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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA Faculdade de Educação - FACED PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE ALINE OLIVEIRA MOURA SANTOS UM GÊNERO TEXTUAL É POUCO, DOIS É BOM, TRÊS NUNCA É DEMAIS... REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS E AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA ESCOLA Salvador 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

Faculdade de Educação - FACED PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE

ALINE OLIVEIRA MOURA SANTOS

UM GÊNERO TEXTUAL É POUCO, DOIS É BOM, TRÊS NUNCA É DEMAIS...

REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS E AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA ESCOLA

Salvador 2005

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ALINE OLIVEIRA MOURA SANTOS

UM GÊNERO TEXTUAL É POUCO, DOIS É BOM, TRÊS NUNCA É DEMAIS...

REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS E AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA NA ESCOLA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica. Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel García Bordas

Salvador 2005

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Biblioteca Anísio Teixeira – Faculdade de Educação - UFBA

S237 Santos, Aline Oliveira Moura.

Um gênero textual é pouco, dois é bom, três nunca é

demais.... : reflexões sobre o uso de textos e as estratégias de

leitura na escola / Aline Oliveira Moura Santos. – 2005.

244 f.: il.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia,

Faculdade de Educação, 2005.

Orientador: Prof. Dr. Miguel Angel Garcia Bordas.

1. Leitura. 2. Textos. 3. Linguagem. 4. Intertextualidade. I.

I. Garcia Bordas, Miguel Angel. II. Universidade Federal da

Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD – 372.4

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Dedico este trabalho, especialmente, aos meus amores de ontem, de hoje e de sempre:

Antonio Mota de Moura e Maria de Lourdes Oliveira de Moura, meus lindos pais, por me amarem e se dedicarem sem nada pedir em troca.

Á Adalício Batista dos Santos Filho, meu eterno amor, meu maior incentivador nesta caminhada e a quem tanto quero bem.

Aos meus queridos irmãos Alisson Oliveira Moura, Aliriane Moura de Souza e Alikson Oliveira Moura, com quem partilhei traquinagens, alegrias, tristezas e

aprendi a conviver com as diferenças. À Maria Clara Moura de Souza, minha pequenina e doce sobrinha, que trouxe à

minha vida mais uma razão para viver e amar.

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AGRADECIMENTOS

Não posso deixar de evidenciar que fazer o mestrado na Faculdade de

Educação da Universidade Federal da Bahia tornou-se uma tarefa muito mais

prazerosa por eu ter, no percurso, conquistado amigos e mantido outros. Por isso,

permito-me até ousar com rimas para falar das suas inestimáveis contribuições,

iniciando assim:

Êta tarefa difícil escrever uma dissertação, se não fossem os amigos a me

incentivarem no cultivo da pesquisa em questão, não sei se teria alcançado nem a

primeira versão. A esses amigos queridos, tenho muito a agradecer. Começo pelo

meu orientador, Professor Miguel Bordas, que com muito bom humor me ajudou a

crescer. Já Lúcia Valóis é uma dessas companheiras a quem amo sem nada

esperar. Sempre esteve ao meu lado mostrando que após o cansaço, há sempre um

bem-estar. Seus risos e suas alegrias nas horas mais inusitadas me levaram sempre

a pensar: que tudo na vida passa, mas a amizade sincera nunca há de cessar. Outro

amigo querido, que tanto me deu abrigo e a quem tanto quero bem, chama-se

Cleverson Suzart, um ser de muita bondade que sabe honrar o que tem. Obrigada a

Felippe Santos por ter compartilhado comigo, não só como amigo, mas também

como um irmão, a difícil e prazerosa tarefa de tecer, “sem muita pressa”, os fios

dessa dissertação. Ah, mas são tantos os amigos a quem quero agradecer, não só

pelo incentivo, mas também pelos conflitos que me fizeram crescer! Crescer sem

ressentimentos, crescer muito por dentro, crescer... crescer e crescer. Buscar o

conhecimento que só trará alento se me fizer entender: que a vida é mesmo dura,

mas tem muita formosura quando se sabe viver. Ainda nesta caminhada, conheci a

Bem-amada professora Lícia Beltrão. A ela dei o direito não só de morar em meu

peito, como em toda a dissertação. Não posso deixar de dizer, que além de uma

amiga, também achei uma mãe! No colo de Nádia Dorian, não só encontrei

camaradagem, mas acima de tudo honestidade e a explícita necessidade de sempre

querer me ver bem.

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Mas, por não ser boa de rima e, assim não poder abarcar nela todos

aqueles que comigo estiveram, continuarei da seguinte maneira, os meus

agradecimentos sinceros:

À Islana Oliveira, por ter compreendido e aceito minha intempestiva

maneira de ser e por ter me dado a oportunidade de conhecer Hildonice Batista,

hoje, amiga, revisora e espectadora atuante deste trabalho.

À Gideon, um potencial interlocutor e um amigo inestimável.

À minha turma do mestrado, por compartilhar não só saberes, mas

também sonhos, ensinando-me a conviver com as diferenças e a acreditar que a

academia não é lugar para disputas, e sim para conquistas.

À Kátia Cunha, pelo coração solidário e pela ajuda espontânea.

À Valquíria e GaL, pela atenção e disponibilidade.

À professora Theresinha Miranda, pela confiança e incentivo.

À Jamile Borges, pelas delicadas palavras e por sua presença amiga em

diferentes momentos desse trajeto acadêmico.

Aos amigos Valdíria Rocha, carinhosamente conhecida por Val, professor

João Batista, Marise, Ana Maria, Magali Brandão e Zuleica pelos momentos de

alegria e responsabilidade compartilhados, enfim, pela convivência enriquecedora e

duradoura.

À Ana Paula e Lílian Sales por terem demonstrado que a nossa amizade

independe da presença de seus amores (risos)!

Às professoras A e B, e aos estudantes queridos, por terem me acolhido e

permitido invadir seus espaços de atuação docente e discente, contribuindo,

significativamente, para a realização deste trabalho.

Às minhas amigas de graduação, Isabel, Ana Cláudia, Débora, Lôra e

Conceição. Apesar da separação, saiba que vocês sempre estiveram ao meu lado

na construção deste trabalho.

Aos mestres da Pós-graduação, pelas palavras de sabedoria e conforto:

Roberto Sidnei, Sérgio Farias, Celi Taffarel, Eulina Lordelo, Menandro Ramos, Dora

Leal, Teresinha Fróes, Bernadete Porto, Dinéa Sobral, Celma Borges, Vera Fartes,

Inês Carvalho, Mary Arapiraca e Dante Galeffi e em memória ao Professor Felippe

Serpa.

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Aos amigos e ex-funcionários da Pós-graduação da Faculdade de

Educação da UFBA, Valdinei, Iolanda e Aldair, um carinhoso abraço e um muito

obrigada por unirem, harmoniosamente e sabiamente, trabalho e amizade.

Aos amigos da Biblioteca Anísio Teixeira e aos funcionários da Faculdade

de Educação da UFBA, meus sinceros agradecimentos pela confiança e

acolhimento.

Finalmente, a todos que não mencionei e que, de alguma forma,

colaboraram na realização desta pesquisa, os meus mais profundos

agradecimentos.

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Eu quero o delírio.

Eu sou assim.

Não pretendo a integração, mas a abertura e a busca.

Encontrar pode ser impossível ou desinteressante.

Quero o pressentimento.

Quero comprimir a tecla do computador e explodir o ponto e

arquear o contorno, varando os limites que a vida há de

preencher e o sonho tornará possível.

Quero o delírio que me permita cumprir o cotidiano e amar o amor necessário —

mas que também faça as utopias virem sentar-se na minha varanda e escrever no

meu computador quando a razão estiver cansada, quando a técnica parecer frívola,

ou quando eu estiver descrente.

Lya Luft

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RESUMO

Neste estudo, buscou-se enfatizar a importância do uso de diversificados textos

escritos no âmbito escolar, tendo como justificativa o fato de que eles ocupam

grande espaço na vida diária e são frutos de necessidades e atividades sócio-

culturais. Dessa forma, entendeu-se que conhecer e discutir as funções dos gêneros

textuais em sala de aula é resgatar ferramentas sócio-históricas mediadoras,

elaboradas pela cultura humana; é proporcionar ao sujeito, em contato com essa

diversidade lingüística, a possibilidade de criar outros estilos discursivos,

contribuindo, assim, para tornar mais heterogêneas e ricas as suas produções

textuais. Nessa perspectiva, optou-se por um percurso metodológico qualitativo, via

estudo de caso de base etnográfica a partir da observação de duas turmas de

quartas séries do Ensino Fundamental I, em uma escola pública municipal da

periferia da cidade de Salvador/BA, com o objetivo de identificar tanto os gêneros

textuais utilizados em sala de aula, quanto as estratégias de leitura/aproximação

acionadas e/ou criadas pelos respectivos professores para a compreensão destes

textos por parte dos educandos. Para tal intento, esta pesquisa fez uso de

observação participante, de entrevistas semi-estruturadas com os professores e de

consulta aos cadernos de planejamento diário de aulas.

Palavras-chave: Linguagem; Texto; Gênero textual; Estratégias de leitura;

Intertextualidade.

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RESUMEN

En el estudio, se ha enfatizado la importancia del uso de diversificados textos

escritos en el ámbito escolar. Tiene como justificativa el hecho de que esos ocupan

gran espacio en la vida diária y ellos son frutos de la necesidad y actividad social y

cultural. De esta forma, se comprende que conocer y discutir las funciones de los

géneros textuales en clase escolar es resgatar las herramientas sócio-históricas

mediadoras, elaboradas por la cultura humana, es posibilitar al sujeto, en contacto

con esa diversidad lingüística; es crear otros estilos discursivos, contribuyendo, así,

para hacer más heterogeneas y ricas las producciones textuales. En esta

perspectiva, se ha elegido un percurso metodológico qualitativo, bajo estudio de

caso con base etnográfica a partir de la observación de dos clases de cuarta grado

de la ensenãnza fundamental I, en una escuela de la ciudad de Salvador/Bahia, con

el objetivo de identificar tanto los géneros textuales empleados en la clase cuanto las

estrategias de lectura/acercamiento accionadas y/o creadas por los respectivos

maestros para la comprensión de los educandos. Para alcanzar este objetivo, esta

investigación ha utilizado el uso de la observación participante, de encuesta semi

estructurada con los profesores y de una consulta a los cuadernos de planes diario

de las clases.

Palabras – clave: Lenguaje; Texto; Género textual; Estrategía de lectura;

Intertextualidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

CAPÍTULO 1: APROXIMANDO SENTIDOS: LINGUAGEM, TEXTO E INTERTEXTUALIDADE 24

1.1 LÍNGUA(GEM): POSSIBILIDADES E LIMITES CONCEITUAIS 25

1.2 O TEXTO E SUAS VARIADAS PERFORMANCES CONCEITUAIS 30

1.2.1 O texto e sua tessitura — A intertextualidade 36

1.3 O LUGAR DA APRENDIZAGEM, DO OUTRO E DO TEXTO EM VYGOTSKY E BAKHTIN. 46

1.4 AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO. 52

CAPÍTULO 2: ALINE NO PAÍS DAS ARMADILHAS 59

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA E OS PROCEDIMENTOS DE PESQUISA UTILIZADOS 60

2.1.1 Na toca do coelho – Os primeiros passos e as primeiras impressões sobre o universo de realização da pesquisa 67

2.1.2 A lagoa de lágrimas: A difícil e prazerosa construção das dimensões básicas de análise 72

CAPÍTULO 3: LENDO, VIVENCIANDO E COMPARTILHANDO CENAS DE UM COTIDIANO ESCOLAR: A QUESTÃO DA UTILIZAÇÃO DOS GÊNEROS TEXTUAIS 76

3.1 DESCRIÇÃO DO CENÁRIO 77

3.1.1 Cena 1 79

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3.1.2 Cena 2 136

4 NO MEIO DO CAMINHO...OPS!, EU CONCLUÍ... 175

REFERÊNCIAS 183

ANEXOS 192

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INTRODUÇÃO

A discussão, que se pretende encaminhar nesta dissertação sobre o uso

dos gêneros textuais na sala de aula, surgiu de uma pesquisa1 por nós realizada a

partir da (con)vivência com professores de escolas comunitárias da cidade de

Salvador/BA e estudantes de licenciaturas da Universidade Federal da Bahia –

UFBA, em sua maioria do curso de Pedagogia. Esta pesquisa estava relacionada à

leitura e formação do professor, tendo a duração de dois anos (1999-2001), e tinha

por objetivo discutir questões explícitas e implícitas de diversificados gêneros

textuais – no período da pesquisa eram denominados de “tipos textuais” - a partir do

destaque de suas estruturas temáticas gerais e específicas. Para tanto, foram

organizados, em média, três encontros semestrais, em momentos diferentes, para

ambos os grupos, perfazendo uma carga horária de vinte e quatro horas.

Durante a realização destes encontros, por nós denominados de Oficinas

de Leitura, o que pudemos perceber foram as principais dificuldades que estes

professores2 de escolas comunitárias demonstravam durante a interpretação de

variados gêneros textuais. Ou seja, os mesmos, ao se depararem com uma

multiplicidade de tipos de linguagem (linguagem apelativa, expressiva,

argumentativa, entre outras), revelavam uma limitação interpretativa, que na nossa

visão, era decorrente da restrita vivência com a variedade textual existente.

1 A pesquisa era de autoria do Prof. Dr. Miguel Angel García Bordas (FACED/UFBA), intitulada de As formas de processamento da informação e a formação do professor: um estudo sobre as estruturas textuais com estudantes das licenciaturas da Faculdade de Educação da UFBA e professores de escolas comunitárias da cidade de Salvador/BA. 2 Contávamos com aproximadamente 24 professores, que lecionavam nas primeiras séries do Ensino Fundamental. A maioria possuía o Ensino Médio Completo, embora tivéssemos casos pontuais, e não tão expressivos, de professores que não tinham formação em Magistério.

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Entretanto, consideramos que tal limitação pode ter sido também gerada por

inúmeros outros fatores, tanto de ordem econômica quanto social, os quais não

puderam ser especificados na época de realização da referida pesquisa.

Assim, à medida que realizávamos as Oficinas de Leitura, íamos, cada

vez mais, nos interrogando tanto a respeito da formação destes profissionais quanto

a respeito da sua atuação em sala de aula, no que se refere às atividades de leitura

e produção textual. Formulávamos3 questões do tipo: será que a não familiarização

destes professores com a existência dos diversos textos e suas respectivas funções

poderiam afetar a formação de leitores no âmbito escolar? Em que medida o

desconhecimento tanto estrutural quanto funcional de um texto pelo professor pode

não facilitar o seu trabalho pedagógico? Que gêneros textuais os professores mais

utilizam em sala de aula e por quê? Que relação de aproximação (estratégia de

leitura e produção textual) o professor realiza para cada gênero textual?

Podemos dizer, então, que foi a partir desta experiência e da identificação

da existência de uma literatura sobre a formação de leitores, em especial do

professor/leitor, que essa pesquisa se configurou, tendo como objetivo principal

promover uma reflexão em torno das questões consideradas essenciais sobre a

utilização dos textos no espaço escolar.

A inquietação e persistência em torno desta temática advêm da nossa

compreensão sobre a importância dos textos para a formação do sujeito leitor. Daí

considerarmos que os textos selecionados por professores e as formas de

abordagens (estratégias de leitura) utilizadas por estes podem nos dar indicações

significativas sobre:

1. QuaI leitor a escola está buscando formar;

2. Quais (des)vantagens o trabalho com textos pode gerar para a

produção textual dos estudantes, considerando-se as estratégias de leitura

utilizadas;

3. Qual a visão que a instituição escolar tem acerca da aprendizagem e

do sujeito.

Por isso, entender que a função do texto é uma questão eminentemente

social e, portanto, relacional, implica concebê-lo, no espaço escolar, como uma

linguagem vivente e dinâmica, que pode assumir múltiplas configurações

3 A pesquisa contava com duas(2) Bolsistas de Iniciação Científica e um(1) professor responsável.

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comunicativas4 e reflexivas5, a depender dos lugares e contextos em que se

encontram os interlocutores6 - podendo envolver compromissos sociais, políticos,

éticos etc. Daí considerarmos o diálogo um elemento inerente à linguagem, estando

intimamente associado ao fenômeno intertextual, na medida em que este último

busca enfatizar que toda produção textual, seja ela oral ou não, implica em já-ditos.

Desse modo, qualquer produção textual se constitui num entrelaçamento

de vários textos e/ou discursos, configurando assim, um contato do autor/leitor com

outras vozes, podendo esse processo de produção ser tanto implícito quanto

explícito. Disto decorre a nossa preocupação com relação às formas como os textos

são trabalhados na escola, pois através da nossa experiência, entendemos que o

professor, muitas vezes, por não ter uma concepção dialógica7 acerca da linguagem

e do texto, pode não compreender a funcionalidade concreta e criativamente

operante das diversas maneiras do dizer; pode não atentar para a característica

fundamental e marcante de todo discurso: sua heterogeneidade. Em nossa

perspectiva, o professor precisa compreender que toda interação se dá dentro de

um contexto sócio-histórico-ideológico8 e que a linguagem pode não só ter um

caráter de imposição, mas principalmente de disposição9, se este, como leitor, tiver

conhecimento das variadas formas de manifestação intertextual10.

Logo, este conhecimento não é, a nosso ver, responsável apenas por

uma competência enquanto leitor, mas também enquanto produtor de textos. Neste

sentido é que consideramos, como uma das hipóteses iniciais, a necessidade de se

pensar um pouco mais sobre o conceito de linguagem, língua, fala, intertextualidade

4 Aí nos remetendo à variedade de gêneros textuais disponíveis. 5 Partimos do pressuposto de que à medida que nos comunicamos, que nos expressamos, que interagimos, vamos tendo a oportunidade de reformulação e/ou ampliação de nossas idéias, pensamentos, sentimentos etc. 6 Geraldi (1996, p. 69-70) é uma ótima referência para melhor explicitar a nossa compreensão da importância de se trabalhar a diversidade textual em sala de aula, ao dizer que “Como a unidade comunicacional é o texto (que pode ser uma palavra ou uma obra completa), e como a sociedade é complexa, diferentes textos nela circulam. Cada texto é produzido no interior de um processo interlocutivo. Por isso, responde aos objetivos desse processo, é marcado pelos sujeitos nele envolvidos e pelas práticas históricas que foram se constituindo ao longo do tempo no interior de cada instituição social”. 7 Vide BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 8 Vide ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 4. ed. Campinas: Pontes, 2004. 9 A expressão “a linguagem não se impõe, ela se dispõe”, foi uma colocação da professora Lícia Beltrão na Faculdade de Educação da UFBA, em um dos nossos agradáveis diálogos durante o segundo semestre do ano de 2003. 10 Estamos nos referindo não só à variedade de gêneros textuais existentes, como também às hibridizações que são realizadas. Podemos citar como exemplo, a evolução dos textos de caráter publicitário.

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e estratégias de leitura para que possamos melhor nos debruçar sobre o que

entendemos por texto, objeto este de nossa preocupação no contexto escolar.

Emerge, assim, a urgente necessidade de inicialmente discutirmos

conceitos, em especial aqueles que diretamente estão relacionados aos textos.

Todavia, enfatizamos que as questões conceituais abordadas no primeiro capítulo

não são construções rígidas e idéias solidificadas, mas apenas reflexões tanto sobre

o texto e os múltiplos elementos constitutivos de sua criação, decorrentes da análise

da linguagem e o seu processo de interação sócio-discursiva, quanto das suas

(in)utilidades no espaço escolar.

Centrando-nos agora numa análise de âmbito mais macrossocial do que

local, vemos que é comum, em nosso país, ouvir a afirmação de que nossos

professores e educandos lêem e escrevem mal. Em função disso, vários estudos

são freqüentemente realizados e tocam em pontos dos mais diversos para explicar a

origem catastrófica da (de)formação desses cidadãos. Alguns pesquisadores

enveredam pelo caminho da história da leitura no Brasil, outros das políticas

públicas de educação e, também, das condições sócio-econômicas e culturais

excludentes de nosso país. O fato é que o(s) problema(s) quanto à leitura e à escrita

ainda persiste(m), apesar das grandes contribuições dos pesquisadores.

Recentemente, também devido à gravidade que se vinha notando em

relação à leitura e à escrita deficiente de nossos educandos, foi criado no ano de

1996 os PCN11 – Parâmetros Curriculares Nacionais - os quais não se

caracterizavam como uma exigência metodológica de ensino, mas sim como uma

proposta pedagógica pautada nas reformulações educacionais sancionadas pela Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/96. Tanto os PCN quanto

a LDB enfatizaram a preparação de um cidadão capaz de exercer de forma

consciente e autônoma seus vários papéis na sociedade – o de consumidor, fiscal,

eleitor, dentre outros. Contudo, tal preparação do cidadão, a nosso ver, dependeria,

e ainda depende, do desempenho do estudante com a linguagem, isto é, do

conhecimento das estratégias de leitura e produção de textos a partir de suas

funcionalidades dialógicas. Interessante destacar que os próprios PCN reportaram-

se à década de 80 para enfatizar as discussões travadas em relação ao ensino da

11 Neste caso, nos remetemos mais especificamente aos PCN de Língua Portuguesa.

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Língua Portuguesa – já que esta disciplina foi considerada chave para impulsionar a

melhoria da qualidade de ensino no Brasil. Daí a ressalva de que:

[...] No Ensino Fundamental, o eixo da discussão no que se refere ao fracasso escolar tem sido a questão da leitura e da escrita. Sabe-se que até bem recentemente, os índices brasileiros de repetência nas séries iniciais – inaceitáveis mesmo em países muito mais pobres – estão diretamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever. Essa dificuldade expressava-se com clareza nos dois gargalos em que se concentrava a maior parte da repetência: no fim da primeira série (ou mesmo das duas primeiras) e na quinta série. No primeiro, por dificuldade em alfabetizar; no segundo, por não conseguir garantir o uso eficaz da linguagem, condição para que os alunos possam continuar a progredir até, pelo menos, o fim da oitava série.

Por outro lado, a dificuldade dos alunos universitários em compreender os textos propostos para a leitura e organizar idéias por escrito de forma legível levou a universidade a trocar os testes de múltipla escolha dos exames vestibulares por questões dissertativas e não só aumentar o peso da prova de redação na nota final como também a dar-lhe um tratamento praticamente eliminatório12. (BRASIL, 1997, p. 19)

No entanto, a distribuição e divulgação dos PCN nas escolas públicas

brasileiras, assim como suas preocupações com relação ao trabalho docente no que

se refere ao uso de textos, não tiveram o efeito desejado, e o que ficou explícito,

também, dessa ilusória conquista por uma educação básica comprometida com a

formação de cidadãos autônomos e, por conseguinte, mais críticos e atuantes foi,

mais uma vez, um despreparo do professor frente ao entendimento desses

referenciais curriculares.

Mas, apesar das dificuldades apresentadas pelos professores em relação

aos PCN, estes se configuravam, nacionalmente e também academicamente, como

formas inovadoras do pensar e do agir no contexto escolar. Era a busca pela

melhoria pedagógica, pela revalorização da função docente e pela formação integral

dos discentes. Formação esta pautada na construção e não na reprodução do

conhecimento. Todavia, especialmente para o professor, os PCN pareciam se

constituir em ações pedagógicas imediatas, do ponto de vista de resultados na

formação dos educandos, mas insuficientes para dar conta de sua própria formação,

12 Medidas essas que, a nosso ver, não atuaram na origem do problema, apenas nos deram indícios de como a leitura e a escrita eram, e ainda são, vistas e trabalhadas nas escolas.

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em particular, no que dizia respeito ao trabalho com textos, já que estes foram, em

sua maioria, formados por métodos tradicionais de ensino que utilizavam atividades

de leitura e produção textual descontextualizadas, assim como a fragmentada

seqüência de alfabetização: letras x sílabas x palavras x frases x texto.

Paralelo a isso, nós podemos dizer que essa visão equivocada e

descontextualizada de leitura pelos professores provém, em grande medida, da

presença de atividades mecânicas e repetitivas com textos no espaço escolar, as

quais são realizadas apenas na tentativa de que o sujeito desvende os sentidos que

cada autor teria dado quando escreveu o texto, e/ou que venha a apreciá-lo apenas

do ponto de vista dos conceitos gramaticais. O que existe é uma dificuldade em

entender o leitor como um sujeito-ativo de construção de significados e o texto como

“[...] uma atividade de recriação do que é omitido, de preenchimento de lacunas, de

desvendamento do que se oculta nos interstícios do tecido textual”. 13 (BRANDÃO,

MICHELITTI, 1997, p.19-20). A escola vem carregando a maior parcela de culpa

pela formação deficiente14 de leitores e escritores, simplesmente pelo fato de

considerar o texto apenas como um pretexto para a aquisição de habilidades

gramaticais e para avaliações constantes de conteúdos. Isto significa dizer que a

escola peca ao não orientar os estudantes para leituras que lhes permitam interagir

com o texto, relacionando-o com o seu conhecimento de mundo; pois, de acordo

com Eco (1979 apud BRANDÃO; MICHELETTI, 1997, p. 18), a compreensão de um

texto nunca poderá se constituir numa ação passiva, pois quem escreve, o faz

pensando no leitor, seja ele empírico ou não. Em síntese, um texto busca sempre

alguém que possa fazê-lo funcionar. E fazer um texto funcionar implica em que

ocorra um entendimento do leitor acerca das possíveis estratégias utilizáveis na

produção de certos gêneros textuais. O leitor, por exemplo, deve observar que há

vários discursos, como os de caráter literário, que fazem com que as palavras no

texto tenham efeitos de sentido, aumentando a carga expressiva e semântica, em

13 Vale destacar que esta dita lacuna textual deve ser compreendida como um espaço no qual se instala a intersubjetividade, ou seja, “[...] o texto é tomado não enquanto fechado em si mesmo (produto finito), mas enquanto constituído pela relação de interação que, por sua vez, ele mesmo instala”.(Orlandi, p. 50 apud Barzotto,1999) 14 Por outro lado é bom considerarmos que, embora a leitura não esteja sendo uma ação agradável para os estudantes, ela também é limitada entre os professores por motivos dos mais diversos: baixo salário para aquisição de livros, pouco tempo para dedicar-se aos estudos, investimento insuficiente em cursos que se preocupem com a construção coletiva de idéias a partir da troca de experiências entre os docentes, dentre outros motivos.

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uma ou várias direções significativas, como já ressaltaram Brandão e Michelitti

(1997). Daí ser válido destacar que ao se ler um determinado texto é necessário

conhecer o tipo de linguagem que este utiliza para comunicar algo (linguagem

apelativa, expressiva, argumentativa etc.), assim como as estratégias das quais o

autor lança mão para causar no leitor os efeitos desejados. Por exemplo, o leitor, ao

se deparar com o gênero textual notícia jornalística e identificar o tipo de linguagem

utilizada neste, terá, na nossa perspectiva, maiores condições de perceber as

diferentes formas de interferência de quem escreve o referido texto, atentando assim

para a veracidade ou não dos fatos descritos.

Por isso é que insistimos em explicitar que a instituição escolar deve ser

tomada como mais um importante elemento possibilitador da formação de leitores,

pois em sua instância pode viabilizar o contato destes com gêneros textuais variados

e não se deter apenas a uma modalidade - a exemplo da leitura literária que,

segundo Lajolo (2002), tornou-se comum e privilegiada no âmbito escolar. Esta

autora enfatiza:

[...] se a leitura literária é uma modalidade de leitura, cumpre não esquecer que há outras, e que essas outras desfrutam inclusive de maior trânsito social. Cumpre lembrar também que a competência nessas outras modalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderia chamar de capital cultural de uma sociedade e, consequentemente, responsável pelo grau de cidadania de que desfruta o cidadão.(LAJOLO, 2002, p. 105)

Toda essa discussão nos remete aos estudos realizados por Bakhtin

sobre o papel inerentemente dialógico e interativo da linguagem, bem como às

colocações referentes às teorias da aprendizagem, em especial do teórico Vygotsky,

as quais retomaremos mais adiante. Mas gostaríamos de deixar claro que o texto

deve ser visto na sua dimensão discursiva; isso significa dizer que, ao se trabalhar

com textos em sala de aula, precisamos nos centrar no processo de interlocução15,

sendo esse o pressuposto da corrente sócio-interacionista. Dito de outra forma:

15 Centrar-se no processo de interlocução significa compreender que dispomos de amplos e contínuos espaços/formas de ação e reação pela linguagem. Ou seja, é através dela e por ela que criamos e ampliamos o nosso dizer, o nosso pensar, o nosso sentir... Que vivenciamos a complexa e incessante incompletude da nossa existência relacional na medida em que não só internalizamos os tradicionais recursos expressivos como também tentamos criar novas categorias de compreensão/leitura do mundo, do outro e de nós mesmos.

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19

Uma abordagem que privilegie a interação não pode estudar o texto de forma indiferenciada, em que, qualquer que seja o texto, vale o mesmo modo de aproximação. Uma abordagem que privilegie a interação deve reconhecer tipos diferentes de textos, com diferentes formas de textualização, visando a diferentes situações de interlocução. (BRANDÃO, 2001, p. 18 apud CHIAPPINI, 2001)

Quanto ao porquê de uma classificação dos diversos textos em gêneros,

bem como uma tipologização desses, consideramos coerente a argumentação de

Brandão (2001, p. 19-200) ao dizer que toda classificação tem por objetivo uma

organização como forma de compreensão e que toda área do conhecimento busca

um status científico. Com isso, não estamos aqui tomando as classificações de

textos como exaustivas, mas apenas entendendo-as como criações que devem ser

flexíveis e coerentes com o processo de interlocução. Ou melhor, devem sempre

estar de acordo com o contexto sócio-histórico que deu configuração aos gêneros

textuais.

Nessa direção, Brandão (2001) menciona os estruturalistas como sendo

os responsáveis pela forma classificatória. Em decorrência, cita o trabalho crítico de

Barthes (1984) em Le bruissement de la langue como um suporte argumentativo

para essa questão:

O estruturalismo, em virtude de seu método, dá uma atenção especial às classificações, às ordens, aos agenciamentos: seu objetivo essencial é a taxionomia ou modelo distributivo que se impõe fatalmente para toda obra humana, instituição ou livro, pois não há cultura sem classificação; ora, o discurso, ou conjunto de palavras superior à frase, tem suas formas de organização: ele é também classificação e classificação significante; sobre este ponto, o estruturalismo literário tem um ancestral de prestígio, cujo papel histórico é em geral subestimado ou desacreditado por razões ideológicas: a Retórica, esforço de toda uma cultura para analisar e classificar as formas da fala, tornar inteligível o mundo da linguagem. (BARTHES, 1984, p. 16 apud BRANDÃO, 2001, p. 20)

No entanto, esta autora entende que tal corrente não deixa margem, em

suas classificações, ao caráter heterogêneo dos discursos, assumindo polarizações

e normatizações que desconsideram o contexto e a historicidade dos mesmos - ao

contrário dos formalistas russos que já atentavam para as fragilidades impostas por

modelos tão rígidos. Em outras palavras, ao adotarmos qualquer critério de

classificação sempre cairemos num etnocentrismo, embora saibamos que a

classificação é continuamente aperfeiçoada em decorrência do nosso avanço

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20

perceptual, envolvendo certa dose de intuição e, conseqüentemente, de

subjetividade, não alcançando, portanto, uma única forma.

Observamos que ler e discutir a função dos diversos gêneros textuais em

sala de aula, atentando para suas construções e tipologias subjacentes, não implica

concebê-los como formas padronizadas e homogêneas de escrita, já que a

classificação desses, enquanto tal, não tem a pretensão de instaurar, no trabalho

com textos no espaço escolar, um tipo de escrita dura e uniforme pelos educandos,

mas sim uma escrita híbrida, justamente pela possibilidade desses sujeitos estarem

em contato com estruturas textuais e lingüísticas variadas.

O que se deve questionar, portanto, é o modo como os gêneros textuais

são vistos e trabalhados pelo professor. Nessa linha, a discussão trazida por Bakhtin

sobre forças centrípetas e forças centrífugas se revela pertinente, já que apresenta

uma estabilidade relativa dos gêneros textuais. Disto decorre um posicionamento de

Brandão (2001, p. 38) pertinente e similar à de Bakhtin, ao mencionar que:

[...] uma notícia x um texto literário, em que, na primeira, a quase fixidez dos seus elementos constitutivos torna esse gênero mais estável: há que se ter sempre um quem, o quê, o como, o porquê, o quando, o onde.

O professor tem, desse modo, que estar atento para essa dupla face que o gênero apresenta: forças de concentração atuando ao lado de forças de expansão. Pois é a concentração que vai garantir, pela estabilidade do sistema, a economia nas relações de comunicação e a intercompreensão entre os falantes, e é a expansão que vai possibilitar a variabilidade desse sistema com a criação, a inovação, e conseqüentemente inscrição do sujeito na linguagem com seu idioleto, seu estilo.

Dito de outra forma, a força de expansão (força centrífuga) decorre do

conhecimento abrangente, pelo sujeito, da força de concentração (força centrípeta)

sendo, no entanto, a primeira responsável pelas riquezas lingüística e textual

provenientes da interação criativa dos educandos com a diversidade de gêneros

textuais e com outros sujeitos.

Torna-se ainda fundamental reforçar que o uso de textos no âmbito

escolar é o foco dessa discussão, justamente pela importância que esses têm na

sociedade: são construções históricas constitutivas da interação social. Visto que a

evolução de uma comunidade, embora não esteja diretamente relacionada aos

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textos escritos, está situada no campo da comunicação16. A forma como

interagimos, aperfeiçoando o processo comunicativo na busca mais eficaz de

resolução de nossos problemas, consiste, justamente, nos recursos lingüísticos que

utilizamos para nos comunicar, sejam eles provenientes da oralidade e/ou da escrita.

Dessa forma é que os textos e suas diversas manifestações estéticas (gêneros

textuais) são valorizados socialmente, pois abrem espaços de interlocuções mais

efetivos, possibilitando um elo mais estreito entre o que pensamos e de que maneira

podemos expressar tal pensamento.

Por outro lado, podemos verificar no uso de determinados gêneros

textuais não só a evolução da sociabilidade como também as manifestações de

poder que estes trazem em suas estruturas. Muitas formas textuais são criadas

tendo por base uma comunicação hierárquica, que traz em si não só a

funcionalidade do partilhar a mensagem, mas de impô-la. Portanto, observar e

dialogar sobre o modo como o professor vê e vivencia o texto, foi aqui tomado como

foco-chave deste estudo que configuramos como um estudo de caso de base

etnográfica, já que direcionamos nosso olhar para a escola, em especial duas

turmas de quarta série17 do Ensino Fundamental.

Lembramos ainda que há um constante interesse e muitas produções

acadêmicas sobre a utilização dos gêneros textuais na escola, não sendo possível,

nesta pesquisa, abordarmos esse campo do conhecimento em sua totalidade. Logo,

não se pretendeu aqui estabelecer generalizações e grandes aprofundamentos

teóricos, já que o tempo e os recursos foram limitados. Mas tentamos, dentro do

prazo estabelecido a uma pesquisa de mestrado, descrever e analisar o que foi

possível apreender sobre o uso dos textos no espaço escolar. Para podermos

construir este percurso investigativo, tentamos delinear uma pesquisa qualitativa que

teve por finalidade ressaltar não só a dimensão humana dos sujeitos envolvidos,

mas também as questões políticas e sociais que circularam o contexto estudado.

16 É bom deixar claro ao leitor que quando falamos em comunicação não estamos nos dirigindo apenas a um outro externo a nós, mas também a uma comunicação com nós mesmos, o que significa dizer que a linguagem e suas diversas instâncias textuais produzem em nós uma comunicação interna que nos constitui e que nesta constituição se (re)cria outros espaços de interlocução. 17 A escola escolhida para o desenvolvimento da pesquisa contava apenas com três salas de quarta série, sendo uma delas de aceleração. A referida série é foco desta pesquisa por ser, legalmente, o último ano da primeira etapa do Ensino Fundamental em que o estudante deixará de contar com um único professor (caso não seja reprovado) e passará não só a ter vários professores como também uma diversidade maior de disciplinas. Daí a expectativa de que a partir da 5ª série o contato com linguagens diferenciadas seja mais intenso, devido ao leque de disciplinas e professores.

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Importante destacar, também, que após a configuração empírica desta

dissertação surgiram diferentes modos de olhar, pensar e sentir o objeto ora

investigado, demonstrando ser complexa e insensata a consolidação de certas

posturas reducionistas. Como estamos nos remetendo ao estudo da linguagem,

inevitável o uso de certas expressões que podem demonstrar tal postura. Mas, como

bem frisou a professora Lícia Beltrão em um seminário18, “o sujeito é assujeitado,

mas não alienado”. O que significa dizer que estamos conscientes de que a língua,

ainda mais a escrita, não dá conta de englobar nossas constantes reflexões.

Entretanto, estamos cientes desta incompletude existente entre linguagem e

pensamento, portanto podemos nos considerar apenas sujeitos assujeitados e não

alienados.

Antes, entretanto, de adentrarmos pela análise qualitativa do uso de

textos no espaço escolar pesquisado, fez-se necessário a construção de um

capítulo, denominado de Aproximando sentidos: linguagem, texto e

intertextualidade, para tentar descrever o que entendemos por língua(gem), texto,

intertextualidade, estratégias de leitura e aprendizagem, tendo como referência

Bagno, Marcushi, Weedwood, Borges Neto, Geraldi, Koch, Fávero, Solé, Orlandi,

Bakhtin, Vygotsky, dentre outros. Este capítulo busca também explicitar nossas

bases teóricas, as quais direcionaram toda a nossa construção analítica sobre a

utilização de gêneros textuais em sala de aula.

O capítulo segundo, intitulado de Aline no país das armadilhas –

considerações sobre a metodologia e os procedimentos de pesquisa utilizados19,

inicia-se com o entendimento que temos sobre o que seja uma abordagem

qualitativa, exemplificando as técnicas que selecionamos para a realização desta

pesquisa. A partir daí, tentamos trazer, ainda que sucintamente, a conclusão da

pesquisa, já que extraímos e descrevemos dimensões básicas de análise.

No terceiro e último capítulo, Lendo, vivenciando e compartilhando

cenas de um cotidiano escolar: a questão da utilização dos gêneros textuais,

buscamos analisar as aulas de duas professoras de quartas séries do Ensino

18 Seminário O registro na formação do professor, organizado pelo programa de Formação de Professores de Irecê da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em 31 de julho de 2004. 19

A parte metodológica da pesquisa se baseia na história de Alice no país das maravilhas, trazendo ainda personagens nacional e regional, como Emília e Carolina, respectivamente.

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Fundamental da rede pública municipal da cidade de Salvador/BA, quanto à

utilização de textos e estratégias de leitura. Durante toda a descrição analítica,

substituímos os nomes de ambas as professoras por Professora A e Professora B.

Neste capítulo, a dinâmica encontrada é: a) breve apresentação da cena a que nos

referimos (atuação docente da Professora A e Professora B); b) introdução de diário

de campo, relatando aulas das respectivas professoras e, por fim, comentários sobre

esses mesmos diários.

Na conclusão, retomamos as dimensões básicas de análise, já

mencionadas na parte metodológica, aprofundando reflexões.

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____________________CAPÍTULO 1____________________

APROXIMANDO SENTIDOS: LINGUAGEM, TEXTO E

INTERTEXTUALIDADE

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1.1 LÍNGUA(GEM): POSSIBILIDADES E LIMITES CONCEITUAIS

[...] “a língua”, como “uma essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ele é parte integrante. Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato – “a língua” – para um plano concreto – os falantes da língua. (BAGNO, 2003, p. 18-19)

O objetivo de comentar sobre os conceitos de língua e linguagem provém

do entendimento de que os textos são eventos sócio-discursivos decorrentes da

necessidade de o indivíduo poder se comunicar, expressar e interagir com outros

indivíduos e com o meio. Para tanto, os textos são manifestações lingüísticas

reveladoras de criativas formas do dizer, pois ao mesmo tempo em que a linguagem

referenda objetos, seres, acontecimentos etc, ela também os cria, expandindo a

nossa capacidade de reflexão e ação. Esta capacidade pode ser vista observando a

variedade de gêneros textuais existentes. Mas, para entender o significado que

damos aos textos, bem como analisar os seus usos no contexto escolar, é

imprescindível apresentar o que entendemos por língua(gem) e seus elementos

constitutivos.

A distinção entre língua e linguagem já não parece se constituir num

problema teórico conceitual merecedor de grande atenção, mas o fato é que as

discussões em relação a estes termos, que semanticamente e ideologicamente não

abarcam os sentidos desejados e adequados à classificação de ambas, ainda

persistem. Com isso, consideramos pertinente introduzir um sintético resumo do

percurso da Lingüística na discussão sobre a temática.

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Inicialmente, cabe ressaltar que a Lingüística ganhou um status de

ciência20 a partir das discussões travadas por Ferdinand de Saussure, em seu Curso

de Lingüística Geral (1916). Saussure considerou a língua como objeto básico de

estudo da Lingüística, por esta ser, na compreensão de Cardoso (2003), uma

instância objetiva da linguagem constituída de signos lingüísticos, socialmente

reconhecidos por todos os membros de uma determinada comunidade. Quanto à

fala, por ser um ato lingüístico subjetivo e depender da vontade humana, não é

passível de sistematização; o que significa dizer que ela é de caráter individual, não

estando sujeita ao princípio de classificação. Já a língua, apesar de se constituir

como fenômeno social, é externa ao sujeito, não podendo este modificá-la, apenas

fixá-la e sistematizá-la a partir de uma combinação finita de regras gramaticais.

Saussure, segundo Weedwood (2002), deteve seu estudo no campo

sincrônico da língua (langue), focalizando-se em suas regras de combinação e

voltando-se para as unidades básicas constitutivas do sistema da linguagem. Por

priorizar a língua e submetê-la a uma estrutura sistêmica, isolando seus elementos

constitutivos, Saussure deu início à linha estruturalista (WEEDWOOD, 2002). Para

ele, a língua era vista como um conjunto de códigos comuns a todos que a

partilhavam, sendo que as oscilações e/ou variações lingüísticas de caráter

individual contidas na fala em nada afetariam a estrutura desta língua padrão. Tal

especificidade é comentada por Matencio (1994, p. 69): “se o autor (Saussure)21

contempla a língua como um fato social, em contrapartida não concede um lugar ao

sujeito falante [...], a estrutura lingüística é concebida como uma representação

coletiva que tem poder coercitivo sobre o falante”.

Nessa perspectiva, os estruturalistas22 operaram distinções entre língua e

linguagem ao considerarem a primeira como um conjunto de enunciados

característicos de cada comunidade, tendo como espaço de manifestação concreta

a fala; e a segunda como a capacidade de comunicação e expressão que possui

várias instâncias de materialização, a qual englobaria a própria língua. Assim, é

justamente pelo fato de a linguagem possuir uma versatilidade, uma 20 Essa afirmação pode ser verificada em autores como Orlandi (1986), Weedwood (2002), Cardoso (2003), entre outros. 21 Parênteses nosso. 22 O estruturalismo não é uma teoria isolada que tem formulações e procedimentos sincrônicos, mas um fenômeno abrangente que está presente em múltiplas tendências do pensamento. Para maiores esclarecimentos, vide WEEDWOOD, Barbara. História concisa da Lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

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heterogeneidade, que engloba apresentações de ordem física e psicológica, que ela

não poderia ser considerada objeto da Lingüística.

