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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Rua Barão de Jeremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA Tel.: (71) 3283-6256 / (71) 3283-6255. E-mail: [email protected] LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA QUIXOTISMOS PÓS-MODERNOS NA NARRATIVA DE CARLOS RIBEIRO SALVADOR – BAHIA 2016

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Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Rua Barão de Jeremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA

Tel.: (71) 3283-6256 / (71) 3283-6255. E-mail: [email protected]

LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA

QUIXOTISMOS PÓS-MODERNOS NA NARRATIVA DE CARLOS RIBEIRO

SALVADOR – BAHIA

2016

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LUCIANA SANTOS DE OLIVEIRA

QUIXOTISMOS PÓS-MODERNOS NA NARRATIVA DE CARLOS RIBEIRO

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia como requisito obrigatório para a obtenção do título de doutora em Literatura e Cultura. Área: Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura. Linha: Estudos de Teorias e Representações Literárias e Culturais. Orientadora: Profa. Dra. Lígia Guimarães Telles.

SALVADOR – BAHIA

2016

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Oliveira, Luciana Santos de.

Quixotismos pós-modernos na narrativa de Carlos Ribeiro / Luciana Santos de Oliveira. - 2016.

140 f.

Orientadora: Profª. Drª. Lígia Guimarães Telles.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2016.

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Para Luciano, meu companheiro de alma e de nome.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Lígia Telles, exemplo de competência, pela sensibilidade e pela generosidade com que me orientou durante a árdua jornada, minha eterna gratidão e amizade. A Carlos Ribeiro, pelas inesquecíveis viagens quixotescas que as suas narrativas me proporcionaram e por tornar possível meu acesso a grande parte de seus escritos, a minha eterna admiração. À minha família e meus amigos, que, de alguma forma, me acompanharam na estranha aventura do doutorado, meu afeto mais sincero.

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Alberto sentiu a necessidade de escrever um livro: um romance que nada mais era que um subterfúgio. Através dele realizaria o percurso que o levaria da ilusão para a verdade. Seria, entretanto, uma verdade assim, com “v” minúsculo, pois que desconfiava de todas as palavras absolutas. Sua verdade seria relativa, como as próprias bases nas quais apoiava seu pensamento. Verdades absolutas tendiam quase sempre a querer anular outras, pensou – e já tínhamos inúmeros exemplos de como essas coisas terminavam, não é, meu velho?

Lunaris, página 27. – Pela fé do cavaleiro andante – respondeu Dom Quixote – que assim como vi este carro imaginei que alguma grande aventura se me oferecia, e agora digo que é mister tocar as aparências com a mão para dar lugar ao desengano.

Dom Quixote, parte 2, Capítulo XI.

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RESUMO Este trabalho se propôs trazer à cena crítico-acadêmica a possibilidade de discutir o que é ser e estar no mundo contemporâneo, e de verificar como os fenômenos pós-modernos (sociais e culturais) influenciam a narrativa atual, representada aqui pela prosa do escritor baiano Carlos Ribeiro. Afinal, por ser cronológica e tematicamente contemporânea, sua escrita nos dá testemunho do decorrer de muitas mudanças e parece refletir os retratos distorcidos da pós-modernidade, ao passo que suscita muitas questões e sinaliza algumas possíveis respostas. Para atingir esse objetivo, a tese foi dividida em três capítulos. No primeiro, examina-se o que caracteriza o contexto em que se insere sua narrativa, chamado por muitos estudiosos de pós-moderno. É feito um trajeto teórico das questões que particularizaram a modernidade e das questões que a diferencia da época atual. Assim, foram convocadas algumas vozes críticas e teóricas, que ultrapassando suas distintas áreas de estudo, enriquecem a área comum das Humanidades, dentre as quais se destacam as vozes de Anthony Giddens, Michel Foucault, Marshall Berman, Octavio Paz e Fredric Jameson. O segundo capítulo traz a análise de dois romances de Carlos Ribeiro: Lunaris, publicado em 2007, e Abismo, publicado em 2004. As análises seguem na direção de tentar identificar quais são as características da narrativa pós-moderna, de entender a partir de que aspectos ela narra e de saber quais representações do homem e do mundo pós-modernos Ribeiro imprime com sua escrita. O terceiro capítulo expõe uma das maiores marcas da narrativa atual: a mistura, a citação e a paródia de outros estilos, formas e dicções literárias, que marcaram épocas e contextos distintos. Ribeiro usa seu olhar e suas leituras para trazer diversas referências artísticas, fazendo-as coexistir de uma forma renovada e original. Contudo, a referência mais marcante é, sem dúvida, aquela que dá vida aos seus protagonistas. Refiro-me a um tipo de protocolo ficcional fundado pelo autor espanhol Miguel de Cervantes: o quixotismo. Esse substantivo faz menção a um modo de agir que consiste, entre outras coisas, em embaralhar as vozes narrativas e as identidades, em subverter a expectativa da história e, por consequência, a atenção e a percepção do leitor. O quixotismo retomado por Ribeiro se mostra como instrumento artístico pelo qual o autor procura sinalizar o papel da ficção em dias tão absurdos. PALAVRAS-CHAVE: Pós-Modernidade. Carlos Ribeiro. Narrativa. Simulacro. Quixotismo.

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ABSTRACT This work aimed to bring to the critical-academic scene the possibility to discuss what to be in the contemporary world means and to verify how the post-modern phenomena (both social and cultural) influence narrative in the present time. This narrative is represented by the prose of Carlos Ribeiro, a writer from Bahia. After all, being chronologically and thematically contemporary, his writing gives us a testimonial of changes as they take place and seems to reflect distorted pictures of post-modernity. At the same time, it brings up many questions and signals some possible answers. In order to reach this aim, this thesis is divided into three chapters. In the first, that which characterizes the context in which his narrative is inserted is examined, a context called post-modern by many theoreticians. A theoretical route is drawn to show the questions that characterize modernity and the questions that distinguish modernity from the present time. Thus, some critical and theoretical voices have been summoned, voices that go beyond their specific areas of study and enrich Humanities as a whole. Among these voices are those of Anthony Giddens, Michel Foucault, Marshall Berman, Octavio Paz and Fredric Jameson. The second chapter brings an analysis of two Carlos Ribeiro’s novels: Lunaris, published in 2007, and Abismo, published in 2004. The analysis follow in the direction of an attempt to identify which are the characteristics of post-modern narrative, to understand from which aspects he narrates, and to find out which representations of the post-modern man and the post-modern world Ribeiro imprints in his writing. The third chapter exposes one of the greatest marks of the present narrative: the mixture, the quoting and the parody of other styles, literary forms and language, which characterized distinct eras and contexts. Ribeiro uses his view and his readings to bring several artistic references, making them coexist with an original and renewed form. However, the most outstanding reference is, undoubtedly, that which gives life to his protagonists. I am referring to a type of fictional protocol founded by the Spanish author Miguel de Cervantes: the quixotism. This noun refers to a way of acting which consists of, among other things, scrambling the narrative voices and the identities, and of subverting the expectation of the story and, thus, the reader’s attention and perception. The quixotism recovered by Ribeiro presents itself as an artistic instrument with which the author seeks to signal the role of fiction in such absurd times. KEY-WORDS: Post-modernity. Carlos Ribeiro. Narrative. Simulacrum. Quixotism.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 1 ENTÃO, CHEGAMOS À PÓS-MODERNIDADE. O QUE SE GANHA

E O QUE SE PERDE? 6 1.1 Das (des)construções ontológicas da modernidade – uma viagem para o presente 7 1.2 Da pós-modernidade em formação – discursos complementares e contraditórios 14 2 LUNARIS E ABISMO – ROTAS ALTERNATIVAS PARA A PROCURA DE SI 43 2.1 Lunaris – um lugar impossível em um mundo de possibilidades 49 2.2 Lunaris – a metafísica da cidade ausente 59 2.3 O simulacro como forma de sobrevivência 63 2.4 Abismo – uma aventura improvável na selva da contemporaneidade 70 2.5 Uma escalada épica ou a epopeia da ilusão 80 3 QUIXOTISMOS PÓS-MODERNOS NA NARRATIVA DE CARLOS RIBEIRO 90 3.1 A reversão do quixotismo: proposta para uma nova leitura 92 3.2 Lutando com moinhos de vento: os Quixotes de Carlos Ribeiro 105 CONCLUSÃO 123 REFERÊNCIAS 129

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INTRODUÇÃO

Na conclusão do seu livro Da Inutilidade da Poesia, Antonio Brasileiro, indo

na contramão da expectativa comum, provoca o leitor com algumas perguntas que ficam

entre a prosa poética e o pensamento filosófico. Ele indaga retoricamente: “Escreve-se

sobre a realidade ou se escreve a realidade? Se admitirmos que se escreve a, que dizer

da sua leitura – a leitura, por exemplo, de um poema? O que nela nos toca? Não mais

que a ‘escrita’ da realidade? Mas que é mesmo a ‘realidade’?” (BRASILEIRO, 2002, p.

