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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ ELIANE KURSCHUS ASSIS TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Biguaçu - SC 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

ELIANE KURSCHUS ASSIS

TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Biguaçu - SC 2008

ELIANE KURSCHUS ASSIS

TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Monografia submetida à Universidade do Vale

do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à

obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. MSc. Nilton João de Macedo Machado

Biguaçu 2008

ii

ELIANE KURSCHUS ASSIS

TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas, nota 10 (dez) e louvor.

Área de Concentração: Direito Penal

Biguaçu, 10 de novembro de 2008

Prof. MSc. Nilton João de Macedo Machado UNIVALI – Campus de Biguaçu

Orientador

Prof. MSc. Artur Jenichen Filho UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

Prof. MSc. Eunice A. de Souza Trajano UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

iii

AGRADECIMENTO

Agradeço a Deus, pelo dom da vida, por

me amar incondicionalmente e sempre

estar comigo me proporcionando a sua

paz e serenidade para enfrentar os

obstáculos e desafios que me atravessam

o caminho. Agradeço a Deus por ser a

pessoa mais feliz do mundo, pois O tenho

sempre ao meu lado. E agradeço também

à Nossa Senhora, minha mãe, por me

ouvir, falar ao meu coração e ser minha

intercessora junto ao Pai.

Agradeço em especial ao professor e meu

orientador Nilton João de Macedo

Machado, por toda força e dedicação que

me foi dada durante a execução desta

monografia, proporcionando vários

momentos de aprendizagem e incentivo.

Agradeço aos meus pais, Helenita e

Constantino, que são as pessoas mais

maravilhosas que conheço. Se hoje eu

sou o que sou, devo isso à vocês por toda

a educação, amor e carinho que me foi

dado. O meu muito obrigado por estarem

presentes em todos os momentos da

minha vida, me incentivando, participando

e me orientando a sempre trilhar os

caminhos corretos. Amo vocês!

Agradeço a minha querida irmã Maria

Isabel Kurschus Assis, que mesmo

deixando às vezes de lhe falar, a amo

muito e sempre rezo por sua felicidade.

Conte sempre comigo!

Agradeço ao meu namorado Bruno

Schmidt Vieira, pelo incentivo e paciência

iv

que teve em todos os momentos na

realização da monografia, por sempre

estar presente e fazer parte da minha

vida. Te amo!

Agradeço ao meu cunhado Ramon

Santana dos Passos, pelo carinho e apoio

na realização deste trabalho.

Agradeço a minha prima Karla Zapelini

Kurschus, por todo o carinho e ajuda na

finalização da monografia.

Agradeço a minha prima, Promotora

Regina Kurschus, pela oportunidade que

tive de estagiar em seu gabinete no

Fórum da Capital. Exemplo de mulher e

profissional que me incentiva todos os

dias.

Agradeço também a Universidade do Vale

do Itajaí e a todos os demais professores

por todo o conhecimento adquirido ao

longo da minha vida acadêmica.

Aos amigos do trabalho e da

universidade, por toda força que me foi

dada, sempre prestativos e colaborativos.

Por fim, agradeço a todas as pessoas

envolvidas na elaboração desta

monografia que contribuíram de alguma

forma para que este trabalho pudesse

chegar à sua fase final. A compreensão

de amigos, professores, familiares,

pessoal do meu ministério de música e a

equipe do meu trabalho.

v

A vida me ensinou... A dizer adeus às pessoas que amo, Sem tirá-las do meu coração; Sorrir às pessoas que não gostam de mim, Para mostrá-las que sou diferente do que elas pensam; Fazer de conta que tudo está bem quando isso não é verdade, Para que eu possa acreditar que tudo vai mudar; Calar-me para ouvir; Aprender com meus erros. Afinal eu posso ser sempre melhor. A lutar contra as injustiças; Sorrir quando o que mais desejo é gritar todas as minhas dores para o mundo, A ser forte quando os que amo estão com problemas; Ser carinhosa com todos que precisam do meu carinho; Ouvir a todos que só precisam desabafar; Amar aos que me machucam ou querem fazer de mim depósito de suas frustrações e desafetos; Perdoar incondicionalmente, Pois já precisei desse perdão; Amar incondicionalmente, Pois também preciso desse amor; A alegrar a quem precisa; A pedir perdão; A sonhar acordado; A acordar para a realidade (sempre que fosse necessário); A aproveitar cada instante de felicidade; A chorar de saudade sem vergonha de demonstrar; Me ensinou a ter olhos para "ver e ouvir estrelas", embora nem sempre consiga entendê-las; A ver o encanto do pôr-do-sol; A sentir a dor do adeus e do que se acaba, sempre lutando para preservar tudo o que é importante para a felicidade do meu ser; A abrir minhas janelas para o amor; A não temer o futuro; Me ensinou e esta me ensinando a aproveitar o presente, como um presente que da vida recebi, e usá-lo como um diamante que eu mesma tenha que lapidar, lhe dando forma da maneira que eu escolher. (Charles Chaplin)

vi

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Biguaçu, 10 de novembro de 2008.

___________________________________________________________________

Eliane Kurschus Assis

vii

RESUMO

Esta monografia tem como objetivo estudar a tortura e maus tratos praticados contra

crianças e adolescentes dentro do ambiente familiar, a denominada violência

doméstica, prática esta freqüente na sociedade, representada por um ato de

verdadeira indignação, principalmente pelas formas cruéis em que ela se mostra,

pelo fato de que as pessoas que atentam de uma forma ou de outra contra a criança

ou o adolescente, sejam as pessoas de sua convivência mais íntima. No primeiro

capítulo, busca-se demonstrar a importância dos direitos fundamentais, iniciando-se

com seu conceito até a solução dos conflitos entre os direitos fundamentais. O

capítulo seguinte visa analisar a importância da família para o desenvolvimento da

criança e do adolescente, além dos deveres à ela pertencente, bem como à

sociedade e ao Estado, buscando a segurança e proteção dos direitos fundamentais

inerentes à pessoa humana, protegendo a criança e o adolescente contra qualquer

ato violento e agressivo ameaçadores do núcleo familiar. Por fim, o terceiro capítulo

pretende analisar o crime de tortura, trazendo seu histórico, conceito, a tortura na

legislação brasileira – Lei n. 9.455/97, finalizando com a distinção entre o crime de

tortura e o crime de maus tratos. Neste sentido, o trabalho busca contribuir no

sentido de que melhor seja analisada a violência praticada no âmbito familiar e,

assim, distinguir em que categoria se inclui esta violência, evitando-se, dessa forma,

continuar enquadrando como maus tratos condutas estas que possuem tipicidade na

lei de tortura.

Palavra-chave: Violência, Família, Maus tratos, Tortura, Criança, Adolescente.

viii

ABSTRACT

The objective of this monograph is to study the torture and mistreatments practiced

against children and teenagers within the family environment, the called domestic

violence, frequent practice at society, represented by an act of true indignation,

specially because of the cruel forms in which it shows itself, because of the fact of

people who attack in one form or another against the child or the teenager, are the

people of their most intimate acquaintanceship. The first chapter seeks to

demonstrate the importance of the fundamental rights, beginning with its concept

until the solution of the conflicts between the fundamental rights. The following

chapter aims to analyse the importance of the family to the development of the child

and the teenager, besides the duties belonging to it, as to the society and the State,

searching the security and protection of the fundamental rights inherent to the human

person, protecting the child and the teenager against any violent and aggressive act

threatening to the family. Finally, the third chapter intends to analyse the crime of

torture, bringing its historic, concept, the torture in the brazilian legislation – Law

number 9.455/97, finalizing with the distinction between the crime of torture and the

crime of mistreatments. According to this, the paper seeks to contribute on the sense

of better analysis about the violence practiced within the family environment and, so,

distinguish which category includes this violence, avoiding, with this, to continue

framing as mistreatment conducts like these which are typified in the torture law.

Key-words: Violence, Family, Mistreatments, Torture, Child, Teenagers.

ix

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................. 3

1.1 CONCEITO ........................................................................................................... 3

1.2 CARACTERÍSTICAS ............................................................................................. 4

1.2.1 Direitos universais e absolutos....................................................................... 5

1.2.2 Imprescritibilidade............................................................................................ 5

1.2.3 Historicidade ..................................................................................................... 6

1.2.4 Inalienabilidade................................................................................................. 6

1.2.5 Irrenunciabilidade............................................................................................. 7

1.2.6 Relatividade (limitabilidade) ............................................................................ 7

1.2.7 Aplicabilidade imediata .................................................................................... 8

1.3 CLASSIFICAÇÕES POR GERAÇÕES ................................................................. 8

1.3.1 Direitos fundamentais de primeira geração ................................................... 9

1.3.2 Direitos fundamentais de segunda geração .................................................. 9

1.3.3 Direitos fundamentais de terceira geração .................................................... 9

1.3.4 Direitos fundamentais de quarta geração .................................................... 10

1.4 EFICÁCIA ............................................................................................................ 10

1.5 DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ............................................................ 12

1.5.1 Direito à vida ............................................................................................. 13

1.5.1.1 Direito à dignidade da pessoa humana ...................................................................... 14

1.5.1.2 Direito à privacidade ................................................................................................ 15

1.5.1.3 Direito à integridade física ........................................................................................ 16

1.5.1.4 Direito à integridade moral ....................................................................................... 16

1.5.1.5 Direito à existência ................................................................................................... 16

1.6 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS AO DIREITO PENAL E AO PROCESSO ..... 17

1.6.1 Conceito de princípios ................................................................................... 17

1.6.2 Princípio da dignidade da pessoa humana .................................................. 18

1.6.3 Princípio da igualdade ................................................................................... 20

1.6.4 Princípio da legalidade .................................................................................. 21

1.6.5 Princípio da ofensividade .............................................................................. 22

x

1.6.6 Princípio da proibição das provas obtidas por meios ilícitos .................... 22

1.6.7 Princípio da motivação das decisões judiciais............................................ 23

1.6.8 Princípio do devido processo legal .............................................................. 24

1.6.9 Princípio do prazo razoável ........................................................................... 24

1.6.10 Princípio da presunção de inocência ......................................................... 25

1.6.11 Princípio da publicidade .............................................................................. 26

1.6.12 Princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ................................. 26

1.6.13 Princípio da individualização da pena ........................................................ 28

1.7 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO, NORMA E REGRA ........................................ 29

1.8 COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ..................................................... 31

1.8.1 Considerações preliminares ......................................................................... 31

1.8.2 Tipos de colisão ............................................................................................. 32

1.8.2.1 Colisão entre os próprios direitos fundamentais ........................................................ 33

1.8.2.2 Colisão entre os direitos fundamentais e outros valores constitucionais .................... 33

1.8.3 Solução dos conflitos .................................................................................... 34

2 A FAMÍLIA, A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA

NO ÂMBITO FAMILIAR ............................................................................................. 37

2.1 DA FAMÍLIA ........................................................................................................ 37

2.1.1 Histórico da Família ....................................................................................... 37

2.1.1.1 A Família no direito romano ..................................................................................... 38

2.1.1.2 A Família no direito canônico ................................................................................... 39

2.1.1.3 A Família na legislação brasileira ............................................................................. 40

2.1.2 Conceito de família ......................................................................................... 42

2.1.3 Conceito de criança e adolescente ............................................................... 43

2.1.4 Direito à convivência familiar ........................................................................ 45

2.2 DO PODER FAMILIAR ........................................................................................ 46

2.3 O DIREITO E O ESTADO PROTETOR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE .. 51

2.4 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ................................................................................ 53

2.4.1 Conceito de violência e a violência intrafamiliar ......................................... 54

2.4.2 Formas de violência no âmbito familiar ....................................................... 57

2.5 DO CRIME DE MAUS TRATOS .......................................................................... 60

3 TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ........... 65

3.1 HISTÓRICO DA TORTURA ................................................................................ 65

3.1.1 Antiguidade ..................................................................................................... 66

xi

3.1.2 Idade Média ..................................................................................................... 67

3.1.3 Inquisição ........................................................................................................ 69

3.1.4 Idade Moderna ................................................................................................ 71

3.2 A TORTURA NO BRASIL .................................................................................... 72

3.3 CONCEITO DE TORTURA ................................................................................. 74

3.4 A TORTURA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA – LEI Nº 9.455/97 ...................... 78

3.5 TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAs E ADOLESCENTEs –

DISTINÇÃO ............................................................................................................... 85

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 92

REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS ................................................................. 95

ANEXOS ................................................................................................................. 102

INTRODUÇÃO

O motivo ensejador da escolha do tema ―tortura e maus tratos contra crianças

e adolescentes‖ foi em virtude do crescente número de crianças e adolescentes

vítimas da violência intrafamiliar, exteriorizada como abuso do poder disciplinar e

coercitivo dos pais ou responsáveis em relação aos filhos, existindo, pois, a

necessidade em analisarmos tais atos violentos, sob pena de continuarem

enquadrando como maus tratos, crimes estes que possuem tipicidade na Lei de

Tortura.

Dessa forma, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar e

proteger os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, especificados e

garantidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo

227 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, pondo-as a salvo de qualquer

tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Este é um dos principais objetivos dessa pesquisa que visa, antes de tudo,

analisar o crime de tortura na tipificação prevista, no artigo 1º, inciso II, da Lei n.

9.455/97, comparando-a e demonstrando pontos divergentes e comuns com o crime

de maus tratos estabelecido no artigo 136 do Código Penal, em específico quando

praticados contra a criança e o adolescente por seus pais ou responsáveis, ou seja,

a violência no âmbito familiar como forma de castigo pessoal ou medida de caráter

preventivo.

Na elaboração desta pesquisa foi utilizado o método dedutivo, versando sobre

a importância dos direitos fundamentais até sua violação quando da prática de

violência doméstica contra a criança e o adolescente e, assim, analisar os crimes de

tortura com o disposto no art. 136 do Código Penal.

A estrutura do presente trabalho está dividida em três capítulos, com o

escopo de facilitar a compreensão do tema proposto, destacando-se os conceitos

operacionais que vão sendo definidos no decorrer da exposição.

No primeiro capítulo versa-se sobre os direitos fundamentais, trazendo seu

conceito, características, classificações, eficácia, analisando o direito à vida,

2

elencando os princípios constitucionais ao direito penal e ao processo, distinção

entre princípio, norma e regra, e por fim, trata-se da colisão dos direitos

fundamentais. Faz-se, pois, uma análise da importância dos direitos fundamentais

por serem indispensáveis para a interpretação da própria Constituição da República

Federativa do Brasil.

No segundo capítulo estuda-se acerca da família, a proteção da criança e do

adolescente e a violência no âmbito familiar, uma vez que é através da família onde

dá-se o desenvolvimento da criança e do adolescente, sendo dever dos pais ou

responsáveis garantir o cumprimento dos seus direitos e deveres, competindo ao

Estado protegê-los.

Por fim, no terceiro capítulo, estuda-se os crimes de tortura, trazendo seu

histórico, a tortura no Brasil, conceito, a tortura na legislação brasileira – Lei n.

9.455/97, finalizando com a distinção entre os crimes de tortura e os crimes de maus

tratos.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações Finais,

nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da

estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a aplicação da lei de

tortura.

Assim, o estudo preocupa-se em apresentar contribuições no sentido de que

melhor seja analisada a violência praticada no âmbito familiar e, dessa forma,

imputada a conduta mais gravosa e não inserí-las entre os sujeitos do art. 136 do

Código Penal, como têm ocorrido.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas, do Referente,

da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica.

Em anexo, está a lei e as jurisprudências que auxiliaram na confecção desta

monografia.

3

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS

A importância dos direitos fundamentais pode ser verificada no Preâmbulo da

Constituição da República Federativa do Brasil1, que proclama que a Assembléia

Constituinte teve como base, para a inspiração de seus trabalhos, o desígnio de

―instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança‖. A partir disso, há de se ter os

direitos fundamentais como o pilar ético-jurídico-político da própria compreensão da

CRFB/88, sendo, dessa forma, indispensável para a interpretação constitucional, o

domínio das considerações técnicas que os direitos fundamentais suscitam.2

1.1 CONCEITO

O termo ―direitos fundamentais” é reservado para aqueles direitos inerentes

ao homem, positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado,

encontrando repouso na CRFB/88, em seu Título II, que trata dos Direitos e

Garantias Fundamentais, em outros dispositivos do texto constitucional e fora dele3,

não se confundindo com a expressão ―direitos humanos” que, na visão de Gilmar

Ferreira Mendes:

É reservada para aquelas reivindicações de respeito a certas

posições que são essenciais ao homem. São direitos postulados em base jusnaturalistas, não possuindo como característica básica a positivação numa ordem jurídica particular, sendo empregada para designar pretensões de respeito à pessoa humana, inseridas em documentos de direito internacional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos.4

1 A partir desse momento a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 será tratada

como CRFB/88. 2 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso

de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 221. 3 SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2001. p. 26. 4 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. p. 234.

4

A partir disso, verifica-se que os direitos humanos são tidos como a primeira

emanação dos direitos fundamentais, os quais fazem menção tanto a atividade

positiva como a negativa do Estado, compreendendo os direitos individuais e

sociais, sem se limitar apenas aos sistemas de proteção.5

Para Carl Schmitt, os direitos fundamentais são, em sentido próprio:

[...] aqueles direitos do homem individual livre e, por certo, direito que ele tem frente ao Estado, que decorre do caráter absoluto da pretensão, cujo exercício não depende de previsão em legislação infraconstitucional, cercando-se o direito de diversas garantias com força constitucional, objetivando-se sua imutabilidade jurídica e política.6

Teoricamente, na concepção de Jorge Miranda, os direitos fundamentais são

as posições jurídicas subjetivas das pessoas, individualmente ou institucionalmente

consideradas, assegurados na CRFB/88, e que tem por finalidade o princípio da

universalidade, pois visam atingir todos quantos fazem parte da comunidade

jurídico-política.7

Os direitos fundamentais possuem, pois, uma estrutura garantidora de direitos

subjetivos e impositivos de deveres objetivos, cumprindo uma função de direitos de

defesa dos cidadãos como normas de competência negativa para os poderes

públicos, proibindo a intervenção destes na esfera jurídica individual e no poder de

exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões

dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos

(liberdade negativa).8

1.2 CARACTERÍSTICAS

5 ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material.

Florianópolis: Habitus, 2002. p. 47. 6 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1996. p. 190. Apud:

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 26. 7 SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 28.

8 SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 29 .

5

Sendo uma categoria indispensável de direitos, os direitos fundamentais

possuem peculiaridades que vão segui-los no seu exercício em duas relações:

indivíduo-Estado e na relação indivíduo-terceiros, quais sejam:

1.2.1 Direitos universais e absolutos

São direitos universais pois todas as pessoas são titulares de direitos

fundamentais, tendo como condição para seu aferimento apenas a existência

humana. No entanto, deve-se ressaltar que alguns direitos fundamentais específicos

não se ligam a toda e qualquer pessoa, não interessando a todos os indivíduos,

como por exemplo no caso dos trabalhadores.9

Nesse sentido, afirma Luis Prieto Sanchís que:

O constituinte também quis privilegiar certos bens que vêm satisfazer necessidades do homem histórico, isto é, de alguns homens na sua específica posição social. A fundamentalização desses direitos implica reconhecer que determinados objetivos vitais de algumas pessoas têm tanta importância como os objetivos básicos do conjunto dos indivíduos.10

Dessa forma, a característica de universalidade traz consigo a aplicação dos

direitos humanos em face da coletividade em geral.

1.2.2 Imprescritibilidade

Os direitos fundamentais, por sua natureza especial, têm aplicação imediata

e não prescrevem.

De acordo com José Afonso da Silva:

9 DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 81.

10 SANCHÍS, Luis Prieto. Apuntes de teoría del derecho. Madrid: Trotta, 2005. p. 82. Apud:

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. p. 230.

6

A prescrição é um instituto jurídico que somente atinge a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade de direitos personalíssimos, ainda que não individuais, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição.11

Dessa maneira, não possuem prazo para serem exercidos pois sua relevância

impede sua perda pelo decurso do prazo; caso contrário, estaria violando o princípio

da dignidade da pessoa humana, que é fundamento do nosso Estado.12

1.2.3 Historicidade

Os direitos fundamentais são históricos pois surgem novos direitos a partir de

exigências históricas dos homens em determinado momento cronológico.

Nesse compasso, Sérgio Cademartori relata que:

De fato, os direitos fundamentais são frutos de condições reais ou históricas, que demarcam a passagem do regime da monarquia absoluta para o Estado de Direito, ao lado de condições subjetivas ou ideais ou lógicas, que são dadas pelo pensamento cristão primitivo, com sua idéia de igualdade de todos os homens, pelo pensamento jusnaturalista de corte racionalista, e pelo pensamento iluminista, com seu elogio às liberdades inglesas.13

Portanto, a historicidade denota a evolução histórica dos direitos

fundamentais no decorrer da história da sociedade, nas conquistas sociais temporais

que foram se sedimentando ao longo dos anos.

1.2.4 Inalienabilidade

11

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 185. 12

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 81. 13

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 34.

7

A inalienabilidade dos direitos fundamentais consiste na impossibilidade de

transferência destes direitos, tanto a título gratuito, como a título oneroso. Segundo

Luigi Ferrajoli:

A inalienabilidade fundamenta-se no fato de que os direitos fundamentais são normativamente direitos de todos os membros de uma coletividade, por isso não são alienáveis ou negociáveis, já que correspondem a prerrogativas não contingentes e inalteráveis de seus titulares e a outros tantos limites e vínculos inarredáveis para todos os poderes, tanto públicos como privados.14

Essa característica tem por intuito proteger o indivíduo em sua integralidade,

estabelecendo a este o dever de permanecer com seu direito, independente da

condição em que se encontre.15

1.2.5 Irrenunciabilidade

Os direitos fundamentais, visto que intrínsecos ao ser humano, são

irrenunciáveis e, sendo assim, esta condição de inerência ao ser humano faz com

que todos os indivíduos sejam dotados de um patamar mínimo de proteção,

congênito à sua condição humana, não podendo nem o próprio indivíduo renunciá-

los, visto que a aderência desses direitos à condição humana faz com que a

renúncia a eles traduza, em última análise, a renúncia da própria condição humana,

que, por natureza, é irrealizável.16

1.2.6 Relatividade (limitabilidade)

Os direitos fundamentais em comunhão com os demais direitos, não são

absolutos, mas limitáveis, em virtude de que, por vezes, o comando de sua

14

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2006. p. 186. 15

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 81. 16

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 125.

8

aplicação concreta não pode resultar na aplicação da norma jurídica em toda sua

extensão e alcance.17

O problema da limitação de direitos fundamentais é um dos mais importantes

e complexos do direito constitucional pois, muitas vezes, os direitos estão em

conflitos com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos, devendo-se,

nesse caso, existir uma concordância entre estes, usando o princípio da

Proporcionalidade para que tais limites sejam resolvidos.18

1.2.7 Aplicabilidade imediata

Segundo o artigo 5º, §1º, da CRFB/88: ―as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Desse modo, as características dos

direitos fundamentais têm por fim conceder-lhes uma maior concretização e

efetividade, ao passo que tais direitos são indispensáveis por assegurar uma

existência digna, humana e fraterna.19

1.3 CLASSIFICAÇÕES POR GERAÇÕES

Sintetizando a evolução histórica e conceitual dos direitos fundamentais,

classificam-se tais direitos em gerações, de acordo com o momento do seu

surgimento.

Ingo Wolf Sarlet relata que:

Os direitos fundamentais, desde o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, passaram por diversas transformações, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto ao que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação.20

17

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. p. 122. 18

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 82. 19

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 82. 20

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 49-50.

9

Dessa forma, a sedimentação dos direitos fundamentais como normas

obrigatórias é resultado de uma maturação histórica, compreendendo, pois, que tais

direitos não são os mesmos em todas as épocas.

1.3.1 Direitos fundamentais de primeira geração

São os chamados direitos negativos ou de defesa, justamente por impor ao

Estado limitações na sua atuação, não podendo interferir na situação jurídica do

indivíduo. São os direitos que perfazem a liberdade do ser humano e têm como

conteúdo os direitos políticos e os direitos civis. Exemplos: direito à liberdade; direito

à propriedade.21

1.3.2 Direitos fundamentais de segunda geração

Os direitos de segunda geração se referem aos direitos sociais, culturais e

econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades onde, a partir dessa

etapa, o Estado assume uma indiscutível função promocional, não mais sendo

suficiente sua abstenção relativamente ao indivíduo. São os direitos à igualdade

(direitos positivos), situação na qual o Estado deve prestar serviços ao cidadão

tendo por objetivo atingir a justiça social. Podem ser citados como exemplos desta

dimensão dos direitos fundamentais: direito à saúde e direito à educação.22

1.3.3 Direitos fundamentais de terceira geração

21

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 563. 22

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 564.

10

Nesta etapa, é abordada a sociedade como uma organização de pessoas e

não apenas o indivíduo singularmente considerado. São os direitos da solidariedade

humana, pois não se destinam a pessoas determinadas ou a grupos de pessoas,

mas têm por destinatário toda a coletividade, em sua acepção difusa, como o direito

à paz, idosos, crianças, defesa do consumidor, ao meio ambiente e ao patrimônio

comum da humanidade.23

1.3.4 Direitos fundamentais de quarta geração

Para Ingo Wolfgang Sarlet, os direitos fundamentais de quarta geração:

São aqueles direitos que se relacionam com a biotecnologia, manipulação de células-tronco, temáticas sobre a ética aliada ao avanço tecnológico, resultado de uma globalização política na esfera da normatividade jurídica, correspondendo à derradeira fase de institucionalização do Estado social.24

Para Paulo Bonavides:

São direitos de quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.25

A visão dos direitos fundamentais em termos de gerações indica o caráter

cumulativo da evolução desses direitos no tempo, porém, não se deve deixar de

situar os direitos em um contexto de unidade e indivisibilidade, em virtude de que

cada direito de determinada geração interage com os das outras e assim, dá-se a

compreensão.

1.4 EFICÁCIA

23

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 83. 24

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 49-50. 25

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 571.

11

A questão jurídica não é classificar os direitos fundamentais como absolutos

ou relativos, mas sim debater qual é a forma mais segura e eficiente de torná-los

eficazes, impedindo as constantes violações dos direitos declarados em documentos

internacionais e nacionais.

Para Sérgio Cademartori ―a eficácia é considerada como decorrente do

efetivo comportamento dos destinatários em relação à norma posta, bem como a

sua aplicação pelos tribunais em caso de descumprimento.‖26

Dessa forma, a abordagem envolvendo a eficácia dos direitos fundamentais,

deve-se fazer, necessariamente, a partir da interpretação do disposto no artigo 5º,

§1º, da CRFB/88, de acordo com o qual ―as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais têm aplicação imediata‖, tratando-se de opção do legislador

constituinte de inegável importância histórica.27

Ingo Wolfgang Sarlet ao deparar-se com o alcance do artigo 5º, §1º, da

CRFB/88, ensina que:

A norma em exame não pode atentar contra a natureza das coisas, de tal sorte que boa parte dos direitos fundamentais alcança sua eficácia apenas nos termos e na medida da lei, e os que, situados em outro extremo, advogam o ponto de vista segundo o qual até mesmo normas de cunho nitidamente programático podem ensejar, em virtude de sua imediata aplicabilidade, o gozo de direito subjetivo individual, independentemente de concretização legislativa. 28

Neste contexto, a norma contida no artigo 5º, §1º, da CRFB/88 impõe aos

órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais pois, além

do objetivo de assegurar a força em vincular os direitos e garantias fundamentais, os

poderes públicos possuem a atribuição constitucional de promover as condições

para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos.29

No mesmo sentido, conforme Alexandre Moraes da Rosa:

Os Direitos Fundamentais desfilam com papel preponderante, ao propiciar a mensuração da concretização da Constituição, estabelecem o que pode ser deliberado pelo Poder Legislativo e o que deve ser garantido pelo Poder Judiciário, mediante o controle da

26

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. p. 44. 27

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 58. 28

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 250. 29

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 256.

12

constitucionalidade material das normas, sujeitando os indivíduos, no Estado Democrático de Direito, somente às leis válidas, impedindo que eventuais maiorias violem direitos indissociáveis e construídos historicamente. A eficácia se constitui como parâmetro de aferição do grau de democracia material da sociedade.30

Dessa forma, a teoria garantista, muito embora carregada de posições

críticas, é importante no sentido de fazer a junção entre a normatividade e a

efetividade, ou seja, de conseguir minimizar a distância existente entre o texto da

norma e a sua aplicação ao mundo empírico. No entender de Luigi Ferrajoli:

O garantismo seria uma forma de direito que se preocupa com aspectos formais e substanciais que devem sempre existir para que o direito seja válido. Essa junção de aspectos formais e substanciais teria a função de resgatar a possibilidade de se garantir, efetivamente, aos sujeitos de direito, todos os direitos fundamentais existentes. É como se a categoria dos direitos fundamentais fosse um dado ontológico para que se pudesse aferir a existência ou não de um direito: em outras palavras, se uma norma é ou não válida. 31

Assim, o garantismo deve ser medido do ponto de partida de observação do

analisador e não apenas por um referencial, fazendo da norma estatal um ponto de

início para a observação de sua adequação ou não à realidade social. 32

1.5 DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

De início, salienta-se que existem diferenças entre os direitos e as garantias

fundamentais, tendo em vista que enquanto os direitos teriam por nota de destaque

o caráter declaratório ou enunciativo, as garantias estariam marcadas pelo seu

caráter instrumental, ou seja, seriam os meios voltados para a obtenção ou

reparação dos direitos violados.33

Assim, a CRFB/88 instituiu várias garantias e entendeu que certos direitos,

em virtude de sua indisponibilidade e grande relevância, devem ser guardados sob

30

ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. p. 35. 31

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. p. 198. 32

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. p. 198. 33

ARAUJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. p. 110.

13

uma ampla proteção, alcançando-os à categoria de cláusula pétrea, ou seja, como

núcleo intangível pela Constituição.34

Representando essa classe, temos os direitos e garantias individuais, mas,

levando em consideração o objeto da presente monografia, será analisado neste

subtítulo apenas o direito à vida, uma vez que no conteúdo de seu conceito

envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à

integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e o direito à existência.35

1.5.1 Direito à vida

O direito à vida, previsto no art. 5º, caput, da CRFB/8836, abrange tanto o

direito de não ser morto, ou seja, o direito de continuar vivo, como também o direito

de ter uma vida digna.37

Destaca-se que o direito à vida é o primeiro e mais importante dos direitos,

pois diz respeito à questão vida humana como sendo um valor em si mesma, além

de ser condição para o exercício dos demais direitos.38

José Cretella Júnior, afirma que:

A vida é um direito garantido pelo Estado e que, se assim o é, esse direito é inviolável, embora não inviolado. O direito à vida é o primeiro dos direitos invioláveis, assegurados pela Constituição. Direito à vida é expressão que tem no mínimo, dois sentidos, ou seja, o direito a continuar vivo, embora esteja com saúde e, o direito de subsistência. Assim têm-se que a primeira definição está ligada à segurança física da pessoa humana, quanto a agentes humanos ou não, que possam ameaçar-lhe a existência. A segunda definição se correlaciona ao direito de prover a própria existência, mediante trabalho honesto. O

34

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 90. 35

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 201. 36

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 37

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 595. 38

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 89 e 90.

14

trabalho, como meio de subsistência, é poder-dever do Estado, que deve protegê-lo, assegurando-lhe condições necessárias para concretizar-se.39

De nada adiantaria a CRFB/88 assegurar outros direitos fundamentais, como

a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana

em um desses direitos.40

1.5.1.1 Direito à dignidade da pessoa humana

O artigo 1º da CRFB/8841 coloca entre os fundamentos do Estado

Democrático de Direito, ao lado da soberania, e da cidadania, a dignidade da pessoa

humana.