Dessa abordagem estruturalista houve uma maior expansão de conceitos

sobre língua, fala e linguagem23, em especial pelos lingüistas contemporâneos. No

entanto, uma das maiores contribuições para a Lingüística atual provém das idéias

do pensador russo Mikhail Bakhtin, tendo suas idéias influenciado as pesquisas no

ocidente somente a partir da década de 70, segundo Cardoso (2003). Bakhtin, ao

contrário de Saussure, deteve-se aos estudos contextuais de produção dos

discursos. A língua era vista por ele a partir da interação social, a qual geraria um

discurso vivo que não poderia ser caracterizado como um sistema fechado e limitado

à combinação de regras. Daí a concepção de que existem várias formas de dizer a

mesma coisa, por isso a linguagem, em geral, pode ser tanto de natureza verbal (a

fala) quanto não-verbal (os sinais, a dança, a arte etc.).

Por exemplo, o lingüista Borges Neto (2003) busca em suas reflexões

subordinar a língua ao idioleto, sendo este último proveniente das relações sociais

que o indivíduo estabelece desde o seu nascimento. Por isso, o idioleto não pode

ser definido a priori, pois é algo singular, particular, circunstancial e imprevisível. A

língua, que é comumente carregada de nomeações – língua portuguesa, língua

inglesa, língua alemã etc. - é apenas um status ideológico24 de territorialização. O

que na realidade é construído e permanece caracterizável em termos de

identificação, mas não caracterizável em termos de classificação hierárquica, é o

idioleto. Segundo Neto (2003, p. 38), o idioleto é “[...] uma manifestação do

conhecimento que cada um de nós tem sobre essa forma de organização mental de

conteúdos, de comunicação e de ação sobre outros, de representação de situações

etc., que se convencionou chamar de linguagem”.

Compartilhando, em certa medida, desta concepção e distinção entre

língua e linguagem está o doutor em Lingüística João Wanderley Geraldi (2003).

Pare ele, a língua além de ser proveniente das condições de trabalho de

determinada comunidade demarcada por um contexto histórico e social, também se

23 Vide CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Discurso e ensino. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 24 Podemos ver a manutenção de certo status ideológico e territorializado a partir do estudo de gêneros textuais. Há formas escritas que devem ser respeitadas dentro de certos âmbitos sociais, isto é, a comunicação só será aceita tendo em vista este padrão escrito historicamente e socialmente determinado.

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constituí em uma organização sempre flexível, aberta. Ou seja, ao mesmo tempo em

que é determinada pelas relações sociais, passa a adquirir neste jogo de inter-

relações uma estabilidade partilhada entre os sujeitos, gerando uma instabilidade

ocasionada a partir deste partilhar da língua que sempre é conflitivo por ser

interativo. A linguagem, desse modo, é definida como esse espaço de conflitos

geradores de subjetividades e múltiplas identidades que constituem o pensamento

humano e que por este último – o pensamento — é também constituída, criada.

Uma outra colocação que consideramos bastante pertinente e sintética

em relação à diferenciação dos dois termos aqui dispostos é a realizada por Luiz

Antonio Marcuschi (2003), que considera a linguagem como sendo uma faculdade

mental – valendo-se da teoria de Chomsky - localizada no cérebro. Esta faculdade,

que é própria da espécie humana, traz em si uma exteriorização de sua organização

– a língua, que seria a língua portuguesa, inglesa etc. Ou seja, “[...] a linguagem

seria uma faculdade mental [...] que permite a atividade simbólica e a ação

intersubjetiva [...] e a língua é uma das formas assumidas por essa faculdade no seu

exercício cotidiano do ponto de vista social e histórico“ (MARCUSCHI, 2003, p.132-

133).

A linguagem seria, então, inerente à formação estrutural de toda espécie

animal, sendo a língua um construto social, histórico e pessoal específico da raça

humana. Todavia, esta alta capacidade cognitiva denominada de linguagem possui

variadas formas de materialização, sendo possível apenas aos seres humanos.

Quanto à fala, ela insere-se nesse jogo representacional que o homem realiza para

comunicar-se consigo, com os outros e com o mundo, sendo um recurso biológico

que ganha sentido e função a partir da socialização de sentidos entre os sujeitos.

Sem desconsiderar as diversas outras manifestações da linguagem, já

anteriormente citadas, a fala é, sem dúvida, o recurso concreto mais direto e rápido

de comunicação entre sujeitos que compartilham de similares repertórios simbólicos.

Assim, pensamos que em virtude das grandes discussões travadas em torno do que

seja linguagem, língua e fala, deveríamos precisar as três principais concepções

evolutivas da Lingüística, também realizada por Koch (1997), sobre o que seja

língua remetendo-nos, também, para o entendimento do que seja texto e a função

do leitor nesse contexto.

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A primeira concepção, proveniente da gramática tradicional com raízes na

filosofia grega, entende a língua como expressão do pensamento, sendo o texto

tomado como um produto lógico do pensamento e o leitor como um sujeito passivo

que tem por função captar as intenções do autor.

A segunda concepção – dos estruturalistas25 – vê a língua como código,

ou seja, apenas como um instrumento de comunicação. Nesta, o sujeito é apenas

um decodificador. Ao leitor, cabe a função de conhecer o código lingüístico para que

o texto possa ser mostrado em sua totalidade, ou melhor, seja visível e passível de

entendimento. De acordo com o maior representante desta linha – Ferdinand de

Saussure -, a língua, apesar de ser um fato social concebido por uma coletividade, é

um sistema fechado e estruturado não sendo possível ao sujeito transformar tal

sistema, já que cada indivíduo detém apenas uma parte do mesmo.

A terceira e última concepção26 concebe a língua como construção social,

tendo como elementos norteadores a dialogia e a interação. Nesta, o sujeito não é

considerado um leitor passivo, nem mero decodificador, mas um a(u)tor e construtor

social, sendo o texto o local de interações dialogantes. Esta concepção sócio-

interacionista e/ou sócio-histórica considera que o texto abre espaço para uma

variedade de sentidos; sentidos estes construídos a partir da interação estabelecida

entre texto e sujeito, envolvendo um amplo campo de saberes (conhecimentos

enciclopédicos, lingüísticos, conceituais, temáticos, dentre outros).

Mas, todo este percurso leva-nos a algumas indagações: o que toda essa

discussão sobre a linguagem e seus elementos constitutivos – língua e fala — tem a

ver com a maneira como os professores tratam os textos no espaço escolar? Por

que uma preocupação em torno dos conceitos de linguagem, língua e fala, valendo-

se de um sucinto apanhado histórico da Lingüística, deve ser aqui discutida, quando

a nossa preocupação deveria ser com o dito fracasso escolar em relação à leitura e

25 Vale aqui destacar que o estruturalismo possuía duas vertentes: o estruturalismo norte-americano (que se desenvolveu a partir do final do século XIX) e o estruturalismo europeu (desenvolvido, mais especificamente, por Ferdinand de Saussure em 1916 com a publicação de seu Curso de Lingüística Geral). O primeiro tinha como interesse descrever cerca de mil línguas indígenas que tendiam ao desaparecimento, enquanto que o segundo procurava traçar pesquisas que pudessem instituir as ciências humanas tendo como objetivo contrapor-se às idéias marxistas. Todavia, tanto um quanto o outro enfatizavam “[...] a incomparabilidade estrutural das línguas individuais”.(WEEDWOOD, 2002, p. 129) 26 Os principais autores da linha sócio-interacionista, sendo esta a mais conceituada atualmente, são Bakhtin, Vygotsky, Orlandi, Geraldi, dentre outros.

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escrita dos nossos educandos? Que textos os professores vêm utilizando e quais

questões eles enfatizam nas atividades que realizam em classe para que as

dificuldades de leitura e escrita ainda continuem existindo? Um estudo sobre a

concepção que os professores têm acerca da linguagem é essencial para se traçar,

ainda que de forma embrionária, um possível diagnóstico acerca desse fracasso? E

o fracasso realmente existe ou o que existe e persiste é uma visão reducionista do

educador sobre o que seja texto e seus modos de funcionamento, assim como uma

dificuldade em entender e/ou enfrentar as variações lingüísticas?

Todos esses questionamentos tiveram por finalidade nos cutucar durante

nossa estada no território da sala de aula, pois ao tentarmos apreender a dinâmica

das atividades com textos e suas possíveis implicações para ato de ler e o ato de

escrever foi fundamental irmos, paralelamente, delineando nossas reflexões sobre

texto, linguagem, estratégias de leitura entre outras temáticas, mesmo que isso

implicasse numa alteração significativa da nossa rota de pensamento.

1.2 O TEXTO E SUAS VARIADAS PERFORMANCES CONCEITUAIS

Em relação ao conceito de texto, observamos que o referido termo vem

sofrendo várias modificações sobre a ótica de teóricos da área da Lingüística

Textual; no entanto, não temos uma definição única e acabada sobre o mesmo, mas

já trilhamos um percurso que nos leva a entendê-lo numa visão mais dialógica, ou

seja, percebendo-o como um produto histórico-social que admite uma multiplicidade

de leituras que ensejam desafios permanentes ao leitor. Aliás, essa definição está

bastante atrelada à concepção de língua, linguagem e fala já discutida

anteriormente.

A partir dessas colocações, o conceito de texto, de acordo com as

modernas teorias lingüísticas, pode ser entendido de maneira mais abrangente, na

qual dois aspectos devem ser considerados: o primeiro numa perspectiva lingüística;

o segundo se estende para outras linguagens além da verbal, a qual envolve uma

variedade de estilos de texto: texto verbal, texto visual, texto verbal e visual, texto

musical, texto cinematográfico, texto pictórico, entre outros27; que neste último caso

27Disponível em: <http://www. acd.ufrj.br. > Acesso em: 22 de jul. de 2001

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é considerado o foco de estudo da semiótica, tendo em vista que a mesma é

entendida como a ciência de toda e qualquer linguagem.

A semiótica, segundo Barros (2001), busca explicitar o significado do

texto tanto a partir do que este procura dizer - o quê -, quanto das formas que utiliza

para dizer - o como. Ou seja, parte de uma perspectiva do texto enquanto objeto de

significação, pelo qual se procura analisar a organização e estruturação deste, a fim

de torná-lo um todo de sentido, enquanto objeto de comunicação, pelo qual se

examinam, também, os fatores contextuais ou sócio-históricos que lhe deram

sentido.

Segundo Barreto (2001), o percurso do texto parte, inicialmente, da

transformação da escrita. A autora comenta que na época moderna, a escrita

passou por três processos de transformação:

O primeiro foi à técnica, que surgiu com a chegada da imprensa28 e que

favoreceu uma maior circulação dos livros, já que estes, até então, eram escritos e

copiados à mão. Mas, de acordo com a referida autora:

[...] o livro copiado à mão continuou a conviver com o livro impresso. E a invenção da imprensa não teve influência direta no longo processo de passagem da leitura oralizada, fundamental para a compreensão do sentido, para uma leitura silenciosa e visual, mais rápida e ágil, interiorizada. (BARRETO, 2001, p. 40)

O segundo processo de transformação adveio com a leitura extensiva, a

qual se seguiu a leitura intensiva. A primeira assinala um leitor que interage com o

texto à medida que o lê com paixão, fluência e construindo produções escritas com

grande criticidade. Já o segundo leitor – leitura intensiva –, atém-se apenas aos

aspectos de decodificação do texto, os quais eram, na maioria das vezes, relidos

com o objetivo de memorização.

O terceiro e último processo, até então conhecido, são os textos

eletrônicos que, além da rapidez com que chegam aos leitores extensivos e/ou

intensivos, dão-lhes a possibilidade de manipulá-los como bem desejarem. Mas,

sabemos que os textos eletrônicos, em especial no Brasil, estão à disposição de um

número bastante reduzido de leitores e/ou decodificadores.

28 Invenção de Goutenberg.

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É importante pontuar, ainda, que a preocupação com o estudo do texto

surgiu com a Lingüística Textual, haja vista as divergências suscitadas por diversas

correntes desta linha no que diz respeito ao conceito do mesmo. A Lingüística

Textual começou a se desenvolver na Europa e, em especial, na Alemanha, na

década de 60, constituindo-se como um novo ramo da Lingüística, mas tomando o

texto como unidade de análise. Segundo Fávero e Koch (2000, p. 11-12), o termo

Lingüístico Textual, no sentido que atualmente lhe é atribuído, foi empregado pela

primeira vez por Weinrich (1966 1967); no entanto, é válido ressaltar que, devido às

divergências quanto à concepção de texto pelas variadas correntes da Lingüística

Textual, esta recebeu denominações diversas, tais como: Análise transfrástica e

gramática de texto, Textologia (Harweg), Teoria de texto (Schmidt), TransLingüística

(Barthes), Hipersintaxe (Palek), Teoria da estrutura do texto (Petöfi), entre outras.

Desse modo, considerando a diversidade de conceitos sobre texto e a diferenciação

que alguns autores estabelecem entre texto e discurso, preferimos caminhar ao lado

da seguinte definição:

[...] texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. Em se tratando da linguagem verbal, temos o discurso, atividade comunicativa de um falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor (ou por este e seu interlocutor, no caso do diálogo) e o evento de sua enunciação. O discurso é manifestado, lingüisticamente, por meio de textos (em sentido estrito). Nesse sentido, o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão. Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto – os critérios ou padrões de textualidade, entre os quais merecem destaque especial à coesão e a coerência. (FÁVERO e KOCH, 2000, p. 25)

Outra importante referência para exemplificar o que seja texto é a

lingüista Eni Pulcinelli Orlandi (2003). Ela coerentemente consegue precisar o

conceito de texto a partir de duas perspectivas que, embora distintas, se

complementam:

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33

1. Entendendo o texto enquanto produto acabado, empiricamente

possuidor de começo, meio e fim. O texto, nessa perspectiva, está

materializado em determinado portador textual e serve como unidade

de análise de ordem gramatical, representacional, estrutural etc.;

2. Vendo-o na perspectiva do discurso, como uma unidade aberta,

portanto como um todo incompleto29, possuidor de uma materialidade

histórica e social.

Em função disso, ou melhor, das definições até agora expostas sobre o

que seja texto, entendemos que a evolução da humanidade pode também ser

sinônimo de evolução comunicativa, tanto no campo da oralidade quanto no campo

da escrita. Hoje, a diversidade de suportes e gêneros textuais é imensa, sendo muito

difícil e divergente a classificação de textos. No livro de Kaufman e Rodriguez (1995)

intitulado Escola, leitura e produção de textos há uma busca pela tipologização

destes, embora as referidas autoras assumam a não existência de uma tipologia

única. Tais estudos pretendem facilitar a produção e interpretação de textos que são

freqüentemente utilizados em determinado ambiente social. Para tanto, as autoras

se basearam na Lingüística Textual, em especial nos trabalhos de Bernardez (1987)

e Van Dijk (1983), destacando como critérios de classificação de textos as funções

da linguagem (informativa, expressiva, literária e apelativa) e suas tramas (descritiva,

argumentativa, narrativa e conversacional).

Consideramos o trabalho dessas autoras relevante, principalmente no que

concerne aos traços distintivos entre os textos. Não obstante, e de acordo com a

linha sócio-interacionista, preferimos conceituar os ditos tipos de textos por gêneros

textuais30 e as tramas textuais por tipos de textos. Isto porque entendemos o texto

como construção social, histórica e cognitiva que tem infinitas manifestações

expressivas e que, por conseguinte, não pode ser caracterizado a partir de definidos

traços tipológicos. Além disso, consideramos a expressão gênero textual pertinente

29 Pertinente esclarecer que ao considerarmos o texto como um todo incompleto, estamos nos valendo das idéias de Orlandi (2003), quando ela pontua que os ditos vazios, ou melhor, intervalos encontrados na leitura de qualquer texto não diz respeito à sua constituição empírica, concreta, mas sim à um percurso de interpretação gerada por um leitor/produtor historicamente situado e determinado pelo seu meio social. 30 Entre os autores que defendem a terminologia e a definição gêneros textuais está Bronckart (1999) e Geraldi (2000).

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pela sua origem conceitual estabelecida, mais precisamente, a partir dos estudos de

Mikhail Bakhtin31. Ele estudou os ditos gêneros literários, encontrando nesses a

dialogia que intercruza todo tecido textual e, por conseguinte, a linguagem e o

sujeito. Assim, devido à análise preciosa deste autor sobre a linguagem e seu

processo incessante de cruzamento de vozes alheias, bem como do reconhecimento

da presença deste princípio dialógico em todo e qualquer discurso, é que o termo

gênero se expandiu e vem ocupando o lugar dos ditos tipos textuais. A expressão

gênero textual já implica na aceitação de que há inúmeras manifestações textuais e

que estas são construídas social e historicamente, portanto povoadas de outras

vozes que não são provenientes de um único sujeito, neste caso o escritor, mas de

vários.

Ao lado do que já foi dito sobre a distinção entre “gênero textual” e “tipo

textual”, cabe aqui mais uma colocação, a qual é vista como uma posição mais

didática em termos de organização conceitual explícita:

[...] para a noção de tipo textual predominam a identificação de sequências linguísticas típicas como norteadoras; já para a noção de gênero textual, predominam os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo temático, estilo, e composicionalidade, sendo que os domínios discursivos são as grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam. Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos. (DIONISIO; MACHADO; BEZERRA, 2002, p. 24-25)

Podemos dizer, ainda, que embora os tipos textuais sejam necessários e

até mesmo inerentes à constituição de um gênero, estes não são responsáveis pelo

formato estrutural explícito que dará suporte à mensagem emitida. Sua

preocupação, portanto, não está diretamente vinculada ao contexto em que a

mensagem é produzida, ao contrário dos gêneros textuais. Os tipos textuais,

explicitamente, não possuem configuração autônoma no processo de interlocução;

eles parecem não interferir, decisivamente e visivelmente, na identificação,

apreensão e compreensão de determinadas informações pelo leitor. São elementos

composicionais, à primeira vista, totalmente subordinados aos gêneros textuais; sem

31 Importante destacar que Bakhtin denominava os gêneros de discursivos, e não de textuais.

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os quais os tipos textuais não existiriam. Assim, apesar de serem considerados

essenciais à constituição de um gênero, os tipos textuais não possuem,

notadamente, lugar privilegiado durante a ação comunicativa por serem elementos

estruturais mais implícitos. Entretanto, os tipos textuais não deixam de ser, atrelados

à constituição dos gêneros textuais, os responsáveis pelas condições de produção

da leitura, na medida em que dão configuração ao processo de significação do texto.

Isto pode ser verificado, especialmente, nos textos parodiados, nos quais muitas

vezes o gênero textual é mantido, mas seu tipo textual é modificado tendo por

objetivo produzir certos efeitos de sentido e não outros.

Além disso, um gênero textual comporta uma variedade de tipos textuais,

os quais são definidos por seus traços lingüísticos predominantes. Por exemplo, o

gênero História em Quadrinhos pode ter duas ou mais seqüências tipológicas, quais

sejam a narrativa e a conversacional.

Com o aparato tecnológico atual ainda é possível verificar uma gama de

gêneros textuais, embora estes sejam construídos tendo por base textos já

existentes e consagrados socialmente; a exemplo do telefonema que, segundo

Marcuschi (apud DIONISIO; MACHADO; BEZERRA, 2002, p.20-21) está relacionado

à conversação, mas sendo mantido entre ambos suas características e estratégias

peculiares. O mesmo autor ainda nos dá uma lista de aspectos relevantes para a

produção de determinado gênero textual, reforçando, dessa maneira, a sua função

comunicativa e a idéia de que a linguagem só é efetivamente realizável a partir dos

gêneros. Dentre os aspectos mais significativos, se destacam o tipo de conteúdo

que o produtor quer apresentar, o tipo de linguagem e de posição que o gênero

ocupa socialmente, a relação entre os participantes e o objetivo das atividades a

serem desenvolvidas. Em suma, a escolha de um gênero já implica em uma

estratégia pelo leitor/produtor com vistas a atingir os objetivos desejados. Por isso,

entendemos o trabalho com diversificados gêneros textuais, no contexto escolar,

como essencial para a formação de sujeitos atuantes e independentes no exercício

da ação comunicativa. 32

É importante assinalar, ainda, que os gêneros textuais são suscetíveis a

modificações, caso ocorram diferentes transformações nas interações sociais. Mas,

32 Afirmativa esta já sinalizada por Koch (2002) em seu livro Desvendando os segredos do texto. Vide bibliografia completa ao final desta dissertação, no item Referências.

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apesar dessa possível flutuação, muitos gêneros são socialmente solidificados tendo

em vista as competências que estes trazem no que concerne a expressividade do

real, do pensar, enfim, das facilidades de compreensão comunicativa em situações

específicas; o que daí decorre a relação, muitas vezes estabelecida, entre gênero

textual e capacidade comunicativa. Portanto, devemos considerar a escolha de um

gênero textual como uma decisão estratégica complexa, pois envolve o

conhecimento de textos já elaborados anteriormente (intertexto), os quais devem ser

acionados e, eventualmente, transformados em comum acordo com os objetivos e a

situação na qual o produtor se encontra.

O problema, portanto, está na (des)valorização de determinados gêneros

textuais no espaço escolar, já que a função da escola seria a de proporcionar ao

educando situações de aprendizagem que visassem sua interação social, ou melhor,

facilitasse a sua (con)vivência em sociedade. Por isso, nada mais coerente do que

apresentar e trabalhar com formas discursivas diversificadas.

Nesse contexto, é imprescindível salientar que o texto não se limita à

escrita, ele é, em si, a própria condição de existência da ação sócio-discursiva. Por

exemplo, o outdoor, os filmes etc., são suportes textuais que comportam uma

diversidade de gêneros textuais, os quais têm funções comunicativas ao mesmo

tempo peculiares e diversificadas, a depender do modo como o leitor/produtor o leia

e/ou o elabore com base em seu conhecimento abrangente sobre textos e, em certa

medida, das estratégias de leitura acionadas e/ou criadas. O que devemos ter

clareza é que o texto não pode ser considerado como uma sucessão coerente de

frases do ponto de vista da gramática padrão. A sua caracterização deve ser vista

de acordo com sua funcionalidade discursiva, o que envolve intenções políticas e

relacionais – já se inserindo aí o contexto em que o texto é produzido, bem como

questões ideológicas e de conhecimento lingüístico do produtor.

1.2.1 O texto e sua tessitura — A intertextualidade

Não somos um Que outrora éramos um, ou pensamos sermos eu, você, o outro, três elementos distintos.

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37

Reynaldo Jardim

A nossa proposta de conhecer os gêneros textuais mais utilizados em

sala de aula decorre da importância que os diversificados textos assumem na

instância social, ou melhor, de que estes são os mediadores de uma interação mais

efetiva, possibilitando ao sujeito uma leitura e uma produção textual mais

heterogêneas, interativas e autônomas. Por isso, a discussão aqui travada não tem

o objetivo de construir uma classificação coerente para distinguir universalmente um

texto de outro. A discussão não está pautada na dualidade gênero textual X tipo

textual, mas na variabilidade e, também, estabilidade funcional que os textos

assumem em determinadas épocas, tendo em vista a comunicabilidade e a

interação espontaneamente dirigidas ou ideologicamente formuladas.

Além do exposto, podemos ainda destacar que o conhecimento dos

gêneros textuais socialmente mais utilizados pode vir a facilitar a comunicação,

assim como pode levar o leitor a conhecer e identificar outras esferas da linguagem

que se intercruzam no corpo textual, formando o que se denomina de

intertextualidade. A intertextualidade, assim como texto e discurso, tem definições e

sentidos diferenciados na Lingüística. Nessa perspectiva, a intertextualidade, de

modo geral, pode ser associada a termos como dialogismo e polifonia, ambos

provenientes de estudos do pensador russo Mikhail Bakhtin.

A mais conhecida interpretação das idéias de M. Bakhtin sobre a

multiplicidade de vozes presentes na constituição de um texto, seja ele oral ou

escrito, é da francesa Júlia Kristeva. Ela cria o termo intertextualidade para englobar

o fenômeno dialógico constituinte de toda produção textual, tendo como fonte as

análises e formulações teóricas de Bakhtin, as quais seguem o conceito de polifonia,

dialogismo e literatura carnavalizada. Tal tríade conceitual é aplicada nas reflexões

que esse teórico russo fez sobre os romances de Dostoiévski; literatura esta que,

segundo ele, é reveladora do caráter eminentemente dependente de toda

manifestação lingüística.

A tessitura de um texto, na perspectiva bakhtiniana, se faz no

entrelaçamento de variadas vozes, que acabam por definir uma autoria em

continuum, já que o eu está sempre povoado por diversos eus, sejam eles

concordantes ou não. Entende-se, a partir daí, que a linguagem é, em essência,

dialógica, sendo a autoria ou monologismo apenas uma estratégia do autor/produtor

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com vistas a explicitar suas posturas ideológicas e a delimitar seu espaço de agente

criador. A intertextualidade parece, então, surgir como uma reelaboração das idéias

formuladas por Bakhtin, tendo por objetivo ressaltar que a presença da voz do outro

não é exclusiva dos romances clássicos, mas de todo e qualquer discurso.

Assim, é a partir dos estudos sobre a linguagem que ampliamos, mais

explicitamente, a nossa ação tanto interativa e comunicativa quanto reflexiva, ao

criarmos diferentes formas de dizer e escrever uma mesma informação, apoiadas na

confecção híbrida de vários gêneros textuais e/ou discursivos.

Nesse sentido, ampliamos também a concepção de intertextualidade,

considerando Laurent Jenny (1979). Segundo ele, a intertextualidade se faz por dois

tipos de procedimentos: inicialmente pela intertextualidade implícita, que é o

cruzamento de vozes alheias não visíveis, inscritos na composição textual; não

parecendo haver, à primeira vista, uma intencionalidade do autor quer primária,

temporal e quer espacialmente definida, de trazer à tona o diálogo com os outros

autores, mas o de omitir, conscientemente ou não, em seu texto, a presença desse

processo dialógico. Para este estudioso, o segundo tipo seria a intertextualidade

explícita, que é caracterizada como o oposto da intertextualidade implícita, fazendo-

se presente no texto como uma confidente, nada confiável, que mostra, às vezes,

com todas as letras, o conteúdo contaminado das vozes (citações de referência,

transcrições, resumos etc.); e, outras vezes, apresenta-se de modo enviesado por

meio de paródias, paráfrases, alusões etc. Vale destacar que, em ambos os tipos, as

vozes podem estar nos textos tanto para travar diálogos sagrados quanto profanos,

já que a intertextualidade é, por origem, um recurso de reafirmação de idéias e

ideais.

Ao aproveitar as idéias de Jenny (1979) sobre as diferentes formas de

intertextualidade, Curi (2002) inclui duas outras peculiaridades do procedimento

intertextual: a paráfrase e a paródia. Na paráfrase, segundo ele, o texto é construído

tendo por objetivo a reiteração do que já foi dito por outra voz. Seu objetivo é

concordar com a obra que lhe antecede, seja para esclarecê-la ou reafirmá-la,

aproximando-se muito de uma reprodução. Quanto à paródia, ela assume o papel de

transgressora das vozes alheias na medida em que as utiliza como pretexto para a

exposição de idéias opostas. Nela há uma “[...] escrita transgressora que engole e

transforma o texto primitivo: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas, ao mesmo

tempo, o nega” (JOSEF, 1980, p. 59 apud FÁVERO, 2003, p. 53).

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Para abonação da intertextualidade que ora tratamos, propomos a leitura

do texto abaixo transcrito:

Chapeuzinho Vermelho

Millôr Fernandes

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

À primeira vista, não parece existir dificuldade em entender a distinção

entre paráfrase e paródia, mas no trabalho direto com textos a familiarização com

ambos os conceitos às vezes não se mostra suficientemente clara. Isso decorre da

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dificuldade apresentada por certos textos no que concerne à sua categorização33. O

leitor, apesar de conhecer as características tanto da paráfrase quanto da paródia

entra em conflito ao se deparar com textos que tornam a escolha conceitual um

trabalho árduo. Tomemos um outro texto34 a título de exemplificação:

A Chapeuzinho Vermelho Era alegre e era sapeca, Bonitinha, brincalhona E levada era da breca.

Numa casa da montanha Com a mamãe ela morava. E até os bichos do quintal A mesma adorava.

Lá na casa, entre mil flores, com os pássaros brincava. Nem trabalhos do jardim, Chapeuzinho ajudava.

A mamãe de Chapeuzinho Era grande cozinheira. E fazer tudo gostoso Era pura brincadeira.

Chapeuzinho! Chapeuzinho! Vem pegar esta cestinha. Tem Pãozinho, bolo e doce Pra levar pra vovozinha.

Mas cuidado, minha filha, Veja aonde você vai: Pelo atalho da floresta, Quem lá entra nunca sai.

Me contaram outro dia O que eu não sabia antes: Lobo mau anda por lá Devorando os viajantes!

Garotinha como aquela, Só Chapeuzinho Vermelho. Não prestava atenção Nem ligava pra conselho.

Lobo mau, cheio de fome? Que história boba é esta? A estrada é muito longa, Vou mais é pela floresta! E lá foi a Chapeuzinho Bem por onde não devia, Sem saber que logo adiante O mau lobo se escondia. Que menina mais gordinha! Pensou o lobo, escondido. Se eu agir com muito jeito, Tenho almoço garantido. Aonde vai, minha beleza? Disse o lobo disfarçado. Aonde leva esta cestinha E pra onde vai andando? Ela nunca vira um lobo E prestou muita atenção. Viu um bicho dos bem grandes E achou que era um cão. Vou pra casa da vovó Que é bem velha, coitadinha. Mora ali, logo adiante, Numa casa bem branquinha. Para a casa da vovó Lobo mau foi depressinha. E bateu leve na porta, Imitando a menininha. Sem desconfiar de nada, Abriu a porta a velhinha. E o lobo esfomeado Comeu a avó inteirinha.

Vestiu-se com a camisola, Botou óculos e touca. Cobriu-se todo na cama E fez uma voz bem rouca. A Chapeuzinho chegou E achou tudo muito estranho. Nunca pensou que a vovó Fosse daquele tamanho. Vovozinha, disse ela, Mas que cara estranha é essa? Seu nariz tá muito feio E a boca grande à beça! O malvado descobriu Que estava descoberto. E pulou pra menininha Com o bocão bem aberto. Mas chegou um caçador, Na casinha foi entrando. Viu aquela confusão E foi logo atirando. Com tesoura e muito jeito Fez perfeita operação. E tirou a avó de dentro Da barriga do lobão. A vovó e Chapeuzinho Se abraçaram com amor. E pra tomar chá com bolo Convidaram o caçador. Pedro Bandeira

33 O primeiro texto “Chapeuzinho Vermelho” de Millôr Fernandes pode ser um exemplo dessa dificuldade de classificação, já que conserva as características seqüenciais de narração da história original. Todavia, o seu sentido irônico ao tratar de conceitos científicos, tomando o texto primeiro como pretexto para ridicularizar, faz do texto de Fernandes uma autêntica paródia. 34

Sem referência de fonte.

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Nesse momento, o investimento na revisão dos parâmetros estabelecidos

para categorização dos textos em paródia ou paráfrase torna-se uma ação

necessária entre o pensar e o agir. E, foi buscando agir que Samir Meserani Curi

(2002) parece ter acrescentado à paráfrase um outro adjetivo: criativa35. Isto porque,

apesar de entendermos o significado de uma paráfrase estabelecendo um

contraponto com o que seja paródia, a palavra em si não dá conta de informar o que,

na prática, ela é. Tudo isso vem demonstrar, em certa medida, que ao falar

pensamos e ao pensar criamos, constituindo outras cadeias conceituais, sejam elas

aproveitáveis ou não para outros contextos. Assim, a paráfrase criativa seria uma

espécie de extensão, ou melhor, espichamento36 da paráfrase reprodutiva, pois ao

mesmo tempo em que se aproxima do texto original, ao conservar suas

características temáticas, dele se afasta ao utilizá-lo como pretexto, isto é, apoio

para acrescentar outros elementos semânticos que, embora concordantes com os

do texto primeiro, introduz outras tantas idéias e ideais do autor/leitor.

Para complementar essas reflexões, afirma Curi (2002) que a paráfrase

criativa:

[...] ultrapassa os limites da simples reafirmação ou resumo do texto original, da repetição do significado dentro do eixo sinonímico, da simples tradução literal. Neste tipo de paráfrase, o texto se desdobra e se expande em novos significados. Ainda que não discorde – como na paródia – do texto de origem, dele se distancia, usando-o como patamar ou pretexto. E vai além da simples reiteração reprodutiva, mesmo que sem autonomia maior dos textos criativos não parafrásticos. (p. 108)

No segundo texto exposto sobre a história de Chapeuzinho Vermelho,

notamos um caráter temático reprodutivo, embora não possamos deixar de

considerar o respectivo texto uma paráfrase criativa por valer-se de um outro gênero

textual, neste caso o poema. Não estamos afirmando, entretanto, que Chapeuzinho

Vermelho esteja destituída de sua conceituação enquanto gênero história infantil. O 35 Curi (2002) vale-se de três tipos de pensamento para explicar o que é criatividade: o mítico, o vulgar e o científico. E, de acordo com nossa leitura, parece entender que a criatividade nos textos é sempre intertextual, embora o autor/leitor ao escrever e/ou falar seja criativo ao se valer, de maneira flexível e livre, de outros textos para fazer emergir, principalmente, suas idéias e ideais. Ou seja, mesmo utilizando-se intencionalmente ou não de outros discursos, o objetivo precípuo não é o texto que lhe serve de suporte, mas o processo de interlocução, de permissão dialógica que este(s) texto(s) original(is) instaura(m). Há, nesta troca, uma ascensão do dizer do outro – o autor/leitor. 36 Palavra muito utilizada pela professora Lícia Beltrão, na Faculdade de Educação da UFBA, em diálogos constantes sobre linguagem, texto e produção textual.

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que estamos tentando explicitar é que, tomando o texto de Pedro Bandeira em sua

materialidade, podemos considerá-lo como um poema, mas ele continua a ser

história infantil do ponto de vista de sua historicidade e, por conseguinte, da

memória do leitor/produtor.

Sobre a paráfrase, é válido ainda destacar que a sua divisão em

reprodutiva e criativa é considerada por Curi (2002) como útil no contexto escolar, já

que esta categoria intertextual é freqüentemente utilizada na escola. Para tanto, o

autor destaca que a paráfrase reprodutiva parece dominar os bancos escolares

sendo necessário entender que existem formas de reprodução que podem lançar

mão da criatividade - como no caso do texto de Chapeuzinho Vermelho, escrito por

Pedro Bandeira.

Seguindo essa mesma linha sobre de que maneira podemos dizer a

intertextualidade, cabe aqui dar um pouco mais de atenção à paródia. Para isso,

vale a informação, do ponto de vista etimológico, que o nome paráfrase, do grego

paraphrasis, significa repetição. Já paródia, ou para-ode, quer dizer perversão de

sentido, canto paralelo. A paródia, de acordo com Sant’Anna (1988), foi se

delineando a partir de estudos de obras literárias da Antiguidade Clássica,

inicialmente por Tynianov e, posteriormente, obtendo maior divulgação, por Bakhtin.

Este último expande o conceito de paródia a partir de análise das obras romanescas

de Dostoiévski, consideradas pelo mesmo como literatura carnavalizada37. A

literatura carnavalizada transgride o estilo dos gêneros textuais eruditos, ou seja,

rompe com os modelos tradicionais literários, tais como a lírica, a tragédia e a

epopéia. Neste sentido, a paródia enquadra-se como um gênero transgressor, que

tem como característica predominante a divergência com relação ao texto que lhe

serviu como pretexto.

Dando continuidade à nossa discussão sobre a intertextualidade,

pensamos ser essencial registrar, também, a contribuição da lingüista Ingedore

Villaça Koch (2001). Ela faz uma distinção, ainda que tênue, entre intertextualidade e

polifonia, considerando que todo caso de intertextualidade se constitui num caso de

polifonia, não sendo, porém, o inverso verdadeiro. O que significa dizer que na

intertextualidade podemos vislumbrar a presença de várias vozes — autores — num

37 Literatura carnavalizada é aquela que, “[...] direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Todo o campo do cômico-sério constitui o primeiro exemplo desse tipo de literatura”. (TOPIA, 1979, p. 92 apud CURI, 2002, p. 67)

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único texto, demostrando, portanto, o seu caráter polifônico. Todavia, há casos de

polifonia que não podem ser considerados como intertextualidade, já que há

discursos que, apesar de construídos dentro de um contexto sócio-histórico, não

trazem à tona vozes dominantes ou referenciais. O sujeito que fala, ao mesmo

tempo em que constrói um enunciado para dada situação cotidiana, por exemplo,

não pode ser por ele responsável, na medida em que o seu dizer é constituído de

outras vozes, nesse caso, coletivas e, portanto, ausentes materialmente, mas

presentes na memória discursiva do emissor.

Koch (2001) ainda considera a intertextualidade sobre dois sentidos: o

amplo e o restrito. No primeiro sentido, e recorrendo a diversos autores38, ela define

intertextualidade como uma necessária condição de existência do próprio discurso,

sendo o texto um objeto heterogêneo que se constitui num diálogo constante com

outros discursos prévios.

Quanto ao segundo sentido de intertextualidade – o restrito, Koch (2001)

o apresenta em quatro tipos, deixando evidente que esse só se dá a partir da

existência de textos previamente consolidados e efetivamente produzidos. O

primeiro tipo é a intertextualidade de conteúdo X de forma/conteúdo. Neste, a autora

toma como exemplo textos científicos da mesma área ou corrente, matérias

jornalísticas do mesmo dia ou período e paródias. O segundo tipo é denominado de

explícita X implícita, sendo considerado os textos que trazem citação da fonte

(resumos, resenhas, traduções etc.) e aqueles que não trazem citação expressa da

fonte (paródia, paráfrase etc.), respectivamente. No terceiro, semelhanças X

diferenças, ou de captação X subversão (MAINGUENEAU, 1987 apud KOCH, 2001,

p.49) o texto utiliza-se de outros textos como pretexto para sustentar suas idéias,

argumentações, ou então para mostrar a improcedência das idéias contidas no

intertexto. Já o último tipo de intertextualidade, em sentido restrito, diz respeito à

construção de um texto no qual se encontram citações retiradas de outros textos já

anteriormente produzidos pelo próprio autor39; há intertextos atribuídos a

enunciadores genéricos (provérbios e ditos populares) e intertextos com citações de

outrem.

38 Barthes, Beaugrande e Dressler, Authier, Maingueneau, Pêcheux, Véron, Van Dijk e Kintsch, Van Dijk e Kristeva. 39 Também denominado de inter ou autotextualidade, respectivamente.

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44

Há ainda dois outros tipos de intertextualidade a considerar num âmbito

mais geral de produção textual: a intertextualidade inter-gêneros e a

intertextualidade tipológica. A primeira, caracterizada por Ursula Fix (apud

DIONISIO; MACHADO; BEZERRA, 2002, p. 31), serve “[...] para designar o aspecto

da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero assume a função de

outro”. Já a intertextualidade tipológica consiste na utilização de várias seqüências

de tipos textuais, tais como descritiva, narrativa, expositiva, dentre outras, em um

único gênero.

Em síntese, a intertextualidade está sempre presente na produção textual,

sendo este fenômeno percebido ou não pelo produtor. Isto é, durante o processo de

produção de um texto, o sujeito, mesmo não recorrendo a citações explícitas, já está

dialogando com outros textos previamente existentes, já que ao se comunicar está,

ideologicamente, imerso em uma cultura.

Já em relação à leitura, a intertextualidade depende, em grande medida,

do conhecimento do leitor sobre a temática abordada e desta com o gênero textual

que lhe serviu como veículo interativo, comunicativo e expressivo. Por exemplo,

quando nos deparamos com a paródia de um conto, para melhor compreendê-la,

devemos conhecer tanto o conto original quanto a(s) temática(s) que esta paródia

busca explicitar.

Ao lado da intertextualidade, citamos também o dialogismo e a

polifonia40. O dialogismo, ainda temendo equívocos, pode ser considerado como a

própria essência constitutiva da linguagem, o que significa dizer que todo discurso

emerge a partir de relações de interação com o outro. Assim, a intertextualidade e a

polifonia podem ser, nessa perspectivas, caracterizadas como marcadores

concretos da existência da interação, isto é, do dialogismo.

Toda essa discussão, como já foi dito anteriormente, veio à tona a partir

das reflexões realizadas por Mikhail Bakhtin41 sobre a heterogeneidade da

linguagem na composição do romance. Para ele, não há um discurso único na

constituição textual do romance, esse se encontra ora mais explicitamente, ora mais 40 Conceito utilizado por Bahktin (apud BAHKTIN, 1981) para caracterizar os romances de Dostoiévski. A polifonia apresenta-se no nível do locutor (personagem responsável pelo enunciado como um todo ou apenas pela parte da enunciação que lhe é atribuída) e do enunciador (pode expressar, na enunciação, o seu ponto de vista, embora sua voz não se apresente de forma precisa. A sua identidade não é explicitamente mostrada na enunciação). 41 Esse novo olhar sobre a constituição essencialmente dialógica dos gêneros, ou melhor, sobre a interação verbal dos enunciados, originário a partir das reflexões de Bakhtin entre as décadas de 20, 30 e 40, é denominado Translingüística.

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implicitamente, contaminado pelas intencionalidades de outrem, não seguindo,

então, um discurso uniforme, mas multiforme; não existindo, dessa maneira, uma

única linguagem, mas sim uma multiplicidade dialógica de linguagens. Esta

multiplicidade, como já foi anteriormente discutida, é vista tanto na perspectiva da

paráfrase reprodutiva e paráfrase criativa quanto da paródia, sendo estes três

modos de intertextualidade essenciais para se entender como o educando consegue

elaborar, de forma compreensiva ou não, o que foi discutido e vivenciado durante

todo o ano escolar. Assim, pensamos que se os educandos decidirem produzir

textos híbridos para expressar o que aprenderam, utilizando-se de recursos

intertextuais criativos, isso será um indicativo significativo de que o ato de ler e

produzir não são meras memorizações e reproduções, mas ações que caracterizam

um processo consciente e reflexivo necessário para o leitor e produtor, sendo

também desejável a uma sociedade que busca a formação de cidadãos atuantes.

Daí a importância de observar, sistematizar e analisar simultaneamente as

estratégias de leitura utilizadas pelos professores nas atividades com textos no

espaço escolar, pois são estes procedimentos de abordagem que podem nos

oferecer indicativos significativos de qual leitor e produtor de textos a escola está

formando.

Nessa linha de raciocínio, pensamos ser interessante abordar ainda as

similaridades nas discussões sobre o contexto essencialmente dialógico e social da

linguagem na perspectiva de Bakhtin com as idéias de Vygotsky. Além disso, é

imprescindível, a nosso ver e no que se refere ao campo educacional, travarmos

discussões em torno da formação do professor e da sua esperada prática

pedagógica.

Todavia, os pontos que destacamos como essenciais para a temática

deste trabalho estão relacionados à teoria sócio-interacionista de Vygotsky42, tais

como: o conceito de mediação, signos/linguagem, processos psicológicos

superiores, internalização e Zona de Desenvolvimento Proximal. Todos esses serão

descritos neste texto de forma relacional, já que são conceitos interdependentes. 42 “Vygotsky viveu apenas 37 anos. Morreu de tuberculose em 1934. Apesar de breve, sua produção intelectual foi extremamente intensa e relevante: chegou a elaborar cerca de 200 estudos científicos sobre diferentes temas e sobre as controvérsias e discussões da psicologia contemporânea e das ciências humanas de um modo geral”. (REGO, 1995, p. 15). O leitor encontrará, mais detalhadamente, em Teresa Cristina Rego, no seu livro intitulado Vygotsky: uma perspectiva histórica-cultural da educação. (vide referências deste trabalho) tanto a biografia deste intelectual russo, estudioso de várias áreas do saber, como: filosofia, antropologia, literatura etc., quanto comentários sobre o contexto político da sua época.

