindelli faz substituições de texto por ações vocais com um

grammelot de onomatopéias, assim como Julio Adrião, e trabalha mais, como vimos, com um

jogo de oposições entre texto de palavras e texto gestual.

Adrião e Birindelli utilizam tanto onomatopéias como constróem um grammelot

com palavras em português. Este grammelot tem um efeito cômico duplo, pois é falado no

ritmo da ação a qual quer aludir, fazendo uma construção de sentido através de códigos já

estabelecidos durante o espetáculo, além de que, as palavras em português funcionam como

uma estrutura para o grammelot, evidenciando o aspecto cômico, pois não tem relação com a

época em que a estória se passa.

Quando Johan fala que vai pegar seus pertences para partir novamente, inclui nos

objetos que narra rapidamente, palavras como “cueca”, “desodorante”. Quando narra a

aparência dos índios depois de já ter narrado normalmente, diz: “tudo vegetariano, sarado,

peitoral, ‘Gatorade’”. Este recurso é o mesmo utilizado por Roberto Birindelli quando

descreve os presentes trazidos pelos pastores para Jesus: “picolé de creme, Banana Split,

Chokito”.

Quando descreve as índias, Johan Padan, depois de já tê-las descrito

normalmente, descreve-as apenas utilizando a gestualidade e algumas palavras, sendo que

dentro deste tipo de grammellot, aparecem termos como “escova progressiva”.

Alguns recursos cômicos estão diretamente ligados à ponte estabelecida com a

atualidade, o tempo todo mesclada com a estória. Esta ponte com a atualidade também é

estabelecida por Fo na própria escritura original.

Em A descoberta das Américas, os índios, segundo Johan Padan, pegam “caneta

e papel” e saem anotando tudo com muita atenção durante a catequese. Em Il Primo

Miracolo, “os soldados chegam, passam por todas as choupanas e param bem na frente da

Igreja da Candelária para ver se o Redentor tinha nascido”.

Em uma apresentação feita na cidade de Itajaí (SC), Julio Adrião em A descoberta

das Américas, inseriu a palavra Itajaí, termo indígena, na narração da cena em que ele e os

espanhóis proferiram todo o tipo de palavras indígenas que conheciam para estabelecer um

contato com uma tribo de índios.

Algumas destas “atualizações” feitas na escritura dependem de uma pesquisa

prévia no lugar que será feita a apresentação. Geralmente esta ponte está diretamente ligada

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com o lugar e com a atualidade brasileira ou a atualidade do país em que o espetáculo será

apresentado:

[...] Em cada lugar eu tento remontar o perfil da sociedade que eu encontro. É por

isso que eu pergunto antes qual é o grupo social segregado e vou montando isto. [...]

Eu faço uma pesquisa. Por que eu vou me relacionar com essa sociedade, então o

que interessa não é só o que eu digo, é o que o espectador escuta através da realidade

dele. [...] Não só modifico a maneira de contar, como modifico as personagens! Por

que na Suécia, por exemplo, falar de racismo, é muito diferente do que falar sobre

isso em São Paulo. Mas a estrutura se mantém sempre. E como ela já está tão

codificada e tão orgânica para mim, que eu não preciso pensar, eu posso brincar do

que for. Por exemplo, eu apresentei em uma favela muito violenta em São Paulo que

nem a polícia entra. Como é que eu ia me relacionar com isso? Aí conversando,

chegamos a conclusão que somos todos ‘fodidos’ dentro de uma favela. Então eu

disse: eu vou contar a história de um ‘fodido’ que chegou em uma cidade que

ninguém conhecia ele, que tinha uns ‘amigos’ que não falavam com ele e inventou

histórias para ser reconhecido por eles. [...] Eu disse isso no prólogo! [...] Foi

bárbaro! Primeiro que eles entenderam que o Menino-Jesus era um “fodido” que

inventou de fazer milagre para ser aceito pelos amigos. Então isso é que ficou

parecido com eles.76

No jogo estabelecido pelos gestos metalinguísticos, em que as palavras são

substituídas pelas ações, procedimento que a escritura de Fo proporciona aos intérpretes

através das frases sugestivas de uma escritura pensada a partir da ação, existem outros

elementos, como a supressão de partes do texto que se encontram nas versões originais ou até

mesmo nas traduções (que nestas duas montagens não prejudicam ou interferem no

entendimento), e os acréscimos de texto feitos pelos intérpretes.

Nas partes enxertadas, como as palavras que já foram citadas e que fazem uma

ponte com a atualidade, os intérpretes criam e inserem situações cômicas que não estavam

presentes no texto original, assim como foram inseridas as cenas substituídas por ações.

Em A descoberta das Américas, um pouco depois da metade da peça, como o

intérprete já mencionou, o espetáculo passa a apoiar-se em uma comicidade mais existente no

texto, característica desta escritura de Fo. Podemos perceber nestes momentos, que Julio

Adrião enxerta trechos de texto de palavras, neste caso, não para provocar um

desenvolvimento da ação, como no caso das cenas de ações inseridas, mas com uma função

quase sempre de evidenciar o aspecto cômico da narrativa.

76 Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Um exemplo de acréscimo está na parte da catequisação dos índios, na qual Johan

Padan descreve longamente uma Madalena sensual, com os bicos dos peitos que parecem

“duas bolachas Maria”. Outro exemplo está na parte que narra a crucificação de Cristo:

Quando cheguei a cena da crucificação, com a mãe aos pés da cruz esperando pela

morte do filho, foi uma tragédia! Parecia que tinha morrido um filho deles!

Choravam desesperados, arrancavam os cabelos, arranhavam o rosto...Calma! Três

dias depois de morrer, Jesus pensou bem e achou melhor ressuscitar! As índias

começaram a tirar as criancinhas: É mentira! Ele tá mudando o final só pra agradar a

gente! [grifo nosso]77

Mais Adiante:

Então eu vou ensinar uma música pra vocês antes de vocês saírem para o recreio.

[canta e dança uma música religiosa em ritmo de samba]. ‘Ai, mas que beleza... Ai

que alegria, o filho dos céus ressurgiu, tá vivo o filho de Maria’.78

Então, Johan resolve dar “férias” para eles. Esta parte final do texto foi acrescida,

assim como na cena em que Johan chega em outras terras e os indiozinhos, que nunca tinham

visto outros homens que não fossem os de sua tribo, começaram a gritar: “- Monstro!

Monstro! - Que monstro?!! É isso que dá deixar criança ver TV até tarde!”

Em Il Primo Miracolo, o texto de palavras quase não possui modificações,

também pelo fato de ser um monólogo mais curto.

Todos estes procedimentos de supressão, substituição, acréscimos, pausas, faz

com que o espetáculo passe por um processo paradoxal, pois apesar de haverem mais cortes e

substituições de texto por ações do que acréscimos de texto, os quais são muito raros e curtos,

geralmente, apesar do ritmo ágil que dá a impressão de compressão do tempo-ritmo da cena, o

tempo do espetáculo se dilata.

Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade brasileira

que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a necessidade de

enxugar o texto, pois o espetáculo tinha uma hora e dez minutos. Mas ao mesmo

tempo que eu ia sentindo a necessidade de cortar passagens que eu achava

reduntantes, eu fui encontrando também as pausas do espetáculo e as ações físicas

77 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004, texto inédito. 78 Fo, Dario. A descoberta das Américas. Tradução de Alessandra Vannucci e Julio Adrião, 2004, texto inédito.

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que foram desenvolvidas, pois algumas ações físicas se desenvolveram de uma

simples ação para uma cena de cinco minutos. O que era uma indicação no texto,

uma frase, se tornou uma cena de cinco minutos. E isso é coisa pra caramba! Eu fui

pesquisando cada vez mais as pausas e desenvolvendo as partituras físicas. O mais

engraçado é que com os cortes o espetáculo ganhou mais tempo, passou de uma hora

e dez, para uma hora e quarenta. Aumentou 30 minutos. Nós cortamos uma cena

inteira e outra nós reorganizamos e a colocamos em outro lugar. Foram cortes

cirúrgicos, pois eu cortava o texto, mais pegava a essência dele e desenvolvia em

alguns casos uma cena inteira só com ações [...]79

Fo conta em seu Manual Mínimo do Ator, que certa vez, em uma apresentação de

A história da tigresa, percebeu que muitas seqüências não funcionavam e existiam repetições

inúteis. Foi assistir a fita que sempre grava e assiste depois de cada apresentação e imaginou

como poderia substituir gestualmente trechos que havia narrado com as palavras. Na próxima

noite, enxugou vinte e cinco minutos de narração, cortando, acelerando, reduzindo e,

paradoxalmente, o espetáculo passou a ter cinqüenta e cinco minutos. “Em teatro,

freqüentemente, ao se cortar palavras, o tempo se dilata, pois entram em cena as pausas, as

risadas, a diversão do ator e do público.” (FO, 2004: 253)

A relação com o público é diversa nos dois espetáculos analisados, como já

pudemos ver, mas a revelação dos bastidores, da estrutura que envolve a representação,

evidenciando o evento teatral, está sempre presente em ambos.

Julio Adrião em um momento do espetáculo, no qual Johan precisa tirar a camisa,

diz: “Tira a camisa. Joga na mata. Não tem mata? Joga na ‘coxia’ mesmo!” Usa termos, como

“a folha daquela planta era do tamanho deste palco”. Ou então, “parece que foi a deixa!”. Em

Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli pára, pede ajuda para o público algumas vezes, ou

pergunta para alguns se não querem representar alguma cena em seu lugar.

Mais ou menos como em Brecht, este teatro de narrativa épica, constrói de

maneira diversa, uma série de signos encarregados de garantir ao espectador que ele está no

teatro e, não são estes momentos citados que garantem isto, mas a própria construção da

linguagem deste tipo de teatro promove este distanciamento da realidade, pois a teatralização

que possui a estória épica narrada através do grotesco, da hipérbole e da caricatura, aproxima-

se do circo, dos histriões e da commedia dell’arte, os quais praticavam todos os meios de

teatralização.

79 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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[...] o “teatro no teatro” diz não o real, mas o verdadeiro, mudando o signo da ilusão

e denunciando-a em todo o contexto cênico que a envolve. [...] Decorre daí uma

situação receptiva complexa, que obriga o espectador a tomar consciência do duplo

estatuto das mensagens que recebe e, portanto, a remeter à denegação, uma vez

isolada a zona onde se dá a reviravolta operada pela teatralidade. (UBERSFELD,

2005: 25)

A visão de fora, do público, no caso de Il Primo Miracolo, e da direção e do

público em A descoberta das Américas, é elemento fundamental para a construção da

narrativa. Todas as ações e textos são medidos pela eficácia de sua comunicação direta com o

público. Por serem dois espetáculos que dependem diretamente desta comunicação, não

sobrevivem sem uma criação conjunta da narrativa, diferentemente de espetáculos que

sugerem uma quarta-parede, nos quais a estrutura não se modifica com ou sem a relação

direta com os assistentes, mesmo que a importância da presença do espectador esteja em todas

as manifestações teatrais.

Um ponto a ser destacado, é que não apenas aquele que fala atua na produção do

discurso, mas também aquele a quem a fala é dirigida tem papel ativo, ajudando a construir a

a significação do discurso. O contraponto de idéias não é apenas objetificado, mas

corporificado através de vozes que representam pontos de vista, visões de mundo de

diferentes sujeitos.

Neste teatro que tem a narração e a oralidade imediata como ponto principal,

Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, resume como se dá a

comunicação entre ator-diretor-público:

A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da

cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os

personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o

pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-

pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à

cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela

contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às

marcas) decai diante da urgência da performance.80

Apesar destes espetáculos possuírem ações, por vezes, partiturizadas, não no

sentido de estarem presas em marcas, mas por garantir através de linhas de ações mais fixadas

80 Texto enviado a autora por Alessandra Vannucci, vide anexo.

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e amarradas, um ritmo mais encadeado da narrativa, promovem mudanças significativas

através deste pingue-pongue imediato estabelecido entre ator e público e estão abertos a

mudanças e a acontecimentos inesperados previstos neste contato.

Entre os espetáculos analisados, existe uma diferença importante que é a presença

ou não de um diretor. Em Il Primo Miracolo, Roberto Birindelli trabalha com uma auto-

direção. Como já dito, estes espetáculos dependem de atores que criam o seu próprio material

gestual-vocal, isto é, seu próprio texto de cena. Neste caso, a auto-direção encontra um

caminho propício, pois o ator já necessita desde o início de um senso de auto-direção que lhe

proporcione distinguir as ações que melhor se encaixam na dramaturgia escolhida. São

autores-atores-contadores de histórias que como Dario Fo, constróem o espetáculo juntamente

com o público que assume o papel de direcionador do ritmo, dos cortes daquilo que não

funciona e do caminho para as descobertas. Este tipo de teatro não necessita

fundamentalmente de um diretor, mas pode abarcá-lo de uma maneira, que não a mesma do

teatro tradicional, no qual as definições das ações e gestualidade, geralmente partem do autor

e do diretor da obra.

Já quando existe a figura do diretor, neste teatro corpóreo, no qual o ator está no

centro que movimenta a criação, ele porta-se de uma maneira diversa da tradicional, pois cabe

aos atores detalhar e especificar o seu modo pessoal-coletivo de elaboração vocal-gestual,

através da experimentação e da repetição. A partir disto, o diretor passa a observar com rigor o

que funciona ou não, apontar e sugerir caminhos para que o ator possa trilhar uma direção mais

segura, auxiliar no desenvolvimento de ações, sugerir cortes, assim como em A descoberta das

Américas.

O trabalho da Alessandra [Vannucci, diretora de A descoberta das Américas]

comigo foi fundamental, pois o trabalho dela não foi impor coisas, mas de identificar

e sugerir mudanças. Ela não quis ter o espaço de criação da cena, mas de me manter

no estímulo, pois várias vezes eu quis desistir. Ela me deu o chão. [...] Ela sabe que

o espetáculo é muito autoral no meu caso, e ela precisa me convencer das mudanças.

[...] O espetáculo exige muita concentração e eu colocava a atenção em um foco que

eu queria desenvolver ou melhorar, e prestava atenção mais naquelas passagens. Se

eu tinha um olhar de fora era melhor para me ajudar. Principalmente quando a

Alessandra assistia as apresentações, nós íamos para a minha casa e pegávamos um

pedaço e aprofundávamos as coisas que tinham funcionado ou tirávamos outras

coisas que tinham dado uma engessada, que não funcionava.81

81 Julio Adrião em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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O diretor, neste caso, tem a função de organizador do material criativo do ator, e

como possui uma visão mais ampla, que é sempre a visão distanciada, sugere caminhos para a

criação. Conduz o ator por caminhos antes não trilhados, por isso necessita de uma relação

cuja sustentabilidade é a confiança.

Mas a história não foi escrita por Dario Fo? Não, não, não: ela foi contada por Dario

em gromelô (uma língua híbrida, inventada pelos cômicos da Arte no século XVI)

num aperto memorável (os ‘festejos’ em Sevilha do quinto centenário da descoberta

da América). Mais tarde foi transcrita e traduzida para o italiano. Depois foi contada

por Julio em português, só para mim, e finalmente foi escrita. Ora, então: o que tem

a ver com direção neste espetáculo? Tem que eu fiquei observando, escutando e

presenciando como um espectador muito exigente. Quebrando as muletas do ator,

impedindo-lhe de cristalizar o fluxo da narração em marcas. Nem precisou comentar

muito: eu estava lá de espelho. E o teatro é isso: um espelho que determina a

imaginação perceptiva do ator.82

Os atores deste tipo de teatro necessitam de um trabalho gestual e vocal

diferenciado, pois como escreve Alessandra Vannucci, dependem apenas de seu corpo para

narrar a estória pretendida. Os atores Julio Adrião e Roberto Birindelli possuem em comum,

um trabalho singular sobre as ações e gestualidade, assim como um trabalho de ação vocal

altamente pormenorizado. Ambos são filhos do teatro corpóreo do século XX, que define e se

redefine continuamente no campo dos treinamentos e procedimentos metodológicos do

trabalho do ator, da mesma forma que os novos conhecimentos técnicos definem sua

“metafísica” em termos artaudianos. Esse campo aberto do teatro corpóreo na atualidade, que

tem sua estética a partir e como conseqüência de novas técnicas, deve ao desenvolvimento do

conhecimento técnico do ator no século XX, sua afirmação como linguagem. Etiénne

Decroux, Jacques Lecoq, Jacques Copeau, Giorgio Strehler, Grotowski, Barba, Ives Lebreton,

David Glass, Desmond Jones, Peter Brook, Philipe Gaulier são teórico-práticos que deram e

continuam dando sustentabilidade e estrutura a novas pesquisas relacionadas à comunicação

gestualidade- palavra.

Julio Adrião e Roberto Birindelli participaram do projeto Città Invisibile com o

grupo Potlach, que se destaca como um dos principais grupos de teatro experimental na

Europa, com seu trabalho interdisciplinar. Roberto Birindelli e Julio Adrião tem como base

82 Alessandra Vannucci, em texto enviado a autora, vide anexo.

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ensinamentos de Lecoq, Thomas Leabhart, Eugenio Barba, Grotowski, Decroux, dentre

outros.

