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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS PRISCILA MARA VENTURA AMORIM SILVA DEFICIÊNCIA VISUAL E SISTEMA ESTOMATOGNÁTICO: uma relação de importância para a Fonoaudiologia CAMPINAS 2018

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

    PRISCILA MARA VENTURA AMORIM SILVA

    DEFICIÊNCIA VISUAL E SISTEMA ESTOMATOGNÁTICO: uma relação de importância

    para a Fonoaudiologia

    CAMPINAS

    2018

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS

    PRISCILA MARA VENTURA AMORIM SILVA

    DEFICIÊNCIA VISUAL E SISTEMA ESTOMATOGNÁTICO: uma relação de importância

    para a Fonoaudiologia

    Tese apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da

    Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos

    exigidos para a obtenção do título de Doutora em Saúde da

    Criança e do Adolescente, na área de concentração em Saúde da

    Criança e Adolescente.

    ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª ANGELICA MARIA BICUDO

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA

    PRISCILA MARA VENTURA AMORIM SILVA E ORIENTADA PELA PROF.ª DR.ª ANGELICA

    MARIA BICUDO.

    CAMPINAS

    2018

  • BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

    PRISCILA MARA VENTURA AMORIM SILVA

    Orientador(a) PROF(A) DR(A) ANGELICA MARIA BICUDO

    MEMBROS:

    1. PROF(A). DR(A). ANGELICA MARIA BICUDO

    2. PROF(A). DR(A). ADRIANA TESSITORE

    3. PROF. DR. ANTONIO DE AZEVEDO BARROS FILHO

    4. PROF(A). DR(A). LILIAN CRISTINE RIBEIRO NASCIMENTO

    5. PROF(A). DR(A). SONIA MARIA SELLIN BORDIN

    Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de

    Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

    Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

    SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

    Data: 29 de novembro de 2018

  • Ao Eduardo, meu companheiro de VIDA.

    Às minhas filhas Manoela e Isadora, pelo amor e motivação, de lutar por dias melhores.

    Amo vocês!

    Aos meus pais, Anna Ventura e Rubens Amorim (In Memoriam), por valorizarem o

    conhecimento e me ensinarem que o comprometimento com o outro é o que dá sentido à

    vida.

  • AGRADECIMENTOS

    À Profa. Dra. Angelica Maria Bicudo, por me apoiar desde o nosso primeiro encontro e, pela

    generosa oportunidade.

    À Profa. Dra. Heloisa Gagheggi Ravanini Gardon Gagliardo, pelo convite para participar do

    programa infantil de Avaliação Funcional da Visão e, a partir daí, vislumbrar tantas

    possibilidades do trabalho fonoaudiológico na área da deficiência visual.

    À Profa. Dra. Adriana Tessitore, por toda a representatividade na área de Motricidade

    Orofacial e pela inspiração profissional.

    À Profa. Dra. Sonia Maria Sellin Bordin, por sua generosidade e oportunidade de discutir

    sobre temas importantes da área e, especialmente, por me ensinar muito sobre fonoaudiologia.

    Ao Prof, Dr. Antonio de Azevedo Barros Filho, pela leitura atenta e condução do trabalho.

    À Profa. Dra. Lilian Cristine Ribeiro do Nascimento, por tantas oportunidades na minha

    história profissional e, pela amizade tão bonita.

    À Profa. Dra Cecília Lima, Profa. Dra. Fernanda Bagarollo e Prof. Dr. Francisco Macedo,

    pelo carinho e contribuições importantes na construção da tese.

    Às Fonoaudiólogas Dra. Paula Nunes Toledo, DraTaísa Giannecchini e ao Dentista Dr Mauro

    Picchioni, profissionais extremamente generosos que, não mediram esforços e me ensinaram

    muito sobre motricidade orofacial.

    Às Fonoaudiólogas Sandra Gimenez, Cássia Sígolo, Márcia Árias, Paloma Rocha Navarro,

    Fernanda Freire e Gisele Renzo pela leitura atenta, critica e carinhosa da tese.

    Às fonoaudiólogas Marion Mory, Luiza Junqueira e Marieli Bussi, que me receberam com

    respeito e carinho no ambulatório de Paralisia Facial e me deram a oportunidade do

    aprendizado.

    Às ex-alunas e parceiras na fonoaudiologia, Maria Barrem, Camila Oliveira e Valquíria

    Miquelino, que me motivam e me encantam com o comprometimento com a profissão.

    Às minhas irmãs Plácida, Patrícia e Paula, pelas profissionais admiráveis e pessoas

    importantíssimas em minha vida.

    Aos meus compadres Izabel Cristina e Flávio Ribeiro e minha grande amiga Márcia Adriano,

    pelo grande apoio, incentivo e cuidado comigo e com minhas filhas, para que pudesse me

    dedicar à tese durante este longo processo.

    Aos funcionários do CEPRE, meu muito obrigada pelas palavras de incentivo e grandes

    manifestações de carinho.

    Ao Eduardo, pois sem o seu amor e sua generosidade, não teria concluído este trabalho.

    São tantas pessoas importantes que merecem meu agradecimento e reverencia, porém o

    espaço restringe todas as citações desejadas. Fica aqui, meu reconhecimento aos amigos,

    usuários e profissionais que participaram, ao meu lado, desta bonita caminhada.

  • RESUMO

    Com o objetivo de consolidar um referencial teórico para a análise e a discussão da relação

    entre a deficiência visual e o Sistema Estomatognático (funções de mastigação e deglutição)

    na prática clínica fonoaudiológica com sujeitos deficientes visuais, o ponto de partida foi

    buscar respostas para a questão: Quais as implicações da visão no sistema estomatognático? A

    tese fundamenta-se na explicitação da importância dos estudos e práticas da Fonoaudiologia

    para a concepção da visão como canal sensorial importante para as funções estomatognáticas

    (em especial nas funções de mastigação e deglutição), considerando que a visão afeta as

    funções desse sistema e repercute não somente no complexo orofacial, mas também na vida

    social do deficiente visual. A partir de uma pesquisa descritiva e exploratória, investiga-se a

    relação entre o sistema estomatognático e a deficiência visual (baixa visão e cegueira). Como

    instrumentos para coleta de dados foram utilizadas entrevistas com familiares e avaliações

    fonoaudiológicas referentes a 6 sujeitos participantes da pesquisa, com idades entre 11 e 16

    anos, provenientes do Centro de Estudos e pesquisas em Reabilitação "Prof. Dr. Gabriel de

    Oliveira Porto"/Unicamp (CEPRE) e da Sociedade Campineira de Atendimento ao Deficiente

    Visual (PRÓ-VISAO). Como resultados, identificam-se: (i) as alterações apresentadas pelos

    sujeitos participantes são compatíveis com as dos videntes, mas se mostram intensamente

    marcadas, caracterizando-se como complexas as análises de cada uma delas; (ii) a ausência e,

    por outro lado, a necessidade da construção teórico-clínica de um protocolo de avaliação do

    sistema estomatognático para deficientes visuais; (iii) a necessidade de valorizar todo o

    sistema sensorial na execução das funções do sistema estomatognático, bem como a relação

    deste com a expressão facial e a produção vocal; (iv) a discreta presença do campo da

    Fonoaudiologia nos estudos e procedimentos clínicos junto a essa população.

    Palavras-chave: Fonoaudiologia. Deficiência visual. Sistema estomatognático. Mastigação.

    Deglutição. Baixa visão. Cegueira.

  • ABSTRACT

    In order to consolidate a theoretical framework for the analysis and discussion of the

    relationship between visual impairment and the Stomatognathic System (chewing and

    swallowing functions) in the speech-language pathology practice with visually impaired

    subjects, the starting point was to find answers to the question: What are the implications of

    vision in the stomatognathic system? The thesis is based on the explanation of the importance

    of the studies and practices of Speech Therapy for the conception of vision as an important

    sensorial channel for the stomatognathic functions (especially in the functions of chewing and

    swallowing), considering that vision affects the functions of this system and has repercussions

    not only in the orofacial complex, but also in the social life of the visually impaired

    individual. From a descriptive and exploratory study, the relationship between the

    stomatognathic system and visual impairment (low vision and blindness) is investigated.

    Interviews with family members and speech-language evaluations were used as data

    collection instruments, referring to 6 subjects, aged 11 to 16 years, from the Center for

    Studies and Research in Rehabilitation. "Prof. Dr. Gabriel de Oliveira Porto"/ Unicamp

    (CEPRE) and the Campineira Society for Assistance to the Visually Impaired (PRÓ-VISAO).

    The following results were found: (i) the alterations presented by the participating subjects are

    compatible with those of the seers, but they are intensely marked, characterizing the analyzes

    of each one of them as complex; (ii) the lack of and, on the other hand, the need for the

    theoretical-clinical construction of a protocol for the evaluation of the stomatognathic system

    for the visually impaired; (iii) the need to value the entire sensory system in the performance

    of the stomatognathic system functions, as well as its relation with facial expression and vocal

    production; (iv) the slight presence of the Speech-Language Pathology field in clinical studies

    and procedures in this population.

    Keywords: Speech-Language Pathology. Visual Impairment. Stomatognathic system.