151, grifos do autor).

Questionar a realidade da realidade constitui-se em um dos mais antigos temas

filosóficos. Mas é curioso notar como a indagação de Brasileiro faz esse assunto se

revestir e, ao mesmo tempo, se despir de todo sentido. Isso talvez aconteça porque,

naquelas palavras, o leitor se depara com dois elementos referenciais, os quais sempre

tiveram a tarefa de ajudar o homem a dar significado à vida: a escrita e a realidade.

Mesmo em se tratando da escrita ficcional, cujo caráter de semeadora de

dúvidas foi formado pelos séculos a fio, era de uma realidade aparente e suficientemente

palpável que ela duvidava. Porém, se, desde o século passado, esta época espiralada em

que nos encontramos vem, com muita frequência, sendo observada pela sua inespessura

e virtualidade, na qual a certeza mais segura é a da incerteza, o que pode restar à

escrita? Ou, pensando de outra forma, se considerarmos, como sugere Brasileiro, que se

escreve a realidade, e a realidade tem se mostrado cada vez mais abstrata, o que cabe à

ficção representar, depois do impacto modernista dessa constatação?

Entendendo que a escrita ficcional ou a narrativa de ficção continua existindo a

despeito dos muitos contras e dos escassos prós, seria ilógico pensar que sua voz na

contemporaneidade se ergue tão somente para perder-se, como acontece com um grito

no meio de uma multidão ruidosa.

Foi seguindo pelas sinuosidades desses pensamentos sobre a escrita ficcional e

a realidade de nossa época que as questões propostas para este trabalho me ocorreram.

Mais exatamente, analisando a narrativa vigorosa e atual do autor Carlos Ribeiro,

procuro entender o que resta à prosa literária pós-moderna dizer sem apenas repetir os

modelos modernistas. Levando em consideração que a arte moderna do século passado

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expressa o ápice do espanto e do impacto ocorrido na mudança radical da perspectiva

que se tinha da realidade e de muitos outros conceitos e concepções, até certo tempo,

vistos como fixos e estáveis, proponho-me a investigar o que a narrativa de Carlos

Ribeiro comunica, o que a caracteriza e a motiva no contexto pós-moderno quando,

desde o século passado, tem-se anunciado uma crise em torno do fazer literário e da sua

recepção no mundo prático e hipercapitalista.

A face multiforme e fluida da nossa contemporaneidade não permite que se

possa defini-la ou classificá-la com conceitos fechados e permanentes já que a

provisoriedade tem sido um de seus principais regentes. Sendo assim, nada melhor para

flagrar seus traços fugidios, que delineiam um mundo e um homem novos em muitos

sentidos, do que a arte, que se alimenta da plurissignificação e de múltiplas

possibilidades de leitura. Penso que, sobretudo, a narrativa possa, em muito, auxiliar-

nos nessa empreitada teórico-analítica. Afinal, é através da narrativa que, desde os

tempos insondáveis, o ser humano tem organizado seus medos e suas angústias, tem

recorrido à imaginação criativa para explicar o que se lhe apresenta inexplicável e tem

expressado e comunicado o desejo de ser muito mais do que um ser finito, através de

outros seres inventados e, por isso, imortais.

E apesar de ter em vista que a chamada pós-modernidade é

caleidoscopicamente múltipla, escolhi analisar a narrativa ficcional de Carlos Ribeiro

como uma representante da prosa contemporânea, antes de tudo, por ser ela filha destes

tempos fantasticamente difusos. Em outras palavras, a escolha se justifica por esse autor

estar em pleno exercício artístico desde 1982. Assim, sua escrita é testemunha e

sobrevivente das transformações sutis e radicais do mundo que nos rodeia. Mas a

escolha se deu, principalmente porque, no meu entendimento, através de sua escrita

literária, o autor nos oferece imagens intensas dos indivíduos que habitam este nosso

contexto.

Contudo, vale lembrar que todo estudo cujo objeto de pesquisa é um

determinado recorte temporal está passível de questionamentos, discordâncias e

reinterpretações, já que todo contexto histórico é formado pela pluralidade das visões

humanas. Essa afirmação se faz necessária quando uma das propostas deste trabalho foi

analisar a formação e o andamento do contexto literário de uma época que está, por

assim dizer, em pleno acontecer.

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No entanto, a dificuldade que se anunciava de pronto não diminuiu a

importância de tentar, por meio desta tese, trazer à cena crítico-acadêmica a

possibilidade de discutir o que é ser e estar no mundo contemporâneo, e de verificar

como os fenômenos pós-modernos (sociais e culturais) influenciam a narrativa atual,

representada aqui pelos textos ficcionais do escritor Carlos Ribeiro.

O vislumbramento deste trabalho justificou-se, primeiro, por ser a

contemporaneidade uma época em que se percebe confluir toda sorte de complexidades

teóricas e conceituais, começando pelo vago termo que a denomina: pós-modernidade.

Por isso, parece-me relevante, se não definir, ao menos tentar caracterizar uma das

formas de manifestação cultural específica desta época. É para tanto que propus a

análise da narrativa contemporânea, pois uma das funções cardeais da arte é registrar as

impressões humanas – individuais e coletivas – a respeito da realidade, ou mesmo das

realidades, apresentada pela nossa história. Além disso, apesar de a escrita de Carlos

Ribeiro ter constantemente merecido olhares e palavras positivas da crítica literária,

numerosos estudos e leituras, sua obra ainda continua instigando profícuas leituras,

produzindo inesperados significados e levando a questões relevantes para a literatura

atual, o que, entre os outros motivos já expostos, justificou a escolha de sua obra para a

realização deste trabalho.

Dessa forma, a pesquisa que resultou nesta tese teve o objetivo geral de analisar

a narrativa contemporânea em seu aspecto temático e estrutural, em conformidade com

as características teóricas do que se tem chamado de pós-modernidade. Teve também os

objetivos de destacar e analisar as principais características culturais do contexto

contemporâneo; estabelecer analiticamente quais são os principais traços da narrativa de

Carlos Ribeiro que me permitem inscrever sua obra na pós-modernidade; descrever e

interpretar a maneira como se estrutura essa mesma narrativa, explicitando os elementos

que dela emergem ou que nela se apresentam como traços marcantes e distintivos; e

contribuir para a construção da fortuna crítica sobre a obra de Carlos Ribeiro, que se

mantém aberta para inúmeras leituras e explorações acadêmico-teóricas.

O percurso metodológico que segui para alcançar tais objetivos foi simples. Em

primeiro lugar, para que fosse possível atingir um entendimento de como e por que as

narrativas de Carlos Ribeiro se inserem no contexto contemporâneo, procurei, antes,

entender o que caracteriza tal contexto, que tem, como já pontuei, seu período histórico

especificado pelo signo da pós-modernidade. Isso se deu através da leitura e da

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interpretação de variados textos teóricos que analisam os contextos moderno e pós-

moderno.

Em seguida, tornou-se fator importante para a compreensão das escolhas

estilísticas feitas por Carlos Ribeiro deter-me no estudo e na análise dos elementos e

mecanismos da narrativa, e das transformações no desenvolvimento do romance. Nesse

sentido, foram imprescindíveis tanto a percepção que alguns teóricos têm sobre a

importância da narrativa para a nossa cultura quanto o entendimento que oferecem

acerca de suas estruturas e de seus elementos constitutivos.

Também foi pertinente, para a minha pesquisa, observar as mudanças sofridas

no ponto de vista do narrador dentro da história ao longo do tempo e, sobretudo, no tipo

de protagonista presente nas narrativas épicas, modernas e atuais. Para empreender tal

percurso, convoquei vozes das mais diversas áreas e contextos como as de Aristóteles,

Maria Lúcia Aragão, Antonia Torreão Herreira, Vargas Llosa, Cláudio Magris, Tzvetan

Todorov, Gilles Deleuze, além de algumas outras.

Antes, porém, de me deter nas questões específicas do texto narrativo, tive que

observar o caminho percorrido pelas teorias acerca dos gêneros literários, sobretudo o

épico. Isso sem perder de vista uma discussão analítica sobre o herói épico tradicional, o

anti-herói moderno e o herói que emerge das obras de Carlos Ribeiro.

Para demonstrar como e por que a narrativa de Carlos Ribeiro se insere no

contexto da prosa pós-moderna, este trabalho está dividido em três capítulos.

O primeiro se concentra em examinar o que caracteriza esse mesmo contexto,

chamado por muitos estudiosos de pós-moderno. Para tanto, percorro o caminho teórico

das questões que particularizaram a modernidade e das que a diferenciam da época

presente. Na intenção de fundamentar a discussão, ainda que brevemente, e na tentativa

de explicar a escolha didática e metodológica de adotar o termo pós-modernidade para

me referir à nossa contemporaneidade, em oposição à modernidade do século passado,

foram convocadas algumas vozes críticas e teóricas, que, ultrapassando suas distintas

áreas de estudo, enriquecem a área comum das Humanidades. Comparecem ao debate

nomes como o de Anthony Giddens, Michel Foucault, Marshall Berman, Octavio Paz,

Fredric Jameson e Zigmunt Bauman, dentre outros.