Sobre seus processos de treinamento, Adrião e Birindelli comentam:

Julio Adrião – Eu desenvolvi um processo de treinamento físico durante dez anos até

eu voltar para o Brasil, que englobava trabalho vocal, aeróbico, bastão, bolas,

trabalhos que criaram uma rotina de treinamento e que me deram uma base e

modificaram meu corpo. Depois de 1994, eu não treinei mais. Para este trabalho que

se revela muito com uma potência física, eu tive que voltar a trabalhar, [...] e nestas

três horas que antecedem ao espetáculo, eu faço aquecimento de forma global. Tudo

o que eu faço é técnica adquirida ao longo do tempo e tudo que eu teorizo vem da

prática e da experimentação. Eu não faço nenhum trabalho vocal e tudo o que eu sei

é da memória física, do que eu trabalho de vez em quando e permanece. Eu pratico

no espetáculo, pois eu já estou a três anos com ele. [...] O que eu levo é a disciplina

sempre. Eu sou que nem aluno que não estuda, mas entende a aula e faz o dever de

casa.83

Roberto Birindelli – [...] Agora eu dirijo um treinamento aqui [em Porto Alegre] e

quando eu posso, eu faço. Mas eu continuo dirigindo e dando muitas aulas, muitas

oficinas, pesquisando todos estes impulsos e estou sempre em ação. Sempre que eu

ensaio, eu reservo um tempo para trabalhar com o improviso. É livre, para que eu

possa buscar os estados que eu não consigo entender. Que é aonde eu digo: ‘o ator

descobriu a América’. O Eugenio [Barba] diz que quando um ator consegue fazer a

parada de mão, ele descobriu a América. Para mim não. Quando um ator age

primeiro antes de pensar, quando ele está alerta para estabelecer relações com aquilo

que ele fez, aí o ator descobriu a América. Este é o estado que eu busco antes de

começar os ensaios do ‘Miracolo’. Antes eu tinha que levar duas horas me cansando

e hoje em dez minutos eu chego neste estado de trabalho.84

A mímica e os procedimentos do teatro corpóreo dão sustentação a estrutura do

corpo deste ator que, como Julio Adrião e Roberto Birindelli,

Munido de seu arsenal de truques, dominando uma linguagem atorial que é quanto

mais autêntica, mais ‘nossa’ ao passo que é mais própria e peculiar ao indivíduo-

narrador, [...] enfrenta o público em roda, reintegrando a habilidade satírica

desenvolvida [...] - na grande tradição jogralesca da arte dos histriões. A dimensão

83 Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, intérprete de A descoberta das Américas, vide apêndice. 84 Entrevista concedida a autora por Roberto Birindelli, intérprete de Il Primo Miracolo, vide apêndice.

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pública desta arte, cuja relação frontal e improvisada com a platéia remete mais para

a instalação do que para a representação, exige a presença integral do ator-narrador

que, a partir de seu núcleo experiencial, deve produzir de imediato sua performance.

A narração, enquanto forma teatral radicalmente oral, apoiando-se na concreta

presença do ator diante de seu público, por outro lado estimula uma assistência

interativa, pois ao espectador cabe a tarefa de ‘executar’ a obra que está sendo

performada, de interpretar o evento comunicativo como sujeito competente na

decodificação das máscaras linguísticas e na montagem dos signos. A ‘literalidade’,

como critério de fidelidade textual ao autor, decai diante da ‘urgência’, como

objetivo de cativar e segurar o público junto ao narrador na viagem ao longo de

todos os possíveis desenvolvimentos da história.85

A construção de todos os pilares deste tipo de representação e do teatro de

Roberto Birindelli e Julio Adrião se sustentam através de elos paradoxais como comicidade-

tragicidade, poesia-ironia, texto narrado - texto “agido”, ação executada - ação aludida e

inúmeros outros. Essas combinações dialetais, estas comunicações dúbias são o que fazem de

A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo exercícios desafiadores para qualquer ator,

tenha ele qualquer origem ou linguagem.

É um trigrama: texto falado, sonoridades e partitura física. Esses três elementos

compõe a narrativa e eles estão juntos o tempo todo e hora um fala mais alto que o

outro. Tem uma coisa curiosa também, que é perigoso às vezes, mas que pouca

gente tem consciência disso, que é: é uma história trágica contada de forma irônica e

com uma pegada cômica.86

Julio Adrião e Roberto Birindelli fazem uma descoberta individual de seus

próprios limites, trilhando um caminho distinto e profundo na comunicação corpo-

gestualidade-palavra, seguindo caminhos por vezes diversos entre si e em relação as obras -

matrizes concebidas por Dario Fo.

Eu só vi o espetáculo feito pelo Fo este ano em vídeo, pois eu não queria ver mesmo.

É bonzão, mas é outra coisa. Ele não valoriza coisas que eu valorizo e ele valoriza

coisas que eu não valorizo. É a mesma estória, mas que passa por meandros e

desdobramentos diferentes.87

85 Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas, em texto enviado a autora, vide anexo. 86 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 87 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Ambos sabem que os trabalhos possuem uma qualidade conquistada através da

repetição e da relação presencial entre ator e público e que, a cada apresentação e a cada

época, os espetáculos precisarão se renovar, se reescrever, pois atenderão a exigências e a

públicos diferentes.

O excesso de gagues em determinados momentos, o que poderia ser talvez um

ponto negativo, e que deve ser pensado a cada apresentação, ambos também tem consciência,

e empreendem um auto-vigiar-se para não caírem com freqüência no erro de se encantar com

o riso fácil de um público ávido por rir.

Julio Adrião - [...] Tinham os momentos que eu gostava muito, mas tive que cortar.

Tinha uma piada boa, por exemplo, onde tinha um índio sem as orelhas e sem o

nariz e aí eu pergunto o por quê. Eles dizem que ele não queria revelar onde estava o

ouro, fingia que não ouvia e eu digo: ‘as orelhas tudo bem, mas por que cortar o

nariz?’ E eles dizem: ‘Ah, mas aí foi culpa dele que virou a cara bem na hora!’

[risos] Mas isto não tinha importância. Tem coisas que a Alessandra [Vannucci,

diretora] ainda diz que tem que sair, mas tem outras coisas que eu incluí e que eu

acho que tem que ficar, e aos poucos eu vou me livrando das bengalas. Ás vezes, o

público passa a não responder mais como era. Não ri ou não faz o silêncio que tem

que fazer. Aí você tem que fazer o caminho de volta e ver o por quê. Às vezes, é um

detalhe de uma pausa, um ritmo, uma quebra entre um texto e outro.88

Sobre o excesso de gagues em alguns momentos, Roberto Birindelli comenta:

Mas há um cuidado para não cair na gag fácil americana, pois o Dario tem situações

cômicas e é preciso manter a pureza da situação cômica que o Dario cria, senão é um

riso fácil. [...] Você ri e dois segundos depois não lembra mais de nada. O próprio

“Miracolo” já teve passagens assim e eu tive que dar uma segurada.89

A relação corpo-gestualidade-palavra em A descoberta das Américas e Il Primo

Miracolo percorre exatamente esta ordem e não o contrário, como em outros tipos de teatro.

O frescor dos trabalhos analisados, assim como da escritura e da obra de Dario Fo,

está na comunicação direta e sem rodeios com o público, uma comunicação popular e de

massa, na qual se encontra a característica fundamental, a maneira não só de como se trabalha

o texto, a escritura que nasce do corpo como já dito, mas como diz Roberto Birindelli, a

maneira como esta escritura está inserida no trabalho.

88 Julio Adrião, ator de A descoberta das Américas, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 89 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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Eu acho que a diferença não está em partir de um texto ou não, mas na maneira

como você insere o texto no seu trabalho. O que eu vejo sim, é que na maior parte

das vezes as pessoas se baseiam no conteúdo das palavras e acontece uma não

organicidade. [...] O Paulo José diz: ‘Antes de exprimir, é preciso imprimir’. Tem

que haver uma impressão. E esta impressão é o movimento corpóreo. Uma

professora da Marlene, minha primeira professora de técnica vocal, dizia: ‘o ser

humano só consegue por para fora uma palavra que não consegue mais reter dentro’.

Isso é uma imagem muito boa para a ação vocal. O que significa? Para eu falar

alguma coisa, há um impulso corpóreo que me faz colocar essa palavra para fora.

[...] Se você me perguntar: ‘que voz você vai fazer?’ É a mesma coisa que perguntar:

‘que tríceps você vai fazer?’ Eu sei qual é a minha tonicidade básica e a voz que sair

dela, é certo que está correta.90

Esta popularidade da comunicação sem rodeios da oralidade de Fo, é outro

elemento que pode se tornar um ponto-chave para o desenvolvimento de novos caminhos para

se pensar a relação gestualidade-dramaturgia.

Autora - Que elementos que você encontra no trabalho dele [de Fo] que podem ser

incorporados à nossa realidade? Ao trabalho dos atores brasileiros. O quê de mais

importante?

Roberto – Primeiro, a linguagem do povo. Até hoje se fala no palco de uma maneira

diferente com que se fala na vida. Eu não entendo o por quê. A primeira e grande

lição é esta. [...] Então, toda a manifestação artística é para um público de um

determinado momento. Shakespeare tinha um cuidado, pois trabalhava com classes

sociais diferentes e ele sabia falar com estas classes. [...] E com quem dialogamos

quando falamos de Ibsen na maneira que o Ibsen falava? Isso não é purismo. Isso é

parnasianismo, é outra coisa. [..] O Fo entende o que é popular e o que é vivo e essa

é a maior herança. Para mim essa é a grande dádiva. Para nós, popular virou

‘boquinha da garrafa’. [...] Dario Fo é popular e com altíssima qualidade. O que se

fazia há uns cinco séculos atrás. O importante não é só o que eu digo, mas o que tu

escutas.91

E o que o público escuta, nas obras de Dario Fo e nos espetáculos analisados,

estão justamente em consonância com sua linguagem, com suas aspirações, com seu

90 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice. 91 Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, em entrevista concedida a autora, vide apêndice.

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entendimento. Além de todos os procedimentos teatrais utilizados nestes trabalhos para a

construção de uma relação diferenciada e concreta entre corpo-gestualidade-palavra, este é

um elemento muito importante que podemos pinçar do teatro de Dario Fo e das montagens de

A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo para uma herança de continuidade no teatro

brasileiro.

Fig. 27 A descoberta das Américas Fig. 28 Il Primo Miracolo

Vídeo produzido por Filmes do Serro Vídeo produzido por SCAN Vídeo Produções

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No século XX, as transformações de padrões estéticos e de todo o pensamento que

organiza o processo criativo, tornaram o estudo de tudo o que permeia as relações entre

corpo/movimento/emoções e linguagem, uma opção praticamente inevitável para discutir a

arte contemporânea, principalmente o teatro.

Inúmeras formas para explicar as relações entre corpo, movimento, linguagem,

teatro, arte e cultura, já foram pensadas e discutidas em diversas épocas e por inúmeros

estudiosos, assim como foram formuladas em domínios distintos como o da antropologia, da

semiótica, da sociologia e dos estudos da comunicação, com suas metodologias e referenciais

específicos. Pensar no corpo como discurso, significa desconstruí-lo para pluralizá-lo e servir-

se deste mesmo corpo como pluralidade de sentidos e transgressão da própria linguagem.

Esta pesquisa debruçou-se justamente sobre a relação corpo-gestualidade-palavra,

partindo do ponto de vista do atuante, pois no estudo da relação verbal-não verbal, o corpo é o

instrumento básico para a análise e reflexão. É a matriz geradora dos gestos, das

performances, da ação vocal.

Após as teorias textocêntricas, nas quais o ator ficou relegado à posição de

transmissor literal do texto, foi preciso fazer um caminho de volta para reencontrar a

teatralidade da ação presente na gestualidade do histrião e dos giullari medievais, dos mimos

e commicci dell’arte com suas situações, improviso e gestualidade exacerbada.

Influenciado por Stanislavski, Grotowski rompeu com o chamado

“textocentrismo” (valorização excessiva do texto literário) para instituir um “teatro corpóreo”

na cena teatral do século XX. Ele estabeleceu as bases para o trabalho corporal do ator no

teatro contemporâneo, assim como Artaud, Meyerhold, Jacques Copeau e outros.

Se a materialidade do ator no teatro simbolista degradou a sublimação da palavra

e ameaçou o verbo poético, na modernidade procurou desmembrá-lo, desfigurá-lo, expremê-

lo, pois a separação redutora que tem marcado décadas tentando opor de forma excludente

texto escrito e linguagens cênicas, tornou-se impossível no teatro pós-moderno. A pós-

modernidade trouxe uma revisão da cultura e da economia, da moral e da ideologia, com um

ritmo e uma atitude diferente, mais imediata, mais física em seu modo de produção e

comunicação com o público.

Seja utilizando textos já escritos, criando textos coletivamente ou retomando a

figura ancestral do autor-ator, o teatro contemporâneo exige uma nova concepção de

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dramaturgia cuja estrutura reflita os elementos espetaculares hoje privilegiados. O processo de

desvalorização da palavra no teatro após a década de sessenta, conseqüência da

desvalorização da figura do dramaturgo como primordial ser criador, reflete uma mudança

radical na estrutra de poder do teatro como instituição artística.

Estamos retornando à época dos mimos e acrobatas? A visão do teatro como

espaço no qual se coloca uma alta “gestualização da palavra” parece-nos legítima e reduntante

ao mesmo tempo: legítima pois são vastas as possibilidades expressivas do teatro, e sem a

ditadura do texto, torna-se mais democrática e talvez criativa. E redundante, porque os

grandes textos são feitos de pura matéria teatral, oticamente revelável, sensível como

emanação de luz, som, imagens, podendo projetar gestos e palavras em perfeita relação

simbiótica. Mas o teatro não só é feito disto, mas de uma dimensão intelectual por vezes

esquecida, é antes de tudo a expressão de um ou vários artistas-criadores, definida através de

palavras (diálogos, monólogos, apartes, didascálias) que se somam numa construção textual

cujo fim é a representação de ações socialmente significativas.

O desejo vanguardista de por a palavra em cena fazendo-a visível em sua

realidade imediata, e o desejo de que cada linguagem não se reduza a ilustração de outra, sim

que se emancipe em um jogo de contrastes, desestabiliza esta unidade de sentido que havia

sido garantida até então pela palavra dramática, fazendo com que tenhamos esperança no

arejamento que o teatro pode vir a alcançar.

Nesta distância, fica visível a diferença entre a obra, como resultado acabado,

fechado sobre um ou vários significados que lhe assinalam as instituições culturais e correntes

teóricas de cada momento, e o texto como escritura em funcionamento, tanto em seu processo

de criação como de recepção, escapando a sistemas fechados por meio de seu excesso de

materialidade, de um excesso de exterioridade teatralizante, mantendo o texto com vida em

um processo constante de reescritura.

O fato de o ator escrever o próprio texto, mais freqüente ao final do século XX e

início do século XXI, portanto mais do que recente, é ao mesmo tempo um procedimento

muito antigo, que não é mais do que um resgate, ao mesmo tempo, de costumes de atores

como Téspis, como os antigos mimos, os giullari medievais, os commici del’arte, os quais

transformavam a palavra em acontecimento coletivo, oral e visual e toda a sua dimensão física

e humana como realidades.

A estética dos espetáculos analisados, assim como a obra de Dario Fo, se

configuram como um teatro de histrião, de contadores de histórias, que se constrói a partir da

urgência da narração épica e do aqui e agora da “presentação”; e, por outro lado, apesar de

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beber nas correntes medievais e renascentistas, é um teatro pós-moderno, pois Fo é um

pensador, um crítico, que ao mesmo tempo que busca a tradição, transforma-a, renega-a,

critica-a e faz com que esta mesma tradição reflita os pensamentos de sua própria época.

Uma das contradições esteticamente mais produtivas e mais relevantes do teatro

do século XX e XXI é a que se produz entre a escritura e a oralidade, entre texto dramático e

texto cênico, entre a palavra escrita e o acontecimento verbal e gestual; e o teatro de Fo, é um

meio muito fértil para se pensar esta relação, pois não sobrevive sem o gesto, mas

principalmente sem a palavra, e vice-versa.

Fo utiliza-se de mecanismos da tradição oral, seguidos da dramaturgia concreta do

teatro corpóreo e mescla bonecos, mímica, máscara, músicas e ritmos frenéticos, como todas

as formas populares de expressão artística. Através de sua escritura pensa a oralidade que

contém o gesto e a gestualidade que contém as palavras. E no estilo épico de interpretar,

engloba o fazer e o mostrar esse mesmo fazer, através de procedimentos antigos como a

importância das situações, o ator como matéria central de sua arte (que só depende dele para

construir histórias grandiosas e cheias de imaginação), um ator de praça, de feira, de qualquer

lugar, no qual não se distingue um ator de um bêbado, ou de um rei. Este ator, por meio de

seus recursos corporais e vocais, narra, e simultaneamente retoma a forma da ação da

personagem, em determinada situação escolhida, para que o público melhor compreenda o

que está sendo contado. Este jogo permanente de entrar e sair do papel, exige que o corpo do

comediante envolva-se num certo fazer, enquanto que seu rosto, por exemplo, assume a

posição de comentador daquilo que está sendo feito.

Como giullare, Fo deu corpo e materialidade a uma tradição altamente popular

que nunca se colocou por escrito, trabalhando com uma dramaturgia que está longe da

condição literária e literal das palavras. A escritura de Fo traz uma relação estreita com a

materialidade do corpo, reafirmando o conceito de teatralidade, e obriga o público a rir

constrangido e embaraçado de acontecimentos trágicos, revistos através do grotesco e da

sátira. O gesto em Fo, vem antes da palavra, pois é ele quem a corporifica e desenha e depois

a diz, valorizando o gesto, a palavra e a ação vocal.