Ingo Wolfgang Sarlet, quanto à dignidade da pessoa humana, afirma:

Em primeiro lugar, relembrando que a dignidade da pessoa humana repousa [..] na autonomia pessoal, isto é, na liberdade (no sentido de capacidade para a liberdade) que o ser humano possui de, ao menos potencialmente, formatar a sua própria existência e ser, portanto, sujeito de direitos, não mais questionando que a liberdade e os direitos fundamentais inerentes à sua proteção constituem simultaneamente pressuposto e concretização direta da dignidade da pessoa, de tal sorte que nos parece difícil [...] questionar o entendimento de acordo com o qual sem liberdade (negativa ou positiva) não haverá dignidade, ou pelo menos, esta não estará sendo reconhecida e assegurada.42

Ao assegurar o direito à vida como um direito fundamental, vários efeitos

foram gerados em todas as áreas do Direito, que podem ser observados na análise

de nossa legislação pátria, tais como: a pena de morte, o aborto, a eutanásia, e

principalmente a proibição da tortura, que é o objeto da presente pesquisa.

Dessa maneira, conforme Luciano Dalvi:

39

CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. p. 4.532 – 4.533. 40

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 201. 41

―Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 42

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. p. 103.

15

Não existe vida sem dignidade e, mais, não existe dignidade com tratamento desumano. Por esta razão, a tortura é crime e sua proibição encontra-se no artigo 5º, III e XLIII, que versa: ninguém será submetido a tortura e a tratamento desumano ou degradante, e também: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça e anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins [...].43

Constata-se, assim, que a tortura não é só um crime contra o direito à vida. É

uma crueldade que atinge a pessoa em todas as suas dimensões, e a dignidade do

homem como um todo.

1.5.1.2 Direito à privacidade

A CRFB/88 em seu artigo 5º, inciso X44, declara invioláveis a intimidade, a

vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Dessa forma, a privacidade seria o

conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu

exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que

condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito.45

Nesse sentido, ensina Carlos Alberto Bittar que:

O direito à privacidade são os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.46

A esfera da inviolabilidade é ampla, abrangendo o modo de vida doméstico,

nas relações familiares e afetivas em geral, hábitos, local, nome, imagem,

pensamentos, segredos, dentre outros.47

43

DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. p. 90. 44

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 45

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 209. 46

BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 85. 47

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 209.

16

1.5.1.3 Direito à integridade física

Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza

naquela. Nesta visão, a integridade física-corporal constitui um bem vital e revela um

direito fundamental do indivíduo e, é a partir daí, que as lesões corporais são

punidas pela legislação penal e qualquer pessoa que as provoque fica sujeita às

penas da lei.48

1.5.1.4 Direito à integridade moral

Destaca-se que a vida humana não é somente um conjunto de elementos

materiais, integrando-se valores imateriais, como os morais. Assim, a CRFB/88 nos

traz o direito à moral como valor ético-social da pessoa e da família.

Para José Afonso da Silva, quanto ao direito à integridade moral, afirma:

A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama, a reputação que integram a vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação.49

É a partir desta análise que o respeito à integridade moral do individuo

assume feição de direito fundamental.

1.5.1.5 Direito à existência

48

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 202. 49

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 204.

17

O direito à existência consiste no direito de estar vivo, de defender a própria

vida, de permanecer vivo, de lutar pelo viver. É o direito cuja interrupção do

processo vital ocorrerá pela morte instantânea e inevitável. Dessa forma, uma vez

assegurado o direito à vida, é que a legislação penal pune todas as formas de

interrupção violenta do processo vital.50

1.6 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS AO DIREITO PENAL E AO PROCESSO

Não podemos imaginar nosso ordenamento jurídico sem ter como ponto de

partida a própria CRFB/88, instrumento de validade de todas as outras normas que

compõem nosso sistema, bem como deixar de analisar e observar os princípios que

exalam de seu texto, pois, estes servem de alicerce para a construção de um

sistema jurídico integrado, coerente e harmônico entre si.

1.6.1 Conceito de princípios

De Plácido e Silva, ao conceituar os princípios, determina que:

São normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em axiomas.51

Sugerindo os princípios com a expressão "mandado de otimização", Robert

Alexy escreve:

Os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em

50

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 201. 51

De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. VIII. Ed. Forense. p. 433.

18

diferente grau em que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.52

Partindo dessa análise, a CRFB/88 reservou um espaço para os princípios

penais, explícita e implicitamente, que asseguram os direitos do homem e do

cidadão, com o objetivo de tutelar os bens de relevância social e impedir a

ingerência arbitrária do Estado punitivo.

Nesse sentido, Luiz Luisi afirma que:

A presença de matéria penal nas Constituições contemporâneas se faz através de princípios especificadamente penais, ou seja, de princípios de direito penal constitucional e de princípios constitucionais em matéria penal.

Os primeiros são exclusiva e tipicamente penais, comportando sejam divididos em princípios explícitos e implícitos. Os explícitos estão enunciados de forma expressa e inequívoca no texto da Constituição. Os implícitos se deduzem das normas constitucionais, por nelas estarem contidos.

Os segundos, os pertinentes à matéria penal, geralmente não são propriamente criminais, impondo-se tanto ao legislador penal como ao legislador civil, tributário, agrário etc... Referem-se prevalentemente ao aspecto de conteúdo das incriminações no sentido de fazer com que o direito penal se constitua em um poderoso instrumento de tutela de bens de relevância social.53

A partir disso, existe a relevância em discorrer a respeito de cada um dos

princípios penais constitucionais tendo em vista que estes são de grande

importância e servem como base para o estudo da presente monografia.

1.6.2 Princípio da dignidade da pessoa humana

Ingo Wolfgang Sarlet, conceitua dignidade da pessoa humana como sendo:

52

ALEXY, Robert. Sistema Jurídico, Princípios Jurídicos y Razón Práctica. Doxa: Universidad de Alicante. nº 5. Apud MATTOS, Mauro Roberto Gomes de.. A constitucionalização das regras da Administração Pública e o controle do Poder Judiciário . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 421, 1 set. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5618>. Acesso em: 14.out.2008. 53

LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 17.

19

Uma qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.54

A CRFB/88 enuncia em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa

humana como fundamento da República. Assim, a importância de tal princípio está

bem delineada na lição de Alexandre de Moraes que afirma:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.55

Ingo Wolfgang Sarlet, sobre o princípio da dignidade da pessoa humana

afirma que:

Não restam dúvidas de que a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo, do que decorrem, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de natureza corporal, da utilização da pessoa humana para experiências científicas, limitações aos meios de prova, regras relativas aos transplantes de órgãos, etc. Neste sentido, diz-se que, para a preservação da dignidade da pessoa humana, se torna indispensável não tratar as pessoas de tal modo que se lhes torne impossível representar a contingência de seu próprio corpo como momento de sua própria, autônoma e responsável individualidade.56

O princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo considerado alicerce

de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem

54

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. p. 32. 55

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 16. 56

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 112 e 113.

20

exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e

que com base nesta devem ser interpretados. 57

Dessa forma, não há que se contestar que toda a atividade estatal e todos os

órgãos públicos se encontram vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa

humana, impondo-lhes, neste sentido, um dever de respeito e proteção, que se

exprime tanto na obrigação por parte do Estado de impedir de ingerências na esfera

individual que sejam contrárias à dignidade da pessoa humana, quanto no dever de

protegê-la contra agressões por parte de terceiros, seja qual for sua procedência. 58

1.6.3 Princípio da igualdade

A CRFB/88, em seu art. 93, inciso IX59 e no artigo 5º, caput60, adotou o

princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, ou seja, todos

os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico de lei, em consonância com os

critérios albergados pelo ordenamento jurídico.61

Sobre o princípio da igualdade afirma Alexandre de Moraes que:

O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimentos de diferenciações em

57

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 118. 58

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 115. 59

―Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 60

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas) 61

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 31.

21

razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.62

As partes, no processo penal, estão situadas em um mesmo plano, com

igualdade de direitos, ônus, obrigações e faculdade, conseqüência necessária de um

sistema acusatório e, assim, o processo deve estar estruturado de forma a permitir

que a acusação e a defesa disponham das mesmas armas, isto é, formas de

intervenção no processo para que possam demonstrar perante o tribunal as razões

várias que invocam.63

1.6.4 Princípio da legalidade

Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, a legalidade pode ser entendida

por meio do cidadão e da Administração Pública, ou seja, ao cidadão é facultado

fazer tudo o que não seja proibido por lei e, em relação à Administração Pública a

legalidade deve ser entendida de forma mais estrita pois pode agir desde que

autorizada por lei. Estabelece o art. 5º, II, da CRFB/88, que o cidadão poderá fazer

ou deixar aquilo que não esteja proibido por lei. A CRFB/88 dá a garantia ao cidadão

de que somente em face dela ou da lei poderá ser criado impedimento à sua

liberdade.64

Afirma Cezar Roberto Bitencourt que:

O princípio da legalidade ou da reserva legal constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal. [...] Pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente.65

62

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 32. 63

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. Recife: Ed. Podivm, 2007. p. 26. 64

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 97. 65

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. Vol. 1. 6. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 10.

22

Dessa forma, a lei deve definir com precisão e de forma clara a conduta

proibida, não devendo deixar margens às dúvidas, permitindo à população em geral

o pleno entendimento do tipo penal.

1.6.5 Princípio da ofensividade

Para que a intervenção do Estado seja legítima, é imprescindível que haja a

prova concreta (efetiva, real) da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado,

estando proibido no direito penal o delito de perigo abstrato, isto é, crimes cujo

perigo é presumido por lei.66

Nesse sentido afirma Luiz Flávio Gomes:

Em virtude do princípio da ofensividade, de outro lado, está proibido no Direito penal o perigo abstrato. Porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada: para quem não considera o princípio da ofensividade, há crime. Essa concepção, entretanto, segundo nosso ponto de vista, é inconstitucional (não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais.67

Dessa forma, a construção de todo o sistema penal constitucionalmente

orientado, deve partir da premissa de que não existe crime sem ofensa – lesão ou

perigo concreto de lesão a um bem jurídico.

1.6.6 Princípio da proibição das provas obtidas por meios ilícitos

Verifica-se, que o processo penal é norteado pela liberdade das provas,

contudo, essa liberdade não é absoluta, encontrando limites como no caso de

provas obtidas por meios ilícitos. 68

66

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 18. 67

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral: Introdução. São Paulo. Ed. RT. p. 111 e 112. 68

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 18.

23

Conforme art. 5º, LVI, da CRFB/88, são inadmissíveis, no processo, as provas

obtidas por meios ilícitos, entendendo-as como aquelas obtidas em violação as

normas constitucionais ou legais, conforme nova redação dada ao art. 157 do

Código de Processo Penal69, reformado pela Lei n. 11.690/08. 70

Porém a jurisprudência vem permitindo o uso de tais provas quando favorável

ao acusado sustentando que, na colisão entre a presunção de inocência e a

inadmissibilidade da prova ilegal, deve prevalecer aquela, em decorrência do

princípio da proporcionalidade. 71

1.6.7 Princípio da motivação das decisões judiciais

Para o respectivo princípio, previsto no art. 93, inciso IX, da CRFB/8872, uma

decisão, para tornar-se vulnerável, há de ser atingida exatamente na sua base: a

fundamentação. Dessa forma, o juiz deve expor o desenvolvimento do seu raciocínio

para chegar à conclusão, a fim de que as partes disponham de elementos para

saber contra o que devem argumentar em eventual recurso.73

69

―Art. 157 - São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1

o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o

nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2

o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe,

próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3

o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada

por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente‖. (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas) 70

GOMES, Luiz Flávio. Lei 11.690/2008 e Provas ilícitas: Conceito e Inadmissibilidade. Clubjus, Brasília – DF. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19461. Acesso em 17.10.2008. 71

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 19. 72

―Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 73

MIRABETE, Julio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado. 6ª. Ed. São Paulo, Atlas. p. 482.

24

1.6.8 Princípio do devido processo legal

O devido processo legal significa o conjunto de garantias de ordem

constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades

e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função

jurisdicional.74

Para Alexandre de Moraes, o devido processo legal configura:

Uma dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal.75

Este princípio, encontrado na CRFB/88 em seu artigo 5º, inciso LV76, protege

o cidadão contra a intervenção arbitrária do Estado, proibindo este de exercer o seu

direito de punir apenas por meio de um processo judicial legítimo, concedendo,

assim, o direito de o acusado oferecer resistência, produzir prova e influenciar no

convencimento do Julgador, não permitindo-se a existência de pena sem o

respectivo processo.77

1.6.9 Princípio do prazo razoável

74

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª. ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003. p. 04. 75

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 94. 76

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 77

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 21.

25

Em decorrência lógica do princípio do devido processo legal, previsto no art.

5º, inciso LXXVIII, da CRFB/8878, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45,

promulgada em 8 de dezembro de 2004, é assegurado a todos a razoável duração

do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, ou seja, toda

pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo

razoável, com o intuito de tornar mais ágil e célere a prestação jurisdicional.79

A respeito do assunto, conforme Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz

Arenhart:

[...] o direito de acesso à justiça exige que o Estado preste a adequada tutela jurisdicional que, para esses autores, significa, também, a tutela estatal tempestiva e efetiva‖. Segundo sustentam "há tutela adequada quando, para determinado caso concreto, há procedimento que pode ser dito adequado, porque hábil para atender determinada situação concreta, que é peculiar ou não a uma situação de direito material.

80

Assim, os principais fundamentos para que haja uma célere tramitação do

processo, estão relacionados no respeito a dignidade humana, no interesse

probatório, no interesse coletivo no correto funcionamento das instituições, e na

própria confiança na capacidade da justiça de resolver os assuntos que a ela são

levados, no prazo adequado e razoável.81

1.6.10 Princípio da presunção de inocência

Conforme artigo 5º, inciso LVII, da CRFB/88, ―ninguém será considerado

culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória‖, consagrando a

78

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 79

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 21. 80

MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2001. p. 156. 81

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 60.

26

presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de Direito como

garantia processual penal, objetivando à tutela da liberdade pessoal.82

Assim, o princípio abordado não tem reflexos apenas em um ou noutro

instituto processual, mas se há de projetar no processo penal em geral, na

organização e funcionamento dos tribunais, no direito penitenciário

especificadamente no direito penal.83

1.6.11 Princípio da publicidade

Para este princípio, previsto no art. 93, inciso IX, da CRFB/8884, todos os atos

processuais devem ser públicos, comportando apenas exceções na hipótese de

violação à intimidade da pessoa, quando o interesse social impuser o sigilo segundo

a norma constitucional e, ainda, o Código de Processo Civil em seu artigo 792, §1º,

admite que o juiz restrinja o acesso popular quando constatar a possibilidade de

ocorrência de escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem.85

1.6.12 Princípios da proporcionalidade e da razoabilidade

O princípio da proporcionalidade traduz a busca do equilíbrio e harmonia, da

ponderação de direitos e interesses à luz do caso concreto como melhor forma de

aplicação e efetivação destes mesmos direitos.

82 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 105. 83

SILVA, Germano Marques. Curso de Processo Penal. I. Ed. Verbo. p. 76. Apud: SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. Ed. Podivm. 2007. p. 23. 84

―Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas). 85

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 26.

27

Para Jairo Gilberto Schafer:

O princípio da proporcionalidade decorre diretamente do princípio da legalidade, compatível, portanto, com o sistema constitucional brasileiro, compreendendo-se seu conteúdo e alcance a partir do advento do Estado de Direito, ligado ao princípio da constitucionalidade, segundo o qual são os direitos fundamentais descritos na Constituição que regem todo o ordenamento jurídico.86

A respeito do princípio da proporcionalidade, a doutrina constatou a existência

de três elementos, conteúdos parciais ou subprincípios que governam a sua

composição e nesse sentido, ensina Paulo Bonavides que:

Desses elementos o primeiro é a pertinência ou aptidão que com o desígnio de adequar o meio ao fim que se intenta alcançar, faz-se mister, portanto, ―que a medida seja suscetível de atingir o objetivo escolhido.

[...]

O segundo elemento ou subprincípio da proporcionalidade é a necessidade [...] onde a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja, ou uma medida para ser admissível deve ser necessária.

[...]

O terceiro critério ou elemento de concretização do princípio da proporcionalidade, consiste na proporcionalidade mesma, tomada stricto sensu. Aqui, a escolha recai sobre o meio ou os meios que, no

caso específico, levarem mais em conta o conjunto de interesses em jogo.87

Luís Virgílio Afonso da Silva tratou da distinção entre o princípio da

proporcionalidade, aduzindo que, embora tenham objetivos semelhantes, a

proporcionalidade se distingue da razoabilidade não só pela sua origem, como

também pela sua estrutura e forma de aplicação.

A regra da proporcionalidade (...), tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes de análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito -, que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade.88

Entende-se a razoabilidade como sendo um norte para o não excesso da lei e

de atos, enquanto que a proporcionalidade tem por intuito de sacrificar uma regra ou

86

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 104. 87

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. p. 398 a 399. 88

SILVA, Luís Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Ed. RT. vol. 798, 1991. p. 35.

28

um princípio em relação a outro, com o interesse de buscar a melhor solução entre

as partes.89

Tem-se, pois, que é o princípio da proporcionalidade que se permite fazer o

sopesamento dos princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e

bens jurídicos em que se expressam, quando se encontrem em estado de

contradição solucionando-a de forma que maximize o respeito de todos os

envolvidos no conflito.90

Sendo assim, a resposta estatal ao infrator deve ser proporcional, ou seja,

adequada, necessária e sem excesso, ao fato praticado e fim almejado com a

sanção, tratando-se de verdadeiro juízo de intensidade, onde são colocados meios e

fim em equação mediante um juízo de ponderação, avaliando-se se o meio utilizado

é ou não desproporcional em relação ao fim.91

1.6.13 Princípio da individualização da pena

Este princípio determina que para a reprimenda cumprir a sua função, é

necessário ajustar-se de acordo com a relevância do bem jurídico tutelado, sem se

desconsiderar as condições pessoais do delinqüente.92

Na visão de José Antonio Paganella Boschi:

O princípio da individualização das penas (art. 5º, inc. XLVI, da CF), a expressar o valor indivíduo, impede que se ignorem as diferenças. Individualiza-se a pena, aliás, precisamente, porque cada acusado é um, e cada fato se reveste de singularidades próprias e irrepetíveis.

[...]

A garantia da individualização mediante a consideração de todas as particularidades do caso concreto e da equivalente culpabilidade do autor, de modo a preservar-se, no contexto das diferenças, o limite

89

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. p. 102. 90

STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e o princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 26. 91

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 27. 92

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 29.

29

extremo da responsabilização pelo fato, enseja a realização da justiça distributiva.93

Por fim, ressalta-se que este princípio deve ser observado em três momentos:

o legislativo, quando da cominação em abstrato da pena; o judicial, quando da

sentença (art. 59 do Código Penal); e o executório, quando da execução da pena

imposta (art. 5º da Lei de Execução Penal).94

1.7 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIO, NORMA E REGRA

Na teoria constitucional, os princípios revelam um tema de grande

importância, por serem instrumento de eficácia dos preceitos inseridos em uma

Carta Política; assim, é necessária a compreensão do que sejam os princípios

constitucionais para conferir força normativa imediata, devido a um sistema em que

se concebem os princípios como elementos integrantes do próprio conceito de

norma. 95

Uma diferença de grande importância entre normas e princípios é a dimensão

de peso ou de importância que, existente nos princípios, falta nas normas e, desse

modo, as regras são aplicáveis à maneira de tudo ou nada: ou seus pressupostos

encontram-se inseridos, situação que vai determinar obediência à norma, ou seus

pressupostos estão ausentes, ensejando a não aplicação da norma.96

No que tange à distinção entre regra e princípio, Ruy Samuel Espíndola

afirma que:

A regra é geral porque estabelecida para um número indeterminado de atos ou fatos. Isso não obstante, ela é especial na medida em que regula senão tais atos ou tais fatos: é editada para ser aplicada a

93

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 65. 94

SCHMITT, Ricardo Augusto. Princípios penais e constitucionais: direito e processo penal à luz da Constituição Federal. p. 29. 95

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 35. 96

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 36.

30

uma situação jurídica determinada. Já o princípio, ao contrário, é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações.97

José Joaquim Gomes Canotilho, menciona que:

A distinção entre regras e princípios é particularmente importante em sede de direitos fundamentais. Regras – insista-se neste ponto – são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceção (direito definitivo). De outro lado: princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‗tudo ou nada‘. Impõem a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‗reserva do possível‘, fática ou jurídica. [...] As regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicáveis. [...] Já os princípios jurídicos atuam de modo diverso: mesmo aqueles que mais se assemelham às regras não se aplicam automática e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam. 98

Desse modo, tanto as regras como princípios são normas jurídicas, porque

ambos são razões para juízos concretos de dever ser, distinguindo apenas que os

princípios são normas de um grau de generalidade relativamente alto, enquanto as

regras são normas com baixo grau de generalidade, devendo a diferenciação ser

buscada diretamente no comando normativo. 99

Ressalta-se que, no caso de colisão entre princípios, não há invalidação de

um ou mesmo dos dois, mas juízos de preponderância em face do caso analisado,

cotejando-se qual dos princípios em questão possui, na espécie, o maior peso e, na

colisão entre regras e princípios, estes devem ser avivados, fazendo-se,

posteriormente, a ponderação dos respectivos pesos diante do caso concreto.100

Conforme Jairo Gilberto Schafer:

Quando dois princípios jurídicos entram em colisão irreversível, um deles obrigatoriamente tem que ceder diante do outro, o que, porém, não significa que haja a necessidade de ser declarada a invalidade de um dos princípios, senão que sob determinadas condições um

97

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998. p. 64. 98

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra. Almedina. p. 654. 99

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 37. 100

ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. p. 80.

31

princípio tem mais peso ou importância do que outro e em outras circunstâncias poderá suceder o inverso.101

Wilson Antônio Stinmetz afirma que:

Para a realização da ponderação de bens requer-se o atendimento de alguns pressupostos básicos: a colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização de um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não-realização do outro, a inexistência de uma hierarquia abstrata entre direitos em colisão, isto é, a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva.102

No caso de conflito entre regras, resolve-se introduzindo uma cláusula de

exceção que elimine o conflito, ou, se a solução não for possível, pelo menos uma

das regras deve ser declarada inválida, com sua conseqüente eliminação do

ordenamento jurídico. 103

1.8 COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais podem entrar em conflito quando o exercício de um

direito fundamental de um titular impede ou embaraça o exercício de outro direito

fundamental de outro titular, sendo irrelevante, para tanto, a coincidência dos direitos

envolvidos. Esses tipos de colisão exercem papéis de grande importância no cenário

da teoria dogmática dos direitos fundamentais, sendo objeto de reflexão nos

principais problemas desse domínio jurídico.104

1.8.1 Considerações preliminares

101

SCHAFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrições. p. 38 e 39. 102

STEINMETZ, Wilson António. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. p. 28. 103

ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. p. 30. 104

STEINMETZ, Wilson António. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. p. 26.

32

Verifica-se a colisão de direitos fundamentais quando se identifica um conflito

que decorre do exercício de direitos individuais por diferentes titulares, ou,

igualmente, de conflito entre direitos individuais do titular e bens jurídicos da

comunidade, posto que, nem tudo que se pratica no exercício de determinado direito

encontra amparo no seu âmbito de proteção.105

Wilson Antônio Steinmetz elabora um estudo específico sobre a colisão de

direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade, indagando, nos seguintes

termos:

Por que há colisões? [...] os direitos colidem porque não estão dados de uma vez por todas; não se esgotam no plano de interpretação in abstracto. As normas de direito fundamental se mostram abertas e móveis quando da sua realização ou concretização da vida social. Daí a ocorrência de colisões. Onde há um catálogo de direitos fundamentais constitucionalizados, há colisões in concreto.106

Assim, a autêntica colisão ocorre quando um direito individual afeta

diretamente o âmbito da proteção de outro direito individual e, em se tratando de

direitos submetidos à reserva legal expressa, compete ao legislador traçar os limites

adequados, de modo a assegurar o exercício pacífico de faculdades eventualmente

conflitantes. 107

1.8.2 Tipos de colisão

A colisão dos direitos fundamentais pode ocorrer de duas maneiras: a

primeira, denominada de colisão de direitos em sentido estrito, que ocorre quando

um direito fundamental colide com o exercício de outro direito fundamental (colisão

entre os próprios direitos fundamentais), e a segunda, denominada de colisão de

direitos em sentido amplo, que ocorre quando o exercício de um direito fundamental

colide com a necessidade de preservação de um bem coletivo ou do Estado

105

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 331. 106

STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e o princípio da proporcionalidade. p. 27. 107

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 331.

33

protegido constitucionalmente (colisão entre direitos fundamentais e outros valores

constitucionais).108

1.8.2.1 Colisão entre os próprios direitos fundamentais

Para José Joaquim Gomes Canotilho, haverá a colisão entre os próprios

direitos fundamentais (colisão entre os direitos fundamentais em sentido estrito)

quando:

O exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Em outras palavras, quando o pressuposto de fato de um direito interceptar o pressuposto de fato de outro direito fundamental.109

Assim, pode-se citar como exemplo, a liberdade intelectual, artística, científica

ou de comunicação (CRFB/88, art. 5º, IX) em colisão com a intimidade, a vida

privada, a honra ou a imagem de pessoas (CRFB/88, art. 5º, X).110

1.8.2.2 Colisão entre os direitos fundamentais e outros valores constitucionais

Ocorre a colisão entre os direitos fundamentais e outros valores

constitucionais, quando os interesses individuais (que são tutelados por direitos

fundamentais) contrapõem-se a interesses da comunidade, ou seja, colisões de

direitos fundamentais com bens coletivos, que são reconhecidos também pela

constituição como, por exemplo, o bem comunitário saúde pública (CRFB/88, art. 6º)

em colisão com o direito de livre locomoção (CRFB/88, art. 5º, XV); o bem jurídico

defesa da pátria (CRFB/88, art. 142) em colisão com o direito à inviolabilidade da

liberdade de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e

108

FARIAS, Edílson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. Porto Alegre, 2000. p. 116. 109

CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. p. 657. 110

FARIAS, Edílson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. p. 117.

34

de convicção filosófica ou política, para se eximir de atividade de caráter

essencialmente militar (CRFB/88, art. 5º, VI e art. 143, §1º).111

Sobre o assunto, Robert Alexy ensina que:

Bens coletivos não são só, naturalmente, adversários de direitos individuais. Eles também podem ser pressuposto ou meio de seu cumprimento ou fomento. Assim, o dever legal da indústria de tabacos de colocar advertências sobre prejuízos à saúde em seus produtos é uma intervenção na liberdade de exercício profissional dos produtores de tabaco, portanto, em um direito fundamental. A justificação direta dessa intervenção reside na proteção da população diante de riscos à saúde, portanto, em um bem coletivo. Indiretamente, trata-se, nisso, de algo que também por direitos individuais é protegido, ou seja, da vida e da saúde do particular.112

O dever do Estado de proteger os direitos de seus cidadãos obriga-o a

produzir uma medida tão ampla quanto possível deste bem, porém, isso não é

possível sem intervir na liberdade daqueles que prejudicam ou ameaçam a

segurança pública.113

1.8.3 Solução dos conflitos

É possível que uma das fórmulas utilizadas para a solução de eventual

conflito seja a tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre direitos

individuais, contudo, afirma Gilmar Ferreira Mendes que:

Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando, também, a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico. Uma valoração hierárquica diferenciada de direitos individuais somente é admissível em casos especionalíssimos.114

111

FARIAS, Edílson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. p. 118. 112

ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 217. p. 71. 113

ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. p. 71. 114

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 333 e 334.

35

No que se refere à tentativa de atribuir maior significado aos direitos

individuais não submetidos a restrição legal expressa, mostra-se absolutamente

inadequada, por não apreender a natureza especial dos direitos individuais.115

Quando o texto da CRFB/88 remete à lei ordinária a possibilidade de restringir

direitos e, por conseguinte, uma vez verificada a existência de reserva de lei na

constituição para pelo menos um dos direitos conflitantes, o legislador poderá

resolver a colisão comprimindo o direito ou direitos que são restringíveis, sempre

respeitando o núcleo essencial dos direitos envolvidos, ou seja, aquela parcela

mínima do direito em questão que não pode ser suprimida por meio de uma lei.116

Sobre a colisão dos direitos fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes esclarece

que:

Uma das propostas de solução doutrinária recomenda a transferência de limitações impostas a determinado direito àquele insuscetível de restrição. Além de não se mostrar apta para a solução global do problema, uma vez que não cuida de eventual conflito entre direitos formalmente insuscetíveis de restrição, essa abordagem acaba por reduzir de forma substancial o significado das garantias jurídicas especialmente desenvolvidas para certos direitos considerados fundamentais. Também não há de ser aceita a tentativa de limitar a priori o âmbito de proteção dos direitos individuais não submetidos a restrições legais. É que, além de retirar o significado dogmático da distinção entre direitos suscetíveis e insuscetíveis de restrição, essa concepção torna impreciso e indeterminado o âmbito de proteção desses direitos. 117

Dessa forma, têm-se que o Tribunal não se limita a proceder a uma

simplificada ponderação entre princípios conflitantes, atribuindo precedência ao de

maior hierarquia ou significado e sim, no juízo de ponderação indispensável entre os

valores em conflito, contempla a Corte as circunstâncias peculiares de cada caso,

estabelecendo uma ponderação de bens tendo em vista o caso concreto.118

115

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 334. 116

FARIAS, Edílson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. p. 118. 117

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 335. 118

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 336.

36

No capítulo seguinte será estudado o ambiente familiar, os direitos

assegurados à criança e ao adolescente previsto na CRFB/88 e no Estatuto da

Criança e do Adolescente, bem como os abusos praticados por pais e responsáveis

contra a integridade física e moral dos mesmos no exercício do poder familiar, ao

que chamamos de violência doméstica.

37

2 A FAMÍLIA, A PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A

VIOLÊNCIA NO ÂMBITO FAMILIAR

Conforme o artigo 226 da CRFB/88, a família representa a base da sociedade

e, dessa forma, é seu dever, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao

adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,

conforme artigo 227 da CRFB/88. Partindo desse preceito e dos documentos

internacionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente119 veio integralmente,

assegurar todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, protegendo a

criança e o adolescente contra qualquer ato violento e agressivo ameaçadores do

núcleo familiar, em especial a violência doméstica, exteriorizada como abuso do

poder disciplinar e coercitivo dos pais ou responsáveis em relação aos filhos.

2.1 DA FAMÍLIA

É de grande importância falar do núcleo familiar, antes de tratar sobre o tema,

pois é na família onde dá-se o desenvolvimento da criança e do adolescente pois

não só os torna aptos, como também pode qualificá-los como inaptos e até

desajustados para viver em sociedade.120

2.1.1 Histórico da Família

119

A partir desse momento o Estatuto da Criança e do Adolescente será tratado como ECA. 120

GOMES, Luiz Flávio; MACHADO, Nilton João de Macedo; VIDAL, Luis Fernando Camargo de Barros. Da tortura: aspectos conceituais e normativos. Revista Cej - Conselho da Justiça Federal, Brasília, CONSELHO DA JUSTICA FEDERAL v.14, ago, 2001. p. 15.