No segundo capítulo, passo à análise de dois romances de Carlos Ribeiro,

previamente escolhidos. São eles: Lunaris, publicado em 2007, e Abismo, publicado em

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2004. Conforme o já pontuado, as análises seguem na direção de tentar identificar quais

são as características da narrativa pós-moderna, de entender a partir de que aspectos ela

narra e de saber quais representações do homem e do mundo pós-modernos Ribeiro

imprime com sua escrita. Tais representações foram analisadas sob dois aspectos

conceituais que parecem compor as engrenagens da narrativa de Ribeiro: o simulacro e

o quixotismo, sendo esse último elemento explanado no terceiro capítulo.

Nesse último capítulo, analiso como o quixotismo, uma forma de

comportamento ficcional, aparece nos romances de Ribeiro e a aproxima de uma

espécie de estatuto literário fundado por Miguel de Cervantes no século XVII e

imortalizado pelas ações do cavaleiro que inexiste: Dom Quixote da Mancha. Para isso,

estive apoiada nos estudos interpretativos de Gustavo Bernardo, Mercedes Fariña, Erich

Auerbach e Miguel Filipe Mochila. Essa aproximação entre as duas perspectivas

permite leituras que nos levam a muitas outras indagações e a algumas sugestivas

hipóteses de respostas. Elas, as insistentes indagações e as possíveis respostas, irão

aparecendo no decorrer do trabalho.

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1 ENTÃO, CHEGAMOS À PÓS-MODERNIDADE. O QUE SE GANHA E O

QUE SE PERDE?

Tanta coisa a fazer. Vida tão curta.

Os olhos, a correr além das portas,

dilatam-se em vitórias e derrotas,

na visão de que o tempo aposta contra.

Luís Antonio Cajazeira Ramos

“Lá estava, portanto, Alberto, metido numa rua qualquer com as mãos no bolso

do casaco. Percebia que só lhe restava a memória e que, na verdade, ele nada mais era

do que pura imaginação. Lembrava, claro, que tinha vivido isto e aquilo, que tinha visto

isto e aquilo, mas tudo o que visualizava não era a realidade em si, e sim a imagem que

construíra dela. Era prisioneiro de uma ilusão. Era ele próprio, uma ilusão.” (RIBEIRO,

2007, p. 26). Essas são as palavras que compõem o emblemático parágrafo que encerra

o capítulo “Paradoxo insolúvel” do romance Lunaris (2007), de Carlos Ribeiro. À

possível pergunta “emblemático do quê?”, quero arriscar como resposta que esse trecho

é o emblema de um dos principais motivos que atravessam o livro: sua

contemporaneidade. E embora toda obra de arte carregue, mesmo que a contrapelo, as

marcas de seu contexto natal, Lunaris nasce como um parêntese, um espaço; como uma

tentativa de interpretar, discutir e mesmo encenar os significados de ser pós-moderno.

A modernidade do século XX presenciou muitos desabamentos simbólicos e os

indivíduos nela inseridos experimentaram uma insegurança sem precedentes na história

da trajetória humana. Vendo tudo que julgavam sólido se desmanchar no ar, eles (nós)

adquiriram (adquirimos) o sentimento de sobrevivência que, no transcorrer alucinado do

tempo, se transformou em padrão de existência. Herdamos, daquela época, a sensação

de deslocamento que os exilados e estrangeiros carregam consigo.

Parece, então, que inevitavelmente começarei a falar sobre as perdas a que o

tempo presente nos expõe. Contudo, antes de avançar nessa direção, o fato de eu ter

mencionado os termos contemporaneidade, modernidade e pós-moderno aponta para a

necessidade de, se não definir, ao menos comentar e delimitar os contextos sociais,

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culturais e históricos que se têm chamado moderno e pós-moderno, seguindo as pistas

teóricas que destacam as características das várias modernidades e pós-modernidades,

ou ainda de vários modernismos e pós-modernismos.

É importante salientar que não há a intenção de se fazer deste capítulo um

inventário histórico, até mesmo porque não se pode perder de vista que os

acontecimentos se sobrepõem e se suplementam, sem se isolarem em uma linearidade

perfeita. Gostaria, porém, de apontar aqui algumas questões que insistem em nos

colocar num lugar distanciado demais dos arroubos modernistas para nos dizermos

modernos, e confusos demais para nos definirmos com segurança.

1.1 Das (des)construções ontológicas da modernidade – uma viagem para o

presente

Iniciei o capítulo com uma transcrição do romance Lunaris, de Carlos Ribeiro

como um exemplo representativo desta contemporaneidade, cuja vivência, muitas vezes,

é sentida com tanta estranheza que, assim como o personagem do referido livro, não

raramente temos a sensação de que tudo e todos não passam de pura ilusão, inclusive a

consciência que pensamos ter em relação a nós mesmos. E essa sensação parece fazer

parte de um estado mais ou menos permanente, o suficiente para confundir os limites

daquilo que aprendemos a definir como realidade e como ficção.

Aliás, a própria definição de limite tem causado desconfiança e carece, cada

vez mais, de ser problematizada, já que essa noção estava estritamente ligada à ideia

tradicional de espaço e este, por sua vez, à ideia tradicional de tempo, conforme

discutirei adiante. Mas, apesar de as demandas impostas pelo agora não poderem se

agarrar a qualquer experiência precedente, nem tampouco a qualquer lembrança do

passado, as feições ainda disformes deste contexto foram esculpidas há mais de um

século, no que se convencionou chamar modernidade. Afinal, como escreveu Fernando

Pessoa (apud MOISÉS, 2007, p. 42), “A novidade, em si mesma, nada significa, se não

houver nela relação com o que a precedeu”.

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Assim, antes de problematizar o que optei chamar de pós-modernidade,

convém explicitar brevemente o que estou concebendo como modernidade. Sabemos

que o termo modernidade, num sentido muito geral, tem sido usado para referir-se às

instituições e às ordens comportamentais que surgiram após o feudalismo e que

propiciaram uma série de invenções e apropriações tecnológicas, as quais, dentre outras

coisas, permitiram que os indivíduos da época conseguissem se deslocar para pontos

consideravelmente distantes e aumentassem os territórios sob sua chancela. Mas, aqui,

pode-se entender modernidade como fenômeno social, cultural, econômico e histórico,

cujos impactos se tornaram globais.

O fenômeno da modernidade do século XX e seus aspectos mais relevantes, ao

menos os político-econômicos, foram destacados pela síntese que Anthony Giddens faz

em seu Modernidade e identidade. Observar um trecho de sua análise pode nos dar um

alcance satisfatório do que marcou esse período:

A modernidade pode ser entendida como aproximadamente equivalente ao mundo industrializado desde que se reconheça que o industrialismo não é sua única dimensão institucional. Ele se refere às relações sociais implicadas no uso generalizado da força material e do maquinário nos processos de produção. Como tal, é um dos eixos institucionais da modernidade. Uma segunda dimensão é o capitalismo, sistema da produção de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilização da força de trabalho. Cada uma dessas organizações pode ser analiticamente distinguida das instituições de vigilância, base do crescimento maciço da força organizacional associado com o surgimento da vida social moderna. A vigilância se refere ao controle e à supervisão de populações submissas, assuma esse controle a forma de supervisão visível, no sentido de Foucault, ou do uso da informação para coordenar atividades sociais. Essa dimensão, por sua vez, pode ser separada do controle dos meios de violência no contexto da industrialização da guerra. A modernidade inaugura uma era de guerra total em que a capacidade destrutiva potencial dos armamentos, assinalada acima de tudo pela existência de armas nucleares, tornou-se enorme. (GIDDENS, 2002, p. 21, destaques do autor).

Decerto, a tecnologia usada para o aquecimento do mercado na produção de

bens de consumo e para o aumento do poder bélico, de modo tão surpreendente como

nos foi atestado pelas mudanças provocadas pela Segunda Guerra e por tudo que foi

construído e destruído depois dela, bem como a facilidade de “vigiar e punir”, conforme

escreveu Michel Foucault (1975), são fatos que modificaram os sujeitos sociais e as

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sociedades, entendidas, desde então, sob a definição política de Estados-Nação. Essas

são questões que também atingiram, em cheio e profundamente, a subjetividade do

indivíduo. Não só porque o mundo habitado, que tinha antes alguma familiaridade,

perdeu totalmente essa característica, mas porque as definições que nos sustentavam

esfacelaram-se como um pedaço de espelho que cai no chão. Viver na modernidade

tornou-se uma aventura cuja finalidade era se preparar para um futuro maravilhoso,

inesperado, e que exigia não menos do que um mundo e um homem (o humano) novos.

Presenciar essa aventura era, a um só tempo, espetacular e aterrorizante em muitos

níveis.