Em A descoberta das Américas e Il Primo Miracolo, Adrião e Birindelli, não só

gestualizam, por vezes, o inexprimível habitual das palavras, eles traduzem, complementam,

opõe, valorizam, silenciam, espacializam as palavras. As palavras parecem nascer dos gestos,

e não o contrário. As relações entre gestos – palavras se tecem em vários níveis de sentido, de

consciência e de ação, através de procedimentos tão simples quanto antigos, como a situação,

o prólogo, o grammelot, o discurso direto para o público, a mímica, o espaço vazio,

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utilizando-se de procedimentos que ao mesmo tempo simples como a descrição, a repetição,

as quebras, a criação de sentido e a oposição, e que apesar de absolutamente compreensíveis e

populares, provocam complicadas e engenhosas relações de sentido, necessitando de atores

inteligentes, criadores, que no exercício do contato com o público se revelam, se escondem,

fazem imaginar, se entregam e se renovam.

Nas montagens analisadas, toda fala é um ato de fala. Toda fala se prolonga em

gestos virtuais e toda fala comporta múltiplos gestos. Neste contexto, a gestualidade

ilustrativa é procedimento fundamental para o estabelecimento da cena rapsódica. O gesto

ganha uma estatura idêntica ao texto e revela o trabalho já realizado.

O ator é incumbido de corporizar (dar corpo e voz) e fisicalizar em atitudes,

gestos, posturas e ações, de representar (em linguagem teatral) a interface entre o épico e o

dramático. Neste ato em que se apodera da voz autoral, tanto no sentido do autor do texto

quanto no do autor do espetáculo, o ator tem seu temperamento e aptidões revelado – pelo

simples fato da não metamorfose completa do papel que representa. Neste caso, o ator afirma

a disponibilização de um nível de consciência perceptiva, da orquestração do aparato

expressivo, da organização sequencial dos gestos criados. Tudo isto evidencia a sinceridade

da atuação e o compromisso do narrador, não com a verdade histórica, mas com a verdade de

sua disponibilidade em cena.

Estes trabalhos atestam a vitalidade do teatro destes atores, alicerçados pela obra

de Dario Fo, que procura caminhos novos e antigos ao mesmo tempo, em um teatro que tem

não somente algo a dizer, mas algo a que não dizer. Com todos os meios explorados, com

todas as armas-truques-procedimentos da comédia e da narração mostradas ao público sem

segredos e sem rodeios, armas forjadas pelos bons artesãos, produzem uma arte sem saída, um

meio e não um fim. Sem saída, pois seus corpos não poderão mais negar os feitos e exigirão

sempre algo no mesmo nível, lembrando sempre que o teatro fundamentalmente é arte de ator.

Se o monólogo moderno caiu na sua própria armadilha ao se encaminhar para a

elitização, a limpeza do diálogo e levou a uma subestimação da capacidade expressiva das

“pessoas comuns”, ao contrário, Julio Adrião e Roberto Birindelli, seja através da pausa, dos

gestos, da ponte com a realidade brasileira, com a imagem pintada da gente brasileira, trazem

até nós, através da escritura de Fo, o ponto de vista daquele que está lá em baixo. Enquanto

Jesus e sua família são despresados em outras terras, partem sem desejo de partir, e, vivem

assim como os sertanejos retirantes nordestinos, em terras que não lhe pertencem, Johan tem

a terra que não lhe pertence nas mãos. Johan, “deus do sol e da lua”, triunfou na colônia,

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procriou, deu filhos a terra estrangeira, e morreu saudoso, mas feliz com as lembranças da

terra que deixou.

Nossos narradores são zanni, clowns, bufões, pobres, maltrapilhos, nômades, e,

sejam Johan ou Jesus, sobrevivem fazendo “milagres” como qualquer cidadão miserável de

todas as épocas, isto é, como um clown ou como um Zanni da commedia dell’arte.

Sobrevivem somente para contar a estória a algumas pessoas, em qualquer lugar, a qualquer

hora, que verdade ou mentira, dependem somente de matéria humana como o corpo do

narrador e do ouvinte; tão humana como os arrotos, as blasfêmias, os ruídos, as onomatopéias,

as caricaturas e a língua “menor” destes vagabundos que substitui o texto formal pela partitura

física e sonora.

Pensando na ação e na gestualidade como praxis da escritura política de Fo e do

trabalho de Julio Adrião e Roberto Birindelli, não pode-se pensar em neutralidade ou

inocência, pois o discurso de Fo é altamente popularizado e regionalizado, fazendo com que

os próprios intérpretes se perguntem de que forma o seu discurso atua sobre o interlocutor

(fazendo-o agir, provocando uma resposta, etc.) ou repercute no espaço social em que é

produzido, e faz pensar como pode ser reproduzido em outros contextos, países, sofrendo

distorções, alimentando reflexões.

Assim, fica a pergunta que Dario Fo faz em seu Manual, não só para o teatro, mas

para a vida quotidiana: “E nós, que vivemos em uma sociedade moderna e tecnológica, o que

nós podemos resgatar como gesto?” (FO, 2004: 68) Para Fo, o ator para reencontrar suas

raízes culturais, deve retornar as origens. O achatamento e o nivelamento provocados pela

cultura de massa, dificultam esse processo que parece ser hoje um dos mais difíceis para o

ator brasileiro; o olhar para os nossos homens comuns, os nossos sertanejos, os nossos

mendigos, os nossos bêbados, as nossas fofoqueiras, e todo e qualquer personagem, como diz

Fo, que estabeleça provocação e dialética.

Dario escuta através dessa relação gestualidade-palavra a sua própria época,

procura zonas de turbulência, zonas de caos, nas quais gestos sutis, por vezes inclassificáveis,

tomam origem. Penetra nestas zonas de risco e, o poder, qualquer poder, teme mais do que

tudo, o riso, a gargalhada, pois denotam senso crítico, fantasia, inteligência.

Este teatro habilmente dominado pelo intérprete, performance desenhada com

precisão cirúrgica, narração que transporta, que surprende, que alude, que faz imaginar, apesar

de aparentemente inocente, não consegue ser menos que perigosa, é realmente uma arma. Pois

este teatro de resistência, parece, no meio dos inextinguíveis mecanismos de poder, de

discriminação e de exclusão de nossa sociedade, sempre vivo e provocador.

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Nesta pesquisa, dentro do contexto teatral, foi possível estabelecer uma relação

entre as funções exercidas pelo gesto e outras exercidas pela palavra, e foi possível

estabelecer não só o grau de complementariedade entre as duas linguagens como também

especificar melhor a significação própria do gesto nas duas montagens, pois quanto mais se

configurar as relações entre corpo enquanto plataforma semântica cheia de significados, e

linguagem enquanto revelação da dimensão simbólica, e quanto mais se falar da relação entre

as diversas dramaturgias na cena, ter-se-á caminhado muito no conhecimento da estrutura não

só do espetáculo como do drama escrito, pois a linguagem fonética feita corpo evidencia-se

como pura materialidade escrita.

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VÍDEOS CONSULTADOS

A descoberta das Américas. Texto de Dario Fo, Tradução de Alessandra Vannucci e Julio

Adrião. Direção de Alessandra Vannucci e interpretação de Julio Adrião do Núcelo de

Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos, Casa Mercado 45, Rio de Janeiro,

produzido por Filmes do Serro – org. Antônio Andrade, 2005.

A descoberta das Américas. Texto de Dario Fo, Tradução de Alessandra Vannucci e Julio

Adrião. Direção de Alessandra Vannucci e interpretação de Julio Adrião do Nucleo de

Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos, Teatro Leblon, Rio de Janeiro, 2007.

Il Primo Miracolo . Tradução, direção e interpretação de Roberto Birindelli da Cia do Bebê,

Porto Alegre, produzido por SCAN Video Produções, 2005.

Mistero buffo I e II. Texto e direção de Dario Fo, com Dario Fo e Franca Rame. Turim:

Einaudi, 1999.

Lu Santo Jullare Françesco. Texto, direção e interpretação de Dario Fo. Turim: Einaudi,

1999.

Il sesso dei giullare. Texto e direção de Dario Fo. Turim: Einaudi, 1999.

PESQUISA VIDEOGRÁFICA WEB - VÍDEOS DISPONÍVEIS EM:

http://www.youtube.com

L’anomalo Bicefalo. Texto, direção e atuação de Dario Fo e Franca Rame, 2003, 2:19’37”

La Farina del diavolo. Texto, direção e atuação de Dario Fo e Franca Rame, 1:11’48”

Il Papa e la strega. Texto e direção de Dario Fo, 56”

Satira Berlusconi, Dario Fo, 13’24”

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Settimo ruba un po´meno. Texto e direção de Dario Fo, atuação de Dario Fo e Franca Rame,

1:37’06”

Ubú, la vera storia di Berlusconi, Dario Fo, 40’23”

ÁUDIO

Dario Fo (sem referências): Grammelot della famme, Grammelot dello Zanni, Grammelot del

vivere, Confezionati, Grammelot sulla morte, Grammelot del potere, Commento a “Rosa

fresca aulentissima” di Ciullo d’Alcamo.

SITES RELACIONADOS A VIDA E OBRA DE DARIO FO

http://www.archivio.francarame.it

http://www.dariofo.it

http://www.francarame.it

http://www.ilprimomiracolo.com.br

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APÊNDICE

As entrevistas contidas neste trabalho constituem, juntamente com os vídeos dos espetáculos,

a fonte primária da pesquisa. Elas foram concedidas pessoalmente a autora por Julio Adrião,

ator de A descoberta das Américas, do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos

Empreendimentos - Rio de Janeiro, em Curitiba, por ocasião de uma temporada realizada no

Teatro da Caixa, em junho de 2007, e por Roberto Birindelli, ator de Il Primo Miracolo, da

Cia do Bebê - Porto Alegre, na Casa de Cultura Mário Quintana em Porto Alegre, em maio de

2007.

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APÊNDICE I Entrevista concedida a autora por Roberto Birindell i, ator e diretor do espetáculo Il Primo Miracolo , da Cia do Bebê , de Porto Alegre, em maio de 2007. ROBERTO BIRINDELLI, ator, diretor, participa desde 1990 de projetos, cursos, oficinas e encontros ligados à pesquisa da construção da presença cênica, dentre eles: Le Théâtre de la Nature Humaine (Pedagogie d´un enseignement) - Jacques Lecoq, PARIS, 1991; Open Week - Odin teatret – 1991, Dinamarca; Usina do trabalho do ator - Pesquisa de 30 horas semanais envolvendo estágios supervisionados por Carlos Simione e Luis Otávio Burnier – Lume, 1992 - 95 em P. Alegre; trabalho de graduação no Departamento de Arte Dramática da UFRGS com Orientação de Maria Helena Lopes, resultando no espetáculo O Primeiro Milagre do Menino Jesus apresentado no Brasil e exterior; cursos e projetos com Potlach (Itália - Fara Sabina), Curso com Daniele Finzi Pasca (Sunil -Suíça) em São Paulo; Curso O Corpo Suspenso - Victor Varela (Cuba) em P. Alegre; participação na 8ª Sessão Aberta da ISTA -Tradições e Fundadores de Tradições em Londrina; Poética e Gramática do Mimo Corpóreo com Thomas Leabhart (California-U.S.A.) em P. Alegre, Retiro para o estudo do Clown – Lume, Unicamp, em 1996; Encontro da ISTA The performer´s bios e o simpósio The whispering winds on theatre and dance; Encontro técnico - prático com a presença de Dario Fo e Franca Rame, Thomas Leabhart, Odin Teatret, Jerzy Grotowski, entre outros, em 1996 na Dinamarca; participa em Citta Invisibile - projeto internacional coordenado pelo Teatro Potlach (Itália) realizado em Liverpool e Birkenhead, participa do espetáculo Invisible cities, em Morpeth Dock – Merseyside, Estocolmo, e Roma; funda em 1997 o Centro de artes “El Patio de Arte & Cultura” onde ministra a oficina-treinamento permanente Trabalho preparatório para portar máscaras, em P. Alegre; participa do curso Teatro da cumplicidade - Clown e bufão com Philippe Gaulier, em P. Alegre, participa do X Encontro de Teatro de Grupo, com Eugenio Barba, onde ministra a oficina Artes y oficios del director, em 1999, Argentina. Melize – Roberto, eu queria que você falasse sobre a escolha do texto: Como foi a escolha? Por que montar Dario Fo hoje no Brasil? Roberto - Começou na Interpretação 6 e no meu trabalho de Conclusão do curso de Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre. Então, na verdade, o texto não foi o início. Precisava ter um trabalho individual. Eu já tinha lido alguns textos do Dario Fo e já tinha utilizado uns trechos de “Morte Acidental de um Anarquista”, de “A Tigresa” e de outros textos dele para exercícios de aula. Este texto estava em um livrinho que é da coleção Brasiliense e que se chama “Morte Acidental de um Anarquista e outras peças subversivas”, onde tinha “A Tigresa” e o “Il Primo Miracolo”. Quando eu li, eu rolei de rir e disse: “Não, tem que ser um idiota pra montar” e larguei de mão. Ok. Alguns anos depois no trabalho de conclusão, precisava ter um monólogo. Eu busquei para cá, busquei para lá e não tinha. O meu projeto original era fazer um Pulcinella que foi recusado, por que a Maria Helena Lopes, com quem eu queria realmente fazer o trabalho de conclusão, me disse: “Olha, tu tens um semestre e em um semestre tu não montas um Pulcinella”. Hoje eu sei, mas na época eu não sabia. Não sabia o que fazer e ela me sugeriu assim: “tu tens um trabalho codificado, tu tens um material de ator, partituras, por que tu não coloca isto ‘a serviço de um texto?’ ”. Tá, mas o que pode

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ser? Aí eu fui lá buscar de novo e caiu o texto na minha mão mais uma vez. “Então tá aqui o idiota que vai montar o ‘Il Primo Miracolo!’”. Aí eu comecei a ler e o processo foi ler muitas, muitas vezes, até eu entender o que ele falava para mim. O que isso significava. [...]∗ Então, depois de ler muitas vezes, eu guardei o texto na gaveta e fui para a sala com o que sobrou. Eu confio muito na intuição. O trabalho de improviso e o trabalho de exaustão, o trabalho corpóreo, me fez ficar amigo de coisas que eu não entendo com a cabeça. Trabalho muito bem com coisas que eu não consigo dar nomes, que eu não consigo entender, e deixo andar pra ver o que é. Então eu vou com o que tenha sobrado do que eu li, do que eu entendi, e passo a improvisar livre, com o que eu sei: com o samurai, commedia dell’arte, dança dos ventos, um trabalho para recuperar os meus materiais de partituras e daqui a pouco eu vejo que tem alguma conexão, mas falta um eixo central. É quase como uma ilustração não imitativa. Eu tinha o molho, mas eu não sabia ainda se ia ser um bife, faltava o eixo da coisa. Eu tinha os temperos. E aí caiu a ficha. “Il Miracolo” fala de uma sagrada família que sai de Belém. O que isto tem a ver com a gente? É claro! Nós temos um monte de “sagradas famílias”, que são nordestinos que saem do nordeste para buscar emprego em São Paulo! Isso é um ponto de partida! E aí, é claro, me veio direto as imagens do Portinari. Eu peguei toda a série dos retirantes nordestinos: “O ciclo do café”, “O menino morto”, “As lavadeiras” e os “Retirantes”. Olhei muitas vezes toda a série, a linguagem, os homens, as figuras deformadas e comecei a trabalhar sobre isso. Pena que você não está gravando em vídeo [levanta e começa a fazer as partituras], mas no site [http//www.ilprimomiracolo.com.br] você pode ver as figuras. Do quadro “O menino morto”, vieram várias seqüências. Melize - É claro que os quadros do Portinari estão presentes na estética do espetáculo, nas imagens, mas elas são muito dinâmicas e codificadas. Codificações de um gesto presente no quadro em diversos outros, formando o movimento, a partitura. Roberto – [Demonstra] Uma mulher que está com o menino morto, outra mulher que ampara e outra mulher que chora. Juntei uma música da resistência chilena [canta, pois não existe música mecânica no espetáculo]. E aí tem toda a dinâmica da fuga para o Egito e a dinâmica “horrível” dos quadros do Portinari. Isso ajudou assim: o texto [de Dario Fo] já de início te propõe uma luta interna, porque a dinâmica do Portinari é “horrível” e o texto é hilário. Melize- Os quadros do Portinari transpiram melancolia e os textos do Fo transpiram comicidade. Roberto: É isso! Eu te proponho uma charada. Uma que te faz rir e uma que te deixa apreensiva. Então o que é proposto é um trabalho interno, de escolher o tempo todo de que lado tu vais ficar. Inseto ou inseticida. O que é interessante, é que muitas vezes tu te deixas ser inseticida e aí tu te cobras, por exemplo: a história do rei negro, o camelo, o rei velho que escorraça o camelo, e aí tu te pegas rindo de uma coisa que tu não gostarias. Melize- Através da oposição.

∗ Trechos não significativos, como frases incompletas e expressões onomatopéicas.

