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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO - PPGE MESTRADO EM EDUCAÇÃO ADRIANA APARECIDA GANZER “EU COMEÇAVA A OLHAR UMA COISA QUE ME INTERESSAVA E JÁ TINHA QUE OLHAR OUTRA”: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO DIALÓGICA ENTRE O MUSEU DE ARTE E A CRIANÇA Criciúma, dezembro de 2007.

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  • UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO -

    PPGE

    MESTRADO EM EDUCAÇÃO

    ADRIANA APARECIDA GANZER

    “EU COMEÇAVA A OLHAR UMA COISA QUE ME INTERESSAVA E JÁ TINHA QUE OLHAR OUTRA”: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO DIALÓGICA

    ENTRE O MUSEU DE ARTE E A CRIANÇA

    Criciúma, dezembro de 2007.

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  • ADRIANA APARECIDA GANZER

    “EU COMEÇAVA A OLHAR UMA COISA QUE ME INTERESSAVA E JÁ TINHA QUE OLHAR OUTRA”: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO DIALÓGICA

    ENTRE O MUSEU DE ARTE E A CRIANÇA

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Isabel Ferraz Pereira Leite.

    Criciúma, dezembro de 2007.

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  • ADRIANA APARECIDA GANZER

    “EU COMEÇAVA A OLHAR UMA COISA QUE ME INTERESSAVA E JÁ TINHA QUE OLHAR OUTRA”: REFLETINDO SOBRE A RELAÇÃO DIALÓGICA

    ENTRE O MUSEU DE ARTE E A CRIANÇA

    Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação no curso de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC.

    Criciúma, dezembro de 2007.

    Banca Examinadora:

    Profª. Maria Isabel Ferraz Pereira Leite, Doutora em Educação – UNESCOrientadora

    Profª. Maria Cristina Carvalho, Doutora em Educação – PUC-Rio

    Prof. Gladir da Silva Cabral, Doutor em Letras – UNESC

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  • Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

    Bibliotecária: Flávia Cardoso – CRB 14/840 Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC

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    G211e Ganzer, Adriana Aparecida. “Eu começava a olhar uma coisa que me interessava e já

    tinha que olhar”: refletindo sobre a relação dialógica entre o museu de arte e a criança / Adriana Aparecida Ganzer; orientadora: Maria Isabel Ferraz Pereira Leite. -- Criciúma: Ed. do autor, 2007.

    156 f. : il. ; 30 cm.

    Dissertação (Mestrado) - Universidade do Extremo Sul Catarinense, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2007.

    1. Arte – Estudo e ensino. 2. Museus – Aspectos

    educacionais. 3. Arte na educação. 4. Artes e crianças. I. Título.

    CDD. 21ª ed. 707

  • (...) O menino era ligado

    em despropósitos.Quis montar os alicerces

    de uma casa sobre orvalhos.A mãe reparou que o menino

    gostava mais do vazio do que do cheio.Falava que os vazios são maiores e até infinitos.

    Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisitoPorque gostava de carregar água na peneira

    Com o tempo descobriu que escreverseria o mesmo que carregar água na peneira.

    (...)O menino aprendeu a usar as palavras.

    Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.E começou a fazer peraltagens.

    Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase.

    Foi capaz de modificar uma tarde botando uma chuva nela.

    (...)A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.

    Você vai carregar água na peneira a vida toda.Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.

    E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

    Manoel de Barros

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  • Reconhecimentos significantes

    Jurema e Antonio. Meus pais queridos.Obrigada pelo apoio, dedicação e amor! Agradeço também por compartilharem comigo desse sonho.E mais, financiarem ele para mim... Minhas irmãs Ana Gabriela e Andressa – somos uma família e tanto. Vocês fazem a diferença! Amo muito vocês.

    Tudo começou no MARGS.Éramos parceiras de mediação e certo dia as crianças perguntaram:Ela é tua mãe? É! Ela é tua filha? É sim! E ficou sendo.Mamãe Iara, obrigada por teu carinho e incentivos.(você me indicou o caminho para conhecer a Bel)

    Bel.Orientadora e amiga tão querida.Obrigada pela tua dedicação, afeto e pelo teu entusiasmo.Você me fez perceber que era possível fazer peraltagens com as palavras!

    Cheguei em Criciúma uma semana antes do início das aulas do mestrado...No meu primeiro dia no GEDEST, meu primeiro encontro com o grupo de estudos do Walter Benjamin, eu me apresentava assim:Moro em Porto Alegre e vim para fazer o mestrado aqui.Minhas malas estão na rodoviária... Ah Silemar, meu anjo da guarda!Obrigada por dividir a tua casa comigo.Obrigada pelo carinho, conversas e trocas. Ana Claudia, Vinicius e Cláudio, minha família catarinense em 2006, esse apoio foi determinante. Ana Maria! Doçura, delicadeza e dedicação.

    Rosi, amiga do coração! Agradeço também ao Beto e ao José Vinícius.

    Mana Lenita! Delícia partilharmos assuntos museais e tantos outros! Obrigada Rafa, Davi e Atel.

    Aurélia, valeu o carinho e tantas dicas, empréstimos e diálogos!

    Andressa, obrigada pelo apoio nos dias da prova e entrevista do mestrado.

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  • Ariane, Val, Gui, Rodrigo, Ana Cristina e todos os gedestianos – boas conversas e aprendizados com meus amigos catarinenses.

    Aos professores Ademir, Bel, Benoni, Celdon e Vidalcir, meu apreço pelas leituras e o compartilhar do conhecimento.

    Aos professores da banca, Maria Cristina e Gladir, minha gratidão pela leitura atenciosa do trabalho, a boa conversa com dicas importantes no momento da qualificação e a presença nesse momento tão importante.

    Walter, obrigada pela ajuda sorridente nos assuntos burocráticos.

    Colegas da turma – foi pouco o tempo que convivemos, porém foi rico.

    Momento para agradecer às Crianças!Minhas parceiras e co-autoras da dissertação.Vocês são o máximo, vamos carregar água na peneira pela vida toda!!Estendo minha gratidão para as escolas, aos professores, às supervisoras, coordenadoras culturais, diretoras e também ao apoio dos pais.

    Aos museus investigados, obrigada.

    Para os setores educativos, valeu a compreensão.No Santander Cultural: Maria Helena, Janaína, Marcio, Roger e Daniel.Na Fundação Iberê Camargo: Mauren, Nidia, Elisa e Sandro.No MARGS, todo o meu carinho para o grupo de voluntários, em especial, a participação da Iara, Ilse, Isaíra e Beti.

    E para meus amigos gaúchos, o meu muito obrigada!Mana Ana ajuda nas configurações.

    Mana Andressa, bolos da fortuna.Iva conversas, tricôs, desabafos.

    Ana Paula e Simi, apoio.Bento cafés, chopes.

    Márcia, carinho.Dani, coragem.

    Celi, ajuda.Visa, abobrinhas.

    Flavio, conversas.Silvia, boas energias.

    Paulo, força.

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  • RESUMO

    Esta pesquisa de mestrado foi realizada com crianças do 1º. ao 6º. ano do Ensino Fundamental, em visitas ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli – MARGS e ao Santander Cultural, ambos em Porto Alegre (RS). Consiste na criação de espaços de narrativa com as crianças freqüentadoras. Traz à tona questões da arte, da educação, do museu de arte, das infâncias e da imaginação numa tessitura de conceitos e sentidos múltiplos e destaca a importância de desconstruir, reconstruir e reinventar o cotidiano, objetivando compreender mais as crianças e aprender mais com elas. O texto se propõe a descortinar, nas falas das crianças, quais são os seus conceitos de arte, como elas vêem as propostas dos setores educativos e o que elas esperam da visita aos museus de arte. Reflexões a partir de Benjamin, Vigotsky e Bakhtin, em diálogo com crianças, poetas, teóricos da arte, da infância e da educação fundamentaram a pesquisa. Como uma alternativa de aproximação das linguagens da arte com a educação e para compreender a dinâmica da visita ao espaço expositivo, esta investigação foi realizada em três etapas: a ida até as escolas antes da visita ao museu teve o objetivo de conversar assuntos atinentes às expectativas, se já conheciam um museu de arte e, como as crianças imaginavam os espaços expositivos. A segunda etapa foi durante a visita, com a intenção de perceber como elas apreciavam as obras originais e como se dava o serviço educativo. Por fim, a terceira etapa consistiu em retornar à escola para registrar os processos de produção de conhecimento sobre a arte através do estudo e pesquisa da fala das crianças. Pela especificidade metodológica, esta investigação, ao mesmo tempo em que traz a reflexão sobre os conceitos de infância, de criança e de suas relações com o museu de arte, também contempla questionamentos que dizem respeito à pesquisa realizada com crianças ao trazê-las como depoentes privilegiados.

    Palavras-chave: Arte. Infância. Museu de arte. Educação museal. Pesquisa com crianças.

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  • ABSTRACT

    This masters degree research was carried out with children from 1º. to 6º. year of Primary Education, in visits to Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli – MARGS and to Santander Cultural, both in Porto Alegre (RS). It consists of the creation of spaces of narrative with the children who use to frequent those places. It elicits questions of art, education, museum of art, of childhoods and the imagination in a texture of concepts and multiple feelings and detaches the importance to deconstruct, to reconstruct and to reinvent the daily, objectifying to understand more the children and to learn more from them. The text considers to disclose, in children’s words, which are their art concept, how they see the proposals of the educative sectors and what they expect from visiting art museums. Reflections from Benjamin, Vigotsky and Bakhtin, on dialogue with children, poets, theoreticians of the art, of childhood and the education have based the research. As an alternative of approach of the languages of the art with the education and to understand the dynamics of the visit to the expositive space, this investigation was carried out in three stages: the visit to the schools before the visit to the museum had the objective to talk about subjects relating to the expectations, if they already knew an art museum and, how the children imagined the expositive spaces. The second stage was during the visit, with the intention to perceive as they appreciated the original works of art and how the educative service works. Finally, the third stage consisted of returning to the school to register the processes of knowledge production in the art through the study and research of children’s speech. For the methodological particularity, this investigation, at the same time brings the reflection on the concepts of infancy, child and their relations with the art museum, also contemplates questionings about the research carried out with children when bringing them as privileged deponents.