38

A família, ao longo dos anos, sofreu uma grande evolução junto com o

desenvolvimento da sociedade e da economia de cada época e, dessa forma,

passou-se a ter uma valorização dos aspectos afetivos da convivência familiar o que

deu ensejo a nova mentalidade do conceito de família.121

2.1.1.1 A Família no Direito Romano

No Direito Romano o núcleo familiar, denominado de família próprio iure122,

era formado por um chefe absoluto, o pater familias123, que se referia àquela pessoa

que não estava subordinada a ninguém e que não possuía ascendentes masculinos,

e todas as demais pessoas sobre as quais estavam submetidas ao poder do pater,

não possuindo direitos próprios, nem mesmo podiam adquiri-los.124

Assim, o conceito de família não estava ligado à consangüinidade e esta era,

ao mesmo tempo, uma unidade econômica, religiosa, política ou jurisdicional. De

início, havia um patrimônio só que pertencia à família, embora administrado pelo

pater. Em uma fase mais evoluída do direito romano, surgiram patrimônios

individuais, como os pecúlios, administrados por pessoas que estavam sob a

autoridade do pater.125

O estado familiar era a condição que o indivíduo tinha dentro da família, junto

com o estado de cidadania e estado de liberdade, sendo de grande importância para

fixar direitos e obrigações.126

Sobre a família romana, ensina Arnaldo Rizzardo que:

No direito Romano, o termo exprimia a reunião de pessoas colocadas sob o poder familiar ou o mando de um único chefe - o pater famílias -, que era o chefe sob cujas ordens se encontravam os

121

SEREJO, Lourival. Direito constitucional da família. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 22. 122

―Família de direito próprio‖. Disponível em: http://www.srbarros.com.br/artigos.php?TextID=44. Acesso em 15.10.2008. 123

―Pai de família‖. Disponível em: http://www.srbarros.com.br/artigos.php?TextID=44. Acesso em 15.10.2008. 124

VERONESE, Josiane Rose Petry. Poder familiar e tutela: à luz do novo código civil do estatuto da criança e do adolescente. Florianópolis: OAB/SC. Editora, 2005. p. 18. 125

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 9. 126

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 20.

39

descendentes e a mulher, a qual era considerada em condição análoga a uma filha. Submetiam-se a ele todos os integrantes daquele organismo social: mulher, filhos, netos, bisnetos e respectivos bens. Está a família jure próprio, ou o grupo de pessoas

submetidas a uma única autoridade. De outro lado, conhecia-se também a família communi jure, uma reunião de pessoas pelo laço do parentesco civil do pai, ou agnatio, sem importar se eram ou não descendentes. Não se considerando o parentesco pelo laço da mulher, o filho era estranho à família de origem da mãe. Considerava-se a família patriarcal propriamente dita.127

Dessa forma, era a figura do pater que comandava a família e distribuía a

justiça, podendo exercer sobre seus filhos o direito à vida, comercialização e morte.

Por sua vez, a mulher, era totalmente subordinada ao marido, não possuindo

qualquer autonomia.128

Com o passar dos tempos, passou a existir uma evolução da família romana,

no sentido de restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior

autonomia à mulher e aos filhos.129

2.1.1.2 A Família no direito canônico

O Direito Canônico, conjunto das normas que regulam a vida na comunidade

eclesial, exerceu enorme importância na história do direito, em especial no que se

refere à família, tendo se destacado a oposição dos canonistas ao divórcio,

considerando tal instituto contrário à própria índole da família e ao interesse dos

filhos.130

No direito canônico, o matrimônio era uma instituição sagrada, reconhecendo-

se a indissolubilidade do vínculo e apenas se discutindo o problema do divórcio em

relação aos infiéis, cujo casamento não se reveste de caráter sagrado. 131

127

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. Rio de janeiro: Forense, 2004. p. 10. 128

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 5 v. p.14. 129

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 10. 130

GARCIA, Edinês Maria Sormani. Direito de família: princípio da dignidade da pessoa humana. Ed. de Direito Ltda. São Paulo, 2003. p. 64. 131

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 13.

40

Assim, o casamento era visto como um consórcio permanente, uma união em

que não poderia haver separação com o intuito de cumprir o mandamento bíblico:

―cresceis e multiplicai-vos‖.132

Sobre a família no direito canônico, Orlando Gomes ensina que:

A Igreja sempre se preocupou com a organização da família disciplinando-a por sucessivas regras no curso dos dois mil anos de sua existência, que por largo período histórico vigoravam, entre os povos cristãos, com seu exclusivo estatuto matrimonial. Considerável, em conseqüência, é a influência do direito canônico na estruturação do grupo familiar.133

Por fim, ressalta-se que, na sua técnica, o direito leigo de família conservou

os conceitos básicos elaborados pela doutrina canônica, que ainda hoje

encontramos no próprio direito brasileiro.134

2.1.1.3 A Família na Legislação Brasileira

A evolução da sociedade, de seus valores, da tecnologia e da ciência acabou

por impulsionar uma série de mudanças ao longo do século passado, que

influenciaram diretamente ao conceito de Família, no Brasil atual.

De acordo com Lourival Serejo:

Entre a família patriarcal romana e a família nuclear, assinalou-se a tendência à valoração dos aspectos afetivos da convivência familiar, o reconhecimento de relações mais autênticas, capazes de conferir sentido e sustentação ao casamento. Como conseqüência dessa nova mentalidade, a família reduziu sua extensão e a monogamia ganhou espaço e adesão. [...] Característica marcante dessa evolução é a funcionalização do conceito de família, com a valorização de cada um dos seus membros, que passaram a ter mais autonomia e mais liberdade de ação, dentro da estrutura familiar. 135

132

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: “antigo casamento de fato, concubinato e união estável”. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2001. p. 59. 133

GOMES, Orlando. Direito de Família. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 20. 134

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 17. 135

SEREJO, Lourival. Direito constitucional da família. p. 22 e 23.

41

O Código Civil de 2002 trouxe uma modificação no direito de família,

passando a constituir o Livro IV da Parte Especial, enfatizando a igualdade dos

cônjuges e a não-interferência das pessoas jurídicas de direito público na comunhão

de vida instituída pelo casamento, além de definir o regime do casamento religioso e

dos seus efeitos.136

Mas foi a CRFB/88 que provocou profunda modificação no Código Civil de

2002, na parte do Direito de Família, considerando a família como a base da

sociedade e estando sob ampla proteção do Estado. Nesse sentido, ensina Maria

Berenice Dias:

[...] a principal mudança, que se pode dizer revolucionária, veio com a Constituição Federal de 1988, alargando o conceito de família e passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros, sejam os partícipes dessa união ou os seus descendentes. Seus pontos essenciais constam no art. 226 e seus incisos, assim resumidos: a) proteção à família constituída: a) pelo casamento civil, b) pelo casamento religioso com efeitos civis, c) pela união estável entre o homem e a mulher e d) pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; b) ampliação das formas de dissolução do casamento, ao estabelecer facilidades para o divórcio; c) proclamação da plena igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher na vivência conjugal; d) consagração de igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos e qualificações.137

Ressalta-se que as regras pertinentes à sociedade conjugal tiveram que ser

ajustadas, com base no princípio de igualdade entre o homem e a mulher e,

qualquer que seja a família do futuro, as tendências previsíveis em suas

características já se encontram na grande maioria das famílias atuais, como:

valoração dos aspectos afetivos da convivência familiar, igualdade dos filhos, guarda

dos filhos a terceiros, companheirismo, mobilidade e inovação permanente.138

Por fim, ressalta-se que a evolução da família foi a melhor conquista

alcançada pela humanidade, em vista do respeito que se estabelece entre pais e

filhos, com mais cumplicidade, direitos e menos diferenças. E assim, a família é o

136

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 25. 137

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.) Direito de família e o novo Código Civil. 4ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 3 e 4. 138

SEREJO, Lourival. Direito constitucional da família. p. 23.

42

bem mais valioso que uma pessoa dispõe, por ser a base, o alicerce para o

desenvolvimento de uma criança ou adolescente.139

2.1.2 Conceito de Família

O conceito de família tem sofrido uma variação ao longo dos anos e, em uma

mesma época, a palavra tem sido usada em acepções diversas, conhecendo-se

atualmente, em um sentido amplo como o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo

da consangüinidade, ou seja, os descendentes de um tronco comum e, em sentido

estrito, abrangendo o casal e seus filhos legítimos, legitimados ou adotivos.140

Apesar de tantas transformações ocorridas na sociedade, a família continua

sendo uma instituição social imprescindível, devido às funções sociais que

desempenha e, a partir daí, é que existe a razão em conceituarmos a família,

considerada esta como a base da sociedade conforme art. 226, da CRFB/88141.142

Para Arnaldo Rizzardo, a família:

No sentido atual, tem um significado estrito, constituindo-se pelos pais e filhos, apresentando certa unidade de relações jurídicas, com idêntico nome e o mesmo domicílio e residência, preponderando identidade de interesses materiais e morais, sem expressar, evidentemente, uma pessoa jurídica. No sentido amplo, amiúde empregado, diz respeito aos membros unidos pelo laço sanguíneo, constituída pelos pais e filhos, nestes incluídos os ilegítimos ou naturais e os adotados.143

139

SILVA, José Luiz Mônaco da. A família substituta no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 8. 140

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 3 e 4. 141

―Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas) 142

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. p. 5. 143

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. p. 11.

43

Observa-se, pois, que a família é a célula que dá início à formação da

sociedade civil e o âmbito fundamental onde se exercita, inicialmente, a

sociabilidade humana.144

Para Silvio Rodrigues, a família é usada em vários sentidos: um conceito mais

amplo, uma acepção um pouco mais limitada e um sentido ainda mais restrito.

Vejamos:

Num conceito mais amplo poder-se-ia definir a família como formada por todas aquelas pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou seja, todas aquelas pessoas provindas de um tronco ancestral comum; o que corresponde incluir dentro da órbita da família todos os parentes consaguíneos. [...] Numa acepção um pouco mais limitada, poder-se-ia compreender a família como abrangendo os consaguíneos em linha reta e os colaterais suscetíveis, isto é, os colaterais até quarto grau. [...] Num sentido ainda mais restrito, constitui a família o conjunto de pessoas compreendido pelos pais e sua prole. É com essa conotação que a maioria das leis a ela se refere.145

Dessa forma, ressalta-se que ocorreram consideráveis mudanças nas

relações de família, passando a dominar novos conceitos em detrimento de valores

antigos. E, neste compasso, observou-se uma maior relevância no sentimento

afetivo do que no mero convívio, dando-se maior importância a convivência

intrafamiliar, principalmente no que tange ao desenvolvimento de uma criança ou

adolescente no seio familiar.

2.1.3 Conceito de criança e adolescente

O ECA estabelece, em seu artigo 2º, o conceito de criança e adolescente,

afirmando que: ―considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze

anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de

idade.‖ 146

144

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar / Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 66. 145

RODRIGUES, Silvio. Direito civil: família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4. 146

BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente / Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Assessoria de Comunicação Social – Brasília: MEC, ACS, 2005. p. 13.

44

Assim, devido ao conceito existem, no texto estatutário, normas de tratamento

comum a serem dadas indistintamente a ambas as categorias, crianças ou

adolescentes. Outras são destinadas exclusivamente às crianças, e várias são

destinadas aos adolescentes.147

Nesse sentido, ensina Munir Cury que:

A distinção entre criança e adolescente, como etapas distintas da vida humana, tem importância no Estatuto. Em geral, ambos gozam dos mesmos direitos fundamentais, reconhecendo-se sua condição especial de pessoas em desenvolvimento. O tratamento de suas situações difere, como é lógico, quando incorrem em atos de conduta descritos como delitos ou contravenções pela lei penal. A criança infratora fica sujeita às medidas de proteção previstas no art. 101, que implicam um tratamento através de sua própria família ou na comunidade, sem que ocorra privação de liberdade. Por sua vez, o adolescente infrator pode ser submetido a um tratamento mais rigoroso, como são as medidas sócio-educativas do art. 112, que podem implicar privação de liberdade. [...] Igualmente, o Estatuto considera que o adolescente, em determinadas circunstâncias, possui a maturidade suficiente para formar sua opinião e decidir sobre certos assuntos que o podem afetar e concernem à sua própria vida e destino.148

Complementa João Batista Costa Saraiva que:

Embora exista uma diversidade de concepções de infância e adolescência, cada sociedade termina por estabelecer aquelas que são consideradas paradigmas válidos para toda a sociedade. Assim, as constantes referências à infância e adolescência referem-se, em realidade, a uma concepção predominante aceita, legal e institucionalmente.149

No que se refere à distinção da faixa etária, o legislador adotou o critério

cronológio absoluto, ou seja, a proteção integral da criança ou adolescente é devida

em função de sua faixa etária, pouco importando se, por qualquer motivo, adquiriu a

capacidade civil.150

147

TAVARES, José de Farias. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 9 e 10. 148

CURY, Munir (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais. 6

a ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 18-19.

149 SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e ato

infracional. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 33. 150

CURY, Munir; GARRIDO de PAULA, Paulo Afonso; MARÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da criança e do adolescente anotado. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 22.

45

2.1.4 Direito à Convivência Familiar

O direito à convivência familiar, previsto no caput do artigo 227 da

CRFB/88151, é um direito essencial e de grande importância para o desenvolvimento

das crianças e dos adolescentes.152

Dessa forma, em obediência aos preceitos dos artigos 226 e 227 da

CRFB/88, fundados na noção fundamental de dignidade humana, e de que a

convivência familiar é direito essencial de crianças e adolescentes, porque está

ligado ao valor mais básico da personalidade infanto-juvenil, o ECA regulamentou o

direito à convivência familiar e comunitária preceituando no artigo 19 que: ―toda

criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família e,

excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e

comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de

substâncias entorpecentes‘.153

Sobre a convivência familiar, Maria Helena Diniz ensina que:

A cada um dos consortes e a ambos simultaneamente incumbe zelar pelos filhos, sustentando-os ao prover sua subsistência material ou ao fornecer-lhes alimentação, vestuário, medicamentos etc.; guardando-os ao tê-los em sua companhia, vigiando-os, [...] e educando-os moral, intelectual e fisicamente, de acordo com suas condições sociais e econômicas.154

Ressalta Arnaldo Rizzardo que:

Da constituição da família advém esta tarefa vital dos pais, em igualdade de condições, por força do próprio preceito e por serem titulares simultâneos do poder familiar. Cuida-se de um encargo natural e decorrente da paternidade, isto é, não propriamente advindo do Estado, porquanto inerente à natureza humana, embora o

151

―Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.‖ (BRASIL. Constituição Federal, de 05.10.88. Atualizada com as Emendas Constitucionais Promulgadas) 152

MARTHA DE TOLEDO, Machado. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 154. 153

MARTHA DE TOLEDO, Machado. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. p. 160. 154

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 22. ed. rev. e atual. de acordo com a Reforma do CPC. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 144.

46

não atendimento determine a cominação de penas, com a suspensão ou perda do poder familiar. O seu descobrimento importa em graves conseqüências, comprometendo-se as necessidades materiais, a saúde, a formação moral e a educação primária, profissional e intelectual. Cumpre-se a função com oferecimento de meios materiais necessários à criação e formação: alimentação, teto, recreação, saúde e instrução escolar, moral e educacional. Importam, sobretudo, a assistência pessoal, a convivência e o acompanhamento, de acordo com a idade e a evolução de personalidade, o que envolve uma acentuada atenção às inclinações pessoais e aspirações dos filhos. 155

É necessário, pois, que haja uma observância na formação de toda a criança

e adolescente. Nesse sentido, complementa Arnaldo Rizzardo que:

A formação é uma tarefa das mais difíceis e complexas, pois visa a estruturação da personalidade dos filhos, de modo a se tornarem conscientes, autônomos e independentes, o que exige um constante diálogo e um tratamento adequado à idade e ao estado de desenvolvimento dos mesmos. Conforme o ambiente familiar e o preparo dos pais, modela-se o futuro cidadão que poderá crescer para o bem ou para o mal, capaz ou não de enfrentar as dificuldades da vida, e útil ou prejudicial para o mundo do futuro.156

Assim, o ambiente ideal para o desenvolvimento equilibrado da criança e do

adolescente é o seio da família, competindo aos pais dirigir a criação e a educação

de seus filhos, tratando-os com amor, carinho e dedicação enquanto em sua

guarda.157

2.2 DO PODER FAMILIAR

O instituto do poder familiar, chamado até 2002 de pátrio poder, encontra-se

hoje disciplinado nos artigos 1.630 a 1.638 e 1.689 a 1.693 do Código Civil, também

encontrado em legislação extravagante como a Lei n. 6.015/73 – Lei de Registros

Públicos; na Lei n. 6.515/77 – Divórcio e Separação Judicial; na Lei n. 8.069/90 –

155

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. p. 175. 156

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. p. 175. 157

TAVARES, José de Farias. Direito da infância e da juventude. p. 132.

47

Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei n. 8.560/92 – Investigação de

Paternidade.158

Ao se falar em poder familiar, entra-se no estudo das relações jurídicas

decorrentes do vínculo de filiação, definindo-o como poder familiar-dever exercido

pelo pai e pela mãe, por delegação do Estado, no interesse da família, trazendo nos

pais determinados direitos e deveres na efetivação de suas atribuições de criar,

educar e sustentá-los.159

Para Maria Helena Diniz, o poder familiar pode ser definido como:

Um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. [...] Esse poder conferido simultânea e igualmente a ambos os genitores, e, excepcionalmente, a um deles, na falta de outro, [...] advém de uma necessidade natural, uma vez que todo ser humano, durante sua infância, precisa de alguém que o crie, eduque, ampare, defenda, guarde e cuide de seus interesses, regendo sua pessoa e seus bens.160

Para Orlando Gomes:

É um direito-função, um poder-dever, que estaria numa posição intermediária entre o poder propriamente dito e o direito subjetivo. Não consiste numa simples faculdade com direção genérica, mas não se desenvolve numa relação jurídica com direitos e obrigações correlatas.161

O poder familiar nasce como instituto de direito privado e evolui, adquirindo

ao longo dos anos, características de um direito com conotação social, pois, muito

embora regule as relações de ordem privada, tem o Estado como interventor e

protetor dessas relações. 162

A CRFB/88 em seu artigo 227 traz o conjunto mínimo de deveres cometidos à

família, assim sendo, ao poder familiar, em benefício de seu filho, enquanto criança

e adolescente, quais sejam: o direito à vida, à saúde, à alimentação (sustento), à

158

VERONESE, Josiane Rose Petry. Poder familiar e tutela: à luz do novo código civil do estatuto da criança e do adolescente. p. 22. 159

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 283. 160

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. p. 514-515. 161

GOMES, Orlando. Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 368.

48

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar.163

Nesse sentido Christiano Cassettari ensina que:

Os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores, tempo em que haverá sua extinção (maioridade ou emancipação). O poder familiar compete aos cônjuges, conjuntamente, ou exclusivamente na falta ou impedimento de qualquer um deles.164

Complementa Maria Berenice Dias:

No interesse dos filhos, presume-se que haja harmonia no exercício, o que supõe permanente estado de conciliação das decisões dos pais, com concessões recíprocas, equilíbrio, tolerância e temperança.165

Assim, os pais têm deveres sobre seus filhos, e que, dessa forma, o Estado é

quem lhes concedem direitos que os permitem a operacionalização de suas

obrigações. Este poder é outorgado pelo Estado, quanto à fiscalização é feita pelo

mesmo. Em casos de abusos destas prerrogativas, o Estado não só pode como

deve interferir, podendo se necessário for, suspender ou até mesmo retirar o poder

familiar dos violadores.166

Diante do poder familiar o Estado tem intervindo nas relações familiares,

submetendo este exercício à sua fiscalização e controle ao limitá-lo e ao restringir o

seu uso no que tange aos direitos dos pais.167

Sobre o assunto Carlos Alberto Bittar ensina que:

O poder familiar consiste em um conjunto de prerrogativas legais, reconhecidas aos pais – originariamente com exercício apenas pelo pai – para a criação, orientação e proteção dos filhos, durante a respectiva menoridade, cessando-se com o implemento da idade ou com a emancipação. Constitui atualmente, mais múnus legal do que

propriamente poder paternal, diante da evolução processada na

162

VERONESE, Josiane Rose Petry. Poder familiar e tutela: à luz do novo código civil do estatuto da criança e do adolescente. p. 22. 163

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de família e o novo Código Civil. p. 150. 164

CASSETTARI, Christiano. Direito Civil. São Paulo: Premier Máxima, 2006. p. 160. 165

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de família e o novo Código Civil. p. 154. 166

VERONESE, Josiane Rose Petry. Poder familiar e tutela: à luz do novo código civil do estatuto da criança e do adolescente. p. 19. 167

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. p. 515.

49

prática. De fato, composto de um complexo de direitos sobre a pessoa e os bens do filhos, com os deveres correspondentes de criação, educação e sustento, representa ora mais ônus do que privilégios; daí por que se fala em pátrio dever. É ora, pois, função exercida no interesse dos filhos, diante da personalidade operada na matéria e do reconhecimento de direitos próprios a eles, inclusive de cidadania no atual Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). Representa missão confiada aos pais para a regência da pessoa e dos bens dos filhos, desde a concepção até a idade adulta. Compõe-se de direitos e deveres individuais e conjuntos aos pais para com os filhos, exercitáveis em conformidade com a legislação civil e ora distantes do sentido absolutista com que se concebeu no direito antigo, com mecanismo de reunião das pessoas da família para culto aos antepassados.168

Ocorre que, no exercício do poder familiar, vários motivos podem abalar a sua

estrutura acarretando os chamados fenômenos da suspensão, destituição e extinção

desse poder. Nesse sentido Carlos Alberto Bittar ensina que:

Suspensão é a cessação temporária do exercício do poder, por ordem judicial, em processo próprio, e sob causa definida na lei. Destituição é o afastamento definitivo do poder, em virtude de motivo previsto, por expresso, em lei. Extinção é a cessação definitiva do poder, ditadas por fenômenos naturais ou jurídicos, elencados também na lei. Verifica-se, pois que pode haver privação do direito e do exercício do direito, e em caráter temporário ou definitivo, conforme as circunstâncias, interrompendo-se, assim, os direitos e deveres respectivos. Por fatos voluntários ou naturais podem, ademais advir as privações mencionadas.169

A extinção é a forma menos complexa e se verifica por razões que decorrem

da própria natureza, independentemente da vontade dos pais, ou não concorrendo

eles para os eventos que a determinam. São hipóteses exclusivas como: morte dos

pais ou do filho; emancipação do filho; maioridade do filho; adoção do filho, por

terceiros; perda em virtude de decisão judicial.170

Sendo o poder familiar um múnus público que deve ser exercido sempre no

interesse dos filhos não emancipados, existe um controle do Estado, prescrevendo

normas que arrolam casos que autorizam o magistrado a privar o genitor de seu

168

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 222 e 223. 169

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Família. p. 226 e 227. 170

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406, de 10.01.2002. p. 161.

50

exercício temporariamente, por acabar prejudicando o filho com seu comportamento,

hipótese esta em que se tem a suspensão do poder familiar.171

Maria Berenice Dias nos traz as hipóteses de suspensão do poder familiar

dos pais, quais sejam:

[...] a) descumprimento dos ―deveres a eles (pais) inerentes‖; b) ruína dos bens dos filhos; c) risco à segurança do filho; d) condenação em virtude de crime cuja pena exceda dois anos de prisão. As duas primeiras hipóteses caracterizam abuso do poder familiar. As hipóteses legais não excluem outras que decorram da natureza do poder familiar. Os deveres inerentes aos pais, ainda que não-explicitados, são os previstos na Constituição, no ECA e no Código Civil, em artigos dispersos, sobretudo no que diz respeito ao sustento, à guarda e à educação dos filhos.172

Já a destituição ou perda do poder familiar pode ocorrer quando o pai ou a

mãe castigar imoderadamente o filho, o deixar em abandono ou praticar atos contra

a moral e os bons costumes. E assim, repugnam a violência, os espancamentos, a

imposição de trabalhos forçados e exagerados frente às possibilidades físicas do

menor, o cárcere em casa ou compartimento da mesa, enfim, toda e qualquer

arbitrariedade e excessos físicos.173

Nesse sentido, vale ressaltar o ensinamento de Maria Berenice Dias:

[...] sob o ponto de vista estritamente constitucional, não há fundamento jurídico para o castigo físico, ainda que ―moderado‖, pois não deixa de consistir violência à integridade física do filho, que é direito fundamental inviolável da pessoa humana, também oponível aos pais. O artigo 227 da Constituição determina que é dever da família colocar o filho (criança ou adolescente) a salvo de toda violência. Todo castigo físico configura violência. Note-se que a Constituição (art. 5º, XLIX) assegura a integridade física do preso. Se assim é com o adulto, com maior razão não se pode admitir violação da integridade física da criança ou do adolescente, sob pretexto de castigá-lo. Portanto, na dimensão do tradicional pátrio poder era concebível o poder de castigar fisicamente o filho; na dimensão do poder familiar fundado nos princípios constitucionais, máxime o da dignidade da pessoa humana, não há como admiti-lo.174

171

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. p. 525. 172

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de família e o novo Código Civil. p. 160. 173

WALD, Arnoldo. O novo direito de família. p. 286. 174

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (coord.) Direito de família e o novo Código Civil. p. 162.

51

Diante do exposto, ressalta-se que o poder disciplinar, contido na autoridade

dos pais, não inclui a aplicação de castigos que violem a integridade física do filho,

frente à aplicação dos direitos fundamentais e aos princípios constitucionais a todo

ser humano.

2.3 O DIREITO E O ESTADO PROTETOR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A CRFB/1988 marcou, com destaque, sua efetiva preocupação com a família

e seus elementos, trazendo, de maneira clara, em seu art. 226 e art. 227, o

compromisso do Estado com o bem-estar da família brasileira, senão vejamos:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.175

Sobre o assunto, ensina Lourival Serejo:

As disposições do art. 227 e seus parágrafos priorizam o dever da família e do Estado para com as crianças e os adolescentes, assegurando-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. A dimensão social dessa norma é de uma amplitude considerável, com repercussão inclusive na postura do juiz, que não pode mais eximir-se de assumir uma conduta de defesa em prol da dignidade da criança e do adolescente. Isso implica até em ação fora dos processos, desde que necessária para assegurar esses direitos aos seus benefícios.176

175

Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum, Saraiva, 2007. 176

SEREJO, Lourival. Direito constitucional da família. p. 73.

52

Com o intuito de efetivar os direitos das crianças e dos adolescentes, foi

criada a Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, como um

meio de propiciar medidas que assegurassem tais direitos, tanto administrativas

como punitivas, de maneira a ensejar sua efetiva proteção.177

O ECA veio integralmente proteger a criança até 12 (doze) anos de idade e o

adolescente entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos e, excepcionalmente, o menor entre

18 e 21 anos (arts. 1º, 2º e parágrafo único), assegurando-lhes todos os direitos

fundamentais inerentes à pessoa humana, que deverão ser respeitados não só pela

família, pela sociedade, como também pelo Estado, sob pena de responderem pelos

danos causados.178

Assim, ao romper definitivamente com a doutrina da situação irregular, até

então admitida pelo Código de Menores (Lei n. 6.697, de 10.10.1979),

regulamentação que se voltava apenas aos menores de 18 anos em estado de

abandono ou delinqüência, determinando medidas de assistência e proteção; o

legislador agiu em consonância com a CRFB/88 e documentos internacionais

aprovados com amplo consenso da comunidade das nações, estabelecendo como

procedimento básico e único no atendimento de crianças e adolescentes a doutrina

de proteção integral.179

A doutrina de proteção integral, como cumprimento da CRFB/88,

regulamentada nos termos do ECA, em harmonia com a ordem jurídica

internacional, liderada pela Organização das Nações Unida, é consubstanciada em

regras especificadamente destinadas à população infanto-juvenil e se referem a

direitos especiais e específicos, pela condição de pessoas em desenvolvimento,

garantindo a satisfação de todas as necessidades das pessoas até 18 anos, não

incluindo apenas o aspecto penal do ato praticado pela ou contra a criança, mas o

seu direito à vida, saúde, educação, convivência, lazer, profissionalismo, liberdades

e outros.180

177

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. p. 27. 178

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. p. 628. 179

CURY, Munir; GARRIDO de PAULA, Paulo Afonso; MARÇURA, Jurandir Norberto. Estatuto da criança e do adolescente anotado. p. 15. 180

TAVARES, José de Farias. Direito da infância e da juventude. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 31.

53

Sobre o assunto, ressalta-se que:

O Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe as diretrizes gerais para a política da proteção integral da criança e do adolescente, reconhecendo-os como cidadãos: estabeleceu a articulação entre o Estado e a sociedade, com a criação dos Conselhos de Direitos, dos Conselhos Tutelares e dos Fundos geridos por esses conselhos; descentralizou a política através da criação desses conselhos em nível estadual e municipal; garantiu à criança a mais absoluta prioridade no acesso às políticas sociais; estabeleceu medidas de prevenção; e uma política especial de atendimento e acesso digno à justiça.181

Porém, ainda que o ECA tenha sido um avanço no sentido de abertura de

espaço para a denúncia e ao ressarcimento de qualquer motivo que viole os direitos

das crianças e dos adolescentes, devemos destacar que, diante da não-observância

da CRFB/88, a família acaba constituindo-se em uma violadora dos direitos da

criança e do adolescente, junto com a sociedade e com o Estado, uma vez que a

legislação não está voltada a possibilitar os meios para que os pais possam

proporcionar aos filhos uma existência digna.182

Neste sentido, cabe ao Estado conceder à população infanto-juvenil a devida

assistência, proporcionando sua efetiva proteção, algo que vem sendo negligenciado

há muito tempo, isso porque, observa-se diariamente na sociedade, e mesmo dentro

dos lares familiares, abusos contra a integridade física e moral das crianças e

adolescentes e, dentre os tipos de violência, uma particularmente deve ser citada –

a doméstica – que tem crescido assustadoramente e, o que é pior, tem sido aceita

socialmente por muitas pessoas, fato este inaceitável nos dias de hoje.183

2.4 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A partir do momento que o núcleo familiar se desestrutura, por diversos

fatores, podem resultar atos violentos e agressivos ameaçadores do núcleo familiar,

181

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 53 e 54. 182

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 62.

54

passando a se ter ao que chamamos de violência doméstica contra a criança e o

adolescente, exteriorizada como abuso do poder disciplinar e coercitivo dos pais ou

responsáveis em relação aos filhos.184

2.4.1 Conceito de violência e a violência intrafamiliar

A palavra violência deriva do latim violentia ou violentus, referindo-se ao ato

de força, a brutalidade, a impetuosidade, a veemência. Juridicamente a violência é

espécie de coação ou constrangimento para vencer a capacidade de resistência de

outrem ou para devolvê-la à execução do ato ou levar a executá-lo mesmo sem sua

pretensão.185

Josiane Rose Petry Veronese ensina que a violência:

É abuso da força, usar de violência é agir sobre alguém ou fazê-lo contra sua vontade, empregando a força ou a intimidação. É forçar, obrigar. É também brutalidade: força brutal para submeter alguém. É sevícia e mau-trato, quando se trata de violência psíquica e moral. É cólera, fúria, irascibilidade, quando se trata de uma disposição natural à expressão brutal dos sentimentos. É furor, quando significa o caráter daquilo que produz efeitos brutais. Tem como seus contrários a calma, a doçura, a medida, a temperança e a paz.186

Sobre o assunto, ensina César Barros Leal e Heitor Piedade Júnior que:

O conceito de violência está longe de ser unívoco. Pelo contrário, está carregado de significantes emotivos que o legitimam ou condenam, mas que impedem sua compreensão e explicação. No campo do ―sentido comum‖, a violência aparece quase sempre como sinônimo do conceito de agressão.187

A violência, pois, é o emprego da agressividade, com fins destrutivos, sendo

que esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente, ou pode ser

183

PEREIRA, Áurea Pimentel. A nova constituição e o direito de família. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 93. 184

GOMES, Luiz Flávio; MACHADO, Nilton João de Macedo; VIDAL, Luis Fernando Camargo de Barros. Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 20. 185

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. São Paulo: Forense, 1975. v. 4. p. 1658 e 1659. 186

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar p. 101 e 102. 187

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 104.