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Roberto- Sim. O espetáculo ficou assim, mas isto não está presente no texto original. É uma suscessão de armadilhas, que conforme mais ou menos consciente, tu te deixas levar. E aí tem muitas imagens da commedia dell’arte, uma salada de coisas que com o tempo, é claro, foi dando uma organicidade. E aí tem uma diferença com o trabalho do Julio, que eu conheço, mas eu não sei bem claro, que é: onde cada um está no meio do narrador. Talvez pelo próprio texto do Fo, quem conta a história [no caso de “A descoberta das Américas”] é o sobrevivente da visita às Américas, portanto, existe um personagem dialogando com o espectador e no “Il Primo Miracolo” não tem. Existe o performer o tempo todo. É o Roberto que está dialogando contigo e juntos vamos construir uma ficção a partir deste trabalho. E aí existe um jogo duplo, porque sim, a história vai mudando, mas o jogo com o espectador também vai mudando, através de coisas que aparecem no momento. Há uma coisa verdadeira sendo dialogada. E uma ficção que te leva à uma metáfora de outras coisas. É uma diferença que o texto propõe. Não estou dizendo que é melhor, nem pior. Melize – Claro! Voltando um pouquinho, quais os elementos que você vê no trabalho prático do Fo, que permanecem nos textos dele, e por conseqüência, saltam aos olhos no seu trabalho? Claro, existem elementos da commedia dell’Arte, do Teatro de Situação... Roberto – O Teatro de Situação, a imaginação do espectador. O que o Barba [Eugenio] pinça do trabalho do Fo para a Antropologia Teatral é a omissão. O que é? Ele omite algumas coisas, e com um pequeno gesto, ele te conta toda uma situação. O essencial. Melize- O essencial. Roberto- É que as palavras são complicadas. É claro que não vamos confundir com o “Teatro Essencial” da Denise [Stoklos] que é outro caminho. Porque o Fo joga uma humanidade que eu não vejo no trabalho da Denise. É outra questão. A imaginação. O Fo diz que a imaginação é um músculo que gosta de ser exercitado. Então vamos deixar ele exercitar. Em nenhum momento eu te dou a estória completa. Se tu não colocar a tua cabeça pra funcionar, ela não tem sentido. Ele é propositalmente aberto e incompleto pra que a tua subjetividade que é diferente da do outro, termine de costurar. Então isto é lindo, pois tu vê reações muito diferentes na platéia. Se eu digo chicote, tu podes imaginar pelo menos dois caminhos diferentes, conforme o lado do chicote que tu te imaginas. E eu jogo com esta dubiedade. É isto que me interessa. Por que eu jogo com este espaço circular, com a platéia iluminada? Por que é muito interessante que as pessoas se vejam nos momentos diferentes em que elas estão. Melize – Suas reações. Roberto – As reações. Então, é um espaço único, porque não há palco ou platéia, nem um status quo, a ditadura daquele que está lá em cima. Melize- Todos estão no mesmo nível.

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Roberto – Tudo igual. Então tu lidas com o mesmo nível de luminosidade, sem uma roupa, sem uma maquiagem, sem nada de especial, sem trilha sonora, sem nada. Eu tiro qualquer elemento que possa dar uma conotação cênica. São pessoas, e juntas, estas pessoas podem fazer alguma coisa. É isso que eu trouxe da “essencialidade”. Também existe muita coisa do grammelot, dos dialetos. Não dialetos, pois a gente não tem aqui. Melize- Temos os sotaques. Roberto – Claro! Os sotaques. O estrangeiro, os tipos sociais que vem da commedia dell’Arte. A relação do soldado com o paulista engravatado que vai trabalhar, pois estamos falando de nordestinos que vão para São Paulo. Então, os pastores que vão a choupana, que tem um sotaque nordestino e que pensam muito na terra; o mineiro que é desconfiado, que é a figura do São Tomé. É todo um universo que a gente tem e que modifico em cada lugar. Em cada lugar eu tento remontar o perfil da sociedade que eu encontro. É por isso que eu pergunto antes qual é o grupo social segregado e vou montando isto. Melize – Você faz uma pesquisa prévia em cada lugar? Roberto – Eu faço uma pesquisa. Porque eu vou me relacionar com essa sociedade, então o que interessa não é só o que eu digo, é o que o espectador escuta através da realidade dele. Se eu quero dizer laranja e encontro uma realidade amarela, eu tenho que dizer vermelho, pois junto com esse amarelo desta sociedade, vai dar o laranja que eu quero dizer. E é assim em cada lugar que eu vou. Melize – E quanto ao texto? Você modifica as palavras ou somente a intenção ao dizê-las? Roberto – Não. Quase nada. Criei uma ou duas coisinhas. A tradução que tinha no Brasil, naquela edição da Brasiliense, era impossível. Então eu peguei de livros dele [do Dario Fo], de vê-lo ao longo dos anos. Claro, eu estreei com a tradução da Brasiliense, muito ruim [por ser literária]. Alguns anos depois, fui modificando, e hoje é uma tradução minha, uma adaptação minha, um pouco diferente do texto, mas com elementos equivalentes. Melize – Há uma liberdade na maneira de contar e não na modificação do texto em si? Roberto - Não só modifico a maneira de contar, como modifico as personagens! Porque na Suécia, por exemplo, falar de racismo, é muito diferente do que falar sobre isso em São Paulo. Mas a estrutura se mantém sempre. E como ela já está tão codificada e tão orgânica para mim, que eu não preciso pensar, eu posso brincar do que for. Por exemplo: eu apresentei em uma favela muito violenta em São Paulo que nem a polícia entra. Como é que eu ia me relacionar com isso? Aí conversando, chegamos a conclusão que somos todos “fodidos” dentro de uma favela. Então eu disse: “eu vou contar a história de um ‘fodido’ que chegou em uma cidade que ninguém conhecia ele, que tinha uns ‘amigos’ que não falavam com ele, e inventou histórias pra ser reconhecido.”

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Melize - Mas você disse isso no prólogo? Roberto – Eu disse isso no prólogo! Foi bárbaro! Primeiro que eles entenderam que era um “fodido” que inventou de fazer milagre pra ser aceito pelos amigos. Então isso é que ficou parecido com eles. Melize – E até onde vai este contato com o público, Roberto? Ele pode interferir diretamente? Roberto – Direto. Eles cantam junto. Tem três músicas. Uma é um “mico”. Então eu estabeleço essa relação já no prólogo. E quando eu conto a história, eu propositalmente “esqueço” algumas palavras. “Como se chama aquele bastão que tem os bispos? E aquele chapéu?” E fica claro que eles podem se meter a qualquer momento, e eu me viro, claro, para responder. Primeiro eu levei uns três meses só trabalhando as situações. Isto tem a ver com os pastores, isto tem a ver com Maria. Primeiro a corporeidade no relacionamento com as figuras, depois é que eu fui para o texto. Então, mudando para a construção civil, mesmo porque Dario Fo também é arquiteto, eu vou fazer uma catedral. Mas de que? Eu não sei. Eu vou fazer uma catedral em Barcelona, então tem pedras brancas porque isto tem a ver com Barcelona, e talvez alguns espelhinhos de cristal cortadinhos em homenagem a Gaudí. E eu ainda não fiz nada de catedral. Eu só preparei o material para a construção. E quando os materiais são jogados para cima, vão se organizando na queda, e aí eu vou construindo a catedral, a minha catedral que tem a ver com Barcelona. E foi assim que eu comecei a montar o espetáculo. Essa é a metáfora de como o espetáculo foi feito. Melize – Eu queria saber como é essa autodireção. Você tem um olhar de fora? Roberto – É horrível. Uma merda. Porque o pior problema de uma autodireção é que tu não tens ninguém que pensa diferente de ti. Melize – Para te questionar, para te estimular... Roberto – Exato. Esse é o pior. Porque quando eu peguei o texto, tiveram coisas que eu tive que cortar, pois eu achava que iam “matar a pau” e isso não acontecia, ou o contrário, retomar coisas que eu achava que não iriam funcionar. Melize – Era isso que eu ia lhe perguntar, pois a partir daquilo que você viu que funciona ou não (com o seu corpo, com as suas ações) você vê o que pode funcionar no texto. É uma relação contrária com o texto. Roberto – É contrário porque é como um roteiro de clown. Se as pessoas não riram, não funciona! Aí eu pensava: isso aqui eu vou cortar! Mas hoje são os melhores momentos. Melize – E isso só dá pra ver no contato com público. Roberto – Só no contato com o público. Eu fiz dois ensaios abertos que já deu para entender um pouco, mas nas apresentações na faculdade é que ele foi sendo

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modificado e continua até hoje, depois de quinze anos. Claro que não é uma gambiarra. Pois você sabe, é claro, que improvisação significa duas coisas completamente diferentes. Uma coisa é improvisar, como os italianos falam, te jogar para o imprevisto, pra juntar materiais. Outra coisa é um trabalho não técnico segundo um monte de grupos, “à la louca”: “eu tive que improvisar porque saiu tudo errado”. Eu estou falando de buscar coisas que a tua mente não conhece para incorporar ao teu trabalho. Criar sentido através de algo imprevisto. Melize- Improvisação também pode ser em um nível interno... Roberto – E é na sala de trabalho e não no espetáculo, como acontecia na Commedia dell’arte. O pessoal diz: é uma comédia de improviso. O c........! Eles tinham tanto material e tantos lazzi prontos pra jogar, que eles diziam: “ah, este lazzo funciona, então eu vou fazer agora”. É que nem uma cozinheira que tem cinqüenta anos fazendo um molho maravilhoso e um dia achou um coentro e resolveu colocar dentro. Ela está improvisando? Não. Ela fez o que já tinha feito há anos atrás, e agora viu de novo que podia repetir aquilo. Então, eu tenho um material guardado de quinze anos, e para essa platéia em São Leopoldo vai servir o que eu fiz em 1994 na Bélgica. Melize - Eu queria que você falasse um pouco sobre o trabalho de clown, o trabalho com as máscaras, pois eu sei que você tem um contato com isso. Como isto reverbera no “Il Primo Miracolo”? Roberto – O Dario também vem de um trabalho mascarado, de uma tradição. O que acontece é que o trabalho com máscaras tira a expressão do rosto. O Decroux também partiu da mesma coisa. Ele pegou uma camiseta preta, botou na cabeça dos caras e disse: “Ó gente! Sem a expressão do rosto o que é que nós vamos fazer?” Isso dá uma corporeidade maior, uma expressão maior. Melize – Leva a intenção e a expressão também para o resto do corpo. Roberto – Exato. E não só isso. Leva para um caminho diferente de entendimento. A palavra no Dario [Fo] tem muito mais a ver com ação vocal do que com o conteúdo da palavra. Mesmo por que ele fala em dialeto e de milhões de dialetos, tu podes conhecer alguns e, em gramellot mesmo, que é uma língua inventada. Primeiro ele explica na língua local a história que vai ser contada e depois faz. Eu não explico a história, eu faço direto. Eu tenho o prólogo, que é muito clownesco, pois serve para sentir no momento este somatório de espectadores. Melize – É o “prólogo inteligente” de que fala Dario. Roberto – Os Colombaioni dizem: os primeiros minutos do clown no picadeiro é para escutar, não para fazer. Você tem que saber se é um público intelectual, se é um público “emo”, se é um público humilde. Essa é a medida. Não existe isso: “hoje o público não estava acertado com a peça”. É a peça que não estava acertada com o público. Então ele tem que ser ouvido. E você vai jogando anzóis e conforme o que vem nos anzóis, tu sabes que isca tens que usar. Esse é o “prólogo inteligente” para mim.

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Melize – E o trabalho com o Lecoq? Em relação a comunicação gesto – palavra? O que você apreendeu e utiliza? Roberto – A mímica. O Dario também trabalhou com Lecoq. A precisão da mímica. A precisão de meio gesto que significa muita coisa. Porque tem uma diferença brutal entre a mímica e a pantomima. A pantomima diz respeito à forma, e a mímica diz respeito ao sentido. Então tu aderes ao sentido. No mimo: [faz o gesto ilustrativo] eu quero sair contigo para nadar. Isso é uma pantomima que tem nos Arlequins. É lindo, é bárbaro! Mas no “Il Primo Miracolo” não tem nenhum gesto imitativo. “Ó, te ligo depois” [faz gesto imitativo]. Nada. São gestos que significam. Tem uma palavra mágica no teatro simbolista que significa: me parece. Isto me parece tal coisa e não, isto é tal coisa. Mas no momento que tu dizes me parece, não é o “parece”. Porque quando tu dizes “me”, a tua subjetividade já foi envolvida. Então, eu te dou um molho suficientemente agridoce para tu não saberes do que é feito. Para tu dizeres: “isso me parece uma comida que a minha avó fazia”. Pronto, estás no anzol. Então, eu te digo algo que mexe com o teu emocional. Tem diferentes coisas neste molho para que diferentes pessoas possam se identificar de maneira diferente. E desse caldo é que sai esta relação. O que vem do Lecoq é o uso do corpo de uma maneira não cotidiana. Do Eugenio [Barba] também, do Lume, do trabalho com “A usina do trabalho do ator”. Mas do Lecoq vem muito o jogo, que não é tanto uma característica do trabalho do Eugenio. E é um somatório de coisas, mas o que mais ensina, é a estrada. Melize - E você tem um treinamento permanente ou o seu treinamento é o próprio processo de montagem, os ensaios. Roberto – Não, porque agora eu dirijo um treinamento aqui e quando eu posso, eu faço. Mas o meu treinamento mais violento é criar um filho que agora tem sete anos [risos]. Quando eu treinava sete horas por dia, eu não terminava tão exausto quanto segurar a onda desse moleque. O Carlo e mais três amigos em casa, é como se eu fizesse seis horas de “dança dos ventos”. Mas eu continuo dirigindo e dando muitas aulas, muitas oficinas, pesquisando todos estes impulsos e estou sempre em ação. Sempre que eu ensaio, eu reservo um tempo para trabalhar com o improviso. É livre, para que eu possa buscar os estados que eu não consigo entender. Que é aonde eu digo: “o ator descobriu a América”. O Eugenio diz que quando um ator consegue fazer a parada de mão, ele “descobriu a América”. Para mim não. Quando um ator age primeiro antes de pensar, quando ele está alerta para estabelecer relações com aquilo que ele fez, aí o ator “descobriu a América”. Este é o estado que eu busco antes de começar os ensaios do “Miracolo”. Antes eu tinha que levar duas horas me cansando e hoje em dez minutos eu chego neste estado de trabalho. Melize – Eu queria que você falasse um pouco do espaço. Os outros espetáculos que você monta tem a mesma disposição cênica? Roberto – Tem. Claro, a gente fala de espaço vazio e tem que falar de Peter Brook. Mas também tenho que falar de Dario Fo. Se eu te coloco um cenário mais impositivo, menos a tua imaginação vai estar livre para que se estabeleçam as conexões com o teu subjetivo. “Uma rosa é uma rosa e é uma rosa”. Agora, se a rosa que eu te coloco é de celofane de uma carteira de cigarro queimada, esta rosa te diz muita coisa. Então, quanto mais livre e neutro o espaço, para mim é melhor.

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Nunca trabalhei com cenários realistas. Eu faço muito cinema, onde a imagem é soberana, mas mesmo assim eu consigo deturpá-la e colocar coisas impossíveis, que via organicidade acabam sendo crível e bom. O teatro é codificado. No elizabetano, chega um cara, pega um galho e diz: “eu sou a floresta de Sharwood”. Pronto, ele é a floresta de Sharwood. Dois segundos depois ele está na corte de Henrique VIII, ou então é Macbeth ou sei lá o que. Então, que espaço te possibilita esta codificação e voar tão rápido de um espaço para o outro? O espaço vazio. É que nem figurino. Eu faço vinte e duas personagens e se eu não usar essa roupa neutra, preta, qualquer elemento que me ajudar para um, vai me atrapalhar para o outro. Eu até tenho vontade de trabalhar um dia com telões, com projeções, microfones, mas da maneira com que eu trabalho hoje, não dá. A gente montou um Ítalo Calvino, “As cidades invisíveis”, que começava em dois lugares ao mesmo tempo: aqui na Mário Quintana [Casa de Cultura em Porto Alegre] e num museu que fica há umas quinze quadras daqui. E cada um optava por onde ia começar a assistir. Depois tinham duas peregrinações e terminava na praça matriz. Não tinha unidade de espaço, nem de platéia. Os espectadores não viam todo o espetáculo e para entender tudo, um tinha que conversar com o outro. Que também é uma quebra com as “regras” do teatro. O espectador não é onipresente, ele não vê tudo. Melize – Roberto, vamos voltar um pouco ao texto: você sentiu a necessidade de voltar ao texto muitas vezes para readaptá-lo? Roberto – Muitas vezes. Pois conforme o espetáculo ia ganhando organicidade, eu me dei conta que em algumas passagens, não era eu que não conseguia fazer direito, era porque a tradução era literária e o Dario é das ruas, é do povo. Então imagina o “José” falando: “Meu filho eu gostaria que tu tivesses mais cuidado com os teus pertences”. Tu conhece alguém do povo que fale desse jeito? “Neguinho, vai ‘buscá’ tuas ‘coisa’, não deixa assim tudo esparramado!”. É assim. E a minha tradução e adaptação é nessa linguagem do povo. Melize – Você em algum momento suprimiu frases de texto (palavras) e substituiu somente por ações? Roberto – Sim. Ou por ação vocal. Por exemplo: “o menino quebrou os meus briquedos”. Como eu já havia dito, eu usei um código: “Pacapatcha, Pacapatcha” [faz gestos referentes a brinquedos quebrados]. No momento em que ele chora. Por que vamos combinar uma coisa: precisa entender um menino que chora? Então: “biquibi, bipabá” [e faz gestos de um menino que chora]. E quando ele explica do cavalo: “diquidi, diquidi, diquidi” [faz gesto de cavalgada]. Então é a ação vocal. Ninguém em quinze anos disse que não havia entendido. Isso é Dario Fo. Ele cria códigos com o público e se refere a eles muito rapidamente. Melize – E o público sente prazer em identificá-los depois. Mas digamos que um dia, o público não irá entender. O que você fará? verbalizará? Ou repetirá as mesmas ações? Roberto – Eu faria um “mico”. Pois é nesse momento que a gente tem de abrir a bula. A gente não toma remédio sem bula. Então onde eu fiz “popopó, popopó, popopó” no português significa... Eu criaria toda uma outra estória não cotidiana. Eu verbalizaria a brincadeira de que não entenderam. “Popopó, popopó, popopó”