    Chewing. Swallowing. Low vision. Blindness.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Lobos cerebrais................................................................................................................................... 21 Figura 2. Projeção de imagens dentro do olho .................................................................................................... 23 Figura 3. Demonstração de Teller ...................................................................................................................... 25 Figura 4. Sistema somestesico da pele ............................................................................................................... 28 Figura 5. Localização dos receptores cutâneos e tipos de respostas .................................................................... 29 Figura 6. Homúnculo de Penfield ...................................................................................................................... 30 Figura 7. Homúnculo cortical ............................................................................................................................ 30 Figura 8. Sistema sensorial ................................................................................................................................ 34 Figura 9. Olfato ................................................................................................................................................. 35 Figura 10. Esquema de Brodie modificado por Castillo Morales ........................................................................ 45 Figura 11. Músculos da cabeça .......................................................................................................................... 46 Figura 12. Mastigação ....................................................................................................................................... 55 Figura 13. Trato vocal ....................................................................................................................................... 60

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1.Critério classificatório mundial revisto e aprovado pela Organização Mundial de Saúde, para as

    Categorias de Deficiência Visual ....................................................................................................... 41 Quadro 2. Quadro fonético ................................................................................................................................ 61

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características de mastigação do alimento sólido:

    maçã com casca ................................................................................................................................ 79 Tabela 2. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características da deglutição do alimento sólido:

    maçã com casca ................................................................................................................................ 79 Tabela 3. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características de mastigação do alimento sólido:

    pão francês ........................................................................................................................................ 80 Tabela 4. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características da deglutição do alimento sólido:

    pão francês ........................................................................................................................................ 80 Tabela 5. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características da deglutição do líquido

    engrossado: iogurte ........................................................................................................................... 81 Tabela 6. Distribuição numérica dos sujeitos de acordo com as características da deglutição do líquido: água .. 81 Tabela 7. Distribuição numérica do uso da água de acordo com a consistência sólida ........................................ 82

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ATM Articulações Temporo Mandibulares

    AVDs Atividades de Vida Diária

    AVE Acidente Vascular Encefálico

    BBO Bibliografia Brasileira de Odontologia

    BVS Biblioteca Virtual em Saúde

    CEPRE Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Dr. Gabriel de Oliveira Porto

    CFFa Conselho Federal de Fonoaudiologia

    CID-10 Classificação Internacional de Doenças

    COFFITO Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional

    DeCS Descritores em Ciências da Saúde

    ERIC Education Resources Information Center

    IAPB Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    ICO International Council of Ophthalmology

    LILACS Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde

    MEDLINE Medical Literature Analysis and Retrieval System Online

    PA Processamento Auditivo

    RVO Reflexo Vestíbulo-Ocular

    SciELO Scientific Electronic Library Online

    SE

    SPL

    Sistema Estomatognático

    Sem Percepção de Luz

    SNC Sistema Nervoso Central

    TCC Trabalho de Conclusão de Curso

    TRV Teste do Reflexo Vermelho

    v-HIT Video head impulse

  • SUMÁRIO

    Introdução ............................................................................................................................................ 14

    Objetivos .............................................................................................................................................. 18

    Revisão de literatura ............................................................................................................................. 19

    Revisão de literatura 1: A visão e outros sistemas perceptuais ............................................................. 20

    Revisão de literatura 2: O sistema estomatognático e suas relações com a visão ................................ 43

    Método ................................................................................................................................................. 64

    Discussão ............................................................................................................................................. 83

    Considerações Finais ............................................................................................................................ 97

    Referências ........................................................................................................................................... 98

    Apêndice A - Levantamento bibliográfico ......................................................................................... 107

    Apêndice B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .............................................................. 115

    Anexo 1 - Exame Miofuncional Orofacial - MGBR........................................................................... 118

  • 14

    Introdução

    A visão é um importante sistema perceptual balizador para a aquisição de

    conhecimento e desenvolvimento global do ser humano. Contudo, ao longo do

    desenvolvimento infantil não é apenas a visão que organiza na criança sua percepção do

    mundo externo, sua cognição e memória; outras diferentes instâncias sensoriais envolvendo o

    tato, a audição, o olfato e a gustação contribuem para isso, em menor ou maior abrangência, a

    depender da vivência em questão.

    A relação entre a visão e o desenvolvimento infantil tem nos primeiros dezoito

    meses de vida o período evolutivo de maior importância, que se amplia até por volta da idade

    de seis anos e amadurece durante a primeira década de vida. Esse processo, no entanto,

    influencia e recebe influência da relação entre a maturidade neurológica, o desenvolvimento

    das funções visuais, a idade e as experiências de vida1,2,3

    .

    Assim, desde muito cedo, a visão intervém no desenvolvimento de diferentes

    sistemas orgânicos. Um índice de maturação do sistema visual presente já em torno dos 6

    meses de vida, quando a criança consegue fazer a fixação visual do objeto combinada com a

    rotação de cabeça4, influenciará significativamente no desenvolvimento mandibular, na

    lateralização mandibular e na função mastigatória, sendo esta a função aprendida mais

    refinada exercida pelo Sistema Estomatognático (SE)5.

    Por SE entende-se um conjunto de estruturas orais que desenvolvem as seguintes

    funções: sucção, deglutição, mastigação, respiração e fala. A característica maior desse

    sistema é a participação da mandíbula nas funções que desempenha e que acaba por incidir na

    região cervical, na região do cíngulo superior (cintura escapular) e, indiretamente, na região

    do cíngulo inferior (cintura pélvica) em um ciclo de interinfluência6,7,8

    .

    Mesmo não sendo reconhecida como uma função estomatognática, a expressão

    facial, aspecto supralinguístico importante principalmente para a comunicação dos deficientes

    visuais, será considerada no presente estudo, devido ao fato de recrutar o conjunto da

    musculatura oral também envolvido no SE.

    Na criança, a realização progressiva dos movimentos de tronco e cabeça serão

    determinantes para o fortalecimento do tônus muscular associado ao processo de deglutição,

    de mastigação e de movimentação do pescoço, repercutindo na própria postura corporal,

    fechando assim um ciclo completo muscular e postural que se mantém por toda a vida. Em

    função dessa refinada e complexa engrenagem, possíveis alterações repercutirão em

    adaptações ou compensações mandibulares que poderão, assim, interferir na postura adequada

  • 15

    do corpo. Os deficientes visuais estão mais sujeitos a isso, uma vez que os movimentos de

    cabeça podem, com maior frequência, acontecer em bloco, sem dissociação entre os cíngulos

    superior e inferior9.

    Chama-se a atenção para a importância do sistema visual para o controle postural

    relacionado mais especificamente com a estabilização da oscilação corporal, que aumenta

    mais que o dobro quando a informação visual não está disponível e, nesse caso, quanto menor

    a precisão da imagem na retina, maior a oscilação corporal. Assim, o sistema visual atua

    como uma fonte de informação sensorial que interfere positivamente no controle postural10

    e,

    por consequência, nas funções estomatognáticas8,11

    . A opção pela utilização do termo funções

    estomatognáticas, foi motivada pela maior abrangência nos sistemas de busca, apesar do

    termo funções orofaciais ser o utilizado na fonoaudiologia, especialmente na área de

    motricidade orofacial.

    Na literatura da área de deficiência visual encontram-se estudos que indiciam a

    prevalência de alterações posturais e de tonicidade muscular global, devido a fatores como: (i)

    falta de habilidade em conter a cabeça na posição normal; (ii) força insuficiente nas regiões

    cervical e abdominal; (iii) falta de rotação do tronco e bacia. Na busca pela compensação

    dessas alterações, a criança deficiente visual faz uso de posturas fixas como recursos para

    manter-se em uma posição ou movimentar-se9,12,13,14

    .

    O uso de padrões posturais anormais e de movimentos compensatórios produz,

    então, uma série de transtornos como, por exemplo, a incapacidade de manter a cabeça

    erguida sem elevação de ombros, o que limita o giro livre da cabeça para as laterais,

    promovendo excessiva rigidez postural e restringindo, consequentemente, a movimentação do

    corpo como um todo12,13,14

    .

    A proposta inicial desta tese teve origem em uma demanda de profissionais de

    outras áreas (pedagogos e terapeutas ocupacionais); profissionais que atuavam com

    deficientes visuais e se questionavam a respeito do modo como esses se alimentavam durante

    as refeições coletivas e, mais especificamente, como mastigavam os alimentos. A queixa

    desses profissionais retratava um constante desconforto, revelando tanto a inabilidade em

    lidar com a situação, quanto a dificuldade em avaliar e identificar os processos nela

    envolvidos.

    O projeto inicial desta pesquisa foi investigar a relação entre a adequação postural

    e o desempenho das funções estomatognáticas de mastigação e de deglutição em crianças e

    adolescentes com deficiência visual congênita (baixa visão ou cegueira), sem

    comprometimentos associados. Essa investigação, entretanto, enfrentou um importante

  • 16

    impedimento, uma vez que o levantamento bibliográfico (Apêndice A) realizado na literatura

    da área da Fonoaudiologia e brevemente descriminado a seguir, não ofereceu subsídio teórico

    algum para a realização de tal proposta.

    Para o levantamento bibliográfico foram feitas buscas nas bases de dados

    nacionais e internacionais, sem limitação cronológica, com palavras-chave escolhidas por

    meio dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), nos idiomas português brasileiro, inglês

    e espanhol, nas bases: PubMed; Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da

    Saúde (LILACS); Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE);

    Cochrane Library; Education Resources Information Center (ERIC); PsycINFO; Scientific

    Electronic Library Online (SciELO); Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações

    (BDTD); IngentaConnect; Biblioteca Virtual em Saúde (BVS); e Bibliografia Brasileira de

    Odontologia (BBO); e nos arquivos eletrônicos das seguintes revistas: Distúrbios da

    Comunicação; Revista CEFAC; Pró-Fono, Revista de Atualização Científica; Jornal da

    Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia; CoDAS; Revista da Sociedade Brasileira de

    Fonoaudiologia; Audiology – Communication Research.