55

inconsciente, involuntário e irracional. A existência desses predicados não altera a

qualidade especificamente humana da violência.188

Valdir Sznick conceitua a violência como:

A violência agrava o impulso natural dos seres vivos. A violência é toda iniciativa que procura exercer coação sobre a liberdade de alguém, que lhe tenta impedir a liberdade de reflexão, de julgamento e de decisão; é, sobretudo, a força que é seu meio de manifestação, seu instrumento. A violência é a coação que atua corporalmente visando remover uma oposição esperada. É a coerção sobre a vontade servindo-se de força física sobre a pessoa para vencer uma resistência oposta.189

Para Sônia Felipe a violência é:

Uma série de atos praticados de modo agressivo com o intuito de forçar a outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como sujeito das relações econômicas, políticas, éticas, religiosas e eróticas... No ato de violência, há um sujeito.... que atua para abolir, definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos do desejo, da autonomia e da liberdade.190

Considera-se que a violência é sempre violência, seja ela rural, urbana,

doméstica, pública ou privada, por ação ou omissão, quantitativa ou qualitativa,

praticada por ódio ou por vingança, por necessidade, por ambição ou consumismo,

por rebeldia ou insubmissão, por capricho, por nobreza ou futilidade, à traição ou por

qualquer outro motivo imaginável na consciência de qualquer ser humano.191

A violência doméstica tem sido objeto de grande atenção, sobretudo diante da

conscientização generalizada de que deve ser vista como um drama particular, um

problema exclusivamente privado, devendo ao Estado intervir sempre que abusos

forem constatados. Assim, em virtude do silêncio e a resistência de um grande

188

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. p. 65. 189

SZNICK, Valdir. Crimes sexuais violentos: violência e ameaça, pudor e obsceno, desvios sexuais, rapto e estupro, atentado ao pudor. São Paulo: Ícone, 1992. p. 15. 190

FELIPE, Sônia. Violência, agressão e força. In: HERMANN, Leda. Violência Doméstica: A dor que a lei esqueceu. Comentários à Lei n. 9.099/95. São Pauli: Cel-Lex, 2000. p.141 e 142. 191

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. p. 220.

56

número de vítimas, que não denunciam as agressões sofridas, os índices da

violência intrafamiliar vêm crescendo de modo preocupante em todo o mundo. 192

Sobre o conceito de violência doméstica, Leda Hermann afirma que:

Violência intrafamiliar ou violência doméstica é a violência perpetrada no lar ou na unidade doméstica, geralmente por um membro da família que viva com a vítima, podendo ser esta homem ou mulher, criança, adolescente ou adulto. (...) Quando se fala em violência doméstica está em foco, portanto, uma espécie de conflito onde a interação agente-vítima e a influência dos comportamentos aprendidos de cada uma das partes tornam essencial o estudo mais aprofundado da vítima e de seu papel em todo este contexto.193

Diante disso, a violência intrafamiliar é motivo de indignação, não pelo

número de casos em que ela ocorre, mas principalmente pelas formas cruéis em

que ela se dá e pelo fato de ocorrer dentro da família, ou seja, pelo fato de que as

pessoas que atentam, de uma forma ou de outra contra a criança ou o adolescente,

sejam as pessoas de sua convivência mais íntima, aquelas que o colocaram no

mundo, aquelas em que a criança ―naturalmente‖ confia, aquelas de quem ela

depende totalmente, aquelas que deveriam amá-la e protegê-la.194

Sobre o assunto César Barros Leal ensina que:

As crianças e adolescentes que habitam lares conturbados, disfuncionais, são amiúde vítimas de dupla violência – direta e indireta – cometida por parte dos pais biológicos ou por afinidade (a mãe, com extrema freqüência, visto que passa mais tempo com os filhos, notadamente os bebês), responsáveis (padrinhos e tutores) ou parentes (irmãos, primos, tios, avós), muitos sob o efeito do álcool ou drogados e/ou com distúrbios de comportamentos. De um lado, são negligenciadas (em termos afetivos, alimentares, educacionais e de saúde), agredidas física ou emocionalmente (com o alegado castigo corretivo, a ―pedagogia negra‖, ameaças e atitudes de depreciação), postas em cárcere privado, torturadas, afogadas, envenenadas, intoxicadas, esfaqueadas, objetos de sevícias sexuais que podem perdurar anos, exploradas sordidamente por pedófilos para mercadores da prostituição e da pornografia infantil. De outro lado,

192

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. p. 43. 193

HERMANN, Leda. Violência Doméstica: A dor que a lei esqueceu. Comentários à Lei n. 9.099/95. São Paulo: Cel-Lex, 2000. p. 143 e 146. 194

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 102.

57

são testemunhas de atos violentos perpetrados contra membros de sua família.195

No que se refere à violência doméstica ou familiar contra a mulher, ressalta-

se que a Lei n. 11.340/06, conhecida como a ―Lei Maria da Penha‖, promulgada em

22 de setembro de 2006, criou mecanismos para coibir e prevenir esse tipo de

violência, conferindo proteção diferenciada ao gênero feminino, considerando

vulnerável quando inserido em situações legais específicas: ambiente doméstico;

âmbito familiar ou relação íntima de afeto.196

Por fim, ressalta-se que a violência doméstica ocorre indistintamente em toda

e qualquer classe social, alastrando-se por todas as direções da vida humana, sejam

sociais, políticas ou econômicas e, assim, algo que faz parte de nossas

existências.197

2.4.3 Formas de violência no âmbito familiar

A violência doméstica ou intrafamiliar apresenta-se, pelo menos, sob quatro

formas principais e específicas, quais sejam: a violência física, sexual, psicológica e

negligência, não existindo entre elas, necessariamente, linha demarcatória de

classificação nítida, podendo uma estar contida em outra, podendo ser, inclusive,

fator que engendra o outro.198

Sobre a violência física cumpre ressaltar que:

A disciplina e a punição, contudo, não são somente o ―motivo legitimador‖ do uso (e abuso) da violência física, mas comumente se revelam também como motivos de alívio de tensões oriundas de inúmeras frustações e da cólera de seus agentes. Há, também, que se considerar que a violência física, assim como as outras formas de violência intrafamiliar, pode ser a manifestação de um

195

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) Violência e vitimização: a face sombria do cotidiano. p. 44. 196

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. FULLER Paulo Henrique Aranda. Legislação penal especial: volume 1 5ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 752. 197

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar p. 104. 198

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 104.

58

comportamento psicopatológico daqueles que a praticam como por exemplo, o sadismo e outras manifestações congêneres, bem como o alcoolismo e o uso de drogas, as quais também não são senão outras formas de doenças mórbidas. [...] Os autores referem que a violência física se caracteriza, normalmente pela presença de lesões cutâneas, tais como hematomas, equimoses, queimaduras e fraturas de todos os gêneros. [...] Ressalta-se, que as violências físicas geralmente são praticadas pelos pais ou parentes próximos da vítima, os quais são, na maioria das vezes, relativamente novos em idade, visto que esse tipo de violência tende a diminuir com o avanço da idade.199

Dentre as formas mais freqüentes de violência intrafamiliar, a violência física é

a predominante, e vem a ser o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não

marcas evidentes. Neste tipo de violência, são comum murros e tapas, agressões

com diversos objetos e queimaduras por objetos ou líquidos quentes. Quando a

vítima é criança, além da agressão ativa e física, também é considerado violência os

atos de omissão praticados pelos pais ou responsáveis.200

No que tange a violência psicológica, destaca-se que, às vezes tão ou mais

prejudicial que a física, é caracterizada por ameaça, rejeição, depreciação,

discriminação, humilhação, desrespeito, punições exageradas. Trata-se de uma

agressão que não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente causa

cicatrizes indeléveis para toda a vida.201

Nesse sentido, Josiane Rose Petry Veronese, ensina que:

O abuso psicológico se encontra inserto dentro de todas as outras formas de violência contra crianças e adolescentes, uma vez que a indiferença afetiva, a falta de ternura, ou melhor, a aridez afetiva, precisam encontrar-se como raiz propiciadora das outras formas de maus-tratos infantis. Da mesma forma, ao contrário, a presença de afeto e de amor em relação à criança seriam exatamente o elemento impeditivo para a perpetração de qualquer crueldade em relação à criança. A exposição constante da criança e do adolescente a situações de humilhação e constrangimento, através de agressões verbais, ameaças, cobranças e punições exageradas, conduz a vítima a sentimentos de rejeição e desvalia, além de impedi-la de estabelecer com outros adultos uma relação de confiança.202

199

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 105. 200

A violência doméstica como violação dos direitos humanos. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7753. Acesso em 04.ago.2008. 201

AZEVEDO. Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo. (Orgs.). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 3ª.ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 85. 202

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 116 e 117.

59

Assim, a violência psicológica não se caracteriza apenas por uma ação de

caráter físico e pode ocorrer tanto por agressão verbal ou outras formas de

depreciação do indivíduo diante de si próprio e dos outros causando sofrimento

psicológico, depressão, perda de auto-estima e autoconfiança.203

Este tipo de violência é a forma de abuso mais difícil de ser identificada, uma

vez que não deixa marcas evidentes no corpo, exceto se for possível evidenciá-las

pela postura corporal da vítima. Ela é facilmente camuflada pela sutileza das

relações intrafamiliares, mas causa sofrimento e conduz a criança ou o adolescente

a modelos de relacionamento igualmente perversos na sua vida adulta. O abuso

psicológico também permeia todas as outras formas de violência.204

No que se refere à violência sexual, Marcelo Gabet ensina que:

Considera-se abuso sexual todo o tipo de contato sexualizado, desde falas eróticas ou sensuais e exposições da criança a material pornográfico até o estupro seguido de morte. Dentro deste vasto espectro incluem-se carícias íntimas, relações orais, anais, vaginais com penetração ou não.205

O conceito de abuso sexual deve ser compreendido como um ato que se

circunscreve entre uma multiplicidade de condutas aparentemente ―insignificantes‖,

que vão desde um simples manuseio até práticas sexuais, impostas e não

consentidas, incluindo ou não a penetração coital, como, por exemplo, atos

humilhantes como penetração de objetos, sadomasoquismo, dentre outros.206

Segundo Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, os

agressores sexuais de crianças e adolescentes que sofrem distúrbios psiquiátricos

são uma minoria. São pessoas aparentemente "normais", com laços estreitos com a

vítima. Pode ser uma pessoa da família, como pai, padrasto, avô, primos, tios,

alguém conhecido e supostamente de confiança, como vizinhos, amigos dos pais,

203

LEAL, Angélica; ANDRADE, Patrícia. Infância e Parlamento: guia para formação de Frentes Parlamentares da Criança e do Adolescente / Brasília: Senado Federal, Gabinete da Senadora Patrícia Saboya Gomes, 2005. p. 84. 204

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar p. 117. 205

GABEL, Marcelo. Crianças vítimas de abuso sexual. São Paulo: Summus, 1997. p. 74. 206

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 111.

60

ou mesmo alguém com estatuto de confiança social (educadores, padres, pastores,

etc.) 207

Referente à negligência, Josiane Rose Petry Veronese ensina que:

A negligência é a omissão dos responsáveis em garantir cuidados e satisfação das necessidades da criança/adolescente sejam elas primárias (alimentação, higiene e vestuário), secundárias (escolarização e lazer) e terciárias (afeto, proteção). Cada um dos níveis de necessidades não satisfeitos, determina sérias conseqüências no desenvolvimento da criança/adolescente, que podem ir do óbito prematuro à delinquência. Não é considerado negligência a omissão resultante de situações que fogem ao controle da família. 208

Dessa forma, entende-se que a negligência é um tipo de indiferença, seja

intencional ou não, pelas necessidades interiores e exteriores da

criança/adolescente. A indiferença é o contrário do amor, do bem-querer,

manifestando-se sob a forma de aridez e insensibilidade afetivas.209

Por fim, ressalta-se que da prática de atos violentos contra crianças e

adolescentes no âmbito familiar, sob forma de agressão física, sexual, psicológica,

pode ser tipificada como simples abuso do poder familiar, crime de maus tratos

previsto no artigo 136, do Código Penal, que será analisado no tópico seguinte.

2.5 DO CRIME DE MAUS TRATOS

O crime de maus tratos têm sido refletidos, através dos tempos, pelas mais

diversas justificativas, desde práticas e crenças religiosas, motivos disciplinares e

educacionais e, em amplo grau, com fins econômicos. As reações relembradas não

apenas nas classes dominantes, mas também no povo em geral, oscila entre o mais

207

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Pele de asno não é só história: um estudo sobre a vitimização sexual das crianças e adolescente em família. São Paulo: Roca, 1988. p. 109. 208

FARINATTI, Franklin; BIAZUS, Daniel B.; LEITE, Marcelo B. Pediatria social: a criança maltratada. Rio de Janeiro: MEDSI, 1993. p. 243. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 119. 209

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 119.

61

absoluto abandono e impedimento dos castigos físicos, até o seu uso amplo repetido

em níveis mais graves.210

Sobre o assunto, cumpre ressaltar que:

As referências de abusos físicos extremos nos menores para conseguir retorno econômico dos seus ascendentes foram freqüentes durante a Revolução Industrial, mesmo em países tidos como mais desenvolvidos à época, como Grã-Bretanha e Estados Unidos. Os abusos cujo alvo são as crianças, ao longo do tempo, têm provocado ondas periódicas de simpatia, que evocam a indignação pública, que não tarda em se acalmar até o próximo período de provocação. 211

A história registra que, no primitivo direito romano o pai possuía absoluto

poder disciplinar em relação ao filho, nele incluído até o de matá-lo, de transferi-lo a

outrem ou mesmo entregá-lo como venda, indenização, doação ou penhor. Assim, o

poder de punição dentro do ambiente intrafamiliar, além de não observar qualquer

regra de proporcionalidade e contraditório, era absoluto, não respondendo o pater

famílias pelos castigos e excessos impostos não só aos filhos, como à mulher e aos

escravos.212

Com o passar dos tempos, esse poder punitivo doméstico foi se abrandando

com exigência de moderação, passando a ser punidos seus excessos quando deles

resultassem lesões corporais graves ou morte. Hoje o pátrio poder é encarado como

um conjunto de deveres em relação aos pais, instituído no interesse dos filhos e da

família, havendo denominação até de pátrio-dever.213

Luiz Régis Prado aponta que o Código Criminal do Império (1830) não tratou

do crime de maus tratos, justificando apenas os castigos moderados; o Código

Penal de 1890 não tratou da matéria, cabendo ao Código de Menores de 1927 fazê-

lo, nos arts. 137 a 141, os quais foram adotados na Consolidação das Leis Penais

de 1932, nos incisos VI a X, do art. 292 (castigos imoderados, maus tratos habituais,

privação de alimentos ou de cuidados, fadiga física ou intelectual por excesso de

210

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) A violência multifacetada: estudos sobre a violência e a segurança pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 274. 211

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) A violência multifacetada: estudos sobre a violência e a segurança pública. p. 274. 212

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. vol. 2.São Paulo: RT, 2000. p. 191 e BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 153.

62

trabalho, ―por espírito de lucro, ou por egoísmo ou por desumanidade... de maneira

que a saúde do fatigado seja afetada ou gravemente comprometida‖).214

O Código Penal de 1940, no Capítulo III, do Título I, da Parte Especial,

utilizando uma forma unitária e com a rubrica ―maus tratos‖ não só englobou aqueles

crimes individualizados na legislação anterior, como ampliou a proteção legal

dispensada para alcançar, além dos menores de dezoito anos, e agora sem limite

etário, todos aqueles que se encontrem sob a autoridade, guarda ou vigilância de

outrem, para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia. A idade, de até 14

anos, servirá apenas para maior apenação, consoante § 3º acrescentado pela Lei n.

8.069/90.215

Efetivamente, prevê o art. 136 do Código Penal, que não trata de maus-tratos

da violência intrafamiliar, propriamente, mas de perigo a vida ou a saúde de outrem,

que:

Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.216

Partindo da análise do respectivo artigo, Josiane Rose Petry Veronese ensina

que:

Esse tipo penal pressupõe um relacionamento subordinado, ou seja, uma vinculação jurídica entre os sujeitos passivo e ativo. É necessário que o sujeito passivo esteja sob a autoridade, guarda ou vigilância do sujeito ativo, para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia. Há que se falar em relação jurídica de guarda, de vigilância e de autoridade. a) Relação jurídica de guarda – quando alguém tem o encargo de prestar a outrem, situado em uma posição de carência ou incapacidade, auxílio e assistência de ordem material, moral e pedagógica (ex.: pais, tutores e curadores, em relação a filhos, tutelados e curatelados); b) Relação jurídica de vigilância - quando a obrigação se restringe a um compromisso ocasional de observação e acautelatória (assistência acautelatória, com o objetivo de resguardar a integridade pessoal alheia. Ex.: guias

213

LEAL, César Barros; PIEDADE JÚNIOR, Heitor, (org.) A violência multifacetada: estudos sobre a violência e a segurança pública. p. 275. 214

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. p. 193. 215

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. p. 194. 216

Código Penal e Constituição Federal / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Roledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Livia Céspedes. 46 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 56 e 57.

63

alpinos/alpinistas; salva-vidas/banhistas,...); c) Relação jurídica de autoridade – na hipótese de um poder-dever de mando e orientação (ex.: diretor de escola/alunos; carcereiros/presos, também pais/filhos,...). Destarte, somente são sujeitos do delito o agente e a vítima, respectivamente, os pais em relação aos filhos; os tutores, quanto a seus pupilos; os curadores, no que concerne aos interditos ou curatelados; os diretores de escolas, de hospitais, de prisões, em face dos alunos, enfermos e encarcerados, respectivamente. Da delimitação do sujeito passivo do crime de maus-tratos estão excluídos a esposa e filhos maiores de vinte e um anos, ante a absoluta ausência de relação de subordinação com o marido e pais, respectivamente. 217

Segundo Nilton João de Macedo Machado, o núcleo do tipo é o verbo expor,

significando criar uma situação de perigo à vida ou à saúde da pessoa subordinada;

é típico crime de perigo, de conteúdo variado por prever múltiplos meios de maltratar

a pessoa:

1) privando-a da alimentação necessária, claro que de forma habitual, pois da omissão alimentar deve resultar perigo, o que não se vislumbra com apenas uma conduta; pode se caracterizar com privação parcial e, desde que exponha a vida ou a saúde da pessoa subordinada a perigo, constitui maus tratos, no sentido do texto. De outra parte é bom ressalvar que a privação total ou parcial dos alimentos que exponha o subordinado a perigo deve ser dolosa; se a conduta decorre da pobreza que não permita sequer ao próprio agente alimentar-se, resulta evidente que não se poderá cogitar do crime em comento em relação ao subordinado.

2) privando-a dos cuidados indispensáveis – tem-se que estão compreendidos entre aqueles que representam o mínimo necessário à vida e saúda da pessoa, como não levar criança doente ao médico ou privá-la da higiene necessária. Nesta modalidade a conduta também é omissiva e para caracterizar maus tratos também se exige habitualidade, embora seja possível sua perfectibilização com uma só atitude, como o pai deixa o filho dormir sem agasalho no inverno fora de casa, em região fria, sabendo-se que pode contrair doença grave como pneumonia.

3) sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado – Trabalho excessivo é o que supera as forças físicas ou mentais da vítima, ou o que produz fadiga anormal, enquanto inadequado é o trabalho impróprio para as condições orgânicas da vítima, segundo a idade ou sexo. Em qualquer das hipóteses, o referencial para a análise é a própria vítima, levando-se em conta o seu condicionamento físico, capacidade mental, a sua força muscular, a sua idade e sexo.

4) abusando dos meios de correção e disciplina – esta modalidade do crime consiste no abuso de meios de correção ou disciplina, infligindo castigos excessivos que resultem perigo para a vida ou saúde da pessoa, atuando o agente imbuído para um fim inicialmente lícito (correção ou disciplina), ao contrário das anteriores, quando os

217

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 139 e 140.

64

maus tratos são impostos por malvadez, intolerância, impaciência, grosseria etc. 218

Ocorre que, é preciso destacar que no crime de maus tratos o dolo, ou seja, a

intenção do agente é de perigo e, se houver dolo de dano, como, por exemplo,

agressão física excessiva do pai ao filho, malgrado o animus corrigendi, o delito será

de lesões corporais (CP, art. 129), podendo se transformar no crime de tortura do

inciso II do art. 1º da Lei n. 9.455/97.219

Dessa forma, para que se configure o crime de maus tratos é necessário que

o abuso dos meios corretivos ou disciplinares ocorra mediante: a) Castigos físicos

que não representem agressão contra a vítima; b) Violência moral. Sobre o assunto:

Se o castigo físico for praticado com o dolo de dano, o crime será de lesões corporais. Entretanto, se houver emprego de violência física, causadora de intenso sofrimento físico ou mental, o agente responderá pelo crime de tortura (art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97). Na violência moral, como por exemplo: ameaças, intimidações, terror, impedimento do sono etc., desde que idôneos a expor a perigo a vida ou saúde. Se, entretanto, a grave ameaça causar intenso sofrimento físico ou mental, o agente responderá pelo delito de tortura previsto no inciso II do art. 1º da Lei n. 9.455/97. Se, porém, o sofrimento não for intenso, haverá delito de maus tratos, que, nesse caso, assume o perfil de crime subsidiário. 220

Cumpre ressaltar, contudo, que a legislação civil admite aos pais e

responsáveis o direito de usar meios disciplinares ou corretivos, de forma ponderada

e assim, o que constitui crime de maus-tratos é o excesso desse meio corretivo ou

disciplinar que põe em perigo a vida ou saúde da vítima.221

Por fim, dentre as formas de violência doméstica, além do crime de maus

tratos tem-se também o crime de tortura que será analisado no capítulo seguinte,

desde seu histórico, a tortura no Brasil, conceito, a tortura na legislação brasileira –

Lei n. 9.455/97 e, finalmente, trazendo a distinção entre tortura e maus tratos

praticados contra crianças e adolescentes.

218

MACHADO, Nilton João de Macedo. Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26. 219

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 143. 220

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência Doméstica: Quando a vítima é criança e adolescente - uma leitura interdisciplinar. p. 143. 221

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26.

65

3 TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E

ADOLESCENTES

A violência praticada contra crianças e adolescentes no âmbito intrafamiliar,

pode ser tipificada como simples abuso do poder familiar, crime de maus tratos

previsto no artigo 136 do Código Penal, como também crime de tortura, assim

considerado na Lei n. 9.455/97. Em virtude da dificuldade conceitual e normativa,

surge a necessidade de distinguir em que categoria se inclui esta violência,

evitando-se continuidade no enquadramento como maus tratos, condutas estas que

possuem tipicidade na lei de tortura.

3.1 HISTÓRICO DA TORTURA

O estudo da tortura nos leva a períodos históricos remotos das mais diversas

civilizações, não se tratando, pois, de uma prática nova nem limitada a algum

sistema político ou regime, a determinada cultura ou religião, ou, ainda, a

determinada situação geográfica.222

A tortura, na maioria das vezes, estava diretamente ligada ao sistema penal

vigente em cada sociedade, por isto, a legislação de um povo deve ser encarada

como um reflexo dos conceitos e valores do mesmo.223

Conforme Valdir Sznick:

A tortura, em sua evolução histórica, foi empregada, de início, como meio de prova, já que, através da confissão e declarações, se chegava à descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Média e na Inquisição, seu papel é de prova no processo, possibilitando com a confissão a descoberta da verdade.224

222

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 31. 223

FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. 1941-1980. Aspectos jurídico-penais da tortura. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 116. 224

SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998. p.14.

66

A tortura era utilizada como pena, depois como prova propriamente dita e, por

fim, como satisfação do crime cometido e, também, como meio de satisfazer os

instintos mais cruéis, em atos de verdadeiro sadismo.225

3.1.1 Antiguidade

Na Idade Antiga, ou Antiguidade, período que se estendeu desde a invenção

da escrita (4000 a.C. a 3500 a.C.) até à queda do Império Romano do Ocidente (476

d.C.), a finalidade da tortura era a retribuição do mal causado pelo delito e, a partir

daí, utilizavam métodos de que resultavam dores praticamente insuportáveis. Era a

época que, em regra, a tortura era utilizada como meio de obter confissão dos

acusados.226

Relata Valdir Sznick, que:

No início dos tempos, onde se confunde o poder com a religião, havia um quê de sacralidade na pena e punição. É dentro desse conceito sacral que se tem os totens, amuletos, sortilégios e oráculos. Esse mesmo espírito sacral permanece até os germanos, quando ainda subsistem as ordálias e os juízos de Deus, como instrumento de provas, mas com ‗provas‘ cruéis como o uso de água fervendo, óleo fervente e outras. Era a época em que a confissão tinha um valor alto demais como prova, um valor também quase religioso, considerada a ‗rainha das provas‘.227

Nesse compasso, a tortura era definida como o tormento que se aplicava ao

corpo, com o objetivo da apuração da verdade e, tinha como base de que mesmo o

homem mais mentiroso tem uma tendência natural em dizer a verdade.228

Conforme Jarbas Bezerra:

Dentre os povos que se utilizavam ainda da tortura, tem-se conhecimento dos persas, que na antiguidade, o acusado e condenado de um crime grave era amarrado em dois botes, só com a

225

SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998. p.14. 226

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. 1ª ed. São Paulo: Julex Livros Ltda, 1991. p. 29. 227

SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998. p. 21. 228

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. Natal (RN): Lidador, 2001. p. 23.

67

cabeça e os membros para fora. Em seguida, passavam no condenado mel e leite em seu rosto, membros e costas, virando-o para o sol, decorridas algumas horas, o corpo era invadido pelas moscas, causando a dilaceração dos órgãos.229

Os gregos e romanos foram os primeiros a usar a tortura como meio de prova,

contra principalmente os escravos. Nesse sentido Flávia Camello Teixeira relata que:

Os direitos penais grego e romano são, naturalmente, as fontes do direito penal do Ocidente, como é lá que se rastreiam as expressões primeiras da tortura como meio de prova. [...] A influência da cultura grega sobre os romanos é fato sobejamente conhecido. No que diz respeito ao direito, Roma parece ter tido uma evolução bastante complexa. Pelo menos, a pertinente documentação jurídica é muito mais abundante. [...] Como na Grécia, o escravo, que não podia ser sensibilizado no sentido moral e cívico, era torturado para dizer a verdade, quer na tortura pública, feita pelo quaestor, quer privada,

feita pelos senhores. 230

Jarbas Bezerra complementa:

A tortura entre os gregos e romanos somente era usada contra os escravos, que eram considerados como coisas. Entre os homens livres, ela não era empregada, entretanto, para os gregos e romanos, a tortura confundia-se com a própria pena. [...] No século V da era cristã, com Roma sendo conquistada pelos germanos, deu-se um cunho extremamente individual à vingança privada, aplicando-se a tortura com grande freqüência e com requintes de perversidade, criando-se as ordálias e os Juízos de Deus, como instrumento de provas (utilização de água fervente, piche quente entre as unhas e a carne, óleo fervente e outros.231

Assim, para os romanos, que desenvolveram vários métodos de tortura, a

confissão era prova suficiente para a condenação, porém, era avaliada com

precaução, ainda mais quando obtida mediante tortura.232

3.1.2 Idade Média

Segundo Flávia Camello Teixeira: 229

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 24. 230

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 8. 231

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 23. 232

GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002. p. 24.

68

Com a invasão dos povos germânicos, que acabam, a partir do século V d.C., por ocupar os espaços anteriormente dominados pelos romanos, observam-se diversos empréstimos culturais dos romanos, como esses haviam tomado em relação aos gregos. Afirma-se que os costumes jurídicos-penais germânicos, antes da influência da cultura romana, não abrigavam propriamente a tortura como meio de prova, podendo-se falar, antes, da intervenção da divindidade por meio dos ordálios, de diversas modalidades (juízo da água fervente, da água fria, do fogo, do ferro em brasa, etc) [...] Mencionou-se a influência dos bispos católicos sobre os povos germânicos. Na realidade, estamos aqui no começo da Idade Média e da formação da cristandade ocidental.233

A Idade Média, período que vai da desintegração do Império Romano do

Ocidente, no século V, até o século XV, foi um período em que a igreja tornou-se um

poder opressor com realização de tortura, dirigindo todas as relações jurídicas

existentes na época; com a interferência canônica, surgiu a confusão entre crime e

pecado e, assim, era impossível o acusado escapar da tortura.234

Complementa Flávia Camello Teixeira, que:

O Cristianismo, que fora proclamado religião oficial do Império Romano com Constantino, acabou por atingir o poder político universal, na medida em que aculturou os povos bárbaros e marcou sua presença na formação do Sacro Império Romano. Constituem conseqüências mais diretas na formação da mens jurídica: as ações

contra a religião adquirem caráter de ilícito; a Igreja passa a normatizar fatos vistos como crimes, primeiro de ordem espiritual, depois de natureza mista, praticados por eclesiásticos ou leigos.235

Nesse período, a confissão passou a ser considerada como rainha das

provas. Segundo Bernardino Gonzaga:

Se por qualquer motivo ao conviesse o duelo, recorria-se aos ordálios. [...] Os métodos variavam muito, mas em regra consistiram na ‗prova do fogo‘ ou na ‗prova da água‘. Por exemplo, o réu devia transportar com as mãos nuas, por determinada distância, uma barra de ferro incandescente. Enfaixavam depois as feridas e deixavam transcorrer certo número de dias. Findo o prazo, se as queimaduras houvessem desaparecido, considerava-se inocente o acusado; se apresentassem infeccionadas, isso demonstrava a sua culpa. Equivalentemente ocorria na ‗prova da água‘, em que o réu devia por exemplo submergir, durante o tempo fixado, seu braço numa caldeira cheia de água fervente. A expectativa dos julgadores era de que o culpado, acreditando no ordálio e por temor a suas conseqüências,

233

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 10. 234

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. Natal (RN): Lidador, 2001. p. 24. 235

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 11 e 12.

69

preferisse desde logo confessar a própria responsabilidade, dispensando o doloroso teste.236

No mesmo sentido, relata Flávia Camello Teixeira, que:

A Justiça Secular, influenciada pela teoria canônica, passa a ver a confissão como a rainha das provas, transformando o processo penal em meio destinado a obtê-la. A tortura torna-se, então, um dos mais importantes instrumentos do processo penal. Com isso, o processo se transformou em instrumento de opressão para obter a confissão do suspeito. Teoricamente, a inflição do tormento era admitida como prova subsidiária. Na prática, os juízes não se preocupavam com tal princípio: a verdade processual devia desaguar na confissão do culpado, mesmo que esse jurasse inocência. Na determinação e valoração das provas, o sistema processual previa: a ―informação‖, o ―indício‖ (ou presunção), a ―prova semiplena‖ (ou incompleta – por exemplo, o depoimento fidedigno de uma testemunha) e a ―plena ou legítima prova‖, que era a confissão do acusado.237

Dessa forma, a confissão do réu passou a ter importância capital, visto

constituir indício de arrependimento, suscitando esperança da almejada

regeneração.

3.1.3 Inquisição

No período da Inquisição238, criado na Idade Média (século XIII) e dirigida

pela Igreja Católica Romana, a tortura era utilizada como meio adequado a testar a

verdade da confissão mas, logo em seguida, se prolongava integrando a própria

pena. No Manual dos Inquisitores há instruções precisas sobre a oportunidade de

inflição do suplício durante o processo.239

Conforme João Bernardino Gonzaga:

Nascida oficialmente no começo do século XIII e durando até o século XIX, a Inquisição dedicou-se, dizem eles, a semear o terror e

236

GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,1993. p. 23. 237

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 14 e 15. 238

―Antigo tribunal eclesiástico, também conhecido por Santo Ofício, instituído para punir os crimes contra a fé católica‖ (HOLANDA, A. B. Dicionário Aurélio Escolar da Língua Portuguesa. 1 ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988.) 239

FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. 1941-1980. Aspectos jurídico-penais da tortura. p. 117.