E assim como Giddens nos oferece um panorama do quadro histórico, político

e econômico dessa modernidade que nos interessa, Marshall Berman nos exibe um o

quadro desse contexto histórico, cuja perspectiva social torna mais vibrantes as cores

desse quadro. Berman, testemunha da modernidade, descreve que ser moderno é:

[...] encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor – mas, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de universo no qual, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 2007, p. 24).

As guerras, as revoluções e a emergência do capitalismo fizeram o mundo

romper com as concepções que, até então, lhe davam sustentação e o mantinham

organizado, com suas fronteiras bem demarcadas, com sua ideia de história como a

grande narrativa fiel dos tempos e com suas verdades absolutas. Estas começaram a

incomodar pela irrealidade que passaram a demonstrar quando comparadas com os

acontecimentos. O passado, com indivíduos bem definidos, suas personalidades e suas

índoles boas ou más, parecia ficar preso em um lugar mítico e absurdo porque homens e

mulheres modernos tomaram conhecimento de que eles mesmos precisavam formatar

suas identidades em um tempo acelerado demais para se adaptar a qualquer estilo de

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vida, ao mesmo tempo em que lhes era negada a possibilidade de voltar a experimentar

a unidade de antes.

Assim, as palavras de Berman citadas na página anterior parecem valiosas no

sentido de descreverem o paradoxo do significado de ser moderno: estar unido a outros

pela sensação de desunião, de abandono, de estranhamento e, no entanto, continuar só,

em meio à multidão, como vislumbrou Charles Baudelaire no final do século XIX em

suas cenas urbanas. Portanto, se a ordem do passado era inadequada e o presente era

desordem, em que tudo desabava muito rápido como em um grande projeto de

demolição, a única saída parecia ser apostar no futuro, num futuro no qual a novidade

não cessasse de chegar, como explica Zygmunt Bauman (1998, p. 20): “Pode-se

descrever a modernidade como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação da

ordem depende do desmantelamento da ordem tradicional, herdada e recebida; em que

ser significa um novo começo permanente” (grifos do autor).

As expressões artísticas resultantes dessa explosiva vivência são conhecidas.

São muitas e várias, é bem verdade. Mas a modernidade do século XX é vista como

divisor histórico e artístico e, por isso mesmo, a arte produzida nesse período bem como

os comportamentos e as percepções de mundo foram divulgados e sentidos em todas as

vertentes da vida social, produzindo os tantos modernismos.

As vanguardas europeias abriram um caminho realmente sem precedentes.

Make it New! 1 tornou-se a ordem dos tempos, em todos os campos da arte. Na

literatura, é difícil definir um único perfil da arte modernista, mas os seus principais

alimentos se pautavam no não familiar, no espanto e na estranheza, tendo como norte a

vontade de ruptura.

O modernismo ou, como já escrevi, os modernismos, por se referirem aos

comportamentos culturais e sociais da modernidade, não podem ser pensados apenas

como formas de ideologias, pois isso os limitaria. Contudo, eles nasceram e sustentaram

várias delas, e elas, por sua vez, sustentaram visões teóricas que não só modificaram o

estatuto das áreas que hoje formam as Ciências Humanas, mas transfiguraram as vestes

da epistemologia ocidental. Antes, porém, de comentar alguns abalos teóricos

fundadores da modernidade, ascendentes da nossa contemporaneidade, lembro que, em

meio a tantas (des)construções, preciso justificar teoricamente o que chamo de pós- 1 Slogan lançado e usado pelo escritor Ezra Pound nos anos de 1930 como símbolo e essência das artes modernas. A ese respeito, pode-se consultar Malcolm Bradbury (1989).

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modernidade e, eventualmente, de pós-modernismo e, sobretudo, porque classifico a

escrita de Carlos Ribeiro como pós-moderna.

Começo com uma afirmação que já se faz óbvia pelo adiantado do tempo e tem

a ver com a análise que Octávio Paz faz do momento modernista. É que a crise que foi

necessária às primeiras mudanças históricas e – para nós o mais importante – artísticas

tornou-se um fator de permanência, estabelecendo-se, assim, o que Paz chamou de “a

tradição da ruptura”, que, segundo ele, “é uma tradição que nega a si mesma e assim se

perpetua” (PAZ, 1990, p. 51). A visão de Paz dialoga perfeitamente com a visão de

Bauman, que, em seu livro intitulado oportunamente de O mal-estar da pós-

modernidade, afirma:

O fornecimento de fronteiras para a transgressão e de modelos para a violação era tudo menos infinito. [...] O limite das artes vivido como uma permanente revolução foi a autodestruição. Chegou um momento em que não havia nenhum lugar para onde ir. O fim, por conseguinte, veio tanto de fora como de dentro da arte de vanguarda. O universo mundano se recusou a ser mantido à distância. Mas o fornecimento de locais para sempre novos refúgios de um mundo estava finalmente esgotado. (BAUMAN, 1998, p. 126).

O desejo de transgressão e novidade parece ter chegado a um limite, tanto para

a arte quanto para a vida, quando a modernidade não tinha mais padrões fixos para

transformar. A linguagem foi testada no grau máximo de significação, em sua

potencialidade de símbolo. Através dela, já se havia codificado e decodificado o mundo.

E, como escreveu Giddens (2002, p. 19), “o termo crise – não como mera interrupção,

mas como um estado de coisas mais ou menos permanente – é particularmente

adequado”. O mundo tornou-se estranhamente dessacralizado nos mais diversos

sentidos, sobretudo nos seus discursos essencialistas.

Talvez, não pudesse mesmo ser diferente. Depois de alguns passos ontológicos,

como o que Foucault deu ao reler e retomar a decisão de fazer uma genealogia do

sujeito, começada por Friedrich Nietzsche, pretendendo revisar e denunciar as origens

da natureza humana, com a história de sua moral, ética, crenças e locus social, os altos

edifícios da episteme ocidental sofreram abalos irreversíveis, muitos até indo ao chão. O

ser que aprendeu a pensar-se uno, composto de uma essência que era um misterioso elo

entre ele e uma natureza transcendental, viu-se esvaziado de qualquer fio condutor de

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unidade. Ele (o humano) descobriu, examinando antigos documentos, que a história de

sua estabilidade coincidia com a invenção da própria história e a linguagem passou a ser

sua única origem possível.

Sendo a linguagem representação por excelência, não como o realismo do

século XIX propôs, i.e. como um reflexo realista do mundo, mas no sentido de

recriação, não é difícil perceber o sentido que reside nas impressões de Alberto,

personagem de Lunaris. Se nosso sentido é construído pelo discurso intrinsecamente

precário, vulnerável e criativo, somos, pelo menos em termos ontológicos, irmanados a

Alberto, que se descobriu “pura ilusão”.

Obviamente a denúncia de que o sujeito é criado no e pelo discurso, e de que

suas posições perante o mundo dependem de relações e disputas de poder, retirou do

centro teórico a ideia de total agência humana, ou seja, de uma prática plenamente

consciente e livre que o sujeito cartesiano aprendeu a cultivar. O poder individual de ser

o que sua interioridade lhe permitia ficou para trás com uma época de certa inocência.

Todo discurso passou a ser passível de desconfiança porque todas as grandes narrativas

que nos reconfortavam, com todos os seus mitos e lugares fundadores, estavam

emergindo enquanto tal. As cortinas do palco onde tinham sido encenadas as grandes

peças da humanidade eram, enfim, fechadas, os bastidores problematizados e as

máscaras evidenciadas.

O projeto genealógico propunha, assim, a historicização da própria história,

como história das origens forjadas, privilegiando o que Foucault (2009a, p. 28) chamou

de “História efetiva”. Podemos atestar esses intentos nas palavras do próprio autor:

Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar as singularidades dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde ninguém os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde elas desempenharam papéis distintos; até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram. (FOUCAULT, 2009a, p. 15).

E aqui, de maneira ainda mais didática, ele completa:

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Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possiblidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo. (FOUCAULT, 2009a, p. 17).

Ao lado de outras emergências teóricas, o passo filosófico que colocou a visão

metafísica na berlinda histórica causou descentramentos importantes que delinearam os

caminhos da pós-modernidade. Tudo que parecia conceitualmente fixo vagava agora

num espaço totalmente sem origem. A História tradicional perdeu sua aura de

testemunha fiel dos tempos; o sujeito descobriu-se em pleno processo de reformulação,

completamente cindido; a própria linguagem emergiu como metáfora do pensamento e

não como o pensamento em si. Perdemos, então, o que sempre manteve a filosofia

ocidental protegida “dos acasos dos começos” (FOUCAULT, 2009a, p. 19): a austera

égide da verdade. Perdemos, enfim, a crença inocente no centro.