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1.3 O LUGAR DA APRENDIZAGEM, DO OUTRO E DO TEXTO EM VYGOTSKY E

BAKHTIN.

A palavra está, fundamentalmente, alienada ao outro como a imagem ao espelho, porque aquilo que procuro na palavra é a resposta do outro que me irá constituir como sujeito: a minha

pergunta fundamental ao outro diz respeito a onde, como e quando começarei a existir na sua resposta. Aparecem, aqui,

duas funções da palavra intimamente ligadas: a mediação para o outro e a revelação do sujeito.

Roland Barthes e Eric Marty

Os estudos de Vygotsky, de acordo com Rego (1995), atualmente já bem

divulgados aqui no Brasil, começaram entre a metade da década de 20, e tinham

como foco a superação da crise psicológica do seu século, a qual abordava

questões relativas aos processos psicológicos elementares43 a partir de uma

metodologia experimental com vistas às classificações definidas e definitivas. Assim,

a preocupação de Vygotsky girava em torno das funções psicológicas tipicamente

humanas, ou seja, com os aspectos que influenciavam na construção da consciência

– denominado, na referida teoria, de funções psicológicas superiores.

Para tanto, segundo Salvador e outros (1999, p. 100), tomando como

referência Wertsch (1988), há três idéias fundamentais em torno das quais Vygotsky

trabalhou para estudar a consciência: estudo da gênese e desenvolvimento das

funções psicológicas superiores, que envolve o âmbito da ontogênese, filogênese,

sociogênese e microgênese; a afirmativa de que os processos psicológicos

superiores são de origem social, isto é, aparecem a partir da relação entre as

pessoas – intermental - e, posteriormente, no plano individual – intramental; e, por

último, a concepção de que toda atividade humana é transformadora, sendo essa

mediada por instrumentos tanto de cunho físico como psicológico. 44 Este último tipo

de instrumento, entretanto, é o responsável pela origem das funções psicológicos

superiores especificamente humanas, tais como: pensamento abstrato, atenção

43 Salvador e outros (1999, p. 102-103), com base nos trabalhos de Vygotsky, destacam como processos elementares: sensações, atenção não-consciente, memória natural, reações emocionais básicas etc. 44 Entre os instrumentos do tipo físico, Salvador e outros (1999. p. 100) destacam as ferramentas que nos dão a possibilidade de interagir e, consequentemente, alterar o meio ambiente. Já os segundos instrumentos, de tipo psicológico, são os sistemas de signos, em especial a linguagem.

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consciente, memória voluntária, formação de conceitos, afetividade, dentre outras.

Em síntese:

[...] as funções psicológicos superiores são de origem sócio-cultural e emergem de processos psicológicos elementares, de origem biológica (estruturas orgânicas). Ou seja, [...] a complexidade da estrutura humana deriva do processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações entre história individual e social. (SALVADOR, 1999, p. 26)

Mas, é interessante destacar que todo esse processo é complexo e

coloca em jogo várias etapas que ocorrem sucessivamente de maneira ativa e

progressiva. Por exemplo, a internalização é definida por Vygotsky como um

mecanismo proveniente da interação do sujeito com outros sujeitos. Para tanto, esta

é entendida como um processo de transição de uma função social para uma função

individual, não se constituindo num processo apenas de assimilação passiva de

informações pelo sujeito, mas sim numa relação dialética entre este e o seu meio

físico e cultural. A internalização decorre justamente de um resultado da dinâmica

entre a regulação intermental e a intramental. Ela é “[...] a reconstrução interna de

uma operação externa.” (VYGOTSKY, 1994, p. 74)

A linguagem, por exemplo, pode ser o sinal mais preciso da internalização

pela criança, pois quando ela apresenta um domínio dos signos sociais, sendo

capaz de regular suas atividades e interagir com outros sujeitos de forma a

compartilhar significados, fala-se que ocorreu um processo de internalização, já que

o entendimento e uso da linguagem a partir de variadas manifestações concretas

propiciaram possibilidades de convivência baseadas num agir espontâneo e ativo;

ou melhor, a fala externa da criança, dirigida não para si, mas para o outro, é

considerada por Vygotsky como a primeira ação sinalizadora do processo de

internalização. Logo, a linguagem passa a dar indícios do movimento de

reelaboração dos signos sociais pela criança, tendo por objetivo uma futura

organização de seus pensamentos e ações. Desse modo, como bem ressaltou

Garcez (1998), “[...] a fala externa, comunicativa, para o outro, é a matriz de

significações da fala para si, a qual está a serviço da orientação mental, da

compreensão consciente e permite o desenvolvimento da imaginação, organização,

memória, vontade”. (p. 52)

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Para tanto, é preciso evidenciar que nesse jogo do desenvolvimento

existem fronteiras que, conceitualmente, foram definidas por Vygotsky como Nível

de Desenvolvimento Real, Nível de Desenvolvimento Potencial e Zona de

Desenvolvimento Proximal.

O Nível de Desenvolvimento Real pode ser definido como aquilo que a

criança já sabe, ou seja, atividades que já consegue desenvolver sozinha. O Nível

de Desenvolvimento Potencial corresponde aquilo que a criança pode realizar, mas

somente com a ajuda de outros sujeitos. É um estágio de desenvolvimento que não

se concretizou, no qual a criança ainda não consegue realizar atividades de forma

autônoma; embora no campo das potencialidades essa possibilidade exista. Já a

Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser considerada como o elo entre o

primeiro e o segundo nível. É a distância entre o que a criança é capaz de realizar

sozinha e o que ela só poderá concretizar com a ajuda do outro. Esta zona é vista

por Vygotsky como sendo a principal a ser considerada na escola, já que para

realizar determinadas atividades, ou seja, ir do nível potencial ao real, a criança

necessita da mediação de um adulto mais experiente. Deste modo, todo esse

processo de transição entre o Nível de Desenvolvimento Real e Nível de

Desenvolvimento Potencial é o que se denomina Zona de Desenvolvimento

Proximal, que pode ser vista como uma fase de inquietação, na qual a criança é

provocada, desafiada a conhecer cada vez mais. Em resumo:

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de ‘brotos’ ou ‘flores’ do desenvolvimento, ao invés de ‘frutos’ do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente. (VYGOTSKY, 1994, p. 113)

De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento do pensamento não se dá

de dentro para fora, mas sim ao contrário; ou seja, a primeira fala da criança é uma

fala social, sendo sempre estimulada pelo adulto ou crianças mais experientes.

Posteriormente, a sua fala vai se tornando pessoal, pois o sistema de sinais começa

a se internalizar ocupando, no pensamento da criança, um espaço recheado de

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sentidos; ou como já sinalizou Vygotsky, o significado da palavra dá lugar ao sentido

da palavra. Assim,

[...] quando a criança fala para si mesma, em sua fala interior, reproduzindo, em princípio, os padrões de relação significativa com os outros, está construindo sua consciência e constituindo-se enquanto sujeito.

Esse processo é possível no momento em que as relações interpessoais são transformadas em intrapessoais, permitindo, assim, a construção da consciência humana. Em todo esse processo, o desenvolvimento da função autoreguladora dos signos, especialmente da linguagem, desempenha um papel capital, porque dá lugar à gestação de formas que, ao internalizarem-se, transformam-se em consciência. (MIRANDA, 1999, p. 155)

E é nesse estágio de desenvolvimento da linguagem que se percebe o

surgimento das funções psicológicas superiores, anteriormente mencionadas. 45 A

partir daí entendemos a importância pedagógica trazida pelas idéias Vygotskianas,

idéias essas que possibilitam àqueles que trabalham mais diretamente com a

educação respeitar o desenvolvimento dos estudantes, assim como lhes

proporcionar atividades mais compatíveis e comprometidas com o seu

desenvolvimento cognitivo a partir de uma interação, neste caso, entre os

educandos e entre estes e os seus educadores. Uma interação com base no

diálogo, na troca mútua de informações e no confronto de idéias.

É interessante observar, ainda, que Vygotsky entendia a linguagem como

um signo mediador, “[...], pois ela carrega em si os conceitos generalizados e

elaborados pela cultura humana” (REGO, 1995, p. 42). Neste sentido, podemos

ampliar os estudos de Vygotsky de modo a não restringir a linguagem apenas à

língua (a fala), mas também a outras formas de expressões que, embora sejam

usualmente menos utilizadas do que a fala, se constituem como manifestações mais

elevadas de compreensão do mundo e de suas relações. Por exemplo, os gêneros

textuais comportam uma variedade de tipos de linguagem que foram construídas a

partir de necessidades específicas de interação entre os homens. Assim, podemos

pontuar que conhecer e discutir as funções dos gêneros textuais em sala de aula é

45 Importante destacar que para Vygotsky a linguagem possuía tanto a função de comunicação externa quanto de regulação interna dos pensamentos. Ele ressaltou, entretanto, que antes dos dois anos de idade o pensamento e a linguagem, na criança, ainda são atividades diferentes e independentes.

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resgatar ferramentas sócio-históricas mediadoras, elaboradas pela cultura humana;

é possibilitar ao sujeito, em contato com essa diversidade lingüística, criar outros

estilos discursivos, contribuindo, dessa maneira, para tornar mais heterogêneo e rico

não só a produção textual, como também conferir ao processo de interlocução

mudanças perceptivas. Estas podem acarretar tanto transformações

comportamentais quanto modos de funcionamento psicológicos mais sofisticados no

que diz respeito à comunicação e desenvolvimento do pensamento abstrato. No

entanto, destacamos que cultura não é tomada por Vygotsky como um sistema

acabado, mas como sistema flexível cujos membros estão constantemente em

movimento. Nessa perspectiva, enfatizamos que o homem, apesar de ser fruto de

seu contexto social, também introduz mudanças neste. Essas ocorrem a partir de

suas relações com outros homens e com seu meio gerando, de forma sucessiva,

outros modos de interlocução e ação.

A novidade da teoria Vygostkyana consiste na importância dada ao outro

enquanto constituinte do eu. Ou seja, é a partir da troca com outros indivíduos que

desenvolvemos as funções psicológicas superiores, ampliando as nossas

capacidades individuais e possibilitando novas formas de interação social. Assim,

“[...] na perspectiva de Vygotsky, construir conhecimentos implica numa ação

partilhada, já que é através dos outros que as relações entre sujeito e objeto de

conhecimento são estabelecidas.” (REGO, 1995, p. 110)

Por isso, o trabalho com a diversidade textual implica, em certa medida,

também em um contato com outros sujeitos, outras vozes e visões de mundo, dando

ao educando uma possível dimensão do heterogêneo caráter comunicativo e

reflexivo presente em qualquer grupo humano. Nessa direção, vale acrescentar a

estreita vinculação de Bakhtin com os pressupostos de Vygotsky, no tocante à

discussão da linguagem a partir de um processo de interlocução. Para Bakhtin

(1997), a língua não se constitui num sistema pronto e acabado que está disponível

à apropriação passiva pelo sujeito. Essa se constitui a partir da interação entre

locutor e ouvinte, não estando, portanto, o significado nas palavras, mas sim no

processo de interlocução. O que significa dizer que “[...] não existe palavra

lingüisticamente virgem, indiferente ao processo dialógico”. (MACHADO, 1995, p.

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60). Daí a importância de ressaltarmos a colocação do próprio Bakhtin (1997, p. 35)

de que “a consciência46 individual é um fato sócio-ideológico”.

Além disso, ao postular que “[...] a palavra (o discurso interior) se revela

como o material semiótico privilegiado do psiquismo [...] como o fundamento, a base

da vida interior”, Bakhtin (1997, p. 52) tece um tênue fio entre suas idéias e as de

Vygotsky, quando este último diz que a linguagem se dá, inicialmente, no nível

interpsicológico, ou melhor, social. A linguagem, para ambos, não poderia ser

estudada isoladamente, a partir de testes controlados e padronizados como faziam

os behavioristas, já que a mesma era entendida, por ambos os teóricos, como um

evento histórico socialmente elaborado. Vale destacar que eles tiveram influência do

materialismo dialético, já que foram contemporâneos47 e estavam envoltos por

discussões opostas às idéias que fundamentavam o subjetivismo idealista e o

objetivismo abstrato, daí decorrendo a intersecção entre seus estudos.

Outra similaridade interessante entre as idéias bakhtinianas e

vygotskianas diz respeito à monologização da consciência e à internalização,

respectivamente. Para Bakhtin, a consciência, depois de construída pela interação

do sujeito com outros sujeitos e contextos específicos de produção de diálogos,

torna-se individual, ou melhor, monologizada. O que significa dizer que o discurso

alheio é transformado em discurso próprio fazendo surgir similares, mas diferentes

formas discursivas que, embora sejam de caráter/produção individual, estão

recheadas de sentidos, idéias e ideais sociais. Assim, o que Bakhtin chama de

consciência monologizada, Vygotsky denomina de internalização, que consiste,

justamente, em dar sentido e/ou direção pessoal, individual, aos signos e ações

antes dependentes, quase que inteiramente, do coletivo. Ou no dizer do próprio

Bakhtin:

As influências extratextuais têm uma importância especial nas primeiras fases da evolução do homem. Essas influências se envolvem na palavra (ou noutros signos), e tal palavra é a dos outros e, acima de tudo, a da mãe. Depois disso, a ‘palavra do outro’ se transforma, dialogicamente, para tornar-se ‘palavra pessoal-alheia’

46 Bakhtin entendia que “a única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica. A consciência não pode derivar diretamente da natureza [...]. A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”.(BAKHTIN, 1997, p. 35) 47 Destacamos que embora Bakhtin e Vygotsky compartilhassem idéias parecidas em relação ao papel social da linguagem, não há provas de que eles, alguma vez, tenham se encontrado.

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com a ajuda de outras ‘palavras do outro’, e depois, palavra pessoal (com, poder-se-ia dizer, a perda das aspas). A palavra já tem, então, um caráter criativo. Papel do encontro, da visão, da ‘iluminação’, da ‘revelação’ etc. (BAKHTIN, 2000, p. 405-406).

As reflexões de ambos teóricos introduziram mudanças pertinentes no

lidar com a linguagem e, por conseguinte, com o texto, na medida em que

destacaram as influências sociais presentes em todo e qualquer discurso. Além

disso, descentraram o papel individual do sujeito na construção do conhecimento,

dando ao outro e às atividades partilhadas um lugar de destaque nessa construção.

O que não significa dizer que o sujeito é totalmente dependente do outro, não

existindo assim discursos singulares, autônomos. A questão que aí se apresenta é

que toda essa singularidade discursiva está, em resumo, povoada de pluralidades

discursivas. A primeira singularidade emerge desse contato com o plural, com o

coletivo, como bem podemos perceber na leitura do subcapítulo: O texto e sua

tessitura: A intertextualidade.

O texto, ou melhor, a diversidade de gêneros textuais, analisado nesta

perspectiva intertextual, nos dá indícios significativos desse processo de tomada de

consciência do sujeito a partir de interações sociais, pois na medida em que

expandimos discursos/textos, (re) construímos outras formas de socialização de

pensamentos, de sentimentos, de emoções, de ideais, dentre outras coisas,

estamos explicitando a existência da nossa originalidade pluralista discursiva. Daí

concebermos os estudos de Vygotsky e Bakhtin essenciais para repensar,

qualitativamente, o processo de ensino e aprendizagem tomando o texto e, por

conseguinte, o outro, como elementos centrais e indispensáveis para a tessitura

deste mesmo processo.

1.4 AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O

PROCESSO DE INTERLOCUÇÃO.

É sabido que o ato de ler envolve processos cognitivos diversificados e

complexos. Por isso, falar sobre leitura, buscando alternativas que possam facilitar a

interpretação de textos, não é uma tarefa das mais fáceis. Daí destacarmos a

importância de a escola trabalhar com variados gêneros textuais, com o intuito de

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que essa medida possa permitir ao professor e ao estudante diferentes olhares e

formas de aproximação de textos. Com isso, a criação de estratégias de leitura

poderá ser ampliada, e o processo de interlocução enriquecido, já que passará a

existir uma maior variabilidade de uso da língua no espaço escolar.

Todavia, é importante sublinhar que as estratégias de leitura não devem

ser tomadas como modelos prontos para compreensão de textos, já que o

entendimento destes depende, em grande medida, dos objetivos do leitor48. No

entanto, é importante destacar que, ao se falar de estratégias de leitura, estamos

falando da nossa própria capacidade de reflexão sobre o que é conhecer, interpretar

e compreender. Ou seja, toda essa discussão já se constitui em uma estratégia-

metacognitiva (KLEIMAN, 2002) que visa controlar e regular o nosso próprio

conhecimento. É uma avaliação do(s) caminho(s) que tomamos para alcançar os

objetivos pretendidos durante a leitura.

As estratégias de leitura não são soluções estáticas ou receitas prontas

que se aplicam às situações textuais das mais diversas quando assim necessitamos.

Além disso, o modo como cada interpretação é organizada mentalmente pelo sujeito

é algo tão particular, singular, pouco acessível, que não podemos defini-la através

de poucas palavras. Assim, ao falarmos de estratégias de leitura, estamos

considerando que o importante é disponibilizar elementos textuais que, quando

contextualmente compreendidos, possam ser, posteriormente e flexivelmente,

aproveitáveis a outras leituras que venham a realizar-se. Isto significa dizer que as

estratégias têm como principais características o fato de não detalhar e nem

prescrever totalmente o desenvolvimento de uma ação (SOLÉ, 1998, p. 69).

Portanto, o entendimento de que tais estratégias devem ser atualizadas a cada

leitura que realizamos é primordial para uma compreensão mais autônoma49 do

texto.

[...] as estratégias são suspeitas inteligentes, embora arriscadas, sobre o caminho mais adequado que devemos seguir. Sua potencialidade reside justamente nisso, no fato de serem independentes de um âmbito particular e poderem se generalizar; em contrapartida, sua aplicação correta exigirá sua contextualização

48 Este objetivo de leitor também já pode ser considerado como uma estratégia de leitura. 49 De acordo com Solé (1998), leitor autônomo significa aquele “[...] capaz de interrogar-se sobre sua própria compreensão, estabelecer relações entre o que lê e o que faz parte do seu acervo pessoal, questionar seu conhecimento e modificá-lo, estabelecer generalizações que permitam transferir o que foi aprendido para outros contextos diferentes”. (SOLÉ, 1998, p. 72)

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para o problema concreto. Um componente essencial das estratégias é o fato de que envolvem autodireção – a existência de um objetivo e uma consciência de que este objetivo existe – e autocontrole, isto é, a supervisão e avaliação do próprio comportamento em função dos objetivos que o guiam e da possibilidade de modificá-lo em caso de necessidade (SOLÉ, 1998, p. 69)

As estratégias devem ser construídas a partir da interação entre sujeitos,

tendo o professor, nesse contexto, um papel de destaque no sentido de possibilitar a

ampliação qualitativa das mesmas. Para tanto, a leitura compartilhada se insere

numa das mais coerentes possibilidades de desenvolvimento de estratégias de

leitura e, por conseguinte, de interpretação de textos. Tanto o professor quanto os

educandos exercem o papel de mediadores, na medida em que utilizam estratégias

de leitura que são progressivamente modificadas pela sua interação com outros.

Essa interação torna o ato de ler diversificados gêneros textuais uma atividade cada

vez mais complexa, mais elaborada, na medida em que o leitor passa a ter uma

metaconsciência de suas formas de aproximação interpretativa.

Todo esse processo de trocas significativas do que é vivenciado e criado

a partir do texto em interação com outros sujeitos está situado, inicialmente, num

nível interpsicológico. Posteriormente, a partir das discussões realizadas nas

atividades de leitura compartilhada, na qual expomos nossas questões e opiniões,

essas são dinamicamente e simultaneamente modificadas a cada exposição,

fazendo desse processo de interlocução um momento propício de formação, em

nível intrapsicológico, de novas estratégias de leitura.

Daí a necessidade de o professor e, por conseguinte, de o estudante,

buscar conhecer a diversidade textual existente atentando para suas funções

sociais, já que para cada gênero textual existem formas diversificadas de

aproximação. Por exemplo, a formulação de perguntas sobre determinado texto já

consiste em uma estratégia de leitura. Logo, é importante que tanto o professor

quanto o estudante possam estar cientes das múltiplas e variadas formas de

organização estrutural e funcional dos textos e das atividades possíveis. Além disso,

é pertinente explicitar que as perguntas elaboradas devem visar a compreensão do

texto e não priorizar a avaliação de conteúdos curriculares que podem ser extraídos

do mesmo. Perguntas pertinentes, formuladas com base no gênero textual

selecionado, fazem com que o leitor possa se situar na leitura e compreender melhor

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o que está lendo, criando assim múltiplas possibilidades de leitura e interpretação

fecundas e híbridas.

Com base no que foi dito, até agora, cabe-nos sintetizar o que

entendemos por estratégia de leitura, tentando esboçar um conceito geral e listar

algumas delas. O termo estratégia pode ser considerado pelo leitor como sinônimo

de procedimentos, regras, técnicas etc. Entretanto, a nosso ver, estratégia envolve

um ingrediente chave, insubstituível e presente em qualquer relação social: a

criatividade. Quando escolhemos esse termo, pensamos em situar tanto o professor

quanto os estudantes no lugar que lhes é de direito: como sujeitos do conhecimento.

O que implica dizer que independente da avaliação alheia – nesse caso do

pesquisador -, as propostas de aproximação/leitura de textos do professor estão

carregadas de significado, de sua experiência pessoal e profissional, de suas

leituras de mundo, de sua posição social etc, o que lhe imputa um papel de sujeito

atuante e, portanto, que cria e recria, mesmo que esse processo seja considerado

pelo outro mais próximo de uma reprodução.

O professor, mesmo pautando-se nas sugestões e/ou imposições dos

livros didáticos para realizar determinada atividade em sala de aula, em especial

com textos, não está apenas seguindo regras, mas está dando a essas um pouco de

si, de sua atitude singular, construída por um coletivo, mas inscrita em sua história

pessoal de vida. Desse modo, mesmo que as modificações nas regras e técnicas

sejam mínimas ou que, a nosso ver, nem sequer existam, a seleção destas já

implica em uma estratégia do professor. O que não significa dizer que todas as

estratégias de leitura propostas pelo professor devam ser acatadas e ou

consideradas pertinentes. Neste caso, o termo estratégia é utilizado para designar

todas as ações escolares do professor, por uma preocupação em concebê-lo como

um sujeito e não objeto de nossa pesquisa. Dito isso, pensamos que além da

criatividade para designar o que seja uma estratégia, deve-se buscar inserir outros

dois ingredientes: a autonomia e a intuição.

Outro ponto a considerar é a utilização de diversas atividades como

sinônimo de criatividade e/ou de estratégias de leitura. Sabemos que a diversidade é

importante, mas não é suficiente para a formação de leitores. Assim, de acordo com

os estudos já realizados:

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56

Somente quando se ensina o aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como ele está estruturado, como ele produz sentidos, quantos significados podem ser aí sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com esse objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimentos para, assim, compreendê-lo, há ensino da leitura. O papel da escola nesse processo é o de fornecer um conjunto de instrumentos e de estratégias para o aluno realizar esse trabalho de forma progressivamente autônoma. (KLEIMAN, 2002, p. 26)

Quanto ao que são estratégias de leitura, destacamos as dificuldades em

listá-las, já que elas dependem, em grande medida, do gênero textual selecionado.

Entretanto, existem estratégias gerais que, a nosso ver, podem nos servir de base

para a criação de outras tantas, mais dependentes do contexto. Para isso, contamos

com a ajuda de autores como Geraldi (1997) e Solé (1998).

Geraldi (1997, p. 92), por exemplo, cria quatro posturas que o leitor deve

ter diante do texto:

1. a leitura - busca de informações;

2. a leitura – estudo do texto;

3. a leitura do texto – pretexto;

4. a leitura – fruição do texto.

Tais posturas, por nós conceituadas de estratégias de leitura, estão

coerentemente associadas ao uso de qualquer gênero textual na escola, pois se

apresentam como formas de aproximação de textos do ponto de vista de um leitor

concreto, que possui múltiplos objetivos e que, dessa forma, está inserido num

contexto macro-social. Por isso, as estratégias de leitura não devem ser estanques

para cada gênero textual, mas pautadas na dinamicidade discursiva presente na sua

constituição. Assim, ao mesmo tempo em que utilizamos um texto didático-científico

para buscar informações, também podemos vivenciá-lo numa perspectiva

diferenciada, como leitura do texto – pretexto, desde que a situação e os objetivos

assim permitam. O texto didático-científico pode servir, então, não apenas como

base de informação, mas também como pretexto para validar ou refutar certos

argumentos, para comparar temáticas semelhantes com gêneros textuais diferentes.

O importante disso tudo é não pensar que um determinado texto só pode ser visto

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57

de uma perspectiva, ignorando ou camuflando, assim, a sua dinamicidade sócio-

histórica.

Dessas estratégias mais gerais, existem estratégias mais específicas, as

quais devem estar intimamente associadas à funcionalidade dos textos,

considerando-o, na perspectiva de Orlandi (2004), tanto como um todo completo, do

ponto de vista de sua estrutura empírica, quanto um todo incompleto, se

considerarmos a sua discursividade. O que significa dizer que o texto não pode

servir apenas para análise gramatical, pois o reduziria a apenas objeto de estudo,

desconsiderando a sua propensão para o diálogo. Assim, as estratégias específicas

devem levar em consideração os dois lados da moeda, trabalhando de forma

interligada as duas perspectivas acima mencionadas.

São várias as estratégias que podemos utilizar para cada estratégia geral

criada por Geraldi e por ele denominada de posturas:

• Para a leitura - busca de informações e estudo do texto: leitura

silenciosa e/ou em voz alta50; elaboração de perguntas, a priori, pelos educandos ou

pelo professor; levantamento de hipóteses; identificação da(s) idéia(s) principal (is)

do texto51, nesse caso visando mais a perspectiva do autor; comparação com outros

gêneros textuais que tratam da mesma temática; resumo do texto; instalação de

debates; consulta ao dicionário (só quando o leitor não consegue compreender o

significado da palavra a partir do contexto em que ela está inserida),

autoquestionamento, dentre outros.

• Para a leitura do texto – pretexto: leitura silenciosa e/ou em voz alta,

comentários gerais e orais tanto sobre a estrutura do texto quanto da(s) sua(s)

temática(s); identificação da(s) idéia(s) principal (is) do texto, tanto na perspectiva do

autor quanto do leitor; hipóteses sobre de que outras maneiras poderíamos

aproveitar o texto em questão;

• Para a leitura – fruição do texto: consideramos que para esse tipo de

leitura não devem existir estratégias direcionadas, já que a leitura fruição significa a

busca pelo prazer de ler, o ler sem objetivos sistematizados, embora nesta leitura

não possamos dizer que a busca de informação, o estudo do texto e a leitura do

texto-pretexto não estejam presentes e vice-versa. Apenas queremos esclarecer que

50 Vide BAJARD, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 51 Vide mais sobre essa temática em Solé (1998), cap. 7.

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“o que define esse tipo de interlocução é o ‘desinteresse’ pelo controle do resultado”

(Geraldi, 1997, p. 98). Não há uma prescrição do seu uso a posteriori, ou se há

estes não são explicitamente visíveis.

Como pode ser observado, existem diversificadas estratégias de leitura,

as quais devem estar de acordo com o gênero textual em questão (sua

funcionalidade social) e os objetivos do leitor. Mas, é importante sublinhar que tais

estratégias não devem ser rigidamente seguidas como descrevemos. Isto é, como

se para cada estratégia geral só pudessem ser utilizadas as estratégias específicas

citadas. É claro que elas podem estar mescladas em qualquer estratégia geral. O

que devemos ter clareza é que para cada uma delas deve haver um pensar

constante do leitor, nesse caso mais especificamente do professor, sobre as suas

vantagens no uso de determinado texto, pois devem responder, a nosso ver, as

seguintes questões: Por que utilizar essa estratégia? Que indicadores significativos

de aprendizagem ela pode oferecer? O seu caráter é avaliativo ou visa mais a

compreensão do texto pelos educandos? Essa estratégia está de acordo com a

funcionalidade social do texto? A dinâmica da leitura será mantida com a introdução

dessa estratégia?

Dito isso, o que se desejou com o estudo de caso de duas quartas séries

do Ensino Fundamental I de uma escola pública da cidade de Salvador/BA, foi,

justamente, tentar visualizar quais gêneros textuais a escola vem priorizando; que

estratégias os professores estão adotando e/ou criando durante sua ação mediadora

entre texto e educando; quais limites são impostos e quais possibilidades são

lançadas na leitura e produção de determinado gênero textual.

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___________________CAPÍTULO 2_____________________

ALINE NO PAÍS DAS ARMADILHAS

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60

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA E OS PROCEDIMENTOS DE

PESQUISA UTILIZADOS

O objetivo desta pesquisa era o de verificar quais os gêneros textuais52

utilizados em sala de aula por duas professoras da 4ª série do Ensino Fundamental

I, em uma escola pública da cidade de Salvador/BA, assim como investigar quais os

procedimentos metodológicos utilizados por estas no que se refere ao uso dos

gêneros textuais em condições de ensino e aprendizagem. Sendo assim, para

responder a tais questões, o percurso metodológico adotado buscou interagir com

uma abordagem metodológica qualitativa na perspectiva de Bogdan e Biklen (1994)

que será explicitada a seguir, por entendermos sua vital importância, em especial,

para o campo educacional.

De acordo com Bogdan e Biklen (1994), as investigações qualitativas em

educação só alcançaram reconhecimento no século XX, especificamente a partir de

1954, devido ao declínio da vida urbana na socieda de norte americana. Este

declínio atingiu inúmeras áreas desta sociedade, dentre elas, a educação, a saúde

pública e a administração das cidades. A partir daí, pesquisadores como Frederick

LePlay e Henry Mayhew passaram a fazer uso da observação participante e de

entrevistas exaustivas com o intuito de ver surgir, desse esforço investigativo que

realizavam no próprio meio sócio-cultural dos sujeitos da pesquisa, as respostas

para as dificuldades apresentadas em relação às condições de vida das pessoas

que participavam destas instâncias sociais.

52 Consideramos como foco da pesquisa apenas os gêneros textuais escritos, devido à complexidade de apreender os gêneros orais, já que o ambiente da sala de aula é dinâmico e possuidor de um alto nível de interação entre seus integrantes sendo, dessa maneira, insuficiente a presença de apenas um pesquisador para dar conta de ambos os gêneros.

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No entanto, uma das maiores contribuições para a pesquisa qualitativa em

educação adveio com o desenvolvimento da antropologia interpretativa de Franz

Boas. Ele e seus colaboradores, além de terem vivido, embora por pouco tempo,

junto aos sujeitos de sua pesquisa em seus contextos naturais, entendiam “[...] que

os antropólogos deviam estudar as culturas com o objetivo de aprender a forma

como cada uma delas era vista pelos seus próprios membros” (BOGDAN; BIKLEN,

1994, p. 25), buscando assim minimizar as distorções que eram feitas por muitos

pesquisadores que observavam outros contextos culturais tomando por base o seu

próprio.

Mas foi Bronislaw Malinowski quem melhor descreveu suas experiências

de campo, já que conviveu por um longo tempo nos contextos naturais dos sujeitos

de sua pesquisa. Assim, ampliou tanto o conceito de cultura, ao destacar a

necessidade do pesquisador perceber e enfatizar “o ponto de vista do nativo”

(MALINOWSKI, 1922, p. 25 apud BOGDAN; BIKLEN,1994, p. 25), bem como ao

explicitar as maneiras pelas quais obteve os seus dados de pesquisa. E, foi a partir

dessa abordagem de Malinowski que, segundo Bogdan e Biklen (1994), se constituiu

as bases teóricas e metodológicas dos sociólogos de Chigago53, os quais

trabalhavam com observação participante, tendo como âncora teórica o

entendimento de que o sujeito era fruto de interações sociais, o que condiz

atualmente com a nossa base teórica advinda dos estudos Bakhtinianos e

Vygotskianos, principalmente no que se refere ao uso da diversidade textual em sala

de aula. Lembramos, ainda, que os recursos utilizados para estarmos nesta

perspectiva interpretativa anteriormente mencionada foram a convivência no

ambiente estudado quanto e a realização de entrevistas semi-estruturadas com as

duas professoras, sujeitos de nossa pesquisa.

Em relação à metodologia “[...] todos se baseavam no estudo de caso,

quer se tratasse de um indivíduo, de um grupo, de um bairro ou de uma

comunidade”. (WILEY, 1979 apud BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 27). Mas,

infelizmente, as idéias da Escola de Chicago não foram devidamente discutidas e

desenvolvidas pelos educadores, mesmo com a inauguração do curso de Sociologia

53 “A ‘Escola de Chicago’, rótulo aplicado a um grupo de sociólogos investigadores com funções docentes e discentes no departamento de sociologia da Universidade de Chicago, nos anos 20 e 30, contribuíram para o desenvolvimento do método de investigação que designamos qualitativo.” (BOGDAN; BIKLEN ,1994, p. 26)

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da Educação em 1915. Isso porque a Sociologia, preocupada com a aquisição de

um status de ciência, buscou o caminho da quantificação, da experimentação,

distanciando-se cada vez mais da abordagem qualitativa e deixando em segundo

plano o contexto social.

Todavia, Bogdan e Biklen (1994) dizem que, apesar dessa visão

equivocada da Sociologia da Educação, os alunos da Escola de Chicago deram

continuidade às reflexões metodológicas e teóricas baseadas na tradição

etnográfica, em especial Everett C. Hughes que desenvolveu com grande parte de

seus alunos investigações qualitativas no campo da educação na década de 50. Por

outro lado, citam ainda os anos 60 como favoráveis à expansão dos interesses de

educadores e agências estatais pelos problemas educacionais, estando agora o

olhar desses investigadores mais sensível durante a realização de seus estudos.

Nessa perspectiva, Bogdan e Biklen (1994) destacaram cinco

características de uma investigação qualitativa. Essas serão aqui citadas por

estarem coerentemente relacionadas com a nossa concepção de pesquisa. Além

disso, essas características sintetizam de forma clara e concisa os aspectos

essenciais de um estudo que busca entender os sujeitos e os objetos do processo

investigativo como sendo originários de um contexto social global, demonstrando,

dessa maneira, a imprescindível cautela que os pesquisadores devem ter em seus

registros de campo; ou seja, precisam descrever o que vêem de forma a englobar os

fatores temporais, seqüenciais, físicos, estruturais, emocionais etc., deixando

sempre claro em sua escrita as reflexões que realizam sobre os acontecimentos

ocorridos no campo empírico e as posições que assumem em relação aos mesmos.

Tal como mencionamos anteriormente, seguem as cinco características

fundamentais de uma investigação qualitativa explicitadas por Bogdan e Biklen

(1994, p. 48-50), as quais estão condizentes com o nosso procedimento

metodológico:

1. Na investigação qualitativa a fonte directa de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; 2. A investigação qualitativa é descritiva; 3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos; 4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva; 5. O significado é de importância vital na abordagem qualitativa.

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Como já mencionado, Bogdan e Biklen (1994) enfatizam que as pesquisas

de cunho qualitativo devem explicitar a sua orientação teórica, ou seja, o modo como

entendem e analisam o que vêem. Assim sendo, nossa flexível postura

metodológica se debruça sobre o postulado fenomenológico, o qual entende a

realidade como um constructo social. Dessa maneira, a subjetividade do sujeito é

vista como um elemento que compõe todo o caminhar da pesquisa. É interessante

sublinhar que no campo educacional a etnografia é definida como sinônimo da

pesquisa qualitativa, sendo uma orientação teórica independente da fenomenologia,

embora isso não invalide o diálogo e a troca entre ambas. Neste presente trabalho,

buscamos justamente enfatizar a interseção existente entre essas duas dimensões,

esboçando, ainda que de forma sucinta, as suas contribuições para a tessitura de

nossas análises sobre o objeto pesquisado. Assim, a pesquisa está baseada no

estudo do tipo etnográfico, e esta escolha pode ser aqui descrita a partir da seguinte

colocação:

[...] A tarefa do etnógrafo consiste na aproximação gradativa ao significado ou à compreensão dos participantes, isto é, de uma posição de estranho o etnógrafo vai chegando cada vez mais perto das formas de compreensão da realidade do grupo estudado, vai partilhando com eles os significados. (ANDRÉ, 1995, p. 20)

Ou melhor, o estudo do tipo etnográfico é caracterizado pelo contato direto

do pesquisador com a situação a ser estudada, permitindo conhecer suas redes de

relações e interações. Além disso, é válido ressaltar que buscar conhecer a

realidade estudada exige do etnógrafo a explicitação dos ideais e preconceitos que

permeiam suas análises. Assim, além de observamos quais os textos que duas

professoras da quarta série do Ensino Fundamental I, de uma escola pública da

cidade de Salvador, em geral, utilizavam, buscamos também conhecer as

estratégias de leitura/aproximação que estas aplicavam aos mesmos, o que

demandou uma permanência de quatro meses do pesquisador nas salas de aula de

ambas as professoras.

Além disso, o estudo etnográfico faz uso de técnicas que nos dão a

possibilidade de considerar o contexto da pesquisa a partir de uma descrição densa

sobre o campo, as pessoas, os locais e as situações, contribuindo para a apreensão

da dinâmica da prática escolar, espaço este de nosso estudo. Essa dinâmica pode

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ser estudada com base em três dimensões: institucional ou organizacional,

instrucional ou pedagógica e a sociopolítica/cultural (ANDRÉ, 1995, p. 42).

Sabemos, no entanto, que uma pesquisa tão concisa no que diz respeito ao tempo

de realização não poderá abarcar estas três dimensões de forma minuciosa; mas

durante toda a descrição analítica do objeto de estudo tomaremos, muitas vezes,

paralelamente e implicitamente, esta tríade, já que não podemos detalhar o impacto

de certos acontecimentos ocorridos em campo sem recorrer às mesmas.

Dentre as técnicas mais comuns e, a nosso ver, mais pertinentes para a

realização dessa pesquisa, destacamos:

* Observação participante, na qual o observador está integrado com a

situação estudada. No entanto, é sabido que o pesquisador só poderá considerar

sua observação como participante à medida que for aceito pelas pessoas implicadas

na pesquisa, aspecto esse que fez parte deste contexto de pesquisa.

A pretensão de utilizá-la surgiu, especialmente, devido ao fato de essa

técnica possibilitar ao pesquisador “[...] captar uma variedade de situações ou

fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados

diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e

evasivo na vida real”. (MINAYO, 1999, 59 – 60)

* A entrevista semi-estruturada, utilizada tanto para esclarecer e

aprofundar questões observadas e relevantes para a pesquisa, quanto para

conhecer aqueles acontecimentos sobre o objeto de pesquisa que não são

diretamente observáveis54. Esta técnica foi utilizada apenas uma vez para as duas

professoras já citadas.

* Análise de materiais de apoio pedagógico, tais como: planos de aulas,

livros didáticos e paradidáticos, avaliações, produções dos estudantes, dentre

outros. Esses materiais foram consultados devido à necessidade em complementar

nossas informações e contextualizar melhor o fenômeno estudado.

Consideramos viável realizar um estudo de caso, pois, parafraseando

Macedo (2000), a sua característica essencial é a propensão para descobertas. O

conhecimento construído deve ser constantemente revisto e refeito. O pesquisador

deve valorizar a interpretação com base no contexto, sendo a realidade retratada de

54 Como por exemplo, o que pudemos apreender na entrevista semi-estruturada com as duas professoras: história profissional, angústias e avaliações de suas práticas pedagógicas.

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maneira densa a partir do uso de dados coletados em diversos momentos da

pesquisa.

Além disso, o motivo principal a partir do qual pretendemos caracterizar

este trabalho como um estudo de caso etnográfico advém, também, das colocações

de André (1995), que faz uma valiosa e relevante síntese das opiniões de diversos

pesquisadores sobre este tipo de estudo. Dentre os pontos que a autora destaca,

estão: a inserção do pesquisador numa instância em particular; o desejo do

pesquisador em conhecer profundamente a complexidade de relações e interações

envolvidas na instância pesquisada; a preocupação com os processos cotidianos do

caso pesquisado e não com a busca de resultados; a intenção de descobrir

conceitos e hipóteses teóricas e não de testar as do pesquisador55 e a de descrever

a dinâmica natural da situação estudada.

Na compreensão da autora,

Os estudos de caso também são valorizados pela sua capacidade heurística, isto é, por oferecer insights e conhecimentos que clarifiquem ao leitor os vários sentidos do fenômeno estudado, levando-o a descobrir novas significações, a estabelecer novas relações, ampliando suas experiências. Esses insights podem vir a se tornar hipóteses que sirvam para estruturar futuras pesquisas, o que torna o estudo de caso especialmente relevante na construção de novas teorias e no avanço do conhecimento na área. (ANDRÉ, 1995, p. 53)

Por outro lado, temos consciência dos riscos que poderiam acompanhar o

estudo de caso, como, por exemplo, um preparo inadequado do pesquisador no que

diz respeito ao domínio dos instrumentos teórico-metodológicos e as questões de

ordem ética. Ou seja, o pesquisador pode apresentar informações de seu interesse,

assim como dados que comprometam a instituição estudada. Entretanto, tais

exemplos sempre estiveram distantes do nosso contexto de formação acadêmica.

Pensamos, então, em assumir uma postura de etnógrafos por compreendermos que

o pesquisador que deseja estudar e apresentar uma pesquisa de campo deve

explicitar, a todo o momento dissertativo-reflexivo, a sua posição frente aos a(u)tores

da pesquisa, ou seja, os julgamentos e níveis de aceitação do pesquisador na

55 Isso não quer dizer que o pesquisador não deva divulgar sua opinião e/ou explicitar sua linha teórica acerca do fenômeno estudado. Para tanto, deve esforçar-se para deixar claro que a descrição dos fenômenos observáveis no campo empírico está intimamente atrelada à suas posições frente a esses mesmos fenômenos.

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realidade estudada. Além disso, Macedo (2000), inspirado nos trabalhos de Cicourel,

ressalta que:

[...] uma das primeiras tarefas do cientista social é clarificar o conteúdo de sua linguagem dissertativa e explicar a teoria que dá feição e dinamiza seus instrumentos e os chamados dados da sua pesquisa, fazendo uma espécie de desnudamento das inspirações que orienta suas ações de pesquisador. (MACEDO, 2000, p. 143)

Toda esta postura descrita do pesquisador, a nosso ver, pode ser

considerada como sinalizadora de princípios investigativos coerentes e plausíveis da

fidedignidade e da ética de tais procedimentos. Quanto à questão da validade do

estudo de caso, não devemos partir do pressuposto “[...] de que a construção do real

feita pelo pesquisador seja a única ou a correta; aceita-se que os leitores possam

desenvolver as suas representações do real e que essas possam ser tão

significativas quanto à do pesquisador”.(ANDRÉ, 1995, p. 56).

Baseando-se nesses pressupostos metodológicos aqui descritos,

consideramos ser imprescindível, ainda, explicitar que a pesquisa que aqui

apresentamos sobre os gêneros textuais mais utilizados no espaço escolar e suas

formas de funcionamento está claramente pautada por uma opção teórica que

concebe a linguagem como uma ação, como uma construção coletiva decorrente de

processos tanto de verbalizações intrasubjetivas quanto de socialização. Desse

modo, o texto, ou mais especificamente qualquer composição textual, possui uma

organização estrutural e semântica originárias de uma relação dialógica, na qual

está implicado tanto o autor quanto o outro - a quem o referido texto idealmente ou

concretamente se destina. Daí a importância que estamos dando aos vários gêneros

textuais, pois partimos do pressuposto de que são construções sociais e históricas

decorrentes da complexa necessidade dos sujeitos de produzir, compreender,

comunicar, interagir, representar, adaptar, planejar, enfim, de se constituírem.