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significa vão se “fuder”. Se eu vejo que o entendimento de tal passagem é vital, aí não dá para deixar. Mas tem outras coisas que as pessoas não entendem, por exemplo: o primeiro milagre é um assassinato? ou é os passarinhos...Isso não precisa ser entendido. É o que lhe parece. Isto está totalmente dúbio no texto. Melize – E o número de repetições, você aumentou? Roberto – No Julio [A descoberta das Américas] isto funciona, por exemplo: “esquerda, direita, esquerda, direita.” É o que mais funciona. Eu criei uma: o rap do negão [do Rei Mago negro]. Mas há um cuidado para não cair na gag fácil americana, pois o Dario tem situações cômicas e é preciso manter a pureza da situação cômica que o Dario cria, senão é um riso fácil. Melize – E que acaba destruindo o resto. Roberto – Claro! Se não vira um pastelão demais. Você ri e dois segundos depois não lembra mais de nada. O próprio “Miracolo” já teve passagens assim e eu tive que dar uma segurada. É claro que este não é o caso do Julio, só estou dando um exemplo. Melize – É a questão da oposição que traz o público devolta do riso. Eu gostaria que você falasse um pouco da relação gestualidade-palavra no seu trabalho. Eu pergunto, pois algumas pessoas separam isto no treinamento ou na construção do espetáculo. Roberto – Daí vem um pouco do trabalho do Lecoq e do Decroux. Principalmente do Decroux que eu conheci via Lume, ainda com o Burnier e depois com o Thomas Leabheart e outros. Melize – Que elementos você acha que diferenciam este tipo de teatro mais autoral (no que diz respeito ao ator) do teatro tradicional que parte do texto? Roberto – Eu acho que a diferença não está em partir de um texto ou não, mas na maneira como tu inseres o texto no teu trabalho. O que eu vejo sim, é que na maior parte das vezes, as pessoas se baseiam no conteúdo das palavras e acontece uma não organicidade. Nós aqui no sul temos muito contato com o cinema uruguaio e argentino. O cinema argentino está maravilhoso e a gente não consegue ter um cinema assim no Brasil, com esta qualidade. Ok, nós temos um problema de roteiro e tal, mas o teatro argentino e uruguaio que são um “teatro da palavra”, vendo através do “Porto Alegre em Cena” e outros festivais, muita gente acha que é chato. Que são quatro caras falando em volta de uma mesa. Sim é. Mas o lado bom disso, é que a gente acredita em cada palavra do que eles dizem em volta da mesa. Eu vou fazer uma generalização muito burra, mas que seja. O teatro brasileiro, eu sei que tem muitas exceções, mas eu estou falando de 85%, é um teatro de imagem, com uma iluminação, uma fotografia maravilhosa, até o primeiro ator abrir a boca. Aí acabou a magia. Eu não acredito em nada do que ele diz. A gente vê o ator seguindo a marcação do diretor. E aí é onde falta o corpo. O Paulo José diz: “Antes de exprimir, é preciso imprimir”. Tem que haver uma impressão. E esta impressão é o movimento corpóreo. Uma professora da Marlene, minha primeira professora de técnica vocal, dizia: “o ser humano só consegue por para fora uma palavra que não

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consegue mais reter dentro”. Isso é uma imagem muito boa para a ação vocal. O que significa? Para eu falar alguma coisa, há um impulso corpóreo que me faz colocar essa palavra para fora. [...] Dar o texto já é uma expressão constrangedora, pois não vai vir nada disso. Eu entendo que os impulsos necessários, deixam que saia um texto coerente com esses impulsos. O Barba [Eugenio] falava muito dos equivalentes não cotidianos da vida. Estes equivalentes é que vão se transformar na tua subpartitura. Então tu vais ter essa tonicidade. Aí tu não precisas te preocupar, pois a voz que sair com o corpo naquela tonicidade, está correta. O contrário é que é complicado. Se você me perguntar: que voz você vai fazer, é a mesma coisa que perguntar: “que tríceps você vai fazer?” Eu sei qual é a minha tonicidade básica e a voz que sair dela, é certo que está correta. Melize – Roberto, você poderia falar um pouco sobre o seu trabalho com o Potlach, na Itália? Quais as reverberações no seu trabalho hoje? Roberto – O Potlach tem um projeto que se chama “Città invisibile” que eu participei de 92 a 98 (eu acho) e o Julio [ator de “A descoberta das Américas”] também fez parte deste projeto e de outros. Uma vez nós fomos almoçar em Santa Tereza, na Lapa, e eu disse: “ó nego, o nosso trabalho é muito parecido, vamos levantar o tapete para ver o que tem embaixo.” Tem muitos pontos em comum. Eu digo que nós somos parceiros de estrada sem nunca ter andado juntos. Melize – Eu não ia fazer esta pergunta, mas já que você tocou no assunto... O que você acha que, mais explicitamente, os dois trabalhos tem em comum? Roberto – Claro que eu não vou nem falar das coisas óbvias que são as escolhas, o Dario Fo, etc. Mas eu acho que é o trabalho essencial com o corpo, o trabalho essencial do performer, do ator em detrimento de qualquer outra coisa, qualquer cenografia, espaço; mas isto também vem do Dario Fo. Seria interessante ver como nós montaríamos Nelson Rodrigues, aí teria que ver. Um cuidado com a gestualidade, com a palavra, com a organicidade. Melize – Quais os elementos concretos que você encontrou no trabalho prático do Fo, que reverberam no texto dele, como já falamos, e que podem trazer uma herança de continuidade para os atores brasileiros? Roberto – Como? Melize – Elementos que você encontra no trabalho dele que possam ser incorporados à nossa realidade. Ao trabalho dos atores brasileiros. O que de mais importante? Roberto – Primeiro, a linguagem do povo. Até hoje se fala no palco de uma maneira diferente com que se fala na vida. Eu não entendo o por quê. A primeira e grande lição é esta. Nós estamos ainda montando “Lago dos Cisnes”? “Tchaikovski”? Ontem eu estava fazendo aula de técnica vocal com o meu professor agora, o Zé Carlos, e ele disse uma coisa fantástica: só no século XIX é que se começou a ouvir música do passado. Por que isso é popular ou erudito? Ele disse que essa definição é completamente burra e de agora. Bethoven era popular, era o que se ouvia naquela época. O erudito veio com as primeiras guerras, pois como não se tinha

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nada, “vamos preservar o passado”. Então toda a manifestação artística é para um público de um determinado momento. Shakespeare tinha um cuidado, pois trabalhava com classes sociais diferentes e ele sabia falar com estas classes. Hamlet chega para alguém e diz: “eu posso enfiar a minha cabeça entre as suas pernas?” Isso era para um determinado público e quando ela [a personagem a quem Hamlet se dirige] se apavora, ele diz: “eu posso deitar no seu regaço?” Então ele sabe como dialogar com cada uma das classes sociais. E com quem dialogamos quando falamos de Ibsen na maneira que o Ibsen falava? Isso não é purismo. Isso é parnasianismo, é outra coisa. Melize – Há uma falta de olhar das pessoas de teatro, no Brasil, para a linguagem do povo? Roberto – E mais. O Fo entende o que é popular e o que é vivo e essa é a maior herança. Para mim essa é a grande dádiva. Para nós, popular virou “boquinha da garrafa”. Melize – O pejorativo, o ruim. Roberto – Exatamente. Dario Fo é popular e com altíssima qualidade. O que se fazia há uns cinco séculos atrás. O importante não é o que eu digo, mas o que tu escutas. É tu quem vais te adequar ao trabalho do outro. Melize – É impossível pensar o trabalho do Fo com uma “quarta parede”... Roberto – Claro! De vinte e cinco séculos de teatro, de história que o teatro tem, cem anos foram de “quarta parede” e isso não é significativo. E parece que a “Quarta parede” é que virou padrão. Senão vira um telão de duas mil polegadas sem sentido. A “quarta parede” mata com isso. Como na pintura. Veio a fotografia e a pintura viu que não precisava mais fazer retrato, pois não ia conseguir chegar tão próximo. O teatro não precisa mais mostrar a vida como ela é, o Jornal Nacional faz isso e é de graça.

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APÊNDICE II Entrevista concedida a autora por Julio Adrião, ato r do espetáculo A descoberta das Américas , do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos - Rio de Janeiro, em junho de 2007. JULIO ADRIÃO é ator, produtor, diretor, poeta e cozinheiro. Formado pela CAL - RJ, trabalhou seis anos na Itália com o Teatro Potlach e outras companhias. Construiu o espetáculo solo de rua The cash and carry international show, apresentado em toda a Itália e no Brasil. De volta ao Brasil, em 1994, dirigiu o espetáculo de circo-teatro Roda saia, gira vida do Teatro de Anônimo e a Ópera Cômica O elixir de amor, de Donizetti, na Escola de Música da UFRJ. Integrou o trio cômico Cia. do público desde a sua formação até 2002, quando realizaram Ruzante com direção de Sidnei Cruz e Alessandra Vannucci. Nesta ocasião, criou com Sidnei Cruz e Alessandra Vannucci o Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos. Em 2005, dirigido por Alessandra Vannucci em A descoberta das Américas, de Dario Fo, ganhou o Prêmio Shell/RJ de melhor ator. Ministrou, ainda na Itália, oficinas que tinham como base técnicas de interpretação e improvisação para a montagem Alegorias do Caos, baseada em poemas de William Blake. De volta ao Brasil, ministrou aulas avulsas de commedia dell’Arte no curso ReAtor, coordernado por Hélvio Garcez. Com a Cia do Público desenvolveu, juntamente com Sérgio Machado e Márcio Libar, a oficina de comicidade O Ator é o Riso que, em 1999, percorreu vários estados brasileiros no Projeto do SESC/Nacional Palco Giratório. Em 2001 foi responsável junto ao SESC – Prainha, em Florianópolis, pela condução de uma oficina de narrativas - Estórias Contadas – realizada em cinco etapas ao longo do ano, culminando com apresentações públicas em áreas populares e carentes como praças, escolas e o presídio feminino. Como membro da CASA – Coop. de Artistas Autônomos – ministrou oficinas em 2001/2 nos Projetos Escola de Paz, da UNESCO, e Território Cultural, realizado em cinco comunidades do Rio de Janeiro com patrocínio da Petroquisa, onde aprofundou a idéia das Estórias Contadas. Atualmente ministra a oficina O Ator sem caráter, cujo objetivo é o desenvolvimento do solo narrativo. Melize – Como se deu o processo de escolha do texto? Por que montar Dario Fo? Julio - Foram várias coisas. Eu tinha visto Dario Fo em vídeo quando eu morava na Itália, inclusive o “Il Primo Miracolo” e fiquei impressionado com o que ele fazia com o palco nú, com a forma com que ele contava [as estórias] e eu nem falava tão bem o italiano ainda e entendia tudo. Ele falava em grammelot e eu fiquei impressionado com aquilo. Eu ainda estava participando de um processo de treinamento físico e vocal nos anos de 1987 e 1988. Quando eu voltei para o Brasil, eu trouxe este livro, “A descoberta das Américas”. Li e achei muito interessante porque ele é feito em duas colunas (o texto falado em grammelot e o texto traduzido para o italiano) e achei muito curioso, mas guardei e ficou lá. Em 2000, já no Brasil, eu conheci a Alessandra Vannucci. Ela falava muito bem o português, e eu, como tinha morado seis anos na Itália, falava bem o italiano. Ela necessitava de alguém para ajudá-la nesta tradução que ela ia fazer do livro por encomenda. Ela me convidou e eu aceitei. Nós sentávamos no computador, cada um com o seu livro, e nós íamos por período, entendíamos bem o que ele estava dizendo, e eu de uma vez, dizia em português como eu achava que era. E assim foi. A gente fez o livro todo e quando terminamos e lemos, achamos ruim e fraco ainda. Pegamos o nosso texto e começamos a trabalhar em cima da nossa tradução. Fizemos isto umas cinco vezes. Isso tudo em três semanas, trabalhando diariamente, e eu fiquei impregnado

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daquela história. No final, a gente viu que por mais que pudéssemos melhorá-lo, ele iria permanecer sempre um texto literário, como havia se tornado o texto traduzido pela Franca Rame do original falado por Dario Fo. No máximo seria um bom texto literário. Ele no original inspirou-se nos textos do Cabeça de Vaca, que foi um cronista, navegador destes tempos de 1500, que veio ao sul do Brasil, até. Se você vir o livro do Cabeça de Vaca, você identificará várias passagens que inspiraram Fo, inclusive o próprio personagem Cabeça de Vaca, que se transforma nesse Johan Padan. Então a Alessandra disse: “Bom, aqui quem é o ator, é você. Então, por que você não conta essa estória? É isso! Você aprende a história, entende o que você vai contar e conta. Mas tem que ser sem papel, sem texto na mão”. Então eu nomeei as histórias, pois para compor esta história grande, existem várias estórias. Tem a história da ida para Sevilha, da chegada em Santo Domingo, tem a entrada na caravela de Colombo, o aprisionamento pelos índios, tem batalha, uma série de coisas. Criamos um roteiro com as passagens e eu comecei a contar o que me lembrava. Afastei as cadeiras em casa mesmo e comecei a contar. No primeiro dia a gente viu que era isso. Que era um processo que tinha que ser contado e amadurecido por meio da repetição. Era se apropriar da estória e contar da melhor forma possível. Nós fomos fazendo e aos poucos vimos que não precisávamos de nenhum aparato cênico e que era a função do ator reproduzir tudo aquilo com seu canal de comunicação, ou seja, os elementos que fazem parte da tua história de ator. Tanto o que você aprendeu tecnicamente, como o que você aprendeu como pessoa. A tua maneira de se comunicar, tua voz, os teus gestos, os teus vícios de linguagem, as tuas técnicas, tudo isto a serviço da estória a ser contada. Eu tive uma certa resistência porque era um trabalho que eu não entendia muito. Eu travava, pois eu queria lembrar da palavra. Eu esquecia e ela me xingava, e dizia para eu não pensar na palavra, mas na estória. “Se liga no fluxo narrativo. É um épico. Narra esta estória como se você fosse contar ‘Os três porquinhos’, o ‘Chapeuzinho vermelho’ para o teu filho!” . Então em duas semanas nós fizemos uns cinco, seis ensaios, e aí nós vimos que não dava mais para continuar assim, nós precisávamos do público. Com duas semanas nós fomos para o público e naquele ano fazia 500 anos da descoberta do Brasil, em 2000. Em setembro houve uma comemoração no Museu da República patrocinada por um instituto italiano. Nos deram uma verba para bancar a tradução e como contrapartida nós apresentamos a tradução. Então eu costumo dizer que foram vinte anos e dez dias de ensaio. Aqueles dez dias de experimentação aconteceram daquela forma, pois nós já estávamos impregnados da estória. Nós já tínhamos a estória, o ator, a energia da estória, o fluxo energético da narrativa e vimos que aquilo tudo precisava de muita repetição, na medida que a gente precisava desenvolver a estrutura cênica de cada pequena estória. A gente entendeu que era um ótimo processo de trabalho, mas que ia demorar um pouco, embora não tivesse demorado para chegar num primeiro momento de exposição pública. Do final de 2000 para a metade de 2001, em seis meses, eu apresentei umas cinco, seis vezes, no Rio, na UNIRIO, em Florianópolis, no Sesc Prainha, onde eu dei uma oficina de contação de estórias e apresentei isso no último dia. Eu fiquei ainda lutando contra mim mesmo, porque eu tinha dificuldade de memorizar a estória e cada vez que eu ia contar, eu contava de um jeito diferente. Embora fosse a mesma estória, eu esquecia umas coisas, lembrava de outras, precisava de gancho, parava, quebrava o fluxo energético, pensava, e aquela espontaneidade começou a fazer parte do processo. As apresentações foram importantes porque eu filmei, mas acabando isso, a gente se envolveu com coisas mais urgentes para nós. Ela acabou voltando para a Itália e nós voltamos a trabalhar juntos em 2002 para