    Como estratégias de busca foram utilizados termos e linguagens pós-coordenadas,

    combinando mais de um assunto no momento da busca da informação e configurando o

    seguinte universo de pesquisa: deficiência visual, baixa visão, cego, sistema estomatognático,

    fonoaudiologia, mastigação, deglutição, funções estomatognáticas, motricidade orofacial,

    linguagem e intervenção fonoaudiológica.

    Como resultado geral foram recuperados 56 artigos, 01 tese de doutorado, 04

    dissertações de mestrado, 01 capítulo de livro, 02 trabalhos de conclusão de curso (TCC),

    totalizando 64 recuperações, mas nenhum desses estudos se direcionava para a relação entre o

    SE (funções de mastigação e deglutição) e a intervenção fonoaudiológica com crianças

    deficientes visuais congênitos (baixa visão e cegueira).

    Na realização desse levantamento, contudo, foram descobertos estudos voltados

    para a intervenção fonoaudiológica com crianças e adolescentes deficientes visuais, surdos e

    surdocegos dirigidos à aquisição de linguagem falada e escrita; distúrbios de aprendizagem;

    deficiência múltipla; surdez; fala e linguagem; gerontologia e o conhecimento do trabalho

    fonoaudiológico por outros profissionais. Assim, os dados encontrados também indiciam que

    o campo da Fonoaudiologia mantém um trabalho restrito em relação ao deficiente visual.

    Então, como decorrência da análise dos resultados obtidos no levantamento bibliográfico

    realizado, conclui-se que o tratamento desse tema se revela uma importante contribuição para

    novas frentes da atuação fonoaudiológica junto a sujeitos com deficiência visual.

  • 17

    Em razão do incipiente subsídio teórico e prático da área clínica fonoaudiológica

    relacionando o SE (ou as funções estomatognáticas) e deficientes visuais, foi desenvolvida,

    então, uma nova proposta de estudo. A partir da demanda inicial daqueles profissionais

    delimita-se a investigação para a análise e a discussão do desempenho das funções de

    mastigação e de deglutição, em sujeitos portadores de deficiência visual congênita (baixa

    visão e cegueira). A opção pelas funções de mastigação e de deglutição, em detrimento de

    outras, deve-se à queixa daqueles profissionais (terapeutas ocupacionais e professores) e

    também ao fato de que a mastigação é uma função aprendida e recrutante do complexo

    orofacial como um todo, sendo também a primeira fase da deglutição e a mais importante

    função do SE15

    .

    A partir da observação dessa necessidade teórica e prática, são delineados o problema,

    a tese e os objetivos desta pesquisa.

    Problema e tese

    Esta pesquisa inicia-se a partir do problema: Quais os conhecimentos o fonoaudiólogo

    deve adquirir, para melhorar sua atuação frente às implicações da visão para o funcionamento

    do sistema estomatognático?

    Diante desse problema de pesquisa, a tese defendida é a de que: o fonoaudiólogo

    necessita ampliar sua compreensão sobre a deficiência visual, o sistema sensorial e a

    neuroplasticidade, para possibilitar a efetivação e a adequação de seus procedimentos clínicos,

    conciliando os sentidos partilhados com o deficiente visual, o mais precocemente possível,

    para que este se aproprie em seu corpo, como consciência corporal, de todo o SE, além do

    limite determinado pela falta do feedback visual.

  • 18

    Objetivos

    Objetivo geral

    Desenvolver um aporte referencial teórico para a análise e a discussão da relação

    entre a deficiência visual e o sistema estomatognático (funções de mastigação e deglutição) na

    prática clínica fonoaudiológica com sujeitos deficientes visuais.

    Objetivos específicos

    Identificar na literatura da área de Fonoaudiologia os trabalhos disponíveis sobre a

    relação entre a deficiência visual e as funções estomatognáticas;

    Investigar nos sujeitos que participam desta pesquisa, a partir de um método

    exploratório e descritivo, de que modo as funções de mastigação e de deglutição se

    estabilizam em um sistema proprioceptivo geral afetado pela deficiência visual congênita

    (baixa visão ou cegueira);

    Identificar elementos que podem nortear a composição de um protocolo de avaliação

    de motricidade orofacial específico para deficientes visuais.

  • 19

    Revisão de literatura

    Na revisão de literatura serão abordados dois temas, sistema visual e sistema

    estomatognático, cujas relações serão retomadas na análise e discussão de casos apresentados

    em Método.

    1 A visão e os outros sistemas perceptuais

    Decorrente da análise dos resultados obtidos no levantamento bibliográfico

    realizado, conclui-se que esta tese se revela uma importante contribuição para novas frentes

    da atuação fonoaudiológica junto a sujeitos com deficiência visual. De tal modo, serão

    descritos aspectos de relevância para a compreensão das relações entre os diferentes sistemas

    sensoriais, o quanto esses sistemas incidem nas funções estomatognáticas, e ainda a

    repercussão dessa compreensão para a intervenção fonoaudiológica com deficientes visuais.

    A opção pelo detalhamento dos diferentes sistemas, além do visual, deve-se à preocupação de

    que este estudo forneça subsídios teóricos para o campo da Fonoaudiologia ampliar seus

    recursos quanto a sua atuação na área de deficiência visual.

    2 O sistema estomatognático e suas relações com a visão

    Será apresentado o sistema estomatognático, a partir de estudos da área da

    Odontologia e da Fonoaudiologia, dando relevância para as relações entre as funções

    estomatognáticas e o sistema visual que incidem no conhecimento do próprio corpo e,

    portanto, podem interferir no comportamento social do sujeito deficiente visual. Considera-se

    ainda que as expressões faciais mantêm estreita relação com o SE, para além de suas funções

    clássicas (sucção, deglutição, mastigação, respiração e fala).

  • 20

    Revisão de literatura 1: A visão e outros sistemas perceptuais

    1.1 A visão como um acontecimento neurofisiológico

    O cérebro humano é dividido em estruturas cerebrais com funções determinadas,

    denominadas lobos. Devido à característica plástica cerebral, em caso de lesão, dano cerebral

    ou privação de estímulos, como veremos no item “plasticidade cerebral”, as funções de um

    lobo cerebral podem ser assumidas, em alguma medida, por outros lobos ou áreas cerebrais

    vizinhas. De acordo com Luria16

    , os lobos cerebrais, em termos gerais, exercem as seguintes

    funções: Lobo Frontal (elaboração do pensamento, planejamento, programação de

    necessidades individuais e emoção); Lobo Parietal (processamento da sensação de dor, do

    tato, da gustação, da temperatura e lógica matemática); Lobo Temporal (recobre

    primariamente a audição, o reconhecimento de tons específicos, memória e emoção); Lobo

    Occipital (responsável pelo sistema e processamento da informação visual) e sistema Límbico

    (destinado aos aspectos do comportamento emocional, sexual e processamento da

    memória)16,17,18

    .

    De acordo com a natureza do estímulo que afeta os diferentes sentidos

    interpretados neurofuncionalmente, os receptores sensoriais podem ser classificados em:

    Quimiorreceptores: detectam substâncias químicas localizados na língua e no nariz (sentidos

    do paladar e olfato, por exemplo); Termorreceptores: captação de estímulos de natureza

    térmica, distribuídos por toda a pele e mais concentrados nas regiões da face, pés e mãos;

    Mecanorreceptores: responsáveis pelos estímulos mecânicos, capazes de captar ondas sonoras

    e regulares dos órgãos de equilíbrio (sistema vestibular); Fotorreceptores: recepção de

    estímulos luminosos (sistema visual)19,20

    .

    Entretanto, de acordo com o local onde os estímulos são captados no cérebro, tais

    receptores se reclassificam em: Exterorreceptores: localizados na superfície corporal e

    especializados na captação de estímulos ambientais, tais como a luz, o calor, o som e a

    pressão atmosférica (sistemas tátil, visual, auditivo, olfativo e gustativo); Propriorreceptores:

    localizados nos músculos, tendões, articulações e órgãos internos, captam estímulos oriundos

    do interior do corpo; Interorreceptores: detectam as condições internas do corpo (ph,

    omeostase, temperatura e composição química do sangue)19,20

    .

  • 21

    Figura 1. Lobos cerebrais

    21

    A sensação está relacionada à reação imediata dos receptores sensoriais (olhos,

    ouvidos, nariz, boca, dedos, entre outros) e a estímulos básicos como luz, cor, odor e texturas,

    e envolve um percurso no interior do corpo, do cérebro às extremidades sensoriais22

    . Trata-se

    de uma reação corporal imediata a um estímulo ou excitação externa, sem que seja possível

    distinguir no ato da sensação o estímulo exterior e o sentimento interior. Para Chauí23

    , a

    percepção, por outro lado, unifica e organiza as sensações promovendo uma síntese delas,

    pois o mundo percebido é um mundo intercorporal (relações entre os corpos e as coisas). A

    percepção depende do exterior, do interior, das coisas e dos sentimentos em um campo de

    significações visuais, olfativas, gustativas, sonoras, motriciais, temporais e linguísticas23

    .

    Em seus estudos iniciais sobre a sensação e a percepção visual, Luria24

    se

    contrapõe à ideia de visão como um sistema receptor passivo das imagens externas,

    considerando o olho humano um aparato muito complexo formado por componentes

    igualmente complexos. O autor destaca que o sistema ocular tem uma parte fotossensível

    (retina) e diferentes mecanismos auxiliares de caráter motor (íris e cristalino) que asseguram

    na retina a chegada de raios luminosos, o foco da imagem e a defesa desse mesmo

    mecanismo. Compõem ainda esse aparato o sistema muscular que guia o movimento do olho

    e complicados sistemas neuronais, nos quais a retina, por si só, alista uma parte do córtex

    cerebral de recepção do exterior que exerce intrincadas funções.