Assim, o texto escrito, enquanto ação com sentido, constitui uma forma de relação dialógica que transcede as meras relações lingüísticas, é uma unidade significativa da comunicação discursiva que tem articulações com outras esferas de valores. (GARCEZ, 1998, p. 63)

[...] Para Schneuwly (1993), os gêneros são instrumentos mediadores, ou seja, objetos socialmente elaborados, frutos de experiências das gerações precedentes pelos quais se transmitem e

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se ampliam as experiências possíveis; determinam o comportamento, guiam, afinam e diferenciam a percepção da situação na qual o sujeito é levado a agir. Como instrumento, o gênero mediatiza a atividade, dá-lhe forma e materialidade. Ao mesmo tempo em que o indivíduo se apropria desses instrumentos mediadores, apropria-se também dos seus esquemas de utilização. (GARCEZ, 1998, p. 63-64)

Dito mais claramente, a pesquisa, explicitamente de cunho qualitativo,

traçou suas bases teórico-metodológicas a partir dos pressupostos da linha sócio-

interacionista. Para tanto, nos valemos das idéias de Vygotsky sobre o

desenvolvimento intelectual dos sujeitos, de Bakhtin e de Orlandi. É importante

destacar, ainda, que não pretendemos, durante o percurso desta escrita,

supervalorizar a nossa forma de pensar os modos de funcionamento do texto no

contexto escolar, mas sim, descrever e analisar os gêneros textuais mais

trabalhados, tendo como foco as estratégias de leitura que os professores utilizam

para que os estudantes se aproximem destes.

Vejamos, então, de forma ainda geral, as armadilhas naturais lançadas

pelo cotidiano pedagógico estudado e seu confronto, também, com as armadilhas

metodológicas disponíveis.

2.1.1 Na toca do coelho – Os primeiros passos e as primeiras impressões

sobre o universo de realização da pesquisa

Alice já estava cansada de ficar à toa olhando as nuvens que corriam no céu. Tentou espiar um pouquinho o livro que sua irmã lia sentada no banco ao seu lado. Mas desistiu logo, dizendo para si mesma:

– Ora, de que serve um livro sem figuras?!...

Lewis Carrol (1968)

Tal como Alice no seu país das maravilhas foi Aline no seu país das

armadilhas! Sua preocupação, enquanto professora, com discussões teóricas (livro

sem figuras) sem uma inserção maior em campo (livro com figuras), fez com que

procurasse discutir sobre a importância que a variedade textual poderia trazer para a

formação do leitor a partir de olhares sobre um espaço concreto de ensino e

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aprendizagem – a sala de aula. Mas, a busca por uma construção teórico-prática

sobre os gêneros textuais e suas formas de aproximação didático-pedagógicas não

foi uma tarefa fácil, pois se a reflexão teórica demanda cuidados e um instinto

curioso, a reflexão sobre a prática pedagógica de professoras nos cobra ainda mais!

Faz-nos perceber que o território é outro; que a busca se transforma numa longa

espera, que requer paciência, percepção aguçada, interação - não apenas com

intencionalidades objetivas, mas também no que se refere a outros aspectos, tais

como a insegurança diante de fatos e as reações, principalmente, no que se refere à

explicitação dos nossos sentimentos e escolhas teóricas no tratamento das

informações colhidas em campo.

Assim, foi com o desejo de construir um livro com figuras que, como já

mencionamos anteriormente, escolhemos como nosso campo de ação uma escola

pública municipal da cidade de Salvador/BA, localizada no bairro periférico de São

Caetano, da referida cidade. Esta escola contempla a Educação Infantil e Ensino

Fundamental da 1ª a 4ª séries, funcionando nos turnos matutino e vespertino. Conta,

ainda, com uma das melhores estruturas físicas, isto em comparação com as demais

escolas municipais conveniadas dessa região, visto que foi recentemente reformada.

Ela possui:

1. Nove salas de aula em que cada uma poderia acomodar

confortavelmente, a nosso ver, 28 estudantes. Todas têm piso no chão e a metade

da parede revestida de azulejo, o que facilita a colocação de cartazes, de panfletos e

outros recursos visuais, sem, contudo, comprometer a higiene da sala de aula. As

carteiras, inicialmente na quarta série A, eram compostas de mesas e cadeiras,

sendo posteriormente trocadas por carteiras que possuíam as mesas já acopladas

às cadeiras, modelo este que ocupa menos espaço físico. As salas de aula contam,

ainda, com um quadro negro grande, ocupando praticamente toda uma parede, um

armário, uma mesa do professor e algumas prateleiras (ocupadas com livros

didáticos e/ou produções dos estudantes, tipo maquetes e atividades escritas), todos

em bom estado de conservação. Todas as salas contam com amplas janelas e, em

média, dois ventiladores de teto, embora estes não funcionem adequadamente.

2. Uma sala de leitura ampla podendo comportar, em média, trinta

estudantes. Na sala há um quadro negro, uma mesa grande, algumas carteiras, uma

TV, um som, um computador (não para uso dos estudantes), armários contendo

livros didáticos, de consulta e os ditos de histórias infantis. É também revestida de

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azulejos até à metade da parede. Aliás, toda a escola possui este padrão. Conta,

também, com uma janela decorada com pinturas de desenhos infantis. No entanto,

consideramos a organização dos móveis inadequada para receber,

confortavelmente, os estudantes leitores. Além disso, a sala não possui um

mobiliário adequado, tipo: almofadas, esteiras, prateleiras mais acessíveis e com

livros organizados por títulos, bem como a TV e o vídeo visualmente localizados,

carteiras diferenciadas (estilo acolchoadas) nem uma variedade maior de portadores

de textos.

3. Uma copa ampla que tem um fogão industrial, uma geladeira, uma

mesa grande, dois armários, duas pias amplas e uma janela de refeitório para que

os estudantes recebam, sem maiores tumultos, suas refeições.

4. Uma sala da direção escolar, contendo um computador, um sanitário,

um armário, um arquivo, um compartimento para armazenamento de materiais

escolares, duas mesas e um telefone. Há, ainda, um telefone público no pátio

interno da escola.

5. Uma sala de administração, contendo dois armários, dois arquivos. Um

mimeógrafo, uma mesa e um compartimento.

6. Duas áreas de lazer, sendo uma interna coberta e outra externa, sem

cobertura.

7. Dois sanitários para os estudantes, sendo um para o gênero masculino

e outro para o feminino. Cada sanitário conta com três compartimentos.

Para dar início à observação em sala de aula, inicialmente dialogamos

com a responsável pela Coordenação Geral das Escolas de São Caetano, que nos

apresentou, sem restrições, à diretora da Escola escolhida para realização da

pesquisa. Em seguida, contamos com a colaboração desta última para conhecer as

professoras, tendo como objetivo deixá-las a par de que tipo de pesquisa se

realizaria, quais os instrumentos utilizados e, de certo modo, o papel exercido pelo

pesquisador-participante no seu espaço de atuação profissional: a sala de aula.

Podemos dizer que a nossa ida a campo foi extremamente facilitada, em especial

por dois motivos:

1. O pesquisador-participante já havia feito parte da rede municipal de

ensino da cidade de Salvador, portanto já conhecia os seus ranços e avanços. Além

disso, ele também já tinha atuado no mesmo bairro de realização da pesquisa

sendo, portanto, aceito pelas professoras sem maiores restrições. Pode-se dizer que

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70

o clima foi de acolhimento, pois de certo modo o pesquisador-participante já fazia

parte da turma.

2. A diretora da Escola não fez e/ou não demonstrou objeções ao tipo de

pesquisa que seria realizada, aparentando interesse pela temática apresentada.

Em síntese, e com muito mais sorte do que Alice, ninguém ordenou, “com

voz trêmula de ódio”, que cortassem a nossa cabeça! Por isso, pudemos, após os

contatos e diálogos descritos com a Coordenadora Regional, com a Diretora e com

as Professoras, agendar a nossa entrada na sala de aula para a observação

participante.

Inicialmente, escolhemos a 4ª série A por notarmos que a professora

responsável por essa classe deu-nos, tanto através de conversação56 quanto de sua

expressão facial, indícios de não estar tão preocupada com a nossa presença na

sala de aula, ao contrário da professora da 4ª série B57.

Lembramo-nos, de antemão, que decidimos permanecer por três meses

consecutivos em cada sala de aula, pois achávamos que a alternância poderia gerar

problemas do tipo: não conhecer o ritmo cotidiano das turmas e das atividades

seqüenciais desenvolvidas pelas professoras, estabelecer comparações entre as

duas turmas e/ou professoras e direcionar a atenção dos estudantes para a

presença da pesquisadora58. Mas, permanecemos observando ambas as salas

durante quatro meses consecutivos.

Durante esta observação-participante fazíamos anotações no diário de

campo, recolhíamos e/ou copiávamos as atividades, textos e planos de aula,

gravávamos as atividades que eram autorizadas pelas professoras59, ajudávamos

56 Ela nos informou que já estava “acostumada” com a presença de observadores em sua classe, visto que representantes do curso “Gestar”, do qual fez parte, sempre apareciam de “surpresa” para observar sua prática pedagógica. 57 No início das observações a respectiva professora aparentou certo incômodo, mas, a nosso ver, este foi amenizado por travarmos, com a mesma, diálogos constantes durante os intervalos da aula. 58 É válido dizer que os estudantes davam-nos a maior atenção quando do uso da máquina fotográfica e gravador, assim como nos intervalos; raramente nos consultavam a respeito de resolução de atividades e para pedir opinião sobre assuntos diversos que não faziam parte dos conteúdos escolares. Alguns, ainda, nos tinham como confidentes de seus problemas e traquinagens dentro e fora da escola. 59A professora fez ensaio de uma peça sobre a páscoa para ser apresentada às demais turmas da escola. Durante os ensaios, na própria sala de aula, solicitamos a autorização para gravação. A turma ficou eufórica e concentrada ao perceber a utilização do gravador. Mas, o interessante mesmo foi que o gravador transformou-se num grande instrumento de auto-avaliação do desempenho dos estudantes com relação às suas personagens. Após cada ensaio gravado, passávamos a fita para que pudéssemos ouvir e refletir sobre o que eles faziam. Nós e a professora obtivemos grandes avanços qualitativos com o uso desse instrumento e procedimento, pois a turma e os estudantes que faziam parte da peça teatral comentavam seus equívocos – tais como iniciar a fala de sua

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alguns estudantes em suas tarefas e às vezes realizávamos brincadeiras com os

mesmos após o término do intervalo 60.

Nosso passo subseqüente foi realizar uma entrevista semi-estruturada

com ambas as professoras61, que possuía questões do tipo:

1. Fale-me um pouco da sua formação como leitora.

2. Atualmente, o que mais gosta de ler?

3. Que gênero textual62 você considera cansativo, possuindo uma

organização de difícil compreensão?

4. Que textos você mais gosta de trabalhar em sala de aula? Por quê?

5. Há critérios de leitura para cada gênero textual? Quais? Estes critérios

estão baseados em algum livro, autor ou idéia?

6. De que forma você seleciona os textos para trabalhar em sala de aula?

7. Existe algum gênero textual que os estudantes mais gostam? Qual?

Por quê?

8. Há textos que você não gosta de trabalhar em classe? Quais? Por

quê?

9. Participou de alguma atividade de formação que incluísse discussões

e/ou atividades voltadas para o trabalho de leitura e produção textual?

10. Qual a sua formação?

11. Existem livros, autores ou idéias que influenciem tanto na seleção de

textos quanto na maneira como você trabalha esses textos em sala de aula?

12. Dê exemplo de questões que você considera essenciais ao trabalhar

textos em sala de aula. Por quê?

13. Quais perguntas os estudantes fazem com mais freqüência quando

você utiliza textos em sala de aula?

14. O que você considera como uma atividade criativa com textos?

personagem sem esperar que a fala da personagem anterior fosse totalmente completada – e davam novas direções aos seus dizeres e fazeres. 60 As brincadeiras eram bastante requisitadas pelos estudantes, mas raramente as realizávamos, pois não tínhamos a intenção de ser o centro das atenções, nem mesmo ocupar o papel das professoras. Vale destacar que duas vezes tivemos que assumir o papel de professora a pedido da direção e de uma das professoras. Mas, após uma conversa com ambas explicitamos os prejuízos que essa interferência poderia criar para o desenvolvimento da pesquisa. 61 Vide entrevistas na íntegra em anexo H. 62 Durante as entrevistas a expressão gênero textual foi substituída por tipo textual, já que as professoras ainda não utilizavam essa primeira expressão.

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72

A professora da 4ª série B se envolveu tanto com a entrevista que contou

muito de sua trajetória profissional fora da escola. Quanto à professora da 4ª série A,

percebemos que estava um pouco tensa e preocupada com a organização da festa

de final de ano, não dando margem à formulação de questões mais amplas.

Diante do já exposto, não parece difícil identificar que o recontar da

história vivenciada em campo se dará a partir de:

1. Diário de campo: contendo registros das atividades desenvolvidas,

sendo que algumas foram submetidas à análise imediata tanto do ponto de vista

afetivo quanto cognitivo. Este é um instrumento integrante da observação-

participante.

2. Planos de aula das professoras: com o objetivo de visualizar o que

foi planejado, o que foi alterado e por quê;

3. Textos: identificando e analisando tanto as estratégias quanto os

gêneros mais utilizados.

4. Transcrições de gravações de atividades: contendo, com mais

fidedignidade, os aspectos relevantes de algumas atividades desenvolvidas pelas

duas professoras.

5. Entrevista semi-estruturada com as duas professoras

participantes da pesquisa: as quais nos deram maiores detalhes sobre os textos

que elas consideram mais importantes e de que modo poderiam abordá-los na sala

de aula63.

Dessa forma, pensamos ser necessário introduzir, ainda que de forma

geral, as dimensões básicas de análise, decorrentes da vivência em campo e da

nossa base teórica já anteriormente mencionada.

2.1.2 A lagoa de lágrimas: A difícil e prazerosa construção das dimensões

básicas de análise

Engraçado! Exclamou Alice muito admirada. – Agora vou espichar-me como se fôsse o maior telescópio dêste mundo! Adeus pés!

63 No projeto de pesquisa pensamos em entrevistar a coordenadora pedagógica da escola; entretanto, a coordenadora, no ano de realização desta pesquisa, tinha assumido o cargo de vice-diretora, ficando a escola, portanto, sem coordenação pedagógica. Por isso, a entrevista não foi realizada, mas perguntamos às professoras sobre a criação conjunta de projetos e/ou atividades com textos. Tais respostas estão nas entrevistas que se encontram no anexo H.

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73

Olhando para baixo, a menina viu que, quanto mais crescia, mais distante iam ficando seus pèzinhos; quase os perdera de vista... Era o efeito do bôlo!...

Lewis Carrol (1968)

A construção de um perfil para o que foi visto, ouvido, sentido, não é uma

tarefa fácil. A preocupação em extrair as dimensões apropriadas nos faz, muitas

vezes, virar um telescópio, que tem por intenção tanto mostrar com maior nitidez o

que vivenciamos em campo, quanto abarcar, em nossas análises, extensas e

totalizantes dimensões de análises do campo textual, como os gêneros textuais e as

estratégias de leitura; o que, aliás, torna-se perigoso, já que buscamos realizar um

estudo de caso.

O que queremos inicialmente deixar evidente é que as dimensões

construídas nasceram de um árduo, mas prazeroso processo de reflexão sobre a

dinâmica cotidiana das duas salas de aula constituintes da pesquisa, assim como da

nossa opção por olhar ambos os espaços de aprendizagem a partir de um

referencial teórico sócio-interacionista. Para tanto, procuramos traçar um percurso

analítico que estivesse intimamente relacionado com esse referencial e que

pudesse, por outro lado, diminuir nossas chances de cair em certas armadilhas do

tipo:

1. Criar dimensões básicas de análise mais globais do que locais; ou seja,

distantes das vivências em campo e;

2. Realizar apenas uma análise conteudista dos materiais utilizados como

fonte de informação.

Assim, o que fizemos foi utilizar as entrevistas, os planos de aula, o diário

de campo, os textos e atividades não apenas para responder às questões referentes

à temática da pesquisa, mas também com o intuito de deixar transparecer outras

questões que, embora não possam ser discutidas neste trabalho, poderão

desvendar e criar para o leitor outras temáticas de pesquisa e de entendimento do

contexto estudado. Antes, no entanto, de descrevermos e analisarmos a dinâmica

cotidiana das duas professoras em suas respectivas salas de aula, optamos

inicialmente por exemplificar tais dimensões básicas: as estratégias de leitura e os

gêneros textuais apresentados no espaço escolar estudado. Esta opção, ao

contrário do objetivo da personagem Carolina - falar demais -, se assim Alice nos

permite mencioná-la, tem o intuito de possibilitar ao leitor um olhar mais perspicaz no

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confronto entre as dimensões básicas de análise e o fazer pedagógico das duas

professoras, descritos no próximo capítulo e sintetizados nas conclusões.

Far-se-á necessário, ainda, durante a análise dos dados, um esforço

constante e incessante de não olhar o objeto de estudo de forma unilateral, tendo a

preocupação não apenas com o conteúdo, mas também com a forma e com o

gênero escolhido pelo sujeito discursivo para inscrevê-lo. Dessa maneira, a

tendência não será apenas de seleção de temáticas que estejam diretamente

envolvidas com o nosso objeto de estudo, mas também daquelas que emergiram

sem uma busca configurada, sem intencionalidades definidas, justamente pelos

diferentes eixos temáticos que o contexto estudado possibilitou, independentemente

do nosso querer. No entanto, advertimos que não daremos a essas temáticas o

mesmo tratamento analítico que daremos às temáticas centrais desta pesquisa,

apenas não deixaremos de explicitá-las durante toda tessitura desta dissertação.

Sabemos que essa opção pode muitas vezes levar o leitor a pensar: “Mas isso não

tem nada a ver com a pesquisa!” Mas, considerando a possibilidade de que em um

único texto há vários discursos permeados por diversos e contraditórios fios

ideológicos, é que tentamos convencer o leitor que o desvirtuar do caminho temático

pode ser um indício favorável para a compreensão ampla e/ou restrita do que nos

cerca.

Dito isso, vejamos as dimensões básicas de análise que emergiram da

nossa reflexão e vivência teórico-prática:

1. Quanto à escolha dos gêneros textuais trabalhados nas duas quartas

séries do Ensino Fundamental pelas suas respectivas professoras, pudemos

perceber que há uma relação entre:

a) Gênero textual e disciplina curricular.

b) Gênero textual e vida do professor.

c) Gênero textual e formação do professor.

d) Gênero textual e avaliação de conteúdos.

2. Quanto às estratégias de leitura utilizadas por estas professoras,

pudemos perceber que há vinculações entre:

a) Estratégias de leitura e questionário.

b) Estratégias de leitura e apreensão de conteúdos.

c) Estratégias de leitura e estudo gramatical.

d) Estratégias de leitura e avaliação.

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75

Explicitadas estas dimensões básicas, é importante destacar que no

capítulo três buscamos demonstrar o porquê destas, muitas vezes, de forma

implícita, já que as mesmas foram extraídas da própria dinâmica das aulas. Antes,

no entanto, não pudemos deixar de mencionar que neste momento difícil e

prazeroso de reflexão sobre o vivenciado em campo, lembramo-nos muito de Emília

em uma de suas tantas travessuras, ops! Aventuras com o Visconde de Sabugosa.

Alice que nos perdoe, mas relendo a parte em que Emília tenta escrever suas

memórias, nos sentimos a própria, ao tentar traçar as dimensões básicas de análise.

Permitam-nos destacar alguns desses momentos da personagem:

- Agora escreva: Capítulo Primeiro.

O Visconde escreveu e ficou à espera do resto.

Emília, de testinha franzida, não sabia como começar.

Isso de começar não é fácil. Muito mais simples é acabar. Pinga-se um ponto final e pronto; ou então escreve-se um latinzinho: FINIS. Mas começar é terrível. Emília pensou, pensou, e por fim disse:

- Bote um ponto de interrogação; ou, antes, bote vários pontos de interrogação. Bote seis...

O Visconde abriu a boca.

- Vamos, Visconde. Bote aí seis pontos de interrogação – insistiu a boneca. – Não vê que estou indecisa interrogando-me a mim mesma?

E foi assim que as “memórias da Marquesa de Rabicó” principiaram dum modo absolutamente imprevisto:

Capítulo Primeiro

? ? ? ? ? ? ?

Monteiro Lobato (1968)

Bem, imaginem se Alice, Emília e Carolina se encontrassem? Com

certeza, em meio a tanta curiosidade, ansiedade e, porque não dizer, solidariedade,

estas buscariam, conjuntamente, mas conflituosamente, dar pé a esses escritos.

Pensando nisso e nelas, apresentamos o terceiro capítulo.

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76

______________________CAPÍTULO 3__________________

LENDO, VIVENCIANDO E COMPARTILHANDO CENAS DE UM

COTIDIANO ESCOLAR: A QUESTÃO DA UTILIZAÇÃO DOS

GÊNEROS TEXTUAIS

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77

3.1 DESCRIÇÃO DO CENÁRIO

A nossa permanência em sala de aula durante a realização desta

pesquisa nos fez perceber que uma das grandes dificuldades do professor é a

seleção de textos. Mesmo existindo no espaço social uma variedade textual, os

professores, em especial da rede pública de ensino, não têm acesso a essa

variedade. Além da não familiarização com os diferentes textos de uso social há,

ainda, dificuldades das instituições escolares quanto à aquisição de um amplo

material de leitura, assim como de participação em eventos culturais que possam

inserir, cada vez mais, estudantes e professores nesse extenso e diversificado

mundo dos textos.

Dentre outros aspectos que, a nosso ver, também podem ser

considerados como limitantes no trabalho com textos no espaço escolar,

destacamos:

• A concepção de ensino e aprendizagem que permeia a prática

pedagógica do professor;

• Sua visão acerca da funcionalidade de um texto;

• Sua disponibilidade, tanto pessoal quanto temporal, na busca de

recursos textuais favoráveis aos seus objetivos de formação de leitores mais

autônomos e conscientes. Leitores estes que saibam da importância da leitura e

produção textual para uma sociedade em constante progressão e atualização de

gêneros e portadores textuais.

Assim, ao nos debruçarmos sobre esta temática de pesquisa, todas as

questões anteriormente listadas nos propuseram desafios, no sentido de repensar a

trajetória reflexiva sobre a importância da diversidade textual em sala de aula. Mas,

dentre as questões mais persistentes e estimulantes, sublinhamos, em especial,

duas:

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• A dificuldade em ler e produzir textos pelos estudantes está, também,

associada ao fato dos mesmos não terem acesso à diversidade textual em sala de

aula?

• Buscar que estudantes e professores, das denominadas classes

populares, tenham um maior contato com a diversidade textual existente fará alguma

diferença na formação desses leitores, visto que no seu cotidiano o acesso a livros,

cinemas, teatros, jornais, revistas e tantos outros portadores textuais não é usual?

Como já mencionado, tais indagações sempre nos provocaram durante

nossas reflexões sobre a pesquisa em questão, mas o nosso porto seguro está,

justamente, no fato de acreditar que a escola, como instituição secular e responsável

oficial e insubstituível na formação de cidadãos, não pode destituir os nossos

educandos das possibilidades de atuação no vasto campo da leitura presente nas

diferentes esferas sociais. Imprescindível destacar que tal posição é fortemente

marcada mais por nossa atuação como docente64 do que pelas discussões e leituras

de cunho teórico. Sendo assim, descreveremos e analisaremos duas práticas de

trabalho com textos no âmbito escolar, tendo o intuito de tecer considerações cada

vez mais pertinentes e oportunas para os professores que se preocupam com a

seleção e formas de aproximação de textos.

Para tanto, estruturamos esse capítulo da seguinte maneira:

1. Construção de um quadro demonstrativo dos gêneros textuais

utilizados pelas duas professoras, sujeitos de nossa pesquisa;

2. Explicitação das estratégias de leitura/aproximação que ambas,

freqüentemente, propõem para cada gênero textual;

3. Descrição e análise das aulas das professoras, tanto daquelas que

utilizam o texto de forma rotineira quanto das que se valem desse na busca de uma

atividade mais criativa.

Importante deixar explícito que observamos duas classes de 4ª série do

Ensino Fundamental e, consequentemente, duas professoras. Uma atua na 4ª série

A e a outra na 4ª série B, daí utilizarmos a expressão Professora A e Professora B,

64

Lembramos, por exemplo, quando convivíamos com estudantes jovens e adultos que não sabiam como preencher fichas de trabalho. Muitos também tinham direito à meia passagem em coletivos urbanos, mas precisavam também saber preencher fichas para obter tal direito. Suas dificuldades estavam presentes, justamente, pelo fato de não terem contato com esse texto e/ou portador textual. O conhecimento de siglas do tipo: DF (Distrito Federal) e RG (registro e/ou carteira de identidade) pareciam-lhes totalmente incompreensíveis, apesar de já saberem ler e escrever.

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respectivamente, como forma de evitar uma cansativa repetição de longas

expressões do tipo Professora da 4ª série A e Professora da 4ª série B.

Para a denominada Professora A, selecionamos, algumas vezes, duas

aulas envolvendo um único gênero textual65 descrito no Quadro 1, a seguir. As

aulas selecionadas estão descritas de acordo com o diário de campo e, ao nosso

entender, podem proporcionar ao leitor uma melhor compreensão da dinâmica das

salas de aula no que se refere às observações realizadas quanto à utilização de

gêneros textuais.

Dito isto, vejamos os quadros demonstrativos dos gêneros textuais

utilizados pela Professora A e, logo em seguida, os dois últimos itens, já

anteriormente mencionados:

3.1.1 Cena 1

QUADRO 1. GÊNEROS TEXTUAIS UTILIZADOS PELA PROFESSORA A:

Freqüência

Gêneros

textuais

2 vezes por

semana

1 vez em

quatro

meses

2 vezes em

quatro

meses

3 vezes em

quatro

meses

Didático-

informativos: relato

histórico, geográfico

e científico.

X

Humorísticos:

1. Tira em

Quadrinhos66

x

65

A escolha de duas aulas envolvendo um mesmo gênero decorre da necessidade de explicitar a semelhança entre as estratégias de leitura/aproximação propostas pela Professora A. 66 Uma das Tiras em Quadrinhos foi retirada do caderno de planejamento da Professora A, não da observação de aula.

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2. História em

Quadrinhos

x

Publicitários:

Anúncio

x

Literários:

1. Canção67 x

2. Poesia x

História ficcional

híbrida (incluindo

história imagética)68

x

Instrucional69 x

Teatral70 x

QUADRO 2: ESTRATÉGIAS MAIS UTILIZADAS PARA CADA GÊNERO TEXTUAL

PELA PROFESSORA A, A PARTIR DAS AULAS OBSERVADAS:

Gêneros Textuais Estratégias de leitura

Didático-informativos: relato histórico geográfico

ou científico

- Leitura silenciosa;

- Leitura em voz alta;

- Questionário;

- Consulta ao dicionário

67 Uma das canções, intitulada Como uma onda, fez parte de uma prova de Língua Portuguesa, nos moldes tradicionais, aplicada pela professora. Não compunha a dinâmica das aulas. Vide em anexo B. 68

Texto não comentado neste capítulo, pois tanto a dinâmica da aula quanto o próprio texto foram cedidos à pesquisadora pela professora A. Não fez parte das observações em sala de aula. Vide em anexo C. 69

Esse texto não será explanado neste capítulo, pois tanto a dinâmica da aula quanto o próprio texto foram cedidos à pesquisadora pela professora A. Não fez parte das observações em sala de aula. Vide anexo D. 70 Vide texto da peça teatral em anexo E. Esta foi adaptada, ensaiada e apresentada no pátio da escola.

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Humorísticos: tira em quadrinhos, história em

quadrinhos

- Leitura pelo professor;

- Estudo das características

estruturais do gênero

textual.

- Estudo gramatical;

- Interpretação: o que o texto

quer nos dizer?(em geral,

oralmente);

- Produção: continuação do

texto e/ou produção do

mesmo gênero, mas com

outra temática.

Publicitários: anúncio - Leitura pelo professor;

- Características estruturais

do gênero textual.

- Estudo gramatical;

- Interpretação: o que o texto

quer nos dizer?(em geral,

oralmente);

- Produção: continuação do

texto e/ou produção do

mesmo gênero, mas com

outra temática.

Literários: canções, poesias - Leitura cantada (só para os

textos canções);

- Interpretação: o que o texto

quer nos dizer?;

- Estudo gramatical;

- Características estruturais

do gênero textual.

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COMENTÁRIOS:

Os quadros acima nos dão uma dimensão tanto dos gêneros textuais

mais presentes na sala de aula da Professora A quanto das estratégias de

leitura/aproximação destinadas a cada um deles. Além disso, permite-nos visualizar

tanto os gêneros que não ocupam lugar privilegiado nas atividades escolares quanto

aqueles que não foram contemplados durante o período que nos foi possível

conviver com os educandos e a professora da 4ª série A de uma escola pública e

periférica da cidade de Salvador.

Para melhor exemplificar as nossas considerações, vejamos como

procede a referida professora em algumas aulas utilizando os gêneros textuais

contidos nos Quadros 1 e 2. Os comentários serão realizados após à descrição de

algumas dessas aulas registradas no diário de campo do pesquisador.

QUADRO 1A: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual : Relato Histórico

Data: 14 de maio de 2003.

A professora lembrou à turma que no dia anterior não teve aula e

queria saber dela o que foi comemorado nessa data.

Em coral, os alunos responderam: “A abolição da escravidão”.

Em seguida, a professora perguntou sobre as figuras que foram

solicitadas sobre os negros. Falou um pouco sobre os negros e escreveu a

seguinte atividade no quadro:

Os negros no Brasil

Vindos de diferentes regiões da África, os negros foram trazidos para o

Brasil como escravos. Aqui no Brasil, a sua cultura, seus hábitos, costumes e

modos de viver foram desprezados e tratados como inferiores. Tudo era feito para

os próprios negros acreditarem que os brancos eram superiores e que, por isso,

deviam obedecê-los.

Eram vendidos como mercadorias. Trabalhavam nas plantações,

mineração, fazendas de café e nas tarefas domésticas. Não tinham direitos nem

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podiam defender-se das injustiças que sofriam. Deviam obedecer sempre, do

contrário eram castigados até a morte.

Nas fazendas dormiam nas senzalas, barracões escuros sem nenhum

conforto nem higiene.

Os negros inconformados com a situação lutavam como podiam pela

sua liberdade. Muitos fugiam e reuniam-se em povoações chamadas quilombos,

onde viviam livres, plantando, colhendo e vendendo seus produtos.

Em 1695, porém o bandeirante Domingos Jorge Velho, reunindo grande

número de pessoas, conseguiu destruir o quilombo dos Palmares. Zumbi foi

capturado e morto.

Com o passar do tempo surgiram vários movimentos contrários à

escravidão e muitos brasileiros começaram a lutar para libertar os escravos. 71

INTERVALO DA AULA - Apesar de ser na sala, a professora distribuiu jogos para

os estudantes, como: dama, dominó, pega varetas, jogo do milhão etc.

A professora pediu que os estudantes lessem o texto silenciosamente.

Depois, em voz alta (ela selecionava os estudantes que iriam ler).

Cada estudante lia apenas um parágrafo e a professora solicitava a

explicação, com suas próprias palavras, do que tinha lido; mas outros colegas

poderiam, também, complementar a resposta. A maioria dos educandos explicava

com naturalidade (dentre cinco estudantes apenas uma não conseguiu expressar

sua compreensão do que foi lido).

A professora perguntou para a turma o nome da madeira na qual os

negros eram amarrados. Um estudante respondeu “pelourinho” e mostrou uma

gravura que ele cortou. Mas, a gravura não circulou pela turma.

A professora continuou falando das condições de vida dos negros com

a ajuda dos estudantes. Ela perguntou para eles sobre as leis que “favoreceram”

os negros. Os estudantes citam “Lei Áurea” e do “Ventre Livre”. A professora

complementou falando da Lei Eusébio de Queiroz72, Sexagenário, mas não

explorou a questão política, apenas deu a informação. Levantou, ainda, as

71 Texto resumido pela professora com base no livro de TEREZA, Mª; CARMO, Mª do.; ELISABETE, Mª e COELHO, Armando. Estudos Sociais. 4ª série, 1º grau, São Paulo: Scipione, 1996, p. 68-69. (Coleção Marcha criança) 72 Uma estudante associa a venda dos escravos a um leilão e faz a encenação.

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seguintes questões para a turma: Os negros “têm um espaço deles na

sociedade?”; “Depois que os negros ficaram livres conseguiram trabalho, casa...?”

“Nos cargos superiores, como prefeito, nós vemos negros?” 73. E ela prosseguiu

falando das comidas dos negros e de sua religião. Depois escreveu o seguinte

questionário no quadro:

Questionário

1. De onde eram trazidos os escravos?

2. Para onde os escravos fugidos iam? O que faziam?

3. Qual a lei que proibiu o tráfico de escravos?

4. Como eram chamados os brasileiros que eram contra a escravidão?

5. Com base no que vimos, explique como está a situação do negro no Brasil

hoje.

Obs.: Os estudantes deveriam realizar a atividade na sala e individualmente.

QUADRO 1B: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: Relato Histórico

Data: 22 de maio de 2003.

A professora iniciou a aula corrigindo o dever de casa de terça-feira.

Mesmo esquema de correção: os estudantes dão a resposta oralmente e,

algumas vezes, as escrevem no quadro de giz.

Solicita, após a correção, que os estudantes abram seus cadernos na

parte de História, colocando no quadro o seguinte título “A vida dos imigrantes”.

Ela fala que no início da II unidade trabalharam sobre os negros e suas

contribuições para a formação do povo brasileiro.

Ela perguntou: “Quem foram os imigrantes?”.

Resposta de uma estudante: “Os italianos”.

A professora perguntou: “E o que esses imigrantes vieram fazer aqui?”

Resposta da mesma estudante: “Trabalhar na lavoura, no café”.

73 Nesse momento, muitos estudantes não prestavam atenção.

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A professora ditou um texto cujo título já havia sido escrito no quadro de

giz:

A partir do século XIX, o Brasil começou a receber imigrantes vindos,

principalmente, do continente europeu: alemães, italianos, portugueses, espanhóis

e também sírios, japoneses, coreanos etc.

Essas pessoas foram expulsas das terras onde trabalhavam e obrigadas

a procurar emprego nas cidades. Mas não havia emprego para todos, e muitos

acabaram deixando seu país a procura de novas terras para viver.

Os primeiros imigrantes que aqui chegaram foram os suíços – cuja

comunidade deu origem à cidade Friburgo, no Rio de Janeiro.

Para trabalhar na lavoura do café, vieram principalmente italianos. A

maioria deles não conseguiu realizar o sonho de adquirir terras no Brasil e acabou

integrando a mão-de-obra nas primeiras indústrias.

Além da força de trabalho, cada grupo trouxe seus costumes,

conhecimentos, modo de vida, novos hábitos alimentares, novas formas de falar e

de se vestir, músicas e o sonho de recomeçar a vida em um novo país.

A professora decidiu escrever o texto no quadro de giz. Após a escrita

deste, ela solicitou que os estudantes procurassem no dicionário o significado da

palavra “imigrante”. Uma estudante leu o significado da palavra para a turma. Os

estudantes ressaltaram que encontraram a palavra “imigrar” no dicionário e

disseram que responderiam com as próprias palavras. Uma estudante disse que

“É sair de seu próprio país para outro, para se estabelecer”. A professora

perguntou o que significa “se estabelecer?” Uma estudante respondeu:

“Trabalhar, morar”.

A professora pediu que os estudantes lessem o texto em voz alta.

Cada parágrafo deveria ser lido seguido de uma explicação.

No primeiro parágrafo uma estudante disse que: “O Brasil, a partir do

século XIX, começou a receber imigrantes de vários países”.

Outra estudante deu uma resposta, mas o pesquisador não conseguiu

ouvir.

74 Palavra sugerida por um outro estudante com o intuito de ajudar à colega na organização de suas idéias.

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86

A professora explicou que as pessoas foram expulsas de seus países

porque houve uma transformação no campo e essas pessoas foram para a cidade

e não conseguiram trabalho. Então, para sobreviver, foram para outro país. Ela

lembrou que os imigrantes não foram tratados como os escravos. Esses últimos

“não tinham direito a nada”.

Um estudante leu o terceiro parágrafo do texto e explicou: “[...] Que os

imigrantes fizeram a comunidade de Friburgo”.

A professora sempre fazia uma síntese das explicações dadas pelos estudantes

aos parágrafos do texto.

No quarto parágrafo um estudante explicou: “Aí eles... No que eles

vieram para o Brasil, eles passaram a trabalhar na lavoura de café.

Principalmente os italianos que ficaram mais... interessados74 em trabalhar e

também os suíços”.

Uma outra estudante leu o próximo parágrafo, mas a classe não

escutou. Então a professora leu e fez uma pergunta para incentivá-la: “Além da

vontade deles de trabalhar, o que eles trouxeram mais para o Brasil?”

A estudante não conseguiu responder. A professora, então, pediu a um

outro estudante para ler. Ele olha para o quadro como se estivesse realizando

uma leitura silenciosa e fala: “É para ler aí, é?” A professora disse que ele “olhou

para o quadro por tanto tempo e não sabia o que fazer?” Ele então leu em voz

alta, mas não conseguiu explicar o que leu. A professora, então, solicitou que uma

outra estudante explicasse: “Que além do trabalho eles trouxeram costumes,

modos de vestir, falar. Eles queriam de qualquer jeito fazer nova vida no novo

país (...)”.

Outra estudante: “Que cada mundo tem um modo de falar, viver”.

A professora fez uma pergunta a uma aluna que estava conversando:

“Será que esse modo de vida, esses costumes, esse modo de falar, vestir,

influenciou na formação da cultura do povo brasileiro? Influenciou ou não?”

Estudante: “Sim”

A professora pediu que ela explicasse, mas ela ficou em silêncio.

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87

Então, a professora explicou e encerrou o bate-papo, dizendo: “Para ter certeza

que vocês entenderam o assunto, nós vamos fazer um questionário agora”.

INTERVALO DA AULA

Questionário

Dê o significado de:

Migrar Imigrar

Qual foi a principal mão de obra utilizada na produção de café após a

abolição da escravatura?

Porque essas pessoas que vieram de outros países foram chamadas

de imigrantes?

Por que o Brasil foi escolhido por elas?

A professora leu as questões para a turma.

Antes de realizar a atividade, ela escolheu os estudantes que

responderiam as questões para toda a classe.

Após essa atividade, a professora realizou outra tarefa escolar para ser

respondida em casa com as seguintes questões:

1. No texto trabalhado na sala, falamos sobre os imigrantes e a vinda

para o Brasil. Descubra os países que cada grupo de imigrante saiu.

2. Retire do texto: A vinda dos imigrantes, verbos e o tempo em que se

encontra cada um.

Presente Passado Futuro

3. Observe e responda: (Nesta terceira questão, atividade sobre

ângulos)

COMENTÁRIOS:

As duas aulas descritas podem servir de exemplo para mostrar como o

gênero textual relato histórico é freqüentemente trabalhado pela Professora A. A fala

da professora “para ter certeza que vocês entenderam o assunto, nós vamos fazer

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um questionário agora”, revela a sua preocupação com o conteúdo curricular, dando

assim ao gênero textual em questão a característica de suporte de aula. O que

significa dizer que o texto, sua leitura e compreensão tiveram um lugar secundário

na atividade desenvolvida, não foram vistos como práticas centrais; práticas essas

que naquela e em outras tantas atividades que envolveram o gênero relato histórico,

tiveram um efeito prazeroso para os estudantes através de debates, sendo estes,

muitas vezes, quebrado pela presença constante do questionário.

Enfatizamos, ainda, que a associação entre relato histórico e questionário,

a nosso ver, muitas vezes tornava inválido o caráter funcional do texto, sua

incompletude natural e momentânea propiciada pelas inferências e reflexões já

feitas no bate-papo em classe. Ou seja, o que foi explorado oralmente acerca do

texto, não poderia, naquele exato momento, ser explorado por outras vias, como por

exemplo, através dos questionários e/ou “exercício de fixação” – denominação dada

pela referida professora em algumas de suas aulas. Tal atitude da professora

deixava emergir, para os educandos, uma estreita ligação entre texto de caráter

informativo e questionário, o que pode causar certos equívocos do tipo:

• Para esse gênero textual sempre temos que nos aproximar através de

questionários objetivos, pois esse texto nada mais pode me oferecer a não ser a

discussão de questões explícitas que devem ser armazenadas na minha memória

leitora;

• Esse gênero textual basta em si mesmo como fonte de informação,

sendo necessário explorá-lo ao máximo, em essencial através de questionários.

Assim, outro gênero não pode ser a ele associado como forma de alavancar outras

discussões temáticas trazidas por esse texto primeiro e/ou, até mesmo, demonstrar

ao leitor a existência possível de hibridizações na escrita de um mesmo tema.

Apesar disso, não estamos pretendendo retirar do questionário o seu

valor didático de compreensão de conteúdos, mas apenas tentando mostrar que a

utilização de uma única estratégia de leitura para um dado gênero textual, a nosso

ver, deve ser evitada, pois poderá gerar um processo de ensino e aprendizagem

condicionado, com vistas mais a entendimentos padronizados e limitados acerca do

texto do que a entendimentos atrelados a contextos sócio-históricos de produção de

discursos e às situações de interlocução. Além disso, esta prática pedagógica pode

reforçar a concepção equivocada sobre texto enquanto discurso cristalizado,

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imbuído de verdades e não de opiniões e posições, enfim de modos de ver e

vivenciar o mundo numa perspectiva histórica e social.

Quanto ao estudo gramatical feito com o texto A vida dos imigrantes,

contido no Quadro 1B e denominado de relato histórico, não estamos discordando

da sua inserção no estudo textual, apenas consideramos pertinente associar às

questões ou aos conteúdos gramaticais à funcionalidade do texto. Por exemplo, ao

solicitar que os estudantes retirassem do texto os “verbos e o tempo em que se

encontra cada um”75, seria interessante estimular discussões em torno da função

que cada verbo exerce no texto. O verbo começar, por exemplo, presente no

primeiro parágrafo desse texto, além de estar escrito no pretérito perfeito do

indicativo possui um complemento do verbo receber, escrito no infinitivo, que

modifica o seu entendimento no sentido de não indicar apenas uma ação passada,

mas uma ação contínua. Isto é, o Brasil não apenas recebeu imigrantes no século

XIX, ele ainda continua recebendo-os.

Podemos perceber, ainda, que na oração “Essas pessoas foram

expulsas”, não há, para o leitor, indicativos de qual ou quais sujeitos executaram a

ação de expulsão, o que consideramos essencial para uma discussão em torno da

composição textual do gênero relato histórico contido em livros didáticos. Além

disso, notamos que este gênero tece uma narração que não dá margem a

questionamentos, sendo necessário ao professor problematizar o texto, ou seja,

buscar desvendar o poder da linguagem na confecção de determinadas temáticas.

Neste texto, utilizado pela Professora A, ainda podemos verificar, no

último parágrafo, a intenção de valorizar os imigrantes, ao citar que eles trouxeram

“[...] seus costumes, conhecimentos, modo de vida”, entre outras coisas. Mas, por

outro lado, não há uma expansão em torno dos impactos culturais e econômicos

surgidos com a vinda deles para o Brasil. Toda a narrativa do último parágrafo gira

em torno de informações superficiais, que não têm a intencionalidade de mostrar o

porquê dos imigrantes terem sido expulsos de seus países.