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fazer o “Ruzzante”, que foi uma das três traduções que nós fizemos. O outro era de um anônimo, “Diário de Salomão Marcolfo”, que é um outro maravilhoso. Nós começamos a trabalhar na versão para a montagem, pois o Sidnei [Cruz] queria montar porque era apaixonado pelo texto. Ela [Alessandra Vannucci] queria montar também e a apresentei ao Sidnei. Eu ainda era da “Companhia do Público” e queríamos montar um novo espetáculo, depois de oito anos rodando com o mesmo, que era “Sua melhor companhia” e que fez sucesso no Brasil inteiro. Era um espetáculo de trio cômico, de números, para três atores e uma atriz. Montamos na “Casa Mercado 45”, que é uma casa no Rio de Janeiro que pertence a vários grupos de teatro e música. Esta casa pegou fogo e nós compramos a ruína dela e até hoje ela é assim. Nós só fizemos algumas melhorias com a intenção de fazer o “Ruzzante” lá. Foi a retomada da casa enquanto espaço de utilização pública. E fizemos o “Ruzzante” com a “Companhia do Público”. Alessandra e Sidnei na direção, eu e ela fizemos a tradução, eu e o Sidnei a produção, e vimos que ali tinha uma potencialidade enquanto produção. E assim nasceu o “Leões de Circo Pequenos Empreendimentos”, pois eles são assim: nascem pequenos e não podem ser menores. Só podem crescer ou não. Melize – Julio, vamos voltar um pouco ao texto de “A descoberta das Américas”. É claro que traduzir e adaptar um texto te faz ter uma relação diferente com ele. É diferente de você pegar uma tradução de alguém e partir para a montagem do espetáculo. O que eu queria saber, é se você sentiu necessidade de voltar ao texto várias vezes depois do texto já contado e transcrito, e se você sentiu necessidade de cortar coisas depois, no contato com o público, que modifica esta relação, e se você sentiu necessidade de substituir partes do texto por ações ou ações vocais. Eu sei que nós já falamos um pouquinho sobre isto, mas eu gostaria de saber mais. Há substituição das palavras em alguns momentos que eu consigo identificar no espetáculo e que não são poucos. Julio – Bom, depois do “Ruzzante”, que eu saí da “Companhia do Público”, e o “Leões de Circo” continuou, em 2004, a Alessandra Vannucci me disse que estava fazendo um projeto de leituras dramatizadas de dez peças do Mediterrâneo, e dentre elas, tinham três traduções nossas que são: “Ruzzante”, “Salomão e Marcolfo” e “A descoberta das Américas”. Todas iriam ser dirigidas e apresentadas no Rio, no Teatro Maria Clara Machado. E depois de quatro anos, foi a retomada de “A descoberta das Américas”. Foi o momento de maior esforço, pois eu não mexia nele desde 2000. Eu tinha um vídeo, mas ela disse que não tinha sentido fazermos uma leitura depois de tudo que nós tínhamos feito e trabalhado. Aí eu comecei a assistir o vídeo e com quinze minutos eu não conseguia mais ver aquilo. Era horrível, era insuportável de ver, era muito quebrado. Aí eu peguei a última versão do texto e nunca mais olhei para ele. Fomos para a sala de trabalho e em três dias nós fizemos. Foi um parto. Eu fui determinado a chegar ao fim. Tinha bastante gente assistindo e depois que eu contei a estória, as pessoas diziam: “Você não quer montar um monólogo? Está pronto!” E o Sidnei disse que estava praticamente pronto, era só começar a fazer. A Alessandra estava voltando para a Itália, em setembro de 2004, e eu fiquei de setembro de 2004 a setembro de 2005 sem a Alessandra. Ela me disse que eu precisava de disciplina para trabalhar sozinho. Então eu criei uma dinâmica, entrei na sala de trabalho e comecei a fazer, mas eu não conseguia ensaiar as cenas separadas, por causa do ritmo. O que eu fazia, era burilar as cenas em casa. Pegava a estrutura e tentava ver o que estava faltando ou

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sobrando, tentava fazer ela em pensamento e depois encenava algumas partes, na cozinha as vezes, cozinhando mesmo. E aí eu via as partes que tinham de permanecer sempre, e escolhia as palavras que funcionavam melhor. Às vezes eu tinha que me impor as palavras, pois algumas eu jamais falaria normalmente. Então ela viajou e eu fiquei com a batata quente na mão, pois eu é que tinha que levar este trabalho para frente. Então eu ia para a casa onde nós trabalhávamos e na qual eu vim a fazer a estréia depois, em setembro de 2005, e eu coloquei a minha meta de ensaiar pelo menos uma vez por semana. Eu levava meu filho na escola e trabalhava na peça de manhã. Eu fazia na segunda-feira, por que daí eu ganhava a semana, pois eu estava fazendo por primeiro a coisa mais importante da minha vida naquele momento, enquanto trabalho de pesquisa. Eu ensaiei durante dois meses. A minha meta era rodar o espetáculo, e quando chegou em fevereiro eu comecei a rodar pelo Ceará, porque eu tinha uma parceria com o SESC de lá. Eles compraram uma apresentação, pagaram a minha passagem e lá eu fechei várias apresentações. E eu fiquei um ano, de setembro de 2004 a setembro de 2005, fazendo o espetáculo onde eu conseguia. Eu fiz também pelo SESC do Rio, onde eu chamei um técnico para fazer uma luz básica e que ficou interessante, pois nós chamamos de “não luz”. A iluminação era só para iluminar mesmo e criar um clima no início e no fim, quando tem as passagens de tempo. Isto foi um amadurecimento. E aí depois de todo este contato já com o público, depois destas apresentações, nós resolvemos estrear. A Alessandra estava chegando, nós ensaiamos mais duas semanas, e aí eu levantei a produção com o Sidnei, onde nós criamos um espaço com cadeiras antigas dentro da ruína daquela casa queimada, como está no DVD, e estreamos no dia 14 de setembro de 2005. Então foi diferente dos outros espetáculos que estréiam a toque de caixa praticamente sem ensaios. Eu tinha a meu favor umas cinqüenta apresentações feitas para um público durante um ano e um amadurecimento deste processo. Eu nunca mais voltei ao texto que nós tínhamos traduzido e, contando, ele ficou completamente diferente. Eu nunca transcrevi este texto que eu falo hoje. Na medida que eu ia fazendo o espetáculo, eu ia encontrando coisas novas. A narrativa foi se enriquecendo. Não só o texto, mas as partituras físicas. O espetáculo exige muita concentração e durante a apresentação eu colocava a atenção em um foco que eu queria desenvolver ou melhorar, e prestava atenção mais naquelas passagens. Se eu tinha um olhar de fora era melhor para me ajudar. Principalmente quando a Alessandra assistia as apresentações, nós íamos para a minha casa e pegávamos um pedaço e aprofundávamos as coisas que tinham funcionado, ou tirávamos outras coisas que tinham dado uma engessada, que não funcionava. Nós encontramos muitas coisas que faziam uma ponte com a atualidade brasileira que foram sendo inseridas e naturalmente nós fomos encontrando a necessidade de enxugar o texto, pois o espetáculo tinha uma hora e dez minutos. Mas ao mesmo tempo que eu ia sentindo a necessidade de cortar passagens que eu achava reduntantes, eu fui encontrando também as pausas do espetáculo e as ações físicas que foram desenvolvidas, pois algumas ações físicas se desenvolveram de uma simples ação para uma cena de cinco minutos. O que era uma indicação no texto, uma frase, se tornou uma cena de cinco minutos. E isso é coisa pra caramba! Eu fui pesquisando cada vez mais as pausas e desenvolvendo as partituras físicas. O mais engraçado é que com os cortes o espetáculo ganhou mais tempo, passou de uma hora e dez, para uma hora e quarenta. Aumentou 30 minutos. Nós cortamos uma cena inteira e outra nós reorganizamos e colocamos ela em outro lugar. Foram cortes cirúrgicos, pois eu

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cortava o texto, mais pegava a essência dele e desenvolvia em alguns casos uma cena inteira só com ações. Melize – E o olhar de fora? A direção da Alessandra? Julio - O trabalho da Alessandra comigo foi fundamental, pois o trabalho dela não foi impor coisas, mas de identificar e sugerir mudanças. Ela não quis ter o espaço de criação da cena, mas de me manter no estímulo, pois várias vezes eu quis desistir. Ela me deu o chão. Ela sabe que o espetáculo é muito autoral no meu caso, e ela precisa me convencer das mudanças. É um espetáculo hoje que está mais próximo da música e da dança, do que do teatro, pois embora eu não seja nem músico e nem bailarino, fazer um corte é muito complexo, porque eu estou em um fluxo narrativo que eu não posso simplesmente tirar uma coisa, senão eu caio num vazio e não volto nunca mais. Não é que isto já esteja engessado, mas está de uma forma encadeado, que a memória física da ação é o que puxa. Para eu mudar alguma coisa eu tenho que me preparar antes. É claro que cada dia é um dia novo. Eu chego três horas antes no teatro para fazer o meu processo, que é falar com as pessoas do teatro e passar o espetáculo inteiro. Eu procuro não fazer todo o texto em si, as ações, mas todas as intenções do texto pequenininhas. Faço o reconhecimento do espaço, vejo se a luz está boa na platéia, pois eu preciso ver o público. Tem pedaços que é uma partitura física mais fechada e que eu tenho mais confiança. Essas eu passo de uma maneira muito objetiva, passando por todas as intenções e impulsos, mas não exatamente o espetáculo como ele é. Eu levo uma hora e meia para fazer um ensaio de um espetáculo que dura uma hora e meia. Eu marco no espaço a minha área de atuação, pois eu já fiz num espaço de três por três e já fiz no Teatro Amazonas. O texto atualmente é muito fixado. Tem cerca de um ano que ele está muito definido. Eu tenho investido em pausas novas. Eu tenho a sensação de que é agora que eu estou começando a entender o espetáculo. Estou investindo agora em uma redescoberta dele mesmo. Por exemplo, o espetáculo tem uma noção de circularidade, de junção de movimentos, onde termina um começa o outro, que hoje eu tenho muita noção disso e nada é aleatório. A estória é muito cíclica. Eu crio códigos com o público e esses códigos voltam, de maneira que eu possa abrir mão do texto. Então, quanto mais aprimoro os códigos, mais eu vou abrindo mão do texto. Às vezes eu falo o texto com a intenção de que o público não entenda mesmo, mas eu tenho certeza que eles entendem a estória. Uma vez aqui em Curitiba, tinham três cegos na platéia, anteontem. Eram dois negros de Angola, um outro rapaz branco e o senhor que trouxe eles. Eles com os cabelos “rastafari”, óculos escuros, e eu pensei: “poxa, esses caras vem ai e ficam dormindo no espetáculo!” Os caras não se mexiam, e ainda, o cara que trouxe eles, ficava cochichando no ouvido deles. No final eles vieram falar comigo. Eles eram cegos e estavam “felizões” por terem entendido o espetáculo através do texto. Isso é maravilhoso! Um ex-secretário de cultura de Belo Horizonte que assistiu o espetáculo também é deficiente visual e ele disse para mim: “eu vi tudo, cara!” Eu também já tive na platéia deficientes auditivos e o cara que fica de costas para o palco para transmitir o que ele está ouvindo para a linguagem de sinais, disse que chegou um momento em que eles não estavam mais olhando para ele, mas para mim. Eles estavam preocupados em ver as minhas ações. Também os estrangeiros de língua não latina, porque italianos, espanhóis, tudo bem, viram, gostaram; mas dinamarqueses, alemães, ingleses assistiram e identificaram as coisas, os arquétipos. Eu estou falando isto, pois este foi um espetáculo que se revelou além

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das nossas expectativas de desdobramento. Eu nunca mais li o texto. O texto que você tem é um roteiro indicativo das ações. Melize - Foi uma construção lado a lado (textos e ações). Julio - Sim. São três coisas que compõe. Não é um pentagrama, pois não é música. É um trigrama: texto falado, sonoridades e partitura física. Esses três elementos compõe a narrativa e eles estão juntos o tempo todo e hora um fala mais alto que o outro. Tem uma coisa curiosa também, que é perigoso às vezes, mas que pouca gente tem consciência disso, que é: é uma estória trágica contada de forma irônica e com uma pegada cômica. Os quatro quintos iniciais do espetáculo, desde que ele chega a cidade dos espanhóis até a catequese, o público ri da forma que está sendo contada a estória e não do texto. Eles riem das minhas ações. Tem ações de mais de cinco minutos sem uma palavra. Melize – Quando eu vi o espetáculo novamente ontem, depois de ler o texto que vocês traduziram, me surpreendi com a dimensão que algumas ações tomaram no espetáculo. Lendo o texto você não tem a mínima idéia da diferença das ações indicadas no texto e delas encenadas. Julio – Aquela cena da “costura dos índios” é uma frase indicativa. Eu a desenvolvi como um lazzo da commedia dell’arte, de comicidade física. Você cria uma partitura física bem detalhada e a repete três vezes, cada vez modificando um pouco. Eu faço uma vez bem detalhada com texto, faço outra vez quase tão detalhada quanto, mas mais rápida, e faço uma terceira vez bastante acelerada, sem texto, só com a sonoridade e faço a última vez totalmente desmembrada, modificando as ações que as pessoas nesta altura já conhecem. Melize – Você aumentou o número de repetições ao longo do tempo? Julio – Aumentei. Isso faz parte da comicidade. A repetição do código. Todos esses quatro quintos do espetáculo estão em uma comicidade da forma. A partir da catequese dos índios é uma comicidade de texto. O Alcione Araújo quando viu o espetáculo pela primeira vez, disse: “olha, vocês correm um risco ali, mas vocês dão conta”. É porque é uma outra linguagem, só que ninguém percebe mais, pois já está alavancado, mas o riso é diferente. O Dario neste momento do texto faz uma crítica religiosa e faz esta adaptação. A palavra ali se torna fundamental. Eu coloquei os meus adendos também, onde eu criei uma Madalena que não tinha. Todas aquelas formas são fruto da minha concepção do desenvolvimento da narrativa. Foi um caminho que eu encontrei. Qualquer outro ator contaria de uma maneira completamente diferente da minha. Ele iria encontrar a maneira dele, senão vira imitação. Este mesmo texto contado pelo Dario Fo leva duas horas e meia, onde ele usa imagens projetadas que tem os desenhos dele e a partir dos desenhos, ele conta a estória. Ele não tem a preocupação com o ritmo. Ele quebra, pega e deixa o microfone. O Fo é plano americano (cara, boca e mão), mas isto é Dario Fo. Então eu penso que se eu montasse outras estórias do Dario Fo, o meu caminho seria sempre esse de “A descoberta das Américas”. O que mudaria seria a estória e os elementos que eu iria descobrir de narrativa fisica.

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Melize – Julio, se o público não entendesse os códigos em algum momento e você percebesse isso, você verbalizaria novamente? Julio – Não. Eu acho que o amadurecimento do espetáculo vem do contato com o público. O que funciona eu deixo, o que não funciona eu tiro. Não só em relação ao riso, pois tem momentos que eu descobri que eu não quero que o público ria. Então, o meu trabalho hoje é aperfeiçoar estes momentos, pois eu tenho que construí-los. Melize – O massacre dos índios, por exemplo. Julio – Eu descobri há pouco tempo em relação a esta cena, um silêncio. Faz um mês que eu descobri isto. Eu me carrego daquilo e digo: “fiquei deprimido”. E mesmo assim as pessoas ainda riem. Mas pode ser uma risada nervosa também. O mesmo movimento que é a espada espetando, depois virou um movimento de corpo caindo. Narrando aqui com meu corpo, “va, va, va, va” [faz movimentos de cravar a espada] e depois o narrador vendo aquilo horrorizado, só depois vem o silêncio. Eu olho aqueles índios todos caídos e aí vem o texto. São coisas que eu vou percebendo. A cruz também [imagem de Cristo crucificado], as pessoas riam e eu deixei ele ali crucificado um tempo “enoooorme”. O Hugo Rodas quando viu o espetáculo em Brasília veio chorando para mim, pois ele é o próprio expatriado, ele é o cara que não voltou. Ele teve uma identificação com o Johan, com a estória. Aí ele disse: “posso te dizer uma coisa? Naquela hora do Cristo fica, não tenha pressa de terminar, pois ali você vai botar o dedo na ferida”. Então eu ouço as pessoas muito, experimento. Mas já me disseram, quando eu falo do paraíso e de Adão e Eva, eu coloco a manga no lugar da maçã. Me disseram que manga era das Índias e não tinha ainda, mas eu gosto de falar manga como o Fo. Eu já tentei falar abacaxi, outras frutas nativas, mas não dá certo. Um outro cara disse, um historiador, que ainda não existiam canoas como eu falo, um tronco comprido cavado no meio, eram folhas amarradas, mas eu tentei explicar que eram folhas amarradas e não funcionou. O narrador não tem o compromisso com a verdade, ele tem um compromisso com a estória, e uma estória bem contada se torna verdade. Então ele não tem a obrigação de saber que aquilo não era um tronco de árvore, que eram folhas colocadas uma em cima da outra. Eu parto deste princípio: o Johan Padan é um personagem fictício, mas que certamente já existiu na pele de vários outros. Ele sofre esta transformação de alma, de quando ele tem a oportunidade de voltar para a Itália e não volta. Melize – Eu queria que você falasse um pouco da construção do Johan Padan, pois há uma diferença nos monólogos do Fo na relação persona-personagem. Em alguns textos, como em “Il Primo Miracolo”, é o intérprete o tempo inteiro no contato com o público e ele passa por personagens, cita frases que outros personagens dizem (22 personagens no caso da montagem do Birindelli) e em outros, como em “A descoberta das Américas”, é um personagem que narra e interpreta os outros. Julio – Hoje temos a dificuldade de identificar o que é narrador e o que é personagem no espetáculo, pois eu criei os códigos, as máscaras dos personagens. Então tem a máscara do Johan Padan bem, para cima e dele derrotado. Então tem a cara dele esgarçada, que é a cara dele. Existe sempre a máscara e a contramáscara. A cara de qualquer índio é esta [demonstra]. A de qualquer espanhol é esta [demonstra], que vem da postura do capitão da commedia dell’arte e tal, mas