Aliás, de lá até aqui, foram muitas as crenças abandonadas. Quem estaria com

a verdade se, como desabafou o poeta Antonio Brasileiro (2008, p. 13),“A verdade é

uma só: são muitas. E estamos todos certos. E sem rumo.”? De onde estamos,

conseguimos ver, com alguma clareza, todos os ideais a que as propostas

desconstrutivistas modernas se opunham e tudo que foi ficando pelo caminho. Contudo,

inseridos como estamos na confusão desta contemporaneidade, já não se pode (ou,

talvez seja mais cauteloso dizer, já não se deve) marcar com certeza nenhuma oposição

e nenhuma fronteira. Parece, inclusive, que todas as propostas dos Estudos Culturais, e

mais amplamente da área das Ciências Humanas, avançam justamente no sentido

contrário.

A chamada pós-modernidade nasce já sob esse signo inespecífico que apenas a

empurra para depois dos tempos modernos. Mas quando e por que o termo modernidade

deixou de representar o nosso contexto contemporâneo? O que a diferencia do que

chamo de pós-modernidade e o que a caracteriza?

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1.2 Da pós-modernidade em formação – discursos complementares e

contraditórios

Antes de mais nada, convém esclarecer que adoto os termos pós-modernidade

e pós-modernismo consciente de toda a precariedade conceitual que os envolve. E não

poderia ser diferente. Estamos numa época em que conceituar não mais significa definir

com certeza, mas, antes, significa tentar apreender provisoriamente algum fenômeno,

que certamente irá desvanecer e se transformar logo em seguida.

Aliás, o próprio termo modernidade, que já nos parece familiar, pode se perder

no tornado semântico do qual nenhum signo escapa. Por isso, ao escrever sobre a poesia

no final do século XX, Paz reflete criticamente a respeito da dificuldade e da obrigação

de nomear períodos temporais da seguinte forma:

A poesia deste fim de século é, ao mesmo tempo, a herdeira dos movimentos poéticos da modernidade, do romantismo às vanguardas, e sua negação. Tampouco é claro o que se entende por modernidade. A primeira dificuldade que enfrentamos é o caráter alusivo e cambiante da palavra: o moderno é, por natureza, transitório e o contemporâneo é uma qualidade que desvanece logo que o nomeamos. Há tantas modernidades e antiguidades como épocas e sociedades. (PAZ, 1990, p. 31) 2.

Mais à frente, e ainda mais ácido, o autor ironiza no final do século passado: “Os

homens nunca souberam o nome do tempo em que vivem e nós não somos a exceção a

essa regra universal” (PAZ, 1990, p. 51).

Justamente por isso, pode-se notar e anotar uma variedade considerável de

termos que vemos emergir para tentar dar conta da nossa contemporaneidade. Mas essa

dificuldade não é injustificável. Se hoje podemos analisar alguns períodos históricos,

nomeá-los, citar suas características, é porque os examinamos de fora, afastados, como

um cientista que olha através da lente do microscópio uma forma de vida. Com certeza,

2 Essa tradução e todas as outras feitas a partir de citações são de minha autoria. Cf. o trecho original: La poesía de este fin de siglo es, al mismo tiempo, la heredera de los movimientos poéticos de la modernidad, del romanticismo a las vanguardias, y su negación. Tampoco es claro lo que se entiende por “moderno”. La primera dificultad a que nos enfrentamos es al carácter elusivo y cambiante de la palabra: lo moderno es por naturaleza transitorio y lo contemporáneo es una cualidad que se desvanece apenas la nombramos. Hay tantas modernidades y antigüedades como épocas y sociedades.

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as pessoas que viveram na época clássica não sabiam determinar o que as fazia

clássicas, pois vivenciavam diariamente acontecimentos não previstos. Dessa forma,

também nós estamos falando de uma época que está em pleno acontecer e que tem

como principal padrão a falta de padrões. E é também por causa disso que alguns

teóricos adotam o termo pós-modernidade para classificar o nosso tempo e o termo pós-

modernismo para classificar toda forma de cultura criada em nosso tempo.

Ainda assim, não podemos negar o caráter fluido dessas palavras. Pós-

modernidade, conforme comentei anteriormente, significa, de maneira geral, estar

depois da modernidade, e isso não diz muito a respeito de onde exatamente estamos.

Por essa razão, muitos são os estudiosos que se opõem a tais termos. Alguns até, tendo-

os usado em algumas ocasiões, os abandonam posteriormente. Para elucidar a situação,

posso citar alguns nomes pelos quais eles têm chamado a época atual: segunda

modernidade (BECK, 1999 apud BAUMAN, 2001, p. 12); modernidade alta ou alta

modernidade ou modernidade tardia (GIDDENS, 2002). Pós-modernidade é utilizado

por Bauman em 1998 e, em 2000, ele escreve sobre a modernidade líquida (BAUMAN,

2001). O mesmo Bauman (2001) ainda usa outros termos, como sobremodernidade

(BAUMAN, 2001, p. 17). Fredric Jameson, um dos mais obstinados críticos da pós-

modernidade, intitula seu livro de 2002 com o termo modernidade singular

(JAMESON, 2005), no qual propõe um ensaio sobre a ontologia do presente, aceitando

também os termos modernidade radicalizada e modernidade incompleta (JAMESON,

2005, p. 21).

Frente a esses exemplos conceituais, todos eles defendidos coerentemente por

seus respectivos autores, lembro-me de outra voz teórica, a de Linda Hutcheon (1991, p.

19), que, ao avaliar as tentativas, muitas vezes frustradas, de alguns críticos de

analisarem o pós-modernismo, afirma: “Entre todos os termos que circulam na teoria

atual e nos textos contemporâneos sobre artes, o pós-modernismo deve ser o mais

sobredefinido e o mais subdefinido”. Não há como discordar dessa visão. Porém, a

própria Hutcheon não consegue escapar à armadilha conceitual do termo quando

escreve: “Como atividade cultural que pode ser detectada na maioria das formas de arte

e em muitas correntes de pensamento atuais, aquilo que quero chamar de pós-

modernismo é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e

inevitavelmente político” (HUTCHEON, 1991, p. 20). Hutcheon acaba ficando entre o

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geral e o vago, talvez porque esse seja o espaço que a contemporaneidade e seus

desdobramentos podem nos conceder.

E, justo por habitar esse espaço perturbador por ser excessivamente aberto (ao

menos aparentemente), espaço em que caminhamos todos como a andar num labirinto

feito de um emaranhado de fios que a todo o tempo se desfazem e se emendam em

outros pontos, opto por utilizar, nesta análise, os movediços termos pós-modernidade,

pós-modernismo e o que daí possa derivar, aceitando todas as qualificações que eles

possam arrastar na sua esteira semântica. Parecem acompanhar esses termos outros

como ambivalência, fluidez, liquidez, etc. Mas, talvez sejam essas palavras que nos

deem já as definições para estes tempos. Além do mais, querer fechar uma concepção

que apreenda todo o fenômeno que proponho discutir seria ir contra a natureza desse

mesmo fenômeno.

Fora todos esses motivos, ainda faço uma ressalva que, se não for de cunho

teórico, ao menos será de cunho logístico. Trata-se da profusão de discursos

contraditórios que se pode observar nos textos que versam sobre a contemporaneidade,

pois mesmo os estudiosos que se esforçam para não utilizar o termo pós-modernidade

acabam concordando que, há muito, não podemos medir as nossas sociedades e as

nossas consciências individuais com os valores modernistas. Essa conclusão os faz

pensar em uma variedade notável de adjetivos e outros modificadores dos quais estão

lançando mão para acrescentar algo, para marcar com a diferença a modernidade, da

qual não querem se desfazer. Todos os autores citados anteriormente se engajam nesse

paradoxo. Como exemplo máximo, transcrevo as palavras usadas por Jameson em seu

livro ensaístico no qual começa ironizando as conclusões a que a nova face da História e

a Sociologia têm chegado:

Assim, o propalado triunfo ocidental tem sido persistentemente comemorado, em termos explicitamente pós-modernos, como a vitória dos velhos valores modernistas, utópicos e produtivistas, tais como o “fim” da ideologia e também da história, e a doxa nominalista do específico e da diferença, quer estejam essas coisas articuladas em linguagens de esquerda ou de direita (na verdade, a renúncia a qualquer distinção entre esquerda e direita é muitas vezes a peça central dessa retórica pós-moderna). (JAMESON, 2005, p. 15, destaques do autor).

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Escreve, então, para arrematar esse pensamento:

O que temos aqui é antes a recunhagem do moderno, sua nova embalagem, sua produção em grandes quantidades para novas vendas no mercado intelectual, desde os maiores nomes da sociologia até as discussões domésticas sobre todas as ciências sociais (e também algumas artes). [...] Mesmo que desconfiemos da periodização em si, o conceito de modernidade, que traça a sua linhagem desde os pais fundadores da sociologia – e com o qual na verdade a própria sociologia confina, como campo de estudo –, parece suficientemente respeitável e acadêmico. (JAMESON, 2005, p. 15-16).