    Words-key: Art. Infancy. Museum of art. Museal education. Research with children.

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  • LISTA DE IMAGENS

    F. 1 – Katie and the Bathers (livro - imagem da p. 7)..............................................52 F. 2 – Katie and the Bathers (livro - imagem da p. 8).............................................53

    F. 3 – Interior do MARGS...........................................................................................59

    F. 4 – Fachada lateral do MARGS. ............................................................................62

    F. 5 – Fachada do Santander Cultural........................................................................64

    F. 6 – Átrio do Santander Cultural..............................................................................65

    F. 7 – Dogs’ Night (livro - imagem da capa).............................................................86F. 8 – Solange e o Anjo (livro - imagem da capa)....................................................96F. 9 – Solange e o Anjo (livro - imagem da p. 27)....................................................97F. 10 – Katie and the Bathers (livro - imagem da capa)...........................................98F. 11 – Katie and the Bathers (livro - imagem da p. 1).............................................98F. 12 – Katie and the Bathers (livro - imagem da p. 4).............................................98F. 13 – Celebrity Cat (livro - imagem da capa)..........................................................99F. 14 – Celebrity Cat (livro - imagem da p. 13).........................................................100F. 15 – Celebrity Cat (livro - imagem da p. 24)........................................................101F.16 – Babar’s Museum of Art (livro - imagem da capa)........................................103F.17 – Babar’s Museum of Art (livro - imagem da p. 6)..........................................103F.18 – Babar’s Museum of Art (livro - imagem da p. 39)........................................104F. 19 – Katie and the Monalisa (livro - imagem da capa)........................................105F. 20 – Katie and the Monalisa (livro - imagem da p. 5)..........................................105F.21 – Babar’s Museum of Art (livro -imagem da p. 34)..........................................108F. 22 – Katie’s Picture Show (livro - imagem da capa)............................................109F. 23 – Katie’s Picture Show (livro - imagem da p. 22)............................................109F. 24 – Katie and the Spanish Princess (livro - imagem da capa)..........................110F. 25 – Katie and the Spanish Princess (livro - imagem da p. 7)............................110

    (A referência dos livros está na p. 153).

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  • SUMÁRIO

    1 – Introdução: dar-se tempo e encantamento ......................................................12

    2 – O corpo teórico..................................................................................................20

    2.1 – Museus: casas de tesouros mágicos..........................................................21

    2.2 – Museu de arte: “cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um

    tempo saturado de ‘agoras’”................................................................................28

    2.3 – Arte – com quais palavras poderia dizer-te?..............................................32

    2.4 – Serviço educativo: “Quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha

    dentro dela e nela se dissolve”............................................................................38

    2.5 – Infâncias: “eu caminho por um mundo que é um mundo de curiosidade”. 49

    2.6 – Imaginação: a narrativa que passa da curiosidade à descoberta..............52

    3 – Os espaços expositivos investigados ...............................................................57

    3.1 – O MARGS...................................................................................................59

    3.2 – O Santander Cultural..................................................................................64

    4 – O caminho metodológico: a pesquisa realizada com crianças e os espaços de

    narrativa ..................................................................................................................67

    5 – A fase exploratória de pesquisa de campo: uma visita ao museu de arte........79

    6 – A pesquisa de campo propriamente dita ..........................................................86

    6.1 – “Eu tenho identidade!”: o primeiro encontro nas escolas...........................89

    6.2 – “Eu gostei da história e quero muito, muito conhecer o museu”: histórias

    para aguçar a imaginação na escola...................................................................96

    6.3 – No espaço expositivo, o segundo encontro com as crianças: “Oi Adriana, a

    gente estava te esperando!”..............................................................................112

    6.4 – O diálogo continua: a devolutiva – novamente na escola........................117

    7 – Educação, infância e museu de arte: “se a gente quiser ser um pintor, daí a

    gente já sabe como que é” ...................................................................................123

    8 – Referências......................................................................................................146

    9 – Anexos.............................................................................................................155

    9.1 – Modelos de Autorização............................................................................155

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  • S

    1 – Introdução: dar-se tempo e encantamento

    (...) a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. (...) Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem um exame mental em mim por tais julgamentos...

    Manoel de Barros1

    empre gostei de visitar museus, observar as obras e também perceber como os

    visitantes contemplam o que está exposto. Mas o que me impressionou muito foi

    um grupo de crianças visitando uma exposição de artistas franceses2 no museu de arte de

    São Paulo – MASP em outubro de 1991. Primeiramente, fiquei encantada com aquelas

    crianças que andavam pelo museu olhando atentamente as obras. Cheguei um pouco

    mais perto e percebi que elas tinham blocos de papel e lápis, olhavam os quadros e aos

    poucos se sentavam próximas à obra escolhida e comentavam o que iriam fazer. Recordo

    de uma menina que, sem nenhuma cerimônia, virou-se para mim e disse que iria fazer

    uma releitura3 do Cézanne: pegou seu bloco e iniciou o desenho. Eu estava com o grupo

    da universidade. Éramos do segundo ano do Curso de Arte, tínhamos visitado algumas

    1 Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006 (fragmento IX).2 Pintura Francesa da origem à atualidade – Na coleção do MASP de 1º de outubro a 1º de dezembro de 1991.3 Releitura implica tentar fazer outra vez a mesma obra já realizada, acrescentando um toque pessoal e uma nova maneira de ver e sentir. Não é necessariamente uma cópia. O método da releitura foi criado como forma de aprendizado da técnica. Na compreensão de diversos teóricos da arte e também de professores, a palavra releitura é também entendida como cópia, como citação e como intertextualidade. Esta reflexão pode ser encontrada em Pillar, 1999 e Buoro, 2002.

    12

  • exposições, mas aquela para nós era especial, pois somente tínhamos visto as imagens

    nos livros em reprodução e talvez não soubéssemos falar das obras devido ao assombro

    por vermos os originais pela primeira vez.

    Não conversei com aquelas crianças, mas desde então muitas questões me

    acompanharam e cresceu meu interesse em saber como o museu recebe as crianças e

    que trabalho é realizado com elas. Em 1994, já formada, tive a oportunidade de

    conhecer melhor um museu, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul – Ado Malagoli

    (MARGS), e saber como funciona, como recebe o público e quem organiza as

    exposições. Assim conheci o acervo, a montagem, a documentação e o setor de extensão

    cultural, também conhecido como setor educativo. Aprendi também que são convidados

    artistas, curadores e críticos de arte para conversas, palestras e debates em torno das

    obras selecionadas. Deste modo, minha relação se constituiu, passei a receber e atender

    os visitantes nas exposições atuando como mediadora voluntária do museu. Pude, então,

    perceber não apenas quem são os freqüentadores do museu de arte, como também

    intensificar minha atenção especial para os tantos grupos de meninos e meninas que

    chegavam ao museu, acompanhados de seus professores.

    Novas indagações foram acionadas, ou seja, quais são os objetivos de uma visita

    aos museus de arte? Esses estão claros para as crianças que os freqüentam? E que tipo

    de conhecimento está sendo produzido? Questões essas que me instigaram acerca da

    possibilidade de parar para pensar, para olhar, para escutar o que as crianças dizem

    sobre os setores educativos nos museus de arte e convidá-las ao diálogo.

    Nessa direção, encontro respaldo em Ioschpe4 (2005), segundo a qual “os museus

    agem como formadores de público – disso eu não tenho dúvida. Minhas dúvidas residem

    no COMO agimos” (p. 143 – grifo no original). “Cabe ao museu – e esse é um assunto em

    que ainda estamos engatinhando – conhecer seu público real, suas motivações, suas

    características, suas necessidades” (idem). Ioschpe diz também que talvez o mais

    importante seja “conhecer o seu público potencial para tentar descobrir como chegar a

    ele” (ibidem). Ainda aponta que, como um “mediador entre produção e recepção da obra

    de arte, o museu cumpre um determinado papel nesta difícil comunicação entre a arte e o

    público” (p. 142). Ademais, sugere que a pesquisa seja centrada na criança – e é nessa

    linha que segue esta investigação.

    4 Evelyn Berg Ioschpe, para o Boletim Informativo do MARGS, nº 28, em abr,/jun. de 1986, quando era diretora do museu. O museu como formador de público. In: GOLIN, Cida; MARSHALL, Francisco (org.). Selecta do Museu. Publicação editada em comemoração aos 50 anos do MARGS. Porto Alegre: Corag, 2005.

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  • Vale destacar que minha aproximação com a educação aconteceu em decorrência

    desse atendimento às escolas no museu de arte. O fato de estar no museu como

    mediadora e receber as escolas com crianças, jovens e professores para visitar as

    exposições, ouvir, observar e perceber as ansiedades, as dúvidas e as incertezas acerca

    do trabalho de arte no espaço escolar fez surgir muitas questões. Para compreender este

    outro universo, em maio de 2000 assumi turmas como professora, conheci melhor o

    ambiente escolar e, entre outras coisas, as tantas burocracias. Naquele momento, no

    duplo papel de professora e mediadora, como dar conta de responder essas questões?5

    Minhas interrogações conduziram-me a um estudo mais aprofundado deste

    assunto, levaram-me à pesquisa e leitura de dissertações, teses e artigos atinentes aos

    serviços educativos. Como ainda, nesse envolvimento e pelas exposições que vieram a

    Porto Alegre de outras instituições do Brasil e de outros países, também conheci como os

    espaços pedagógicos realizam suas atividades, como atuam em relação ao público

    visitante. O passo seguinte seria inserir-me na universidade para o curso de mestrado.