70

a embrutecer os espíritos. Adotando como método de trabalho a pedagogia do medo, reinou, de modo implacável, para impor aos povos uma ordem, a sua ordem, que não admitia divergência, nem sequer hesitações. Ao mesmo tempo, pretende-se que o que havia por detrás dela, nos bastidores, era um clero depravado, ignorante e corrupto, em busca apenas do poder político e da riqueza material. [...] A igreja teria conseguido entravar por longo tempo o desenvolvimento cultural da humanidade.240

Sobre o Manual dos Inquisidores, Wolgran Junqueira Ferreira relata que:

O Manual dos Inquisidores foi um resumo para o procedimento do Santo Ofício na Espanha e Portugal. O Capítulo V, desse Manual, denominado ―Das Torturas‖, que especifica a finalidade buscada com submetimento a ela, que era a de fazer confessar o acusado seus crimes contra a fé. Dispunha o capítulo V, do Manual: ―Será enviado ao Suplício: I – O acusado que dê diferentes respostas acerca das circunstâncias, negado o fato principal; II – A quem tendo fama de herege e havendo-se provado sua desonra, tenha uma testemunha contra si (mesmo que fosse uma só), que declare haver ouvido dizer ou fazer algo contra a Fé, pois que essa testemunha como a má fama do acusado constitui uma semi-prova e são indícios suficientes para aplicar-lhe a tortura; III – Se ao invés da testemunha que acabamos de supor, se acresce a difamação de heresia, outros de peso (ou um só), se deve assim mesmo aplicar a tortura; IV – Ainda quando não existe difamação de heresia, bastará uma só testemunha que tivesse visto ou escutado dizer algo contra a Fé e um ou vários indícios de peso, para submeter o acusado ao suplício. Quando o acusado tiver fugido e, tendo má reputação, basta para que se aplique o tormento.241

Destaca-se, pois, que os crimes que interessavam à Inquisição eram os que,

direta ou indiretamente, pareciam atentar à fé e aos costumes, aqui incluindo não só

as heresias, como o judaísmo, a feitiçaria, a usura, a blasfêmia, a bigamia e outros.

O crime, era visto como pecado e sua sanção seria a penitência, que era dada após

a confissão, cujo alcance era todo o propósito dos procedimentos inquisitivos.242

Sobre o método da prática da tortura nesse período, verifica-se que:

Quando tiver sido dada a sentença de tormento, enquanto se prepara o verdugo para executá-la, o inquisidor e as pessoas que o assistirem farão novas tentativas para persuadir ao réu que confesse a verdade. Desnudando-o, os verdugos e ajudantes deverão mostrar inquietação, pressa e tristeza, procurando meter-lhe medo. Quando este já estiver nu, os inquisidores o levarão à parte, exortando-o a que confesse, prometendo-lhe a vida com esta condição; porém, a

240

GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. p. 17 e 18. 241

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. p. 38. 242

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 13.

71

menos que seja relapso, em tal caso o verdugo não pode prometer nada. [...]

Quando todos os apelos se tornarem inúteis, será colocada a questão de tormento e assim se procederá ao interrogatório, iniciando-se pelos pontos menos graves de que está sindicado, porque antes ele confessará as culpas leves do que as graves. Se continuar negando, serão mostrados os instrumentos de outros suplícios, dizendo-lhe o que sofrerá se não confessar a verdade. Por fim, se não confessar, poder-se-á dar continuidade ao tormento durante dois ou três dias, mas a continuidade não significa repetição, porque não se pode repetir sem novos indícios arrolados na causa, porém é lícito continuar. A aplicação da tortura baseava-se no ―louvável costume‖ porque se acreditava que ela é para o bem das almas e maior glória de Deus, permitindo-se, então, o castigo de quem o ofendia gravemente e colocavam, a outros, em perigo de condenação eterna243

Dessa forma, o ritual da tortura era bem marcado e não se poderia dar morte

ao infeliz antes do momento adequado. Imprudente seria o Inquisidor que o deixasse

sucumbir os tormentos.244

3.1.4 Idade Moderna

A Idade Moderna, período específico da História do Ocidente compreendido

entre a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) e a eclosão da

Revolução Francesa (1789), caracteriza-se por grande confusão na aplicação do

direito penal, espalhando o uso do terror por parte dos governantes, para manter o

povo intimidado e submisso, e a cristalização do processo inquisitivo. Nesse sentido,

segundo Flávia Camello Teixeira:

A tortura, que até o século XIV era enfocada como instrumento processual sobre a qual pesavam garantias legais, recrudesceu a partir do século XV, sobretudo nos estados absolutistas, quando os tormentos passam a relacionar-se com a segurança do Estado, reduzindo-se as garantias dos cidadãos. O processo inquisitivo torna-se mais atentatório aos direitos do acusado, na medida em que os atos processuais se realizam de forma secreta.245

243

GODOY, Affonso Celso de. (Trad.) Manual da Inquisição Curitiba: Juruá, 2001. p. 48. 244

FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aspectos jurídico-penais da tortura. p. 121. 245

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 15.

72

Por fim, ressalta-se que cada país teve suas particularidades processuais,

quase todos utilizando a prática da tortura, mas provavelmente a Alemanha, foi o

palco das maiores atrocidades ligadas à tortura no respectivo período. Utilizava-se a

tortura por meio de azeite (nas quais o acusado era obrigado a ingerir grande

quantidade de azeite fortemente temperado, sendo depois levado a uma sala de

temperatura elevada), de fogo (principalmente nos pés, devidamente untados com

gordura), a empolgadeira (que esmaga polegares), dentre outros.246

Em resumo, a tortura conseguiu atravessar todos os estágios históricos,

rompendo barreiras geográficas, instalando-se, em vários países, como meio de

inibir a expressão da liberdade humana e como meio de combater a criminalidade.

3.2 A TORTURA NO BRASIL

No período colonial, marcado pelos primeiros tempos da colonização

Portuguesa em nosso país (1500 a 1508), a sociedade era determinada pela

escravidão, onde a crueldade perpetrada, principalmente no que tange aos negros,

era enfocada como algo natural, pois estes eram considerados sub-humanos,

destinados apenas à produção agrícola e de minérios. Além dos escravos e negros,

a tortura era também infligida aos ―perigosos‖ de todos os tipos, como aqueles

perseguidos pela Inquisição.247

Neste sentido, segundo Flávia Camello Teixeira:

No que se refere aos negros, quando fugidos, o juiz do lugar, no ato da recaptura, devia infligir-lhe o tormento, por meio de açoites, para que nominasse seu proprietário, ―sem apelação, nem agravo, contando que os açoites não passem de quarenta‖. [...] Sem quaisquer direitos de cidadania, o escravo era, porém, imputável do ponto de vista penal, incidindo sobre ele penas diversas, como a capital, açoites públicos, açoites com braço e pregão.248

246

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. p. 40. 247

COIMBRA, Cecília Maria Bouças; ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Revista CEJ. Brasília, nº 14, ago. 2001. p. 149-150. 248

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 23 e 24.

73

Passando ao período militar, que se registram entre abril de 1964 a março de

1985, conferiram-se poderes excepcionais aos órgãos opressores do Estado, com

supressão de direitos constitucionais do cidadão. Àqueles que se investiram

bravamente contra o sistema de exceção, eram considerados ‗subversivos‘ e o

preço que pagaram foi alto, sofrendo diversos tipos de tortura, sendo muitos mortos

em nome da ‗Segurança Nacional‘.249

Dessa forma, o regime militar subverteu todo o mecanismo legal existente,

instigando a delação entre parentes, reduzindo-se arbitrariamente o número de

testemunhas na formação da culpa, bem como, aceitando delações anônimas,

utilizando-se de todos os tipos de tortura como mecanismo de negação da

cidadania.250

Cecília Maria Bouças Coimbra complementa que:

Na verdade, muitos opositores políticos foram torturados naquela primeira fase da ditadura militar, mas eram casos pontuais. A vitória da chamada ―linha dura‖, o golpe dentro do golpe, instituiu o terrorismo de Estado que utilizou sistematicamente o silenciamento e o extermínio de qualquer oposição ao regime. O governo Médici (1969 – 1974), foi o período em que mais se torturou em nosso país. Aproximando-se dos métodos inquisitoriais, a tortura – nos anos 60, 70 e ainda hoje, no Brasil e em muitos outros países – persegue também a verdade, onde a confissão do supliciado é procurada a todo custo. Entretanto, diferentemente da Inquisição, não é ela que absolve e redime o torturado. Ela, inclusive, não é garantia para a manutenção da vida; ao contrário, muitos após terem ―confessado‖ foram – e continuam sendo – mortos ou desaparecidos. Além disso, tem tido como principal papel o controle social: pelo medo, cala, leva ao torpor, a conivências e omissões.251

Jarbas Antonio da Silva menciona que neste período:

Os presos durante os chamados ―interrogatórios preliminares‖, além de torturas, ficavam longos períodos incomunicáveis, quer para seus familiares quer para seus advogados. Indefesos e incomunicáveis, eram obrigados a confessar aquilo que os seus interrogadores queriam e, obtidas as confissões, os inquéritos eram ―legalizados‖.252

249

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 38. 250

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 42. 251

COIMBRA, Cecília Maria Bouças; ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. p. 149-150. 252

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 46.

74

Durante o período militar os ―presos políticos‖ eram mantidos em cárcere

privado, após serem seqüestrados e, alguns deles encontraram a morte em tais

locais. Muitos, que eram mantidos encapuzados, retornavam sem qualquer noção de

onde haviam estado e poucos foram os que viram com seus próprios olhos os locais

devidamente equipados e adaptados para todo tipo de tortura.253

3.3 CONCEITO DE TORTURA

Para se ter uma noção exata da aplicabilidade dos crimes da Lei de tortura,

faz-se necessário entender o que esta vem a ser, sendo que, não obstante

tenhamos mentalmente um conceito formado, é imprescindível que tomemos por

base um conceito científico do tema, pois podemos, se não atermos a este,

incorrermos em erro.

A prática da tortura, como crime próprio, dependia de lei específica e seu

conceito jurídico, não poderia afastar-se dos termos de duas convenções, a

Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e

Degradantes (da Organização das Nações Unida - ONU) e a Convenção

Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (da Organização dos Estados

Americanos). A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos ou Degradantes, adotada pela Organização das Nações Unidas - ONU,

em 10/12/1984, define a tortura em seu artigo 1º, como:

Para fins da presente Convenção, o termo ―tortura‖ designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüências

253

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 53.

75

unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.254

De acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura,

temos que, o conceito de tortura é, consoante o artigo 2 º:

Todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.255

No âmbito interno, a CRFB/88 também destaca seu repúdio à tortura, ato

desumano que atenta contra a dignidade da pessoa humana:

Art. 5º (...)

III. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (...)

XLIII. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos por eles respondendo os mandantes, os executores, e os que podendo evitá-los, se omitirem.256

A Associação Médica Mundial definiu a tortura como:

A imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por conta própria ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, como fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer.257

A Sub-Comissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias

definiu a tortura como:

[...] qualquer ato através do qual se inflige intencionalmente dor ou sofrimento físico, mental ou psicológico a uma pessoa, com o propósito de obter informações ou confissão, para puni-la ou constrangê-la a terceiros.258

254

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 67. 255

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 68. 256

PINTO Antonio Luiz de Roledo; WINDT Márcia Cristina Vaz dos Santos; CÉSPEDES Livia. (colaboradores) Código Penal e Constituição Federal 46ª ed. Saraiva: São Paulo, 2008. p. 56-57. 257

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 25. 258

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. p. 171.

76

A tortura, pois, compreende fatos essenciais, quais sejam: ocorre quando pelo

menos duas pessoas se acham envolvidas no fato, o torturador e sua vítima; a

vítima se encontra sob o controle físico do torturador; ainda que inflingir a dor com o

propósito básico, a definição deve incluir um aspecto essencial, o comportamento

mental e psicológico; existe interesse implícito por parte do torturador de cercear a

vontade da vítima e de destruir sua personalidade.259

Maria Helena Diniz em seu Dicionário Jurídico afirma que tortura:

É o suplício do condenado; sofrimento físico e moral infligido ao acusado para obter confissão ou alguma informação; ato criminoso de submeter a vítima a um grande e angustioso sofrimento provocado por maus tratos físicos e morais.260

De Plácido e Silva, assim define:

A tortura é o sofrimento ou a dor provocada por maus-tratos físicos ou morais. É ato desumano, que atenta à dignidade humana. É o sofrimento profundo, angústia, dor. Torturar a vítima é produzir-lhe um sofrimento desnecessário. É tornar mais angustiante o sofrimento.261

Extrai-se que a tortura é uma forma extrema da violência, exercida por quem

tem o poder ou parcela do poder; não existe tortura sem violência, quer física, quer

mental.262

No dizer de Paulo Sérgio Leite Fernandes e Ana Maria Babette Fernandes:

Tortura e violência andam sempre juntas... não há tortura sem violência. Quando se pensa em tortura, vem imediatamente à luz a característica da força física. Há tortura sempre que, com a finalidade de reduzir ou anular a liberdade de vontade do indivíduo para a obtenção de informações retidas, a autoridade ou seus agentes utilizam força física que provoque dor ou aviltamento da dignidade do interrogado, ou ainda, procedimentos outros adequados à superação da efetiva ou esperada resistência do indivíduo, nisto compreendida a intimidação por ameaças de mal grave ao próprio indivíduo ou a terceiros que com este mantêm relações familiares ou de afeto. Há tortura, igualmente, sempre que por meio de simples persuasão sugestiva de efeito racional, se obtiver, com técnicas psicológicas, a cooperação do sujeito passivo, evidenciando as circunstâncias à

259

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. p. 23. 260

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Ed. Saraiva, 1998. p. 46. 261

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. v. 4 São Paulo: Forense, 1975. 262

BEZERRA, Jarbas Antonio da Silva. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 26

77

prática disfarçada de conduta demonstradora de anterior ou concomitante cerceamento abusivo da liberdade de locomoção, seja em razão do descumprimento de formalidades exigidas por lei, seja pelo regime prisional imposto em desconformidade com os regulamentos do estabelecimento carcerário. Esta longa definição pretende abranger todas as possibilidades de concretização da tortura, captando inclusive aquelas ações que se nutrem nas modernas técnicas de interrogatório. Os métodos aparentemente legítimos usados por policiais do mundo inteiro, consistentes em amáveis inquirições que se sucedem durante horas e horas mediante troca de equipes de interrogadores, acabam vencendo pelo cansaço ou qualquer outra causa a relutância dos interrogados. À margem disto, o paciente não pode dormir ou, se lhe permitem o repouso, tiram-no deste abruptamente em períodos irregulares, trazendo-lhe total confusão sobre o ultrapassamento do tempo. Isso é perfeita tortura.263

Diante disso, a Lei n. 9.455/97 trata dos crimes de tortura, definindo em seu

art. 1º que constitui crime de tortura:

I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II- submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.264

Através dessa lei, com inclusão da ―tortura doméstica‖, o Brasil diferenciou-se

da ideologia seguida pela Organização das Nações Unidas - ONU e pela

Organização dos Estados Americanos - OEA de considerar tortura apenas quando

há relação com agentes do Estado.

263

FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer; FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. 1941-1980. Aspectos jurídico-penais da tortura. p. 131 e 132. 264

FRANCO, Alberto Silva. Tortura, breves anotações sobre a Lei n. 9.455/1997. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v.19, 1997. p. 65.

78

3.4 A TORTURA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA – LEI Nº 9.455/97

Em consonância com os textos internacionais, o Brasil firmou a Convenção

Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes, em 23 de setembro de 1985, e a Convenção Interamericana para

Prevenir e Punir a Tortura, em 24 de janeiro de 1986, inserindo o constituinte na

CRFB/88, mantendo-se silente até então, a proibição e a criminalização da tortura

por meio do artigo 5º, inciso III, que: “Ninguém será submetido à tortura nem a

tratamento desumano ou degradante”, trazendo também no inciso XLIII do mesmo

artigo que: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia

a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os

executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.‖265

O direito brasileiro não conhecia a definição legal e criminalização própria da

tortura até a vigência da Lei n. 9.455/97, muito embora tenha sido inicialmente

prevista pela Lei. 8.072/90, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos e

criminalizada genericamente no já revogado artigo 233 do ECA – Lei. 8.069/90.266

Nesse sentido, relata Gustavo Octaviano Diniz Junqueira que:

Apesar de tantas previsões expressas e da pressão internacional, inclusive pelo comprometimento previsto no próprio tratado da ONU, o crime de tortura passou muito tempo sem previsão legal no Brasil, apesar da referida previsão constitucional de tratamento equiparado ao dos crimes hediondos. Ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 233, trouxesse tímida cominação sem definição do que consistiria a referida tortura, é certo que o Brasil muito tardou – com a implícita confissão de falta de vontade política – para fazer previsão expressa de um tipo para a tortura.267

Verifica-se que o termo tortura era previsto na lei penal brasileira apenas na

redação original da Parte Geral do Código Penal de 1940, tendo sido arrolada em

duas hipóteses: como circunstância legal agravante (art. 61, II, letra d – ―ter o agente

265

FERREIRA, Wolgran Junqueira. A tortura: sua história e seus aspectos jurídicos na Constituição. p. 172. 266

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 92. 267

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2 / coordenação. 2. ed. São Paulo:Premier Máxima, 2008. p. 396.

79

cometido o crime: com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio

insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum.‖) e como qualificadora do

crime de homicídio, contida no inciso III, do §2º do art. 121, do Código Penal: ―III –

com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou

cruel, ou de que possa resultar perigo comum‖.268

Neste ponto, cumpre ressaltar:

Como se observa da exposição de motivos do Código Penal, o legislador entendeu que a tortura seria um dos meios cruéis de levar a vítima à morte, devendo, portanto, ser punido com maior intensidade; tal fato não passou despercebido de Alberto Silva Franco, que lançou sua crítica no sentido de que, nos diversos incisos do artigo 121, o legislador adotou ―uma técnica legislativa denominada ‗exemplo padrão‘. O que, em verdade, qualifica o homicídio não é a tortura em si, mas, sim, o emprego de meio cruel do qual a ‗tortura‘ e a ‗asfixia‘ são exemplos. Outros meios, além desses, podem ocorrer na realidade desde que guardem similitude, na sua crueldade, com os exemplos propostos. Destarte, a expressão ‗tortura‘, na hipótese do homicídio qualificado, não encontra preenchimento no delito agora criado pela Lei 9.455/97: tem um significado vulgar, não jurídico-penal. Tortura, nessa acepção, é qualquer suplício violento infligido a alguém que se traduz em meio cruel para a execução do homicídio.269

Posteriormente ao Código Penal, visando regular a responsabilidade civil,

penal e administrativa nos casos em que houvesse abuso de autoridade, a Lei n.

4.898/65 tratou em resguardar a incolumidade física do indivíduo, protegendo a

pessoa submetida a guarda ou custódia a vexame ou constrangimento ilegal não

autorizado por lei.270

Em 25 de julho de 1990, entrou em vigor a Lei n. 8.072/90 – Lei dos Crimes

Hediondos a cujo respeito menciona Flávia Camello Teixeira que:

Em atendimento ao comando constitucional do art. 5º, inciso XLIII, o Congresso Nacional trouxe a lume a Lei. 8.072/90. Além da disposição constitucional, essa lei teve, sobretudo, como ratio legis o

clamor público oriundo da onda de crimes violentos ocorridos no país, em especial, a ―indústria do seqüestro‖, vigorante notadamente no eixo Rio – São Paulo. Em curto espaço de tempo, a equipe do Governo Collor, com a apetência política legiferante que lhe havia acometido, elaborou a Lei dos crimes Hediondos. Em relação à tortura, sua prática não restou tipificada na lei em comento, havendo

268

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 81. 269

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26. 270

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 82.

80

mesmo quem entenda que esses crimes assemelhados aos hediondos – tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins – sejam tão-somente espécie da qual os crimes hediondos são gênero. Entretanto, ainda que se pudesse afirmar tal distinção, a mesma careceria de efeito prático, já que é isonômico o tratamento constitucional no que diz respeito às restrições de caráter penal e processual penal impostas.271

De outra parte, conforme já mencionado, a Lei n. 8.069 de 12 de julho de

1990, criou o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, trazendo em seu

artigo 233 do ECA, a seguinte redação:

Art. 233 - Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura:

Pena - reclusão de um a cinco anos.

§ 1° - Se resultar lesão corporal grave:

Pena - reclusão de dois a oito anos.

§ 2° - Se resultar lesão corporal gravíssima:

Pena - reclusão de quatro a doze anos.

§ 3° - Se resultar morte:

Pena - reclusão de quinze a trinta anos.272

Esse dispositivo, ainda que considerado constitucional pelo Superior Tribunal

de Justiça - STJ, era largamente criticado pela doutrina em virtude de não esclarecer

em que consistia a prática de tortura, tendo por fim apenas punir os excessos

cometidos pelos pais ou responsáveis; tal dispositivo foi revogado por norma

expressa contida na Lei 9.455/97.273

Dessa forma, viu-se necessária a criação de uma lei específica que trouxesse

não só a definição, como sanções e estabelecesse seus destinatários, uma vez que

o crime de tortura precisa de um rígido controle e repressão por caracterizar a perda

de respeito pela dignidade humana.274

Nesse sentido, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira relata que:

O crime de tortura merece o mais rígido controle e repressão por comunicar a perda de respeito pela dignidade humana, uma vez que, na prática do suplício, o torturante se vê despido de qualquer respeito inerente a sua especial condição (humana), passando a ser instrumento ou coisa na mão do torturador. A dignidade da pessoa humana, mais que um princípio orientador, é fundamento expresso

271

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 85. 272

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 92. 273

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26. 274

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 93.

81

do Estado Brasileiro, conforme o art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, e a fórmula-objeto sua inaceitável negação.275

Assim, em 7 de abril de 1997, foi aprovada e promulgada a Lei n. 9.455/97,

que regulamentou o crime de tortura e expressamente revogou o art. 233 do ECA.276

Sobre a Lei n. 9.455/97, cumpre ressaltar que:

Apesar de simples e de poucos artigos, é muito abrangente, englobando várias e distintas condutas e punindo-as com severidade mas, dada a celeridade em que foi apreciada, votada e sancionada, encontra-se repleta de defeitos que têm se tornado objeto de inúmeras críticas e análises doutrinárias, em um esforço dos juristas por interpretá-la, principalmente em face de diversos choques havidos entre o novo ordenamento e as leis anteriores.277

O artigo 1º da Lei n. 9.455/97 descreveu ilícitos penais ligados à prática da

tortura, cada qual com suas características próprias:

Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de 8 (oito) a 16 (dezesseis) anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime é cometido por agente público; II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

275

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2. p. 397. 276

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 93. 277

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26.

82

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.278

Verifica-se, pois, que a pena imposta ao crime de tortura simples (art. 1º, I e

II) é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos. A pena é mais elevada que as previstas

nos delitos de constrangimento ilegal, de maus-tratos, cuja previsão é detenção, de

3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, e de detenção de 2 (dois) meses a 1 (um)

ano, ou multa, respectivamente.279

No citado artigo, o emprego da expressão ―constranger‖ foi usado no sentido

de tolher a liberdade de alguém, intimidar, coagir, tendo a liberdade da pessoa

atingida pela ação do sujeito, porém o tipo exige ainda que, mediante violência ou

grave ameaça, o sujeito ativo imponha à vítima um sofrimento físico ou mental.280

Ocorre que, para a compreensão típica, depende-se de uma valoração

jurídica, uma vez que o presente dispositivo não trouxe os limites na conceituação

do sofrimento físico ou do sofrimento mental provocado pela conduta de

constrangimento ou submissão. Dessa forma, ainda que seja possível detectar o

sofrimento físico de alguém por meio de perícia médico-legal, várias formas de

sofrimentos físicos podem ser infligidas sem que deles decorram vestígios, além do

que, o sofrimento mental mostra-se variável conforme a maior ou menor

sensibilidade ou capacidade reativa de qualquer pessoa.281

Sobre o assunto, complementa Gustavo Octaviano Diniz Junqueira que:

O tipo não se completa, no entanto, com o simples constrangimento e imposição de sofrimento. É preciso ainda que tenha finalidade especial (alíneas ―a‖ e ―b‖) ou motivação prevista em lei (alínea ―c‖). [...] O sofrimento imposto, físico ou mental, nem sempre deixa vestígios, pelo que prevalece ser desnecessário o exame de corpo de delito como regra geral. No caso de imputação de fato que teria gerado lesão, acreditamos necessário o exame, sob pena de

278

Lei Federal n. 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9455.htm Acesso em: 22.set.2008. 279

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. p. 130. 280

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2. p. 398. 281

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 27.

83

violação ao sistema geral de provas do nosso Código de Processo Penal. 282

Desse modo, o artigo 1º, inciso I, da Lei n. 9.455/97 descreve três hipóteses

que caracterizam o crime de tortura, sendo que a diferença entre esses ilícitos reside

na motivação do agente. 283

A alínea ―a‖ do dispositivo trata da denominada tortura-prova, uma vez que o

sujeito ativo age direcionado a obter informação, declaração ou confissão da vítima

ou de terceiro. Já na alínea ―b‖, denomina-se de tortura-crime, pois o sujeito é

submetido aos suplícios para que pratique crime, seja na forma comissiva ou

omissiva. E por fim, a alínea ―c‖ refere-se a tortura-discriminação ou tortura-racismo,

somente se aperfeiçoando se a discriminação se der por motivo de raça ou

religião.284

No mesmo sentido, afirma Victor Eduardo Rios Gonçalves que:

Esse dispositivo (inciso I) contém três figuras caracterizadoras do crime de tortura. São, portanto, três espécies delituosas sob o mesmo nomem juris, sendo, em razão disso, necessária a adoção de

outras designações para diferenciá-las (tortura-prova, tortura para a prática de crime e tortura-discriminatória). Porém, quanto à objetividade jurídica, meios de execução, sujeitos ativo e passivo, consumação, tentativa e ação penal, as regras são as mesmas para todos eles, que, dessa forma, se diferenciam apenas no que se refere à motivação do agente torturador.285

Assim, ressalta-se que para constituir crime de tortura, não basta o

constrangimento mediante violência, é necessário que se tenha o sofrimento físico

ou mental, além do dolo de se praticar a conduta com o intuito de se obter uma das

três elementares subjetivas do tipo a que alude as alíneas ―a, b e c‖.286

Sendo necessária uma análise direcionada, ao se deparar com o inciso II do

referido artigo, observa-se tratar-se de crime próprio quanto aos sujeitos, pois o

sujeito ativo deve ser alguém que tem guarda, poder ou autoridade sobre o sujeito

passivo. Nessa linha, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira ensina que:

282

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2. p. 399. 283

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 95. 284

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 126 e 127. 285

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 93 e 94. 286

LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como expressão do direito penal da severidade. p. 56.

84

Guarda é a relação de cuidado, responsabilidade, devendo o guardião zelar pelas condições adequadas daquele que detém sob sua tutela. [...] Poder é a possibilidade de impor, em sentido amplo, suas decisões, o que pode acontecer tanto nas relações públicas como nas privadas. Autoridade é a relação de natureza pública que permite ao agente do Estado submeter às suas ordens. Há conceito de autoridade no direito brasileiro, na lei de abuso de autoridade, que pode e deve ser adotado, ―a pessoa que exerce cargo, emprego ou função pública de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.‖287

Ocorre que, no respectivo inciso (II), não basta que o emprego da violência ou

grave ameaça advenha sofrimento físico ou mental, sendo necessário que seja

intenso, não se considerando tortura a utilização de castigos moderados ou leves

por meios de castigo ou correção, não compreendendo também a lesão corporal de

natureza grave, já que esta está prevista no §3º do artigo 1º.288

Como meios de execução, trata-se de crime de ação livre que pode ser

praticado por qualquer meio (comissivo ou omissivo), tendo como exemplos a

privação de alimentos ou de cuidados indispensáveis, castigos imoderados ou

excessivos, privação da liberdade, etc.289

A violência, a que se refere o inciso I e II, importa na violência física sobre o

indivíduo, podendo se consumar por meio de agressões ou abusos praticados sobre

o corpo da vítima, como coices, batidas, tapas, ou seja, qualquer forma de

instrumento que produza alteração da anatomia do ofendido é considerada violência

física. Este tipo de violência pode ocorrer em duas espécies: a imediata como sendo

aquela aplicada diretamente sobre o corpo do ofendido e a mediata que se configura

naquela exercida sobre terceira pessoa ou coisa, mas que, indiretamente, gera os

efeitos pretendidos no indivíduo.290

No que se refere à grave ameaça, para que esteja caracterizada, basta que a

vítima sinta-se intimidade a ponto de fazer ou deixar de fazer o que o torturador

impõe ou exige, mediante intenso sofrimento. Nesse sentido, Gustavo Octaviano

Diniz Junqueira afirma que a grave ameaça ―é a promessa idônea de mal futuro e

287

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2 p. 406. 288

LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como expressão do direito penal da severidade. p. 57. 289

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 97. 290

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 27.

85

grave, capaz de tolher a liberdade de resistir do indivíduo, afetando sua integridade

psíquica, sua liberdade de escolha.‖ 291

Para Nilton João de Macedo Machado, a grave ameaça ―é a intimidação ou

anúncio de um mal futuro, seja à pessoa da vítima ou a alguém que lhe é próximo –

a ameaça grave afeta o intelecto, nela há ―sofrimento mental‖.292

Por fim, o crime de tortura praticado contra crianças e adolescentes ficará

consumado se, da violência ou da grave ameaça, sendo essas aplicadas como

forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, causar intenso sofrimento

físico ou mental, tornando-se atípica a conduta para a Lei n. 9.455/97, se não

estiverem presentes tais elementos.293

3.5 TORTURA E MAUS TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES –

DISTINÇÃO

A prática de atos violentos contra crianças e adolescentes, sob forma de

agressão física, sexual, psicológica, podem ser enquadradas como crime de maus

tratos previstos nos artigo 136, do Código Penal ou de tortura-castigo, inserida no

inciso II, do art. 1º, da Lei n. 9.455/97.

Ocorre que, muitas vezes, em virtude das dificuldades conceituais e

normativas contidas na Lei de Tortura, especialmente no respectivo inciso II, do art.

1º, têm levado os aplicadores, diante do caso concreto, a enquadrar apenas como

maus tratos, condutas estas que estariam tipificadas na lei de tortura.294

Dessa forma, em uma primeira análise, observa-se que tanto o crime de

tortura como os crimes de maus tratos assemelham-se em vários aspectos, ambos

tendo como objetividade jurídica a vida e a dignidade humana, e ambos

291

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2 / coordenação. 2. ed. São Paulo:Premier Máxima, 2008. p. 400. 292

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26. 293

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 26. 294

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 28.

86

enquadrados como crimes próprios, tendo como sujeito ativo a pessoa que exerce a

guarda, a vigilância ou autoridade sobre outra (sujeito passivo).295

Jarbas Bezerra menciona que a tortura: ―É o sofrimento ou a dor provocada

por maus-tratos físicos ou morais. É ato desumano, que atenta à dignidade humana.