    Luria24

    ressalta o papel essencial da retina quanto a capa de células fotossensíveis

    especiais, sendo os bastonetes e os cones mecanismos fotoquímicos capazes de decompor a

    substância fotossensível e transformar sua energia luminosa em energia nervosa. Os

    bastonetes recobrem toda a retina e asseguram a visão acromática e a visão noturna; por outro

    lado, os cones, em menor número, ocupam a parte central da retina e asseguram a visão

    multicolorida (cromática)17,24,25,26

    .

  • 22

    O processo nervoso que nasce dos bastonetes e dos cones, sob a influência da luz,

    é transmitido a um sofisticado sistema de células nervosas que formam as zonas internas da

    retina. Assim, o caminho que o nervo óptico percorre envolve dendritos, axônios e células

    ganglionares, dentre outros. Para Luria24

    , o processo visual é comum a todos os videntes

    porque recursa, com pouca variação, a mesma circuitaria neuronal; entretanto, também é

    particular, visto que está intimamente relacionado com a história individual e que ver é

    sempre interpretar a partir das experiências perceptivas e sociais de cada um17,25,26

    .

    A entrada de raios luminosos se concentra na estrutura da íris do olho que, graças

    aos músculos nela situados, pode contrair e dilatar a pupila (sob luz intensa se estreita e sob

    baixa luz se dilata), regulando a entrada de luz em sua câmara interna. O cristalino, por sua

    vez, se constitui como lente móvel refratária aos raios luminosos e, dependendo da distância

    do objeto contemplado, pode ter sua curva variada para tornar mais nítida a imagem projetada

    na retina, o que ocorre através do processo de acomodação. O sistema motor dirigido ao

    movimento do globo ocular permite efetuar a convergência de ambos os olhos, o que faz com

    que as imagens obtidas em ambas as retinas se projetem em um ponto de convergência

    (quando isso não ocorre há a visão dupla), permitindo também mudar o foco de um objeto a

    outro17,24,26

    .

    Contudo, a retina do olho e os sistemas a ela interligados, como vimos, são

    mecanismos periféricos do sistema visual, onde se inicia a via óptica hierarquicamente

    estruturada, que assegura tanto a chegada dos sinais recebidos aos mecanismos nervosos

    centrais (codificação dos sinais ópticos) como a regulação dos movimentos oculares que

    garante a orientação correta do olhar. De tal modo, as fibras nervosas emergentes dos diversos

    setores da retina terminam em zona cerebrais rigorosamente dispostas no campo de projeção;

    posteriormente, as excitações visuais seguem até os campos ópticos secundários nos quais

    predominam os neurônios associativos complexos das segunda e terceira camadas neuronais,

    e então os impulsos nervosos fracionários recebidos podem ser unificados de acordo com as

    tarefas planejadas pelo sujeito24,26

    .

    Luria24

    chama a atenção para o fato de que no córtex cerebral não há um centro

    óculo motor, mas centros especiais que governam o movimento do olhar (ato de fixação, de

    seguimento do ponto que move, do movimento para a análise de um objeto) e orientam as leis

    de percepção visual não só para indícios soltos de uma imagem, mas de figuras geométricas e

    estruturas inteiras.

  • 23

    Figura 2. Projeção de imagens dentro do olho

    27

    Porém, a visão, tal como a percebemos quando adultos, não está pronta por

    ocasião do nascimento de uma criança. Os primeiros dezoito meses de vida é o período

    evolutivo de maior importância para a visão, que se desenvolve até a idade de seis anos e

    amadurece durante a primeira década de vida. Todo esse processo de desenvolvimento recebe

    influência da relação entre a maturidade neurológica, o desenvolvimento das funções visuais,

    a idade e experiências de vida1,2,3.

    O desenvolvimento da acuidade visual, necessária para que a criança veja com

    clareza objetos em diferentes distâncias, está diretamente ligado ao desenvolvimento da

    acomodação visual. Nas primeiras semanas de vida a criança reage, por exemplo, ao rosto

    humano, a altos contrastes como as cores branco e preto e, ainda, a formas geométricas

    simples na distância entre 20 e 30 cm de seu corpo. Por volta do terceiro mês de vida a

    criança passa a ter um campo visual de sessenta graus, demonstrando melhor reação às cores,

    em especial ao amarelo, vermelho e laranja, chegando ao quarto mês com a capacidade de

    explorar o ambiente acompanhando a movimentação de pessoas e objetos4.

    Na continuidade da maturação do sistema visual, em torno dos 6 meses, a criança

    já consegue fazer a fixação visual do objeto combinada com a rotação de cabeça, função que

    influenciará significativamente no desenvolvimento mandibular, na lateralização mandibular e

    na função mastigatória, sendo esta a função mais refinada e aprendida, exercida pelo SE4,28

    .

    De tal modo, a realização progressiva dos movimentos de tronco e cabeça da

    criança serão determinantes para o fortalecimento do tônus muscular associado ao processo de

    deglutição, de mastigação e de movimentação do pescoço, repercutindo na própria postura

    corporal, fechando assim um ciclo completo de interinfluência muscular e postural9.

    Entretanto, o sistema visual segue se particularizando e as informações visuais captadas pelos

    dois olhos (visão binocular), responsável pela noção de distância e presente desde o

    nascimento, vão se especializar até por volta dos quatro anos de idade com dependência direta

    do meio ambiente a que a criança está exposta4,29,30,31

    .

  • 24

    Nesse processo, a entrada de informação sensorial influencia a realização das

    atividades motoras e, ao mesmo tempo, a realização de uma ação motora influencia o modo

    como a informação sensorial é obtida10,32

    .

    O estudo desenvolvido por Gagliardo4 analisa que o desenvolvimento da

    percepção visual é determinante para a manipulação de objetos pelo bebê e para a

    coordenação olho-mão, que se inicia ao final do terceiro mês de vida. Ao longo do primeiro

    ano de vida, a criança tem seu campo visual ampliado para cento e oitenta graus33

    . Em função

    disso, reage com rapidez à visão periférica; acompanha objetos que caem das mãos;

    reconhece a uma distância entre 1m e 1,5m seus familiares, alimentos, brinquedos e objetos

    pequenos. Sua visão se torna mais acurada e sensível à percepção dos diferentes brilhos dos

    objetos. No segundo ano de vida, com a conquista da marcha por parte da criança, ocorre

    grande ampliação da esfera visual e a acuidade para longe melhora também. Aos três anos,

    essas habilidades encontram-se plenamente desenvolvidas interferindo marcadamente no

    controle postural do tronco.

    Para Costallat34

    ,

    A atenção visual relaciona-se com a aquisição de diferentes posturas,

    iniciando-se com a possibilidade de manter a cabeça ereta e aprimorando-se

    com a aquisição contínua do controle postural do tronco e dissociação de

    cinturas, em que o controle da cabeça melhora o controle da fixação do olhar

    que, consequentemente, favorece o desenvolvimento progressivo da atenção.

    Por outro lado, a postura sentada e a possibilidade de rodar o tronco

    modificam e ampliam o panorama visual, tornando a atenção cada vez mais

    seletiva, orientando o olhar e facilitando as atividades motoras finas.

    Então, nos primeiros anos de vida de uma criança, a relação entre o sistema motor

    e a percepção visual se mantém mais fortemente integrada, possibilitando uma mútua

    influência entre o sistema motor e a resposta ao estímulo visual. Isso é facilmente

    compreendido na medida em que é a atenção visual que frequentemente motiva na criança seu

    deslocamento corporal nas tentativas de se aproximar de pessoas e de alcançar, manipular,

    explorar os objetos e suas possibilidades de uso35

    .

    Assim, “[...] é no exercício de ajuste em relação ao próprio corpo e o objeto ou

    pessoa de interesse da criança que a atenção visual promove o processo de desenvolvimento

    da coordenação visuomotora”4.

    Entretanto, a visão não está envolvida apenas no desenvolvimento visuomotor,

    mas nas habilidades mentais, interferindo na construção de conceitos espaciais, na aquisição

    de linguagem e nas relações psicoafetivas29,36

    .

  • 25

    Para ilustrar minimamente a mudança na qualidade da visão ao longo dos

    primeiros meses de vida da criança, trago a demonstração realizada por Telleri.

    Figura 3. Demonstração de Teller

    3

    A importância do sistema visual para o controle postural se relaciona

    especificamente com a estabilização da oscilação corporal, que aumenta mais que o dobro

    quando a informação visual não está disponível. E, nesse caso, quanto maior a precisão da

    imagem na retina, maior a redução da oscilação corporal. O sistema visual atua como uma

    fonte de informação sensorial que interfere positivamente no controle postural e ainda,

    oferece uma referência para a verticalidade, auxiliando no processo de retificação da

    postura10,31

    .