    Dessa forma, sinalizando minha busca e mobilizada para avançar na pesquisa, reporto-

    me a Jobim e Souza:

    cada fato, acontecimento ou fragmento das relações sociais reflete a realidade no seu todo. Nosso desafio é descobrir a articulação entre o significado objetivo dos fatos e a riqueza com que eles completam e, ao mesmo tempo, refletem uma compreensão do homem na perspectiva das suas relações com a cultura, com o progresso e com a civilização em nossa sociedade. (1994, p. 23-24)

    Nesse desafio, a arte se incorpora ao cotidiano da educação, estabelece conexões

    e propicia um aprofundar das relações entre as instituições: família, escola e museu,

    como um significativo passo para a produção de conhecimento ao favorecer, aos

    contempladores, a fruição artística. Situando-me na interface dessas instituições, indago-

    me: Qual a opinião das crianças a propósito do trabalho realizado pelo setor educativo do

    museu de arte? Como este deveria ser na perspectiva delas?

    5 Destaco que atuei no MARGS até 2005 e que em 2007 fiquei licenciada da escola em função da pesquisa de mestrado.

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  • Nesse sentido, opto por investigar, nesta pesquisa de mestrado, crianças do 1º. ao

    6º. ano do Ensino Fundamental,6 em visita ao MARGS e ao Santander Cultural7, ambos

    em Porto Alegre (RS). Vale apontar que o contato com as escolas foi realizado a partir do

    agendamento desses espaços museais, sendo assim, encontrei-me com onze escolas

    que os visitaram nesse período. Com isso, trabalhei com 18 turmas e aproximadamente

    350 crianças. Esse agendamento acrescenta mais um dado à pesquisa, ou seja, que as

    meninas e meninos, independentemente de suas classes sociais, visitam os museus de

    arte com suas escolas. Ressalto isso, pois as crianças com as quais tive contato são de

    escolas públicas localizadas na periferia de Porto Alegre e da região metropolitana –

    exceto uma escola particular que acompanhei ainda na pesquisa exploratória localizada

    no centro de Porto Alegre e uma das escolas públicas localizada num bairro próximo ao

    museu.

    Sendo assim, esta pesquisa é fundamentada com reflexões a partir de Walter

    Benjamin, Lev Vigotsky e autores8 que se debruçaram sobre as teorias de Mikhail Bakhtin,

    em diálogo com teóricos da arte e da educação, as crianças e os poetas. Benjamin, pela

    sua discussão crítica sobre a reprodutibilidade técnica na arte, pelo modo como compreende a infância, seu caráter transgressor de olhar a história a contrapelo e por

    suas contribuições a respeito da narrativa; Vigotsky, que entende a criança como

    produtora de cultura e pela forma como discute a imaginação e a cultura na infância; e

    Bakhtin, por suas contribuições para a compreensão dos passos de apropriação em arte e

    sua complementaridade de visões e interações do eu e do outro que propõe uma atitude

    dialógica.9

    6 A rede municipal de Porto Alegre trabalha com ciclos; a rede estadual com a denominação série. Nas escolas da região metropolitana de Porto Alegre, encontro na cidade de Canoas a terminologia série, e em Esteio, já utilizam ano como indica o Ministério da Educação a partir de 2007. Opto, nesta pesquisa, para identificação das turmas, por utilizar a indicação 1º ao 6º anos, englobando as turmas até então chamadas de classe de alfabetização a 5ª série. 7 Apesar de o Santander ser um centro cultural, para fins desta pesquisa assumo a terminologia museu de arte. Carvalho (2005) diz que “Principalmente a partir da década de 80, os Centros Culturais vêm surgindo como mais uma opção de espaços voltados às manifestações culturais e ganhando cada vez mais reconhecimento no mundo contemporâneo” (p. 130).8 Pelo tempo de mestrado e pela densidade do autor, tive apenas contato superficial com ele e, por essa razão, busco apoio em terceiros para apropriar-me de conceitos por ele utilizados. 9 A concepção de dialogia aprecia a relação entre os sujeitos que interagem. Para Barros, “o texto é constitutivamente dialógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos e só assim, dialogicamente, constrói-se a significação”. E assim caracterizada, “a língua é dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente e pelo uso as relações dialógicas dos discursos” (Barros, 1996, p. 24-35).

    15

  • Em uma investigação realizada junto ao Portal Capes,10 busco pesquisadores com

    dissertações e teses a partir das seguintes palavras-chaves: museus de arte (encontrei 30

    dissertações e 10 teses); educação em museus (encontrei 20 dissertações e 10 teses);

    museu e infância (uma dissertação e uma tese); e crianças no museu (duas dissertações

    e uma tese). A partir da leitura dos resumos dessas pesquisas, destaco aquelas que mais

    dialogam com esta e das quais mais me apropriei: Alencar, 1987; Freire, 1992; Cabral

    Santos, 1997; Argolo Costa, 2003; Grinspum, 1991/2000; Leite, 2001; Moura, 2005;

    Carvalho, 2005. A leitura desses trabalhos mostra que este campo ainda requer

    investigações, sendo assim, esta dissertação intenta contribuir como mais uma produção

    na área.

    Examinar a constituição da infância como categoria social tem sido esforço de

    vários campos teóricos, tais como a Sociologia, a Antropologia, a Pedagogia, a

    Psicologia, entre outros. Pesquisas nesses campos pontuam a importância e a

    necessidade de estudos para consolidar esse conhecimento acerca da infância. Kramer

    (2005) traz para a reflexão Philippe Ariès e Bernard Charlot, tidos por ela como autores

    básicos para pontuar a condição histórica e cultural da infância. A contribuição de Ariès foi

    em relação aos parâmetros de pesquisa, articulando infância, história e sociedade em um

    sentido moderno de infância contrária à miniaturização da criança. Charlot, ao questionar

    a significação ideológica da idéia de infância, reforçou a crítica à naturalização da criança

    e estabilizou a análise de caráter histórico, ideológico e cultural. Nesse sentido, “tratar da

    criança em abstrato, sem levar em conta as diferentes condições de vida, é dissimular a

    significação social da infância” (Kramer, 2005, p. 21).

    Concordando com a concepção de infância/criança não miniaturalizada ou

    naturalizada, explicito minha escolha da pesquisa com crianças, no sentido de oportunizar

    a escuta da fala delas. No percurso de diversos pesquisadores (Demartini, 2002; Ferreira,

    2005; Javeau, 2005; Kramer & Leite, 2005; Silva et al., 2005; Honorato et al., 2006),

    podemos distinguir um panorama para o tema que constitui a infância como categoria

    social; estudos começam a ser não apenas realizados sobre a infância e seu

    desenvolvimento, mas, além disso, pretendem referir-se à criança como sujeito e não

    mais como objeto de pesquisa; sujeito de querer saber, querer descobrir e querer ensinar.

    Busco, assim, conhecer as infâncias e suas crianças, em suas especificidades de

    sujeitos históricos, sociais e culturais, percebendo-as como depoentes privilegiados de

    10 Disponível em: http://servicos.capes.gov.br/capesdw/Teses.do. Acesso em janeiro/2007.

    16

  • pesquisa. Nesse sentido, criei espaços de narrativa11 e procurei promover a aproximação

    e ouvir suas percepções sobre e a partir do trabalho educativo realizado nos museus de

    arte investigados. Isto é, busquei construir espaços de trocas e descobertas que

    permitissem expressar seus sentimentos, sensações, idéias e concepções que dissessem

    respeito ao espaço do museu e suas implicações no serviço educativo.

    O texto aqui apresentado configura-se da seguinte maneira: no primeiro capítulo

    trago uma introdução na qual explicito a minha relação com esta pesquisa, como também

    intento mostrar a sua relevância para a educação, os estudos sobre museus e a pesquisa

    realizada com crianças. No segundo capítulo, delineio o que nomeei corpo teórico, ou

    seja, os conceitos de museu, museu de arte, serviço educativo, arte, infâncias e

    imaginação. No terceiro capítulo, apresento as instituições museais nas quais realizei esta

    investigação – o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli – MARGS e o

    Santander Cultural. O capítulo quarto trata do caminho metodológico – a pesquisa

    realizada com crianças e os espaços de narrativa. Para a pesquisa exploratória realizada

    em dezembro de 2006, determinei o quinto capítulo. No sexto, articulo a pesquisa de

    campo: o primeiro encontro com as crianças na escola no objetivo de saber sobre suas

    expectativas, se já conheciam um museu de arte, seu conceito de arte, como as crianças

    imaginam os espaços expositivos, e uma conversa e leitura das autorizações para uso de

    seus nomes na pesquisa, bem como uma atividade em que contamos histórias, as

    crianças e eu. Narro também o segundo encontro, já no espaço expositivo, pois durante a

    visita acompanhei-as com o objetivo de perceber como apreciam as obras originais; e o

    terceiro novamente na escola, para a devolutiva, ou seja, registrar os processos de

    produção de conhecimento e autoria através da fala das crianças. O último capítulo

    propõe a triangulação educação, infância e museu de arte, como uma tentativa de

    fechamento da pesquisa. Para tanto, trago à tona questões da educação, da infância e do

    museu de arte numa tessitura de conceitos e sentidos múltiplos, destacando a

    importância de desconstruir, reconstruir e reinventar o cotidiano, objetivando compreender mais as crianças e aprender mais com elas. Conforme escreve Benjamin (2002, p. 142),

    “onde as crianças brincam existe um segredo enterrado”. Considero, assim, a

    11 “Estratégias teórico-metodológicas de investigação – estratégias nas quais as crianças pudessem participar de tal forma que se constituíssem não como objeto de estudo, mas como sujeitos co-participantes destes estudos. A estes encontros pesquisador-criança chamamos espaços de narrativa” (Leite 2006, p. 3). “Desta forma, os espaços de narrativa por nós propostos são espaços de criação de sentidos, espaços de troca e produção de conhecimento” (idem, p. 11).