É o sofrimento profundo, angústia, dor. Torturar a vítima é produzir-lhe um

sofrimento desnecessário. É tornar mais angustiante o sofrimento.‖296

Por sua vez, o crime de maus tratos, consoante os ensinamentos de Álvaro

Mayrink da Costa, consiste:

No abuso dos meios de coerção e disciplina, por parte de uma pessoa, em prejuízo de quem está sob sua autoridade, guarda ou vigilância, por motivos de educação, ensino tratamento ou custódia, ou na sujeição a trabalho excessivo ou inadequado, ou na privação de alimentação ou cuidados indispensáveis, colocando em perigo a vida ou a saúde do ofendido.297

Ocorre que, apesar das semelhanças, ao analisar os dispositivos, começam a

aparecer algumas diferenciações. A distinção entre tortura e maus tratos deve ser

analisada no resultado provocado na vítima, como também na intenção que o

agente teve, uma vez que se o sujeito ativo abusa do direito de corrigir para fins de

educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que

caracterizará a tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal,

objetivando fazer sofrer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.298

Sobre o assunto, leciona Gustavo Octaviano Diniz Junqueira que:

A princípio, a tortura afasta a ocorrência de maus tratos, pela especialidade. A distinção com crime de maus tratos se dá no aspecto objetivo e subjetivo. No objetivo, porque nos maus tratos não há imposição de grave sofrimento. No subjetivo, porque na tortura se exige dolo de dano, enquanto no crime de maus tratos o dolo é de perigo.299

295

ABADE, Rosa Maria. Tortura: distinção lógico-sistemática com o crime de maus tratos. Artigos e ensaios Prolegis. Publicado em 25/04/2007. Disponível em: http://www.prolegis.com.br/index.php?cont=12&id=155. Acessado em 02.10.2008. 296

BEZERRA, Jarbas. Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania. p. 26. 297

DA COSTA, Álvaro Mayrink. Direito penal: parte especial, 5ª. ed., ed. Forense, 2003. p. 337. 298

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 28. 299

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2. p. 422.

87

A respeito do elemento subjetivo da tortura, explica Victor Eduardo Rios

Gonçalves que:

A tortura tem como elemento subjetivo a intenção de expor a vítima a grave sofrimento, como forma de aplicação de castigo ou medida de caráter preventivo. Essa forma de tortura muito se assemelha ao crime de maus-tratos (art. 136 do CP). A diferença está no elemento

normativo da tortura, existente apenas nesse inciso II, que exige que a vítima sofra um intenso sofrimento físico ou mental.300

Nos crimes de maus tratos a ação realizada contra a criança ou adolescente

é expor a perigo, privando-o de cuidados necessários ou alimentos; sujeitando a

trabalho excessivo; abusando de meio coercitivo. Referente ao crime de tortura

previsto no art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, a ação se resume em submeter alguém

(sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso sofrimento físico ou mental com

emprego de violência ou grave ameaça, praticando o agente a conduta como forma

de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, enquanto que nos crimes de

maus tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para o fim de educação, ensino,

tratamento ou custódia.301

Ensina Ana Paula Nogueira Franco que:

Assim, haveria tortura quando o elemento fosse de dano à integridade física, e maus tratos quando a consciência e aceitação se dirigisse, no máximo, a gerar perigo. Outra diferença apontada pela doutrina e pela jurisprudência, embora nem sempre seja fácil a distinção, é que no crime de maus tratos o sofrimento é imposto com fins de educação, tratamento, ensino ou custódia. Na tortura, o fim é impor castigo pessoal, por ódio, vingança ou outro sentimento vil. Já se decidiu que, na tortura, a intenção é o padecimento da vítima, enquanto no crime de maus tratos o que se busca é a correção. É claro que, nesse caso, a intensidade do sofrimento causado é sempre levada em consideração.302

Damásio E. de Jesus traz idêntico entendimento:

Distinção entre maus-tratos e tortura (art. 1º e § 4º, II, da Lei n. 9.455, de 7.4.1997). A distinção se faz diante do elemento subjetivo. Se o fato é cometido pelo sujeito para fins de correção, censura ou reprimenda, havendo abuso, trata-se de crime de maus-tratos (crime

300

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 97. 301

ABADE, Rosa Maria. Tortura: distinção lógico-sistemática com o crime de maus tratos. Artigos e ensaios Prolegis. 302

FRANCO, Ana Paula Nogueira. Distinção entre Maus-Tratos e Tortura e o art. 1º, da Lei de Tortura, in Boletim do IBCCrim, n. 62/Jan-98, p.11.

88

comum). Não ocorrendo essa finalidade, realizado o fato somente para que a vítima sofra, cuida-se de tortura (delito especial).303

Dessa forma, para a configuração do crime de tortura, exige-se que a vítima

sofra intenso sofrimento físico ou mental, tratando-se de situações extremadas,

como por exemplo aplicar ferro em brasa na vítima. Complementando Fernando

Capez que:

O móvel propulsor desse crime é a vontade de fazer a vítima sofrer por sadismo, ódio. No delito de maus tratos, pelo contrário, ocorre apenas abuso nos meios de coerção e disciplina, de mais que o elemento subjetivo que o informa é o animus corrigendi ou disciplinandi e não o sadismo, o ódio, a vontade de ver a vítima sofrer desnecessariamente.304

Partindo dessa análise, Luiz Flávio Gomes crítica tal dispositivo afirmando

depender o sofrimento intenso de cada vítima, de cada caso concreto, asseverando

que ―o legislador, ao utilizar a expressão ‗intenso sofrimento físico‘, colocou na lei

um conceito poroso, de difícil compreensão. É um tipo aberto, que exige

complemento valorativo do juiz.‖305

Observa-se, pois, uma grande dificuldade em determinar o que é o sofrimento

intenso para que, assim, algumas condutas não mais sejam tipificadas em crimes de

maus tratos. Partindo da análise do referido dispositivo, Nilton João de Macedo

Machado afirma que:

Assim como no inciso I (do art. 1º da Lei n. 9.455/97), a conduta tipificada no inciso II divide-se em dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo consiste em ―submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça a intenso sofrimento físico ou mental‖. Nele observa-se o dolo genérico do agente de violentar ou ameaçar a vítima, que deve encontrar-se em seu poder, ou que esteja sob sua guarda ou autoridade. O elemento subjetivo se faz presente na finalidade do agente – ou seu dolo específico – de infligir tal intenso sofrimento físico ou mental como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Desta forma, é necessário que o sofrimento físico ou mental (de acordo com cada vítima) decorrente da violência ou grave ameaça seja praticado com vistas à punição ou prevenção de uma ação da vítima, como é o caso do pai que bate no filho para castigá-lo por uma má ação, ou até mesmo do carcereiro que priva o

303

JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 455-456. 304

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 4: legislação especial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 665. 305

GOMES, Luiz Flávio. Tortura (Lei 9.455/97). Estudos de Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: RT, 1999. p. 123.

89

detento sob sua guarda da refeição para manter a disciplina. A partir dessa análise podemos entender o ―intenso sofrimento‖, como aquele sofrimento excessivo, extremamente rude e que excede os limites do suportável tendo em vista o fim perseguido pelo agente e as condições pessoais de cada vítima.306

Complementa Gustavo Octaviano Diniz Junqueira que:

[..] andou mal o legislador em ―graduar‖ o sofrimento, o que nos parece bastante difícil de instrumentalizar. [..] Em síntese, deve ser reconhecida como tortura a imposição de sofrimento indevido, que não seja irrelevante ou leve, desde que tenha a função de servir como medida preventiva ou castigo. Aqui, em nosso entender, incide o pai ou o curador que impõe intenso sofrimento físico ou mental a quem tem sob guarda, de forma a castigá-lo por peraltice. Também o dirigente do asilo que castiga o idoso com exposição ao frio ou fome para castigá-lo por ter desobedecido determinada norma interna, ou por não mais conseguir controlar sua função excretora.307

Diante do exposto, é o entendimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça

de Santa Catarina que:

A distinção entre os crimes de maus tratos e tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no elemento volitivo do agente; assim, se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil. Caracteriza tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e reiterada, a maus tratos físicos e morais, causando-se intenso e angustiante sofrimento físico e mental (Relator Desembargador Nilton João de Macedo Machado).308

E ainda:

Ocorrem maus-tratos e não tortura quando a vontade do agente é apenas corrigir e disciplinar a vítima e não provocar intenso e angustiante sofrimento. Caracteriza a tortura, a vontade livre e consciente de castigar, visando o tormento, a dor, o padecimento para obter um fim imoral ou ilícito. Nos maus-tratos o fim não é o castigo, muito menos o padecimento ou qualquer objetivo imoral, é, apenas, a correção, a educação, praticados com excesso. Nos maus-tratos, o dolo é de perigo. Na tortura, é de dano. A pena fixada em grau de recurso é aquela a ser considerada para fins do cálculo

306

MACHADO, Nilton João de Macedo; Da tortura: aspectos conceituais e normativos. p. 27. 307

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2 / coordenação. 2. ed. São Paulo:Premier Máxima, 2008. p. 407. 308

BRASIL. Tribunal de Justiça Apelação Cível n. 1998.014413-2, de São José do Cedro, DJ de 18-5-1999. Disponível em: http://tjsc6.tj.sc.gov.br. Acesso em 02.10.2008.

90

prescricional, ainda que provido o apelo da acusação, quando não alterado o limite do artigo 109 do Código Penal. (Relator Desembargador Antonio Fernando do Amaral e Silva). 309

Demonstrado nos autos que o agente causou profundo sofrimento físico ou psíquico na vítima, na medida em que a espancava reiteradamente, não há como prevalecer a tese de que houve apenas excesso nos atos de correção e educação, restando inviável o pedido de desclassificação da tortura para o crime de maus-tratos. (Relator Juiz José Carlos Carstens Köhler) 310

Comete o crime de tortura o agente que, na qualidade de padrasto da vítima, de apenas três anos de idade, sem qualquer justificativa minimamente aceitável, submete-a, seguidamente, a agressões com o uso de pedaço de pau e à mão livre, causando-lhe intenso sofrimento físico e mental, assim demonstrado por consistente e unívoco conjunto probatório. (Relator Desembargador Newton Janke).311

Sobre o assunto já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que:

I. A figura do inc. II do art. 1.º, da Lei n.º 9.455/97 implica na existência de vontade livre e consciente do detentor da guarda, do poder ou da autoridade sobre a vítima de causar sofrimento de ordem física ou moral, como forma de castigo ou prevenção.

II. O tipo do art. 136, do Código Penal, por sua vez, se aperfeiçoa com a simples exposição a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, em razão de excesso nos meios de correção ou disciplina.

III. Enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima.

IV. Para a configuração da segunda figura do crime de tortura é indispensável a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação.

V. Evidenciado ter o Tribunal a quo desclassificado a conduta de tortura para a de maus tratos por entender pela inexistência provas capazes a conduzir a certeza do propósito de causar sofrimento físico ou moral à vítima, inviável a desconstituição da decisão pela via do recurso especial. (Relator Ministro Gilson Dipp).312

A questão dos maus tratos e da tortura deve ser resolvida observando-se a

vontade do agente; se o que o motivou foi o desejo de corrigir, embora o meio

309

BRASIL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 2005.020453-1, da Capital/Fórum Distrital do Estreito, DJ de 14.09.2005. Disponível em: http://tjsc6.tj.sc.gov.br. Acesso em 02.10.2008. 310

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91

empregado tenha sido desumano e cruel, o crime será de maus tratos. Se a conduta

não tem outro móvel senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro

sentimento vil, então pode ela será considerada tortura.313

Diante do exposto, o crime de tortura, tendo como vítima criança e

adolescente, ficará caracterizado se, da violência ou grave ameaça, aplicadas como

forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, causar intenso sofrimento

físico ou mental, cabendo ao juiz analisar o grau de intensidade frente ao caso

concreto.314

313

JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Legislação penal especial, volume 2 p. 422. 314

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. p. 97.

92

CONCLUSÃO

Ao término deste trabalho, considerando os principais aspectos abordados,

cabe sumariar as principais conclusões que se chegou acerca da temática

apresentada.

Inicialmente, ressalta-se que os problemas enfrentados pelas crianças e

adolescentes no Brasil são muitos e não se limitam a determinada raça, classe

social, religião ou qualquer outro fator. Mas dentre todos, existe um em especial que

vem sendo alvo de polêmica e indignação por toda a sociedade, a denominada

violência doméstica, exteriorizada como o abuso do poder disciplinar e coercitivo dos

pais ou responsáveis para com seus filhos.

Segundo as legislações vigentes, CRFB/88, ECA - Lei 8.069/90; Declaração

Universal dos Direito Humanos e a Convenção sobre os Direitos da Criança,

crianças e adolescentes são prioridades absolutas no que tange a salvaguarda de

seus direitos fundamentais, direitos esses pertencentes a todo ser humano,

positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, encontrando

repouso na CRFB/88 e em outros dispositivos constitucionais.

Cabe, assim, à família, à sociedade e ao Estado assegurar à criança e ao

adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Torna-se necessário defender o direito de que as crianças e adolescentes têm

de estar salvas de toda forma de violência para que tenham uma vida digna,

enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento e enquanto seres

humanos, sendo necessário que o ambiente familiar propicie condições saudáveis

para esse desenvolvimento, o que inclui estímulos positivos, equilíbrio, boa relação

familiar, vínculo afetivo, diálogo, entre outros.

Todavia, em que pese todos os esforços legislativos, no que se refere a

proteção integral de toda a criança e adolescente, o combate contra a violência

93

doméstica constitui-se em um grande desafio e a realidade é imensamente distante

daquela encontrada no plano normativo.

A todo o momento crianças e adolescentes são alvo de castigos imoderados

dentro do ambiente familiar, maus tratos habituais, privação de alimentos ou

cuidados, dentre outros atos que efetivamente colocam em perigo a vida ou a saúde

do menor, além daqueles que são aplicados como forma de castigo pessoal ou

medida de caráter preventivo, com o objetivo de causar intenso sofrimento físico ou

mental na criança ou no adolescente, caracterizando a denominada tortura.

Além de os instrumentos internacionais destinados a reprimir o uso da tortura,

ato desumano que atenta contra a dignidade da pessoa humana, a CRFB/88, além

de ter erigido como uma das garantias fundamentais do cidadão a não inflição da

tortura, de tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), também traz a

dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da CRFB/88 (art. 1º, III).

Assim, é inegavel, em tal fato, uma degradação da vítima de sua condição

humana, principalmente tratando-se de criança ou adolescente, de forma que esta

se transfigura num objeto, ficando à mercê do torturador, comportando-se como este

ordena e deseja.

Dessa forma, viu-se necessário discutir e analisar a violência intrafamiliar

contra crianças e adolescentes, visto que, muitas vezes, em virtude das dificuldades

conceituais e normativas, acabam por enquadrando em maus tratos condutas estas

que possuem tipicidades na lei de tortura.

No que tange à distinção entre tais crimes, conclui-se que no crime de maus

tratos a ação praticada contra a criança ou adolescente é expor ao perigo, privando-

o de cuidados necessários ou alimentos; sujeitando a trabalho excessivo; abusando

de meio coercitivo para o fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, enquanto

que nos crimes de tortura, previsto no art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, a ação se

resume em submeter alguém (sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso

sofrimento físico ou mental com emprego de violência ou grave ameaça, praticando

o agente a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

94

Ou seja, chega-se a conclusão de que, no crime de tortura, a vontade do

agente é de fazer a vítima sofrer física ou mentalmente por sadismo, ódio, enquanto

que nos crimes de maus tratos ocorre apenas abuso nos meios de coerção e

disciplina, sendo que o grau de intensidade sofrido pela vítima será analisado pelo

juiz frente ao caso concreto.

Porém, ainda que observadas tais peculiaridades, existe ainda uma grande

dificuldade em distinguir tais condutas, uma vez que, diante da violência doméstica

praticada contra a criança e o adolescente, não se torna fácil a comprovação da

intenção do agente bem como do sofrimento causado na vítima, frente ao silêncio

que de regra impera nas famílias.

Por fim, cabe aos órgãos de proteção previstos no ECA e também ao

Ministério Público, a tarefa de fiscalização, detectando, apontando e comprovando

tais condutas, exigindo desta realidade mobilizações imediatas e soluções efetivas

em prol da defesa daqueles que muitas vezes não podem fazê-lo por si mesmos.

95

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103

ANEXOS

104

Presidência da República

Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997.

Define os crimes de tortura e dá outras

providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e

eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de

violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de

aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de

segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não

previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-

las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

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§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de

reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis

anos.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,

adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;

III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o

cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido

em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local

sob jurisdição brasileira.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Brasília, 7 de abril de 1997; 176º da Independência e 109º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Nelson A. Jobim

Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 8.4.1997

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Apelação Criminal n. 2005.020453-1, da Capital/Fórum Distrital do Estreito.

Relator: Des. Amaral e Silva.

PROCESSUAL PENAL – RECURSO DA DEFESA – INTEMPESTIVIDADE – NÃO CONHECIMENTO

Não se conhece de recurso interposto a destempo.

PENAL E PROCESSUAL – CRIME DE MAUS-TRATOS CONTRA CRIANÇA – DESCARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE TORTURA – DOLO DE CORRIGIR E EDUCAR – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – RECURSO MINISTERIAL PARCIALMENTE PROVIDO – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA – RECONHECIMENTO DE OFÍCIO – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS

Ocorrem maus-tratos e não tortura quando a vontade do agente é apenas corrigir e disciplinar a vítima e não provocar intenso e angustiante sofrimento.

Caracteriza a tortura, a vontade livre e consciente de castigar, visando o tormento, a dor, o padecimento para obter um fim imoral ou ilícito.

Nos maus-tratos o fim não é o castigo, muito menos o padecimento ou qualquer objetivo imoral, é, apenas, a correção, a educação, praticados com excesso.

Nos maus-tratos, o dolo é de perigo. Na tortura, é de dano.

A pena fixada em grau de recurso é aquela a ser considerada para fins do cálculo prescricional, ainda que provido o apelo da acusação, quando não alterado o limite do artigo 109 do Código Penal.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2005.020453-1, da Comarca da Capital/Fórum Distrital do Estreito, em que são apelantes e apeladas Maysa Borges de Castro e a Justiça, por seu Promotor:

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ACORDAM, em Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, dar parcial provimento ao recurso ministerial e, de ofício, declarar extinta a punibilidade da acusada pela prescrição da pretensão punitiva, na modalidade retroativa.

Custas na forma da lei.

I – RELATÓRIO:

Maysa Borges de Castro restou condenada à pena de 06 (seis) meses e 20 (vinte) dias de detenção, em regime aberto, substituída pelo pagamento de 26 (vinte e seis) dias-multa, no valor unitário de 1/6 (um sexto) do salário mínimo vigente à época dos fatos, por infração ao art. 136, §3o, do Código Penal contra a criança L. A. S. J.. Foi absolvida da infração do art. 1o, II e §4o, da Lei n. 9.455/97, supostamente cometida contra a criança J. R. V., com base no art. 386, VI, do Código de Processo Penal.

Inconformadas, acusação e defesa apelaram.

O Representante Ministerial pleiteia a condenação pelo crime de tortura, por duas vezes, sustentando estar devidamente caracterizada prática contra duas crianças, havendo prova suficiente da materialidade e da autoria. Afirma que nesses delitos, a palavra da vítima é de suma importância para esclarecer os fatos, sendo suficiente para a condenação. Ao final, pugna pela cassação do registro de educadora e do alvará de funcionamento do Centro Educacional de propriedade da ré.

A acusada, por sua vez, também em resumo, pretende absolvição, argumentando com ausência de prova, consignando que jamais cometeu qualquer tortura, agressão ou castigo contra aluno de sua escola. Pugna pela aplicação do princípio in dubio pro reo, diante das contradições nos depoimentos testemunhais.

Ambos ofereceram contra-razões, tendo a d. Procuradoria-Geral de Justiça opinado pelo desprovimento do recurso da defesa e provimento parcial do apelo da Promotoria para condenar a acusada pelo crime de maus-tratos também contra a criança J. R. V..

Os recursos seguiram os trâmites legais.

II – VOTO:

1 – Primeiramente, o recurso da defesa não pode ser conhecido, porquanto intempestivo.

Observo dos autos que a ré Maysa Borges de Castro foi intimada da sentença à 18.08.2004 (fl. 238) e seu defensor, Dr. Gerson Pamplona, conforme procuração de fl. 75, à 16.09.2004 (fl. 240).

Considerando que o prazo recursal começou a fluir da última intimação, à 16.09.2004, exauriu-se dia 21.09.2004, nos termos do art. 593 do Código de Processo Penal. No entanto, o apelo somente foi protocolado à

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18.10.2004 (fl. 241v.), portanto a destempo.

É cediço que o prazo do art. 593 do CPP é peremptório, não comportando ampliação, nem redução, de modo que, vencido, não mais é possível recorrer.

Esclareço que a certidão de fl. 262 diz respeito à intimação do advogado assistente da acusação, Dr. Gilberto Porto, e não ao causídico da defesa.

―PROCESSUAL PENAL – APELAÇÃO – INTEMPESTIVIDADE – RECURSO NÃO CONHECIDO

―Não se conhece de recurso interposto a destempo‖ (Ap. Crim. n. 2005.020524-1, de Balneário Camboriú, que relatei).

―APELAÇÃO CRIMINAL — RECURSO PROTOCOLADO FORA DO QÜINQÜÍDIO LEGAL – RECURSO NÃO CONHECIDO‖ (Ap. Crim. n. 34.533, de São Carlos, rel. Des. Genésio Nolli).

2 – Quanto ao Recurso Ministerial, data venia, a tortura não restou caracterizada, estando correta a desclassificação para maus-tratos, eis que a intenção da acusada foi punir para corrigir a vítima e não de provocar-lhe intenso sofrimento.

Extrai-se da denúncia (fls. 02/03):

―Consta dos autos, que no dia 06 de julho de 1999, durante o período matutino, a denunciada Maysa Borges de Castro, encontrava-se no Centro Educacional Cia da Criança, onde era diretora, quando percebeu que a vítima Luiz Arthur Seixas Jacobus (que na época tinha dois anos de idade) havia defecado dentro da piscina. Ato contínuo, a denunciada trancou a vítima em um ―quartinho‖ das 11:00 às 17:00 horas, não permitindo a sua saída nem para que se alimentasse com as outras crianças.

―Consta, também, que na data de 28 de março de 2000, a denunciada Maysa Borges de Castro durante o seu período laboral no Centro Educacional Cia da Criança, utilizando-se de uma sandália, provocou diversas lesões na vítima Júlia da Rosa Vieira, em razão da mesma não querer dormir (Laudo Pericial fls. 07/08)‖

Consignou com costumeira acuidade o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Vilmar José Loef, a respeito da diferença entre maus-tratos e tortura:

―Inicialmente cumpre distinguir o delito de tortura, previsto na Lei 9.455/97, do delito de maus-tratos, previsto no art. 136 do Código Penal.

―No delito de maus-tratos a conduta típica consiste em expor a criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, a perigo de vida ou a saúde, quer privando-a da alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, ou ainda abusando de meios de correção ou disciplina.

―O delito de tortura, por sua vez, é ato criminoso de submeter a

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vítima a um grande e angustiante sofrimento provocado por maus-tratos físicos ou morais.

―Ana Paula Nogueira Franco discorre sobre a distinção entre os dois tipos penais, prelecionando que:

„“(...) ao analisar as ações nucleares dos tipos começam a surgir as diferenciações. No delito de maus tratos a ação é a exposição ao perigo através das modalidades: a) privando de cuidados necessários ou alimentos; b) sujeitando a trabalho excessivo; c) abusando de meio corretivo. Já no art, 1º, II, da Lei n. 9.455/97, a ação se resume em submeter alguém (sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso sofrimento físico ou mental com emprego de violência ou grave ameaça. Nota-se que o elemento subjetivo do tipo do art. 136 é o dolo de perigo, o resultado se dá com a exposição do sujeito passivo ao perigo de dano. No crime de tortura, o resultado se dá com o efetivo dano, ou seja, o intenso sofrimento físico ou mental provocado pela violência ou grave ameaça. Nesta última situação o agente age com dolo de dano. Outra questão importante de se ressaltar, é que o crime de maus-tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Diferentemente no crime de tortura, no qual o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo‟ (Distinção entre Maus-Tratos e Tortura e o art. 1º, da Lei de Tortura, Boletim do IBCrim, n. 62/Jan-98, p. 11, trecho retirado do acórdão da Apelação criminal n. 00.023932-1, de Santa Cecília. Relator: Des. Irineu João da Silva.).

―Nesse sentido, colaciona-se do nosso Egrégio Tribunal de Justiça:

‗―TORTURA E MAUS TRATOS – CRIANÇA – DISTINÇÃO. A distinção entre os crimes de maus tratos e de tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no elemento volitivo do agente; assim se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.

―‗Caracteriza tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e reiterada, a maus tratos físicos e morais, causando-lhe intenso e angustiante sofrimento físico e mental‘ (Apelação Criminal n. 98.014413-2, de São José do Cedro, rel. Des. Nilton Macedo Machado).

―No caso em tela, como bem sopesado pelo juiz sentenciante, cuida-se do delito de maus-tratos, uma vez que a acusada ultrapassou todos os limites de correção no castigo aplicado às crianças:

„“Não se mostra evidente à toda prova que a acusada agiu predisposta a causar intenso sofrimento na pequena vítima „para que assim aprendesse a lição‟. Mostra-se mais consentâneo que houve um extrapolamento, na medida em que os limites da censura foram criminosamente superados pela ré, expondo a criança ao perigo através do castigo que elegeu.

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„“Antes de correr o risco de condenar a acusada pelo excesso no crime de tortura (Lei 9.455/97), por serem ainda indefinidas as reais intenções que alavancaram a reprovável conduta, melhor que se desclassifique o crime para o delito de maus tratos (art.136 CP) com a causa de aumento prevista no § 3º.‟ (fl. 208)

―A materialidade do delito encontra respado no exame pericial (fl. 07/08), no boletim de ocorrência (fl. 09), bem como nos depoimentos testemunhais carreados nos autos.

―Com relação à criança L. A., ao contrário do que a defesa tenta argumentar, não restam dúvidas de que a ré ao perceber que a criança havia defecado na piscina, trancou-a por mais de cinco horas em uma sala de almoxarifado escura, sem ventilação e com diversos materiais de limpeza e escolares além de pregos e martelos.

―Com efeito, colhe-se dos depoimentos testemunhais:

„“Que com vista a criança L.A. a depoente tem conhecimento que o mesmo ficou trancado na sala de almoxarifado da escola descrita na denúncia, por ter feito necessidades fisiológicas dentro da piscina, em que permaneceu trancado na referida sala durante todo o período em que permaneceu no colégio, sendo que a própria refeição fora fornecida ao menor no próprio recinto em que estava de castigo (...)‟ (Ivanice Dalchiavon, fl. 110).

„“Que a depoente na época só trabalhava no período da tarde e que tomou conhecimento da que Luiz Arthur estava na referida sala na hora do recreio da tarde, no refeitório quando encontrou algumas funcionérias indignadas, que relataram o fato, (...) que não sabe precisar o horário em que o menino foi retirado da sala, mas sabe que antes da mãe chegar o mesmo foi para a sala da turma dele; que Luiz Arthur foi retirado do almoxarifado pouco antes da mãe chegar para que ela não visse que o filho teria permanecido naquela recinto‟ (Eliete, fl. 125).

„“No que tange à alegação de existência de contradições acerca do tempo em que o menino permaneceu trancado na sala de almoxarifado, impende esclarecer que ainda que ocorresse mencionada confusão, tal circunstância não afasta a gravidade dos fatos, ou seja, a criança efetivamente lá permaneceu por longo período, conforme se depreende de todos os depoimentos testemunhais. Se o menino ficou na sala por seis, cinco, quatro, três horas, é irrelevante, e dita discrepância não tem o condão de afastar a responsabilidade da acusada, muito menos de justificar a atitude covarde e desumana que Maysa teve em relação a uma criança de apenas dois anos de idade‖.

3 – Os maus-tratos praticados contra a infante J. R. V., caracterizados pela conduta da ré em bater com um chinelo na criança que não queria dormir, restaram comprovados.

A materialidade, conforme atestado pelo culto e operoso Juiz Sentenciante, Dr. Rodrigo Collaço, está evidenciada pelos exames periciais e fotos de fls. 61/65, que atestaram tratar-se de equimoses e lesões produzidas por unhas, afastando a possibilidade de ser uma simples alergia.

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Quanto à autoria, data venia, os depoimentos prestados pela criança e seus genitores são suficientes para comprovar a prática dos maus-tratos.

O pai da vítima declarou:

―Que no dia 28 de março de 2000 sua esposa foi buscar a filha no maternal do Centro Educacional Cia da Criança ocasião em que encontrou a menor com diversas manchas no rosto, tendo recebido como informações no estabelecimento comercial que referidas manchas poderiam ser alergia foi então que o declarante, que possui Saúde Bradesco, na mesma noite procurou por dois médicos alergista, sendo então que no dia seguinte resolveu levar sua filha ao IML a fim de submeter a uma perícia para se tirar as dúvidas se referidas manchas pelo corpo era alergia ou lesões, ficou então constatado que referidas manchas tratava-se de agressões; Que posteriormente questionaram J. o que teria ocorrido, a menor dizia que não queria dormir que teria pedido coisas e que a pessoa que teria levado para dormir acabou lhe fazendo „dodoi‟; Que a criança ainda comentou que quem teria lhe batido com o chinelo foi a Tia Iza‖ (fls. 116/117).

No mesmo sentido o relatório do Conselho Tutelar, fls. 14/15.

As demais testemunhas, embora não tenham presenciado as agressões, afirmaram que foi a acusada quem levou a criança que estava chorando para dormir. Confira-se fls. 110/111 e 138/139.

É cediço que em delitos, como o presente praticados sem testemunhas, as palavras da vítima, corroboradas por indícios e circunstâncias bastam para certeza moral. Reforça a convicção dos maus tratos, o fato de não ostentar a criança qualquer lesão quando chegou à escola, tendo a mãe percebido as equimoses quando voltou para casa.

Em casos análogos, como nos delitos cometidos sem a presença de testemunhas, a jurisprudência tem decidido:

―ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PALAVRA DA VÍTIMA

―Apesar da tenra idade, os relatos de criança, vítima de atentado violento ao pudor e submetida a intensas ameaças, devem ser levados em conta para embasar um juízo de procedência da representação, máxime se não evidenciada animosidade gratuita para com o agressor e diante da ausência de comprovação da negativa do adolescente infrator. Apelo provido‖ (TJRS – Ap. Cív. n. 70010906501 – rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis – j. 13.07.2005).

―PROVA. CRIME CONTRA OS COSTUMES. PALAVRA DA VÍTIMA. CRIANÇA. VALOR

―Como se tem decidido, nos crimes contra os costumes, cometidos às escondidas, a palavra da vítima assume especial relevo, pois, via de regra, é a única. O fato dela (vítima) ser uma criança não impede o reconhecimento do valor de seu depoimento. Se suas palavras se mostram consistentes, despidas de senões, servem elas como prova bastante para a condenação do agente. É o que

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ocorre no caso em tela, onde o seguro depoimento da ofendida em juízo informa sobre o ato sexual sofrido, afirmando que o apelante foi o seu autor. Condenação mantida pela prática de crime contra os costumes‖ (TJRS – Ap. Crim. n. 70011268737 – rel. Des. Sylvio Baptista Neto – j. 30.06.2005).

Passo à dosimetria.

Analisando as circunstâncias judicias do art. 59 do Código Penal, quanto à culpabilidade, verifico que a acusada era maior e mentalmente sã, tendo consciência do caráter ilícito do fato; não registra maus antecedentes; quanto à conduta social, a personalidade e os motivos, conforme bem analisado pelo digno Juiz (fls. 225/226) ―a análise da conduta social, especialmente ao comportamento no trabalho com as diversas denúncias que aportaram nos autos e ainda as declarações de suas ex-funcionárias, evidencia que a ré apresenta, no mínimo, um comportamento que não se afeiçoa com a profissão de educadora. Personalidade que, pelos relatos dos autos, se aproxima do crime perpetrado, na medida em que há referências que a ré mostra-se autoritária e intolerante. A motivação foi o castigo e a reprimenda à conduta involuntária e plenamente compreensível da criança‖. As circunstâncias demonstram a falta de cuidado da educadora com a criança que teve conseqüências relevantes, abalo físico e moral. Assim, fixo a pena-base em 05 (cinco) meses de detenção.