    De acordo com Gagliardo e Nascimento31

    , no caso de crianças com alterações

    visuais o atraso global pode ser considerado, pois a ausência visual pode influenciar

    negativamente o desenvolvimento de algumas atividades motoras como o controle postural, a

    mobilidade, o alcance, a preensão e a manipulação de objetos. As autoras explicam que isso

    se deve ao fato de essas crianças resistirem a mudanças de posição ou se desorganizarem

    diante delas. Bebês videntes e sem comprometimentos elevam a cabeça ou engatinham para

    alcançar algo que lhes chama a atenção, enquanto bebês cegos permanecem imóveis por um

    tempo considerável, empobrecendo suas vivências motoras, o que interfere de forma negativa

    no domínio das atividades corporais.

    i Davida Young Teller (1938-2011) foi professora dos Departamentos de Psicologia e Fisiologia/Biofísica da

    Universidade de Washington (EUA), pioneira no estudo científico do desenvolvimento visual infantil. Seus

    estudos interferiram nas noções de escolha preferencial e de escolha forçada, na função visual psicométrica e

    no desenvolvimento do Teller Acuity Cards, avaliação aplicada mundialmente em bebês e crianças pequenas.

    https://translate.googleusercontent.com/translate_c?depth=1&hl=pt-BR&prev=search&rurl=translate.google.com.br&sl=en&sp=nmt4&u=https://en.wikipedia.org/wiki/Two-alternative_forced_choice&usg=ALkJrhg8Vj_nNDDHpFcIODDmppwyqJp2Dghttps://translate.googleusercontent.com/translate_c?depth=1&hl=pt-BR&prev=search&rurl=translate.google.com.br&sl=en&sp=nmt4&u=https://en.wikipedia.org/wiki/Two-alternative_forced_choice&usg=ALkJrhg8Vj_nNDDHpFcIODDmppwyqJp2Dg

  • 26

    Para Rodrigues37

    , a falta do feedback visual compromete na criança a auto

    regulação de seus movimentos, o que a impede, por vezes, de fazer o ajuste social necessário.

    Esse desajuste pode repercutir em sua relação com o mundo e consigo mesma. Nesse caso, ela

    pode voltar-se para o próprio corpo desenvolvendo diferentes estereotipias, denominadas no

    deficiente visual, de “maneirismos”. Trata-se de movimentos compulsivos, repetitivos e

    inadequados. Dentre esses, os mais encontrados são os de balançar o tronco para frente e para

    trás, mover a cabeça de um lado para o outro e comprimir ou esfregar os olhos com uma ou

    ambas as mãos. Comportamentos que podem ser semelhantes com os apresentados por

    crianças com deficiência mental profunda ou com Transtornos do Espectro Autista.

    Contudo, como já referido, ao longo do desenvolvimento infantil não é apenas a

    visão que organiza na criança sua percepção do mundo externo, sua experiência, cognição e

    memória, outras diferentes instâncias sensoriais envolvendo o tato, a audição, o olfato e a

    gustação contribuem para isso em menor ou maior âmbito, a depender da vivência em

    questão.

    No próximo item são apresentados esses sistemas, bem como as inter-relações que

    mantêm. É digno de nota o fato de que, segundo Lent17

    , a terminologia advinda dos estudos

    do campo da Neurologia identifica diferentes termos para “sistemas sensoriais”, tais como:

    “modalidades sensoriais” de visão, de audição; “somestesia” (do grego, soma - corpo e

    aesthesis- sensibilidade) no lugar do termo “tato”; “gustação” ou “paladar” e “olfação” ou

    “olfato”. Ainda segundo o autor, para cada uma dessas modalidades sensoriais há uma forma

    de energia única que se caracteriza, com exceção da somestesia.

    De tal modo, no caso da visão há uma energia eletromagnética situada em uma

    faixa restrita de comprimentos de ondas no espectro visível; na audição há uma energia

    mecânica que se propaga em forma de som no espectro audível; na olfação e na gustação, há

    uma energia ativada por substâncias químicas; na somestesia não há uma única forma de

    energia, mas a combinação de diferentes tipos, ou seja, da mecânica, da térmica e da química;

    portanto, ao longo deste texto, essas diferentes terminologias serão usadas de acordo com as

    pesquisas consultadas.

    1.2 Sistema táctil ou somestesia

    A pele é o órgão de sentido mais extenso do corpo humano e, depois do cérebro, o

    mais importante. O sistema somestésico é uma modalidade sensorial que recobre a habilidade

    do homem em receber informações sobre as diferentes partes do seu corpo e se divide em três

    submodalidades:

  • 27

    1. Interoceptiva: envia ao cérebro sinais dos processos internos do organismo

    procedentes das paredes dos intestinos, do estômago, do coração, do sistema

    sanguíneo e de outros órgãos viscerais, garantindo a satisfação das necessidades

    básicas do corpo humano38,39

    ;

    2. Proprioceptiva: assegura informaçoes ao cérebro sobre a posição do corpo no espaço;

    3. Exteroceptiva: constitui o principal grupo de informações, pois garante “a recepção de

    sinais procedentes do mundo exterior, criando a base do nosso comportamento

    consciente”38

    , e se divide em dois grupos: de contato (quando as sensações são

    provocadas por algo que atinge diretamente o órgão perceptivo correspondente); de

    distância (quando as sensações provenientes do olfato, da visão e da audição são

    geradas a uma certa distância).

    O grupo das sensações de contato tem como submodalidade principal o tato, que

    apresenta receptores especializados situados na pele e nas mucosas; neurônios primários

    situados em gânglios periféricos; neurônios de segunda ordem situados no tronco encefálico

    do mesmo lado do corpo em que foi tocado; neurônios de terceira ordem situados no tálamo

    somestésico do lado oposto e neurônios de quarta ordem situados no giro pós-central do

    córtex cerebral38,39

    .

    Lent26

    descreve dois tipos de tato: “tato fino” e “tato grosseiro”. O tato fino

    (epicrítico) possibilita o reconhecimento de estímulos suaves e pequenos com grande

    precisão; o tato grosseiro (protopático) apresenta uma capacidade rudimentar de

    discriminação tátil.

    A pele é o “órgão somestésico por excelência”26

    , ou seja, embora existam

    receptores sensoriais espalhados em todos os órgãos do corpo humano, é nela que se

    concentram milhares de receptores sensoriais, estruturas histológicas especializadas em

    detectar os diferentes estímulos que incidem sobre o organismo, denominadas “miniórgãos”.

    Essas estruturas:

    [...] penetram no Sistema Nervoso Central através das raízes dorsais da

    medula espinhal ou através de alguns nervos cranianos diretamente no

    encéfalo. Os corpos celulares que dão origem a essas fibras ficam

    localizados nos gânglios espinhais e no gânglio trigêmeo: são eles os

    neurônios primários do sistema somestesico26

    .

    Apesar da diversidade dos receptores e suas fibras, no Sistema Nervoso Central

    (SNC) eles podem ser reunidos em subsistemas somestésicos diferentes, de acordo com a sua

    função e organização morfológica correspondente.

  • 28

    Figura 4. Sistema somestesico da pele

    40

    Os mecanorreceptores são responsáveis pelas sensações mecânicas oriundas da

    pele e são eles que tornam possível examinar objetos fazendo uso, por exemplo, das mãos,

    para verificar características como textura, forma e peso. São também eles os responsáveis

    pelas sensações agradáveis provocadas por uma brisa ou cafuné. Alguns tipos de

    mecanorreceptores são encontrados na pele glabra (sem pelos) e outros na pele pilosa (com

    pelos); são eles: Corpúsculos de Pacini (pressão), receptores de Merkel (tato e pressão), discos

    táteis, Corpúsculo de Meissner (tato), Folículos Pilosos e Corpúsculos de Ruffini (calor). As

    sensações mecânicas oriundas da pele dependem de como os diferentes receptores estão

    espalhados pelo corpo e de como respondem aos estímulos19,20,41

    .

    As pessoas cegas são capazes de aprender a utilizar a superfície dos seus dedos

    para identificar as pequenas elevações pontuais que constituem a escrita Braille. Além disso,

    todos nós somos capazes de aprender a identificar objetos e descrever suas formas sem o

    auxílio da visão, especialmente quando usamos as mãos, uma vez que é nelas que se encontra

    uma grande concentração dos mecanorreceptores, como podemos observar na figura a

    seguir19,26,32

    .

  • 29

    Figura 5. Localização dos receptores cutâneos e tipos de respostas

    42

    Os termorreceptores são receptores de adaptação lenta que detectam a temperatura

    da pele e se classificam em dois tipos: receptores de frio e de calor. Cada tipo de receptor

    funciona em uma ampla faixa de temperatura, com alguns se sobrepondo e se ativando na

    faixa de temperatura moderada como no caso de 36ºC20,26

    .

    Outro importante receptor sensorial presente na pele são os nociceptores ii,

    responsáveis pela percepção de dor proveniente do meio externo ou do próprio organismo.

    Devido à importância dessa função houve, ao longo da evolução da espécie, o

    desenvolvimento de todo um sistema sensorial próprio para veicular as informações

    nociceptivas20,26

    .

    Quando os receptores sensoriais estão situados abaixo da cabeça, penetram no

    SNC através das raízes dorsais da medula. Se localizados na cabeça, ligam-se a fibras que

    compõem alguns dos nervos cranianos, sobretudo o nervo trigêmeo (nervo craniano V), que

    penetra no SNC pelo tronco encefálico. Esse nervo apresenta três grandes ramos: ramo

    oftálmico (cobre o território da testa, olhos e a frente do nariz); ramo maxilar (recebe as fibras

    táteis das maçãs do rosto, do lábio superior, dos dentes superiores e das cavidades nasal e

    oral); ramo mandibular (cobre as têmporas e continua até o queixo, incluindo os dentes

    inferiores)26

    .

    Para dar visibilidade às áreas do corpo com maior concentração de receptores

    sensoriais propõe-se a imagem do Homúnculo de Penfield, que representa um homem com

    proporções distorcidas: “[...] cujo tamanho das partes do corpo tem relação com o número de

    ii Dor e nocicepção não são termos sinônimos, já que a dor é um estado subjetivo

    19.

  • 30

    neurônios que o cérebro recebe e projeta para essas partes. A grande área de representação

    cortical da região orofacial demonstra a importância sensorial e motora dessa região”43

    .

    Figura 6. Homúnculo de Penfield

    44

    Já a Figura 7, mostra o Homúnculo Cortical retratando a proporção maior da área

    de representação cortical das regiões das mãos e orofacial em relação às demais áreas43

    .