Além dessas reflexões, há também possibilidades de realizar distinções

entre gêneros textuais iguais retirados de livros didáticos. Podemos ver que o

gênero relato histórico contido no Quadro 1A traz para o palco das discussões

75 Vide citação no “Quadro 1B: Diário de campo”.

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maiores inferências sobre a forma desumana em que os negros foram tratados,

existindo assim a tomada de uma posição por parte de quem, ocultamente, veicula a

informação. Há grande ênfase no modo como os negros eram tratados aqui no

Brasil, dando ao leitor indicativos explícitos dos significados da palavra escravo. Vale

lembrar que essa forma problematizadora não aparece no outro gênero textual

contido no Quadro 1B, fato este que poderia servir de debate para a classe.

Outro aspecto importante a considerar é a não inserção de outros

gêneros textuais que pudessem abordar tanto a temática sobre os imigrantes quanto

sobre os escravos. Esta última temática é riquíssima em termos de variedade

textual. Está presente em poemas, textos imagéticos, canções, charges, quadrinhos,

gêneros textuais de caráter publicitário, dentre outros. Além disso, vimos que na aula

da Professora A existiram imagens, trazidas pelos estudantes, das condições

desfavoráveis do negro no Brasil. No entanto, estas não foram exploradas.

Ainda detendo-nos no texto relato histórico Os negros no Brasil, contido

no Quadro 1A, vimos que a Professora A busca dar continuidade ao texto empírico,

ao citar as leis que, segundo ela, “favoreceram os escravos”. No entanto, não há

uma discussão maior em torno desse dito favorecimento, como, por exemplo,

questionar sobre que liberdade pode ter uma criança recém-nascida sendo sua mãe

ainda escrava, como propôs a lei do Ventre Livre? Ou como ter condições dignas de

trabalho, moradia, saúde e lazer, quando se é livre a partir dos sessenta anos de

idade, como propôs a Lei do Sexagenário?76

Realizada as nossas considerações sobre a utilização do texto relato

histórico, passemos agora para um outro quadro com descrições e impressões

sobre uma aula da Professora A contendo o gênero textual Tira em Quadrinhos:

QUADRO 2A: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: Tira em Quadrinhos

Data: 15 de maio de 2003.

76 Importante aqui destacar a sugestão da matéria Educação não tem cor da Revista Nova Escola de novembro de 2004, sobre o fato da cultura negra não ser abordada em sala de aula antes de dialogar com os estudantes sobre “[...] as causas e conseqüências da dispersão dos africanos pelo mundo [...]”, bem como abordar a história da África.

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A professora colocou uma tira em quadrinhos (ampliada em cartaz) no

quadro de giz77.

Em seguida, informou aos estudantes que se tratava de uma tira, ao

contrário do outro cartaz que estava na parede da sala com desenhos da Turma

da Mônica78 e que, segundo a professora, era denominado de quadrinhos, sendo

na verdade apenas desenhos de personagens da Turma da Mônica.

A professora perguntou aos estudantes qual o tema da tira?

Resposta dos estudantes: “Trabalho”.

Ela continuou: “O marido está concordando com o desejo da mulher de

trabalhar?”.

Respostas da turma:

“- Não.

- Antigamente a mulher só trabalhava se o marido desejasse.

- Porque ela é fraca.”

A professora falou que a mulher “fica em casa...” e a estudante

completou: “... Esquentando a barriga no fogão”.

Depois a professora distribuiu uma folha em branco para cada dupla

formada. Em seguida, colocou no quadro de giz, abaixo da tira:

1) Crie uma resposta que a esposa possa dar ao seu marido.

Alguns estudantes achavam que era a mulher que estava falando para o marido.

A professora enfatizou que a dupla foi feita para que discutisse a

resposta, mas que os integrantes não deveriam copiar igual. Por isso, a folha de

ofício foi dividida ao meio para cada dupla.

Anotações no diário de campo do pesquisador sobre a dinâmica de

produção das duplas:

- Ouvindo as possíveis respostas dos estudantes, vimos a familiaridade

que alguns estudantes demonstraram com o tema da tira. Por exemplo, uma

77 Vide em anexo A. 78

Vide em anexo F.

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dupla estava discutindo e um dos estudantes perguntou ao seu parceiro que

resposta seria dada a primeira questão. Ele respondeu: “Para sustentar a família”.

- Alguns estudantes estavam dando a resposta de cada fala contida no

quadrinho da tirinha. Então, a professora foi á frente explicar que era para criar o

último quadrinho. Como estratégia para esse equívoco, a professora criou um

outro quadrinho para a tirinha, desenhando nele apenas a figura da mulher. Além

disso, algumas respostas dadas pelos estudantes fugiam ao tema.

- Alguns estudantes reinventaram toda a tirinha. Difícil não dar asas à

imaginação!

- A professora, em tom de brincadeira, ressaltou que existiram

respostas machistas.

- Uma estudante estava meio distraída.

- Um estudante também fez algo totalmente diferente do que a

professora havia pedido. Observação: este estudante falta muito às aulas e disse-

nos que é diabético, por isso não freqüenta tanto a escola.

- Outro estudante não caprichou na produção, pois ficou de “castigo”

durante essa atividade.

A professora colocou outras questões abaixo da tira que estava no

quadro de giz. Essas deveriam ser respondidas individualmente:

Interpretando a tira

1. Qual o tema da conversa?

2. O homem está concordando ou não com o fato de sua esposa

querer trabalhar fora?

3. Que argumentos ele utiliza para tentar convencê-la?

4. Que tipo de discriminação esta sendo apresentada?

A professora leu as questões do quadro para a turma. Ao ler a terceira

questão um estudante perguntou o que é “argumento”. A professora respondeu:

“O que ele fala para convencer a mulher”. Ela enfatizou que os educandos não

79

Cita o nome de uma estudante.

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deviam atrapalhar discriminação com racismo. E perguntou aos estudantes o que

é racismo.

Resposta da turma: “É... eu sou branco... outro é preto”.

Depois perguntou: “O que é discriminação?”:

Resposta da turma: “Um é pobre, o outro é rico”.

A professora ampliou a fala dos estudantes, dando um conceito mais

geral.

As atividades das tiras são corrigidas oralmente, sendo que a

professora perguntou sobre as respostas da 1ª e da 2ª questões e a turma

respondeu, em coro: “Trabalho” e “Não”, respectivamente.

Na 3ª questão a professora leu e muitos estudantes pediram para

responder.

Respostas dos estudantes:

- “Trabalho significa preocupação, estresse, cansaço e nenhum

reconhecimento”.

- “Ele começou a falar das conseqüências, de como cansa e que ela já

tinha esse trabalho em casa”.

- “Ele tenta convencê-la com mentiras para ver se ela não vai

trabalhar”.

Uma estudante complementou: “E você tem tudo isso em casa”. A

professora pergunta a estudante se ele concorda com essa frase.

Uma outra estudante ainda respondeu: “Trabalhar fora é a mesma

coisa que trabalhar em casa”.

A professora retornou à questão, reforçando as respostas dadas.

Depois colocou a resposta da 3ª questão no quadro:

“Ele diz que ao trabalhar fora ela terá os mesmos problemas que tem

no trabalho doméstico”.

Disse à turma, ao resumir suas respostas, que estas estavam corretas.

E continuou: “Esses três pontinhos das tiras significa o quê?”.

Estudante: “Reticências”.

Estudante: “Que tem mais”.

Respostas dos estudantes para a 4ª questão:

- “Que ele não quer que ela trabalhe”

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- “Que ela quer trabalhar e ele não quer deixar”.

- “É o tipo de discriminação que o marido não quer que ela trabalhe,

que ela tem que descansar”.

Existiram outras respostas, mais difíceis de registrar pelo pesquisador.

A professora resumiu dizendo que em casa a mulher pode trabalhar a

vontade, mas fora de casa “o bicho pega”. Um estudante completou: “Aí a cobra

fuma”

Ela escreveu a resposta da questão quatro no quadro: “Discriminação

contra o trabalho da mulher fora de casa” e disse que para “fechar a história”, iria

relembrar o que eles haviam falado sobre quadrinhos na segunda-feira. Então,

perguntou sobre o objetivo da tira em quadrinhos.

• Resposta de uma estudante: “Divertir”.

• “Qual o objetivo da tira? É divertir? – interroga a professora”.

• Resposta da mesma estudante: “Não, é chamar a atenção”.

A professora complementou dizendo que a “tira traz problemas sociais.

Chama a atenção para um problema de nossa sociedade”.

Uma estudante perguntou à professora se a mulher da tira estava

grávida. Ela respondeu que não, pois a personagem é “turbinada, como diz [...]79”,

referindo-se aos seios fartos da personagem (risos da professora e dos

estudantes). Posteriormente, faz a correção do dever de casa. O assunto é da

disciplina matemática: polígono.

COMENTÁRIOS:

Comentar sobre as duas aulas com os estudantes da Professora A, traz

para o centro das discussões o gênero textual Tira em Quadrinhos, nos levando a

introduzir, prioritariamente, tanto o conceito do referido texto quanto suas

características fundantes. Assim, nos valemos das seguintes idéias:

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As tiras são um subtipo de HQ80: mais curtas (até 4 quadrinhos) e, portanto, de caráter sintético, podem ser seqüenciais (‘capítulos’ de narrativas maiores) ou fechadas (um episódio por dia). Quanto às temáticas, algumas tiras também satirizam aspectos econômicos e políticos do país, embora não sejam tão ‘datadas’ como a charge. Dividimos as tiras fechadas em dois subtipos: a) tiras-piada, em que o humor é obtido por meio das estratégias discursivas utilizadas nas piadas de um modo geral, como a possibilidade de dupla interpretação, sendo selecionada pelo autor a menos provável; b)tiras-episódio, nas quais o humor é baseado especificamente no desenvolvimento da temática numa determinada situação, de modo a realçar as características das personagens. (MENDONÇA, 2002, p. 198)

Entendendo a utilização da tira em quadrinhos no Quadro 2A,

selecionada pela Professora A, como sendo um subgênero tiras-episódio, podemos

dizer que a estratégia de leitura utilizada, de centrar-se nas falas das personagens,

atentando para a sua repercussão social, bem como para as diferenças culturais

ainda existentes entre os gêneros masculino e feminino, foi fundamental para a

compreensão da temática em questão pelos estudantes. Embora a produção textual

solicitada pela professora tenha gerado alguns equívocos, como por exemplo, a

construção, pelos estudantes, de temáticas desconexas no que se refere à origem

da tira em quadrinhos, isto não acarretou grandes perdas na qualidade da discussão

realizada em classe. Esse equívoco apenas veio explicitar a necessidade de utilizar

o referido gênero textual com mais freqüência, já que o seu uso eventual não

permite ao estudante realizar produções textuais mais sofisticadas e coerentes, já

que este desconhece as características estruturais e funcionais do mesmo.

Todavia, consideramos viável e interessante a idéia de a professora

produzir um último quadrinho para a tira, pois além de mobilizar estratégias tanto de

(re)leitura quanto de resolução de problemas por parte dos estudantes, possibilitou

avaliar os seus critérios de produção textual e posicionamento social. Por exemplo:

1. O estudante, ao dar continuidade à produção de determinado gênero,

atenta para quais características estruturais do texto? Por quê?

2. As respostas produzidas pelos educandos estão pautadas na

concepção de casamento, trabalho e gênero?81

80 HQ sigla de História em Quadrinhos. 81

Neste caso, estamos nos referindo à temática da tira em quadrinhos utilizada pela Professora A.

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Além disso, é válido destacar que um dos motivos da não produção de

alguns estudantes ou, até mesmo, de produções descontextualizadas82, pode ser

proveniente de não se ter claro, conforme nos alerta Geraldi (1997):

a) o que dizer;

b) para que dizer;

c) pra quem dizer e

d) como dizer.

Daí a necessidade de pontuarmos que o professor não pode interessar-se

apenas pelo fato de o estudante não ter realizado a atividade proposta e/ou tê-la

entendido errado, pois este deve buscar identificar de onde provém tal dificuldade,

sendo o caminho mais coerente para se pensar que estratégias de leitura seriam

pertinentes para que o educando pudesse se aproximar de determinado gênero

textual.

Nesse sentido, pensamos ser viável apresentar quatro dimensões que

consideramos pertinentes para as atividades que envolvam textos com temáticas

polêmicas - a exemplo da tira em quadrinhos utilizada pela Professora A. São elas,

segundo Cristóvão (2002, p. 97):

a) a dimensão psicológica que inclui as motivações, a afetividade e os

interesses dos alunos;

b) a dimensão cognitiva que reflete sobre a complexidade do tema e o

estatuto do conhecimento dos alunos;

c) a dimensão social que envolve a densidade social do tema, suas

potencialidades polêmicas, a relação entre o tema e os participantes, os aspectos

éticos, sua presença real no interior ou no exterior da escola e a possibilidade de,

com ele, se desenvolver um projeto de classe;

d) a dimensão didática que demanda que o tema não seja

excessivamente cotidiano, mas que possa ser apreensível.

Tais dimensões, embora tenham sido propostas por Cristóvão (2002) para

o desenvolvimento de atividades com o gênero Quarta Capa no ensino de Inglês,

parece-nos essencial para a abordagem de qualquer gênero textual que traga para o

espaço da sala de aula temáticas polêmicas que não podem ser discutidas tomando

apenas uma única dimensão como o melhor caminho de entendimento do texto. Daí

82

Vide algumas produções dos estudantes em anexo G.

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sugerirmos que não só a Tira em Quadrinhos utilizada pela Professora A, como

também textos informativos que trazem temáticas referentes à história e ciências,

possam ser discutidos considerando essas quatro dimensões, já que as temáticas

expostas, em geral, permitem a instalação de posições divergentes e conflituosas

entre os educandos.

Quanto às características do gênero textual Tira em Quadrinhos,

destacamos que, no momento em que a Professora A procurou extrair dos

estudantes as características do gênero textual em questão, ela apenas centrou-se

na sua função informativa, enfatizando mais a questão polêmica gênero feminino e

trabalho apresentada no texto, do que na sua função humorística. Podemos verificar

isso reproduzindo a seguinte passagem já mencionada no Quadro 2A:

A professora falou que para fechar a história, iria relembrar o que os

estudantes falaram sobre quadrinhos na segunda-feira. Então perguntou:

• O objetivo da tira em quadrinhos

• Resposta de uma estudante: “Divertir”.

• “Qual o objetivo da tira? É divertir? – interroga a professora”.

• Resposta da mesma estudante: “Não, é chamar a atenção”.

Embora saibamos que o texto em questão busca chamar a atenção para

as temáticas atuais, na maioria das vezes, temáticas que se referem aos fatores

políticos e sociais, este, todavia, não é o único objetivo da Tira em Quadrinhos. Sua

estrutura de composição, tais como: personagens com características faciais

engraçadas e tipo de letra, nos dão indícios significativos de que o sentido não é

apenas chamar a atenção do leitor, mas sim chamar a atenção do leitor de forma

criativa, anedótica e informal. Destacar isso, a nosso ver, se faz necessário, já que a

tira transforma fantasticamente textos e/ou temáticas consideradas sérias em

assuntos cômicos - nem por isso menos relevantes. Além disso, a intertextualidade

está aí explicitada, constituindo-se num rico material de apoio pedagógico, em

especial, quando se espera do estudante produções textuais mais livres e menos

formais.

Quanto ao ensino da gramática, embora existam posições divergentes

quanto à sua utilização no trabalho com textos no espaço escolar, a nossa é a de

aceitar que esse ensino esteja presente, pois pensamos ser mais coerente discutir

as suas possíveis formas de inserção do que a sua eliminação. O que consideramos

ser necessário é buscar mostrar aos estudantes que a gramática está a serviço da

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produção textual. Que ela possui uma funcionalidade na confecção dos discursos,

nesse caso, os discursos materializados em determinados gêneros textuais.

Funcionalidade esta que pode ser de diversas ordens, por exemplo:

1. Neste caso, diz respeito ao uso de verbos, por exemplo, que podem

funcionar no texto enquanto vocábulos que, muitas vezes, podem indicar ações

indeterminadas ou, até mesmo, ocasionar uma reflexão sobre a substituição de um

elemento lexical83, dando outro sentido ideológico, estético e ético ao discurso. Há

um exemplo interessante de Orlandi (2003, p. 68) para melhor visualização do que

estamos falando, quando ela ressalta as diferenças entre o verbo escolher e eleger.

Os verbos escolher e eleger, inseridos em textos de informação, em especial sobre

política, têm conotações diferenciadas. Arriscamo-nos a dizer que não podem,

ideologicamente e semanticamente, serem vistos como sinônimos. O primeiro

exerceria um papel de discurso antidemocrático, ao contrário do segundo verbo.

Já vendo esses mesmos verbos inseridos num gênero textual de caráter

instrucional, tal como uma receita culinária, mas não proveniente de propagandas ou

anúncios alimentícios, poderíamos considerá-los como sinônimos, já que estariam

semanticamente destituídos de reflexões ideológicas e políticas por parte tanto do

autor como do leitor. Assim, a depender do contexto histórico e social em que o

discurso esteja inserido, assim como do gênero textual que o configura, podemos

melhor compreender a funcionalidade dos dois verbos citados. Dito isso, vemos que

o objetivo do professor não deve ser apenas para a extração de conteúdos

gramaticais, realizando assim uma desvinculação de sentido entre as normas

gramaticais escolhidas para constar em determinado texto, mas sim para a relação

intencional existente entre gramática e texto com vistas a produzir no leitor os efeitos

desejados, seja ele o de persuadir, confundir, omitir, encantar etc.

2. Esta funcionalidade está associada a estruturas de frases, remetendo-

nos a reflexões sobre adjetivos e locuções adjetivas, advérbios e locuções

adverbiais. Os adjetivos e locuções adjetivas, por exemplo, podem nos dar

indicativos significativos da ideologia e/ou dos sentidos presentes nos textos, ao

classificarem os substantivos e sujeitos, imbuindo-lhes valor ético, estético etc.,

assim como invertendo sentidos, isto é, fazendo com que dois adjetivos sejam

expostos numa única frase, ou contexto, no qual um se sobrepõe ao outro, mas sem

83 Na escola, mas conhecido como sinônimo, mas podendo ser ampliado com o estudo de vocabulários relacionados à hiperonímia, à antonímia, à homonímia e à paronímia.

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invalidarem-se semanticamente, como por exemplo, na frase Amélia é uma pequena

grande mulher. Neste caso, o professor pode tomar esse tipo de exemplo para

mostrar aos estudantes que não há uma oposição entre os adjetivos, não podendo,

assim, serem considerados como antônimos, já que o contexto discursivo das frases

não permite julgá-los nessa perspectiva gramatical.

QUADRO 2B: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: História em Quadrinhos

Data: 23 de maio de 2003.

A professora fez a correção da atividade de casa com a ajuda dos

estudantes no quadro de giz, e as atividades de matemática foram corrigidas no

caderno.

Distribuiu o resultado do miniteste de matemática e comentou, para

toda classe, sobre os alunos que tiraram notas baixas.

Em seguida, escreveu o dever de casa, no quadro-de-giz:

Faça uma lista dos estados e capitais do Brasil por região e coloque as

siglas. Livro de matemática p. 72 e 73.

(Os exercícios de matemática são sobre ângulos e faz parte do livro de SOUZA,

Eliane Reame de. Matemática criativa . São Paulo: Saraiva, 1999. Neste livro,

que contém a atividade a ser realizada pelos estudantes, há também o seguinte

texto, não mencionado ou trabalhado pela professora:

As figuras a,b,c,d,e,f e g

São chamados de polígonos.

Poli significa muitos.

Gonos significa ângulos

Então, a palavra polígonos significa muitos ângulos.

Caderno de história e descobertas de matemática

Descoberta sobre polígonos

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Observe atentamente a tabela que você completou.

Escreva, no seu caderno de histórias e descobertas de

matemática, suas descobertas em relação ao número de

ângulos, vértices e lados de um polígono.

Dê outros exemplos.

Depois a professora e os estudantes foram para a sala de leitura. Ela

apresentou o que ela e os estudantes denominaram de “quadrinhos” e ressaltou

que estes se encontravam em um jornal, diferente do habitual:

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A turma foi dividida em grupos de três e quatro componentes para que

assim os estudantes fizessem a leitura dos quadrinhos, e que os jornais fossem

trocados entre eles e discutidos. Em seguida, a professora chamou a atenção

para as cruzadinhas e outras brincadeiras do Quadrinho intitulado Xaxado. No

entanto, os estudantes não poderiam preencher as cruzadinhas e brincadeiras,

visto que os jornaizinhos eram coletivos.

Depois, a professora distribuiu uma folha de ofício para cada grupo e

colocou no quadro a estrutura da apresentação da atividade que os estudantes

deveriam realizar:

Data: 23/05/03

Componentes: nº____

nº____

nº____

nº____

A professora, após conversar com os estudantes sobre o que viram

nas Histórias em Quadrinhos, escreveu no quadro os dois tipos de recursos

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lingüísticos contidos nos textos e comentou sobre os mesmos:

Recursos lingüísticos Recursos não lingüísticos

Um grupo disse que no jornalzinho, ou História em Quadrinhos, havia

ousadia, pois tinha escrito a palavra gozar. A professora perguntou aos

estudantes se havia apenas um significado para a referida palavra. Um outro

grupo explicou que gozar é “tirar sarro”.

A professora explicou que os recursos não lingüísticos não utilizam

letras. Depois colocou a seguinte atividade no quadro-de-giz:

Analisando o texto

.Que tipo de texto está sendo trabalhado?

.Qual o nome do jornal que você leu a história?

.Qual o nome do autor?

.Ao ler cada história, encontramos vários personagens. Quais as

características que mais lhe chamou atenção?

.Retire das histórias alguns recursos lingüísticos e não lingüísticos.

.O que achou desse momento de leitura?

COMENTÁRIOS:

Vimos que no Quadro 2B há dois textos: um de natureza didático-

informativo84, direcionado para a disciplina matemática, e outro de caráter

humorístico, denominado História em Quadrinhos e que, no espaço escolar aqui

mencionado, direciona-se para estudos em Língua Portuguesa.

O primeiro não é geralmente considerado pela Professora A como um

texto que mereça maiores inferências ou discussões, sendo o conteúdo de

84 Embora o consideremos informativo, não podemos também negar o seu caráter instrucional já que é um texto que desloca a atenção do leitor para a realização de atividades, neste caso específico para exercícios.

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matemática, expresso por exercícios, o que ela considera mais importante para os

estudantes. Não há uma valorização do texto escrito em questão, já que as

explicações orais da referida professora, à primeira vista, parecem dar conta do

recado, juntamente com os já mencionados exercícios. Por outro lado, podemos

justificar essa não centralidade da Professora A no texto didático-informativo como

sendo uma estratégia de leitura que pretende dar autonomia aos estudantes, pois

estes apenas a consultariam quando sentissem a necessidade de maiores

informações, tanto sobre os exercícios vinculados à sua temática, quanto sobre o

conteúdo matemático em questão – polígonos. No entanto, ainda consideramos

necessária uma intervenção do professor neste momento de leitura, com vistas a

destacar para os estudantes a presença de um texto escrito que pode servi-lhes,

também, como mediador no processo de compreensão da atividade a ser realizada,

pois a percepção de que o texto possui uma linguagem diferenciada - objetiva e

instrucional - pode complementar as explicações realizadas pela Professora A sobre

o conteúdo polígonos.

Enfim, novas formas de aproximação poderiam ser abertas, caso os

estudantes pudessem considerar a existência possível de um diálogo com o referido

texto. Poderiam extrair desse diálogo diferentes olhares para a resolução do

exercício matemático proposto pela Professora A, assim como poderiam vivenciar e

analisar outros modos de interação, proporcionados por uma linguagem diferenciada

daquela utilizada na oralidade, neste caso referindo-nos à explicação dos conteúdos

matemáticos em aulas expositivas.

Embora tenhamos sentido a necessidade de abordar o texto didático

informativo e/ou instrucional direcionado para a disciplina matemática, este não se

constitui no foco dessa discussão por dois motivos:

1. Por não ter sido reconhecido, na aula da Professora A, como sendo

um texto;

2. Por estarmos, neste momento, buscando interagir com o gênero

textual História em Quadrinhos, considerando-se à dinâmica da aula descrita no

Quadro 2B.

Encaminhando-nos, então, para um diálogo mais específico com o gênero

HQ, comecemos nos interrogando sobre:

1. O que justifica a inserção da HQ no espaço escolar?

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2. Que contribuições as HQ podem trazer para a formação de leitores

e produtores de textos?

3. Que características estruturais e funcionais alicerçam as HQ?

Quanto ao primeiro item, arriscamo-nos a dizer, por nossa própria leitura e

prática pedagógica, que a escola sempre buscou formar leitores e produtores de

textos. Todavia, essa busca sempre foi restrita e direcionada para padrões de

aprendizagem que incluíam uma infinidade de regras gramaticais, uma

desarticulação semântica entre texto e discurso, bem como um condensado

repertório de gêneros textuais. Estes últimos destituídos de identidade e, portanto,

de suas condições de produção. Em síntese, leitores e produtores de textos eram

formados, mas em sua maioria eram engessados e apenas se desvencilhavam

desse traje a rigor quando permeados pela diversidade de discursos inscritos na

vida e localizados fora da escola; sentiam, então, a necessidade de um querer-dizer

e fazer que não se encaixavam nos moldes do querer-dizer e fazer escolarizados.

Assim, nasce dentre aplausos reclusos e gêneros textuais já disponíveis outros

tantos textos dependentes desse contexto padronizador, mas investidos e

travestidos de flexíveis e híbridas roupagens ideológicas e lingüísticas.

A apropriação de formas padrão do dizer não impede o surgimento de

novas formas de interação provenientes da evolução de uma leitura parafrástica do

mundo para uma leitura polissêmica deste. A HQ, a nosso ver, surge exatamente

dessa visão polissêmica do outro, de nós e do mundo, a qual se constitui na própria

condição de existência da linguagem. Daí ser impossível a contenção do surgimento

de outros gêneros textuais, apesar dos discursos textuais autoritários (sejam eles

orais ou escritos) instaurados no espaço escolar.

Há que se considerar aqui sobre esse discurso autoritário das escolas,

embora tenha sido questionado desde a década de 70 a partir dos novos rumos que

a pedagogia e a psicologia tomaram, que foi na década de 90 que a discussão sobre

a diversidade textual e sua importância para a formação de leitores tomou fôlego85; e

a escola, principal responsável por essa formação, é atingida por essa nova flecha

teórica que advém com as transformações ocorridas, também, na Lingüística, mais

precisamente, como comenta Marcuschi (2000, p. 3), com as idéias de Swales

85 Esta mudança sobre o uso do texto na escola e a formação do sujeito leitor pode ser visualizada na reestruturação dos livros didáticos de Língua Portuguesa na década de 90.

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(1990), Schneuwly (1994), Dolz & Schneuwly (1998), Bronckart (1999), dentre

outros. A partir deste fato, a escola passa a abrir espaço para outros gêneros

textuais com o intuito de aproximar os estudos sobre linguagem das práticas sociais

dos estudantes.

Detendo-nos mais precisamente às contribuições que as HQ podem

trazer para a formação de leitores e produtores, podemos nos remeter aos estudos

de Mendonça (2002) ao destacar que:

[...] o papel de semioses distintas (verbal e não-verbal) para a construção de sentido termina por tornar as HQ acessíveis não só aos adultos com baixo grau de letramento, mas também às crianças em fase de aquisição da escrita, que podem apoiar-se nos desenhos para produzir sentido. (p. 202)

Além disso, a busca pelo prazer de aprender que ganhou espaço nos

cursos de formação de professores e que, também, foi mencionado pelos PCN

(Parâmetros Curriculares Nacionais) na década de 90, pode ser aqui colocada como

incentivadora da inserção das HQ nas salas de aula, embora isso não garanta a

inexistência de um discurso pedagógico autoritário – neste caso, quanto à utilização

do referido gênero textual como pretexto para o estudo de normas gramaticais,

desarticulando-os de sua funcionalidade discursiva.

Outro aspecto que merece ser considerado sobre a inserção da HQ nas

escolas, segundo Mendonça (2002, p.199-200), diz respeito às suas características

estruturais e funcionais. De acordo com este autor, a HQ pode ser considerada

como um gênero icônico ou icônico-verbal, cuja temporalidade se organiza quadro a

quadro.

Em relação à sua função, destacamos a sua heterogeneidade tipológica,

ou seja, sua capacidade de agregar vários tipos textuais (conversacional, descritivo,

narrativo etc.) numa única história; sua inserção numa variedade de portadores

textuais (jornais, boletins informativos, gibis, revistas etc.), bem como sua

intertextualidade tipológica que significa a apropriação da forma de um gênero

textual para expressar a função de outro. Esse conjunto de recursos existenciais

configura, ainda que de forma diversificada, as HQ, assim como permite apreender

sua função sócio-discursiva ao exemplificar seus possíveis meios de socialização e

apropriação.

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Por essa riqueza de detalhes, que favorecem a compreensão das HQ, é

que não podemos aqui deixar de analisar a aula da Professora A que traz para a

sala de aula, ou melhor, para a sala de leitura, esse gênero textual.

Comecemos com a ressalva importante que a Professora A faz do jornal

que é o portador textual no qual a HQ se inscreve. No entanto, ela informa aos

estudantes que esse portador não é, habitualmente, utilizado para veicular esse

gênero. Neste caso, acrescentaríamos que o jornal não veicula apenas a HQ, mas

esse gênero faz parte da constituição desse portador textual.

A segunda atitude da professora foi à socialização dos jornais para as

crianças, estando estas em grupo devido à pequena quantidade de jornais

disponíveis na escola. Infelizmente, esta escassez prejudica a formação de leitores,

já que os desejos das crianças de manusearem por mais tempo o jornal, assim

como preencher as cruzadinhas e outras brincadeiras contidas neste portador, não

podem ser satisfeitos.

A terceira atitude – que os grupos sistematizassem, por escrito, sobre o

que viram, acharam e sabiam das HQ -, a meu ver se fez coerente como estratégia

de leitura, já que as questões solicitadas pela Professora A associavam,

contextualmente, estudos lingüísticos e textuais. Por outro lado, sentimos falta de

um diálogo mais amplo entre os próprios estudantes e destes com a professora

sobre as questões solicitadas por escrito, assim como a apresentação da HQ em

outros portadores textuais, mesmo que a título de exemplificação das múltiplas

possibilidades de formas de circulação desse gênero.

Outro aspecto que também poderia ser ressaltado, mesmo que

aprofundado em aulas posteriores, é a busca de aproximação entre escrita e

oralidade, já que as HQ dão ênfase a interjeições (ah, oh, olá etc.); a condensação

de frases (ao utilizar-se de reduções vocabulares, como ressaltou Mendonça, 2002,

p. 196) e a ausência, na maioria das vezes, de elementos de sinalização

organizacional do texto (paragrafação e travessão, necessários em uma

conversação que não utiliza balões como recursos lingüísticos 86).

Por fim, podemos ainda dizer que sentimos falta da fala dos estudantes

sobre as temáticas abordadas nas HQ, já que sua função não é apenas causar

86 Os balões compõem o sentido do texto e possibilitam a isenção de parágrafos e travessões. Daí não concordarmos com a nomeação, em livros didáticos, de recursos não lingüísticos para gravuras, já que estas, assim como os balões, se fazem necessárias à compreensão do texto.

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prazer, mas também discutir questões polêmicas e servir de pretexto para

campanhas publicitárias.

QUADRO 3A : DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: anúncio

Data: 25 de julho de 2003.

A professora disse aos estudantes, na sala de leitura, que hoje eles

não iriam ler livros, fariam uma coisa diferente. “Vão trabalhar um tipo de texto

que nunca trabalharam”. Os estudantes se arriscaram falando os tipos que já

conheciam. A professora colocou no quadro de giz: “texto publicitário” e pediu

uma frase de qualquer produto.

Estudantes: “Ace todo branco fosse assim.

“Pra você ficar legal, melhor é melhoral”.

“Apracur pra curar”.

A cada frase a professora perguntava qual era o produto que estava

sendo vendido e, posteriormente, a denominava de slogans. Ela falou que estes

“chamam a atenção do leitor pra comprar aquele produto”.

A sala foi dividida em grupos de quatro integrantes. A professora

distribuiu um texto, a primeira vista imagético-verbal, para cada grupo, e informou-

os que iriam criar um texto publicitário:

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Os grupos leram o texto, mas a leitura ficou difícil porque os educandos

falavam em voz alta. Um estudante disse que não compreendeu o texto. A

professora então leu o texto para os estudantes, mas se fixou apenas na parte do

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slogan.

Uma estudante disse que a Faber Castell, nome este presente no texto

distribuído pela professora, “está dando uma satisfação e também fazendo uma

propaganda”. Disse, ainda, que existe uma imagem no texto e pergunta aos

estudantes “Qual é esta imagem?” e “Qual produto está sendo vendido?”.

Respostas dos estudantes: “Lápis de cor”.

A professora perguntou: “De que marca?”

Resposta da turma: “Faber Castell”.

Professora: “E o que quer dizer a frase ‘Nenhuma coruja perdeu o

sono...”

Resposta da turma: “Porque a coruja morava na madeira”.

“Porque a madeira era onde ela ficava, a árvore, aí”.

“Porque é da madeira que se faz um lápis”.

“Porque eles estavam arrancando os outros”.

Professora: “que outros?”

Estudante: “os outros galhos”.

Estudante: “De outras árvores”.

Estudante: “Porque a madeira dela não era de floresta”.

A professora completou: “... que era uma madeira especial, que eles

plantam para fazer os seus lápis. Eles não saem por aí devastando. Eles não

tiram nenhum animal do seu habitat”. E continuou a perguntar: “Qual o objetivo

desse texto para os leitores?”

A turma não respondeu. A professora, o tempo todo, chamou a atenção

da turma por causa do barulho.

A professora passou a dirigir as perguntas.

Estudante: “De incentivar os povos a não cortar árvore”.

Professora: “Não”.

Estudante: “Que não é pra empatar ninguém dormir”.

Professora: “De jeito nenhum”.

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A professora dirigiu a pergunta a outro estudante. Ele e os demais não

responderam.

Professora: “No final do ano eu vou fazer aquele ditado. Não adianta

chorar no pé do cabloco”.

Estudante: “Fazer a propaganda do lápis”.

Professora: “Exatamente. E com isso eles aproveitaram e colocaram

um texto dizendo como eles fabricam os lápis. Então eles foram espertos, usaram

a natureza para comprar. Se tiver aqui um lápis comum e outro da Faber Castell,

qual nós compraríamos?”

Estudantes: “Faber Castell”.

Professora: “E por que escolheram logo a coruja para aparecer na

propaganda?” — A professora dirigiu esta pergunta a um estudante.

Estudante: “porque eles não tiram a árvore de todas corujas, porque

eles escolhem outras árvores...”

Professora: “aonde as corujas vivem?”

Estudantes: “Nas árvores”.

A professora perguntou o que significava a palavra companhia de

acordo com o slogan.

Estudante: “Quer dizer... vou dar um exemplo: tem uma empresa e

outra empresa. Uma produz madeira e a outra precisa da madeira para fazer um

objeto, aí elas se juntam e formam uma companhia.”

Professora: “Eu estou falando dessa companhia aqui do texto”.

A mesma estudante: “Porque os lápis sempre estão juntos para

escrever, desenhar...” A estudante falou outras coisas similares, mas que foram

difíceis de registrar pelo pesquisador.

A professora perguntou: “De onde vêm as cores?”.

Estudante: “Das plantas”.

A professora perguntou o porquê do nome Faber Castell.

A turma não respondeu.

A professora perguntou, então, se havia alguma dúvida sobre o texto

publicitário e, após um silêncio em relação à pergunta, distribuiu um papel ofício

para cada grupo produzir o seu texto publicitário. Orientou os educandos, dizendo

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que escrevessem na folha “texto publicitário”. Disse à classe para escrever um

texto conscientizando as pessoas quanto à preservação do meio ambiente.

Colocou no quadro de giz a seguinte orientação:

Não esqueçam:

• que os leitores precisam entender a mensagem;

• o objetivo da propaganda é convencer as pessoas de que o produto

deve ser comprado;

• a imagem é muito importante nesse tipo de texto;

• o slogan ajuda a chamar a atenção do leitor;

• o uso de cores e letras também ajudam a chamar atenção.

A professora leu a orientação e a explicou pra turma.

INTERVALO DA AULA

A atividade continuou na sala de aula, pois havia começado na sala de

leitura. Os estudantes tiveram o período de uma hora para realizá-la.

A professora disse que um representante de cada grupo deveria

apresentar seu produto para toda classe. Todos os grupos leram e apresentaram

o desenho do produto. Ao término de cada apresentação/leitura a turma aplaudiu.

A professora não fez, durante as apresentações, nenhuma interferência. Ela

elogiou todas as produções e avisou que na próxima semana faria a correção

gramatical e tiraria as dúvidas sobre texto publicitário. Pediu que pegassem os

cadernos de matemática para registrar o dever de casa, pois em seguida, faria

uma brincadeira.

P/casa

.Estudar a tabuada de multiplicação para sabatina.

.Livro de matemática p. 103.

A professora fez a mesma brincadeira da aula anterior, mantendo os

mesmos grupos da produção do texto publicitário.

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COMENTÁRIOS:

Trataremos, agora, de um gênero textual comum na vida cotidiana das

pessoas, mas pouco freqüente nas salas de aula: o anúncio publicitário.

Inicialmente, recorreremos à sua caracterização, com o intuito de apreender melhor

sobre sua estrutura e funcionalidade discursiva antes de interagirmos com aula da

Professora A.

O anúncio em questão é caracterizado como publicitário, o que lhe

confere uma outra ordem de sentidos diferente de um anúncio proveniente de

contextos específicos de interlocução, como, por exemplo, um anúncio de

casamento para os familiares e amigos, um anúncio de gravidez, de regras de

convivência etc. Entretanto, podemos nos interrogar: mas todos esses anúncios,

caracterizados de não publicitários, não teriam, também, a função de informar,

convencer e compartilhar sentidos ideológicos sendo, portanto, também

publicitários? Pensamos que sim, embora a diferenciação aqui realizada esteja

justamente relacionada ao conceito de publicitário. Sendo assim, traremos agora

sobre a definição do referido termo a partir de fontes diversas:

- No dicionário87, encontramos as seguintes definições:

-

1. Qualidade do que é público: a publicidade dum escândalo. 2. Caráter do que é feito em público: a publicidade dos debates judiciais. 3. A arte de exercer uma ação psicológica sobre o público com fins comerciais ou políticos; propaganda; agência de publicidade; a publicidade governamental. 4. Cartaz, anúncio, texto, etc., com caráter publicitário: duas páginas de publicidade no jornal. (FERREIRA,1986, p. 1. 414)

- De acordo com Marcuschi (2000, p. 27):

-

A publicidade opera de maneira particularmente produtiva na subversão da ordem instituída para chamar a atenção para a venda de um produto. Parece que desenquadrar o produto de seu enquadre normal é uma forma de enquadrá-lo em nosso enfoque para que o vejamos de forma mais nítida no mar de ofertas de produtos.

- De acordo com Lara (2003, p. 46): 87 FERREIRA, Aurélio Buarque de Iolanda. Novo dicionário de Língua Portuguesa. 2.ed., Rio de janeiro: Fronteira, 1986. (p. 1.414)

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A publicidade existe desde os primórdios da humanidade, em ruas gregas, romanas, em papiros e placas, em arautos e vozes. Ganha espaço quando a imprensa se desenvolve; ganha cores quando as técnicas de reprodução permitem; ganha as ruas quando os meios de comunicação vão às ruas. Vergonha das vergonhas, pede que se comprem produtos, estimula o lucro, ofende a sociedade com sua franqueza e rudeza no falar. Choca o mundo, inserindo-se aqui e ali, sugerindo consumo, pondo preço nos desejos.

- De acordo com SANDMANN (2002),

Em português publicidade é usado para a venda de produtos ou serviços e propaganda tanto para a propagação de idéias como no sentido de publicidade. Propaganda é, portanto, o termo mais abrangente e o que pode ser usado em todos os sentidos. (p.10)

A partir das definições dadas ao termo publicidade, podemos melhor

compreender a nossa posição inicial de destacar o anúncio trabalhado pela

Professora A como sendo uma notícia publicitária, dando margem ao entendimento

de que existem anúncios que se desvinculam da publicidade. Por outro lado, se nos

centrarmos na origem do termo, que é proveniente do latim publicus, significando

tornar algo público, devemos entender que qualquer anúncio deverá ser considerado

como publicitário. Entretanto, se pensarmos atualmente no sentido assumido e/ou

incorporado à palavra publicidade, nossa diferenciação entre anúncios torna-se,

contextualmente, relevante. Esta nossa visão está respaldada, por exemplo, pela

conceituação de publicidade apresentada por Lara (2003) que destaca a existência

deste conceito desde os primórdios da humanidade, embora ressalte os rumos

diferenciados tomados, principalmente ligados ao consumismo exacerbado e, por

conseguinte, pondo preço nos desejos. Daí sentirmos a necessidade de situar o

gênero textual em questão antes de adentrarmos por uma análise mais específica

da aula da Professora A. Neste caso, nos propomos a dialogar com a dinâmica

estabelecida pela referida professora, iniciando com algumas observações sobre o

que conseguimos vislumbrar no anúncio publicitário em questão.

Podemos ver que neste texto não há a utilização de recursos lingüísticos

que busquem se desvencilhar da norma padrão estabelecida. No entanto, a

linguagem apelativa e persuasiva do anúncio pode ser vista tanto em seu slogan:

Nenhuma coruja perdeu o sono por causa dos nossos lápis, quanto pela utilização,

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em toda à sua narrativa, de palavras ou expressões sinônimas88 que

semanticamente nos remetem à preocupação da Faber Castell com o meio

ambiente; daí ser necessário e prudente o consumo de seus produtos.

Outro aspecto que pode ser ressaltado sobre o anúncio da Faber Castell,

diz respeito ao segundo slogan que acompanha a logotipo da empresa: Sua

companhia para escrever, desenhar e pintar, que além de informar sobre os tipos de

produto que esta empresa vende, faz uso do pronome possessivo sua, visando

gerar tanto uma aproximação informal entre o leitor e a empresa, quanto um

desejoso vínculo afetivo e participativo com a filosofia de trabalho enfatizada pela

Faber Castell. Esta constatação, por exemplo, inclui um estudo gramatical

aproveitável para os estudantes na medida em que coloca à gramática a serviço da

compreensão dos sentidos dispostos no texto. Tal inter-relação não foi realizada

pela Professora A. Supomos que este fato tenha sido ocasionado pelo não

entendimento desta sobre o uso da gramática:

Entrevistadora: Como você seleciona os textos para sala de aula? Professora A: Eu seleciono... Eu tenho o objetivo de alcançar o quê? Primeiro eu trabalho a leitura individual na sala, pra ver o nível de leitura que eles estão. Entrevistadora: É a leitura em voz alta que você está falando? Professora A: É, primeiro silenciosa, pra eles conhecerem, faço antecipação do título, né. O que é que eles acham que vão encontrar no texto. Depois de trabalhar o texto, a interpretação, o tempo que está sendo...o tempo verbal em que foi escrito o texto, a gente vai trabalhar a parte gramatical. Agora, a depender do texto, né. (Entrevista realizada em 19 de dezembro de 2003.)89

Vê-se que a Professora A não relaciona a interpretação de um texto com

o estudo gramatical, tratando-os como pólos distintos. Esta constatação faz-se

necessária para que compreendamos as suas estratégias de leitura/aproximação de

gêneros textuais.

Já a atitude da Professora A de não dizer para os estudantes sobre qual

gênero textual iriam ler, dando apenas a pista de que se tratava de “um tipo de texto

que nunca trabalharam”, pode ser considerada como uma pertinente estratégia de

leitura, visto que tanto resgata a memória leitora dos estudantes para textos que

88 São elas: madeira plantada - plantação de madeiras - matéria-prima - preservando flora e fauna naturais -lição de ecologia. 89

Vide entrevista semi-estruturada na íntegra em anexo H.