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eu tenho também cavalo, alga marinha, tempestade, lua, coisas que são personagens da estória e que se materializam ali. Um ator para bem narrar lança mão não só da palavra com tons e variações, mas também de formas físicas e ritmo, e essas formas servem para ilustrar a ausência de outras informações. Tem partes que não dá para modificar as máscaras, pois a passagem de um para outro é muito rápida. Eu não vi o “Il Primo Miracolo”, mas eu já não identifico no meu espetáculo esta quebra do narrador. Ele está todo o tempo mesclado neste Johan Padan e eu fazendo o índio, sou o Julio quem faz. Não me sinto Johan Padan fazendo o índio. Claro, tem horas que o Johan faz só a máscara indicativa do índio para dizer que o índio está na frente dele. Não consigo identificar claramente estas diferenças. O que eu posso dizer é que necessito de muita concentração para percorrer estas partituras fisicas, sonoras e verbais. Então, para mim, existe o ator em cena passando por estes códigos. Melize – Você vê elementos da prática do Fo que sobrevivem nos textos dele, e que por sua vez, permanecem em “A descoberta das Américas”? Julio – O Fo é autor dos textos dele e quando ele faz, ele faz de uma maneira Fodiana. O que eu preservo e que ele sugere fazendo e escreve, é abrir mão de qualquer aparato cênico, trilha sonora. Se tem de cantar ele canta e para mim isto é o ideal. Eu queria fazer isto. Eu queria pegar um avião só com uma bolsa e saltar sem passar pela esteira [risos]. Eu só levo a rede que eu uso no final, mas que eu também posso fazer sem. Eu tenho um plano B. Eu posso viajar sozinho, entendeu? Já fiz isso muito. Quando eu tenho condições de levar um técnico, eu levo para operar o pouco de iluminação que tem, mas eu sou o próprio produtor da minha empresa. Eu sou ator, produtor, e nesse espetáculo eu sou de certa forma autor também. Eu só vi o espetáculo feito pelo Fo este ano em vídeo, pois eu não queria ver mesmo. É “bonzão”, mas é outra coisa. Ele não valoriza coisas que eu valorizo e ele valoriza coisas que eu não valorizo. É a mesma estória, mas que passa por meandros e desdobramentos diferentes. O meu espetáculo é fruto da repetição da estória diversas vezes, da descoberta de coisas durante o processo. Na medida que eu ia esquecendo de coisas, eu ia substituindo, melhorando, ou então, tinham os momentos que eu gostava muito, mas tive que cortar. Tinha uma piada boa, por exemplo, onde tinha um índio sem as orelhas e sem o nariz e aí eu pergunto o por quê. Eles dizem que ele não queria revelar onde estava o ouro, fingia que não ouvia, e eu digo: “as orelhas tudo bem, mas por que cortar o nariz?” E eles dizem: “Ah, mas aí foi culpa dele que virou a cara bem na hora!” [risos]. Mas isto não tinha importância. Tem coisas que a Alessandra ainda diz que tem que sair, mas tem outras coisas que eu incluí e que eu acho que tem que ficar, e aos poucos eu vou me livrando das bengalas. Ás vezes, o público passa a não responder mais como era. Não ri ou não faz o silêncio que tem que fazer. Aí você tem que fazer o caminho de volta e ver o por quê. Às vezes, é um detalhe de uma pausa, um ritmo, uma quebra entre um texto e outro. Melize – E até onde vai a liberdade no contato com o público? Se o público falar com você ou interferir mais fisicamente, você ignora? Julio – Ontem você viu que tinha uma mulher falando no celular na primeira fila e eu ignorei, porque aquilo é insuportável, né? Pois as pessoas não tem noção de quanto isto atrapalha, porque o meu espetáculo é puro ritmo. É que nem você interromper

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uma orquestra ou um ballet. Você cai no vazio, no sentido de você ter que recuperar aquilo. Se acontece alguma coisa, eu nunca paro, eu olho para o outro lado mesmo, pois eu tenho que seguir o meu fluxo em respeito aos outros. O público às vezes fala alguma coisa junto, pois já sabe o que eu vou dizer, mas eu não paro para comentar. Tem partes que são muito importantes que as pessoas entendam o que está sendo dito, por exemplo: “o mais difícil foi explicar que o terceiro da Santíssima Trindade era um ‘POMB...’”. Eu não falava claro, aí as pessoas diziam: “o que?” e eu respondia: “UM POMBO”. O que é importante ser entendido, tem que ser entendido logo. Então, eu me esmero para que o público entenda, e o que não é importante, eu não repito. Se o cara está rindo e eu acho que a risada não é importante ali, eu não dou tempo para ele rir. Mas se eu acho que é, eu dou um tempo. Eu transformo o público em índio, em espanhol, e aquela coisa de “esquerda, direita e esquerda, direita”, da chuva, aquilo tudo não tem no texto, é meu. Melize – E você possui um treinamento permanente ou o seu treinamento se dá durante o processo de montagem? Julio – Eu desenvolvi um processo de treinamento físico durante dez anos até eu voltar para o Brasil, que englobava trabalho vocal, aeróbico, bastão, bolas, trabalhos que criaram uma rotina de treinamento, que me deram uma base e que modificou meu corpo [trabalhou também com o Potlach na Itália]. Depois de 1994, eu não treinei mais. Para este trabalho que se revela muito com uma potência física, eu tive que voltar a trabalhar, pois eu tive algumas contusões. Tive que cancelar espetáculos, até. Faço Pilates, alongamento também, e nestas três horas que antecedem ao espetáculo, eu faço aquecimento de forma global. Tudo o que eu faço é técnica adquirida ao longo do tempo e tudo que eu teorizo vem da prática e da experimentação. Eu não faço nenhum trabalho vocal e tudo o que eu sei é da memória física, do que eu trabalho de vez em quando e permanece. Eu pratico no espetáculo, pois eu já estou a três anos com ele. Quando eu perdia a voz, eu tentei descobrir o que estava fazendo isto, então, eu passei a apoiar a voz em outros lugares e a trabalhar a respiração, mas não pratico fora disto. O que eu levo é a disciplina sempre. Eu sou que nem aluno que não estuda, mas entende a aula e faz o dever de casa [risos]. Não sou um bom exemplo como estudioso de técnicas e treinamentos. Melize – Para você existem elementos diferentes, neste tipo de trabalho solo, no qual o ator está no centro do processo e que tem uma linha física mais enfática, dos outros espetáculos de um teatro mais tradicional, calcado mais na palavra? Julio – Sem dúvida. Este espetáculo está mais associado à música e a dança e é muito complicado as interferências, pois ele tem um ritmo diferente do teatro mais tradicional. Eu faço uma narrativa que até as pausas fazem parte deste tipo de fluxo energético. Eu estou o tempo inteiro fazendo as ações físicas e mesmo quando eu digo “estou em um estado psicofísico lamentável”, depois que ele costura todos aqueles índios, eu estou com o meu corpo todo ali embuído naquela ação física. Neste sentido, pouco tem a ver com o teatro tradicional ou com o teatro que se pode improvisar o tempo todo, onde se pára e fala com a platéia. Se eu erro, a platéia vê que eu errei mesmo, pois eu perco a energia. Em nenhum momento eu relaxo e fico o Julio ali.

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ANEXO

Os anexos deste trabalho estão constituídos pelos textos inéditos escritos pela diretora do

espetáculo A descoberta das Américas, a italiana Alessandra Vannucci, enviados a autora

deste trabalho via e-mail; pelos trechos de críticas de jornais presentes no site oficial do

espetáculo Il Primo Miracolo de Roberto Birindelli e pelas imagens de críticas de jornais

sobre o espetáculo A descoberta das Américas do Núcleo de Produção Leões de Circo

Pequenos Empreendimentos.

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ANEXO I Textos inéditos escritos e enviados via e-mail pela autora Alessandra Vannucci, diretora de A descoberta das Américas , do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos , em Julho de 2007. ALESSANDRA VANNUCCI, é dramaturga e diretora italiana, formada pela Universidade de Bolonha, Mestre em teatro pela Uni-Rio e Doutora em Letras pela PUC – Rio. Formou-se na Itália como assistente de direção de Federico Tiezzi, Luca Ronconi, Benno Besson e Pippo Delbono. No Brasil, foi assistente de Augusto Boal em 1996. Traduziu e dirigiu obras de Dario Fo, como: A descoberta das Américas (2004-2006) e Fábula Obscena (2002). No Brasil ainda dirigiu A Morte da Sacerdotisa, Dürenmatt (2000); Ludwig e as irmãs, de Thomas Bernhardt (direção com Maurício Parroni, 2001); Ruzante, de Angelo Beolco (direção com Sidnei Cruz, 2002). Traduziu e adaptou O Castiçal, de Giordano Bruno (Teatro Carlos Gomes, direção Amir Addad, 2003). Em 2004 escreveu Partenze, montado pelo Teatro Cargo em Genova, Itália (direção de Laura Sicignano). Em 2005, para a mesma companhia, escreveu Sudore; escreveu e dirigiu a Ópera Infantil I Magi (Teatro Dell’opera Carlo Felice, Genova). Em 2006, escreveu Mercenari Spa (Teatro Stabile, Genova) e Vola, Colomba! (Ex-Siderúrgica Cornigliano). Dirigiu também em 2006, Pocilga, de Pier Paolo Pasolini. Hoje Morando na Itália, colabora com várias companhias e participa do Teatro Cargo em Genova. No Brasil, faz parte do Núcleo de Produção Leões de Circo Pequenos Empreendimentos. A descoberta das Américas

Por incrível que pareça, nos últimos anos tenho vivido de teatro. Participo como autora e diretora do trabalho coletivo de duas companhias: o Teatro Cargo, em Gênova, e os Leões de Circo, no Rio de Janeiro. Incrível porque, pela evidência dos dados estatísticos, o teatro é um bem de consumo espantosamente precário e elitário. Não se sustenta sobre as pernas: precisa de mecenas, públicos ou particulares. Teatro é um luxo que se mantém fora da lógica do mercado: mas o que há de mais sedutor do que ser alternativos e sofisticados ao mesmo tempo? Meu desafio primeiro, de operária numa arte tão caprichadamente inútil como a nossa (se comparada com a arte de um padeiro ou de qualquer outro artesão), tem sido provar a necessidade do ofício. Ora, mesmo que o teatro seja arte inútil ou até morta, como dizem a "teatralidade", a percepção de si mesmo em alguma situação, como num espelho imaginário, é prerrogativa humana por excelência. O teatro é o que faz o homem ser outro dos animais. Porque – como provocou uma vez Augusto Boal – o homem caça igualzinho ao leão, sim, mas o leão não costuma se retratar enquanto caça: coisa que o homem faz desde a idade da pedra. Aí está, antes da invenção do fogo, a descoberta da teatralidade como princípio fundador da comunicação humana. Por isso, a elite dos espectadores teatrais é mais uma elite intelectual do que econômica. Uma elite que busca o encontro direto com o ator em carne, nervos, sangue e ossos, no território livre da imaginação e da emoção. Como escreveu Luis

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Jouvet, o teatro é uma "idéia espiritual que se encarna no ser vivo". Teatro tem a ver com liturgia. E não há muito espetáculo na liturgia de qualquer religião que se trate? Bem como num ritual místico, no teatro acontecem encontros impossíveis e se dá vida a seres inexistentes, "comungando" grandes emoções através de "gestos" mínimos. Só que o teatro (para mim) é leigo e mundano: nada de transcendência ou mistério. Teatro é arte: coisa do humano, comunicação entre experiências humanas. Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores, instrumentos musicais etc.) A ausência de outros recursos faz com que o ator se engenhe. Inventar e se reinventar, treinar truques para cativar a platéia, emocionar, mentir: esta é a arte do ator. A cada noite, uma platéia, um espetáculo único. Por não ser mecanicamente reproduzível, mas só em presença do ser humano ator e do ser humano espectador, o teatro vai ficar para sempre fora da lógica do consumo de massa. A partir do princípio de que o teatro, enquanto artesanato, deve primar por sua qualidade de manufatura, bem como contar com uma estrutura que viabilize sua comercialização, nós dos Leões de Circo traçamos uma estratégia estética e produtiva que faça de nossa arte um pequeno empreendimento auto-sustentável. Somos mecenas e operários do nosso trabalho. Desde 2002, traduzimos e encenamos peças que expõem o laço poético e humano entre a cultura mediterrânea e o Brasil de hoje. Os que mais marcaram foram Ruzante! de Angelo Beolco (que empurrava o público pelas ruelas atrás da Praça Quinze até a Rua do Mercado) e A descoberta das Américas, de Dario Fo, com a qual viajamos pelo Nordeste, regressamos ao Rio em 2005, ganhamos um importante Prêmio e partimos novamente pelos Festivais Brasil afora. Temos tido parceiros valiosos, como a RioArte e o Istituto Italiano de Cultura, com os quais realizamos em 2004 o ciclo de leituras “Brasil Mediterrâneo”: onze comédias da dramaturgia italiana e latina, seja erudita ou popular, especialmente traduzidas (como O castiçal, de Giordano Bruno e o Diálogo de Salomão e Marcolfo, de anônimo). Andarilhos, pícaros, bufões, rústicos e histriões são protagonistas de um mundo virado pelo avesso e visto com o olhar satírico de quem sobrevive só para contar a história. A adrenalina cômica deste teatro da resistência, produto de civilizações famintas, aparecia quanto mais oportuna numa época como a nossa, em que, mesmo na aparente liberdade propiciada pela sociedade de consumo, os mecanismos de exclusão permanecem os mesmos. Neste fim de 2006, enquanto a Descoberta volta ao Rio de Janeiro (na Caixa Cultural, de 11 a 22 de outubro), apresentamos nosso novo “pequeno empreendimento” no Teatro Planetário (11 de outubro a 9 de novembro, h.21): Pocilga, de Pier Paolo Pasolini. Trata-se da estréia nos palcos brasileiros da obra teatral de um dos maiores intelectuais do século XX, de imensa produção poética, cuja incidência no panorama da cultura brasileira segue contudo reduzida à fama de cineasta “maldito”. Pocilga é, segundo Pasolini, “a trágica história de um pecador que faz do pecado a sua beatificação, a desesperada história de um amor impossível com seu desesperado fim, o terrível embate entre o velho capitalismo industrial e o novo capitalismo multinacional, que termina com a condenação de ambos”. Contado assim, só poderia dar um tédio. Só que Pasolini monta a história como um thriller. O segredo, vício do jovem Julian (o pecador) é descoberto por um espião e negociado

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no duelo mortal entre dois industriais (um deles é o pai de Julian) os quais, ao invés de se destruir, resolvem fundir suas indústrias e aumentar o capital. O humor negro faz da peça, que começa com um aniversário, anuncia mas não festeja um casamento e termina com um funeral, uma sequência hilária de metáforas trágicas. Escrita em versos, sugere à encenação uma estética sublime, porém emocionante, como uma tragédia de Sófocles no teatro de revista. Leve, surreal, intensa, divertida. Por que montar uma desconhecida peça deste ambíguo e maldito poeta, hoje, no Brasil? Não se trataria então de um luxo que poucos poderão compreender? Antes de morrer em 1975, esfacelado pela barbárie de um brutal assassinato, Pasolini entregou-se com apetite renascentista ao cinema, ao teatro, à pintura, à militância política e à polêmica intelectual. Porém, ao contrário dos artistas da Renascença, tratou de medir distância abismal dos poderosos. Pactuou sempre com os simples, os livres de espírito, os pobres e os primitivos. Não encontrou na Itália sistema, partido ou ideologia que encampasse sua utopia de felicidade agrária, pré-capitalista, permissiva e anti-progressista. Permaneceu solitário, projetando sua utopia no “imundo e fabuloso sol” do Terceiro Mundo, da África, da Índia, do Brasil: lugares do espírito que julgava (ainda) não contaminados pelo vírus do bem-estar consumista. Se o radicalismo desse pensamento tinha futuro é questão a ser em boa hora discutida. Hoje, quando o debate cultural gagueja na esterilidade de um mercado dominado pela compra-venda e tudo se passa como se a cultura autêntica fosse inacessível ao grande público, voltar ao ambíguo Pasolini tem então o sentido de um resgate da complexidade. O exercício da emoção na arte, como veículo de idéias. O fato é que, eu acho, o estado atual da cultura pede a injeção de adrenalina que o vulcão Pasolini pode ministrar.