    17

  • necessidade de repensar de forma mais ampla as condições de interação entre a arte, a

    criança e o museu de arte – daí meu impulso para esta investigação.

    Vale apontar que a escritura deste texto indica uma relação dos teóricos

    estudados em diálogo com as falas das crianças e dos poetas; e sendo esta uma

    pesquisa realizada com crianças, uma das especificidades é a autorização delas e dos

    seus pais para o uso dos seus nomes. Nessas autorizações, aconteceram diferentes

    situações. Durante a entrega e leitura, as crianças sempre assinaram e, depois, levaram

    para os seus pais. Em algumas, o retorno aconteceu e foram as próprias crianças que

    escreveram os nomes dos pais, ou eles não assinaram, mas segundo elas eles

    concordaram; ainda há aquelas que perderam o papel e disseram que as autorizações

    são verbais. As professoras também assinaram uma autorização e compreenderam que,

    dessa forma, autorizavam as suas turmas também. Entretanto, por opção ética, nessas

    situações, identifico como criança, menino ou menina, guri ou guria – não trazendo seus

    nomes.

    Outro ponto importante é o uso do primeiro nome das crianças. Depois do exame

    de qualificação, a partir de sugestão da banca, perguntei a elas por que só assinavam o

    primeiro nome nas autorizações e trago um diálogo com a turma do 5º ano da Escola

    Estadual Coelho Neto, no dia 1º de outubro de 2007, com seus argumentos:

    Adriana: Então, vocês assinaram o nome? Que legal! Agora eu tenho o autógrafo de vocês, obrigada.Carla: Eu escrevi o meu.Adriana: Percebi que vocês só escreveram o primeiro nome.Crianças: Ahã.Vanessa: Ah, eu sou Vanessa e ponto! Não gosto do meu nome [completo].Anderson: E eu sou Anderson.Adriana: Ok! Posso então escrever o nome de vocês no meu trabalho? É assim que vocês querem que eu escreva?Vanessa: Pior!Guri: Sem graça o sobrenome.Guri: É, bota [só] o nome... Adriana: Tá, eu vou fazer conforme vocês querem e vou escrever o que vocês falaram.

    Tive essa conversa também com outras turmas e a maioria contestou a

    identificação com os nomes completos, dizendo que não gostam de escrever seu

    sobrenome, logo, considerando as crianças como co-autores da pesquisa e respeitando

    nosso combinado, mantive apenas seus primeiros nomes e, para ser coerente e não fazer

    hierarquia nos depoimentos de crianças e adultos, determinei o mesmo tratamento para o

    18

  • nome dos professores e dos mediadores. Ainda no sentido de manter a identidade e a

    autoria, identifico também nominalmente as escolas e os museus participantes da

    pesquisa, pois fui autorizada a tal.

    Instaurado o debate, intencionei não falar sobre a infância, mas sim dialogar com

    as diferentes infâncias a fim de consolidar a nossa cumplicidade no exercício do

    aprendermos juntos. No interesse de querer saber mais das crianças e de como estas

    tantas questões se aproximam de suas vidas, no sentido de exercitar o pensamento como

    um processo dinâmico e por realizar uma pesquisa com crianças, trago para o diálogo

    uma fala de Panofsky (1991) acreditando que temos muito a compartilhar:

    Não acredito que se deva ensinar a uma criança ou a um adolescente somente aquilo que são capazes de compreender totalmente. Pelo contrário, é a frase meio digerida, o nome próprio meio situado, o verso meio compreendido, que se lembra pelo som e o ritmo ao invés do significado, o que perdura na memória e incendeia a imaginação... (apud Bettelheim 1991, p. 144)

    Destaco que as crianças mostraram-se muito solícitas em partilhar suas opiniões

    comigo, sempre curiosas em saber como seria a entrevista, e sentiam-se importantes ao

    serem consultadas sobre suas idéias. Ao conhecê-las, apresentava-me como aluna do

    mestrado de uma universidade de Santa Catarina, mas que realizava a pesquisa em

    Porto Alegre. “Caramba! [diziam as crianças] E tu veio aqui falar com a gente, nossa!”.

    Sentiam-se grandes e muito valorizadas. Algumas diziam que já conheciam Santa

    Catarina, outras que seus pais iam lá de vez em quando, e ainda que gostariam de

    conhecer um dia. Então eu explicava para elas o que é um mestrado e que tinha um

    enorme trabalho para fazer e estava ali para solicitar sua ajuda nesta tarefa. É uma pena

    que esse início não tenha sido gravado, pois precisava me apresentar, explicar a proposta

    e pedir a autorização para gravar nossa conversa. Intensifico que esse começo foi sempre

    interessante, interligamos idéias, vislumbramos caminhos, ousamos imaginar e, nesse

    diálogo provocado, aprendemos muito, as crianças e eu.

    Adriana: Ah! São tão legais as falas de vocês!12Guri: Uma salva de palmas pra Adriana!Turma: Ehh! Obrigada por tudo!Adriana: Nossa, eu é que agradeço a vocês!Crianças: Tu?!...

    12 Turma do 5º ano da Escola Estadual Coelho Neto, no dia 1º de outubro de 2007.

    19

  • T

    2 – O corpo teórico

    Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...

    Italo Calvino13

    rago o caminho teórico à luz da idéia de leveza com o intento de refletir acerca

    dos vários conceitos que me acompanharam nesta investigação e, conforme

    Calvino (1990), “espero antes de mais nada haver demonstrado que há leveza de

    pensamento” (p. 22). Segundo o autor, “posso pôr-me a folhear os livros de minha

    biblioteca em busca de exemplos de leveza” (p. 30). Mais do que isso, posso elaborar

    diálogos com os conceitos de museu, museu de arte, serviço educativo, arte, infâncias e

    imaginação. Esses são os meus fios condutores. Calvino questiona: “Há demasiados fios

    intrincando-se em meu discurso? Qual deles devo puxar para ter em mãos a conclusão?

    Há o fio que enlaça a lua (...). E há o fio da escrita como metáfora” (p. 39). Ainda escreve:

    “as letras eram átomos em contínuo movimento, que com suas permutações criavam as

    palavras e os sons mais diversos; idéia retomada por uma longa tradição de pensadores

    para quem os segredos do mundo estavam contidos na combinatória dos sinais da

    escrita” (idem).

    Nesse sentido, também quero desenrolar o fio da escrita e nesse percurso agregar

    a esses conceitos a minha fala e as falas das crianças que interagiram comigo nesta

    pesquisa na busca da produção do conhecimento.

    13 Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 19.

    20

  • M

    2.1 – Museus: casas de tesouros mágicos14

    Museus são casas e “espaços que suscitam sonhos”. Walter Benjamin15

    Museus são locais “que proporcionam a mais elevada idéia do homem”.

    André Marlaux16

    useus são locais de produção crítica do conhecimento. A palavra museu

    deriva do grego museion, lugar ou templo das Musas, as divindades na

    Mitologia grega que inspiravam as artes liberais; filhas de Zeus,17 Deus dos Deuses, e

    Mnemosine, Deusa da Memória. “Do culto dessas deusas, no templo das musas surge o

    termo museu – no vocábulo grego mouseion e no latim museum – que também significa

    ‘gabinete de literatos, homens de letras e de ciências’” (Fabiano Junior, 2007, p. 8).

    Segundo o International Council of Museums (ICOM), museu é uma “Instituição

    permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento,

    aberta ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos

    materiais do homem e de seu entorno, para educação e deleite da sociedade”.18

    Para intensificar minha relação com esses conceitos, bem como conhecer a

    apreciação que as crianças têm acerca dessas casas de tesouros mágicos, articulei 14 Dito por um diretor de museu não identificado. Revista Diálogo, Rio de Janeiro, Consulado Geral dos EUA, nº 2, v. 20, (p. 8), 1987.15 In: Revista Política Nacional de Museus: relatórios de gestão 2003-2006/ Ministério da Cultura, Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, Departamento de Museus e Centros Culturais. Brasília: Minc/ IPHAN/ DEMU, 2006 (p. 20).16 O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000 (p. 12).17 Durante nove noites Zeus deita-se com Memória (Mnemosine), rainha das colinas de Eleutra (em grego = ‘liberdade’). Depois de uma gestação de um ano, nasceram as nove Musas, responsáveis pela sagrada inspiração dos mortais. São elas Clio (Glória, Musa da história), Euterpe (Alegria, Musa da música), Thalia (Festa, Musa da comédia), Elpomene (Dançarina, Musa da dança), Terpsichore (Anima-côro, Musa da tragédia), Érato Amorosa (Musa da elegia), Polímnia (Muitos-hinos, Musa da poesia lírica), Urânia (Celeste, Musa da astronomia), e, por fim, Calíope (Belavoz, Musa da eloqüência e poesia heróica). O mito das Musas atravessa toda a compreensão ocidental da origem das belas-artes. Trata-se da explicação religiosa da origem das chamadas ‘artes liberais’, aquelas artes que têm por finalidade o cultivo do espírito. Essa compreensão está cristalizada no mundo grego da época do helenismo pelo fato de que a grande biblioteca de Alexandria era apenas uma parte daquilo que se chamava então de ‘Museu’, ou seja, o templo dedicado às musas. (Almeida apud Flores, 2007, p. 46)18 Definição aprovada pela 20ª Assembléia Geral do ICOM. Barcelona, Espanha, 6 de julho de 2001. Disponível em: http://www.museus.gov.br/oqueemuseu_definicao.htm#icom . Acesso em 4 de maio de 2007.

    21

  • conversas com elas no intento de conhecê-las e provocar o diálogo. Entre tantas falas,

    trago a que aconteceu no dia 31 de maio de 2007, quando eu fui até a Escola Estadual de

    Ensino Fundamental Agrônomo Pedro Pereira para conversar com as turmas do 2º. ano

    sobre a visita que fariam ao museu de arte e saber quais os seus conceitos de museu e

    de arte.