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conhecem, como cria expectativas favoráveis para a discussão do anúncio. Além

disso, buscar dos estudantes frases de propaganda, antes de revelar as

características de um texto publicitário, permite uma fantástica associação entre

prática, o que os estudantes já sabem sobre esse texto, e teoria, a partir do estudo

direcionado do anúncio publicitário em questão. Vale sublinhar, que o conceito de

slogan também é introduzido pela Professora A, após a citação dessas frases pelos

estudantes, reforçando, novamente, o importante trajeto da prática para a teoria.

Trajeto este que se faz necessário e viável tendo em vista que o gênero textual

anúncio publicitário faz parte do dia-a-dia destes estudantes.

Em relação ao bate-papo instaurado na sala de leitura, consideramos ser

essencial a idéia de a professora ter iniciado uma discussão em pequenos grupos e,

em seguida, ter socializado o que foi debatido. Por outro lado, sentimos que o texto

publicitário em questão não está dentre os mais fáceis de entendimento pelo leitor,

já que utiliza escritos longos e não metafóricos, assim como dois slogans - um

referente à propaganda específica e que serve de título para a narrativa textual, e

outro que acompanha a logomarca da empresa. Mas, embora essa complexidade

estrutural e lingüística tenha dado margem a não entendimentos por parte de alguns

estudantes sobre o texto, pensamos ser coerente a sua inserção no espaço escolar,

desde que outros anúncios pudessem servir, também, de base para que os

estudantes realizassem maiores inferências. Isto porque, mesmo sabendo que o

referido gênero faz parte do cotidiano dos estudantes, a advertência da Professora A

para produções textuais similares corre o risco de ser mal interpretada pelo fato de

ter sido realizada a partir de um único texto publicitário. O que significa dizer que

embora o contato com esse gênero seja constante fora dos muros da sala de aula,

isto não garante que os estudantes compreendam os teores persuasivos,

argumentativos, ilustrativos, dentre outras estratégias publicitárias.

Nesse processo, sublinhamos que a utilização de gêneros textuais

diversificados, abordando a temática Meio Ambiente, se faria necessária como

estratégia de leitura, visto que evidenciaria melhor a intenção do anúncio publicitário

ao usar essa temática como pano de fundo, tanto para dar credibilidade à empresa

quanto para divulgar e vender mais seus produtos.

Observamos, ainda, que a Professora A estimula o diálogo com os

estudantes, ao problematizar suas respostas e relacionar os textos escritos com a

imagem exposta no anúncio. No entanto, não vê o silêncio dos estudantes para

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certas questões como algo revelador de sentidos, utilizando recursos

desnecessários e incoerentes, tais como: ameaça (realizou atividades escolares

aparentemente desprazíveis; afirmativa essa evidente pelo seu tom de brincadeira) e

direcionamento de respostas (apontou para os estudantes que deveriam responder

as questões propostas). Outro aspecto a ser destacado diz respeito à orientação

escrita que esta professora disponibilizou aos estudantes com o intuito de auxiliar

suas produções textuais. Isto, a nosso ver, revela, ainda que de forma inconsciente,

uma preocupação com a compreensão estrutural do gênero, além de servir como

complemento de suas explicações orais sobre a atividade a ser realizada.

Quanto à finalização da aula, percebemos, novamente, uma

desvinculação entre gramática e texto, ao ser proposto pela Professora A uma

correção gramatical das produções textuais dos estudantes. Então, o que podemos

dizer dessa atitude?

Inicialmente, convidaríamos à professora a ler a seguinte colocação de

Irandé (2003):

[...] o fato de o professor, diante dos trabalhos dos alunos, ter apenas que procurar os erros tornou-se uma coisa tão natural que o termo consagrado para essa leitura do professor é “corrigir”. A pergunta que os alunos nos fazem é sempre: Professor(a), o (a) senhor(a) já corrigiu as provas? Por que não perguntam se já vimos, se já lemos seus trabalhos, seus textos? Uma análise semântica revela: “corrigir” é uma palavra que implica naturalmente uma outra: “erro”. Na verdade, o professor não lê, não avalia o que os alunos escreveram: o professor “corrige”, porque, como revisor, só tem olhos para os erros. (p. 55)

E, posteriormente, consideraríamos não intencional a atitude da

Professora A de desvincular texto e gramática, pois vimos que esta se preocupa em

buscar uma formação em Pedagogia, bem como elabora um planejamento

cuidadoso de suas aulas, revelando na sua fala cotidiana com os estudantes uma

vontade em acertar, embora não compreenda, ainda, - e de certo modo nós também

-, de que forma.

Para tentarmos compreender essa questão, utilizaremos as palavras do

Pajé Felippe Serpa90 que dizia que as atualizações são inúmeras sendo, portanto,

pertinente entender que ao tecer críticas e idealizar em cima das idéias e atitudes de

90 Em conversas informais, que também incluem suas aulas na Faculdade de Educação da UFBA. Vale sublinhar, que se trata de idéias por nós reapropriadas e interpretadas.

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outros profissionais, nós estamos mostrando o nosso percurso de atualização, que

embora seja fruto do convívio em diversas instâncias sociais, são também formas

singulares de apreensão e digestão do que vivenciamos. Assim sendo, concluímos,

a partir de expressões e idéias desse mesmo Pajé, que embora no campo das

potencialidades sejamos todos iguais, no campo das possibilidades somos todos

diferentes.

QUADRO 4A: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: Canção

Data: 16 de abril de 2003.

A professora colocou no quadro uma revisão de português:

Leia o texto:

Felicidade foi embora

e a saudade no meu peito

ainda mora

E é por isso que eu gosto lá de fora

porque sei que a falsidade não vigora

A minha casa fica lá detrás do mundo

onde eu vou em um segundo

quando começo a cantar

O pensamento parece uma coisa à toa

Mas como é que a gente voa

quando começa a pensar.

Lupicínio Rodrigues

Depois solicitou que alguns estudantes fossem até o quadro grifar os

substantivos abstratos, assunto de revisão já comentado por ela antes de colocar

o texto no quadro. Mas não falou sobre o texto, do que se tratava.

Em seguida, continuou a atividade no quadro:

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1. Identifique no quadro os substantivos abstratos de acordo com o que

eles se referem:

Nome do substantivo se refere à classificação

Essa última atividade foi corrigida no quadro de giz pela professora,

mas com a ajuda dos estudantes.

A professora comunicou à turma que na próxima semana os

estudantes trabalhariam mais sobre as temáticas indígenas, sobre Tiradentes e

sobre a Páscoa. Colocou a atividade para casa no quadro de giz:

P/casa

01. Com a ajuda dos seus pais, vocês irão confeccionar objetos

indígenas para fazerem uma amostra.

02. Trazer recortes de figuras indígenas.

COMENTÁRIOS:

É nítido o uso do texto/canção Felicidade como pretexto para a inserção

do estudo de conteúdos de ordem “gramatical”. O gênero textual canção é utilizado

pela Professora A com vistas a ensinar para a sua turma substantivos abstratos.

Esta ação pedagógica, à primeira vista, parece favorecer uma discussão em torno

dos equívocos por ela cometidos, principalmente se entendermos que qualquer texto

deva ser utilizado integralmente, sendo necessário um estudo da gramática a partir

da sua condição funcional, e, portanto, ideológica, dentro do próprio texto. A retirada

de frases e palavras isoladas do contexto maior em que o discurso foi produzido

sugere tanto deslocamentos fragmentados de reflexões por parte dos estudantes,

quanto de não desvelamento de intenções discursivas. Isto implica em uma

desconsideração explícita da existência de um texto concreto, empírico, que está ali

visivelmente presente e que, portanto, deve ser explorado pelos estudantes e

professor, assim como o processo de interlocução precipitado a partir da leitura do

mesmo. O sentido precipitado pela presença de um texto em classe é

automaticamente deslocado pelo fato dos conteúdos gramaticais ocuparem um lugar

prioritário nas discussões. O que se quer não é o texto, mas apenas os substantivos

abstratos que ele pode oferecer, sendo todo o resto desprezado. Esse texto foi

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destituído do seu valor discursivo, bem como isolado do seu caráter operante e

incitante a partir de uma reflexão sobre a linguagem e seu contexto histórico.

Por outro lado, não discordamos do fato de que a canção Felicidade,

selecionada pela Professora A, esteja adequada ao objetivo gramatical proposto:

identificar os substantivos abstratos. Partimos do pressuposto de que realmente não

existe gênero textual mais adequado do que os de caráter literário para se discutir

tais substantivos. A canção e a poesia, dentre outros textos dessa natureza, por se

apossarem de uma linguagem literária91 são contextualmente expositores dos

substantivos abstratos; demonstram visivelmente a funcionalidade dos mesmos. No

entanto, esta dita visibilidade contextual só poderá ser compreendida pelo educando

se a atividade proposta pelo professor considerar os substantivos dentro da oração

da qual fazem parte.

Assim, como bem pontuou Garcez (1998, p. 71) “a opção por

fundamentos teóricos que vêem a linguagem com uma ação com sentido, [...],

define, de forma rigorosa, certas opções metodológicas”, o que significa dizer que a

estratégia de retirada dos substantivos abstratos do texto pela Professora A está, a

nosso ver, pautada em uma opção metodológica diferente das discutidas atualmente

por teóricos da linha sócio-interacionista. Nesta, a atividade com texto não visa

apenas à extração de conteúdos curriculares, mas considera essencial ver e

vivenciar o texto quanto a:

1. historicidade da linguagem que o constitui. O que significa atentar

para o gênero textual escolhido pelo autor para a tessitura de seu discurso;

2. incompletude instaurada por qualquer texto, seja ele oral ou

escrito, já que ao ler nos tornamos, também, autores. Daí considerar a opinião

dos estudantes sobre o que foi lido, independente dos objetivos estipulados pelo

professor.

A atividade proposta para o texto assume, então, uma forma imperativa,

na medida em que os substantivos mudam de sentido por não estarem mais

inscritos no gênero que lhes deram origem. Nessa perspectiva, arriscamo-nos a

dizer que a escola, embora ofereça aos estudantes textos que dão espaço para

inferências múltiplas, as questões elaboradas direcionam a ação reflexiva dos

estudantes e sugerem a sedimentação do texto, transformando o discurso

91 Que transforma, na maioria das vezes, significante e significado em um outro significante (plano de expressão) com outro significado (plano de conteúdo).

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pedagógico num discurso autoritário, padronizador de perguntas e respostas. Em

resumo, a atividade realizada pela Professora A desconsidera a tessitura semântica

do gênero, quebrando o elo entre o social e o gramatical, na medida em que destitui

a canção de seu valor estético, visto que esta não se centra na melodia da canção e

a isola de seu contexto histórico, desconsiderando, assim, um assunto de ordem

social e sentimental que caracterizou as músicas do cantor e compositor da Música

Popular Brasileira, Lupicínio Rodrigues.

QUADRO 4B: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: canção

Data: 28 de abril de 2003.

A professora ditou a atividade, mas antes explicou o assunto e fez um

apontamento, resumindo um texto de Ciências contido em um livro didático.92 Em

seguida, escreveu no quadro o seguinte exercício:

O que é o que é?

1. Estado de aquecimento de um corpo.

2. Energia que provoca o aquecimento ou resfriamento de um corpo.

3. Aparelho com o qual podemos medir a temperatura de um corpo.

4. Das alternativas abaixo, identifique apenas as que se relacionam

com os efeitos do calor:

5. Choque elétrico

6. Gelo derretido

7. Vapor d’água

8. Temperatura alta

9. Sinos tocando

10. Chuva

11. Sorvete derretido

92 TRIGO, Elisabete Chaddad e TRIGO, Eurico Moraes. Viver e aprender ciências. 3.ed.SP: Saraiva, 1995.

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Obs. Durante esta atividade a professora corrigiu alguns possíveis

“equívocos gramaticais” dos estudantes. Ex.: há/a; u calor.

Oralmente, e com a participação dos estudantes, a professora “corrigiu”

a atividade. Na última questão utilizou o quadro de giz. Posteriormente, disse aos

estudantes que eles iriam trabalhar em dupla com um texto que já conheciam.

Uma estudante perguntou: “Nós conhecemos o tipo ou conteúdo, professora?”. A

professora respondeu: “Os dois”.

A professora perguntou a turma o que ela esperava de um texto que

tem o título “menina”? Algumas respostas da turma:

- “aniversário da menina”;

- “namoro da menina”;

- “brincadeira da menina”;

- “a menina saindo com outras meninas...”.

Após realizar levantamento de hipóteses da classe sobre o título do

texto, ela entrega uma canção escrita seguida de atividade:

Menina

Menina, Que um dia eu conheci criança Me aparece assim de repente Linda virou mulher Menina, Como pude te amar agora te carreguei no colo menina, cantei pra te dormir. Lembro a menina feia Tão acanhada e de pé no chão, Hoje, maliciosa guarda segredos Em seu coração. Menina, Que tantas vezes fiz chorar. Achando graça quando ela dizia: “Quando crescer, vou casar com você”.

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Menina, Como pude te amar agora Te carreguei no colo, menina, cantei pra te dormir.

Paulinho Nogueira

1. O texto fala sobre o relacionamento de duas pessoas. Que tipo de

pessoas são essas?

2. Ele fala, ao mesmo tempo, do passado e do presente dos dois:

Indique os trechos em que ele narra:

a)o passado

b)o reencontro

c)o presente

3. Por que o narrador chama sua amada de “menina?”

4. É provável que o narrador tenha sido o primeiro amor da “menina”.

O que nos leva a pensar isso?

5. O reencontro foi algo programado ou inesperado? Justifique sua

resposta com trechos do texto.

Os estudantes disseram que se tratava de um texto poético.

A professora perguntou se existia outra forma de ler o texto. A turma

respondeu que “sim, cantando”.

A Professora perguntou se alguém sabia quem cantava a música.

Responderam “Paulinho Nogueira”. Outros colegas corrigiram dizendo “Netinho”,

já que a primeira resposta referia-se ao compositor. A professora perguntou quem

gostaria de cantar, mas a turma ficou envergonhada. Então, ela mesma iniciou a

canção, com o objetivo de que a classe pudesse ouvir o ritmo. Depois a classe

cantou, e muito bem!

Posteriormente, a professora frisou que o texto tinha coisas

interessantes a serem trabalhadas e a turma adianta, dizendo: “verbo”;

“substantivo abstrato”; “fazer apresentação”.

A professora perguntou quais os tempos verbais do texto. Mas ela

mesma respondeu: “passado e presente”. Depois solicitou que a classe

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destacasse os tempos verbais mencionados. Respostas de alguns estudantes,

oralmente:

- “... que um dia eu conheci criança”. (caracterizado pela classe como

passado)

A professora pergunta sobre o tempo presente. Um estudante

responde:

- “... aparece assim de repente”.

INTERVALO DA AULA

Continuação da atividade iniciada antes do intervalo:

A professora disse que os estudantes falaram das características

desse “texto poético”, como “verso”; “rima”; “estrofe”.

Ela perguntou: “quantas estrofes o texto tem?”.

Resposta da turma: “Cinco”.

Que é o conjunto de quê? – perguntou a professora.

Resposta da turma: “... de versos”.

A professora disse que agora eles iriam mostrar que entenderam o

texto respondendo as questões que estão abaixo dele. Ela leu as questões e

deixou claro que deveriam respondê-las no caderno de português.

Correção da atividade:

Resposta dos estudantes:

- Em relação à 1ª questão, resposta: “São pessoas que no passado já

se conheciam e já tinham intimidade”.

- Tipo de pessoas: “o narrador e a menina”.

A professora pediu para especificar o uso do “narrador”. Respostas da

turma: “homem e menina”; “menino e menina”. A professora colocou no quadro:

“01. Um homem mais velho e uma menina nova”.

- Em relação à 2ª questão: “que um dia eu conheci criança”.

A professora perguntou: “qual sinal de pontuação devemos utilizar para

transcrever?”. Resposta da turma: “aspas”. Ainda nessa questão, algumas

respostas dos estudantes: “te carreguei no colo menina”; “Quantas vezes fiz

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chorar”, “Achando graça quando ela dizia quando crescer vou casar com você “; “

Lembro a menina feia, tão acanhada e de pé no chão”.

A professora escreveu no quadro: “Que um dia eu conheci criança...”;

“te carreguei no colo menina, cantei pra te dormir”; “Lembro a menina feia, tão

acanhada e de pé no chão”.

- Em relação à letra b da 2ª questão: “me aparece assim de repente.

Linda virou mulher”.

A professora colocou essa resposta no quadro.

- Em relação à letra c da 2ª questão: “linda virou mulher”.

A professora escreveu no quadro: “Como pude te amar agora”; “Hoje

maliciosa, guarda segredos em seu coração”. “Linda virou mulher”.

- Em relação à 3ª questão: “Porque ele conheceu ela desde pequena”.

Outros estudantes responderam com o trecho da música e a professora pediu que

não respondessem assim. Outras respostas: “Porque quando a conheceu ela era

ainda uma menina, do sexo feminino, por isso a chamava e a chama de menina”.

(estudante responde olhando pelo caderno); “por que ele carregou ela no colo e

quando ela cresceu muito rápido, virou mulher...não tô conseguindo falar.” A

professora colocou no quadro: “Pelo fato de ter conhecido ela ainda pequena, ter

tido uma infância juntos e que para ele, além dela ter crescido, continua sendo

aquela menina.” Ela falou para os alunos :” quem escreveu parecido? (...) tudo

bem, é só um ponto de vista” .

- Em relação à 4ª questão: “Sim. Por que ela dizia que quando

crescesse iria casar com ele”.

- Em relação à 5ª questão: a professora fez a pergunta para os alunos.

Eles responderam: “Inesperado”. Ela pediu que justificassem. Uma estudante

respondeu: “Me aparece assim de repente”. A professora escreveu no quadro,

ambas as respostas dadas pela turma. Em seguida ela falou das avaliações que

ocorreriam na próxima semana e colocou as datas das mesmas no quadro:

Em seguida, a professora fez a atividade para casa no quadro:

P/casa

01. Escreva as adições na forma de multiplicação (vide exercício no

planejamento).

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COMENTÁRIOS:

Quando nos propusemos a discutir a importância do uso de diversificados

textos no espaço escolar, optamos por assumir uma atitude investigativa no que

concerne à conceituação e função dos gêneros textuais aqui citados. A preocupação

não é defini-los e submetê-los a padrões de análise textual, como se para cada

gênero em questão existisse uma forma única de leitura/aproximação. No entanto,

não podemos negar que nos destituir, enquanto profissionais de educação, das

discussões que se sucedem sobre a posição que os textos vêm ocupando

socialmente e, por conseguinte, didaticamente, não é a melhor forma de se vivenciar

as múltiplas possibilidades de interlocução que eles proporcionam.

Assim, ao se pensar em levar para a sala de aula um determinado texto,

entendemos ser necessário lê-lo sobre duas bases, que embora diferentes não se

anulam: sem intencionalidades e com intencionalidades. O que significa dizer que

temos o direito, a cada gesto de leitura, de vivenciar o texto, mesmo não dispondo

de objetivos definidos. Por outro lado, quando lemos um texto com intencionalidades

pedagógicas, nada mais coerente do que nos aproximarmos dele buscando

identificar em que gênero textual o discurso está inscrito para que possamos abrir

espaços de interlocução mais efetivos e afetivos com os estudantes. Para melhor

explicitar o que estamos falando, vamos tomar as canções utilizadas pela Professora

A.

Vimos que ela utilizou, nas duas aulas anteriormente citadas, as canções

Felicidade e Menina. Observamos, também, que a Professora considerou o gênero

textual canção como sendo poesia, conceituação ainda polêmica e divergente, mas

que precisa ser aqui discutida, não com o intuito de resolver o impasse, mas sim de

tecer reflexões em torno de leituras possíveis a respeito de ambos os gêneros.

Sendo assim, antes de procedermos a uma análise das duas aulas já apresentadas,

tentaremos definir o que é canção e poesia sem, contudo, desconsiderar seus

espaços de intersecção, pois esta desconsideração invalidaria nossa posição de que

os textos vivem dialogando entre si.

Levando-se em consideração que este trabalho tem explicitamente o

desejo de abrir espaço para a diversidade de gêneros textuais nas escolas, nada

mais apropriado do que expor as características e funcionalidades desses textos

dentro de seus contextos de uso. Desta forma, para tecer comentários sobre o

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gênero canção utilizado na sala de aula pela Professora A, recorreremos

inicialmente a alguns autores que desenvolveram pesquisas sobre gêneros textuais,

apresentando suas peculiaridades e similaridades. Para isso, nos apropriamos do

discurso de Costa (2002) sobre a utilização de canções na sala de aula e sua

coerente distinção com a poesia.

Costa (2002, p. 107) define a canção como possuidora tanto de uma

linguagem verbal, quanto musical (ritmo e melodia) sendo, portanto, um gênero

híbrido. Embora a considere como gênero independente, com suas qualidades

específicas decorrentes de seu processo de criação e, por conseguinte, de

materialização93, a canção é, muitas vezes, associada à poesia por lançar mão de

recursos literários, tais como a métrica, o sentido figurado e a rima, por exemplo. No

entanto, se atentarmos para o caráter histórico de construção de cada texto, teremos

que distinguir um gênero de outro, embora isso não invalide a ressalva dos pontos

de convergência entre canção e poesia94, já que há casos em que um se transforma

noutro expandindo o processo intertextual. Além disso, concordamos com Costa

(2002) quando diz que a canção deve ter seu lugar independente enquanto gênero,

já que deve estar presente na escola, tendo como objetivo:

Proporcionar ao aluno uma educação dos sentidos e da percepção crítica, que proporcione, ao lado do prazer sensorial e estético, um exercício de leitura multissemiótica, voltada não apenas para a discriminação de cada materialidade semiótica do gênero, mas também para a interação pluridirecional que relaciona todos os elementos que uma canção pressupõe (autor – cantor – personagens – melodia – ouvinte genéricos – ouvinte individual – etc.). Esteja bem claro, por fim, que o que se deseja não é formar cancionistas, mas ouvintes críticos de canções, capazes de perceber os efeitos de sentido do texto, da melodia e da conjunção verbo-melódica, conhecedores do cancioneiro e dos cancionistas de seu país, seus

93

Costa (2002) destaca o texto e a melodia como sendo duas materialidades imbricadas na composição da canção. Além disso, o estudo do estilo da melodia das canções, seja ele erudito ou popular, por exemplo, define e distingue historicamente e socialmente este gênero da poesia, resultando disso à necessidade em estudá-lo de forma diferenciada. 94

Segundo D’ Onofrio (1995) há, historicamente, interseções entre canção e poesia já que “[...] a mais antiga poesia grega era chamada mélica, porque ligada ao canto; posteriormente, passou a chamar-se lírica, de ‘lira’, instrumento musical com que se acompanhava a declamação dos versos de um certo tipo de poemas. E a poesia, em seu sentido estrito, mesmo quando adquiriu sua autonomia em relação às outras artes, sempre continuou mantendo uma forte ligação com a música e o canto, haja vista a denominação das mais importantes formas poemáticas: soneto, canção, cantiga, rondó, balada”.(p. 31). Entretanto, quando dizemos da necessidade de distinguir canção e poesia também estamos nos centrando no processo sócio-histórico de desenvolvimento independente de ambos os textos até os dias atuais, embora não neguemos as influências, “literárias”, que os unem.

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posicionamentos, estilos e discursos; tal como pretende o estudo da literatura“.(COSTA, 2002, p.119-120)

O que significa dizer que tanto a canção quanto à poesia têm também

formas diferenciadas de aproximação, seja na maneira como lemos ambos os

textos: cantando ou recitando, seja como discutimos seu estilo estrutural e, por

conseguinte, a maneira como são atualmente divulgados.

A canção Felicidade apresentada à turma de 4ª série da Professora A,

pelo que pudemos ver na descrição de sua aula, não cumpriu nem a função de uma

canção, nem mesmo de uma poesia. Sua utilização teve apenas uma intenção

gramatical95, isto é, de uma gramática descontextualizada, equivocada e

independente das situações comunicativas e interativas.

Como já dissemos anteriormente, não pensamos ser desapropriado o

estudo dos substantivos abstratos, já que eles estão evidentemente presentes no

texto e são centrais na sua constituição, pois o movimentam melodicamente. O que,

em síntese, nos preocupa na ação da Professora A com esse texto é o fato de esta

focalizar apenas a classe gramatical das palavras, não se centrando no teor

subjetivo que cada uma carrega. Sabemos que felicidade, saudade, falsidade,

pensamento abrem um leque de associações semânticas que poderiam ser

exploradas em classe, visto que cada estudante teria uma definição particular, de

teor sentimental e de vivência pessoal, para cada substantivo citado no referido

texto/canção. Sendo assim, os substantivos devem ser estudados na perspectiva da

produção e compreensão textuais, estando relacionados com processos concretos

de constituição de discursos. Desse modo, estamos de acordo com Antunes (2003,

p. 92) quando diz que é apenas no texto que a gramática pode mostrar-se relevante

e aplicável.

O que estamos tentando mostrar é a urgente necessidade de o professor

se posicionar mais como leitor espontâneo. Isto significa dizer, que ele precisa

vivenciar a leitura em toda a sua simplicidade – como ação imprescindível da vida –

e complexidade – posicionando-se quanto à (re)criação e funcionalidade que cada

95

Ou como ressalta Antunes (2003, p. 92), a escola centra-se mais no estudo das nomenclaturas gramaticais e não nas regras gramaticais, pois as regras “[...] implicam o uso, destinam-se a ele, orientam a forma de como dizer, para que este dizer seja interpretável e inteligível”.Dessa maneira, o que se faz na escola não poderia nem mesmo ser considerado estudo das regras gramaticais. No entanto, manteremos essa expressão para facilitar o entendimento do leitor, embora concordemos com a posição da referida autora.

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gênero textual assume histórica e socialmente. Não adianta, por exemplo, o

professor buscar treinar a escrita do estudante através do gênero bilhete se este não

for produzido em situações reais e necessárias de interlocução. Isto porque, o

bilhete possui um caráter emergencial e de uso eventual, não exigindo maiores

formalizações da escrita.

Por fim, entendemos que as formas de aproximação ou estratégias de

leitura propostas para o gênero canção pela Professora A não proporcionaram, em

nossa perspectiva, um encontro entre texto e leitor. Não garantindo a compreensão

do que foi lido e da regra gramatical que sustentava todo o discurso textual,

portanto, não cumprindo os objetivos sócio-funcionais.

QUADRO 5A: DIÁRIO DE CAMPO

Gênero Textual: poesia

Data: 22 de abril de 2003.

Cheguei na sala da Professora A às 8:40h. Ela estava corrigindo a

seguinte atividade para casa, realizada na aula anterior:

P/casa

01.Leia a poesia abaixo:

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

Oswald de Andrade

1. Que influência da cultura européia, no modo de vida dos indígenas,

está destacada na poesia?

2. Por que, em sua opinião, o português vestiu o índio e não ao

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contrário?

3. Fale o que foi inconfidência mineira.

A professora corrigiu esta atividade oralmente, com a ajuda da turma:

Na 1ª questão colocou “as vestimentas”; na 2ª “porque a cultura

portuguesa foi imposta como superior”; na 3ª questão vários estudantes liam o

que tinham respondido.

A professora corrigia as respostas dos estudantes que não “tinham

muito sentido”. Ela pediu, em seguida, que os estudantes fizessem um resumo do

que leram e já ouviram na aula anterior.

Vejamos algumas respostas dos estudantes:

1. Estudante: “Foi dos movimentos feitos em Minas pra nossa

libertação... 96

A professora perguntou por quem foi liderado esse movimento. A

mesma estudante respondeu:

2. Joaquim José da Silva Xavier. Tiradentes.

Depois, esta mesma estudante foi ao quadro e colocou a resposta que

havia feito, sem olhar pelo seu caderno:

“Foi um dos movimentos feitos para nossa libertação de portugal.

Quem a comandava era Joaquim José da silva Chavier “.

A professora corrigiu sua escrita no quadro de giz.

Em seguida, a professora lembrou à turma que no dia seguinte haveria

um encontro com índios na escola. Então, falou da entrevista que deveriam

preparar. Depois, solicitou que os estudantes abrissem o caderno na parte de

História. Em seguida, escreveu a atividade no quadro, lembrando que gostaria

96 Não ouvi o restante de sua fala, mas a estudante falou de maneira espontânea, demonstrando que compreendia a temática que estava sendo trabalhada.

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que o texto fosse xerocopiado ou mimeografado, mas não havia recursos para

isso.

Escreveu o seguinte texto no quadro de giz:

O Brasil entra para a história

Passados alguns anos da chegada de Colombo à América em 1498, o

navegante português Vasco da Gama conseguiu atingir a cidade de Calicute, nas

Índias, contornando o sul da África.

Estava descoberto, assim, o tão procurado caminho para o Oriente

através do oceano Atlântico.

Satisfeito com a descoberta o rei de Portugal, D. Manuel, organizou uma

esquadra para ir às Índias. O comando da esquadra foi dado a Pedro Álvares

Cabral.

Além de ir às Índias, Cabral tinha como missão passar por terras que,

pertenciam a Portugal.

No dia 22 de abril de 1500, Cabral avistou um monte, ao qual deu o nome

de Monte Pascoal, porque era semana da Páscoa.

No dia 26 de abril, o Frei Henrique Soares de Coimbra celebrou a

primeira missa em nossa terra.

No dia 1º de maio, sob o pé de uma enorme cruz, erguida pelos

Portugueses como sinal de posse da terra, celebrou a segunda missa, assistida por

muitos indígenas.

Após a missa, Cabral prossegui viagem, deixando na nova terra quatro

homens para conhecer melhor os indígenas e sua língua.

Fazia parte da esquadra Portuguesa o escrivão Pero Vaz de Caminha

que escreveu uma extensa carta ao rei contando tudo o que viu na nova terra.

Solicitei a professora à fonte do texto: HUCCI, Elian Alabe. Viver e

aprender: estudos sociais. 4ª série, 6.ed. 1997. (p. 113-114)

A professora explicou que a classe faria a leitura em grupo (em média

6 alunos). Três grupos fizeram uma notícia sobre o descobrimento. As outras três

equipes escreveram uma carta ao rei de Portugal: o que viram na nova Terra97.

A professora perguntou: “Se vamos escrever uma carta ao rei,

97 Vide algumas dessas produções em anexo I.

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devemos nos dirigir como Ele? Resposta da turma:” Não. Excelência “.

Estratégia da professora: um estudante colheu as informações das

discussões do seu grupo. Depois o grupo organizou essas informações e um

integrante do grupo escreveu o resultado das discussões e anotações.

Os estudantes leram o que produziram e releram. Preocuparam-se em

fazer de forma organizada; em quase todos os grupos a função da escrita ficou a

cargo das meninas. Na maioria dos grupos, todos os integrantes participaram da

produção textual.

Devido ao curto tempo da aula desse dia, a professora solicitou que os

estudantes elaborassem, em casa, uma pergunta para ser feita aos índios no dia

seguinte. As perguntas seriam selecionadas em classe. Os estudantes não

tinham terminado a produção textual iniciada no 1º horário, mas a professora, às

11h30, já colocava no quadro de giz a atividade de casa. Isto porque já havia,

também, em cada grupo, um responsável para passar a produção textual em

definitivo. A professora escreveu no quadro a seguinte atividade para casa.

P/casa

1. Elabore uma pergunta para ser feita com os índios no dia 24/04/03.

2. Faça uma pesquisa para descobrir palavras de origem indígena.

3. Faça uma lista com nomes de pratos feitos em sua casa que utilizam

milho, mandioca, farinha de mandioca.

COMENTÁRIOS:

Como nas análises anteriores, iniciaremos tentando dizer o que é o

gênero poesia e, concomitantemente, iremos estabelecendo relações entre o que

pensamos sobre a dinâmica da aula da Professora A descrita no Quadro 5A.

Para respaldar tamanho feitio - de dizer o que é uma poesia, embora

aconselharmos aos leitores vivenciá-la -, convidamos D’Onofrio (1995) e Barthes

(1995).

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133

O primeiro se refere à linguagem poética como contendo uma estrutura

complexa devido à sua polivalência. Isto é:

O poético apresenta-se como um feixe de possibilidades significativas, instaurando um processo de semiose ilimitada, pois encerra em seu núcleo sêmico a co-ocorrência dos dois pólos de uma oposição. A conjunção e a disjunção de elementos contrários encontram-se simultaneamente, coexistem na estrutura poética: “o signo poético simultaneamente remete e não remete a um referente; ele existe e não existe; e, ao mesmo tempo, um ser e um não ser. A poesia enuncia a simultaneidade (cronológica e espacial) do possível com o impossível, do real e do ‘fictício’. (D’ONOFRIO, 1995, p. 12)

O segundo, dentro dessa mesma perspectiva, complementa:

Uma vez abolidas as relações fixas, a palavra só tem um projeto vertical; é como um bloco, um pilar que mergulha num total de sentidos, de reflexos e remanências: é um signo de pé. A palavra poética é um ato sem passado imediato [...] a Palavra não é mais dirigida de antemão pela intenção geral de um discurso socializado [...] A Palavra é enciclopédica, contém simultaneamente todas as acepções entre as quais um discurso relacional a teria obrigado a escolher. Ela realiza então um estado que só é possível no dicionário ou na poesia, onde o nome pode viver privado de seu artigo, reduzido a uma espécie de estado zero, mas prenhe de todas as especificações passadas e futuras [...] Cada palavra poética constitui assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora, de onde escapam todas as virtualidades da linguagem.(BARTHES apud D’ONOFRIO, 1995, p. 12)

Vimos que os dois autores citados dão conta de explicar, tão bem, o que

nos parece inexplicável. Apenas por estas duas caracterizações da poesia,

assumimos o risco de dizer que a aula da Professora A destituiu esse gênero de sua

funcionalidade discursiva, ao centrar-se mais nos questionários do que no próprio

texto. Embora saibamos que a poesia de Oswald de Andrade foi retomada pela

Professora A para correção de um exercício de casa a ser realizado pelos

estudantes, fazendo assim parte de uma aula anterior, portanto não sabemos como

a professora iniciou o trabalho com este gênero textual, ainda assim consideramos

sua estratégia de leitura/aproximação incoerente do ponto de vista discursivo. Com

isso não queremos retirar o valor das questões que compõem o questionário e

referem-se ao estudo da temática trazida pela poesia, pois as duas primeiras abrem

possibilidades pertinentes de interlocução, portanto estão contextualmente situadas.

O que nos afeta, mais precisamente, é o fato de a Professora transformar esse texto

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num simples veículo de informação e compreensão de conteúdos históricos, sem ter

por base a linguagem literária. Pois, “[...] a linguagem, em sua função poética, se

liberta dos constrangimentos da prática monovalente do uso lingüístico e pode

continuar ad infinitum sua função criadora de realidades, renovando

incessantemente códigos e ideologias” (D’ONOFRIO, 1995, p. 12). Esta atitude da

Professora A também pode ser associada à sua formação enquanto leitora, já que

considera o gênero poema como sendo uma leitura “cansativa”, dando mais ênfase

aos textos informativos:

Professora A: Pra mim eu acho super cansativo, super estressante ler poemas, quer dizer, entre aspas, quer dizer, alguns poemas. Os poemas mesmo de Castro Alves, menina, sinceramente tem vários...tem uns que são muito interessantes, mas pra você sentar e ler... Entrevistadora: Por quê? Professora A: Eu não...viche Maria! Quer que eu lhe fale?! Não é muito pela linguagem, não sei. É a forma que ele se expressa. É alguma coisa nele que eu não... Entrevistadora: Não bate? Professora A: Não bate. Acho bonito, certo, alguém lendo, agora pra eu parar pra ler. Entrevistadora: Mais poemas mesmo, né? Professora A: É. Pode até ter outros, mas o que veio agora em minha cabeça... Entrevistadora: Que textos você gosta mais de ler? Tem o hábito de ler? Professora A: Textos que eu trabalho na sala de aula. Texto informativo, científico, né. (Entrevista realizada em 19 de dezembro de 2003.)

Sendo assim, o que deve ser vislumbrado em uma poesia não é apenas o

seu conteúdo temático, mas sua amplitude e coerência estética ao expressar

informações e opiniões. O seu espaço principal de interação com o leitor está,

justamente, no fato de fazer-se entender por um dito que, constantemente, se

reveste de um não-dito. A poesia é um espaço instituinte e não institucionalizado. É

um gênero textual altamente polissêmico, aberto, intervalar e ambíguo, não só pela

linguagem que lhe dá vida, mas também pela sua estrutura composicional melódica

e incerta.

Por este percurso analítico, notamos a presença de um outro gênero

textual na aula da Professora A: o relato histórico. Este texto parece vir

complementar a análise temática trazida pela poesia de Oswald de Andrade,

estratégia esta que consideramos essencial, já que confronta as linguagens e

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temáticas constituintes de cada gênero textual. No entanto, apesar de ambos os

textos tratarem de questões históricas referentes ao descobrimento e ao processo

de colonização do Brasil, tal complementaridade textual e temática, em nenhum

momento, foi explicitada pela Professora A no encaminhamento de suas atividades.

Apenas foi realizada uma leitura superficial do texto relato histórico, já que os

estudantes deveriam simular uma carta ao Rei de Portugal sobre o que viram no

Brasil. Esta simulação poderia, por exemplo, abordar questões referentes ao que

vemos no Brasil de hoje, dando nova configuração e relevância à carta, já que

estaria mais próxima da vivência dos estudantes. Poderia, também, ter sido

enfatizado o entrelaçamento entre os dois textos em questão, com o objetivo dos

estudantes visualizarem a tramas das narrativas, tais como elementos subjetivos

explícitos, no caso da poesia, e os elementos objetivos explícitos, no caso do relato

histórico.

Em outras palavras, quanto ao relato histórico:

É necessário ressaltar que o narrador, a partir de um paradigma, ao qual são associados dados de um período do passado instituído como objeto de estudo, organiza o relato através de um processo individual, e sem dúvida arbitrário, de seleção e de combinação de fatos e enfoques. Sua ótica, então, aparece no relato, mesmo que tenha pretendido que o mesmo fosse mais impessoal. (D’ONOFRIO, 1995, p. 56)

Quanto à poesia, destacamos que:

[...] a um mesmo referente podem corresponder dois ou mais significados, cujos sentidos variam em função do cabedal cultural e da situação afetiva do leitor. [...] Como demonstra Milton José de Almeida, a formação do discurso poético remete ao mecanismo simbólico da prática significante da linguagem humana, anteriormente a sua estruturação lógica, a sua codificação monovalente. A linguagem poética procura alcançar as raízes naturais do processo simbólico, ainda na fase de interrogação, e não de resposta, aos anseios da comunicação inter-humana. (D’ONOFRIO, 1995, p. 11-12)

O que significa dizer que o enfoque temático trazido pela poesia, apesar

de trilhar caminhos subjetivos individuais explícitos do autor, vem respaldado por um

alto grau de expressividade, convidando o leitor a dialogar com o texto, a refletir

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sobre os fatos, a ser persuadido sem constrangimentos e a resgatar sua memória

leitora.

3.1.2 Cena 2

Esta parte refere-se às descrições e análises das aulas da Professora B.

Inicialmente, há a apresentação de um quadro demonstrativo dos gêneros textuais

que essa professora utiliza na escola. E, em seguida, os comentários sobre alguns

desses gêneros e suas formas de inserção na sala de aula. No entanto, o quadro

demonstrativo sobre as estratégias de leitura/aproximação não constará nesta parte,

pois não pudemos traçar uma freqüência quanto ao uso dos textos descritos no

Quadro 1 devido à utilização de uma variedade textual maior pela Professora B.

Mas, tais estratégias poderão ser vistas durante a descrição das aulas extraídas do

diário de campo.

QUADRO 1. GÊNEROS TEXTUAIS UTILIZADOS PELA PROFESSORA B:

Freqüência

Gêneros

textuais

1 vez em quatro

meses

2 vezes em quatro

meses

4 vezes em quatro

meses

Didático-

informativos: relato

histórico, geográfico

e científico.

x

Literários:

1. Canção x

2. Poesia x

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3. Conto x

4. Fábula x

5. Crônica98 x

Literário “popular”

1. Trava-línguas x

2. Advinhas x

3. Provérbios x

Humorístico

1. Anedota x

História ficcional

híbrida x

Instrucional99 x

COMENTÁRIOS:

Vimos que a Professora B utiliza textos diversificados, em maior grau os

de caráter literário. Isto pode ser atribuído ao fato de a mesma acreditar que os

estudantes preferem mais essa modalidade de texto:

98

Uma das crônicas foi registrada a partir do caderno de planejamento da Professora B e não da observação de sua aula. 99 Texto não comentado neste capítulo, pois tanto a dinâmica da aula quanto o próprio texto foram utilizados apenas para apresentação, na amostra pedagógica da escola sobre comidas típicas baianas.

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Entrevistadora: Você conseguiu detectar algum tipo de texto que seus alunos mais gostam de trabalhar? Professora B: Eles gostam muito de fábula. Muito mesmo, histórias infantis, eles se prendem mais, eu sei que dá vazão à imaginação e tal. Eles se transportam mesmo para o irreal e aí fica tudo mais fácil. Entrevistadora: Dos textos que você mais gosta de trabalhar em sala de aula são os poéticos ou são as fábulas. Professora B: Não, eu gosto muito de poéticos, mas em vista da necessidade a gente não pode se prender a um, há só uma modalidade, né? Então, é bom trabalhar o que eu gosto, mas eu sinto que a preferência maior deles são as fábulas, os contos infantis, as histórias infantis, então eles preferem mais, eu acredito que eles preferem mais e que é mais fácil até trabalhar isso aí. (Entrevista realizada em 19 de dezembro de 2003.)100

Vejamos, então, como esta professora procede com alguns dos gêneros

textuais que utiliza em sala de aula:

QUADRO 1 A: DIÁRIO DE CAMPO Gênero textual: crônica Data: 28 de Agosto de 2003.

A professora estava corrigindo o dever de casa sobre o corpo humano.

A correção foi oral. A atividade era um questionário.

Posteriormente, ela falou para os estudantes: “[...] a crônica que vamos

ler hoje é de Fernando Sabino”. Antes, entretanto, leu uma sintética biografia do

autor para a classe.

Crônica:

Fuga

Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira

pela sala, fazendo um barulho infernal.

- Pára com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.

Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças

paternas: não estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira.

- Pois então pára de empurrar a cadeira.

- Eu vou embora – foi a resposta.

100 Vide entrevista semi-estuturada na íntegra em anexo H.

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Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do

chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um

caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave

onde diabo meteram a chave da despensa? – (a mãe mais tarde irá dizer), metade

de uma tesourinha enferrujada sua única arma para a grande aventura, um botão

amarrado num barbante.

A calma que deixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai

olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o

portão:

- Viu um menino saindo desta casa? Gritou para o operário que descansava

diante da obra do outro lado da rua, sentado no meio-fio.

- Saiu agora mesmo com uma trouxinha - informou ele.

Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao

longo do muro.

A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o

botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro.

Chamou-o, mas ele apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida, como

disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia a distância.

- Meu filho, cuidado!

O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram

no asfalto. O menino assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o

arrebanhou com o braço como um animalzinho:

- Que susto você me passou, meu filho – e apertava-o contra o peito, comovido.

- Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.

Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:

- Machucando é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.

- Me larga. Eu quero ir embora.

Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo antes o cuidado de fechar

a porta da rua e retirar a chave, como ele fizera com a da despensa.

- Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.

- Fico, mas vou empurrar esta cadeira.

E o barulho começou.