DDaa ddii rreeççããoo

Respeitável público... hoje a noite e aqui nesta praça vocês, meus senhores, minhas damas, verão uma comédia narrada por um ator só, numa roda. Verão uma trama, uma teia, uma textura, uma barafunda de tramóias e de heróicas aventuras. Esta comédia não foi escrita direito, não foi traduzida com respeito, não foi ensaiada pra ter tudo no jeito. A gente pensa o seguinte: melhor que fazer a comédia certinha, vamos ver se dá para contar uma história. A história poderia ser bem daqui, da terra. Acontece que um zé ninguém chamado Johan, malandro, andarilho e fanfarrão, embarca por engano numa das Caravelas de Cristovão Colombo após ter a namorada bruxa fritada pela Inquisição. No Novo Mundo, o nosso herói sobrevive a um naufrágio, testemunha a matança, aprende a língua dos nativos, é preso, escravizado e quase engolido pelos índios antropófagos. Passando-se por “santíssimo Filho da Lua”, arma e guia um exército de libertação indígena que acaba caçando os invasores. Mais ou menos é isso. Johan é bem do povão: seus antecessores são os zanni (camponês que se vira na cidade grande, como Arlequim na commedia dell’arte), os pícaros (viajante mata-mouros, como Lazarillo de Tormes) e os bufões contadores de histórias da tradição oral. Sua roupa maltrapilha e suas astúcias para nada fazer são marcas cômicas do personagem, sua corporeidade abusada é marca cômica do contador – arrotos,

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blasfemias, caretas e gargalhadas caem como tapas na cara do espectador indiferente ou embasbacado. Aqui diante dos vossos olhos, um só ator vai ser o velho Johan (que sabe dos fatos, mas pode mentir), o contador de história (que sabe mais do que a platéia) e todos os personagens (que sabem menos do que a platéia). Como é que pode? Julio é um monstro? Una bestia da palcoscenico? É sim. O cara tem um monte de truques para cativar o público. Cá para nós, cuidado para que ele não enfie a mão na carteira numa dessas! Mas vocês não vão resistir, eu sei, vão entrar no jogo dele, vão até ajudar! Talvez os senhores não saibam, mas já conhecem a brincadeira. A narração, forma radical de oralidade, depende da presença física e da cumplicidade interativa entre contador e ouvintes. Contando e apresentando os personagens com recursos gestuais, mímicos e linguísticos, o contador estabelece o pacto de cumplicidade. Sua atuação não é identificada nem estranhada: é pingue-pongue. É como se o autor da história estivesse em cena atuando o que lhe vem à cabeça. Coisas são dadas, outras são aludidas, outras são inventadas naquela contingência e para aquela platéia. O critério de literalidade (ao texto, à direção, às marcas) decai diante da urgência da performance. Aqui o absurdo capricho histriônico do ator Julio Adrião é precioso. Vocês, platéia, vão fazer suas vontades, vão devolver a bola, vão captar seus improvisos e decodificar seus hieroglíficos gestuais com uma competência de peritos teatrais. Vocês vão ver. Os mil truques do ator são para isso: achar o jeito, cada vez diferente, de jogar com aquela platéia e fazer aquela platéia jogar. Jogar como? Adivinhando de que forma a história irá acontecer naquele dia. Como assim? Mas a história não foi escrita por Dario Fo? Não, não, não: ela foi contada por Dario em gromelô (uma língua híbrida, inventada pelos cômicos da Arte no século XVI) num aperto memorável (os “festejos” em Sevilha do quinto centenário da descoberta da América). Mais tarde foi transcrita e traduzida para o italiano. Depois foi contada por Julio em português, só para mim, e finalmente foi escrita. Ora, então: o que tem a ver com direção neste espetáculo? Tem que eu fiquei observando, escutando e presenciando como um espectador muito exigente. Quebrando as muletas do ator, impedindo-lhe de cristalizar o fluxo da narração em marcas. Nem precisou comentar muito: eu estava lá de espelho. E o teatro é isso: um espelho que determina a imaginação perceptiva do ator. Em grego teatron é isso: o lugar onde se é observado. Digo mais: o teatro, enquanto espelho imaginário, é a prerogativa humana por excelência: a percepção de si mesmo em alguma situação. O homem primitivo retrata a si mesmo enquanto caça, o que não faz o leão. O espelho é a terceira dimensão: ali se vê o que se é, o que não se é, o que se pode vir a ser. Por isso, sem retórica, o espectador é indispensável ao jogo. Por isso, sem moralismo, o ator é histrião. Quanto mais exibido e carente, melhor. Teatro é a visão da visão do outro. Parece com pingue-pongue, não è? Quem gostar, por favor, seja generoso com as palmas. DDaa eenncceennaaççããoo

Munido de seu arsenal de truques, dominando uma linguagem atorial que é quanto mais autêntica, mais ‘nossa’ ao passo que é mais própria e peculiar ao indivíduo-

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narrador, Julio Adrião enfrenta o público em roda, reintegrando a habilidade satírica desenvolvida ao longo dos 8 anos de trabalho com a Cia. do Público-RJ - na grande tradição jogralesca da arte dos histriões. A dimensão pública desta arte, cuja relação frontal e improvisada com a platéia remete mais para a instalação do que para a representação, exige a presença integral do ator-narrador que, a partir de seu núcleo experiencial, deve produzir de imediato sua performance. A narração, enquanto forma teatral radicalmente oral apoiando-se na concreta presença do ator diante de seu público, por outro lado, estimula uma assistência interativa pois ao espectador cabe a tarefa de ‘executar’ a obra que está sendo performada, de interpretar o evento comunicativo como sujeito competente na decodificação das máscaras linguísticas e na montagem dos signos. A ‘literalidade’, como critério de fidelidade textual ao autor, decai diante da ‘urgência’, como objetivo de cativar e segurar o público junto ao narrador na viagem ao longo de todos os possíveis desenvolvimentos da história. Esta, construída, como qualquer estrutura dramática, em ‘climax’ (crescimento) da tensão até a ‘catástrofe’ (reviravolta que antecede a conclusão-resolução), apresenta-se porém disponível para inúmeras variáveis, improvisadas naquela ou em outras ocasiões – é o arsenal de truques para o ator acertar o jeito de ‘jogar’ com aquela platéia, intuindo como a história irá acontecer naquele dia.

O ator redescobre assim, alguns dos rudimentos do jogo cômico, como o riporto (it. para triangulação) com que os cômicos da Arte apelavam à cumplicidade da platéia, ingênua pelo truque da ignorância simplória da máscara, que tudo estranha e se surpreende de qualquer coisa. No Johan Padan, onde um só ator interpreta ao mesmo tempo o narrador da história (que sabe mais que todos), o protagonista-narrador (que diz saber de tudo, mas poderia mentir) e seus personagens (que sabem menos do que a platéia e nada ainda um do outro), a triangulação estabelece desde o começo um pacto de cumplicidade entre ator-narrador e público, pois através das alusões narrativas, a platéia consegue antecipar o que vai acontecer ao protagonista contra sua vontade e surpreendendo suas previsões – nisso o efeito cômico. Johan, figura teatralmente vivíssima por suas ascendências entre zanni (literalmente um zé, como Arlequim: um rude camponês perdido na grande cidade e pior, no imenso oceano) e pícaro (um andarilho, como Lazarillo de Tormes ou o capitão matamouros) traz em sua memória cênica a componente aventurosa da viagem e da conquista, porém combinando a autoridade conferida pela experiência de viajante com a aparência maltrapilha do servo, com a indolência fanfarrã do malandro e com a excessiva corporalidade carnavalesca do bufão, sempre pronto, em caso de indiferença do público, à subversão do pacto de cumplicidade e a extrapolação fisiológica – arrotos, blasfêmias, gargalhadas histéricas e metafóricos tapas na cara no espectador embasbacado.

Aproveitando-se de um amplo acervo de jogos dramáticos, de regras da Arte da comédia e da narração, o ator conduz um processo onde cada ator/narrador se apropria do texto da estória que deseja contar, tornando-se aos poucos o autor das palavras que contam a estória, criando assim uma dramaturgia própria. Num segundo momento, as dramaturgias individuais serão desenvolvidas, abandonando por completo a literalidade do texto escrito para serem narradas em presença interativa entre o narrador e o público. Entende-se esta ‘dramaturgia individual’ como um desenvolvimento tanto da oralidade quanto da fisicalização do narrador.

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Intervista libri

Libro: Uma amizade revelada. Corrispondenza tra dom Pedro II e Ristori. Artisti viaggianti, cioè arte per tradizione nomade ne fa portatori di idee alla confluenza delle latitudini e catalizzatori delle proiezioni collettive. 150 anni di scambi d’idee e espatri teatrali tra Brasile e Italia. Proiezione invertite tra Brasil-colonia-periferia e Italia-centro: oggi non c’è più centro ma tutte periferie, tradizioni localissime che diventano globali e molte più idee viaggianti in cui riconoscersi. Una idea brasiliana in cui mi riconosco è la democrazia partecipativa, che è all’origine del sogno di un mondo migliore possibile nei Forum Sociali di Porto Alegre e che in molti municipi brasiliani viene realizzata con il teatro-forum. L’idea è che qualsiasi desiderio può diventare legge. Come? Con la pazienza dell’impegno e il coraggio d’essere felici. Sembra una folle idea tutta edonista e brasiliana, invece quando ne parlavo con Boal lui m’ha fatto notare che in verità la democrazia senza deleghe è un’idea greca. Un’idea “nostra” che ha attraversato l’oceano una volta o mille volte. Io ho passato anni a scoprire nodi e stringere lacci tra cultura mediterranea e cultura brasiliana. Un po’ per riconoscermi, come italocarioca che sono, al di là del trio di comunione un po’ restrittivo donne-macchine-futebol; un po’ per contribuire al processo culturale che è anche eccessivamente calibrato in Brasile sull’asse capitalista, borghese, “nordico” e nordamericano e protestante. Invece per me il Brasile è un paese anarchico, popolare, meridionale, latino e cattolico al miglior modo cioé magico, scaramantico, liturgico. Il mio teatro negli ultimi anni ha attinto da un pannello bruegeliano di picari astuti ed intellettuali vagabondi eretici ed istrionici come Ruzante, come Giordano Bruno, come Bertoldo che affronta il saggio Salomone. Il nostro umanesimo nella sua espressione antiaccademica e contro la cultura dominante, ancora è un’arma critica affilatissima e crudele, anche nelle sue punte di più accesa comicità, perché i meccanismi di esclusione sono sempre gli stessi. Il riso qui contagia e non fa catarsi, anzi al contrario sovverte convinzioni sociali rassicuranti. È una bella iniezioni di adrenalina scoprire quanto sia sottile la nostra patina di civiltà. Ultimo spettacolo: la Storia vista dal basso, raccontata da un poveraccio in fuga perenne, uno zanni che sopravvive all’Inquisizione, ai cannibali e ai soldati spagnoli solo per raccontar la storia, però la sua e a suo modo. A descoberta das Americas. Dario Fo. Che butta la Storia a gambe all’aria. Un solo attore dotato di una presenza viscerale e insieme molto tecnica, in uno spazio nel centro di Rio, una vecchia casa coloniale svuotata dal fuoco, solo quattro mura, senza bagni, senza scene senza costumi. Sedie imprestate e in vendita. È una sfida che abbiamo accettato un po’ per arte un po’ per necessità, cioè per totale indigenza. Facciamo parte di una cooperativa di dieci gruppi teatrali che condividono tutto. Dai riflettori alle stoffe agli attori alle idee. Il teatro è un’arte miserabile. Sorge dall’economia della fame. L’attore non ha nient’altro da vendere oltre al proprio corpo e voce. L’assenza di strumenti gli fa aguzzar l’ingegno ed accettare sfide. Perciò cerca trucchi per cattivare la platea almeno fino alla fine della storia. Trucchi, lazzi. L’attore della Descoberta fa tutto lui: la regina Isabella, naufraghi, soldati spagnoli, diverse tribù indigene, animali fiori pesci e alberi, battaglie e tempeste. In fondo il teatro è tutto qui. La sorpresa è che questo spettacolo prodotto con 1.000 euro e molto sudore ha vinto il Premio Shell, miglior attore per il 2005. Non perché abbiamo così vinto la sfida, in realtà il riconoscimento della stampa in un mondo molto fashon come quello carioca cambia tutto, questo è vero, ma noi avevamo un pubblico affezionato e molto folto già dai tempi del Ruzante, nostro primo spettacolo nel 2002. Mi sono sorpresa

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perché il massimo riconoscimento della critica brasiliana ha saputo cogliere il senso artistico ed umano della nostra sfida, e l’ha premiata.

Un’altra idea latino-brasiliana è gentilezza genera gentilezza. È una specie di fede laica che contrasta l’interpretazione protestante dell’amore di Cristo come sacrificio necessario al premio. Fede nell’amore come energia che muove il comportamento minimo, endorfina amorosa alla portata di tutti. Un po’ edonista ma funziona. Rio è capitale mondiale della gentilezza.

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ANEXO II

TRECHOS DE CRÍTICAS

ESPETÁCULO: IL PRIMO MIRACOLO

FONTE: http/www.ilprimomiracolo.com.br

“PORTO VERÃO ALEGRE 2004 - Assim como Tangos e Tragédias, Se meu ponto G falasse, O marido do dr. Pompeu e Bailei na curva, o espetáculo de Roberto Birindelli está se tornando patrimônio cultural da cidade de Porto Alegre. Não sem motivos. Por volta de uma hora no palco, Birindelli se transforma em dezenas de personagens para contar a história do primeiro milagre do menino Jesus. O ator tem a habilidade de aliar, junto a sua excelente narrativa oral – texto do ‘Nobel’ Dario Fo – uma invejável inventividade. Com total domínio da platéia e ótima projeção corporal, Birindelli tem a façanha de deixar-nos atentos, num monólogo praticamente sem nenhum objeto em cena, multiplicando-se num piscar de olhos. Um espetáculo divertido, diferente do teatrão de sempre.” SITE ARGUMENTO 22/01/2004 Paulo Ricardo Kralik Angelini "Sem qualquer artifício de luz ou maquiagem, sem cenários, sem trilha sonora para sublinhar climas e emoções, Birindelli convence em sua história. Melhor ainda: aparentemente, nem faz força para isso (...) fazendo teatro puro, consegue uma total cumplicidade com a platéia. Não é pouca coisa, não. (...) Um pequeno e simpático mirácolo em sua despretensão." O GLOBO - Rio de Janeiro 24/08/2003 Jefferson Lessa “Roberto Birindelli faz valer o que há de mais nobre no teatro popular (...) com uma generosa cumplicidade com a platéia, ‘Il Primo Mirácolo’ promove a mais emocionante defesa da fé verdadeira desde o ‘Tartufo’ de Molière. (...) Não importam tanto os recursos ou o endereço do espetáculo: será sempre pleno o palco em que pisam atores como Roberto Birindelli.” FOLHA DE SÃO PAULO 20/07/2003 sergio salvia coelho - crítico da Folha "Em IL PRIMO MIRÁCOLO, o ator Roberto Birindelli interpreta os 21 personagens da trama com técnica irretocável. (...) A cena tem total singeleza como prega o autor: um ator, luz fixa, nenhum objeto cênico. Só o corpo do qual se tiram sons, movimentos e palavras." GAZETA MERCANTIL - S. Paulo

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13/07/2003 Maria Lúcia Candeias “Com seu projeto de circulação, a Cia. Stravaganza conseguiu montar um panorama que representa bem a produção gaúcha. Momento marcante foi a apresentação do ator Roberto Birindelli, que seduziu a platéia mostrando a precisão de movimentos no espetáculo Il Primo Miracolo (...)” JORNAL O LIBERAL - Belém 19/11/2002 Cláudio Marinho "Aqui o elo entre a imaginação do ator e a imaginação virtual do espectador se efetua exclusivamente na transformação do corpo em objeto mágico. Tarefa que Birindelli, sob orientação de Maria Helena Lopes, cumpre com grande êxito em uma performace sensível e criativa: revela-se um corpo que fala na sua totalidade (...)" REVISTA A CRÍTICA 01/01/1999 Marta Isaacsson - Doutora em Estudos Teatrais. “Mais de 200 pessoas foram ao espaço cultural Babilônia, no centro de Buenos Aires, para assistir a O Primeiro Milagre do Menino Jesus na noite de sexta-feira, dia 8 de março. No final, aplausos entusiásticos para o diretor e ator Roberto Birindelli, que dispensa iluminação, figurino, palco italiano, e cenário para contar a infância de Jesus." ZERO HORA 16/03/1996 "Sin perder en ningún momento el domínio total de la escena incluyendo en esto al público, con el que broméo y al que incluyó en su actución Birindelli realizó una interpretación impecable." LA MAGA 16/03/1996 "O texto mistura o profano e o religioso numa crítica bem humorada e termina por questionar as relações sociais, o racismo e a possibilidade de resistir-se à opressão. Isto através do fino humor de Dario Fo e do trabalho primoroso e detalhista de Birindelli." Crítica Teatral 01/01/1996 Eliane Lisbôa "‘Policromia do gestual para um conto eterno.’ (...) O Primeiro Milagre (...) exercita o retorno às origens do gesto teatral com toda a intensidade possível. (...) Entre este homem que se expõe, se divide e se multiplica, e os circundantes, que passam a emoldurar seu quadro, o pacto é selado com sorrisos de quem divide segredos. E com os olhos da infância, de quem pode viajar sem sair do lugar."

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CORREIO DO POVO 18/09/1993 Maristela Bairros Schmidt

"Birindelli mostra capacidade excepcional de domínio sonoro, de expressão corporal, de inventividade, atendendo plenamente ao requerido pelo texto italiano. (...) A reação do público, primeiro de curiosidade, depois de empatia, e enfim de franca adesão, mostram o quanto Roberto acertou enquanto diretor e intérprete no seu trabalho." JORNAL DO COMÉRCIO 22/07/1993 Antônio Hohlfeldt

“(...)Mas o público que assistiu a ‘O Primeiro Milagre do Menino Jesus’, por exemplo, não só saiu elogiando como voltou à Sessão Maldita uma, duas, três vezes (é um caso raro de peça cult em Porto Alegre)." ZERO HORA 03/03/1993 Cristina Gustkoski

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ANEXO III

FIGURAS 29, 30, 31 - CRÍTICAS DE JORNAIS SOBRE O ESPETÁCULO A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS, DO NÚCLEO DE PRODUÇÃO LEÕES DE CIRCO PEQUENOS EMPREENDIMENTOS

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Fig. 29

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Fig. 30

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Fig. 31

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