Observe-se que, mesmo tendo enumerado questões e comportamentos teóricos

que só se propagaram bem depois da segunda metade do século XX, como, por

exemplo, o fim da historiografia tradicional e os borrões entre ideologias de partidos e

mentalidades políticas, frutos do radicalismo político do modernismo, Jameson opta por

permanecer na “modernidade” por esse ser um termo “respeitável e acadêmico”. Esse

me parece um argumento tão frágil como têm sido todos os nossos argumentos na pós-

modernidade. Mais que isso, em seu discurso que tenta desbancar a ideia de fazermos

parte de um outro momento social, histórico e, sobretudo, econômico e político, o autor

acaba por reforçar essa ideia em sua detalhada análise do presente. Parece pertinente

mostrar um pouco mais do seu estudo em que a contradição permanece. Jameson (2005,

p. 19-20) coloca o seguinte:

Isso de nada adiantou na polêmica para a dinâmica política da palavra “modernidade”, que tem sido revivida pelo mundo inteiro, sistematicamente empregada naquele sentido particular. [...] O que se quer dizer, de modo geral, na polêmica contra o socialismo e o marxismo é que essas posições estão fora de moda por estarem ainda comprometidas com o paradigma básico do modernismo. Mas modernismo entendido aqui como algum campo já ultrapassado de planejamento de cima para baixo, seja ele de governo, de economia ou de estética, um lugar de poder centralizado, em profunda discordância com os valores da descentralização e o aspecto aleatório característico de qualquer novo sistema pós-moderno. [...] É o próprio modernismo que não é moderno; a “modernidade”, entretanto – no recém-aprovado sentido positivo –, é boa porque é pós-moderna. Então, porque não usar essa palavra no lugar da outra? (destaques do autor).

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O autor, em suma, usa a palavra modernidade não para se referir à

modernidade que conhecemos, cujas principais ideologias políticas e sociais se

baseavam no socialismo e no marxismo, mas para ir a favor ou contra eles. Jameson

propõe uma modernidade outra, cujos valores são descentralizados e cujo aspecto

característico é aleatório. Ele propõe, em resumo, uma modernidade pós-moderna. Para

tanto, apoia-se nas palavras de Giddens que tentam explicar a contemporaneidade, mas

que não ficam menos vagas e confusas. A proposta de Giddens (apud JAMESON, 2005,

p. 20-21) é esta:

Em vez de penetrarmos num período de pós-modernidade, vamos na direção de um período no qual as consequências da modernidade se tornam mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Afirmo que, para além da modernidade, poderemos conceber os contornos de uma nova e diversa ordem, que é a “pós-moderna”; mas isso é completamente distinto do que no momento presente está sendo chamado de pós-modernidade (destaque do autor).

Não me parece haver razão suficientemente coerente para se continuar usando o

termo modernidade, correndo-se o risco de confundir o leitor ao fazê-lo. E se os termos

pós-modernidade e pós-modernismo são, conforme afirmo, inespecíficos, utilizar

modernidade para falar sobre o período atual não resolve o problema, como bem o

vimos por meio dos autores citados.

Entretanto, querelas conceituais à parte, quero ressaltar que os termos utilizados

pelos autores que cito não invalidam suas análises sobre o nosso contexto. Pelo

contrário, elas me são de grande valia para pinçar as principais características destes

tempos embaçados. Inclusive, do que percebo acerca dos discursos teóricos contrários à

pós-modernidade, eles são o resultado de um equívoco significativo: a maior parte deles

percebe a pós-modernidade como um período totalmente diverso da modernidade, uma

época que, por ser outra, já não guarda em si nenhum aspecto daquele contexto.

Mas, isso está longe de proceder. No que diz respeito a este trabalho, a pós-

modernidade se refere à nossa contemporaneidade, que não é a modernidade do século

passado, mas que dela deriva e que potencializa ou, como disse Giddens, radicaliza seus

efeitos. Efeitos que tomaram proporções insuspeitadas e cujo final é impossível prever.

É dessa perspectiva que adoto a terminologia.

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Ademais, posso dizer que adoto, neste escrito, a visão teórica de Terry

Eagleton, que não delimita esta contemporaneidade, mas explica os motivos que a

afastam da modernidade e do modernismo. Ele enxerga o atual contexto e sua produção

cultural da seguinte forma:

A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura, enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico. [...] Uma nova forma de capitalismo, para um mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural. (EAGLETON, 1998, p. 7).

E como aqui me proponho a analisar parte dessa cultura através da narrativa

literária, penso que vale a pena citar ainda um trecho em que Eagleton classifica a arte

pós-moderna:

Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infecunda, autorreflexiva, divertida, caudatória, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura elitista e a cultura popular, bem como entre a arte e a experiência cotidiana (EAGLETON, 1998, p. 1, grifos do autor).

É claro que Eagleton está se referindo à arte de maneira geral e que essas

características podem ser mais ou menos visíveis, dependendo da obra em questão.

Porém, muitas delas podem ser notadas na escrita de Carlos Ribeiro que analisarei mais

adiante. Dito isso, poderemos nos concentrar nas duas primeiras questões que levanto

no final da seção anterior: quando e por que o termo modernidade teria deixado de

representar o nosso contexto atual.

Creio que, a partir do que já foi exposto, fica claro que muitos aspectos da

modernidade foram potencializados por uma série de causas e que outros surgiram

através dessa potencialização. São modificações que transformaram os rumos históricos,

sociais e culturais do mundo e, por consequência, dos indivíduos. Eis, então, por que

não convém, metodologicamente, utilizar a palavra modernidade para tratar dessas

mudanças. Contudo, é muito mais complexo datar as mudanças que nos trouxeram até

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aqui, estipular quando a novidade perseguida pelo modernismo deixou de significar

realmente algo novo.

A dificuldade de datar a era pós-moderna está principalmente no fato de que os

acontecimentos não ocorreram simultaneamente nos vários locais e, quando ocorreram,

não foram sentidos de forma homogênea pelas sociedades, comunidades e indivíduos.

Por mais abrangente que seja o fenômeno da globalização, as imagens transmitidas por

ele têm significados e consequências diferentes, de acordo com as realidades locais a

que se mesclam.

Assim, o que parece ser uma consciência muito recente aparece, em alguns

lugares, desde logo após a Segunda Guerra. Malcolm Bradbury vislumbra a mudança de

horizonte a partir de 1945, com a morte de algumas figuras que representavam o

exponencial da literatura modernista. Ele nos diz:

A guerra que vinha se anunciando explodiu [...], e Joyce mudou-se para a Suíça. Morreu logo depois, e as mortes de outros escritores – Yeats, Freud, Virginia Woolf – assinalaram o fim de uma era. A nova geração de autores que surgiu após a guerra sentia que os tempos haviam mudado profundamente e que a tarefa que lhe cabia realizar agora era outra. O movimento que se pretendia ser para sempre moderno parecia terminado; a vanguarda não parecia estar à vanguarda de coisa alguma; e um novo termo, pós-moderno, passou a ser usado para referir-se a uma nova conjuntura artística e social. (BRADBURY, 1989, p. 34, grifo do autor).

Contudo, é a partir da década de 1950 que o avanço tecnológico nos leva para o

que muitos autores chamam de idade pós-industrial, como é o caso do filósofo Jean-

François Lyotard, que, em seu livro A condição pós-moderna, analisa a situação do

saber nas sociedades contemporâneas. Ele escreve: “Nossa hipótese de trabalho é a de

que o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade

dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna. Essa passagem começou

desde pelo menos o final dos anos 50” (LYOTARD, 2008, p. 3).

No que diz respeito aos passos artísticos, em meados da década de 1970, Paz se

mostra assertivo ao proclamar:

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Somos hoje testemunhas de outra mutação: a arte moderna começa a perder seus poderes de negação. Há anos, suas negações são repetições rituais: a rebeldia tornou-se procedimento; a crítica, retórica; a transgressão, cerimônia. A negação deixou de ser criadora. Não digo que vivemos o fim da arte: vivemos o fim da ideia de arte moderna. (PAZ, 1974, p. 195). 3

Italo Moriconi se baseia nos movimentos poéticos para analisar o final do

modernismo no Brasil, o qual, para ele, começa a partir da revolução Pop e do

movimento concretista nas décadas de 1950 e 1960. Nos anos 70, a poesia marginal e a

contracultura servem de movimentos de transição, já delineando a literatura pós-

moderna, sendo, para o autor, a década de 1980 o marco que nos desliga dos motivos

modernistas. Segundo Moriconi (2002, p. 124-125):

O fim do século XX é pós-canônico, pós-vanguardista, pós- revolucionário. Marginal e pós-marginal, pós-moderno e pós-modernista. [...] O fim do século é pra lá de depois. É pós isso é pós aquilo. O debate poético nos anos 80 e 90 foi “pós-tudo”. Pós-tudo: fórmula engenhosa usada num poema publicado em 1984, de autoria de Augusto de Campos. Definição do fenômeno: impressão generalizada de que tudo já tinha acontecido, de que nada mais de novo havia a fazer ou dizer depois de um século inteiro de experimentações. [...] O que escrever, como escrever, depois do cânone, depois do pop, depois das vanguardas. Estava a pergunta no ar.