    Figura 7. Homúnculo cortical

    45

    Ainda dentro do sistema somestésico, é importante descrever brevemente, nesta

    tese, o que se entende pelo termo “propriocepção”, que refere a percepção de posição do

    próprio corpo e o movimento de cada membro dele no espaço. A propriocepção, propriamente

    dita, tem um componente consciente (consciência do corpo e de seus movimentos) e outro

    inconsciente, que rege os sistemas de controle da motricidade32,43

    .

    Como visto anteriormente, a propriocepção refere-se ao fluxo sensorial que se

    origina nos receptores do corpo (situados nos músculos e tendões) e também de receptores

    situados na pele (para avaliar pressão, atrito e temperatura). As informações geradas pelos

    receptores musculares e articulares são conduzidas até o córtex cerebral, onde se transformam

    em percepções conscientes. Essas percepções são também utilizadas para gerar respostas no

    corpo segundo os ajustes motores adequados a cada situação (esforço que os músculos

    imprimem sobre as articulações), tornando os movimentos corporais eficientes, adequados e

    harmônicos. Essas propriocepções são associadas às informações oriundas dos sistemas

  • 31

    vestibular e visual e permitem ao SNC investigar e agir sobre o ambiente, por exemplo, na

    exploração visual24,46

    .

    Com o objetivo de mostrar como o sistema tátil se organiza neurofuncionalmente

    em caso de cegueira ou baixa visão, revela-se exemplar a história de Virgil contada por Oliver

    Sacks47 iii

    . Trata-se de um homem de cinquenta anos de idade, cego desde a infância,

    acometido por cataratas em ambos os olhos, além de ser portador de retinite pigmentosaiv.

    Aos três anos de idade, Virgil foi acometido por meningite, quando sofreu

    convulsões e ficou praticamente cego, com as pernas parcialmente paralisadas. No ano

    seguinte, recuperou os movimentos das pernas, mas suas retinas estavam seriamente

    comprometidas. Aos seis anos de idade, as cataratas começaram a se desenvolver nos dois

    olhos, cegando-o novamente. No mesmo ano, foi matriculado em uma escola para cegos onde

    aprendeu a ler braille e a usar bengala como possibilidade de independência.

    Aos 50 anos, foi submetido a uma cirurgia corretiva da visão e, depois disto,

    encontrou muita dificuldade em se adaptar com a visão adquirida, época em que Sacks passou

    a avaliá-lo e a acompanhá-lo periodicamente. A proposta de Sacks era a de compreender

    como Virgil via e como seu cérebro havia se estruturado ao longo de sua vida como um

    sujeito cego e, ainda, como se estruturava então, quando se tornou novamente um sujeito

    vidente.

    Sacks47

    analisa que, quando nascemos plenos da totalidade dos sentidos, fazemos

    correlações entre eles e criamos, desde o início da vida, um mundo visível de objetos,

    conceitos e sentidos visuais. Um mundo que não nos é dado, mas construído incessantemente

    pela própria experiência que o classifica, tornando-o memória e reconhecimento. No caso de

    Virgil, suas experiências visuais da primeira infância estavam esquecidas, não havia

    memórias visuais para apoiar sua percepção de mundo atual, não havia também experiências e

    sentidos pré-construídos associados com a aprendizagem de ver. Sua retina e nervo óptico

    estavam ativos, transmitindo impulsos, mas seu cérebro não conseguia lhes dar sentido. Ele

    estava agnósico, ou seja, via, mas o que via não tinha qualquer coerência, não entendia o que

    percebia visualmente.

    Segundo Sacks47

    , a dificuldade real de Virgil advinha do fato de a percepção

    simultânea de objetos em sequências de movimento não ser algo habitual para aqueles

    acostumados a uma percepção sequencial através do tato. Os videntes com a totalidade dos

    iii

    Sacks também escreveu outro livro relacionado à cegueira: Olhar da mente, Companhia das Letras, São Paulo,

    2010. iv Doença hereditária e progressiva que causa uma “distrofia” ou danos aos fotorreceptores da retina e do epitélio

    do pigmento debaixo dos fotorreceptores, culminando em uma cegueira completa.

  • 32

    sentidos vivem no espaço e no tempo, enquanto os cegos vivem só no tempo. Isso acontece

    porque constroem seus mundos a partir de sequências de impressões (táteis, auditivas,

    olfativas) e não são capazes, como as pessoas com visão, de uma percepção visual simultânea

    em um acontecimento espacial e temporal, há a dificuldade de conceber uma cena visual

    instantânea dependente da experiência como um todo.

    Sacks47

    constatou, assim, que os sistemas auditivos e táteis de Virgil eram

    imprescindíveis para que ele pudesse natural e facilmente experimentar e explorar o mundo,

    impossível pela visão. Na primeira condição, Virgil se mostrava hábil e autossuficiente como

    um cego que havia naturalmente experimentado, apreendido e construído sua visão de mundo

    com as mãos, em contraposição a tudo de antinatural que o uso da visão estava lhe impondo.

    A condição de vidente exigia que renunciasse a tudo o que lhe era familiar para passar a

    perceber o mundo de uma maneira inacreditavelmente difícil e estranha.

    1.3 Audição

    A audição é uma função que possibilita ao sujeito se constituir na linguagem e na

    língua ao se filiar histórica, cultural e socialmente a uma comunidade e a(s) sua(s)

    variedade(s) linguística(s); e a proteção de alerta48,49

    .

    Esse sistema sensorial é extremamente refinado e dependerá do funcionamento

    harmônico anátomo e neurofuncional de todo o complexo auditivo para que o som seja

    capturado, conduzido, recebido e decodificado pelo cérebro, para, então, o sujeito significar o

    mundo. Esse percurso se inicia no pavilhão auditivo externo (orelha externa) cuja função é a

    de capturar a onda sonora, conduzi-la pelo meato acústico externo até a membrana timpânica

    que, por sua vez, o conduz para a orelha media26,50

    .

    A orelha média é composta pelos ossículos que vibram na frequência da onda

    capturada, transmitindo essa vibração para a janela oval. Neste ponto, as ondas chegam à

    orelha interna, onde são transformadas em impulsos elétricos transmitidos pelo nervo acústico

    até as áreas cerebrais para serem interpretadas50

    .

    Na orelha interna encontram-se os canais semicirculares, o labirinto (vestíbulo) e

    a cóclea, que constituem o sistema vestibular, responsável pela estabilização da imagem na

    retina, ajuste postural e orientação gravitacional50

    .

    De outro modo, essas funções também podem ser compreendidas como a de

    iniciar alguns reflexos necessários para a estabilização do olhar, da cabeça e do corpo;

    informar os centros nervosos sobre a velocidade da cabeça e sua posição no espaço e

    transformar as forças provocadas pela aceleração da cabeça e da gravidade em um sinal

  • 33

    biológico. Para que isso se efetue torna-se necessária a informação sobre a posição e o

    movimento da cabeça, orientado pelo labirinto51

    .

    Assim como os olhos percebem os estímulos luminosos, a cóclea percebe o

    estímulo auditivo e o labirinto funciona como um sensor de posição e de movimento do corpo

    no espaço. Essa informação é transmitida ao tronco cerebral, onde são estabelecidas as

    conexões com os sistemas motor ocular e visual e o proprioceptivo, que indiciam a realização

    e os ajustes necessários do corpo às três funções do sistema vestibular, citadas

    anteriormente51

    .

    Uma dessas funções é desempenhada pelo sistema vestibular central: trata-se de

    regular a manutenção dos olhos orientados para uma determinada direção mesmo quando o

    corpo se movimenta desordenada e intensamente. A função de garantir a permanência da

    imagem na retina apesar do movimento do corpo é realizada por meio do Reflexo Vestíbulo-

    Ocular (RVO). Esse reflexo possibilita a detecção das rotações da cabeça e imediatamente

    comanda um movimento compensatório dos olhos na direção oposta10,51

    .

    Outra função do sistema auditivo é o Processamento Auditivo (PA). Por PA

    entende-se o conjunto de processos em resposta a um estímulo acústico, iniciando-se no

    sistema auditivo periférico e finalizando no sistema auditivo central, presente desde os

    primeiros dias de vida da criança. O PA recobre especialmente habilidades como: fechamento

    auditivo; integração e separação binaural; integração binaural; detecção sonora; localização e

    lateralização sonora; discriminação auditiva e reconhecimento de padrões auditivos

    temporais52

    .

    Para Bear et al.51

    as vias auditivas parecem mais complexas que as visuais devido

    ao maior número de sinapses entre os órgãos sensoriais e o córtex, pois existem muito mais

    vias alternativas pelos quais os sinais podem seguir de um núcleo cortical ao próximo.

    Entretanto, o grau de processamento das informações nos sistemas visual e auditivo é

    análogo.

  • 34

    Figura 8. Sistema sensorial

    53

    1.4 Gustação e olfato

    O olfato e o paladar são sentidos químicos e os sistemas neurais que intermedeiam

    as sensações oriundas dos sistemas gustatório e olfatório estão entre aqueles

    filogeneticamente mais antigos do encéfalo que, ao detectarem substâncias químicas nas

    cavidades oral e nasal, atuam em conjunto. As sensações surgem, então, pela interação de

    moléculas com os receptores da olfação e gustação, impulsos que se propagam para o sistema

    límbico e áreas corticais superiores. Assim, odores e gostos desencadeiam intensas respostas

    emocionais ou afluxo de memórias26,54

    .