A professora avisou à classe que a leitura deveria ser silenciosa

101 A classe assistiu à peça com o apoio da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador.

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“procurando se deter nas coisas minuciosas”. Segundo o seu caderno de

planejamento, o objetivo do texto era “trabalhar o assunto de gramática”:

“Gramática – modos do verbo. Tempos”.

Após a leitura silenciosa, a professora pediu a um estudante que lesse

o texto em voz alta. Cada estudante leu um trecho do texto. Depois a professora

leu o texto todo. (Havia muito barulho externo)

Ela explicou o texto e pediu que, em grupos, por causa da pouca

quantidade de dicionários, os estudantes fizessem uma lista das palavras

desconhecidas e as procurassem no dicionário, atentando para os seus

significados.

Duração de 1h00 para essa atividade.

INTERVALO DA AULA

Na volta do intervalo, foram corrigidas as palavras que os estudantes

procuraram no dicionário e, também, solicitou-se uma produção textual sobre a

peça teatral “História de uma caixola”101, pois durante toda a semana, segundo a

professora, só deu tempo para conversar sobre a mesma e colocar os conteúdos

em dia.

Na aula seguinte a professora fez a correção, no quadro-de-giz, de

uma atividade de matemática envolvendo problemas de adição e subtração.

Com o texto “fuga”, a professora disse que destacaria algumas frases

para que os estudantes a transformassem, passando a seguinte atividade:

Atividade

01. Transforme as frases, colocando-as no tempo presente:

- O pai colocou o papel na máquina.

- O menino começou a empurrar a cadeira.

- O pai falou sem se voltar.

- Ele já sabia reagir às injustiças paternas.

02. Retire do texto duas frases no tempo presente.

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03. É possível responder a 2ª questão? Por quê?

04. Relembrando os modos dos verbos estudados, escreva:

a) Quais verbos que estejam no modo indicativo.

b) Dois verbos que estejam no modo imperativo.

Após, em média, 40min. A professora, junto com os estudantes, corrigiu

a atividade no quadro de giz e oralmente. Logo em seguida, como tarefa para

casa, fez a seguinte atividade:

01. Todas as frases estão no pretérito, mas existe diferença entre elas:

Observe: Ele defendeu seu filho com muita garra.

Ele defendia seu filho com muita garra.

Ele defendera seu filho com muita garra.

- Você concorda com a afirmação acima?

- Qual a diferença entre uma frase e outra?

02. Retire de jornais frases que apareçam no tempo futuro.

03. Passe a frase para o singular.

Marque os verbos.

Somos o que são todos os pais.

INTERVALO (maratona da escola com todas as salas)

No retorno do intervalo, a professora solicitou a turma que fizesse uma

produção textual sobre o que fariam se fossem o pai da criança do texto “a fuga”.

Informou que o texto era “livre”, mas que deveriam “obedecer às

pontuações e utilizar as letras maiúsculas corretamente”.

A professora colocou no quadro:

Redação:

O que você faria no lugar do pai do menino da crônica “A fuga”?

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A professora pediu aos estudantes que entregassem a redação no

mesmo dia. Ela solicitou que os estudantes se colocassem no lugar do pai desde

o início do texto. Um estudante disse que “amarraria o menino na cadeira”. A

professora interferiu e disse que não deveriam “colocar impossíveis de acontecer”

e o questionou sobre essa atitude. A professora informou aos estudantes que eles

deveriam pensar o que fariam com o menino desde o início da crônica e não

apenas com o final, após o menino ter fugido.

COMENTÁRIOS:

Já faz parte da nossa escrita situar o leitor quanto à dinâmica das aulas

das Professoras A e B e, posteriormente, tecer comentários sobre essas mesmas

aulas. Para isso, em uma primeira instância, tentamos conceituar os gêneros

textuais trabalhados para, em seguida, irmos mostrando a funcionalidade discursiva

dos mesmos, assim como suas formas de inserção no contexto escolar.

O gênero textual em questão é a crônica literária. Sua presença na sala

de aula da Professora B nos causou surpresa e contentamento, pois não é um texto

que, em geral, freqüenta os espaços escolares, ainda mais no Ensino Fundamental

I, onde há predominância de outros gêneros literários, tais como contos e fábulas.

Segundo o Dicionário de Termos Literários de Moisés (2004), a palavra

crônica provém tanto do latim chronica, significando relato de fatos, quanto do grego

Khronikós, palavra derivada de Khrónos que quer dizer tempo. Trata-se, atualmente,

de um gênero híbrido, devido às variações que sofreu ao longo dos séculos. Por

isso, existem várias categorias de crônica (policial, histórica, esportiva etc.), dentre

as quais a literária, só podendo ser assim denominada “[...]quando consegue

superar os limites da transitoriedade própria da notícia, colhendo o universal dentro

do particular”( D’ONOFRIO, 1995, p.123).

Um outro conceito complementar ao de D’Onofrio (1999) e que está

intimamente relacionado com a crônica Fuga, de Fernando Sabino, utilizada pela

Professora B, é o de Soares (1993). Segundo ela:

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Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas. Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo, da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta poeticamente o instante, perenizando-o. (SOARES,1993, p. 64)

Podemos dizer que, antes mesmo de tomarmos como exemplo as

conceituações anteriormente descritas para caracterizar a crônica de Fernando

Sabino, se fizéssemos um apanhado de sua obra e de sua biografia, entenderíamos

toda a funcionalidade discursiva dos seus textos, principalmente das crônicas. Lendo

Fernando Sabino, lemos os dramáticos acontecimentos cotidianos repletos de uma

linguagem poética e irônica; linguagem esta que não dá margem ao esquecimento e

realça a singularidade pluralista discursiva de suas crônicas. Dito isto, não será tão

necessário pontuar que um estudo gramatical desarticulado de seus textos nunca

dará conta de mostrar ao leitor a complexidade e simplicidade de sua escrita. Além

disso, quando nos centramos apenas no estudo seco, vazio, contextualmente

incoerente da gramática102, não conseguimos visualizar os possíveis sentidos que as

palavras, isoladas ou conjuntamente, podem produzir num texto.

Sendo assim, arriscamo-nos a dizer que o estudo dos verbos, a priori

extraídos do texto, assim como da procura no dicionário de palavras desconhecidas

– estratégias estas propostas pela Professora B -, não proporcionaram aos

estudantes um entendimento global da crônica Fuga. Os verbos foram destituídos de

seu valor semântico, desconectados de seu contexto de uso. Assim, não exerceram

a função de temporalidade e causalidade tão necessária à constituição do gênero

em questão, pois podemos dizer que a crônica, embora possua uma temporalidade,

a mesma não se inscreve numa ordem cronológica delimitada e explicitada por

anos, décadas etc. No entanto, essa função existe tanto externamente quanto

internamente no texto ora indicado. Externamente, porque traz à tona questões

102 Quando criticamos o uso indevido da gramática estamos nos remetendo as colocações de Bagno (2003, p. 63) sobre a aquisição da dita norma-padrão como uma gramática que possuí a “língua correta”, ou seja, “[...] que tenta preservar um modelo de língua ideal, inspirado na grande literatura do passado”. Desconsidera, portanto, a pluralidade e a flexibilidade lingüísticas a partir de situações concretas de uso da língua.

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sociais que marcam sua existência num determinado contexto histórico.

Internamente, porque os verbos configuram toda a sua seqüência narrativa.

No texto Fuga, podemos perceber essa temporalidade interna da

narrativa ao estudarmos os verbos dentro do contexto em que estão inseridos: a

frase completa, o parágrafo e o texto. Assim, quando a Professora B destaca, na

primeira questão da atividade, fragmentos de frases do texto que possuem verbos,

solicitando dos estudantes a transformação desses para o tempo presente, tanto o

entendimento semântico do texto quanto da sua temporalidade se perdem. Podemos

verificar essa afirmativa nas seguintes frases da atividade realizada pela Professora

B:

- O pai colocou o papel na máquina.

- O menino começou a empurrar a cadeira.

Ambas as frases, no texto Fuga, aparecem numa única oração, embora

tenham que ser estudadas separadamente na atividade realizada pela referida

professora. Essa separação compromete o entendimento contextualizado do tempo

verbal e de sua possível variabilidade dentro de orações. Por exemplo, a primeira

frase mencionada na atividade não corresponde exatamente ao que está escrito na

crônica em questão. Antes da frase “o pai colocou o papel na máquina” existe, no

início do texto original, o advérbio mal que foi suprimido pela Professora B; o que

modificou o sentido da ação. Assim sendo, sua dependência com a locução verbal

”[...] o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho

infernal”, é desfeita, não podendo ser percebida uma conexão entre as orações. Isto

é, a ação de colocar existe concomitantemente com a ação de começar a empurrar

a cadeira, o que confere tanto uma causalidade quanto uma temporalidade ao texto

que lhes são próprias e que o constitui enquanto narrativa.

Outros tantos exemplos desse tipo, sobre a funcionalidade da gramática

nesse texto, poderiam ser aqui aprofundados, mas isso não constitui nem o foco

dessa pesquisa, nem da nossa formação. Nosso objetivo é mostrar quais gêneros

visitam os bancos escolares; que estratégias de leitura/aproximação são propostas

para cada gênero em questão (o que envolve, em certa medida, o estudo gramatical

de textos). Daí o porquê de abordarmos este assunto em nossas análises, bem

como de enfatizarmos a necessidade de se trabalhar a diversidade lingüística a

partir da diversidade textual. Assim, acrescentaríamos à aula da Professora B,

outros gêneros textuais que trouxessem temáticas e/ou fatos e acontecimentos

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semelhantes ao da crônica Fuga, como por exemplo, notícias jornalísticas, fábulas,

imagens etc.

Além disso, é válido verificar que a Professora B solicitou aos estudantes

uma produção textual, ou melhor, uma produção direcionada (redação). Nesta, os

estudantes deveriam se colocar no lugar do personagem pai da crônica e tomar uma

atitude com o personagem filho. Sabemos, entretanto, que produzir textos no espaço

escolar, e até mesmo fora dele, não é uma tarefa fácil. Muito menos quando essa

produção exige de nós um posicionamento quanto a questões sociais. Por isso

mencionamos a necessidade de se discutir qualquer temática apoiada na

diversidade textual, pois poderá ajudar o estudante/leitor a participar de outros

espaços de interação e, por conseguinte, possibilitar uma maior reflexão em torno da

questão abordada em sala de aula a partir do texto centralizador ou texto primeiro.

Isso significa dizer, segundo Meserani (2002, p. 62), que o registro de mensagens

alheias leva à reprodução: repetição, produção do mesmo, do igual. A constituição

de mensagens escritas implica criação: produção da diferença, do original. E, para

isso, é necessário um diálogo contínuo, não só entre pessoas como também entre

textos variados.

Em resumo:

As referências temáticas e textuais nas atividades de leitura e produção textual podem ser amplas, proporcionando aos alunos acesso a uma gama variada de tipos de textos: informativos, publicitários, literários, jornalísticos, cartas, etc. [...] Além disso, a leitura deve ser trabalhada também em diferentes eventos. A escola deveria proporcionar ao aluno a conscientização de que um texto pode ser analisado em diferentes níveis: por exemplo, quanto à sua estrutura, em termos do plano de desenvolvimento proposto e de sua orientação argumentativa, ou ainda quanto ao tipo de texto e tema veiculado pelo uso específico que se faz da linguagem no texto estudado, dentre outros.(MATENCIO, 1994, p. 100-101)

Além disso, outra forma instigante de ensinar ou tornar mais explícito para

os estudantes a variabilidade narrativa, seria utilizando gêneros textuais, tais como:

o conto, a fábula, a notícia, dentre outros.

QUADRO 2A: DIÁRIO DE CAMPO

Gêneros textuais: anedota e fábula

Data: 04 de Setembro de 2003.

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A professora concluiu o questionário de ciências. Depois fez a

chamada. Neste momento, ela pediu a atenção de quatro alunos. Perguntou o

que eles estavam fazendo, e o grupo disse que era um cartaz com a seguinte

frase: “Fazer judô para ajudar o Brasil”. Falaram que achavam melhor arrecadar

alimentos do que dinheiro para ajudar uma instituição. A professora disse que era

“ótima” a idéia, tratou-os com atenção e carinho e solicitou apenas que, mais

tarde, continuassem a confecção do cartaz.

Depois disse que gostaria de contar uma história. Na verdade, ela tinha

dois textos: um com discurso direto e outro com discurso indireto. Ela disse que

“isso significa que um tem fala e outro não”. Disse que, posteriormente, os

estudantes iriam “treinar” isso em outro texto.

Ela leu o primeiro texto (sem ajuda de texto escrito). Os estudantes

prestaram atenção. Parecia uma anedota, mas os estudantes demonstraram não

gostar tanto, apesar da expectativa no início, pois não pareciam entender, nem

riram. Depois ela leu o segundo texto, que na verdade era a mesma anedota, só

que com discurso indireto. Ela explicou que o primeiro texto estava estruturado

em forma de “diálogo” e o segundo não, pois só existia um “narrador”.

Ela redigiu a seguinte frase no quadro:

- Professora!

(Perguntou à turma o que significavam os sinais. Dois estudantes explicaram

corretamente.).

Coloca outra frase:

- O que é Joãozinho (Perguntou para turma que sinal estava faltando). A turma respondeu: “interrogação”. Por quê? – perguntou a professora.

Estudante: “Porque é uma pergunta”.

E ela fez todo o texto solicitando à turma que dissesse a pontuação do

texto.

A professora falou de maneira informal e descontraída, para que assim

a turma compreendesse o que era pedido e dissesse o sinal adequado.

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Continuação da anedota:

- Eu quero dizer uma coisa muito importante.

- Fala.

- Estou com medo de assustar a senhora.

- Pode falar.

- É o papai.

- O que tem ele?

- Sei não. Ele disse que se eu tirar zero este mês, alguém vai levar

uma surra.

Obs. Durante a escrita da anedota, no quadro de giz, a professora sempre

solicitou que a turma se referisse sobre qual era a fala de cada personagem que

estava sendo escrita no quadro. Perguntou, discretamente, se a turma entendeu o

texto. Apenas dois estudantes disseram que sim. E ela continuou a escrever o

texto no quadro. Foi falando a história e mostrando a diferença entre oralidade e

escrita, e o que poderia ser mais explorado.

Ela perguntou, em tom mais alto, se a classe entendera o texto. A

turma respondeu que sim.

A professora pergunta “quem levaria uma surra?”.

Estudantes: “Joãozinho”.

Professora: “Mas quem ele pensava que levaria a surra?”

Estudantes: “A professora”.

A professora, novamente, ressaltou que o texto tem discurso direto e

explicou o porquê. Falou que a narrativa, por não apresentar diálogo entre os

personagens é constituída de discurso indireto. A professora perguntou, ainda,

quem arriscava a contar esse diálogo de forma narrativa. Nesse momento, um

estudante disse que um colega ao seu lado xingou. A professora, com calma, fala

que ela “não tem nem giz para escrever a palavra” e que isso “é feio”. O

estudante ressaltou que o colega que xingou “parece que está na casa dele”, pois

“coloca os pés na carteira dos outros”. A professora interferiu, pedindo que o

estudante não tivesse mais esse comportamento.

Retornando a discussão sobre o texto em questão, um estudante tenta

narrá-lo em discurso direto. A professora explicou novamente o que é discurso

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direto e passou a vez para outro estudante. Ele fez corretamente a narração do

texto em discurso direto.

Outro estudante leu o texto no discurso indireto, mas utilizou os

recursos: “Ele falou”; “Ela disse”. A professora perguntou à classe se o segundo

estudante fez a transformação do texto igual ao último. A turma ficou dividida. A

professora confirmou que o segundo estudante fez corretamente a transformação.

E a discussão seguiu nessa direção de transformar a anedota em discurso

indireto.

Em seguida, a professora redigiu a anedota no quadro de giz:

Joãozinho falou para a professora que queria dizer uma coisa muito

importante para ela. A professora pediu que ele falasse.

Mas o garoto disse que estava com medo de assustá-la. Mesmo assim,

ela pediu que ele falasse. Joãozinho, então, disse que era o pai. A professora

perguntou o que tinha o pai.

Joãozinho com a maior cara-de-pau, falou que não sabia não. Sabia que

se ele tirasse zero alguém ia levar uma surra.

Um estudante ressaltou que no texto narrativo, na parte “Sabia que se

ele tirasse zero ia levar uma surra” faltava colocar a expressão “este mês”, igual

ao texto primeiro. A professora disse a este estudante que “se quisesse” ele

poderia colocar a expressão no segundo texto.

Ela informa que “o texto foi escrito por Ziraldo e é anedotinhas”.

Perguntou à turma se esta sabia o que era uma anedota. Um estudante abriu o

dicionário e disse que “provoca riso”.

A professora reforçou dizendo que “anedotinha é uma piadinha, uma

coisa engraçada” e solicitou que três estudantes fizessem uma encenação das

duas anedotas. Avisou que para o primeiro texto seriam necessários dois

estudantes, pois havia diálogo, enquanto que no segundo bastaria um estudante.

Nesse momento, a professora poderia ter abordado aspectos sobre a

oralidade e a escrita, enfatizando as características próprias de cada uma delas.

Depois dessa atividade, a professora distribuiu a seguinte fábula e

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atividade:

A cigarra e a formiga Tendo a cigarra, em cantigas, Folgado todo o verão Achou-se em penúria extrema Na tormentosa estação Não lhe restando migalha Que trincasse a tagarela Foi valer-se da formiga Que morava perto dela - Amiga – diz a cigarra Prometo, a fé de animal, Pagar-vos, antes de agosto, Os juros e o principal. A formiga nunca empresta Nunca dá; por isso, junta - No verão, em que lidavas? - À pedinte, ela pergunta. Responde a outra: - Eu cantava Noite e dia, a toda hora. - Oh, Bravo – Torna a formiga - Cantavas? Pois dança agora Fábulas de La Fontaine

1 - Vamos escrever a fábula da cigarra e da formiga na forma narrativa.

Siga o roteiro:

Primeiro parágrafo: escreva sobre a formiga.

Segundo parágrafo: escreva sobre a cigarra.

Terceiro parágrafo: conte como foi o encontro das duas no inverno –

discurso indireto

Quarto parágrafo: escreva a resposta da formiga na forma do discurso

direto.

A fábula é introduzida nesta aula para que os estudantes façam a

transformação do discurso.

A professora pediu, inicialmente, uma leitura silenciosa, “só com os

olhinhos, sem mexer os lábios”.

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Ela ficou ausente da sala de aula por cerca de cinco minutos e a classe

não realizou a leitura silenciosa do texto. Após uns dez minutos a professora leu

a fábula para a classe e avisou que a fábula estava escrita “de forma diferente”.

Ressaltou que poderia contá-la de outra forma. Além disso, falou que a estrutura

do texto “é igual ao de um poema e que tem diálogo”, mas que ela poderia

“transformá-lo num texto narrativo, e para isso eles deveriam seguir o roteiro” que

estava depois da fábula. A professora leu o roteiro para os estudantes.

A classe estava confusa com o roteiro, principalmente com a questão

referente à criação de um quarto parágrafo para a fábula. A professora explicou,

novamente, só que agora fazendo referência à estrutura da anedota.

A professora deixou essa atividade para ser feita em casa, já que o

tempo, naquele momento, era insuficiente, e a classe precisou ensaiar para a

comemoração do dia 7 de Setembro e o aniversário da diretora. Para a diretora,

os estudantes cantariam uma música. Quanto ao 7 de Setembro, a professora

não conseguiu fazer o ensaio.

COMENTÁRIOS:

Embora não seja aqui nossa intenção falar de gêneros textuais orais, não

podemos deixar escapar essa missão, visto que teremos que comentar sobre o uso

do gênero anedota pela Professora B.

Como o habitual, cabe-nos a função de pesquisar, analisar e aqui

escrever as conceituações dos textos comentados a partir da prática pedagógica da

referida professora, antes de adentrarmos por sua análise. Sendo assim, nos

respaldamos em Possenti (1998, p.26.) para caracterizar o que seja uma anedota.

Segundo este autor, as anedotas, ou piadas, em geral, tratam de temas sociais

controversos, “operam fortemente com estereótipos” e são “[...] quase sempre

veículo(s) de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial, que não se manifestaria,

talvez, através de outras formas de coletas de dados [...]”

O efeito de sentido das piadas depende do leitor, mais especificamente

do entendimento de que existe uma leitura que é obrigatória não só para a

compreensão temática do que foi lido como também para causar risos. Entretanto,

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estes efeitos de sentido muitas vezes só poderão ser possíveis se o leitor tiver

conhecimento de fatos, acontecimentos, preconceitos, da relação que as piadas

mantêm com outros textos (intertextualidade) e discursos (heterogeneidade

discursiva) etc, pois o desconhecimento do conteúdo e/ou forma assumida pelas

piadas podem comprometer o seu entendimento.

Outro aspecto importante a ser ressaltado no estudo de piadas é a

oralidade. O que a caracteriza, principalmente quando se trata de uma anedota, é a

espontaneidade. Por isso, o fato de a Professora B iniciar o referido gênero

situando-o quanto ao seu posicionamento estrutural, bem como enquanto discurso

direto e indireto, não valida nem o conceito de anedota nem a função precípua da

mesma – causar risos. É sabido, entretanto, que a percepção e o estudo do leitor

sobre ambos os discursos são essenciais para se entender as convergências e

divergências entre oralidade e escrita. Mesmo assim, consideramos que o texto,

enquanto espaço de interlocução, não deve ser, a priori, sacrificado em função do

conhecimento, pelo leitor, de sua estrutura. Pois, a nosso ver, esta postura

pedagógica com relação ao texto, tornando-o um objeto escolarizado e, por

conseguinte, desarticulado com a vida, não condiz com uma formação autônoma do

educando.

Para um melhor entendimento do que estamos dizendo, convidamos

Matencio (1994) para exemplificar o que seja oralidade e escrita:

[...] A fala exibe alta redundância, pois possui pouco tempo para seu planejamento e é, geralmente, espontânea, sendo (re)estruturada no momento de sua emissão. Já a escrita possui baixa redundância, chegando ao leitor como objeto acabado. (MATENCIO, 1994, p. 27)

Percebe-se que Matencio (1994) realiza uma distinção entre oralidade e

escrita. No entanto, podemos complementar sua posição falando da convergência

entre ambas. Para essa autora, o texto escrito chega “ao leitor como objeto

acabado”; mas se considerarmos a perspectiva de Orlandi (2004), não seria

importuno e incoerente dizer que é justamente nessa afirmação de Matencio, que a

oralidade tem relação com a escrita. Ou seja, enquanto objeto empírico o texto é

produto acabado, mas se o vivenciarmos na perspectiva do discurso ele torna-se

incompleto e passa a exibir, também, redundâncias. É este jogo de (in)completude

do texto e do discurso que reforçam, ainda mais, nosso desejo de ver no espaço

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escolar a convivência entre textos diversos, pois a diversidade não só pode exibir as

singularidades dos discursos como também realçar as inúmeras formas do dizer.

Considerando a aula da Professora B, ressaltamos nossa surpresa e

satisfação em ver a variedade textual com que a mesma trabalha. Por outro lado,

questionamos as suas estratégias de leitura/aproximação, assim como o uso

indefinido, ou pouco intencional, dos textos no que diz respeito ao seu

intercruzamento. Isto porque, um gênero textual não é freqüentemente confrontado

com outros gêneros, na perspectiva de que esse diálogo pudesse gerar maiores

debates sobre suas temáticas assim como entre seus jogos e/ou teias lingüísticas.

Notamos, entretanto, que apesar de a professora não vivenciar o texto a partir de

nossa perspectiva teórica e pragmática, já há indícios significativos de que o estudo

da gramática dita padrão, a partir de fragmentos textuais e pela ótica do que é certo

e do que é errado, aos poucos vem sendo superado. O fato de a Professora B

utilizar o texto empiricamente completo para se discutir discurso direto e indireto é

um exemplo dessa nossa afirmativa. Essa forma de lidar com gramática e texto

também é explicitada na entrevista semi-estruturada realizada com a referida

professora:

Entrevistadora: Como você vê o papel do texto colado com a gramática? Com o ensino da gramática? Como é que você visualiza isso? Professora B: Eu acho fundamental, porque quando ele se distancia a gente vê que não tem o mesmo efeito. Entrevistadora: Você acha que texto e gramática devem estar colados? Professora B: Devem estar juntos. Entrevistadora: Dê um exemplo para que eu possa entender melhor? Professora B: Por exemplo, eu trabalho um texto, eu posso naquele texto desmembrar tudo que eu quero de gramática, sem precisar conceituar fora aí dentro eu posso pegar os elementos que eu quero e trabalhar e fazer uma interdisciplinaridade. Entrevistadora: Mas você acha que sem conceituar? Professora B: Sem conceituar. Bom, vai chegar o momento em que você vai ter que fazer isso, né? Você vai ter que fazer isso, mas não é aquela coisa de você ir pra decoreba, ele vai estar entendendo o que é que ele tá...os elementos que ele tá usando...as figuras que ele tá usando, gramaticais. (Entrevista realizada em 19 de dezembro de 2003.).

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Desse modo, o que pensamos ser necessário é que os professores sejam

mais leitores. Isto poderia ser conseguido proporcionando-lhes, no seu espaço de

atuação profissional, momentos de leitura compartilhada, onde pudessem trabalhar

com textos diversos observando e analisando suas funcionalidades discursivas. Tal

necessidade aqui expressa seria um passo importante de compreensão e reflexão

contínua sobre o que vem se discutindo atualmente sobre texto e gramática.

Por exemplo, quando a Professora B diz que o discurso direto está

estruturado em forma de “diálogo” enquanto no indireto só existe “um narrador”, ou

seja, não há diálogo, percebe-se um desconhecimento ou a não reflexão de que

mesmo os textos que possuem apenas o narrador não estão destituídos de diálogo.

O que não existe é uma tipologia conversacional. Além disso, segundo Cunha (1985,

p. 620), no discurso indireto “o diálogo é incorporado à narração mediante uma forte

subordinação semântico-sintática estabelecida por meio de nexos e

correspondências verbais entre a frase reproduzida e a frase introdutora”.

Entretanto, o fato de a professora destacar a importância dos sinais de pontuação na

constituição do discurso indireto escrito revela um entendimento de que estes

elementos são essenciais do ponto de vista expressivo e compreensível do texto.

Além, é claro, destes aspectos estarem explicitamente presentes na oralidade,

dando maior configuração ao gênero anedota, já que a entonação da fala faz parte

da função discursiva deste gênero.

Retomando o que dissemos anteriormente, um aspecto diferenciado das

piadas é justamente o fato de possuir, de acordo com Possenti (1998), uma leitura

obrigatória. Isso implica dizer que a piada, quando falada, ou melhor, exibida com

uma entonação que lhe é pertinente, com uma ênfase, muitas vezes, fônica que lhe

facilita o entendimento, pode ser mais eficiente do que a escrita. Além disso, a

existência de uma leitura obrigatória, embora não feche a possibilidade de múltiplas

leituras, é o que torna singular esse gênero textual. Tal abordagem confere à sua

escrita, mesmo na perspectiva do discurso, um direcionamento compreensivo único

para que assim haja interação entre texto e leitor. Isto não significa dizer que não

existam interferências do leitor durante a leitura de piadas, sejam elas veiculadas

através da escrita ou da oralidade. Um episódio interessante pode ser visto na

própria aula da Professora B: ao transformar a piada em discurso indireto ela

acrescentou ao texto a expressão “cara-de-pau”, dando sinais de que não é uma

leitora passiva, emitindo, portanto, sua opinião sobre o comportamento do

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personagem Joãozinho. Vale ressaltar que sua interferência não afetou o sentido da

piada, mas, a nosso ver, seria propício utilizar este exemplo, não só para explicitar

aos estudantes as diferenças entre fala e escrita, como para demonstrar que a

reprodução de um texto nunca é um ato passivo, sendo que as impressões de quem

lê sempre estarão contidas nela.

Outro exemplo disso foi a omissão da expressão “este mês” ressaltada

por um dos estudantes e que poderia suscitar debates em torno da forma como uma

tipologia conversacional pode transformar-se numa tipologia narrativa. Quando o

estudante ressalta que a expressão “este mês” consta na anedota em discurso

direto, mas não está presente na anedota escrita em discurso indireto, a professora

apenas diz que ele pode colocar a expressão “se quiser”, mas não explora as

diferenças entre oralidade e escrita para respaldar melhor sua resposta. Isto também

poderia ser feito com a expressão “cara-de-pau” acrescentada à anedota e que é

reveladora da afirmação da Análise de discurso, segundo Orlandi (2004), de que um

sujeito não produz só um discurso e que este último não é igual a um texto. Revela,

ainda, como já dissemos anteriormente, certa apreciação da Professora B sobre o

personagem Joãozinho, interferindo assim na reprodução da anedota original.

Vemos, ainda, que a Professora B pergunta à classe o significado de

anedota. Após adquirir a resposta de um dos estudantes de que se tratava de um

texto que, segundo ele, “provoca riso”, ela ainda assim não se referiu ao efeito de

sentido deste gênero; sentido não adquirido quando a mesma contou a anedota aos

estudantes. Ou seja, o significado dado à anedota pelo estudante e reforçado pela

professora como sendo “uma piadinha, uma coisa engraçada”, não correspondeu a

funcionalidade do gênero textual em questão. A piada que esta professora contou

para a classe não causou o efeito desejado, negando assim seu significado

funcional. No entanto, ela poderia, ainda, aproveitar essa reação dos estudantes

frente à anedota para buscar deles os fatores que possibilitaram um efeito contrário

ao esperado. Como a professora utilizou a encenação do texto como estratégia de

leitura/aproximação, este poderia se tornar um momento revelador ou instaurador

desses fatores, já que a classe estaria não só no papel de espectadora como de

avaliadora desse gênero textual.

As atividades da professora ou as estratégias de leitura/aproximação

propostas para a anedota não estão distantes de uma forma coerente de abordagem

deste texto. Apenas enfatizamos o modo como a referida educadora conduziu estas

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atividades: centrando-se mais na função gramatical do que no próprio texto, não

explorando aspectos essenciais de constituição de uma anedota. Isto é, não

vivenciando a anedota enquanto gênero popular oral, que possui um estilo

despojado, revelador de crenças e valores sociais. Este exercício poderia ser feito

no texto a partir da localização do seu elemento humorístico, identificando, assim, se

a piada utiliza ou não uma construção lingüística sutil.

Pontuamos, ainda, que é pertinente estudar estilo direto e indireto, bem

como utilizar a encenação e a narrativa como formas de demonstrar diferenças entre

as duas tipologias textuais que compuseram as duas apresentações de uma única

anedota. Entretanto, a atividade proposta, a nosso ver, não foi devidamente

explorada, nem explicitou para os estudantes qual o objetivo de fazê-las. Por outro

lado, louvamos a atitude da Professora B de introduzir outro gênero textual - a fábula

-, na aula em questão, com o intuito de não aplicar o estilo direto e indireto em um

único texto, podendo assim gerar um estudo condicionado. Essa estratégia

possibilitou aos estudantes ver e vivenciar mais coerentemente os dois estilos

discursivos. Nessa perspectiva, sugerimos que a temática da anedota também

possa ser explorada através de outros gêneros textuais, ressaltando mais as suas

peculiaridades; isto é, sua forma de abordagem de situações, muitas vezes, irônicas

e perversivas, bem como comportamentos socialmente não aceitos etc.

Centramo-nos agora na fábula apresentada pela Professora B, intitulada

A cigarra e a formiga. É importante perceber que embora vislumbre a exploração

gramatical do texto e omita uma exploração textual, a Professora B reconhece e

socializa o fato de a fábula estar materializada em poema, possuindo uma

estruturação em versos.103 Assim, conceitua o texto como sendo uma fábula, já que

o seu conteúdo nos remete para sua forma habitual de apresentação, mas

sublinhando a diferença de estruturação. Isto significa que esta professora já tem

uma idéia de que o gênero em questão possui uma intertextualidade inter-

gêneros104, aspecto importante para a compreensão do surgimento de novos

discursos e hibridizações textuais. Tal façanha da língua e dos homens poderia ser

melhor explorada pela Professora B a partir do estudo de textos publicitários,

103 Válido sublinhar que segundo O Dicionário de Termos Literários de MOISÉS (2004), as fábulas eram escritas em verso até o século XVII. 104

Vide Marcuschi In: DIONISIO; MACHADO; BEZERRA, 2002.

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possibilitando aos estudantes vivenciar as possibilidades de persuasão e subversão

que hibridizações textuais podem gerar.

Quanto à passagem da fábula para forma narrativa, podemos dizer que

essa atividade aplicada reforça a questão de mostrar aos estudantes a existência da

intertextualidade intergêneros. No entanto, a instrução dada para a construção da

narrativa mereceria maiores explicações ou, até mesmo, intervenções do professor,

visto que no texto empírico o personagem cigarra aparece primeiro do que a

formiga. Já no roteiro, esta ordem se inverte, demandando dos estudantes a criação

de uma cena que não existe. Não seria, então, o caso de discutir, coletivamente, que

questões poderiam ser construídas para colocar a formiga como personagem

introdutória?

QUADRO 3A: DIÁRIO DE CAMPO

Gêneros textuais: canção e relato histórico

Data: 11e 12 de Setembro de 2003.

A professora fez a chamada. Em seguida, perguntou quem fez a

atividade de casa. Os estudantes que fizeram vão até a carteira dela para a

correção.

O dever de casa foi procurar o significado da palavra terra, com a letra inicial

escrita em minúscula e maiúscula e depois formar frases com ambas as formas

de grafia.

A professora falou que não iria corrigir a tarefa dos que não fizeram,

pois o objetivo era que eles fizessem a tarefa em casa. Mas alertou para a

diferença entre as palavras e da redundância, dando outros exemplos, como

frases mal formuladas pelos estudantes.

Em seguida, ela leu para os estudantes a seguinte biografia de

Guilherme Arantes: “Guilherme Arantes nasceu em 1953. Aos 5 anos já tocava

cavaquinho e aos 6 anos aprendeu a tocar piano. Desde 1975 trocou a carreira de

arquiteto pela música”.

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Inicia a leitura da música Planeta Água de Guilherme Arantes e os

estudantes dão continuidade:

Água que nasce da fonte serena do mundo

E que abre um profundo grotão

Água que faz inocente riacho e deságua

Na corrente do ribeirão

Águas escuras dos rios

Que levam a fertilidade ao sertão

Águas que banham aldeias

E matam a sede da população

Águas que caem das pedras

No véu das cascatas ronco de trovão

E depois dormem tranqüilos

No leito dos lagos, no leito dos lagos

Água dos igarapés onde Iara mãe d´água

É misteriosa canção

Água que o Sol evapora

Pro céu vai embora

Virar nuvens de algodão

Gotas de água da chuva

Alegre arco-íris sobre a plantação

Gotas de água da chuva

Alegre arco-íris sobre a plantação

Gotas de água da chuva

Tão tristes, são lágrimas na inundação

Águas que movem moinhos

São as mesmas águas

Que encharcam o chão

E sempre voltam humildes

Pro fundo da Terra

Terra, planeta água.

A professora considerou a canção “Planeta Água”, um “texto, poema e

música”.

Ela perguntou: “que planeta a música se refere”. Os estudantes

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demoram a dizer “Terra”.

Professora: “Qual a palavra mais enfatizada aí?”.

Estudante: “Água”

A professora disse que ontem os estudantes ilustraram alguns versos

da música (explicando para os estudantes que não vieram).

Ela pediu que os estudantes copiassem no caderno as palavras que

eles desconheciam na canção.

Obs: Havia na parede uma notícia jornalística sobre a manifestação estudantil

contra o aumento da tarifa do ônibus em Salvador.

INTERVALO DA AULA

Após o intervalo, a professora sistematizou a atividade iniciada.

1. Reescreva as frases, trocando as palavras sublinhadas por outra

com o mesmo significado.

- Água que nasce da fonte serena do mundo.

- Abre um profundo grotão.

- Águas que levam fertilidade ao sertão.

- As águas são lágrimas tristes na inundação.

2. Observe o trecho de um texto:

Podemos utilizar toda a água do Planeta?

Em nosso planeta existe muita água, mas a maior parte dela 97% é salgada, está

nos oceanos. Mesmo a parcela menor, correspondente à água doce não está toda

disponível para o uso humano.

- O que há em comum entre o primeiro e o segundo texto?

A professora fez a correção oralmente. Perguntou: “Se 97% da água é

salgada e a doce?” Dois estudantes responderam: “3%”. Ela buscou a resposta

de outros, também.

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Ela complementou a atividade a ser feita em casa.

Para casa

1. Fazer frases para a campanha de preservação do meio ambiente

(água).

Depois, a professora fez a atividade matemática em classe. Ela pediu

que os estudantes pegassem a tabela de preços, feita na aula anterior, sobre

valores de carro. Perguntou qual era a prestação do carro mais barata, qual o era

o preço à vista, qual era o valor das parcelas e como ficava o preço a prazo.

No dia seguinte, a pesquisadora trouxe o CD de Guilherme Arantes. E

a professora colocou a canção “Planeta Água” e pediu aos estudantes que:

1. Fechassem os olhos e escutassem;

2. Acompanhassem a canção pelo texto escrito;

3. Cantassem.

Os estudantes gostaram muito da canção. Um estudante não se

conteve e cantou alto. Muitos não fecharam os olhos, o que fez a professora

lamentar muito, pois poderiam ter “viajado”, segundo ela, “como eles já haviam

feitos antes.”

Discussão realizada no dia seguinte:

Professora: “Que lições nós aprendemos?”

Estudante: “Preservar o meio ambiente”.

Professora: “O que é falado sobre as utilidades da água?”.

Estudante: “Mata a sede da população”.

Estudante: “Banha aldeias”.

Professora: ”Como é que a água banha as aldeias?”.

Estudante: “A água passa pelo rio”.

Professora: “O rio banha as aldeias”.

Estudante: “... leva fertilidade ao sertão”.

Obs. A professora foi colocando as frases ditas pelos estudantes no

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quadro.

Estudante: “Move moinhos”.

Estudante: “Encharca o chão”.

Estudante: “Água que o sol evapora”.

Professora: “Vamos guardar essa parte pra outra coisa”. Relembra que

quer saber da utilidade da água.

Um estudante falou da inundação. Ela perguntou “é bom ou ruim?”.

Professora: “A água traz algum prejuízo?”.

Estudante: “Vira lama”.

Estudante: “Invade as casas”.

Um estudante falou do benefício da água. A professora ressaltou que

agora era a vez dos prejuízos.

Professora: “Lá no interior..., como é que essa inundação acontece? O

que é que é prejudicado com essa inundação?”

Estudante: “As plantações”.

A mesma estudante disse que “se pegar àquela planta e encher de

água ela vai crescer”.

A professora foi chamada pela diretora. Enquanto isso, a turma

conversou e brincou. Passado cerca de 5 minutos a professora retornou e

chamou a atenção da classe pelas brincadeiras e conversas. Ela retomou a

discussão:

Professora: “O que mais aprendemos? Que elas nascem nos leitos...”.

Estudante: “dos lagos”.

Professora: “Aprendemos lugar de origem”.

Ela leu uma parte da canção: “Que elas sempre voltam pro fundo da

terra”.

A professora falou tanto sobre o ciclo da água apresentado na música,

quanto sobre a quantidade de água salgada e doce citada no trecho na questão 2.

Ela ressaltou que “a água útil para o ser humano é menor que 3% do total de

água do planeta”. A síntese da discussão foi posta no quadro e ela pediu para que

os estudantes a escrevesse nos seus respectivos cadernos.

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COMENTÁRIOS:

Novamente estamos diante do gênero canção, visto que este, também, foi

utilizado nas aulas da Professora A.

Apesar de não ser nosso objetivo estabelecer um estudo comparativo

entre ambas as professoras, não podemos deixar de sublinhar que a conceituação

que demos ao gênero canção pode aqui ser reutilizada para comentar as aulas da

Professora B, visto que nossa opinião sobre este texto, até o momento, ainda

prevalece. Além disso, o procedimento de diferenciação e aproximação entre canção

e poema realizado na análise da Professora A é procedente para a Professora B, já

que esta também considera que canção é poema. Dessa forma, nosso objetivo aqui

será o de apenas tecer comentários sobre as estratégias de leitura/aproximação

propostas para a canção “Planeta Água”.

Consideramos pertinente a leitura biográfica do autor da canção

trabalhada pela Professora B, mas destacamos que a estratégia inicial de

leitura/aproximação: solicitar que os estudantes procurem no dicionário o significado

das palavras Terra e terra e que formassem frases, a nosso ver, não facilitou

entendimento das mesmas, já que para a classe, ambas as palavras estavam

destituídas de um contexto anterior que pudesse lhe dar pistas sobre os seus

significados.

Quanto à atividade proposta pela Professora B, que consistia em

substituir as palavras destacadas das frases extraídas da canção por seus

sinônimos, não podemos julgar essa estratégia como absurda, mas seria pertinente

que os estudantes também tivessem a oportunidade de ver os significados dessas

palavras a partir do contexto em que elas estavam inseridas. Por outro lado, o fato

de se ter utilizado um texto didático-informativo para dar maior suporte à discussão

sobre a temática água, revelou uma preocupação em garantir que os estudantes

entendessem o ciclo dessa, com seus benefícios e prejuízos decorrentes também da

ação humana.

O texto didático-informativo trouxe, ainda, uma linguagem diferenciada,

demonstrando estatisticamente a necessidade de preservar a água aproveitável

para o consumo humano. No entanto, para dar maior ênfase tanto à temática em

questão quanto às múltiplas leituras que o uso da diversidade textual proporciona no

espaço escolar, a Professora B poderia utilizar a tabela estatística não para trabalhar

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a variação de preços entre carros, mas sim para demonstrar, por exemplo, valores

estabelecidos para água, lugares onde a água encanada ainda não existe,

quantidade de água aproveitável para o consumo humano etc, como procedeu ao

utilizar o rap do compositor e cantor Gabriel - O Pensador105.

No decorrer da atividade, soubemos que o desejo da Professora B era

que os estudantes pudessem ouvir a canção, mas isso não era possível pela

dificuldade em adquiri-la gravada, o que de certa forma influenciou nas estratégias

de leitura/aproximação que ela propunha para esse gênero. Então, conseguimos o

CD para a professora, o que nos faz afirmar que a melodia é essencial para que

exista um envolvimento com o gênero textual canção, já que a forma de apreciação

é diferenciada, havendo uma ênfase sensorial-estética que provoca diversificadas

sensações e remete o leitor a outros tantos sentidos. Este aspecto poderia ter sido

comentado pela Professora B em detrimento aos seus comentários centralizadores

sobre a importância da água, pois pensamos ser essencial unir tanto o pólo

melódico quanto temático da canção, com o intuito de colher dos estudantes suas

visões acerca da preservação do meio ambiente a partir de um estímulo mais lúdico,

se assim podemos considerar. A dissociação entre conteúdo e melodia, a nosso ver,

destituiu a canção de seu valor estético, já que o conteúdo foi extraído do texto sem

uma preocupação maior com a forma. Isto é, com o gênero que materializou o

discurso sobre o ciclo da água e induziu seus leitores a uma reflexão sobre as

maneiras de preservá-la.

Quanto ao gênero relato histórico, também utilizado nessa mesma aula,

identificamos que a estratégia de leitura/aproximação mais usual é a leitura

silenciosa e/ou em voz alta, assim como questionário. Ele é comumente visto no

espaço escolar como um gênero textual necessário para transmissão de conteúdos,

mas por outro lado, é um gênero duro e difícil de trabalhar numa perspectiva mais

interativa, dialógica e lúdica. Ele traz, em si, um discurso que deve ser valorizado,

por tratar de partes da história que precisam ser mentalmente veladas e

obrigatoriamente lembradas; mas é invalidado enquanto estudo de um discurso 105

Vide descrição desta aula em anexo J. Vale ressaltar que esta não foi comentada no corpo textual da dissertação por já termos realizado os comentários que consideramos pertinentes ao gênero canção na sala de aula, embora a forma de utilização da canção Planeta Água e do Rap tenha sido diferenciada. Acrescentamos, apenas, a necessidade de o estudante saber mais sobre a origem do rap para entender o seu caráter altamente reivindicativo e acusativo. Um aspecto, aliás, essencial na constituição desse gênero textual. Além disso, a sonorização também deve ser considerada como relevante ao se estudar canções; aspecto já comentado na utilização da canção intitulada Planeta Água.