O pensamento de Paz e as palavras de Moriconi coincidem quando os dois

percebem as negações e as rupturas que movimentaram a primeira metade do século

XX, transformadas naquilo que o modernismo queria combater: uma espécie de norma.

Depois que as artes e os estudos culturais na década de 70 já haviam questionado todos

os títulos, rótulos e classificações, como continuar perseguindo o novo? O novo estava

estritamente ligado à ideia de futuro e à recusa do passado. Aliás, se datar a pós-

modernidade é algo complexo, talvez a mudança da percepção temporal que ocorreu no

século passado possa nos ajudar a entender as transições. Se, no chamado período pré-

industrial, o tempo arquetípico era o passado, visto como a idade de ouro da

3 Cf. o trecho original: Hoy somos testigos de otra mutación: el arte moderno comienza a perder sus poderes de negación. Desde hace años sus negaciones son repeticiones rituales: la rebeldía convertida en procedimiento, la crítica en retórica, la trasgresión en ceremonia. La negación ha dejado de ser creadora. No digo que vivimos en fil del arte: vivimos el fin de la idea de arte moderno.

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humanidade, com seus mestres e suas musas habitando a eternidade dos anjos e dos

demônios, na modernidade todos esses valores são desalojados pelo culto ao progresso,

pela espera de um futuro que precisava ser preparado num trabalho de desconstrução de

todas as pontes que nos ligavam ao velho mundo.

O projeto modernista funcionou a todo vapor até quando as concepções

temporais continuaram a separar muito bem o passado, o presente e o futuro, permitindo

que o futuro fosse visto como um El Dorado para o qual a humanidade deveria marchar.

Mas o tempo foi acelerado ao máximo, fazendo com que as fronteiras temporais se

desfizessem, e fazendo com que passado, presente e futuro se misturassem como

substâncias em um catalisador. Por isso, em 1990, Paz (1990, p. 6), descreve tal

sensação dizendo que, na modernidade, “A terra prometida foi o futuro”. Porém,

naquela altura, a história se mostrava outra e, como ele constata, “Hoje o futuro deixou

de ser um ímã e se desvanece a visão de tempo em que se sustentava e que o justificava”

(PAZ, 1990, p. 7).

Torna-se, então, complicado visualizar o passado e o presente como blocos

distintos porque o futuro passou a chegar a todo instante. A perda da noção temporal

como a tínhamos é irremediável. Por causa disso, Bauman já se apressa em justificar, no

prefácio do seu livro, as razões pelas quais qualificou a nossa época de “líquida”.

Porque os líquidos são fluidos e:

Os fluidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam, são filtrados, destilados; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. (BAUMAN, 2001, p. 8, grifos do autor).

Ele completa: “Essas são as razões para considerar fluidez ou liquidez como metáforas

adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas

maneiras, na história da modernidade” (BAUMAN, 2001, p. 9, grifos do autor).

A liquidez da qual fala Bauman parece contaminar tudo, porque a nossa época

se move como um grande rio caudaloso, fluindo não se sabe para onde, pois o

importante é passar, levando em suas águas luminosas tudo o que acabara de trazer.

Assim, a contemporaneidade, nesse fluxo ininterrupto, derrete o próprio tempo.

Exemplifica muito bem esse turbilhão de coisas o uso obsessivo do discurso imagético,

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que passou a bombardear, cada vez mais, as nossas retinas, transformando a vida

ordinária em um espetáculo ininterrupto.

Se, no início do século passado, o capitalismo visava industrializar o mundo,

focando suas energias na produção em massa, agora o ponto de interesse passa a ser o

consumo. A produção em grande escala por meio de mão de obra qualificada e do

domínio tecnológico do maquinário já foi superada. Agora, o controle se volta para a

vida das pessoas, que precisam consumir, abrindo espaço num mercado atulhado de

coisas, cada vez mais descartáveis. E, na verdade, fabricar coisas desejáveis e, ao

mesmo tempo, descartáveis parece ser objetivo a ser alcançado pelas indústrias. A

durabilidade tornou-se uma característica da modernidade passada, quando a garantia da

qualidade e, por conseguinte, da durabilidade de um produto estava atrelada ao preço e à

venda. Mas, em tempos líquidos, podem os sólidos sair ilesos?

O fenômeno da globalização, isto é, da expansão de ideias, comportamentos,

produtos e acontecimentos, através da mídia impressa, falada e eletrônica, teve e tem

inegável papel nesse estado de coisas, ao desmantelar a antiga tradição do local em

detrimento do global. A globalização funda a dialética da presença e da ausência ao

entrelaçar eventos e relações sociais que acontecem a distância com contextos locais,

reorganizando a ideia de realidade, de espaço e das noções de longe e de perto. Giddens

resume o fenômeno da globalização da seguinte forma:

A globalização significa que, em relação às consequências de pelo menos alguns dos mecanismos de desencaixe, ninguém pode “eximir-se” das transformações provocadas pela modernidade: é assim, por exemplo, em relação aos riscos globais de uma guerra nuclear ou de uma catástrofe ecológica. Muitos outros aspectos das instituições modernas, inclusive os que operam em menor escala, afetam as pessoas que vivem em ambientes mais tradicionais, fora das partes mais “desenvolvidas do mundo”. Nesses setores mais desenvolvidos, contudo, a conexão entre local e global está ligada a um intenso conjunto de transformações na natureza da vida cotidiana. (GIDDENS, 2002, p. 27, destaques do autor).

As transformações iniciadas na modernidade e espalhadas na pós-modernidade

criaram a sensação de que estamos presos em um eterno presente, no qual tudo acontece

ao mesmo tempo. A possibilidade de obterem-se informações de qualquer parte do

planeta e de se observar o que acontece ao nosso lado ou em Singapura

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simultaneamente e em tempo real, nos deixa mergulhados numa sensação de constante

vigilância e, paradoxalmente, de isolamento, pois todo tipo de conexão precisa ser

rápida demais para acompanhar tantas mudanças, notícias e descobertas.

Lembro aqui que, em 1967, Guy Debord acha a fórmula para o mundo que

vislumbrava àquela altura. Sua visão é resumida no título de seu mais difundido livro, A

sociedade do espetáculo. Nele, Debord descreve tal mundo desta maneira:

O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espetáculo apresenta é o mundo da mercadoria dominando tudo que é vivido. O mundo da mercadoria é mostrado como ele é, com seu movimento idêntico ao afastamento dos homens entre si, diante do seu produto global. (DEBORD, 2013 [1967], p. 29, grifos do autor).

O espetáculo, é óbvio, quer chamar atenção de indivíduos diferentes para um

mesmo produto ou evento, não apenas a fim de atraí-los para sua “mercadoria global”,

mas também para tentar coordenar as ações de seres humanos fisicamente distantes.

Cria-se, portanto, uma ilusão vertiginosa de que participamos todos do mesmo show

dinâmico, no qual corremos para acompanhar suas inúmeras partes sem

necessariamente sair do lugar. Vivemos um presente que recusa o passado, mas,

sobretudo, que devora o futuro. Daí realidade e ilusão, vivência e expectativa,

dissolverem-se e evaporarem-se em uma mesma nuvem.

A imagem desse presente virtualizado tem sido flagrada e interpretada por

várias formas de arte, como, por exemplo, a literatura, as artes plásticas e as artes

cênicas. Todavia, nenhuma tem se ocupado tanto desse tema como o cinema. As

grandes produções cinematográficas do século passado brincavam com a ficção

científica, imaginando como seríamos no século XXI, cujos futurismo e avanços eram

guardados sob o cabalístico número 2000.

O mais famoso dentre os filmes que navegaram entre a ideia de um mundo

totalmente automatizado e a arte fantástica é 2001 – Uma Odisseia no Espaço (título

original: 2001 – A Space Odyssey), de Stanley Kubrick, lançado em 1968, que liga, por

meio de efeitos visuais, pioneiros em seu tempo, a evolução humana à tecnologia, à

inteligência artificial e à inteligência extraterrestre no futuro do século XXI. O mais

interessante é que, guardados o contexto e o espírito inovador para a época, hoje suas

cenas chegam a nos parecer ingênuas diante das descobertas espaciais recentes e da

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possibilidade que temos de nos “teletransportar” bastando, para isso, clicar um botão do

computador. Assim, perdemos hoje a expectativa do extraordinário, pois, conforme

comenta Paz:

A imprensa, a televisão e a publicidade nos oferecem diariamente imagens do que está passando agora mesmo aqui e acolá, na Patagônia, na Sibéria e no bairro vizinho; as pessoas vivem imersas em um agora que acontece sem cessar e que nos dá a sensação de um movimento contínuo e sem cessar acelerado. Movemo-nos realmente, ou apenas giramos e giramos no mesmo lugar? Ilusão ou realidade, o passado se afasta vertiginosamente e desaparece. Por sua vez, a perda do passado provoca fatalmente a perda do futuro. [...] Crer-se que se vai a todas as partes e não se vai a nenhuma: tem-se perdido o sentido de orientação. [...] Nosso presente é um tempo sem oriente nem norte que o guie, literalmente desorientado. (PAZ, 1990, p. 101).