    O paladar é uma sensação química percebida através de células específicas

    chamadas “papilas gustatórias”, localizadas na língua e no palato, promovem sensações táteis

    e de sabores. Entretanto, como vimos, o sabor é uma combinação de cheiros e gostos

    percebido pelos sentidos gustativo e olfativo e ativados pelos quimiorreceptores. Nesse

    trabalho neural e sensorial realizado em conjunto, 80% da sensação que temos quando

    comemos alguma coisa é de responsabilidade do olfato. As informações olfativas, por sua

    vez, são interpretadas e identificadas no córtex olfatório, armazenadas no hipocampo para

    serem lembradas e enviadas ao hipotálamo para a organização de funções viscerais (procura

    por alimento quando o cheiro for de comida, náuseas ou vômitos se o cheiro for de carniça,

    por exemplo), ratificando dessa maneira essa experiência sensorial como aquela que desperta

    memórias emocionais e comportamentais55

    .

    Um estudo realizado por Ibarra-Soria et al.56

    em colaboração com pesquisadores

    especializados em olfação dos Estados Unidos, Brasil e Inglaterra, demonstrou que do tecido

  • 35

    olfativo participam 1.200 tipos de receptores olfativos culminando em uma capacidade quase

    ilimitada de sentir cheiros, enquanto do sistema visual participam apenas 3 tipos e do sistema

    de gustação 49 tipos. Para os referidos pesquisadores, o ambiente no qual o indivíduo vive e

    se desenvolve contribui substancialmente para modular o número de células capazes de

    identificar cada cheiro, não se tratando, portanto, apenas do efeito que a experiência

    individual exerce sobre a memória olfativa, mas sobre a própria construção do tecido olfativo

    que produz mais células para detectar cheiros aos quais o indivíduo esteve mais exposto ao

    longo da vida.

    Figura 9. Olfato

    57

    A função do paladar respalda também a seleção de alimentos específicos

    consideradas a preferência do indivíduo e as necessidades metabólicas de seus tecidos

    corpóreos. Por outro lado, as papilas gustatórias (da língua e do palato) informam, através dos

    botões gustativos, sobre a textura, a temperatura, a ardência, a doçura e a qualidade do

    alimento, sendo o gosto final um resultado da interpretação cerebral. Como se pode ver,

    interfere nessa interpretação a valorização gustativa e olfativa construída socialmente, daí o

    estranhamento diante de comidas muito diferentes (cheiro, textura e sabor) daquelas que

    aprendemos a apreciar58

    .

    A maioria dos botões gustativos localiza-se nas papilas da língua, enquanto

    outros, em menor quantidade, situam-se no palato mole (superfície da epiglote voltada para a

    laringe). Esses botões se alteram com a idade do indivíduo e as papilas gustativas atingem

    seu clímax de desenvolvimento na puberdade, começando a se atrofiar na mulher entre 40-45

    anos e no homem por volta dos 50 anos. Em relação à olfação, a capacidade regenerativa do

    epitélio olfatório declina com a idade, mas a alteração da sensibilidade olfativa se relaciona

  • 36

    mais com a degeneração das células nervosas centrais, do que com as modificações

    periféricas do aparelho olfatório59

    .

    Entretanto, sendo a qualidade e a intensidade da percepção olfatória dependentes

    do estado anatômico e funcional do epitélio nasal e dos sistemas nervosos central e periférico,

    quadros de rinites e resfriados prolongados podem causar hiposmia, ou seja, perda moderada

    da sensibilidade olfativa, quando o aroma do alimento não alcança o epitélio olfatório,

    prejudicando no cérebro a interpretação gustativa60

    . Nesse caso, experimenta-se, quando em

    estado de gripe, a perda do sabor do alimento.

    Além da olfação e da gustação existe um sentido intermediário que envolve

    terminações livres situadas nas mucosas faciais, a somestesia química, capaz de detectar

    substâncias irritantes e poluentes, gerando percepções de ardência ou dor que disparam

    reflexos de expulsão (vômito e tosse)17

    .

    1.5 Plasticidade cerebral

    Arantes61

    descreve o cérebro humano como um aparato de aproximadamente 100

    bilhões de neurônios, e cada um deles pode chegar a participar de cerca de 10 mil conexões

    com outros neurônios, o que faz desse órgão o objeto mais sofisticado em estudo pela ciência

    contemporânea. O autor identifica a neuroplasticidade como a capacidade que o cérebro tem

    de reorganizar seus caminhos sinápticos em resposta a novos estímulos sensoriais, a novas

    informações, a mudanças nos parâmetros ambientais ou danos em sua estrutura, sem que seja

    possível, entretanto, prever com exatidão a conformação de novos possíveis percursos

    neuronais. Dependendo da tarefa, uma informação sensorial torna-se mais preponderante do

    que outras10

    .

    Rangel et al.62

    completam a definição de plasticidade neural como a possibilidade

    de reorganização do sistema nervoso (córtex cerebral), durante o desenvolvimento e na fase

    adulta, em resposta à aprendizagem e a mudanças compensatórias após lesão cerebral. Com a

    proposta de discutir a reorganização do córtex cerebral em pessoas cegas, considerando a

    premissa (que vale tanto para videntes quanto para cegos) de que o cérebro lida com mais de

    duas informações sensoriais ao mesmo tempo, os autores, a partir de diferentes estudos,

    afirmam que há participação do córtex visual em tarefas táteis de discriminação tanto em

    cegos congênitos ou precoces (antes dos 16 anos) como em cegos tardios.

  • 37

    Essa capacidade cerebral é por eles denominada “ativação metamodal” ou

    “multimodal”v, relacionando a ativação do córtex occipital (responsável pelo controle da visão

    e processamento visual) em uma função cognitiva semântica; a ativação de substituição

    sensorial de um estímulo visual por um estímulo sonoro (relação visuoauditiva); a ativação

    de uma organização metamodal de regiões específicas no processamento de certos tipos de

    informação, independentemente da entrada sensorial (por exemplo, os estímulos táteis ou

    auditivos são processados na área da visão); e, ainda, a ativação simultânea de uma

    modalidade sensorial de maneira integrada e unificada, sem descontinuidade aparente,

    otimizando a detecção e o reconhecimento de objetos e também a resposta a estes.

    De acordo com esses preceitos funcionais, os deficientes visuais (ou outros)

    podem se tornar capazes de reorganizar todo o cérebro, desenvolvendo meios alternativos

    para atingir uma meta. Ou seja, nenhum dos processos mentais deve ser considerado isolado

    ou indivisível, ou tido como uma “função” exclusiva de um grupo celular específico ou de

    uma área localizada no cérebro16 vi.

    Um exemplo disso é o relato, em 2006, do cego M.A.Q.63

    :

    Se eu for fazer uma audiometria, uma medida cientifica, não vou escutar

    mais do que outras pessoas. Eu posso até ter um déficit auditivo, mas a

    questão é que minha atenção está ligada na minha audição, porque é uma

    questão de sobrevivência. Eu enxergo através do meu ouvir, através do meu

    tato, através do meu olfato, através do meu paladar.

    Topczewski64

    reconhece o funcionamento plástico do cérebro possibilitando que,

    em certas ocasiões, funções de uma área cerebral sejam compensadas por outras. Entretanto,

    chama a atenção para a ideia mítica de que o desenvolvimento dessas outras funções aconteça

    automaticamente. Para o autor, não é porque uma criança possui deficiência visual que terá

    um ouvido mais apurado ou o tato excelente; para que isso aconteça é necessário que seja

    levada a desenvolver essas habilidades neurofuncionais. A educação orientada, por exemplo,

    é um facilitador para a reorganização de processos neurais, a qual não acontece fora de

    experiências proprioceptivas envolvendo o corpo em diferentes atividades também dirigidas.

    Nesse caso, de fato, a audição, o tato, o olfato e a gustação fornecem diferentes percepções v A proposta do cérebro como sistema multimodal tem correlato teórico com as concepções de Luria

    16, segundo

    as quais as funções mentais resultam da ação coordenada de várias regiões corticais e subcorticais, integradas.

    Essa noção se contrapõe à ideia de sistemas distribuídos e estruturados de acordo com as modalidades sensoriais

    que processam, ou seja, sistemas unimodais exclusivos65

    . vi Está na base do conceito de plasticidade a contraposição entre a visão da corrente Localizacionista (século XX)

    que define para o cérebro funções determinadas para regiões cerebrais especificas, em detrimento de uma visão

    cerebral holística que respeita a função de cada área cerebral, mas concebe a neurodinâmica cerebral como um

    todo indivisível66

    .

  • 38

    particulares de cada um desses sentidos e colaboram na percepção de outros mais gerais

    relacionados com o reconhecimento do ambiente, o posicionamento do corpo no espaço, a

    distância de objetos ou obstáculos, etc.

    Na perspectiva educacional da pedagoga Hsu Yun Min67

    , assim como na criança

    vidente, as crianças cegas também partem do concreto para o abstrato, e a técnica principal e

    estruturante do ponto de vista cognitivo e neurofuncional é o conhecimento do próprio corpo.

    Partilhando dessa mesma opinião, a psicopedagoga Sônia Salomon68

    observa que enxergar

    permite o desenvolvimento motor, pois a criança começa a ajustar a postura por conta do que

    vê ao olhar para a mãe, ao procurar objetos, quando ouve um som e direciona a cabeça em

    busca da fonte do ruído. Para ela, esse conjunto de atitudes encaminha o normal

    posicionamento de partes do corpo, especialmente da coluna e do pescoço, mas a criança que

    não tem visão tende a ficar muito rígida, como um bloco, o que desestimula outros

    movimentos, tornando primordial ensiná-la a usar o corpo.

    O estudo de Vygotsky69

    sobre crianças fisicamente deficientes condena a ideia de

    que acontece uma compensação biológica do tato e da audição em função da cegueira,

    centralizando a importância da linguagem como um processo simbólico de compensação

    social na superação das limitações experimentadas pela impossibilidade da experiência visual.