Ausentes agravantes, atenuantes ou causas gerais ou especiais de diminuição da pena.

Por se tratar de criança, a pena deve ser acrescida de 1/3 (um terço), de acordo com o §3o do art. 136 do CP, definindo a reprimenda em 06 (seis) meses e 20 (vinte) dias de detenção.

Considerando o concurso material entre os delitos, somo as reprimendas, totalizando 01 (um) ano, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de detenção.

Mantenho o regime aberto para cumprimento da pena (art. 33, §2o, c, do CP).

Preenchidos os requisitos do art. 44 do Código Penal, substituo a pena privativa de liberdade por multa, no valor de 52 (cinqüenta e dois) dias-multa, mantendo o valor de 1/6 (um sexto) do salário mínimo fixado na r. sentença, pela condizente situação econômica da ré.

4 – Está extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva.

É cediço que, ―no caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente‖ (art. 119 do CP), como nas hipóteses de concurso material.

Observo, ainda, que a pena fixada em grau de recurso, mesmo quando provido o apelo da acusação de forma que não altere o prazo prescricional, é aquela a ser considerada para fins de cálculo prescricional, nos termos do art. 110, §1o, do CPP.

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Sobre o assunto, leciona Guilherme de Souza Nucci:

―Prescrição intercorrente, subseqüente ou superveniente: é a prescrição da pretensão punitiva, com base na pena aplicada, com trânsito em julgado para a acusação ou desde que improvido seu recurso, que ocorre entre a sentença condenatória e o trânsito em julgado desta. Alguns a chamam de prescrição ‗retroativa intercorrente‘. Ex.: a pena aplicada de 2 anos por furto, da qual recorre apenas a defesa. Se a sentença não transitar em julgado em menos de 4 anos, prescreve. Entretanto, se o Ministério Público recorrer, mas tiver insucesso no seu apelo, o prazo para a prescrição intercorrente corre da mesma forma, tal como se não tivesse havido o recurso. (...) Acrescente-se, ainda, a possibilidade de haver recurso do Ministério Público, em relação à pena, conseguindo alteração do seu montante para mais, entretanto, sem provocar alteração do prazo prescricional. Nesse caso, considera-se presente do mesmo modo a ocorrência da prescrição intercorrente, pois equivale à não obtenção de sucesso no apelo‖ (Código Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 382/383) (grifei).

Acrescenta o autor:

―Prescrição retroativa: é a prescrição punitiva com base na pena aplicada, sem recurso de acusação, ou improvido este, levando-se em conta prazos anteriores à própria sentença. Trata-se do cálculo prescricional que se faz de frente para trás, ou seja, proferida a sentença condenatória, com trânsito em julgado, a pena torna-se concreta. A partir daí, o juiz deve verificar se o prazo prescricional não ocorreu entre a data do fato e a do recebimento da denúncia ou entre esta e a sentença condenatória‖ (op. cit., p. 383) (grifei).

Trago à colação, ensinamento de Júlio Fabbrini Mirabete:

―Conforme a lei, não ocorre a prescrição intercorrente ou retroativa se o recurso da acusação for provido. Tem prevalecido a tese de que esse obstáculo ao reconhecimento da prescrição só ocorre se, provido o recurso, a pena foi aumentada de modo que o prazo prescricional com base na pena aplicada tenha-se alterado com esse provimento, mas não quando, apesar do aumento da pena, permanece ela na mesma faixa estabelecida pelo art. 109. Assim, não obsta o reconhecimento da prescrição o recurso da acusação que visa somente o aumento da pena de multa, já que para esta espécie de sanção o prazo é sempre o mesmo. Certamente, não impedem o reconhecimento da prescrição intercorrente ou retroativa os recursos que não visam o aumento de pena privativa de liberdade. Assim, nem providos os recursos contra a susbtituição da pena privativa de liberdade por multa ou restritiva de direitos ou a concessão de sursis, nem os que pretendem o reconhecimento de outro crime, de concurso material, concurso formal ou crime continuado etc‖ (Código Penal Interpretado, 4a ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 727).

Neste sentido:

―TJSP: ‗Prescrição retroativa. Pretensão punitiva. Recurso do Ministério Público, visando agravar a situação do réu. Circunstância que não impede o reconhecimento da prescrição, tendo em vista o improvimento do recurso. Extinção da punibilidade decretada. Embargos recebidos. Diante da nova redação

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do artigo 110, §1o do Código Penal, não há como se negar que o simples recurso do Ministério Público visando agravar a situação do condenado não tem o condão de impedir o reconhecimento da prescrição retroativa, desde que improvido ou, ainda que provido, seja impotente para modificar a situação do condenado frente ao lapso prescricional‘ (JTJ 200/295)‖ (MIRABETE, op. cit., p. 727).

Dessa forma, passo ao cálculo da prescrição.

A acusada foi condenada, em cada um dos delitos do art. 136, §3o, do Código Penal, à pena de 06 (seis) meses e 20 (vinte) dias de reclusão.

O art. 109, VI, do Código Penal, dispõe que a pena inferior a 01 (um) ano prescreve em 02 (dois) anos.

No caso, a denúncia foi recebida à 12.07.2001 (fl. 02) e a sentença condenatória, com pena confirmada pelo segundo grau de jurisdição, foi publicada à 06.08.2004 (fl. 228v).

Transcorrido lapso temporal superior à 02 (dois) anos entre o recebimento da denúncia e a data do presente julgamento, resta configurada a prescrição da pretensão punitiva do Estado, na forma retroativa, nos termos do art. 107, IV, c/c os arts. 109, VI, 110, §1º e 117, I e IV, todos do Código Penal.

João José Leal ensina que a prescrição retroativa: ―é uma segunda espécie de prescrição da pretensão punitiva e tem também seu prazo regulado pela pena aplicada na decisão condenatória e não na pena em abstrato, cominada na lei repressiva. Portanto, é uma variante da prescrição superveniente. A diferença está no fato de que, na prescrição retroativa o prazo é contado para o passado, ou seja, da data em que foi prolatada a decisão condenatória (geralmente de 1ª instância, mas que também pode ser de 2ª instância), para a data em que foi recebida a denúncia ou queixa crime‖ (Direito Penal Geral, São Paulo: Atlas, 1998, p. 480).

5 – Não há como prover o pedido de cassação do registro de educadora e do alvará de funcionamento do Centro Educacional.

Tais requerimentos não estão contidos dentro dos efeitos da condenação criminal, previstos nos arts. 91 e 92 do Código de Processo Penal, devendo ser efetuados no âmbito administrativo perante os órgãos competentes.

6 – Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso ministerial e, de ofício, declaro extinta a punibilidade da acusada pela prescrição da pretensão punitiva, na modalidade retroativa.

III – DECISÃO:

Acompanharam o relator. Deram parcial provimento ao recurso ministerial e, de ofício, declararam extinta a punibilidade da acusada pela prescrição da pretensão punitiva, na modalidade retroativa.

Participaram do julgamento com votos vencedores, os Exmos. Srs. Des. Solon d‘Eça Neves e Jaime Luiz Vicari. Lavrou parecer, pela d.

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Procuradoria-Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Dr. Vilmar José Loef.

Florianópolis, 16 de agosto de 2005.

Amaral e Silva PRESIDENTE E RELATOR

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Apelação Criminal n. 2003.022881-0, de São José do Cedro. Relator: Juiz José Carlos Carstens Köhler.

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR EM CONTINUIDADE DELITIVA E EM CONCURSO MATERIAL COM CRIME DE TORTURA – PEDIDOS ABSOLUTÓRIOS AFASTADOS – MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE COMPROVADAS PELAS PALAVRAS DAS VÍTIMAS E POR FARTA PROVA TESTEMUNHAL – CONDENAÇÃO MANTIDA.

DESCLASSIFICAÇÃO DO ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR PARA A CONTRAVENÇÃO PENAL DE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR – INVIABILIDADE.

Configura-se o atentado violento ao pudor quando o agente não visa a mera importunação da vítima, mas sim a satisfação contínua de sua lascívia, pois o ato de passar os dedos pelas partes pudendas de uma criança e determinar que ela segure o seu pênis, com evidente propósito libidinoso, não pode, sem sombra de qualquer dúvida, ser considerada como mera contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.

DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO DE TORTURA PARA O DE MAUS-TRATOS – IMPOSSIBILIDADE.

Demonstrado nos autos que o agente causou profundo sofrimento físico ou psíquico na vítima, na medida em que a espancava reiteradamente, não há como prevalecer a tese de que houve apenas excesso nos atos de correção e educação, restando inviável o pedido de desclassificação da tortura para o crime de maus-tratos.

PLEITO MINISTERIAL DE RECONHECIMENTO DA CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO INSERTA NO ARTIGO 9º DA LEI DE CRIMES HEDIONDOS – VIOLÊNCIA PRESUMIDA – IMPOSSIBILIDADE – NÃO CARACTERIZAÇÃO DE LESÃO GRAVE OU MORTE.

Em que pesem as inúmeras discussões travadas acerca da possibilidade ou não de aplicação da causa de especial aumento prevista no artigo 9º da Lei de Crimes Hediondos na hipótese de violência presumida, o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão datada de 23 de junho do corrente ano, pacificou o entendimento de que somente incide a referida causa de especial aumento em se tratando de delitos sexuais cometidos com violência presumida se resultar lesão grave ou morte da vítima.

REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA DE TORTURA –

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FIXAÇÃO INTEGRALMENTE NO FECHADO –

IMPOSSIBILIDADE – INTELIGÊNCIA DO § 7º DO ARTIGO 1º

DA LEI N. 9.455/97 – ALTERAÇÃO OPERADA DE OFÍCIO.

RECURSOS DESPROVIDOS.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2003.022881-0, da Comarca de São José do Cedro, em que são apelantes e apelados o Ministério Público, por seu Promotor, e Olivo Campanha:

ACORDAM, em Primeira Câmara Criminal, por votação unânime, negar provimento a ambos os Recursos e, de ofício, modificar o regime de cumprimento inicial da pena de tortura.

Custas na forma da lei.

I - RELATÓRIO:

O Representante do Ministério Público da Comarca de São José do Cedro ofereceu denúncia contra Olivo Campanha, dando-o como incurso nas sanções do artigo 214 c/c artigo 224, alíneas ―a‖ e ―c‖, artigo 226, inciso II, do Código Penal, e artigo 9º, in fine, da Lei n. 8.072/90, na forma do artigo 71, caput, do CP, em concurso material (artigo 69 do CP) com o artigo 1º, inciso II, da Lei n. 9.455/97, pelos seguintes fatos descritos na proemial acusatória:

―Há aproximadamente oito anos o denunciado OLIVO CAMPANHA começou a conviver maritalmente com a senhora C!audete Dill, com quem teve três filhos, a vítima F. C. (6 anos), F. C. (4 anos) e F. C. (4 meses).

Ocorre, contudo, que não obstante a responsabilidade proveniente dessa união, especialmente face à condição de genitor do denunciado, OLIVO CAMPANHA passou há aproximadamente quatro meses a abusar sexualmente de sua filha F., que não é maior de quatorze anos de idade.

Assim é que o denunciado OLlVO, por diversas vezes, valendo-se de sua superioridade física, bem como do temor reverencial proveniente da autoridade que sobre F. exercia devido a qualidade de pai, praticou e constrangeu a mesma a praticar consigo atos libidinosos diversos da conjunção carnal, geralmente ao deitarem na mesma cama à noite para dormir.

Em inúmeras oportunidades o acusado OLIVO, dando mostras do descontrole biológico de sua libido, passou lascivamente o dedo na vagina da pequena vítima após desligar a luz do quarto, momento em que fazia carícias

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libidinosas como cócegas nos pés e nas costas, além de ‗beijinhos na barriga‘ e abraços ‗bem forte‘, constrangendo-a, ainda, a segurar em seu pênis.

Tais atos libidinosos, a serem melhor apurados no curso da instrução penal, geralmente são praticados quando o acusado ingere bebidas alcoólicas no período vespertino.

Não fosse isso, o acusado OLIVO, como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, constantemente agride e espanca seu filho F. C. (4 anos), submetendo-o a intenso sofrimento físico ou mental, inclusive causando-lhe as lesões corporais descritas às fls. 40 na última oportunidade em que bateu na criança.‖ (fls. 02/03).

Regularmente processado o feito, o Magistrado julgou procedente a denúncia (fls. 111/129), condenando Olivo Campanha ao cumprimento da pena privativa de liberdade fixada em 11 (onze) anos, 05 (cinco) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, integralmente em regime fechado, por infração ao disposto nos artigos 214 c/c 224, alíneas ―a‖ e ―c‖, e 226, inciso II, estes c/c o artigo 71 (por duas vezes), todos do Código Penal, e artigo 1º, inciso II e seu § 4º, inciso II, da Lei 9.455/97 c/c artigo 61, inciso II, alínea ―e‖, do CP, todos em concurso material – artigo 69 do Estatuto Repressivo.

Irresignado em parte com a prestação jurisidicional entregue, apelou o Órgão Ministerial (fls. 130/142), pleiteando unicamente o reconhecimento

da causa de especial aumento prevista no artigo 9o, da Lei n. 8.072/90.

Não se conformando igualmente com o decisum, apelou o Réu (fls. 152/172), sustentando que: a) o crime de atentado violento ao pudor foi inventado por sua companheira, por vingança em virtude de desavenças entre o casal; b) ainda que se admitisse que praticou alguma infração, esta seria a de importunação ofensiva ao pudor; c) se mantida a condenação pelo atentado violento ao pudor, o crime não seria hediondo posto que não resultou lesões graves ou morte e tampouco lesões leves, devendo ser modificado o regime de cumprimento de pena; d) embora, por vezes, tenha se excedido nos atos de educação e de correção, não se pode afirmar que praticou tortura contra seu filho.

Postulou, ao final, a absolvição pelos crimes a que restou condenado ou, alternativamente, a desclassificação do atentado violento ao pudor para a contravenção do artigo 61 da LCP – importunação ofensiva ao pudor – excluindo-se, em qualquer caso, a aplicação da Lei de Crimes Hediondos.

Com as contra-razões de ambas as partes (fls. 146/151 e 175/191), ascenderam os autos a este Grau de Jurisdição, tendo a douta Procuradoria Geral de Justiça, em parecer lavrado pelo doutor Vilmar José Loef às fls. 196/206, opinado pelo provimento tão-somente do Recurso interposto pelo Representante do Ministério Público.

II - VOTO:

Considerando que ambas as partes interpuseram Recurso de Apelação, analisar-se-á separadamente cada um dos Inconformismos.

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Do Recurso de Olivo Campanha

Pleiteia o Recorrente, em síntese, a absolvição dos crimes de atentado violento ao pudor e de tortura, sob o fundamento de que, em relação ao primeiro, o delito teria sido inventado por sua companheira e, em relação ao segundo, atos de educação e correção, ainda que excedidos, não caracterizariam o delito.

Sem razão, entrementes, o Apelante.

Para melhor compreensão acerca da matéria, será feito o esquadrinhamento de cada um dos delitos perpetrados pelo Sentenciado de forma apartada.

1.1. Do atentado violento ao pudor

Em que pesem os laboriosos argumentos esposados pela Defesa, no sentido de que o crime teria sido ―inventado‖ pela companheira do Recorrente, a qual teria desmentido as acusações anteriormente formuladas contra o Agente, as provas colacionadas ao caderno processual, consideradas de forma conjunta, denotam que o Apelante efetivamente praticou com sua própria filha de apenas 06 (seis) anos de idade atos libidinosos diversos da conjunção carnal, merecendo, pois, reprovação por seu nefasto comportamento.

Como é cediço, nos crimes contra os costumes, geralmente praticados às escondidas, a palavra da vítima assume especial importância, mormente quando corroborada por outros indícios, como no caso em tela, sendo tais elementos suficientes para embasar um decreto condenatório.

Nesta senda, mutatis mutandis:

―ESTUPRO – VIOLÊNCIA PRESUMIDA – NEGATIVA DE AUTORIA – PALAVRA DA VÍTIMA CORROBORADA PELOS DEMAIS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO EXISTENTES NO PROCESSO – VALIDADE – DELITO CARACTERIZADO – CONDENAÇÃO MANTIDA.

Em crime contra a liberdade sexual, que pela sua natureza, dificilmente é praticado à vista de outrem, a palavra da vítima tem fundamental importância, sendo suficiente a embasar a condenação quando, como na hipótese, é corroborada pelos demais elementos probatórios colhidos na instrução.‖

(Apelação Criminal n. 01.022863-7, Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. 07.05.2002).

Com efeito, apesar de contar com apenas 06 (seis) anos de idade, a pequena Vítima narrou com riqueza de detalhes e de forma coerente e harmônica, nas duas oportunidades em que foi ouvida, os atos libidinosos levados a efeito por seu progenitor:

―Que, a declarante dorme com seu pai, enquanto que a mãe dorme com o F. e a F. em outra cama, porém, no mesmo quarto; Que, já faz tempo que a declarante dorme com o pai; Que, o pai de noite na cama, depois que a mãe

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desliga luz, faz cócegas na declarante e lhe dá beijinhos na barriga e abraça bem forte; Que, o pai faz cócegas nas costas e nos pés; Que, o pai as vezes põe o dedo na vagina da declarante; Que, o pai pede que a declarante segura o pênis dele; Que, o pai segura a mão da declarante quando esta segura o pênis; Que, o pai então diz que a declarante ganha presente ser for bem querida; Que, o pai pede para que a declarante dá beijinhos na barriga dele; Que, o pai sempre dorme de roupa (calça e camisa); Que, a declarante geralmente dorme de roupa (calça, camiseta e casaco se for frio); Que, o pai as vezes toma cachaça durante a tarde; Que, na tarde em que o pai toma cachaça, geralmente na mesma noite seu pai lhe faz cócegas; Que, a declarante gosta de seu pai porque este lhe dá presentes (brincos); Que, o pai não lhe dá surra e nem lhe põe de castigo; Que, o pai surra o F. porque ele é teimoso e que o pai não quer dormir com o F.; Que, a declarante toma banho sozinha e se veste sozinha.‖ (destacou-se) (fl. 19).

E, em Juízo, confirmou:

―(...) durmo na mesma cama do pai desde antes de ir à escola, porque a mãe dorme na outra cama com o F. e a neném; o pai me bate na barriga e me puxa os cabelos, porque ele é brabo; o pai toma cachaça e quando está bêbado fica mais brabo; o pai não me dá beijos e nem abraços; é verdade que o pai anda passando a mão na minha vagina; compreendi o que é vagina porque o meu irmão tem um pintinho e eu sou diferente dele; o pai só passa a mão na minha vagina, nunca tendo colocado o dedo dentro dela; o pai tem um pinto igual ao do F., só que o do F. é pequeninho; é verdade que o pai pediu para eu passar a mão no pinto dele em duas oportunidades, e eu passei, sendo que nestas oportunidades o pinto do pai estava duro e grande; isso ocorreu durante à noite enquanto eu estava deitada na mesma cama que o pai; o pai não prometeu nada para eu passar a mão no pinto dele; tenho bastante medo do pai; o pai surra mais o F. do que eu, pois bate na cara dele e dá tapa na bunda; o F. apronta mais em casa do que eu; não sei se o pai pediu para o F. passar a mão no pinto dele; acho que a mãe não gosta do pai, porque ele bate nela; o pai bate com o facão na mãe, na bunda e no pescoço dela; o pai também já bateu no F. com o facão, na bunda, mas nunca bateu na neném; O pai já deu cachaça para eu tomar, assim como para o F., sendo que para o neném ele deu cerveja; a cerveja é de cor amarela parece água; na escola eu estou bem, já terminei um caderno e a professora vai dar um caderno novo; eu contei para o J., um amiguinho da escola, que o pai estava mechendo [sic] comigo, e foi o J., quando estava de castigo que contou para a professora que o pai mechia [sic] comigo; (...)‖ (grifou-se) (fls. 70/71).

Aliadas as declarações da Criança, inúmeras outras provas foram produzidas em desfavor do Recorrente, conforme se passa a demonstrar.

Adelise de Oliveira, assistente social da Prefeitura Municipal de Guarujá do Sul, esteve na casa da família do Acusado e lá pode conversar com F. que lhe confirmou os fatos narrados na denúncia:

―Que, na terça feira última, pela manhã, a depoente, juntamente com a Enfermeira Tanara e a conselheira tutelar Síria deslocaram-se até a Linha Baixo Arara, onde inicialmente foram na escola e falaram com a diretora, a qual relatou que havia desconfiança que a menor F. estava sendo molestada sexualmente por seu pai; Que, falaram com F., de 06 anos de idade, a qual

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inicialmente falou que tinha que dormir com o pai e que a mãe dormia com os outros irmãos; Que, a depoente perguntou se era obrigada a fazer algo anormal com seu pai, sendo que respondeu: Que tinha que dormir abraçada com o pai; Que, a menor falou que dormia de roupa; Que, para dormir com o pai, este dava presentes, ou seja, brincos; (...) Que, no dia de hoje, a depoente novamente conversou com a menor F., perguntando se o pai lhe apalpava quando então esta respondeu que sim; Que, gosta de seu pai porque dá presentes; Que, a menor falou que o seu pai colocava o dedo na vagina, de noite na cama; Que, a menor falou que tinha que pegar nele, deu a entender que a menor é obrigada a pegar no órgão genital de Olivo.‖ (sublinhou-se) (fl. 20).

Na fase judicial, acrescentou: “(...) ao conversar com a F. esta nos disse que dormia com o pai e que o pai a tocava, dando-lhe presentes tais como brincos; (...)” (fl. 73).

Igualmente ouvida, a conselheira tutelar da região, Elta Deon, que também leciona no colégio em que estuda a Ofendida, narrou que conversou com a aluna, asseverando:

―(...) Que, resolveram conversar com a aluna, quando a menina relatou que ganhava presentes de seu pai e que gostava dele; que, desconfiada, a depoente foi perguntando mais e apurou que a F. dorme com o pai; Que, a menor relatou que o pai mexe com ela, lhe apalpava as parte íntimas e que ela segura ele para poder dormir, inclusive disse que tinha que abraçar ele para dormir; (...) Que, diante da dúvida surgida, foi falado com a assistente social, quando então a menor F. forneceu mais detalhes quanto ao fato de ser molestada sexualmente pelo pai; (...)‖ (grifou-se) (fl. 22).

Arrolada pela denúncia, a professora e diretora da escola em que estuda a Ofendida, Leonilda Grimm, trouxe importantes esclarecimentos ao caso:

―(...) conversei com a menor que me contou que dormia com o pai, que o beijava e ele a beijava na barriga. Ao perguntá-la se o pai passava a mão no corpo, a F. meio que travou, não respondendo, quando então, eu passei a mão nas minhas pernas, nos seios e na região da vagina, ela espontaneamente afirmou que sim. Ao perguntar o que o pai colocava na vagina dela, de forma bem espontânea, ela respondeu: o dedo. Quando perguntou se isso doía, ela respondeu ‗não‘; ao perguntar se o pai dava presentes, ela respondeu que recebia chocolate, principalmente à noite, quando a mãe apagava a luz, além de brincos; disse também que o pai dava chocolate para ela passar a mão nele, afirmando após algumas indagações que ela passava a mão no ‗piu-piu‘ para ele dormir; era por isso, por ser boazinha e pegar no pênis do pai, que ele dava chocolates e brincos; (...)‖ (sublinhou-se) (fl. 75).

Colhe-se, ainda, o depoimento da mãe da Vítima prestado na Delegacia de Polícia, a qual relatou o comportamento do Acusado com a família e os atos por ele praticados:

―(...) Que, desta convivência, resultaram 03 filhos menores, tendo a F. 06 anos, o F. 04 e a F. com 04 meses de idade; Que, nenhum dos filhos

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foi batizado, por imposição de Olivo; Que, sua vida é um inferno; Que, o Olivo bate diretamente nos filhos; Que, Olivo bate de mão aberta; Que, ainda no dia de hoje o Olivo agrediu o filho F., o arranhando no rosto; Que, quando a depoente se impõe e tenta evitar que os filhos apanhem em demasia, o Olivo então agride e espanca a depoente; que, a depoente é jogada ao chão, quando então o Olivo lhe aperta o pescoço e diz: Pode me denunciar que eu não tenho medo de ninguém; Que, a depoente já perdeu a conta de quantas vezes foi espancada; Que, nunca denunciou seu marido em decorrência das ameaças que Olivo profere; Que, o primeiro filho que a depoente teve faleceu aos 05 meses de idade; Que, a criança faleceu em casa; Que, Olivo não quis que a criança fosse enterrada em cemitério; Que, a mãe da depoente é que interveio e conseguiu que a criança fosse enterrada em cemitério municipal; Que, a depoente sofre de ataques epilépticos; Que, nas noites em que a depoente é acometida de ataque, o Olivo faz sexo com a depoente em torno de (10) vezes por noite; Que, nos dias em que não sofre os ataques, o Olivo mantém relação sexual normal, ou seja, uma vez só por noite; Que, Olivo exige que as relações sexuais aconteçam na presença dos filhos; Que, a depoente dorme em uma cama bem velha, um colchão todo gasto; Que, com a depoente dorme com [sic] o filho Fernando e a neném; Que, Olivo dorme na cama boa, que tem colchão bom; Que, a filha F. é obrigada a dormir com o Olivo; Que, as vezes durante a noite o Olivo bate na criança F., quando então esta sai da cama de Olivo e vem deitar na cama da depoente; Que, a depoente já presenciou e viu que o Olivo faltou de respeito com as filhas, F. e a neném; Que, quando as crianças estão sem roupa, o Olivo pega nos testículos do filho, além de enfiar os dedos na vagina das meninas; Que, quando a neném está sem roupa, o Olivo passou a mão na genitália da neném; (destacou-se) (fl. 41).

Como se vê, o quadro probatório solidificado a partir dos depoimentos e declarações constantes nos autos incutem a certeza necessária à condenação e demonstram, sem sombra de quaisquer questionamentos, que o Recorrente, além de ser uma pessoa extremamente violenta e nada querida na comunidade onde vive, possui um comportamento no mínimo sombrio e desregrado na medida em que, apesar de ter uma companheira ao seu lado, abusa sexualmente de sua própria filha de apenas 06 (seis) anos de idade que, temerosa com o comportamento violento de seu progenitor, atende às suas ordens de segurar em seu órgão genital e de lhe abraçar, permitindo ainda que o mesmo acaricie as suas genitálias.

A par dessas constatações, não há como prevalecer a absolvição pleiteada pelo Apelante, sob o fundamento de que sua companheira teria desmentido a versão anteriormente apresentada e afirmado que ―inventou‖ o atentado violento ao pudor, pois as provas carreadas aos autos denotam que a declaração prestada por Claudete Dill em Juízo (fls. 77/78), em sentido diverso daquela apresentada na Delegacia de Polícia – por motivo que se desconhece – é isolada e não se encontra em consonância com o farto conjunto probatório, principalmente as palavras coerentes da Ofendida e os depoimentos da Assistente Social, da Conselheira Tutelar e da Diretora da Escola em que estuda a Menor.

Aliás, importante destacar que, inquirida pelo Promotor de Justiça, a mãe da Ofendida afirmou, e reafirmou, que não instruiu sua filha para inventar a história na Polícia e tampouco “comentar com as assistentes sociais que estava sendo abusada pelo pai” (fl. 78), o que revela, mais uma vez, que a pequena

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F. não foi induzida por qualquer pessoa a relatar os atos praticados por seu pai, chegando-se a conclusão que a Criança, pela forma com que narrou os fatos, realmente foi vítima dos crimes praticados por seu progenitor.

E, igualmente questionada em Juízo, a Ofendida asseverou: “a mãe não me pediu para contar sobre o fato de o pai mecher [sic] comigo; quando eu estive na delegacia a mãe não pediu para eu contar para o delegado que o pai mechia [sic] comigo e não foi a mãe que inventou isso; é verdade que o pai passava a mão ali” (fl. 71).

Por outro lado, inviável também o pedido de desclassificação do crime de atentado violento ao pudor para a contravenção de importunação ofensiva ao pudor, prevista no artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, que prescreve: “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.

Isso porque, em primeiro lugar, os fatos não foram praticados em lugar público ou acessível ao público, como descreve o tipo, mas sim na residência do casal, mais especificamente na cama em que dormiam a Vítima e o Acusado, no período noturno, que era o momento mais propício para os inescrupulosos atos do Recorrente.

Em segundo lugar, conforme se extraiu das declarações e depoimentos anteriormente transcritos, os reiterados atos libidinosos perpetrados pelo Apelante não visavam a mera importunação da Ofendida – segundo o Dicionário Aurélio, o verbo ―importunar‖ significa incomodar com súplicas repetidas, aborrecer com pedidos insistentes – mas sim a satisfação contínua de sua lascívia, chegando-se à ilação de que o ato de passar os dedos pelas partes pudendas de uma criança de apenas 06 anos de idade e determinar que ela segure o seu pênis, com evidente propósito libidinoso, não pode, sem sombra de qualquer dúvida, ser considerado como mera contravenção penal, devendo, sim, o agente responder pelo crime de atentado violento ao pudor.

Nesse sentido:

―‗Desclassificação para a contravenção do artigo 61 é descartada.

O propósito do apelante de praticar atos libidinosos impede a caracterização do fato contravencional. Importunar é incomodar por qualquer forma. Palavras ou contatos físicos forçados: os esbarrões ou apalpações.

Não é o caso dos autos, porque o apelante foi, desde logo, colocando a mão nas partes pudendas da pequena ofendida, com evidente intenção libidinosa‘ (TJSP – AC – Rel. Dante Busana – RJTJSP 135/418)‖

(in Alberto Silva Franco, “Código Penal e sua Interpretação

Jurisprudencial”, vol. 2, 7a ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 3128).

Das lições de Guilherme de Souza Nucci:

―(...) em se tratando de crime hediondo, sujeito a uma pena

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mínima de seis anos, a ser cumprida integralmente em regime fechado, não se pode dar uma interpretação muito aberta ao tipo do art. 214. Portanto, atos ofensivos ao pudor, como passar a mão nas pernas da vítima, devem ser consideradas como infração penal, e não um crime. A este é preciso reservar-se o ato realmente lascivo, que sirva para satisfazer a ânsia sexual do autor, que se vale da violência ou da grave ameaça. Além disso é preciso considerar o tempo utilizado para atingir os propósitos do agente.‖ (grifou-se)

(in “Código Penal Comentado”, 3a ed., Ed. Revista dos

Tribunais, 2002, p. 648).

Logo, provado que o Acusado visava, de forma continuada, a satisfação de sua lascívia, nada há que se modificar na sentença, nesse ponto.

1.2. Da tortura

Defende o Apelante que, embora, por vezes, tenha se excedido nos atos de educação e de correção, não se pode afirmar que praticou atos de tortura contra seu filho.

Sem razão mais uma vez o Recorrente.

Consoante dispõe o artigo 1º, inciso II, da Lei n. 9.455/97, constitui crime de tortura “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”

Como se observa, o elemento subjetivo do tipo penal consiste no propósito de expor a vítima a excessivo sofrimento, como forma de aplicação de castigo ou medida de caráter preventivo, o que se assemelha com o crime de maus-tratos previsto no artigo 136 do CP, que prescreve: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando dos meios de correção ou disciplina.”