    Adriana: Bom, eu vim aqui conversar com vocês sobre museu de arte. Quem conhece museu de arte?Guria19: Só no filme.Guri: Já vi. Fui três vezes...Adriana: E como vocês imaginam que é o museu de arte? O que tem no museu de arte?Guria: Tem um monte de arte!Crianças: Tem quadros!Guri: As pessoas fizeram quadros bonitos.Guria: Tem gente pintando. Pessoas desenhando.Crianças: Fazendo coisas pra enfeitar.Guria: Tem estátua, tem tudo!Guri: Eles copiam os quadros, copiam as casas...Adriana: E como vocês imaginam que é esse lugar?Crianças: É bonito e grande. E tem um monte de tinta e pincel.Guria: Tem um salão grande e bonito. Um salão cheio de pinturas!Adriana: E o que vocês vão ver lá?Crianças: Quadros. Arte. Desenhos. Estátuas. Coisas enfeitadas. Quadros pintados...

    Nascimento Jr. e Chagas (2006) apontam que os museus, sejam eles instalados

    em edifícios readaptados ou em construções erigidas para as funções museais, “podem

    ocupar – e freqüentemente ocupam – um lugar de notável relevo no imaginário e na

    memória social, bem como no cenário cultural e político de determinada localidade” (p.

    13), além de serem também espaços de mediação cultural. Ainda afirmam que os museus

    estão em movimento: deixaram de ser compreendidos simplesmente como casas onde

    são guardadas relíquias, para tornarem-se “envolvidos com a criação, a comunicação, a

    afirmação de identidades, a produção de conhecimento e a preservação de bens e

    manifestações culturais” (p. 14). Por serem espaços de mediação e comunicação, os

    museus podem “disponibilizar narrativas mais ou menos grandiosas, mais ou menos

    inclusivas para públicos mais ou menos ampliados” (p. 13). 19 Como dito na Introdução, por opção ética, nas situações em que não possuo a autorização escrita dos pais, identifico como criança, guri ou guria – não trazendo seus nomes. Nessa turma aconteceu uma situação diferenciada, houve troca de algumas crianças para a outra turma (são duas turmas da mesma série). Eu conversei com as duas e as duas visitaram o museu juntas, mas na hora da devolutiva, as crianças ficaram em dúvida quanto à autoria de algumas falas, então decidimos que eu escreveria guria ou guri para identificação.

    22

  • Segundo os autores, o que se busca afirmar hoje, como uma museologia crítica, é

    a valorização das pessoas, dos territórios e do patrimônio cultural; museus como

    mediadores sociais onde possam ocorrer passeios agradáveis e instigantes. Nesse

    sentido, afirmam que museus são “pontes entre culturas, são portas que se abrem e

    fecham para diferentes mundos. (...) Tanto podem servir para conformar quanto para

    transformar” (p. 16). Vale destacar que, assim, os museus passam a atuar com um

    patrimônio cultural em processo, o que exige uma política pública específica, visto que

    são lugares abertos a acolher as “reflexões, os debates, as práticas e as poéticas

    características deste universo em expansão” (Nascimento Jr. e Chagas 2006, p. 15).

    Conforme Garcia Canclini (2005), “talvez uma tarefa-chave das novas políticas

    culturais seja, tal como tentam certas performances artísticas, reunir de outras maneiras

    afetos, saberes e práticas” (p. 265). Para o autor (2003), entrar em um museu não é

    simplesmente ingressar em um edifício e olhar obras, mas também penetrar em um

    sistema ritualizado de ação social (p. 169). Essa turma do 2º. ano, que já havia explicitado

    o que imaginava do museu anteriormente na conversa que tivemos na escola, esteve no

    dia 9 de julho de 2007 no museu e conversou bastante com a mediadora Janaína,

    articulou idéias e atribuiu sentido a elas, como também tirou suas conclusões a respeito

    do espaço e das obras expostas:

    Mediadora Janaina: Olhem, o que vocês acham desse prédio aqui?Guri: Tem quadros.Guria: Tem uns vidros embaralhados. Pintaram nele, pra desenhar nele.Janaina: É, são os vitrais. Pintaram, claro.Vanessa: Bonito e brilhando.Janaina: Olha só pessoal, eu vou contar um segredo para vocês, esse prédio foi construído pra ser um banco.Guri: Um banco de dinheiro!Vanessa: Era pra ser um banco, mas fizeram um museu.Janaina: Isso!Vanessa: Pra colocar as artes!Janaina: Porque tu achas que virou museu?Vanessa: Pra ficar lindo!Matheus: E pra deixar bonito. Vanessa: Maravilhoso!Eduarda: Pra deixar mais colorido, pra que alguém vem e olhe as pinturas.Vanessa: Pra todo mundo se emocionar!Janaina: Que bacana! E vocês se emocionaram quando entraram aqui?Turma: Sim!!Janaina: Que bom. Eu fico emocionada de ver vocês emocionados assim. Olha só, vou contar o segredo pra vocês... Então, funcionou

    23

  • como banco muitos anos...Vanessa: Depois desmancharam e fizeram um museu.Janaina: Não, não desmancharam, esse é o segredo, eles deixaram o prédio igualzinho como era lá há 80 anos atrás.Vanessa: Mas daí botaram mais coisas.Janaína: Eles fizeram sabe o que, pessoal? Eles restauraram. Olha só uma palavra que a gente usa quando a gente tem uma casa e a casa tá meio caidinha assim. A gente vai lá e restaura ela. O que a gente faz? Pinta...Vanessa: Reforma, bota móveis...Crianças: Deixa bonito. Bota telhado. Compra carro.Janaina: Isso, até compra carro. E aí eles fizeram tudo isso nesse prédio e deram pra nós de presente, olha só!Eduarda: É por isso que tem essas coisas do tempo antigo?Janaina: Isso.Eduarda: Tempo do EgitoJanaina: Por que tu achas que é do tempo do Egito?Eduarda: Porque eu vi um filme do tempo do Egito que tem aquele leão ali. Janaina: Ah, aqueles leões ali? [na arquitetura do prédio]Guri: Eu já vi um leão cara a cara! Só que ele tava na jaula.Janaina: Vou continuar contando o que aconteceu: é que ele é um espaço gratuito, público e todos nós podemos entrar aqui de graça. Isso aqui virou um espaço cultural. O que é um espaço cultural? Vocês já disseram: é onde tem quadros, pinturas...Crianças: Arte. Tá reformado.Matheus: O prédio também é arte?Guria: Todo esse prédio é também arte?Janaína: É mesmo. Todo esse prédio é também uma obra de arte. E uma obra de arte que a gente pode ver aqui dentro além dos vitrais coloridos que emocionaram vocês, a gente pode ver fotografias. Quem acha que fotografia20 é arte levanta a mão. Olha! Todo mundo, até a profe. E por que vocês acham que fotografia é uma obra de arte?Vanessa: Porque tá no museu!Janaina: Claro, tá no museu.Vanessa: Que nem essas aí, e deixa bonito e todo mundo vem e olha.Janaina: Isso! Todo mundo tem que vir aqui e olhar como vocês estão fazendo agora.

    Quando a mediadora Janaina perguntou se gostaram das fotos, elas respondem

    que gostaram mais das fotos nas quais as pessoas estavam rindo. “É que gostaram do

    museu!”. “Se for a gente [a tirar fotos], a gente vai rir e dizer ‘olha o passarinho’! Eeeh!”.

    Para essas crianças, tão animadas e dinâmicas, o espaço museal é um lugar de se

    emocionar, é um lugar de interesse para novas descobertas que também assinala a

    institucionalização da arte, pois, a fotografia como reconhece a Vanessa, é arte “porque tá

    no museu!”. Gil (2006) entende que este assunto evoca um apreço pelos museus que têm

    20 Exposição da artista plástica Vera Chaves Barcellos – O grão da imagem.

    24

  • cheiro de vida, que seguem “fazendo e se refazendo” (p. 7) – os museus como casas das

    musas inspiradoras de toda a criação humana; aqueles que “abrigam o que fomos e o que

    somos” (idem). Para ele, os museus são pontos de cultura, “são lugares de criação,

    diálogo e preservação” (ibidem). Lugares do conhecimento.

    Meneses (2002), ao discorrer sobre o problema do conhecimento no museu,

    aponta a função estética como “algo construtivo do humano na plenitude da condição

    humana” (p. 18), como também assinala o deleite afetivo – “o museu é ainda lugar de

    oportunidade de devaneio, de sonho, de evasão, do imaginário” (p. 19). Defende que,

    além disso, se vá ao museu em busca da informação, para a formação e educação.

    Segundo o autor, é o século XVIII que revela o problema do conhecimento nos museus; e

    é no século XIX que estes se transformam em instrumentos por intermédio dos quais se

    produz o conhecimento – museus se configuram, então, como instituições que produzem

    e difundem o conhecimento. Afirma o autor que o conhecimento “não mais se produz

    especulativamente a partir de pressupostos teológicos, teóricos ou filosóficos, mas é do

    sensível que se chega ao inteligível: daí a consolidação das coisas materiais como

    documentos, fontes de informação” (p. 29). Sendo assim, o museu “opera com material

    que pode também ser trabalhado como fonte de informação para produzir

    conhecimento” (p. 34). Neste sentido, muda também a própria noção de coleção, tida

    agora como uma “série sistematicamente organizada de ‘fontes’”, e não mais um conjunto

    “disparatado de objetos” (idem, p. 29).