    É questionável, portanto, a ideia - praticada na educação como intervenção na deficiência

    visual - de que 80% de nosso conhecimento se baseia na visão70,71,72

    . Ainda que se reconheça

    o processo receptivo dos órgãos sensoriais como vias de acesso ao mundo, o conhecimento

    não se limita à recepção, mas é consequência de um processo de apropriação que acontece em

    meio às relações sociais.

    A opção por esse recorte educacional na relação com a neuroplasticidade tem por

    objetivo refletir sobre o fato de que o cérebro se reorganiza por diferentes caminhos neurais,

    os quais não acontecem independentemente da experiência de vida do sujeito em questão; ao

    contrário, a educação e a orientação terapêutica dirigida interferem fortemente nisso. Observa-

    se ao longo do que foi exposto que a rigidez corporal do cego, especialmente em relação à

    face, ao pescoço e às condutas sociais gestuais, é frequentemente referida. Sabe-se também

    que o desenvolvimento motor e a capacidade de comunicação podem estar prejudicados na

    criança com deficiência visual, porque gestos e condutas sociais são aprendidos desde o

    nascimento pelo feedback visual, o que ratifica a intervenção precoce junto a essas crianças.

    É nesse sentido que Vygotsky69

    defende que a vivência da cegueira não é como a

    do vidente de olhos tapados. O cego de nascença percebe o mundo de forma diferente e só

    experimenta a cegueira como deficiência por meio de interações sociais que lhe mostram isso.

  • 39

    O que não quer dizer que a percepção do cego seja melhor ou pior; a questão está na diferente

    organização sensorial e neurofuncional de cegos e videntes.

    A referência à importância da educação e da orientação terapêutica dirigida aos

    deficientes visuais considera, que tais condições estão atreladas às políticas públicas dirigidas

    a essa população, e esse tema está desenvolvido no item que segue.

    1.6 Cegueira e deficiência visual no Brasil

    A ausência total ou parcial da visão na infância pode interferir no

    desenvolvimento psicomotor cognitivo, social; no desenvolvimento linguístico da criança e na

    independência do indivíduo30,31,36,73,74

    .

    Com o objetivo de reunir informações e orientar os profissionais da área, a

    Sociedade Brasileira de Oftalmologia divulgou, em 2015, um estudo, sob forma de cartilha,

    intitulado As condições de saúde ocular no Brasil. Salientando a escassez de dados

    encontrados, o que já havia sido antecipado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    (IBGE)75

    , o estudo traça um panorama da saúde ocular do idoso e da criança, delimitando

    projeções representativas para a área até a década de 203076

    .

    No referido estudo consta que o declínio da fecundidade e o aumento da

    longevidade da população brasileira performam um padrão etário cada vez mais envelhecido,

    implicando a demanda de avaliações permanentes de políticas sociais voltadas para essa

    população, inclusive do ponto de vista oftalmológico. Além disso, estabelece uma relação

    mundial entre o nível de desenvolvimento socioeconômico de um país e as condições de

    saúde ocular, e situa o Brasil, segundo dados da Agência Internacional da Prevenção à

    Cegueira (IAPB), como um país em desenvolvimento que apresenta alto índice de crianças

    cegas por doenças oculares que poderiam ter sido evitadas ou tratadas precocemente76

    .

    Um dos motivos para tal ocorrência é a baixa prevenção de doenças visuais na

    primeira infância (0-3 anos). Uma possibilidade simples na detecção de diferentes alterações

    visuais é a aplicação do Teste do Reflexo Vermelho (TRV ou Teste do Olhinho) realizado em

    recém-nascidos ainda na maternidade e, pelo menos, duas a três vezes ao ano, nos três

    primeiros anos de vida. Apesar de a realização desse teste ser norma do serviço público em

    todo o país, na prática ainda não tem alcance nacional77

    .

    O TRV é uma ferramenta de rastreamento de alterações na transparência dos

    meios oculares, tais como: catarata (alteração da transparência do cristalino), glaucoma

    (alteração da transparência da córnea), toxoplasmose (alteração da transparência do vítreo por

    inflamação), retinoblastoma (alteração da transparência do vítreo pelo tumor intraocular)77

    .

  • 40

    Além desse instrumento de avaliação, é possível encontrar no panorama da saúde

    ocular brasileira outros protocolos avaliativos, dentre eles, o método de Avaliação da conduta

    visual de lactentes. Trata-se de um instrumento formulado por Gagliardo4,30

    , composto de um

    roteiro de avaliação que permite detectar de modo simples e com material de baixo custo as

    alterações do comportamento visual nos três primeiros meses de vida. Possíveis desvios

    encontrados serão úteis para o diagnóstico de alterações visuais, bem como de outros

    transtornos do neurodesenvolvimento infantil.

    De acordo com Kara-José et al.78

    , a triagem de problemas oftalmológicos deveria

    se estender entre 0 e 6 anos, quando se completa o desenvolvimento visual, sendo possível

    detectar os erros de refração não corrigidos, principal causa de deficiência visual entre as

    crianças brasileiras, principalmente os casos de ametropiasvii e de ambliopia (olho

    preguiçoso).

    A pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde77

    brasileiro junto a escolas

    especiais para cegos ou deficientes, divulgada em 2013, indicou as seguintes causas mais

    frequentes de alterações visuais naquela população: retinocoroidite por toxoplasmose, catarata

    infantil, glaucoma congênito, retinopatia da prematuridade, alterações do nervo óptico e

    deficiência visual de origem cortical.

    Para Alves et al.2, 90% dos casos de cegueira ocorrem nas áreas pobres do mundo;

    60% delas são evitáveis; 40% têm conotação genética (hereditárias); 25% têm causa

    infecciosa e 20% das cegueiras já instaladas são recuperáveis. Não há estudos populacionais

    no Brasil que demonstrem a prevalência e causas de deficiência visual. A preocupação com a

    falta de estudos estatísticos quanto à ocorrência de alterações visuais e sua prevenção motivou

    a iniciativa da Sexagésima Quinta Assembleia Mundial da Saúde, realizada em 2011, em

    desenvolver um projeto de plano de ação para a prevenção da deficiência visual evitável em

    todo o país. O projeto aprovado com o nome de Rumo à saúde ocular universal: um plano de

    ação global 2014-2019 ainda não disponibiliza dados atualizados sobre as regiões em que foi

    aplicado e a prevenção realizada.

    Em relação à primeira infância, as principais causas da cegueira e da deficiência

    visual são classificadas em cinco categorias: hereditárias (distrofia retiniana, catarata, aniridia,

    albinismo, entre outras); infância (deficiência da vitamina A, sarampo, meningite, trauma,

    entre outras); Perinatal (retinopatia da prematuridade, oftalmia neonatal, cortical, entre

    outras); Intrauterina (herpes, rubéola, toxoplasmose, sífilis; exposição a drogas ilícitas, uso de

    vii

    Ametropias: miopia, hipermetropia e astigmatismo são erros refrativos, ou seja, erros na capacidade que o

    olho tem de refratar a luz e focar os raios luminosos na retina.

  • 41

    medicamentos como talidomida, misoprostol, benzodiazepínicos, entre outras) e

    Desconhecida (anomalias, início desconhecido)77,79

    .

    Além das ações planejadas pelo Conselho de Oftalmologia do Brasil e pela

    Sociedade Brasileira de Oftalmologia, o Ministério da Saúde mantém ainda as Diretrizes de

    Atenção à Saúde Ocular na Infância visando a detecção e intervenção precoce de deficiência

    visuais, versão atualizada, em 2013. O referido plano apoia-se no manual de Classificação

    Internacional de Doenças (CID-10) quanto a referência de baixa visão (ou visão subnormal) e

    cegueira. Considera-se baixa visão ou visão subnormal quando o valor da acuidade visual

    corrigida no melhor olho é menor que 0,3 e maior ou igual a 0,05, ou quando seu campo

    visual é menor que 20º no melhor olho com a melhor correção óptica. Em relação à cegueira

    esses valores se encontram abaixo de 0,05 ou o campo visual menor que 10º graus80

    .

    O International Council of Ophthalmology (ICO) estabeleceu, desde 2003, o

    seguinte critério classificatório mundial revisto e aprovado pela Organização Mundial de

    Saúde para as Categorias de Deficiência Visual:

    Quadro 1. Critério classificatório mundial revisto e aprovado pela Organização Mundial de Saúde, para as

    Categorias de Deficiência Visual80

    – Visão normal ≥0,8

    – Perda visual leve

  • 42

    sendo os erros refrativos não corrigidos as maiores causas. Devido à alta possibilidade de

    resolução dessas alterações quando identificadas precocemente, tal ocorrência passou a ser

    considerada um problema de saúde pública. Colabora para esse quadro a falta de treinamento

    de profissionais na atuação e realização de triagens envolvendo a visão.

  • 43

    Revisão de literatura 2: O sistema estomatognático e suas relações com a visão

    Devido a sua complexidade estrutural e funcional, o sistema estomatognático foi

    tema de uma vasta gama de estudos desenvolvidos ao longo das duas últimas décadas. Esses

    estudos, oriundos das áreas da Odontologia, da Pediatria, da Neurofisiologia e da própria

    Fonoaudiologia, associam-se na confluência de questões envolvendo o SE, as funções e

    órgãos que o compõem. O recorte teórico estabelecido para este trabalho recobre estudos da

    área da Odontologia e da Fonoaudiologia como base para a análise do corpus de sujeitos com

    deficiência visual e questões estomatognáticas a ser apresentada em Metodologia.

    Esta revisão objetiva mostrar que as funções estomatognáticas e o sistema visual

    mantêm importantes relações no conhecimento do próprio corpo, pode