Essa distinção é fundamental ao caso sob análise em se considerando que o Apelante, em suas razões recursais, sustenta que apenas se excedia nos atos de correção e de educação e de que não haveriam provas nos autos de que objetivava infligir o suplício e o tormento ao seu filho, pleiteando a desclassificação do crime de tortura para o de maus tratos.

A tortura, segundo a lição de Jarbas Bezerra, citando De Plácido e Silva, é “„o sofrimento ou a dor provocada por maus-tratos físicos ou morais. É ato desumano, que atenta á dignidade humana. É o sofrimento profundo, angústia, dor. Torturar a vítima é produzir-lhe um sofrimento desnecessário. É tornar mais angustiante o sofrimento‟ (in ―Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania‖, Lidador, 2001, p. 26).

Por sua vez, o delito de maus tratos, consoante os ensinamentos de Álvaro Mayrink da Costa, consiste “no abuso dos meios de

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coerção e disciplina, por parte de uma pessoa, em prejuízo de quem está sob sua autoridade, guarda ou vigilância, por motivos de educação, ensino tratamento ou custódia, ou na sujeição a trabalho excessivo ou inadequado, ou na privação de alimentação ou cuidados indispensáveis, colocando em perigo a vida ou a saúde do

ofendido.” (in ―Direito penal: parte especial‖, 5a ed., Ed. Forense, 2003, p. 337).

Mais adiante, conclui o autor:

―De pronto ganha estridência que, em uma sociedade democrática e moderna, os castigos corporais, como meio de corrigir, estão totalmente abolidos, inadmissíveis na escola, no trabalho, no hospital, no lar, nos quartéis, nas delegacias de polícia e nas penitenciárias (exposição a intempéries, redução de horas de descanso, vestuário deficiente, privação de cama, de roupa, de higiene, não prestação de assistência médica diante da enfermidade, trabalho escravo, ausência de alimentação devida ou obrigatoriedade de comer insetos ou repelentes, confinamento em quartos ou cubículos), uma vez que expõem a perigo concreto a vida ou a saúde da vítima. Os castigos físicos, ao final do milênio entram em desuso, como corretivos inócuos e violadores da dignidade da pessoa humana, mas espelhados no papel psicológico de seu autor.‖

(obra citada, p. 338)

Acerca da matéria, este Areópago Estadual, em acórdão da lavra do Juiz Nilton Macedo Machado, traz essenciais elucidações sobre a tormentosa diferença entre o crime de tortura e o delito de maus-tratos, senão confira-se:

―TORTURA E MAUS TRATOS — CRIANÇA — DISTINÇÃO.

A distinção entre os crimes de maus tratos e de tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no elemento volitivo do agente; assim se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.

Carateriza tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e reiterada, a maus tratos físicos e morais, causando-lhe intenso e angustiante sofrimento físico e mental.‖ (Apelação Criminal n. 98.014413-2, j. 18.05.99)

Do corpo do acórdão se extrai: “Assim, tem-se como certo que para distinguir se a conduta do agente caracteriza maus tratos ou tortura, deve-se perquirir não só no resultado produzido na vítima, como no elemento volitivo do agente, pois se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que caracterizará tortura quando age como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil.”

No caso em voga, ao contrário do que é defendido, as condutas perpetradas pelo Acusado ultrapassaram a barreira do mero abuso do direito de

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correção para fins de educação, caracterizador dos maus-tratos, enquadrando-se perfeitamente no preceito primário inserto no inciso II do artigo 1º da Lei n. 9.455/97, que trata de uma das modalidades de tortura.

Os depoimentos constantes no caderno processual demonstram que o Apelante é pessoa extremamente violenta e reiteradamente agride os membros de sua família, em especial o seu filho, utilizando-se para tanto de todas as formas imagináveis, chegando, inclusive, a bater-lhe com a face no chão até que o sangue jorrasse de suas narinas.

Dos depoimentos:

a) Ofendida:

―Que, o pai surra o F. porque ele é teimoso e que o pai não quer dormir com o F.‖ (fl. 19).

―(...) o pai surra mais o F. do que eu, pois bate na cara dele e dá tapa na bunda; o F. apronta mais do que eu; (...) acho que a mãe não gosta do pai, porque ele bate nela; o pai bate com o facão na mãe, na bunda e no pescoço dela; o pai também já bateu no Fernando com o facão, na bunda, (...)‖ (fl. 70).

b) Vítima:

―(...) em casa o pai é muito brabo comigo, porque ele me surra bastante; o pai me surra com cinta e vara, mas eu não apronto muito; (...) o pai também bate na mãe com um facão; o pai bate muito na mãe; (...) eu não quero que o pai volte para casa senão ele vai surrar eu de novo‖ (fl. 72).

c) Claudete Dill, mãe do Ofendido:

―(...) Que, o Olivo bate diretamente nos filhos; Que, Olivo bate de mão aberta; Que, ainda no dia de hoje o Olivo agrediu o filho F., o arranhando no rosto; Que, quando a depoente se impõe e tenta evitar que os filhos apanham em demasia, o Olivo então agride e espanca a depoente; que, a depoente é jogada ao chão, quando então o Olivo lhe aperta o pescoço e diz: Pode me denunciar que eu não tenho medo de ninguém; Que, a depoente já perdeu a conta de quantas vezes foi espancada; Que, nunca denunciou seu marido em decorrência das ameaças que Olivo profere; (...)‖ (fl. 41).

―(...) o acusado agride com freqüência o nosso filho F., de quatro anos, batendo com a cabeça do menino no chão a ponto de sair sangue do nariz da criança; o acusado também surra o F. com uma vara e com a cinta, porque F. incomoda mais o acusado é muito nervoso e é por isso que ele bate nas crianças (...)‖ (fl. 77).

d) Adelise de Oliveira:

―(...) Que, pediu para a Claudete se o Olivo era ruim, esta respondeu que sim; Que, Claudete relatou que o Olivo era violento, bate na cabeça das crianças, que ‗sai sangue‘ (fl. 20).

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e) Leonilda Grimm:

―(...) Que, quanto aos fatos ora em apuração, esta denúncia chegou ao conhecimento da depoente através de denúncia anônima; Que, a denúncia era no sentido de maus tratos aos familiares, cometidos por Olivo; Que, a denúncia era no sentido de que Olivo bate na esposa e nos filhos, chegando ao ponto de trancá-los no interior do quarto; (...)‖ (fl. 21).

f) Amandino Pedro Gass:

―(...) Que, de vez em quando o depoente escuta um som com volume exagerado vindo do interior da casa de Olivo; Que, constantemente escuta gritos dos filhos menores, que saem correndo de medo de Olivo Campanha; (...) Que, Olivo Campanha é um homem muito violento, ‗é metido‘, o povo tem medo do Olivo; Que, ainda no dia de hoje a Claudete Dill esteve na casa do depoente, queixando-se das atitudes arbitrárias de seu marido Olivo Campanha; Que, Claudete relatou que o Olivo novamente deu uns tombos nela;(...)‖ (fl. 43).

g) Ivanor Stempczynski:

―(...) Que, por diversas vezes o depoente viu o cidadão Olivo Campanha espancar a esposa e os filhos do mesmo; (...) Que o depoente um dia viu quando o cidadão Olivo tirou a Claudete do interior do banheiro, a qual estava vestida somente de calcinha; Que, Claudete implorou que o Olivo não lhe batesse na cabeça; Que, o depoente inúmeras vezes viu o cidadão Olivo surrar as crianças, ou seja, desferindo tapas, arranhões, puxar cabelos e outros castigos; (...)‖ (fl. 44)

h) Mário Pagno:

―(...) Que, inúmeras vezes o depoente ao ver os maus tratos, saía de casa, indo ao potreiro e ou lavoura, para não ver o que se passava naquela casa; Que, certa ocasião o Olivo correu atrás de Claudete, rasgou-lhe toda a roupa; Que, Claudete refugiou-se nas imediações da casa do depoente; Que, Olivo agarrou a Claudete e a arrastou para o interior da casa; Que, Claudete implorava para que Olivo só não lhe batesse na cabeça; Que, Olivo Campanha é ‗louco‘; Que, o pai de Olivo matou a própria esposa e uma sobrinha; Que, não denunciou as arbitrariedades cometidas por Olivo Campanha, em face de temer represálias, já que Olivo é um elemento muito perigoso; (...) Que, o depoente comentou diversas vezes com seus familiares, de que o Olivo é bem capaz de matar um de seus filhos em face das atrocidades, maus tratos que comete; (...) Que, Olivo proibiu que os filhos do mesmo visitassem os filhos do depoente; (...)‖ (fl. 45)

Como se pode ver, a motivação que levava o Recorrente a espancar seu filho F. era fazê-lo sofrer, de forma cruel e desumana, por motivo que se desconhece, não podendo prevalecer a tese de que apenas se excedia nos atos de educação e correção de seu filho, podendo-se concluir que a Vítima passou por intenso sofrimento físico e psicológico, a ponto de não mais querer que o pai retornasse ao convívio familiar.

A jurisprudência não discrepa quanto à configuração da tortura: “Configura o crime de tortura, e não o de maus-tratos, a conduta do pai que, ao

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desferir em torno de cinqüenta varadas no filho de sete anos, manifesta a intenção de provocar sofrimento, que não se compatibiliza com a idéia de educar” (Apelação Criminal n. 02.011284-0, Des. Sérgio Paladino, j. 13.08.02).

Sobre o assunto, traz-se novamente à colação os apontamentos de Jarbas Bezerra, que enumera as diversas modalidades de tortura, dentre elas a violência doméstica familiar:

―Além das modalidades de tortura praticadas pelos agentes estatais, não se pode aqui deixar de mencionar as torturas praticadas no âmbito sócio-familiar, onde quem detém o controle da situação, ou se encontra em situação mais privilegiada passa a exercer violência física ou psíquica através do medo.

A violência doméstica-familiar, em nosso entendimento é considerada uma modalidade de tortura, até porque é antecedida pelo medo das ameaças, gerando uma tortura psíquica na vítima, deixando-a totalmente aterrorizada. Este tipo de situação é muito bem descrita pelo norte americano Gavin de Becker, quando estabelece que a violência faz parte de todas as culturas porque faz parte dos seres humanos. O referido escritor, ao mencionar sobre a violência doméstica, que, como já dissemos, consideramos uma modalidade de tortura para manutenção do poder patriarcal, esclarece que os filhos e a mulher que apanha sente um enorme alívio quando tudo termina. Ela fica viciada nessa sensação. O agressor é a única pessoa que pode lhe dar momentos de paz, ao mostrar o seu melhor lado de vez em quando. Portanto, o agressor tem a chave do sentimento de bem-estar da pessoa agredida. O agressor proporciona as grandes euforias que suportam as grandes depressões, e quanto pior a situação, melhor ficará depois.‖ (sublinhou-se)

(obra citada, p. 28).

Diante de tal quadro, inviável a almejada desclassificação do delito de tortura para o de maus-tratos.

Do Recurso do Órgão Ministerial

Objetiva o Representante do Ministério Público, unicamente, o reconhecimento da causa de aumento inserta no artigo 9º, da Lei n. 8.072/90, sob o fundamento de que o crime de atentado violento ao pudor, tanto em sua forma simples quanto em sua forma qualificada, sujeita o agente, estando a vítima em quaisquer das circunstâncias descritas no artigo 224 do Código Penal, ao aumento previsto no supracitado artigo.

Em que pesem as inúmeras discussões travadas acerca da possibilidade ou não de aplicação da causa de especial aumento prevista no artigo 9º da Lei de Crimes Hediondos, na hipótese de violência presumida, o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão datada de 23 de junho do corrente ano, pacificou o entendimento de que somente incide a referida causa de especial aumento, em se tratando de delitos sexuais cometidos com violência presumida, se resultar lesão grave ou morte da vítima:

―RECURSO ESPECIAL CRIMINAL. ATENTADO VIOLENTO AO

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PUDOR. MENOR DE 14 ANOS. APLICAÇÃO DO ARTIGO 9º DA LEI 8.072/90. BIS IN IDEM. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONCURSO MATERIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. CRIMES DE ESPÉCIES DIFERENTES.

1. A afirmação da caracterização da causa de aumento, prevista no artigo 9º da Lei nº 8.072/90, em casos de violência presumida, implica a violação do princípio non bis in idem, com indevida atribuição de dupla função a um mesmo fato, qual seja, qualquer dos elencados no artigo 224 do Código Penal, em relação ao mesmo crime (Código Penal, artigos 213 ou 214).

2. É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a prática, nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, de estupro e atentado violento ao pudor, não configura hipótese de continuidade delitiva, mas, sim, de concurso material, dada a desarmonia de espécie dos crimes considerados.

3. Recurso conhecido e parcialmente provido.‖

(in Resp 277.437/SP, Min. Hamilton Carvalhido) (destacou-se).

Na mesma linha de raciocínio, é o posicionamento adotado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do eminente Ministro José Arnaldo Fonseca:

―RECURSO ESPECIAL. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. ACRÉSCIMO DE PENA DO ART. 9º, DA LEI Nº 8.072/90. IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE OU MORTE.

Assentada jurisprudência desta Corte no sentido de que, relativamente aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 do Código Penal, o aumento de pena previsto no art. 9º da Lei 8.072/90 somente tem incidência se do fato resultar lesão corporal grave ou morte (art. 223 e parágrafo único, do CP).

A presunção legal de violência (art. 224, CP), por ser elemento constitutivo do tipo penal, não se pode converter, também, em causa especial de aumento de pena, sob conseqüência de ocorrer odioso bis in idem.

Recurso conhecido mas desprovido.‖

(in Resp 313916/SP, j. 10.03.03) (grifou-se).

Não discrepante é o entendimento deste Areópago Estadual:

―REPRIMENDA – AUMENTO NA TERCEIRA ETAPA, POR FORÇA DO CONTIDO NO ART. 9º DA LEI 8.072/90 – LESÕES CORPORAIS GRAVES QUE NÃO DECORRERAM DA UTILIZAÇÃO DE VIOLÊNCIA (FÍSICA) PELO AGENTE PARA A CONSUMAÇÃO DO ATO SEXUAL – MENORIDADE DA OFENDIDA QUE JÁ INTEGRA O TIPO PENAL EM QUESTÃO – INAPLICABILIDADE DA CAUSA DE ESPECIAL ELEVAÇÃO NA ESPÉCIE – EXCLUSÃO PROCEDIDA – SANÇÃO MITIGADA.‖ (Apelação Criminal n.

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2003.001122-6, Des. Jorge Mussi, j. 10.06.03).

In casu, não tendo ocorrido lesão grave e tampouco a morte da

Ofendida, a aplicação da causa de aumento do artigo 9o, da Lei n. 8.072/90, em se

tratando de hipótese de violência ficta, constituiria verdadeiro bis in idem, vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.

3. Do regime de cumprimento da pena

Requer o Apelante, ainda, a modificação do regime de cumprimento da pena por entender que este não deveria ser fixado integralmente no fechado, em razão de o crime não ser hediondo pois não resultou lesões graves ou a morte da Vítima.

Como se vê, o Sentenciado restou condenado pelos crimes de atentado violento ao pudor e tortura, sendo que o primeiro, mesmo que praticado em sua forma simples, é considerado crime hediondo (in RT 682/344), consoante prevê

o artigo 1o, incisos VI, da Lei n. 8.072/90, razão pela qual é insuscetível de

determinados benefícios, entre os quais o da progressão de regime, segundo dispõe

o § 1o do art. 2

o da referida Lei, que determina que a pena deste crime será

cumprida integralmente em regime fechado.

Saliente-se, ainda, que após um período de relativa indefinição, os Tribunais Superiores firmaram o entendimento de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, mesmo em suas formas simples, sujeitam o agente que os pratica ao regime da referida lei, como demonstram as decisões do Supremo Tribunal Federal:

―HABEAS-CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIMES HEDIONDOS. MATÉRIA PACIFICADA PELO PLENO DO TRIBUNAL. Estupro e atentado violento ao pudor. Impetração fundada em precedente da Segunda Turma segundo o qual os referidos delitos, em sua forma simples, não são hediondos. Entendimento superado por decisão proferida pelo Pleno desta Corte. Habeas-corpus indeferido.‖

(in HC 81894/SP, Min. Maurício Corrêa, j. 20.08.2002.)

No mesmo sentido: HC 81410/SC, j. 19.02.2002; HC 81891/SP, j. 14.05.2002 e HC 81408/SC, j. 05.02.2002.

Esse entendimento tem sido adotado também no Superior Tribunal de Justiça:

―PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIMES HEDIONDOS.

Consoante a mais recente orientação jurisprudencial, constitui-se o crime de estupro, bem assim o de atentado violento ao pudor, ainda que perpetrado em sua forma simples, em crime hediondo, submetendo-se o condenado a tal delito ao cumprimento de pena sob o regime integralmente fechado, a teor do disposto na Lei 8.072/90.

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Ordem denegada.‖

(in HC 23638/SP, Min. Felix Fischer, j. 05/11/2002.)

Identicamente: RESP 446016/RS, j. 19.11.2002; HC 23258/AL, j. 15.10.2002; RESP 401947/MG, j. 07.11.2002 e HC 23167/SC, j. 15.10.2002.

A par disso, essa Colenda Câmara, em casos análogos ao presente, reiteradamente vem decidindo:

“RECURSO DE AGRAVO – ESTUPRO - TENTATIVA - PROGRESSÃO DE REGIME - INADMISSIBILIDADE – CRIME HEDIONDO – MATÉRIA PACIFICADA – RECURSO MINISTERIAL PROVIDO.

„O estupro e o atentado violento ao pudor, mesmo quando praticados na sua forma simples, configuram crime hediondo‟ (STF, HC 81.288/SC, decisão plenária, relator para o Acórdão Min. Carlos Velloso, julgado em 17.12.2001).

Em crime hediondo não cabe progressão de regime.”

(Recurso de Agravo n. 01.018957-7, de Curitibanos, Des. Souza Varella, j. em 11.06.02).

De outra banda, constata-se, de ofício, que o regime de cumprimento da pena do crime de tortura merece ser modificado.

Isso porque, segundo dispõe o § 7o do artigo 1º da Lei n.

9.455/97, o condenado por crime previsto nessa Lei iniciará o cumprimento da pena em regime fechado, salvo na hipótese do § 2º.

No caso, vislumbra-se que o Magistrado infligiu ao Apelante o cumprimento da pena integralmente no regime fechado, quando, na verdade, deveria ser fixado o inicialmente fechado, a par do que estabelece a norma supracitada, razão pela qual modifica-se a sentença, nesse ponto.

III - DECISÃO:

Diante do exposto, por unanimidade, nega-se provimento a ambos os Recursos e, de ofício, modifica-se o regime de cumprimento da pena de tortura para inicialmente no fechado.

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Des. Gaspar Rubik e lavrou parecer pela douta Procuradoria Geral da Justiça o Exmo. Sr. Dr. Vilmar José Loef.

Florianópolis, 18 de novembro de 2003.

Jorge Mussi PRESIDENTE COM VOTO

Carstens Köhler RELATOR

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Apelação criminal (Réu Preso) n. 2002.017138-2, de Lauro Müller. Relator: Des. Newton Janke.

Tortura – Agressões praticadas por padrasto – Autoria e materialidade comprovadas – Desclassificação para lesões corporais ou maus tratos. Inviabilidade.

Comete o crime de tortura o agente que, na qualidade de padrasto da vítima, de apenas três anos de idade, sem qualquer justificativa minimamente aceitável, submete-a, seguidamente, a agressões com o uso de pedaço de pau e à mão livre, causando-lhe intenso sofrimento físico e mental, assim demonstrado por consistente e unívoco conjunto probatório.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 02.017138-2, da Comarca de Lauro Müller, em que é apelante João Carlos da Silva, e apelada a Justiça, por seu Promotor:

ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento.

Custas legais.

Na comarca de Lauro Müller, João Carlos da Silva e Márcia Leriano da Silva foram denunciados por infração aos artigos 1º, inciso II, e 1º, § 2º, respectivamente, ambos da Lei de nº 9.455/77 em razão dos fatos assim narrados na exordial:

―No decorrer do mês de março do ano em curso (2002), em data e horários não perfeitamente esclarecidos, o denunciado João Carlos da Silva constrangeu a criança Antônio Donizete da Silva, que se encontrava sob sua autoridade, porquanto é seu enteado e detém tenros 3 (três) anos de idade, mediante violência empregada com o manejo de um pedaço de pau, a sofrimento físico e mental, como forma de aplicar castigo pessoal, pela singeleza de razão de que a criança se encontrava chorando e teria urinado nas calças, deixando, inclusive, marcas pelo corpo da criança.

―Não satisfeito e utilizando-se do mesmo modus operandi, já que armado do mesmo pedaço de pau, em data de 14 de março de 2002, o denunciado repetiu a agressão antes noticiada, desta feita, culminando por causar à indefesa e pequena vítima as lesões corporais descritas no auto de exame de corpo de delito

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de fl. 4 do Inquérito Policial – poli traumatismo com hematomas difusos pelo corpo, cabeça e membros, de moderada gravidade.

―No decorrer das investigações, constatou-se também que a mãe da vítima e amásia do denunciado João Carlos da Silva, a co-denunciada Márcia Regina Leriano, se omitia em face de tais condutas criminosas, mesmo tendo o dever legal de evitá-las e apurá-las, tendo, inclusive, em data de 18 de março último (2002), por volta das 09:45 horas, agredido fisicamente seu filho menor Antônio Donizete da Silva, enquanto este se encontrava no Hospital Municipal Henrique Lage, neste Município e Comarca, internado em face das lesões antes noticiadas, desferindo-lhe um forte soco nas costas e empurrando-o ao solo.

―Apurou-se, ainda, que, enquanto residiam na comarca de Criciúma (isto no decorrer do ano 2001), em outras oportunidades, os denunciados João Carlos da Silva e Márcia Regina Leriano haviam agredido fisicamente citado menor, fato que culminou, inclusive, com a intervenção do Conselho Tutelar daquela comarca no caso, que, preocupado com a gravidade do fato narrado, culminou na colocação de citado infante, em regime de abrigo, na Casa Lar local‖.

Concluída a instrução, ambos resultaram condenados; João Carlos à pena de 03 (três) anos, 01 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão, em regime inicialmente fechado, e Márcia à pena de 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de detenção, em regime inicialmente aberto.

Da sentença, apenas João Carlos foi pessoalmente intimado, tendo apresentado recurso, onde pugna pela absolvição, por falta de provas da autoria, e, alternativamente, a desclassificação da conduta para o crime de lesões corporais leves por ―ausência de animus necandi”.

Por força do despacho de fl. 246, foi determinada a intimação editalícia de Márcia, do teor da sentença condenatória, com a conseqüente cisão do processo com relação à sua pessoa.

Em contra-razões, requereu o representante do Ministério Público a manutenção do que foi decidido, no que foi secundado pela douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer do Dr. Luiz Fernando Sirydakis.

É o relatório.

A pretensão absolutória, ao argumento de insuficiência de provas da autoria, não encontra qualquer amparo no conjunto probatório coligido. O auto de exame de corpo de delito atesta a existência de ―politraumatismo com hematomas difusos pelo corpo, cabeça e membros, moderada gravidade‖, causados no menor por ―agressões a mão livre e instrumentos contundentes (pedaço de madeira)‖ (fl. 8).

A co-ré Márcia Regina Leriano, mãe da vítima, confirmou, em todas as oportunidades em que foi ouvida, que seu companheiro costumava maltratar o menor (fls. 10, 48/49 e 155). Em juízo, relatou: ―o co-réu João já agrediu o menor Antônio em outra oportunidade, quando ambos moravam em Criciúma e a interroganda não denunciou porque teve medo do companheiro; que João prometeu

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que nunca mais bateria no menino; que a interroganda já viu em outras oportunidades o co-réu João agredir seu filho menor, dando-lhe chineladas ou puxões de orelha, sempre à sua revelia; que sua filha Ana Paula contou-lhe que o co-réu João bateu no Antônio com um pedaço de pau e a interroganda acredita que seja a bengala que o João usa; que os filhos da interroganda foram tirados desta porque o co-réu João batia nas crianças; que a interroganda não sabe se o co-réu João pediu que alguém levasse as crianças no hospital no dia dos fatos; que o co-réu João já bateu em Antônio com chinelo, com vara, e já lhe deu tapas na cara; que a interroganda desconfia que João agrida o menor Antônio por ciúmes porque este seria parecido com o pai‖ (fl. 49).

João Carlos, muito embora negue tenha se utilizado de um pedaço de madeira para agredir o infante, admitiu ter lhe desferido ―chineladas‖, bem como puxado suas orelhas em algumas oportunidades. Sobre as lesões descritas no exame pericial, disse que foram causadas por um outro menor, residente na vizinhança (fls. 11/12 e 47); contudo, tal versão não encontra nenhuma ressonância probatória até porque, se verdadeira fosse, seria razoável imaginar que, ante a gravidade das lesões, procurasse os pais desse outro menor para esclarecer ou assunto ou então que, pelo menos, tivesse levado a vítima ao hospital.

As lesões foram constatadas pelo casal Maria dos Passos Fernandes Rodrigues e Dilmo Rodrigues, que foram à residência dos réus fazer um estudo bíblico. Maria dos Passos declarou que ―constatou que Antônio tinha um machucado na testa e estava com a mão e o braço bastante inchados; que o bracinho do menino estava enfaixado; que a ré disse que Ana Paula estava com febre; que a depoente perguntou para a ré se ela não a levaria ao hospital; que a ré disse que não tinha condições e que já tinha levado Paulinha ao Posto de Saúde; que sobre os machucados no menino, a ré não mencionou em levar ao hospital; que a depoente então se ofereceu para levar as crianças até o hospital; que a depoente, antes de levar as crianças ao hospital, deu um banho nas duas, que estavam um pouco sujas; que, ao dar banho no Antônio, a depoente constatou que o mesmo apresentava hematomas na orelha, nas costas e nas pernas, além do braço inchado; que a mão do Antônio também estava roxa; que Antônio também apresentava um machucado na testa, do tipo de um inchaço; que todas essas lesões eram visíveis; que as duas crianças estavam com febre; que, no hospital, o médico suspeitou de agressão física e chamou o Conselho Tutelar‖ (fl. 66).

Neste mesmo sentido foram as palavras de seu marido (fl. 67).

A testemunha Teresinha Deonir Velho Damaceno, esclareceu que ―João Carlos da Silva e Márcia Regina Leriano moraram próximo à residência da declarante, sendo que a declarante, de sua janela, conseguia avistar a residência de João e Márcia; que a declarante viu várias vezes João Carlos da Silva agredir os filhos com tapas e socos; que João Carlos chamava os filhos com o dedo indicador, dizendo: ‗vem cá, vem cá‘; que, quando a criança se aproximava, recebia um tapa muito forte; que Márcia assistia a tudo e nada fazia; que as crianças choravam bastante durante o dia; que, em certa ocasião, quando as crianças choravam, Márcia disse: ‗cala a boca, seus demônios, que eu pego uma faca e degolo vocês tudo‘‖ (fl. 36). Embora em juízo tenha sido um pouco evasiva, não negou ter presenciado os atos agressivos contra os menores (fl. 61).

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Finalmente, a prova restou complementada pelas palavras de Nádia Bez Batti da Silva, conselheira tutelar que, tendo notícia dos fatos, dirigiu-se à residência dos réus, trazendo Márcia para o Hospital onde se encontrava a vítima: ―... no caminho para o hospital, a ré informou à depoente que seu filho Antônio tinha sido vítima de maus tratos por parte do réu João Carlos, que batia em seus fi lhos menores tanto com chinelos quanto com a mão ou com um pedaço de pau; que a ré disse que João batia em seus filhos quando a mesma não estava em casa; que relatou às Conselheiras que nunca tinha sido agredida pelo réu, bem como não tinha medo do mesmo; que a ré relatou que quando percebia hematomas em seus filhos, conversava com o réu e este negava as agressões‖ (...) ―a depoente reafirma que os hematomas no menor Antônio eram visíveis, especialmente marcas de palmada e lesões na orelha‖ (fls. 62/63).

Por conseguinte, não medra a menor dúvida de que foi o apelante quem desferiu os golpes causadores das lesões descritas no auto de exame de corpo de delito de fl. 8.

Também razão não lhe assiste em pretender a desclassificação do crime para o de lesões corporais leves ao argumento de que não estava imbuído de animus necandi.

Inicialmente, cabe salientar que, se houvesse animus necandi, o delito seria de homicídio tentado e não de tortura. Neste, o objetivo do agente é impingir intenso sofrimento físico ou moral à vítima, através de violência ou grave ameaça, como ocorreu no caso em análise. O apelante, movido pelo sentimento de raiva, passou a agredir gratuitamente seu enteado, de apenas três anos de idade, utilizando-se de pedaço de madeira, causando-lhe, além das lesões físicas, também sério abalo moral, consoante o descrito no relatório de fl. 111, onde consta que ―Donizete, ao chegar na casa, possuía hematomas visíveis de maus tratos e marcas de unhas nas pernas. Tinha muito medo e tristeza no olhar‖. Também registra o mesmo documento que o menor apresentava dificuldades de comunicação e se encontrava em estado deplorável, tratado sem a mínima condição de higiene. Na residência da família, não existia qualquer demonstração de carinho e afeto para com as crianças, as quais sequer foram visitadas pelo réu enquanto recolhidas numa entidade assistencial local, onde passaram a desfrutar de tratamento adequado e acolhedor, mudando totalmente o comportamento‖.

Diante disso, verifica-se que a intenção do recorrente não se restringiu à lesionar a pequena vítima, mas fazê-la sofrer intensamente como castigo só porque estivesse chorando ou pelo fato de ter semelhança física com seu verdadeiro pai, situação esta com a qual o réu nunca se conformou, segundo o relato de sua companheira.

A propósito, orienta a jurisprudência desta Corte:

―Carateriza tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e reiterada, a maus tratos físicos e morais, causando-lhe intenso e angustiante sofrimento físico e mental‖ (AC nº 98.014413-2, de São José do Cedro, rel. Des. Nilton Macedo Machado, j. 18.05.99).

136

―Configura o crime de tortura, e não o de maus-tratos, a conduta do pai que, ao desferir em torno de cinqüenta varadas no filho de sete anos, manifesta a intenção de provocar sofrimento, que não se compatibiliza com a idéia de educar‖ (AC nº 02.011284-0, de Dionísio Cerqueira, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 13.08.02).

Ao distinguir os crimes de maus tratos e tortura, Ana Paula Nogueira Franco, ensina: ―ao analisar as ações nucleares dos tipos começam a surgir as diferenciações. No delito de maus tratos a ação é a exposição ao perigo através das modalidades: a) privando de cuidados necessários ou alimentos; b) sujeitando a trabalho excessivo; c) abusando de meio corretivo. Já no art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, a ação se resume em submeter alguém (sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso sofrimento físico ou mental com emprego de violência ou grave ameaça. Nota-se que o elemento subjetivo do tipo do art. 136 é o dolo de perigo, o resultado se dá com a exposição do sujeito passivo ao perigo de dano. No crime de tortura, o resultado se dá com o efetivo dano, ou seja, o intenso sofrimento físico ou mental provocado pela violência ou grave ameaça. Nesta última situação o agente age com dolo de dano. Outra questão importante de se ressaltar, é que no crime de maus-tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Diferentemente no crime de tortura, no qual o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo" (Distinção entre Maus Tratos e Tortura e o art. 1º, da Lei de Tortura, in Boletim do IBCCrim, n. 62/Jan-98, p. 11).

Inviável, assim, a desclassificação quer para lesões corporais, quer para o crime de maus tratos.

Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Irineu João da Silva, e lavrou o parecer, pela douta Procuradoria-Geral de Justiça, o Exmo. Sr. Dr. Luiz Fernando Sirydakis.

Florianópolis, 01 de outubro de 2002.

Sérgio Paladino PRESIDENTE COM VOTO

Newton Janke RELATOR