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materializado num texto, com sentido estético, ideológico e persuasivo. É, portanto,

destituído de valor histórico no espaço escolar, embora carregue em si,

ironicamente, acontecimentos e fatos históricos. Esta forma de abordar o texto

didático-informativo parece estar atrelado ao fato de a Professora B não gostar muito

deste gênero textual, preferindo os literários:

Entrevistadora: Quais são os textos que você considera assim, bons para se trabalhar em sala de aula? Professora B: Poéticos. As músicas em específicos, são os poemas musicados, eu acho que são fantásticos. Entrevistadora: Por quê? Professora B: Não sei, eu acho que tem um significado maior. Não sei se é porque eu gosto de poema, e às vezes a gente induz um pouco, né? A gente puxa mais sempre para aquilo que gosta. Talvez até não atinja muito, mas eu gosto desse tipo de texto. (Entrevista realizada em 19 de dezembro de 2003.)

Retornando aos comentários sobre o uso do gênero canção na sala de

aula, pensamos ser procedente comentar outra aula da Professora B envolvendo

esse texto. Assim, para não perder o fio da meada e respeitar a organização da

escrita que escolhemos para esse trabalho, decidimos colocar a descrição do diário

de campo dessa aula. Esta organização permite-nos não repetir o conceito de

canção, apenas acrescentar algumas diferenças referentes às estratégias de

leitura/aproximação propostas pela Professora B:

QUADRO 3B: DIÁRIO DE CAMPO Gênero textual: canção Data: 28 de Outubro de 2003.

A professora fez a chamada, depois solicitou a quem não apresentou o

trabalho sobre o Rio de Janeiro ir à frente da sala. Muitos estudantes não fizeram

a atividade.

Um estudante leu os versos sobre o Rio de Janeiro, fez uma paráfrase.

A professora disse que o trabalho foi passado há nove dias, isto porque somente

um estudante apresentou. Diz, ainda, que passará para outro dever sobre

linguagem coloquial.

A professora destacou para os estudantes que existem expressões que

nós falamos, mas que não atendem às regras gramaticais, ressaltando que não

estão erradas. Solicita a uma estudante que leia o que estava escrito no dever

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sobre linguagem coloquial:

“Tô nem aí, tô nem aí, pode ficar com seus problemas que eu não tô

nem aí.

Tô nem aí, tô nem aí, pode me contar os seus problemas que eu não

vou ouvir”. (trecho de uma canção)

A professora reclamou porque muitos estudantes não tinham feito esse

dever. Explicou, novamente, o que eles deveriam trazer sobre linguagem

coloquial. Falou da música que ela pediu para ser colocada na linguagem

convencional. A professora “corrigiu” a música oralmente, com a ajuda dos

estudantes, e cada um foi até o quadro escrever a frase que foi “corrigida”.

Música:

Correção: “Nós não sabemos escolher Presidente

Nós não sabemos tomar conta de gente

Nós não sabemos nem escovar os dentes

Tem gringo pensando que nós somos indigente.

Nós somos inúteis.

Nós fazemos carro e não sabemos guiar

Nós fazemos trilho e não tem trem para passar

Nós fazemos filho e não conseguimos criar

Nós pedimos grana e não conseguimos pagar

Nós fazemos música e não conseguimos aprovar

Toda a escrita da música, no quadro de giz, foi corrigida tanto pela

professora como pelos próprios estudantes.

Na frase ”Nós pedimos grana e não conseguimos pagar”, a professora

perguntou sobre o que fala essa frase. Um estudante falou que é sobre “dinheiro

de banco”. A professora complementou que “é de banco estrangeiro”. Ao final da

“correção” a professora afirmou: “A gente começou a estudar...”.Ela interrompeu a

frase e refletiu com os estudantes. Depois deu mais três exemplos:

1. ”A gente começou a estudar...”.

2. “Nós começamos a estudar”.

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3. “A gente começamos a estudar”.

Ela disse que as três frases estavam corretas e explicou a sua

utilização de acordo com a gramática. Falou que a “correção” é utilizada em

alguns lugares como: “ônibus”. Disse da aceitação da música pelo contexto,

ressaltando que “em um emprego ou teste nós não podemos usar esta

linguagem”.

A professora pediu aos estudantes que formulassem uma frase em que

o pronome e o verbo estivessem no plural.

A professora iniciou com “Nós...”, já que os estudantes ficaram calados.

Os estudantes então complementaram:

“Nós vimos um óculos”.

“Nós gostamos de brincar”.

“Eles caíram numa armadilha”.

Outros exemplos foram dados, mas a pesquisadora não conseguiu anotá-los.

A professora pediu que os estudantes colocassem um nome próprio

nas frases.

Estudante: “Aline”

Outro estudante complementa:

“Aline é bonita”.

A professora pediu que estes escrevessem o nome da professora da

outra quarta série na frase.

Estudantes: “Aline e pró [...] são bonitas”.

A professora pediu que eles mudassem o verbo.

Um estudante sugeriu: “fizeram”.

A professora avisou que não quer mais usar nome nem o verbo ser.

Estudante: “Aquele carro faz a pessoa perder o controle”.

A professora solicitou o plural da frase. Uma estudante repetiu a frase

colocando a letra s ao final da palavra controle. A professora falou para ela que a

concordância deve ser entre pronome e verbo.

Em seguida, a professora solicitou à turma que escrevesse uma

história. Avisou que não era para recontar o que viram na sala, mas para “inventar

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uma personagem e dizer o que quiser”. Alertou que a história deveria ter começo,

meio e fim. Concluiu dizendo que talvez a entrega dessa produção não fosse

hoje, pois eles teriam que “revisar”, “passar a limpo” o texto.

Depois descreveu a seguinte orientação para a produção textual:

1. Comece com “Era uma vez...”.

2. Escolha personagens que possuem poderes sobrenaturais:

príncipes, bruxas, fadas e outros e decida quem será o herói ou Vilão da história.

3. Escolha alguém em situação de perigo para ser ajudado.

4. Termine com um final feliz: “E viveram felizes para sempre”.

A professora sublinhou as palavras herói e vilão, presentes na segunda

orientação, e avisou aos estudantes que poderiam colocar mais de um desses

personagens no texto. Pediu, ainda, que relembrassem o significado de ambos.

COMENTÁRIOS:

Analisando as estratégias de leitura/aproximação propostas para a

canção descrita no diário de campo, Quadro 3B, vemos que a discussão em torno

da (in)existência de uma língua correta se faz pertinente, já que este aspecto é

latente no texto. Entretanto, apenas constatar isso e valer-se dessa estrutura,

considerada um desvio da norma-padrão gramatical, para questionar a

complexidade da nossa língua, não são suficientes para que o leitor venha a

compreender os aspectos sociais e ideológicos existentes na tessitura da linguagem

trazida pela referida canção. Toda a composição lexical do gênero textual em

questão está condizente com a sua intenção temática: julgar o brasileiro de

analfabeto funcional e de desprovido de direitos.

Além disso, a Professora B solicitou dos estudantes a formulação de

frases “corretas”, ou seja, frases em que o pronome e o verbo estivessem no plural.

Esta estratégia, além de descaracterizar o estudo temático do gênero, por ter

predominado como mais importante na aula, não favorece o entendimento do

estudante/leitor sobre os diversos contextos em que a linguagem coloquial é

aplicada. Necessário seria que ela buscasse outros gêneros textuais que pudessem,

mais explicitamente, dar conta de demonstrar o porquê do uso dessa linguagem.

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Seria o caso de confrontar textos e contextos diversos e adversos a partir de

repentes, gírias, ditos populares, ou até mesmo solicitar dos estudantes o registro e

análise de conversas cotidianas, como por exemplo, textos extraídos de bate-papos

na internet (caso os estudantes tenham acesso), de diálogos cotidianos dentro e fora

da sala de aula etc.

QUADRO 4A: DIÁRIO DE CAMPO Gênero textual: conto Data: 16 de Outubro de 2003.

A Professora B iniciou a aula fazendo a chamada. Corrigiu, oralmente,

o dever de história com a participação efetiva dos estudantes.

Professora: “Nós estudamos Salvador, Rio de Janeiro e Brasília. São

estas cidades que nós vamos estudar a história, a importância e fazer um paralelo

entre o que elas foram ontem e são hoje”.

A Professora disse que os estudantes iriam pesquisar sobre a cidade

do Rio de Janeiro, já que trabalharam sobre a cidade de Salvador. A atividade

seria em equipe e eles a apresentariam como quisessem. Ressaltou, ainda, que

todos deveriam ter os textos referentes à cidade de Salvador106, que foram

trabalhados na classe, pois seriam conteúdos de prova. Depois distribuiu o

Caderno de contos 107 e solicitou à turma que fizesse uma leitura em silêncio. O

texto era Rapunzel:

Era uma vez um casal que vinha desejando um filho inutilmente. Os

anos iam passando sem que seu sonho se realizasse. Afinal, chegou um dia, a

mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança.

No fundo da casa deles, havia uma janelinha pela qual se avistava, no

quintal vizinho, um magnífico jardim cheio das mais lindas flores e viçosas

hortaliças.

Mas era cercado por um muro altíssimo, que ninguém se atrevia a

escalar, porque pertencia a uma feiticeira de grandes poderes e muito temida.

Um dia, espiando pela janelinha a mulher viu no quintal vizinho um

canteiro cheio dos mais belos pés de rabanete que jamais vira. Eram tão verdes e

106 Texto em anexo K. 107 A Prefeitura Municipal de Salvador/BA, com o apoio financeiro do Ministério da Educação e do Desporto, distribuiu cadernos de gêneros literários diversificados para as escolas públicas municipais.

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fresquinhos que dava gosto olhar, e ela sentiu um enorme desejo de comer alguns.

Cada dia que passava, seu desejo aumentava mais e, como não havia

jeito de conseguir os rabanetes, foi ficando triste, abatida e com um aspecto

doentio, até que um dia o marido assustou-se e perguntou:

- O que está acontecendo contigo, querida?

- Ah! –respondeu ela. – Se não comer um rabanete do jardim da

feiticeira, vou morrer logo, logo!

O marido, que a amava muito, pensou: “Não posso deixar minha mulher

morrer... tenho que conseguir esses rabanetes, custe o que custar!”.

Quando anoiteceu, ele encostou uma escada no muro, pulou o quintal

vizinho, arrancou a toda pressa um punhado de rabanetes, e trouxe para a mulher.

Mais que depressa, ela preparou uma salada com eles, e comeu-a deliciada. Tinha

um gosto tão bom, tão bom, que no dia seguinte seu desejo de comer rabanetes

tornou a voltar, e muito mais forte ainda. Para sossegá-la, o marido prometeu-lhe

que traria mais alguns do jardim da feiticeira e, quando a noite chegou, pulou

novamente o muro. Porém, mal pisou o chão do outro lado, levou um tremendo

susto: de pé, diante dele, estava a feiticeira.

Como se atreve a entrar no meu quintal como um ladrão, para roubar

meus rabanetes?- perguntou ela com os olhos chispantes de raiva. – Vai ver só o

que te espera!

- Oh! Tenha piedade! – implorou o homem. – Só fiz isso porque fui

obrigado! Minha mulher viu pela janela seus rabanetes, e sentiu vontade de comê-

los, que morrerá na certa, se eu não levar alguns!

A feiticeira se acalmou e disse:

- Se é assim como diz, dou-lhe a permissão de levar quantos rabanetes

você quiser, mas com uma condição: tem que me dar a criança que sua mulher vai

ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará.

O homem estava tão apavorado que concordou. Pouco tempo depois, a

criança nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo instante, deu-lhe o

nome de Rapunzel e levou-a embora.

Rapunzel cresceu e se tornou a mais linda criança debaixo do sol.

Quando fez dez anos, a feiticeira trancou-a no alto de uma torre no meio de uma

floresta.

A torre não possuía nem escada, nem porta, mas apenas uma janelinha

no seu ponto mais alto. Sempre que a velha desejava entrar, ficava embaixo da

janela e gritava:

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- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Rapunzel tinha magníficos cabelos compridos e finos como fios de ouro.

Quando ouvia o chamado da velha, ela abria a janela, desenrolava as

tranças e jogava-as para fora. As tranças caíam vinte metros abaixo, e por elas a

feiticeira subia.

Alguns anos depois, aconteceu que o filho do rei, cavalgando pela

floresta, passou perto da torre. Então ouviu um canto tão bonito que parou para

escutar. Era Rapunzel que, para espantar sua solidão, cantava para si mesma com

sua doce voz. O príncipe quis subir até ela, e procurou uma porta na torre, mas não

encontrou nenhuma. Então voltou para casa. Mas o canto tocou seu coração de tal

maneira, que todos os dias ele voltava atrás de uma árvore, viu a feiticeira

aproximar-se da torre, e gritar:

Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Então a menina jogou para baixo suas tranças, e a feiticeira subiu.

“É essa a escada pela qual ela sobe? - pensou o príncipe. “Pois eu vou

tentar a sorte...”.

No dia seguinte, quando escureceu, ele se aproximou da torre e, bem

debaixo da janelinha, gritou:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Imediatamente as tranças caíram pela janela abaixo, e ele subiu.

Rapunzel ficou muito assustada quando o viu entrar, porque jamais

tinha visto um homem. Mas o príncipe falou-lhe com muita doçura e contou como

seu coração ficara transtornado desde que a ouvira cantar, e viera porque não teria

mais sossego enquanto não a conhecesse.

Rapunzel foi se acalmando, e quando ele lhe perguntou se o aceitava

como marido, reparou que ele era jovem e belo, e pensou: “ele é mil vezes

preferível à velha senhora...”. E pondo a mão sobre a dele, respondeu:

- Sim! Eu quero ir com você! Mas não sei como descer... Sempre que

vier me ver, traga uma meada de seda. Com ela vou trançar uma escada e quando

ficar pronta, eu desço, e você me leva no seu cavalo.

E combinaram ao cair da noite, porque a velha costumava vir durante o

dia.

Assim foi, e a feiticeira nada percebeu, até que um dia Rapunzel

perguntou sem querer:

- Diga-me, senhora, como é que lhe custa tanto subir, enquanto o jovem

filho do rei chega num instantinho?

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- Ah, menina ruim! – gritou a feiticeira. – Pensei que tinha isolado você

do mundo, e você me engana! – E na sua fúria, agarrou Rapunzel pelos cabelos e

esbofeteou-a. Depois, com a outra mão, pegou uma tesoura e chap, chap!...cortou-

lhe as tranças tão bonitas, deixando-as cair no chão. E foi tão desumana, que levou

a pobre menina para um deserto e abandonou-lhe ali, para que passasse privações

e sofresse.

Na tarde do mesmo dia em que Rapunzel foi expulsa, a feiticeira prendeu

as tranças cortadas num gancho da janela, e quando o príncipe veio e chamou:

- Rapunzel! Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Ela deixou as tranças caírem para fora e ficou esperando. Quando ele

entrou, quem encontrou não foi sua querida Rapunzel, mas a feiticeira. Com um

olhar chamejante de ódio, ela gritou zombeteira:

- Ah, ah! Você veio buscar sua amada? Pois a linda avezinha não está

mais no ninho, nem canta mais! O gato apanhou-a, levou-a, e agora vai arranhar os

seus olhos! Nunca mais você verá Rapunzel! Ela está perdida para você!

Ao ouvir isso, o príncipe ficou fora de si, e no seu desespero atirou-se

pela janela. Não morreu, mas caiu sobre espinhos que furaram seus olhos e ficou

cego. Então ficou perambulando pela floresta, alimentando-se apenas de frutos e

raízes, sem fazer outra coisa que lamentar-se e chorar a perda da esposa tão

querida.

Passaram-se alguns anos e um dia, por acaso, chegou ao deserto onde,

na maior tristeza, vivia Rapunzel com seus filhos gêmeos, um menino e uma

menina, que haviam nascido ali. Então, ouvindo a voz que lhe pareceu familiar, o

príncipe caminhou na direção de Rapunzel. Quando se aproximou, ela reconheceu-

o e atirou-se em seu pescoço a chorar. Duas de suas lágrimas molharam os olhos

dele e, no mesmo instante, ficaram claros novamente. O príncipe recuperou a visão

e ficou enxergando tão bem quanto antes.

Então levou Rapunzel e as crianças para seu reino, onde foram

recebidos com grande alegria. Ali viveram felizes e contentes.

Após quinze minutos, a professora disse que queria “ver a oralidade” e

pediu que alguns estudantes, aproximadamente dez, escolhessem um ou mais

parágrafos, lendo-os e justificando as razões das escolhas.

Uma estudante teve uma resposta diferenciada dos outros estudantes

pela escolha de um parágrafo. Ele disse que foi romântico o marido roubar

rabanetes para a mulher, que poderia morrer. A professora questionou ao

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estudante: “se por amor é preciso roubar”.

Neste momento a Professora B poderia explicar essa atitude do

personagem marido expondo as características de um conto. Ou seja, ressaltando

que os fatos que nele se passam muitas vezes não estão de acordo com as

“normas” sociais e/ou morais, pois buscam atender tanto as expectativas de um

possível leitor como do próprio conflito do texto.

Os outros estudantes disseram ter escolhido determinado parágrafo

porque gostaram.

A professora perguntou se a história era real ou ficção. Os estudantes

falaram que era ficção. Em seguida, ela pediu aos estudantes que dissessem

quais “elementos confirmam que a história é uma ficção”.

Alguns estudantes responderam que a “torre no meio da floresta”;

“subir pelos cabelos”, dentre outros.

Um estudante citou o rabanete e a professora disse para ele que

rabanete é real.

A maioria dos estudantes estava dispersa, talvez porque, segundo

informação da professora, o texto já tenha sido trabalhado na classe.

A professora pediu para a turma falar das “características de Rapunzel

quanto à personalidade e não aspectos físicos”.

Estudantes: “Linda e alta”; “cabelos loiros e compridos”.

A professora ressaltou, novamente, que não queria características

físicas. Disse que “não quer que fale do corpo, da beleza de Rapunzel”.

Os estudantes não entenderam e a professora explicou, novamente.

Resposta dos estudantes: “Humilde”; “Meiga”; “Amorosa”; “Gentil,

elegante, sentimental, chorona e carinhosa”.

“E a bruxa”, pergunta à professora.

Estudantes: “Malvada”; “rabugenta”; “horrorosa”; “feiticeira”;

“assustada”.

A professora pediu, ainda, que os estudantes procurassem algo que

comprovasse como eram a bruxa e a Rapunzel, “quer seja a característica física,

quer seja de personalidade, da maneira de ser de cada uma delas”. Depois

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colocou no quadro a seguinte atividade:

Atividade

Descreva o lugar em que Rapunzel vivia com seus dois filhos.

Obs.

Caracterize este lugar

Diga como você o sente e o vê.

Escolha bem as palavras.

Elabore frases que dêem a idéia do que você está pensando.

COMENTÁRIOS:

Durante toda a escrita deste trabalho, sempre nos propusemos a

conceituar o gênero e, em seguida, tecer comentários sobre as aulas das duas

professoras, sujeitos da pesquisa. Mas, chamamos a atenção para o fato de que

essas conceituações não devem ser vistas como formas padronizadoras de trabalho

com textos na sala de aula. Nosso objetivo é vivenciar o texto numa perspectiva

histórica, observando seu processo de evolução enquanto gênero. Assim sendo, ao

comentarmos sobre o conto literário necessitamos compreender o seu surgimento

para que possamos melhor proceder nas análises sobre o seu uso no contexto

escolar. Isto implica constatar que o conto provém da oralidade estando, por

conseguinte, sujeito a modificações constantes, principalmente no que diz respeito à

sua constituição narrativa.

Os contos, por tratarem de histórias que contém personagens e ações

que se distinguem a partir da cultura a que pertencem, podem ser adjetivados de

maravilhosos, populares, modernos etc. De acordo com Moisés (2004), o conto é um

gênero de origem desconhecida e remota, apresentando uma estrutura peculiar que

não permite que seja confundido com outros textos literários.

O conto é, do prisma dramático, univalente: contém um só drama, um só conflito, uma só unidade dramática, uma só história, uma só ação, enfim, uma única célula dramática. Todas as demais características decorrem dessa unidade originária: rejeitando as digressões e as extrapolações, o conto flui para um único objetivo,

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um único efeito. O passado anterior ao episódio que nele se desenrola, bem como os sucessos posteriores, não interessam, porque irrelevantes. Quando, porventura, importa mencionar os acontecimentos precedentes, o contista sintetiza-os em escassas linhas. (MOISÉS, 2004, p. 88)

Quando lemos esse gênero não há a explicitação de relações entre tempo

e espaço, sendo uma das características principais dos denominados “contos

clássicos”, iniciar com a expressão “Era uma vez...”. Assim, o que importa é a

história em si; o drama que a configura e o desfecho obtido.

Os “contos modernos” 108 possuem uma narrativa mais simples, embora

conserve as características do conto antigo. Possuem, portanto, início, meio e fim,

mas estes estão dispostos na narrativa de forma condensada.

O conto Rapunzel, utilizado na aula da Professora B pode, então, ser

considerado como clássico e/ou maravilhoso, pois tem personagens já consagrados

historicamente, assim como uma estrutura narrativa que, em geral, o movimenta:

início, com apresentação da personagem principal, seu estilo de vida e possível

ameaça de instauração do perigo; meio, com a apresentação do conflito e fim, com o

desfecho desse conflito.

A explicitação dessas características nos leva a considerar que a

estratégia de leitura/aproximação proposta pela Professora B dá uma dimensão de

que o conto em questão possui personagens fictícios, dentre os quais herói e vilão,

com personalidades e características físicas diferenciadas. Desse modo, ela faz um

estudo de adjetivos, sem com isso destituí-los do seu contexto de uso.

No entanto, sugeriríamos que para a distinção entre ficção e verdade

fosse introduzido um outro texto, como por exemplo, a notícia jornalística, pois além

de trazer uma estrutura narrativa e composicional diferenciada, com personagens

reais, possibilita a abertura de um debate acerca dos fatores ideológicos que a

constituem. Seria importante, por exemplo, conduzir o debate problematizando em

qual dos gêneros textuais a presença de elementos ficcionais deveria constar? Por

que a notícia também veicula informações não condizentes com o fato narrado? Que

elementos estruturais aproximam e distanciam o conto da notícia jornalística? A

linguagem é importante na constituição desses textos? E a caracterização das

108Concordamos com Moisés (2004, p. 90) quando diz que “[...] nem tudo que se elabora na atualidade merece rubrica de ‘moderno’; trata-se de denominação provisória de um tipo de conto que tem acompanhado a geral metamorfose da arte literária”.

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personagens no conto é diferente da caracterização em notícias jornalísticas? Por

quê?

Concluímos, ainda de forma parcial, que as análises aqui realizadas sobre

o uso do texto no espaço escolar sintetizam as nossas posições sobre o lugar que a

linguagem poderia ocupar com a inclusão da diversidade textual na sala de aula,

assim como a utilização de estratégias de leitura/aproximação que considerassem a

funcionalidade sócio-histórica dos gêneros. Além disso, como um dos nossos

principais objetivos era identificar que gêneros visitam os bancos escolares, assim

como as estratégias de leitura/aproximação propostas para estes, os comentários

sobre os outros textos utilizados pela Professora B não serão aqui realizados. Pois

como buscamos deixar claro em todo o nosso trabalho, o objetivo é perceber a

importância do intercruzamento textual na sala de aula e sua relevância para que o

estudante compreenda determinadas temáticas. Seria, portanto, repetitivo tecer

análises sobre todas as aulas da referida professora na perspectiva a que nos

propusemos: deixar explícito que o trabalho com textos no âmbito escolar implica

concebê-los enquanto formas de interação social. Sendo necessário, nesta

perspectiva, vivenciá-los enquanto produtores de discursos vivos, em que o estudo

de sua estrutura e de sua composição lingüística deve estar a serviço de sua

funcionalidade social; ou seja, o gênero textual assim se configura por estar

materializando e, também, suscitando no leitor pensamentos, sentimentos, ideais,

estratégias de interação etc.

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4 NO MEIO DO CAMINHO...OPS!, EU CONCLUÍ...

A atuação como professora nas primeiras séries do Ensino Fundamental

da rede pública de ensino, assim como bolsista de Iniciação Científica na Faculdade

de Educação da Universidade Federal da Bahia, fez-me desenvolver um interesse

especial por assuntos relacionados aos gêneros textuais e, conseqüentemente,

sobre as suas formas de inserção no contexto escolar.

A necessidade de entender o sentido atribuído ao texto enquanto

entidade sócio-discursiva, remetendo-me aos estudos bakhtinianos, assim como sua

funcionalidade discursiva, segundo Eni Orlandi, suscitou em mim o desejo de

constatar quais gêneros textuais os professores mais utilizam, assim como quais as

estratégias de leitura/aproximação estes propunham no espaço escolar. O objetivo

era saber se estas estratégias visavam um estudo da funcionalidade dos textos e se

o trabalho dos professores estava ou não respaldado pelos estudos de lingüistas

contemporâneos interessados pelos pressupostos vygotskianos e bakhtinianos.

Dessa inquietação surgiu essa pesquisa, não com o intuito de esgotar o

assunto, mas sim de tecer considerações e construir outras problematizações a

partir da observação sobre o uso dos gêneros textuais em duas quartas séries do

Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de Salvador/BA. No entanto,

é necessário destacar que os comentários finais sobre as aulas das duas

professoras, sujeitos dessa pesquisa e aqui caracterizadas de Professora A e

Professora B, estão pautados numa visão de linguagem enquanto produto sócio-

histórico e de sujeito enquanto ser social que se constrói e se desenvolve em

interação com outros e com o meio. Assim, toda a construção argumentativa dessa

pesquisa baseou-se em pressupostos teóricos pré-estabelecidos, sendo as

dimensões básicas de análise elaboradas a partir dos fundamentos sócio-

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interacionistas. Ou seja, os fios que teceram todo este discurso já estavam, a priori,

escolhidos, embora não devam ser vistos como os mais corretos. Isto não significa

dizer que durante a pesquisa outros fios argumentativos tenham sido construídos em

decorrência do que vi, senti e vivenciei no espaço escolar. A intenção aqui

expressa, de deixar evidentes as escolhas teóricas, emerge da necessidade de

explicitar o porquê da indagação de certos procedimentos de abordagem de textos

nas escolas, bem como da defesa de outros.

A partir de observações nas duas quartas séries anteriormente citadas e

de entrevista semi-estruturada com as professoras, sujeitos dessa pesquisa,

surgiram as seguintes dimensões básicas de análise, as quais já constam no

capítulo segundo:

- Quanto aos gêneros textuais utilizados, percebi uma estreita relação com

disciplina curricular, com a vida do professor, com a formação do professor

e a avaliação de conteúdos.

- Quanto às estratégias de leitura/aproximação propostas para cada gênero

textual, observei a predominância de: questionário, apreensão de

conteúdos, estudo gramatical e avaliação.

Estas dimensões, relacionadas aos gêneros textuais e suas estratégias

de leitura/aproximação, estão presentes, ainda que de alguma forma mais implícita,

nas aulas das Professoras A e B. São dimensões que emergiram da necessidade

em organizar minhas percepções sobre o uso do texto na sala de aula, constituindo-

se assim em unidades de síntese e análise mais explícitas e objetivas.

Nessa perspectiva, arrisco dizer que, quanto à escolha dos gêneros

textuais trabalhados nas duas quartas séries do Ensino Fundamental pelas suas

respectivas professoras, notei que há uma estreita relação entre gênero textual e

disciplina curricular, já que o texto é escolhido tendo em vista as facilidades que

proporciona para a exposição e memorização de conteúdos. O que importa não é

proporcionar ao educando novas formas de interlocução e ação leitora; isto é, a

compreensão de que o gênero é uma construção social inevitável, tendo em vista

que materializa discursos e, por conseguinte, ideologias. O objetivo precípuo da

escola parece ser demonstrar que os gêneros veiculam, em seu corpus textual,

normas gramaticais que parecem possuir fim em si mesmas. Assim, apenas a

utilização do texto na sala de aula é, equivocadamente, considerada como um

trabalho pedagógico contextualizado, mesmo que a estratégia de

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leitura/aproximação propostas para ele sejam apenas o estudo isolado de suas

palavras e frases.

A escolha do gênero textual e sua forma de utilização no espaço escolar

estão intimamente relacionadas com a história de vida pessoal e profissional do

professor. Pude verificar isto nas entrevistas realizadas com as duas professoras.

Ambas, em geral, apresentaram indícios de que sua iniciação enquanto leitoras não

foi algo prazeroso. As exigências escolares tinham um caráter punitivo e a leitura era

um ato mecânico que tinha por objetivo a aquisição de técnicas, tais como fluência e

memorização de conceitos gramaticais.

A seleção de textos, por essas duas professoras, está também associada

à formação profissional, como já dito anteriormente. A Professora A é formada em

magistério e, atualmente, faz o curso de Pedagogia numa faculdade particular. Já

participou de um “curso de atualização” denominado GESTAR, o qual abordou

assuntos relativos à leitura, escrita e cálculo. Por isso, apesar de reproduzir, em sua

prática pedagógica, as competências adquiridas durante sua formação - as quais

viam o texto apenas como pretexto e buscavam extrair destes conteúdos

direcionados a normas gramaticais, apreensão de conteúdos curriculares,

mecanização do ato de ler e escrever etc., ela deixou transparecer um desejo de

conhecer outras visões acerca da leitura e da escrita. Tanto que o curso GESTAR

deu-lhe a possibilidade de entender que há textos que podem e devem ser

trabalhados na escola, tais como Histórias em Quadrinhos, textos jornalísticos,

instrucionais etc. Por outro lado, notei ainda a predominância, em suas aulas, tanto

de textos didático-informativos, em maior grau, os gêneros relato histórico e

científico.

Quanto aos modos de aproximação e/ou às estratégias de leitura

utilizadas para esses gêneros, percebi o uso freqüente de questionários, assim

como de leitura silenciosa e em voz alta - essa última contando, algumas vezes, com

a releitura de parágrafos pelos educandos. A meu ver, tal procedimento da

professora fazia-se irrelevante e insustentável enquanto uma interessante e

pertinente estratégia de leitura, já que estava totalmente desconexo do objetivo

principal para o qual o texto foi utilizado: sua compreensão.

Além disso, a vinculação entre conteúdo curricular, nesse momento, é tão

presente, que a professora, em alguns momentos de revisão, passa até mesmo a

chamar os questionários de “exercício de fixação”, demonstrando sua preocupação

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em garantir que a informação veiculada através dos textos possa ser apreendida por

um longo período na memória dos educandos. O que me faz pensar que a

mecanicidade de atividades tão presentes na educação durante séculos e agora

exposta e condenada pelas teorias da aprendizagem atuais, como, por exemplo,

pela teoria sócio-interacionista, ainda precisa ser mais seriamente discutida nas

escolas.

Outro aspecto a considerar é a não incorporação dos gêneros textuais:

tiras, história em quadrinhos, canções e poesias, na rotina de trabalho da Professora

A. Apesar de contar com a presença desses gêneros em sala de aula, a mesma não

os utilizava com freqüência, o que não facilitava em nada um dos seus objetivos, em

especial com os gêneros tiras e histórias em quadrinhos, que consistia no

entendimento, pelos estudantes, de suas estruturas composicionais; ou melhor, para

auxiliar os educandos a saberem identificar o porquê de suas nomeações. Além

disso, considero que uma única leitura desses textos em sala de aula não é

suficiente para desejar dos educandos produções textuais similares, embora com

temáticas diferentes, como, algumas vezes, procedeu a Professora A; pois, para

produzir um gênero textual, necessita-se de uma grande convivência com este para

que assim se possa apreender os recursos lingüísticos e sócio-históricos presentes

na sua confecção.

Pude observar, ainda, que a utilização do texto como pretexto para

introduzir conteúdos gramaticais ainda é uma constante nas práticas escolares. Esta

é uma questão delicada, pois o que muitas vezes percebemos é a certa vinculação

didaticamente enraizada entre conteúdos gramaticais e a eficácia na aprendizagem

da leitura e produção textual. Essa concepção mecanicista de aprendizagem, que

faz parte do cenário das escolas brasileiras desde a sua criação até os dias atuais

sendo, portanto, difícil de romper, ainda não permite ao professor ficar à vontade

para trabalhar com textos, tendo por objetivo centrar-se na sua funcionalidade, já

que a prioridade não é o prazer de ler, mas fazer com que os estudantes possam

aprender as normas que sustentam e dão organicidade à língua-padrão. Por isso,

emerge a urgente necessidade do professor entender, inicialmente, o sentido de se

trabalhar a linguagem numa perspectiva social, antes de tentar modificar sua

metodologia de ensino.

Sendo assim, destaco que a funcionalidade do texto é freqüentemente

omitida, negligenciada, ainda que de forma não intencional, pelos professores. Isto

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equivale a dizer que ao realizar a leitura de um texto é preciso centrar não apenas

no seu conteúdo temático explícito, mas sim tentar compreender como ele produz

sentidos. Por exemplo, ao trabalhar com o gênero relato histórico, a Professora A

poderia tentar refletir com os estudantes acerca da linguagem utilizada para

informar. Seria interessante verificar se o texto utiliza orações afirmativas e o porquê

de utilizá-las. Aí o educador estaria inserindo o próprio objetivo do discurso, pois o

autor, ao selecionar o gênero relato histórico, lança mão de mais orações afirmativas

do que reflexivas, evidenciando o caráter de convencimento acerca do conteúdo

expresso. Essa constatação serve para que professores e estudantes percebam que

um único gênero textual não dá conta de provocar reflexão sobre a pluralidade da

temática em questão, nem mesmo permite ao estudante realizar produções textuais

mais autônomas. Isso porque, para cada disciplina o professor tende, muitas vezes,

a selecionar um único gênero textual, não promovendo, assim, a expansão criativa

e/ou flexível da escrita.

A Professora B, embora dê preferência aos textos literários, não explora

os gêneros textuais que utiliza, já que tenta extrair desses, em geral, conteúdos

curriculares e/ou denominados educacionais, assim como pretende que os

estudantes compreendam a temática contida no texto. Vê, ainda, no questionário e

na interpretação literal de textos didático-informativos, as únicas estratégias de

leitura/aproximação possíveis, não procurando se deter nos aspectos essenciais que

os configuram, tais como estruturação narrativa persuasiva e impositiva.

O uso do texto também é visto no ambiente pesquisado como pretexto

para se avaliar o estudante quanto à fluência. É comum ver nas aulas da professora

A vários alunos realizarem a leitura de um único texto, o que demonstra uma

desvalorização de sua funcionalidade social, assim como uma padronização do ato

de ler. Esse tipo de aproximação, a meu ver, não permite que os estudantes vejam

qual gênero textual estão lendo, nem mesmo os objetivos que o constituem

enquanto tal: intenção do autor, tipos de discurso e temática, leitores a que se

destina, contexto de produção etc. Toda a prática de leitura é guiada pelo professor,

não exigindo do estudante mais do que uma habilidade de entonação. O que se quer

não é o texto, mas sim a aquisição e/ou treinamento de uma técnica com o objetivo

de facilitar a avaliação do professor sobre a aprendizagem dos estudantes. 109

109 Válido ressaltar que a preocupação do professor com a fluência do estudante durante a leitura provém da constituição de categorias avaliativas que constam na caderneta de avaliação do

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Penso que as constantes reflexões sobre o fato dos professores serem ou

não leitores são pertinentes para este trabalho, na medida em que nos chama à

atenção sobre a forma como o professor utiliza o texto na sala de aula. Inicialmente,

há de se considerar que em relação aos textos que comumente circulam no

ambiente escolar a partir, principalmente, de livros didáticos, os professores são

leitores, pois os mesmos investem em estratégias de leitura/aproximação

provenientes da sua vivência escolar e de sua formação docente, visando a

aquisição de habilidades e técnicas. Todavia, a formação desses professores não

lhes proporcionava relacionar os textos aos seus contextos de produção, não

ressaltando, assim, os aspectos de ordem social, histórica e ideológica. Mas, do

ponto de vista das práticas de leitura culturalmente mais valorizadas e da

diversidade de textos que circulam socialmente, os (as) professores (as) não são

mesmo leitores (as), pois tendem a ler qualquer texto a partir de referenciais de

recepção transmitidos pela escola. Isto significa dizer que qualquer gênero textual é

submetido a padrões de análise instituídos, estando à leitura disponível apenas para

a apropriação de temáticas educacionais. Desconsidera-se, portanto, a existência e

a inter-relação de múltiplas atividades e/ou estratégias de leitura/aproximação.

Por outro lado, todas essas colocações possibilitaram-me pensar que o

comentário sobre as duas professoras e, de certa forma, sobre professores em

geral, não deve ser o de apenas detectar-lhes, pretensiosamente, as denominadas

falhas pedagógicas e/ou de formação. O que é preciso fazer é pensar que os

sujeitos, por estarem expostos às várias possibilidades, tendem, por circunstâncias

das mais diversas, a seguir um caminho, uma atualização - no dizer, por mim

apropriado e, por conseguinte, interpretado pelo pajé Felippe Serpa. Cada

atualização do sujeito não está isenta de críticas, mas também não deve ser vista

pela via do erro ou do acerto.

Com isso não estou negando as análises que realizei acerca dos textos

selecionados pelas professoras e das estratégias de leitura/aproximação que

utilizam. Ainda considero essencial ver o texto, como bem ressaltou Orlandi, na município de Salvador. Esta possui, para cada estudante, uma série de categorias iguais, as quais estão organizadas em coluna com o objetivo de que o professor possa marcá-las caso o estudante as atinja. O excesso de categorias e a não preparação do professor para trabalhá-las de forma articulada e intencional, leva-o, muitas vezes, a utilizar em uma única aula apenas um texto para avaliar a fluência do estudante quanto à leitura. O objetivo do professor ao marcar as categorias avaliativas, a nosso entender, cumpre assim um papel burocrático, tornando a avaliação frágil do ponto de vista investigativo e processual.

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perspectiva de sua funcionalidade discursivo-ideológica, assim como sendo, no

campo da leitura, um objeto incompleto, já que o leitor, ao ativar conhecimentos e

reflexões de cunho lingüístico, temático, vivencial, estrutural etc., demonstra a

existência dessa incompletude, necessária para que se instale o diálogo entre texto

e leitor. Já pensando em sua materialidade, o texto é completo, pois, se não o fosse,

como poderíamos caracterizá-lo enquanto gênero textual?

É claro que não podemos pensar em criar uma cultura letrada

hegemônica, em que o texto deva ser vivenciado numa única perspectiva. Mas,

também é pertinente a idéia de que não podemos continuar vendo-o enquanto

elemento secundário nos estudos sobre linguagem e desconsiderando o seu caráter

instaurador de discursos instituintes e instituídos. Desconsiderar a funcionalidade

dos gêneros textuais, a meu ver, equivale a anulá-los enquanto produções sócio-

históricas.

Disto decorrem as anteriores considerações tanto sobre os textos

selecionados quanto sobre as formas de utilização destes pelas duas professoras,

sujeitos da pesquisa. A predominância de textos didático-informativos pela

Professora A e de textos literários, sem uma maior ênfase em seus aspectos

funcionais, pela Professora B, pode continuar gerando uma exclusão, já que os

educandos não poderão realizar discussões em torno de gêneros textuais

diversificados presentes em instituições não escolares. Com isso, não quero dizer

que esse ou aquele gênero textual deva ser privilegiado, legitimado, mas sim que o

uso da diversidade textual, se vista na perspectiva de sua funcionalidade sócio-

ideológica e histórica, pode criar leitores mais autônomos, já que conscientes da

existência de múltiplas formas do dizer, e críticos, na medida em que busca

entender a ligação existente entre os discursos e sua materialização em

determinado gênero textual. Assim, não estou tentando impor uma forma de pensar

sobre os textos no espaço escolar, mas tentando inserir tais discussões no rol das

possibilidades. Afinal, não seria o texto, mas precisamente a linguagem e suas

formas de manifestação, a base de toda e qualquer ação e relação humana?

Por outro lado, quando analiso as aulas das duas professoras, deixando

vir à tona minhas críticas e sugestões, sinto a necessidade de esclarecer que,

apesar das interferências que realizo, não as considero como verdades que devem

ser assumidas pela escola. Apenas desejo que o diálogo possa ser instaurado. Que

a (contra) argumentação seja construída em torno do que escrevi sobre o uso do

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texto na sala de aula. Que o que eu faço, penso e sinto possa ser exposto a

apreciações, ainda mais se considerarmos que a educação não é assunto para ser

momentaneamente comentado e depois isolado pelas paredes das escolas e/ou das

salas de aula! Tanto que para formular e reformular questões acerca do texto e sua

utilização no espaço escolar, tive a necessidade de dialogar com o outro, me

deparando, nesse trajeto, com as duas professoras, que embora não tenham

requisitado minhas reflexões, se dispuseram a me ajudar. Por isso, volto a dizer que

muito das reflexões teóricas e práticas sobre a temática em questão estão

associadas tanto à minha formação leitora, obtida nos bancos escolares, quanto à

minha formação profissional em magistério e, posteriormente, em pedagogia. A

descoberta surpreendente da existência de variadas formas de interação pela

linguagem, assim como a busca por uma abordagem diferenciada ao trabalhar com

variados gêneros textuais, levou-me a considerar que a prática docente, mais

especificamente no trato com os textos, tem tentado superar o ensino e a

aprendizagem puramente conceituais. No entanto, a dificuldade do professor ainda

reside no fato de não ter a possibilidade de ver e vivenciar a leitura enquanto espaço

de manifestação de idéias e ideais, de busca de informações e argumentações,

enfim, de interação com os outros e com nós mesmos sendo, portanto, difícil para

esses sujeitos trilharem outros caminhos e entenderem o que as diferentes e

diversificadas teorias querem dizer sobre a linguagem e seu funcionamento.

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____________________ANEXOS______________________

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ANEXO A – Tira em quadrinhos

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ANEXO B – Avaliação de Língua Portuguesa

Avaliação Final de L. Portuguesa

I UNIDADE Leia: Nada do que foi será De novo do jeito que já foi um dia Tudo passa Tudo sempre passará A vida vem em ondas Co9mo um mar Num indo e vindo infinito Tudo que se vê não é Igual ao que a gente viu há um segundo Tudo muda o tempo todo no mundo Não adianta fugir Nem mentir, pra si mesmo agora Há tanta vida lá fora Aqui dentro sempre Como uma onda no mar!

Lulu Santos e Nelson Mota 1. O texto lido acima é: a) uma carta b) uma notícia c) um poema d) uma fábula 2. Você concorda com a afirmação “Nada do que foi será de novo do jeito que já

foi um dia”? Justifique. 3. Com base no trecho: “Tudo que se vê não é Igual ao que a gente viu há um segundo.” É correto afirmar: a) Os olhos enganam o homem b) O homem percebe a modificação do mundo a cada experiência vivida 4. O verbo destacado na frase: “ Nada do que foi será” indica: a) o passado b)o futuro c) o presente d) NDA 5. Na frase “Como uma onda no mar”, a palavra grifada é: a) verbo b) adjetivo pátrio c) substantivo concreto d)substantivo abstrato 6. O grupo de palavras que está com a grafia correta é:

a) arruda- arroz b) erado-corajoso c) Bareiras – carroço d) Arrumado – forró