    Assim, entendo o museu como um espaço de educação e de cultura, de troca e de

    aprendizagem. Cabral Santos (1997, p. 20) aponta a visão de museu como “espaço

    celebrativo da memória e do poder”. Também afirma: “Deve-se ir aos museus (...) para

    interrogar e se interrogar (...) para escapar da amnésia” (p. 15-17). Conforme diz

    Chagas,21 o desafio que importa encarar é “trabalhar a poética do museu e a poética do

    patrimônio”, o que implica também “aceitar um conhecimento que se produz fora da

    disciplina, uma espécie de imaginação museal ou pensamento selvagem que se

    movimenta fora do controle e se preciso contra a disciplina e o controle”. Está posto o

    desafio. O museu é um veículo de comunicação e de humanização. Chagas menciona o

    poeta Manoel de Barros ao dizer de uma lição (ou deslição) que pressupõe “um olhar

    compreensivo e compassivo para os inutensílios musealizados e para o patrimônio inútil

    21 Disponível em: http://www.revista.iphan.gov.br/materia. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. Acesso em 8 de maio de 2007.

    25

  • da humanidade. (...) Devorar e ressignificar os museus, eis o desafio de cada nova

    geração” (idem). E ele continua:

    A educação, o museu e o patrimônio são campos de tensão e de devoração, mas também são pontes, práticas e dispositivos que provocam sonhos. (...) É desejável abolir toda e qualquer ingenuidade em relação ao museu, ao patrimônio e à educação. Ao lado dessa abolição é desejável desenvolver uma perspectiva crítica, interessada em investigar ao serviço de quem estão sendo acionados: a memória, o patrimônio, a educação e o museu. (ibidem)

    Chagas (2002) ainda assinala o museu como campo de discurso e narrativa no

    qual cabem estudos que o tomem “como campo discursivo, como centro de interpretação

    ou como arena política” (p. 75). Nesse sentido, a investigação legitima-se quando

    contribui para o processo de comunicação museal envolvendo necessariamente ações

    educacionais e culturais. “Pesquisa não comunicada é pesquisa estéril” (p. 76).

    Ao perceber o museu como campo narrativo que provoca o deslumbramento e a

    imaginação, aponto aqui a conversa com as crianças do 2º. ano22 da Escola Municipal

    Maria Cordélia Simon Marques sobre o que elas imaginam que seja museu:

    Adriana: O que é um museu?Eduardo: É um lugar que tem um monte de coisas que é difícil fazer.André: Um lugar que tem quadros de pintura.Eduardo: Fazer desenhos.Adriana: E vocês acham que vão fazer desenhos lá?Gustavo: Não! Alan e André: Eu acho.Eduardo: Eu tenho lá na minha casa quadros de pintura.Alan: Na minha também tem.Eduardo: Os meus são de tinta! Amanhã eu vou fazer um quadro de pintura e vou botar no museu.Adriana: Ah é, e quem é que bota os quadros no museu? André: As crianças não.Adriana: Por quê?Alan: Porque as crianças são pequenas.Adriana: E quem é que bota trabalho no museu, então?Yasmim: As pessoas que trabalham no museu.Guria: Os pintores.Eduardo: Os artistas que construíram as coisas.

    Conforme defende Cabral (2005), “há algo de revolucionário no desafio poético de

    refazer todas as coisas pelo exercício da imaginação (...) é basicamente pelas narrativas

    das várias personagens que a imaginação é exercitada” (p. 1-8). As crianças

    22 Primeira conversa com a turma, no dia 29 de maio de 2007, em Esteio (RS).

    26

  • protagonizam a narrativa e interrogam acerca da arte exposta nos museus hoje. Trago

    para dialogar com elas uma fala de Dantas23 (2007), que afirma: “as experiências

    trabalham no imaginário do espectador; hoje as exposições não são mais sobre coisas,

    pois museus e exposições são, sobretudo, sobre inspirações, sobre processos”. Logo, a

    questão dessa turma, no momento em que o Eduardo disse que iria fazer um quadro de

    pintura para botar no museu, traz elementos de transgressão, provoca e revela uma

    vontade das crianças, e ao mesmo tempo em que indaga, implica já uma conclusão antes

    mesmo de conhecer o espaço museal – as obras não são feitas pelas crianças. Nessa

    provocativa, o museu nos dias de hoje proporciona uma relação de troca de experiências

    com as crianças freqüentadoras? Como nós nos posicionamos diante dessas expectativas das crianças? Museus são locais que suscitam questões, que favorecem a

    imaginação?

    Lara Filho24 (2007) faz um jogo de palavras e interroga sobre “o museu no século

    XXI ou o museu do século XXI?”. O título do seu artigo “esconde e revela um dos pontos

    básicos das discussões sobre museus no momento” (p. 1). Indica “quais modificações e

    acréscimos as instituições existentes deverão discutir e propor para revitalizar-se frente às

    demandas da contemporaneidade – como também o que deverá ser um museu do século

    XXI” (idem) – ou seja, uma instituição gerada a partir das implicações da atualidade. Ao

    citar Garcia Canclini, diz que este afirma “um sentido ritual e hermético” (p. 2) para as

    tendências da arte contemporânea, na qual se buscam “formas subjetivas inéditas para

    expressar emoções primárias enfocadas pelas convenções dominantes (força, erotismo,

    assombro)” (idem). As inquietações não são mais atinentes à coleção e conservação,

    mas também incluem o público; nesse sentido o museu – “especialmente o de arte” –,

    diante da produção em novos suportes, passa a pedir um retorno tanto em relação à

    conservação como à exposição de tais manifestações. Ademais, traz a “premência da

    revitalização dos museus já existentes” (p. 2), processo que passa pelo “reordenamento

    de seu papel e funções, pela reformulação do espaço expositivo – reformas e ampliações

    dos edifícios –, e também pela busca de uma nova expografia” (idem).

    23 DANTAS, Marcello. Palestra proferida na FAMECOS – PUC-RS – Comunicação pelos poros – 5 sentidos. RBS Debates no dia 17 de setembro de 2007 em Porto Alegre, gravada e transcrita por mim.24 Disponível em: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/artigos/dlf_museu/. Acesso em 18 de julho de 2007.

    27

  • M

    2.2 – Museu de arte: “cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”25

    Adriana: Como vocês imaginam que é o museu de arte? Arthur: Grande, enorme e cheio de quadros. Renato: Com quadros e esculturas e outras coisas. Guria: É lindo e limpo. Adriana: Limpo?Guria: E como poderia ser um museu sujo?!Renato: Grande e com aquela faixa em volta dos quadros pra ninguém tocar.Adriana: Por que ninguém tocar?Renato: Porque é quadro famoso, tem que ter cuidados. Fabrício: Tipo a Monalisa.Adriana: Ah, então vocês já conhecem algumas obras de arte? E vocês imaginam encontrar alguma dessas lá no museu?Fabrício: Monalisa vai ser difícil!Renato: Monalisa tá lá na França, vai ser difícil.Fabrício: Leonardo Da Vinci morreu, em que cemitério ele está enterrado?...Adriana: Puxa, essa você me pegou.26

    as de que museu estamos falando? O museu de arte é aqui compreendido como um espaço público de educação não-formal.27 Um espaço de produção

    de conhecimento permeado por narrativas nas quais reverbera a ampliação do repertório

    artístico e cultural a partir das relações estabelecidas entre crianças, adultos, patrimônio e

    espaço social. Nesse sentido, a conceituação de museu está relacionada com o seu papel

    de instituição social. Os museus de arte levam em conta que a arte necessita e requer a

    presença do espectador, ensejo e espaços de silêncio para sua contemplação, diálogo e

    deleite, numa relação dinâmica vinculada à prática social.

    25 Walter Benjamin 1994c, p. 229.26 Conversa com a turma do 5º. ano antes da visita ao museu no dia 20 de abril de 2007 na Escola Municipal Jacob Longoni em Canoas (RS). 27 Carvalho (2005, p. 148 – grifos no original) apresenta as definições de: educação formal, educação não-formal e educação informal. “Educação não formal é ‘...qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que se realiza fora dos quadros do sistema formal (de ensino) para fornecer determinados tipos selecionados de aprendizagem a subgrupos específicos da população, tanto de adultos como de crianças’”.

    28

  • Basbaum28 (2005) analisa o duplo papel do museu de arte; ele “responde às

    demandas discursivas da arte contemporânea e é tanto um parceiro quanto um conceito

    na produção de obras de arte” (p. 1). Para o autor, ao avançarmos para além da idéia dos

    gabinetes de curiosidades até a revolução burguesa, configurando-se a noção de uma

    obra autônoma, “veremos que uma das vertentes que conduzem à formação da idéia de

    museu é exatamente o impulso em conceituar com clareza uma ordem das coisas e do

    mundo, em que uma forma de pensamento conduz à verdade” (idem). Acrescenta que “a

    obra de arte é uma das expressões desta procura e deste encontro, articulando de forma

    singular autonomia plástica e recortes de possibilidade discursiva” (p. 2). Este paradigma

    encontra-se em vigência até hoje, contribuindo para “a construção do museu como

    máquina de produção e atribuição de valor à obra de arte, instrumento de produção de

    cultura” (idem). Nesse sentido, a obra de arte no espaço museal está associada a uma

    “potencialização, pois sua presença no museu a elevaria a um patamar de

    ‘exemplaridade’, tornando-a representativa de uma ordem de pensamento que deve ser

    enfatizada” (ibidem). O museu, objeto sensível do século XX,29 tido como um dos

    principais espaços de agenciamento, legitima e dá visibilidade para a arte.

    À medida que se transforma o paradigma da obra de arte, também se modifica o perfil do museu que pretende abrigá-la: ao se mirar, de modo amplo, as transformações pelas quais passou a obra de arte nos últimos 200 anos (ou seja, a conquista de sua condição moderna e seu deslocamento para aquela pós-moderna ou contemporânea) – que arriscamos resumir aqui de maneira bastante compacta como (a) ‘conquista de autonomia’ (academicismo e romantismo até Cézanne), (b) ‘ruptura com a tradição e utopias’ (cubismo e vanguardas até Pollock), (c) ‘constituição de um circuito de arte’ (das vanguardas às neo-vanguardas, sobretudo a arte conceitual), (d) ‘relações com o real’ (a partir da Pop arte e Fluxus), (e) ‘virtualidade imagética e conceitual e espetacularização’ (a partir de fins do século XX). (p. 3)

    As mudanças de concepção museológica acompanham as transformações

    artísticas e indicam o deslocamento das questões conceituais e de linguagem. Estas, para

    Basbaum (op. cit.), “informam e conformam as obras, para os parâmetros conceituais e

    arquitetônicos que constituem o museu” (p. 5), estabelecem “um corpo de estudos

    28 Basbaum, Ricardo. Perspectivas para o museu do século XXI. Disponível em: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/artigos/rb_museu. Acesso em 18 de julho de 2007.29 Referência à inauguração do MoMA, em Nova York, em 1937.

    29

  • museológicos e curatoriais capaz de se emancipar em relação à obra de arte enquanto

    finalidade fechada” (idem) e trazem à cena o espaço arquitetônico e as concepções

    museológicas

    (...) obra e museu estabelecem uma relação dinâmica, de mútua implicação: sob uma perspectiva contemporânea (isto é, após 1945), o ambiente do circuito de arte é aquele que também constitui a espacialidade própria para a obra; se pensarmos o museu como importante parte do circuito, percebe-se como muitas obras são produzidas para o museu – de modo que, de maneira ampla, trata-se de uma dupla implicação. (ibidem)

    Para Grossmann30 (2007), “o museu de arte hoje é um sistema complexo

    modelado por múltiplas dimensões” (p. 1). Também pode ser apresentado

    simultaneamente como “uma tradição, um espetáculo, um lugar político, uma promoção

    social, uma arena para processos de ação sócio-cultural, uma especulação, uma

    corporação, uma experiência, bem como alegoria ou metáfora para a explanação, criação

    e manutenção de outras dimensões de conhecimento” (idem). Cita Marlaux,31 que na sua

    relação com o museu intencionava investigar “um novo ‘envelope’ capaz não só de

    promover um contexto diferenciado para as obras de arte que esse abriga como também

    de alimentar novas razões de ser para ambos, museu e arte” (p. 2).

    Percebo que estabelecer a aproximação com o museu de arte amplia as

    perspectivas de produção de conhecimento artístico e cultural, cria “sentido à atividade

    educativa e faz dela um instrumento de devir social” (Sarmento, 2004, p. 17 – grifo no

    original). O desafio do estudo provoca, mobiliza, estimula a apreciação das relações entre

    as instituições culturais de educação não-formal (o museu) e as crianças freqüentadoras.

    Nessa provocação, busco em Moura Santos32 (2001) a produção do discurso museológico

    como uma proposta dialógica que possibilite liberdade para a criação, a reflexão e a

    transformação do que está sendo representado.30Grossmann, Martin. O Museu de Arte hoje. Disponível em: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/artigos/o_museu_hoje/. Acesso em: 18 de julho de 2007. 31 Vale apontar que Malraux não tece uma crítica ao museu da cultura material, mas adiciona uma nova e contemporânea ala nesse complexo – o museu imaginário. Para Grossmann, “considerando o existencialismo de Malraux, o museu imaginário possibilita ‘uma enigmática libertação do tempo de todas as obras que ele seleciona’” (p. 2).32 Texto produzido para aula inaugural – 2001 do Curso de Especialização em Museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, proferida na abertura do Simpósio Internacional “Museu e Educação: conceitos e métodos”, realizado no período de 20 a 25 de agosto de 2001. Esse texto foi apresentado no Seminário Museu-Educação, ICOM/SEDAC/SEMRS, realizado no período de 12 a 15 maio de 2003 em Porto Alegre, pela Dra. Maria Célia de Moura Santos.

    30

  • A análise da educação, portanto, está sendo aqui realizada compreendendo-a como um processo que deve ter como referencial o patrimônio cultural, considerando que este é um suporte fundamental para que a ação educativa seja aplicada, levando em consideração a herança cultural dos indivíduos, em um determinado tempo e espaço, considerando que as diversas áreas do conhecimento não funcionam como compartimentos estanques, mas são parte de uma grande diversidade, que é resultado de uma teia de relações, em que cultura, ciência e tecnologia em cada momento histórico, são construídas e reconstruídas pela ação do homem, produtor de cultura e conhecimento. (p. 4)

    31

  • D

    2.3 – Arte – com quais palavras poderia dizer-te?33

    Com a que tu sensibilizas. (...) Sempre com as mesmas palavras, com as palavras comuns, com as de todos. (...) Sempre o mesmo e, ao mesmo tempo, com mil línguas de mil lábios. Tanto tu como eu estamos habitados por uma retórica amorosa elaborada durante séculos. (...) E na qual nem tu nem eu podemos falar-nos.

    Jorge Larrosa34

    Importa perceber a relação de mútua implicação que existe entre o desenvolvimento das linguagens artísticas e da concepção da obra de arte e o desenvolvimento dos modelos museológicos.

    Ricardo Basbaum35

    eparamo-nos com uma miríade de definições atinentes à arte. Segundo o artista

    plástico Waltércio Caldas (2007), nós “não sabemos, mas achamos que

    sabemos que a arte não é exatamente a busca da beleza”. O artista diz se atrever a ir

    mais adiante na definição tão corriqueira e tão normal, para que essa questão possa

    conversar um pouco mais com o verdadeiro destino da arte, e afirma acreditar que a arte:

    Seja a busca da beleza, eu acho que a arte é a construção da possibilidade do belo. É, portanto, uma operação de ordem transcendental quase mítica, utilizando para isso recursos tão desconhecidos e tão obscuros como ilusão, truques e outras palavras mais. (idem)

    Do mesmo modo, Caldas aponta que, “na medida em que o mundo passa a

    significar a obra de arte isso não é mais uma prerrogativa do artista, mas do mundo.

    Então, faça eu o que eu fizer, se o mundo disser que o que eu faço é arte, eu não preciso

    33 Referência a Jorge Larrosa.34 Linguagem e Educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 192.35Perspectivas para o museu do século XXI. Disponível em: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/artigos/rb_museus. Acesso em 18 de julho de 2007.

    32

  • me preocupar com isso”. Faz uma crítica ao “chamado arte educativo – uma espécie de

    monstro” criado por nós – “uma arte que não necessariamente leva à compreensão da

    arte, mas que leva à compreensão desse clone criado por esses próprios ensinamentos,

    como se o outro tivesse, de certa forma, inventando-se a si mesmo”. Faz a crítica no

    sentido positivo, para que “possamos compreender, porque se existe uma coisa que nós

    não queremos é reduzir a arte a uma técnica; é reduzir a arte a uma manufatura e reduzir

    a criação a uma simples criatividade”.

    A arte é um processo de desconhecimento. O artista, de certa maneira, trabalha com o desconhecido, tanto quanto ele trabalha com o conhecido. O artista que só trabalhasse com o conhecido estaria fazendo exatamente aquilo que se espera dele, isto é, nada. Porque ninguém espera do artista outra coisa que não seja a criação. (ibidem)

    A arte, que assume papel de linguagem expressiva, se aproxima do seu público e

    estende asas à imaginação – o que Vigotsky (2006) aponta como o que excede o

    cotidiano, trazendo uma “partícula de novidade [que] tem sua origem no processo criador

    do ser humano”36 (p. 11). Portanto, ao considerar que nos museus de arte encontramos as

    obras originais,37 essa proximidade assinala para as crianças novos conceitos, como faz o

    menino Guilherme,38 de 9 anos, que afirmou seu conceito sobre arte e o artista: “Ele se

    inspirou em alguma coisa. Imaginou e criou”. Para o Leandro,39 de 10 anos, a arte não

    tem erros nem acertos:

    Leandro: Claro que numa obra de arte não tem certo nem errado,mas tem que ficar bonito, né?Adriana: Por que tem que ficar bonito?Leandro: Claro, pra parecer bonito... É quando as pessoas olharem o desenho: “Bonito!”.Adriana: E se não, não é uma obra de arte?Leandro: Ainda é obra de arte, porque na arte não tem erro.

    Mais um conceito de arte, agora da turma do 2º. ano da Escola Estadual de Ensino Fundamental Maria Cordélia Simão Marques:40

    36 No original: “(...) partícula de novedad tiene su origen en el proceso creador del ser humano” (tradução pessoal). 37 Essa discussão aparece posteriormente no capítulo 2.4.38 Da turma do 4º. ano do Colégio Sevigné, no dia 7 de dezembro de 2006.39 Da Escola Municipal Neusa Goulart Brizola, no dia 21 de junho de 2007. A turma não foi identificada, pois eram crianças freqüentadoras da Oficina de Artes, em horário contrário ao escolar.40 No dia 29 de maio de 2007.

    33

  • Adriana: Então, gente, o que é arte?Luis: É subir nas árvores e se machucar.Mariana: Arte é colorido, são coisas feitas assim como pintar um desenho colorido.Andreina: Eu acho que é de aprender.

    Também diante da obra “O Nadador”, uma instalação da artista plástica Vera

    Chaves Barcellos, surgiram muitas questões sobre o que é arte, entre elas a turma do 2º.

    ano da escola supra citada:41

    Adriana: O que vocês acham que é isso aqui?Andreina: Por que não tem peixe aqui?Guria: Por que eles morreram?Cássia: Não, por causa que aqui é museu de arte.Adriana: E água é arte?Cássia: É água colorida.

    Segundo Camnitzer (2007b), a contribuição das artes é classificada de acordo com

    “seus produtos finais: quadros, peças teatrais, sinfonias, geralmente objetos

    discretos”42 (p. 1), sem considerar os processos de criação ou os modos de percepção

    desses produtos. Portanto, por esses motivos que o autor chama de “inventário de

    sintomas superficiais”43 (idem), as artes não tiveram a oportunidade de contribuir com a

    “planificação dos planos de estudo que tocaram temas que os transcenderam. (...) Diria

    que a arte se tornou uma disciplina porque foi abandonada pelas disciplinas”44 (ibidem);

    no contexto universitário, “as artes continuam permanecendo em um nível de atividades

    dedicadas a satisfazer o ócio”45 (ibidem).

    Nesta direção, o artista é aquele que, através da sua obra, tem o poder de dizer o

    que quer e, portanto, precisa “medir as conseqüências e responsabilizar-se por elas”46 (p.

    6). Já o espectador pode “aceitar ou rechaçar, ou inclusive ignorar essa

    41 No dia 31 de maio de 2007.42No original: “(...) sus productos finales: cuadros, obras de teatro, sinfonías, generalmente objetos discretos” (tradução pessoal).43 No original: “(...) inventario de síntomas superficiales” (tradução pessoal).44 No original: “(...) planificación de planes de estudios que tocaran temas que los trasciendan. (...) Diría que el arte se convirtió en una disciplina porque fue abandonado por las disciplinas” ( tradução pessoal).45 No original: “(...) las artes continúan permaneciendo en un nivel de actividades dedicadas a satisfacer el ocio” (tradução pessoal). 46 No original: “(...) medir las consecuencias de esa expresión y responsabilizarse de ellas” (tradução pessoal).

    34

  • mensagem”47 (idem). Esse público pode instaurar regras pelas quais o artista precisa

    adaptar-se. O autor aponta galerias e museus como um produto dessas regras.

    Em termos relativos isso é verdade e eu mesmo defini a arte para mim mesmo como um único “território livre” que tenho e o “campo em que posso ser onipotente sem causar danos ao próximo”. (...) a obra de arte tem que conquistar seu direito de piso para existir. Tem que ser inevitável, axiomática e imprescindível.48 (p. 9)

    Para Leite (2005), “a obra de arte é sempre social – o próprio artista é, também,

    espectador de sua obra. Ela carrega em si suas próprias categorias de veracidade; forma

    e conteúdo caminham juntos” (p. 20). Coli49 (2003) aponta que “toda obra de arte

    pressupõe, de algum modo, uma gravidade por parte do espectador” (p. 1). Nesse

    sentido, o “olhar sobre a obra de arte necessita da lentidão e do constante retorno” (idem).

    Também há uma “exigência da preparação do espírito, da volta freqüente ao objeto, do

    prazer do encontro e do reencontro, do rastreio entre diversas afinidades que podem ser

    encontradas no interior da cultura e que vêm fecundar o objeto” (ibidem). Assim, a arte

    move o olhar do espectador, “dispõe relações que se tecem de maneira intuitiva,

    provocando ao mesmo tempo prazer e percepção de fenômenos humanos. Ela é,

    portanto, lugar de prazer e de intuições secretas, cada uma alimentando a outra” (p. 2).

    Amaral (2003), no seu livro Arte para quê?, faz uma reflexão atinente à preocupação social na arte brasileira no período de 1930 a 1970. Fala dos dilemas, da

    necessidade ou desnecessidade da arte, suas preocupações, funções ou desfunções

    constitutivas para um entendimento da história da arte no Brasil. A autora cita Mario de

    Andrade quando este aborda uma das questões mais intrigantes da arte – a “relatividade

    de sua comunicação, somente possível para decodificadores com um mesmo

    repertório” (p. 102). Mais adiante, Andrade declara reconhecer uma multiplicidade de

    pontos de vista para uma obra de arte: “na verdade não existe uma concepção única de

    pintura, e as nacionalidades e as civilizações apresentam ‘ideais’ de pintura muito

    diferentes uns dos outros” (idem, – grifo meu).

    Adriana: O que é museu de arte? O que vocês imaginam?47 No original: “(...) aceptar o rechazar, o incluso de ignorar, ese mensaje” (tradução pessoal).48 No original: “En términos relativos eso es verdad y yo mismo definí el arte para mí mismo como el único “territorio libre” que tengo y el “campo en el que puedo ser omnipotente sin hacer daño al prójimo”. (...) la obra de arte tiene que ganarse su derecho de piso para existir. Tiene que ser inevitable, axiomática e imprescindible” (tradução pessoal). 49 A paixão pela arte: entrevista com Jorge Coli. 2003. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/ Acesso em 20 de julho de 2007.

    35

  • Carla:50 Tem coisas valiosas.Guri: Tem arte.Valdecir: Vai ter teatro, cultura.Guri: Tem até mulher nua, no quadro...Adriana: É no quadro pode ter. Então gente, o que vocês acham que é arte?Weslley: Pintura que os pintores fazem.Douglas: Pra se emocionar! Diogo: Filme, desenho, pintura...Maiara: Estátua e caricatura.Guria: Uma coisa bonita pra gente ver.

    Posso traçar um diálogo das crianças da Escola Estadual Coelho Neto que

    delineiam seus ideais relativos à arte com as considerações de Mario de Andrade acima

    descritas e As meditações de Palomar: o mundo contempla o mundo, escritas por Calvino

    (2004): “de quem são os olhos que olham? (...). Do lado de lá está o mundo; mas e do

    lado de cá?” (p. 102). O autor ainda comenta: “é da coisa observada que deve partir a

    trajetória que a associa à coisa que observa” (idem). Para além da poética, a

    comunicação e o entendimento se concentram na imaginação das crianças acerca do seu

    conceito de arte, do sentido de querer conhecer o museu de arte e em quais significados

    se configuram e se multiplicam, um mundo diferente daquele da escola, um mundo plural.

    Para Bakhtin (1992), “quanto mais forte, bem organizada e diferenciada for a coletividade

    no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será seu mundo

    interior” (p. 115). Encontro ainda em Calvino (op. cit.) o momento em que a personagem

    Palomar questiona quem é definido como observador e as coisas que vê – “um muro de

    pedra, uma concha de molusco, uma folha, uma chaleira – se apresentam a ele como se

    lhe solicitassem uma atenção minuciosa e prolongada” (p. 101), prossegue

    (...) põe a observá-las quase sem dar conta disso e seu olhar começa a percorrer todos os detalhes, e não consegue mais parar (...). [E decide que] [d]oravante redobrará sua atenção: primeiro, em não se esquivar a esses reclamos que vêm das coisas; segundo, em atribuir à operação de observar a importância que ela merece. (idem)

    Qual a importância que a arte merece na vida das crianças? Como elas

    descobrem a arte? É permitido a elas o deleite para observar os detalhes? Para Benjamin

    (2002), “há muito que o eterno retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria infantil, e a

    vida um êxtase primordial do domínio, com a retumbante orquestração como tesouro do

    50 E. E. Coelho Neto no dia 23 de maio de 2007.

    36

  • trono” (p. 106). Discutirmos arte com as crianças constrói sentidos outros, revela suas

    idéias, sua imaginação, seu pensamento e compreende um universo maior. Bakhtin

    mostra que “em cada pessoa, há um potencial de sentido que necessita ser desvendado.

    O outro precisa ‘chegar a ser palavra’, quer dizer, iniciar-se num contexto verbal e

    semântico possível para se revelar” (apud Jobim e Souza 1994, p. 52).

    Assinalo os momentos em que converso com as crianças acerca da arte, do

    museu de arte, das suas expectativas e imaginações, posto que percebo o quanto isto se

    torna valioso para mim e também para elas e, portanto, me questiono acerca de: como

    estimular e intensificar a relação com a arte, com o museu, com a educação e com a vida

    desses meninos e meninas? Como também delinear a importância de entrelaçar

    afinidades entre a arte e as instituições de ensino não-formal (os museus de arte) e dar

    seguimento a metodologias simples e claras, que ampliem os olhares e a percepção das

    crianças fruidoras?

    37

  • T

    2.4 – Serviço educativo: “Quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve”51

    (...) em nosso caso, os olhos e as mãos se encontram numa posição difícil: os olhos nada vêem, as mãos nada podem tocar, é o ouvido que, aparentemente mais bem situado, tem a pretensão de escutar a palavra, de ouvir a linguagem.

    Mikhail Bakhtin52

    (...) agora já desejava uma grande variedade de modelos, se possível transformáveis uns nos outros segundo um procedimento combinatório, para encontrar aquele que se adaptasse melhor a uma realidade que por sua vez fosse feita de tantas realidades distintas, no tempo e no espaço. (...) o que conta na verdade é aquilo que ocorre não obstante eles: a forma que a sociedade vai adquirindo lentamente, silenciosamente, anonimamente, nos hábitos, no modo de pensar e de fazer, na escala de valores.

    Italo Calvino53

    raçando linhas para dinamizar a relação do museu com o público, o serviço

    educativo promove atividades de aproximação, de fruição e contemplação da

    obra de arte. Na pesquisa de Cabral Santos (1997, p. 30), encontro que “a assunção de

    pressupostos teóricos que explicitam as concepções de museu, sociedade, criança,

    educação e educação em museus são fundamentais para a orientação de uma proposta

    educativa, seja na escola, seja no museu” – o que me leva a repensar o significado e

    abrangência do trabalho que vem sendo realizado pelo serviço educativo dos museus de

    arte. As instituições elaboram conceitos de visitas orientadas, guiadas, monitoradas ou

    mediadas, com as denominações de monitores, mediadores, orientadores e educadores,54

    dinâmicas para estabelecer uma relação mais próxima da arte com o espectador. Roteiros

    51 Walter Benjamin 1994b, p. 193.52 Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 69.53 Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 99 – grifos no original.54 Carvalho (2005, p. 42) traz à tona esta discussão.

    38

  • são desenvolvidos para a construção do conhecimento artístico e para a apreciação

    estética e poética das obras expostas. A autora supra-citada movimenta a provocação no

    que diz respeito à complexidade de funções e responsabilidades sociais do museu para

    com os interesses e necessidades do público, suscitando novas perspectivas, novos

    equilíbrios e novas formas de comunicar. Pontua que essas “formas de comunicar através

    do equilíbrio e do intercâmbio entre o museu e o público, são questões que constituem um

    desafio” para as atividades realizadas no museu, e acrescenta que essas ações “apontam

    para uma total re