Estamos presos numa teia ilusória. E o mais curioso é que buscamos por isso

de muitas formas, conscientes ou não. Talvez, a narrativa fílmica que mais represente os

nossos tempos e a nós, seres pós-modernos, seja Matrix, uma megaprodução dos irmãos

Wachowski lançada em 1999. Matrix é uma trilogia cujo eixo temático é o universo

simulado, onde cidadãos do mundo inteiro habitam sem o suspeitar. Todos se

encontram neuralmente adormecidos e ligados a esse universo, que reproduz nossas

cidades, ruas, casas, trabalhos e até nossos relacionamentos, como se tudo fizesse parte

de uma vida real. Contudo, o que está por trás de Matrix é uma terra arrasada. Perceber

e entender Matrix é chegar à sombra do mundo que sonhamos. Por isso, a impactante

frase “Bem-vindo ao deserto do real” nos explode os ouvidos quando dita ao

protagonista, e ele, estando desperto, se desliga da ilusão e descobre Matrix. O universo

por baixo do universo é uma terra estéril, como a descrita no poema A Terra Arrasada

(The Waste Land), escrito por T. S. Eliot em 1922, que arrebata o leitor com suas

imagens da Europa pós-guerra e da aridez da vida moderna.

No filme, porém, existem outras pessoas “despertas”. Umas que são

responsáveis por manter Matrix em perfeito funcionamento e outras que, não estando

autorizadas a terem informações sobre esse mundo, são marginalizadas e perseguidas, e

se empenham em lutar contra o sistema. Daí, qualquer semelhança com a nossa vivência

não é mera coincidência. Viver em um mundo criado por programas de computador e

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bombardeado por imagens de produtos recém-inventados, pessoas desconhecidas e

comportamentos empacotados, ao passo que todas as nossas escolhas são previstas e

vigiadas, nos encarcera num grande reality show.

Mesmo as nossas tarefas diárias estão perpassadas de virtualidade. O ato de ir

ao mercado, por exemplo, pode ser suficiente para se sentir o mal-estar da pós-

modernidade. Além da quantidade e das possibilidades impressionantes de escolhas nas

prateleiras, o que antes era caracteristicamente concreto nas mercadorias oferecidas

agora beira à fantasmagoria de um holograma. É como se a realidade palpável e

material estivesse cedendo lugar à imagem do objeto sem seu conteúdo, à imagem da

vida sem a vivência. E, cada vez mais, nos acostumamos com isso. O filósofo

contemporâneo Slavoj Žižek descreve esse processo de virtualização do real da seguinte

maneira:

Hoje, encontramos no mercado uma série de produtos esvaziados de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo [...]? A realidade virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância, do núcleo duro e resistente do Real – assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café sem ser. Mas o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria “realidade real” como uma entidade virtual. (ŽIŽEK, 2003, p. 24-25; grifo do autor).

De fato, torna-se cada vez mais complicado definir a realidade. Na verdade,

podemos sentir que fazemos parte de várias realidades sem participar efetivamente de

nenhuma delas. Perdemos, assim, como disse Žižek, o “núcleo duro e resistente do

real”, que se transformou em líquido, para concordar com Bauman. Aliás, no século

passado, outra mercadoria passou a ser comercializada em larga escala, e ela combina

espantosamente com a imaterialidade do período presente: a cultura.

Houve tempos em que o artista produzia objetos cujo valor simbólico era o

único preço que se poderia atribuir à sua produção. A cultura (conjunto de objetos e

comportamentos que representam determinada sociedade e determinado contexto

histórico) era entendida como espaço virtual de expressões subjetivas, individuais e

coletivas; um documento impalpável das manifestações humanas. A partir do século

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passado, com a expansão da mídia televisiva e eletrônica, a cultura passou a ser vista

como um produto comum, perfeitamente venal e perdulário, tão passível de ser

manipulado e encaixotado dentro de padrões como qualquer acessório.

A reação veio com o que ficou conhecido como contracultura na década de

1960, um movimento cujo ideário questionava os valores vigentes na cultura ocidental.

Mas o consumo do que conhecemos hoje como cultura de massa superou as

contracorrentes. Podemos entender a cultura de massa, ao lado das infindáveis

evoluções tecnológicas e da Internet, como a última grande cartada do que Jameson

(1997) chamou de “capitalismo tardio”, pelo qual se procura produzir apenas o que vai

ser consumido em grandes quantidades.

Essa produção, somada à capacidade da globalização de irradiar para os quatro

cantos do planeta modos de agir, de vestir, de falar; as músicas a serem ouvidas; os Best

Sellers, que devem ficar nas vitrines das livrarias, estejam elas em Calcutá ou em Los

Angeles; e comidas a serem devoradas nos shoppings centers espalhados pelas cidades,

nos condena à perda da capacidade de nos surpreendermos com o que quer que seja.

Afinal, como, ainda hoje, podemos falar em exótico ou em desconhecido?

Antonio Brasileiro (2002), refletindo sobre a situação da cultura nessa

sociedade que valoriza excessivamente os bens materiais (que não necessariamente

possuem materialidade) e relega a uma margem muito estreita tudo que não possa ser

consumido rapidamente pela massa, rememora as palavras de Arnold Hauser, ao

resumir o fenômeno da cultura de massa:

Hauser dirá que tal distúrbio é inerente à moderna sociedade industrial: a adaptação do indivíduo ao comportamento vulgar vai dispô-lo inevitavelmente ao espírito de massa; os fatos e soluções a serem servidos às pessoas de forma a serem engolidos inteiros [...] não deixam margem para escolha. (BRASILEIRO, 2002, p. 131).

Na verdade, tudo é feito para nos levar a crer que somos os autores das nossas

escolhas, quando elas são totalmente estudadas, previstas e programadas. E isso aponta

para mais uma perda: a da naturalidade que existe no ato e no poder da recusa.

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A mudança na concepção de cultura é, sem dúvida, um dos elementos que

compõem o pós-modernismo. Jameson nos ajuda a melhor vislumbrar essa mudança ao

explicar que:

O pós-modernismo é o que se tem quando o processo de modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É um mundo mais completamente humano do que o anterior, mas é um mundo no qual a “cultura” se tornou uma verdadeira “segunda natureza”. De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o pós-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera. [...] Assim, na cultura pós-moderna, a própria “cultura” se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constitui. (JAMESON, 1997, p. 13-14, destaques do autor).

Dessa forma, a mídia, com suas imagens em altíssima definição, e a

possibilidade de navegar-se cada vez mais rapidamente pelas ondas da Internet

propiciam, em plena contemporaneidade, uma outra forma de colonização através da

cultura de massa, que dispensa os combates corporais e até mesmo a presença no espaço

físico. É a colonização do subconsciente, que mergulha os indivíduos num entrelugar,

num lócus flutuante, em cujos extremos se encontram as noções de coletivo, de pessoal,

de público e de privado. As fronteiras marcadas pela antiga burguesia para separarem a

alta cultura e a cultura popular foram diluídas em nome do lucro capitalista. Falar em

elite hoje é apontar muito mais para o acúmulo de bens e dinheiro de um determinado

grupo do que para o nível de educação formal e para os valores culturais transmitidos

por meio dela.

Mas, a virtualização do real, o simulacro que caracteriza a cultura e o mercado

de consumo quase sem barreiras não são apenas caudatários da tecnologia ou da

cibercultura. Já se faz consenso entre alguns teóricos, Giddens (2002) e Jameson

(1997), por exemplo, que um dos mais contundentes aspectos que marcam a nebulosa

pós-modernidade é a mudança no modo de concepção do tempo e do espaço, e essa

mudança é que permite várias outras.

Esse é também um dos eixos sobre os quais gira a tese da modernidade líquida

de Bauman, a qual se afasta da modernidade passada. Ou seja, em seu livro, ele

descreve a liquidez da pós-modernidade através do processo de liquefação do tempo. Já

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no prefácio, o autor procura explicar seu intento dizendo que é na modernidade que o

tempo adquire história; que, mais do que isso,

A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência de vida. [...] Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permitem “passar” “atravessar”, “cobrir” – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p. 15-16, grifos do autor).

Portanto, na modernidade, a descoberta da possibilidade de manipulação do

tempo para maior aproveitamento do espaço começou a revelar outras formas de

mobilidade a serem usadas a favor do poder de quem melhor conseguisse aproveitá-las.

Contudo, a otimização ou a aceleração do tempo alcançaram níveis para os quais a

palavra surpreendentes não consegue fazer jus, caracterizando a contemporaneidade

como a era da instantaneidade. Por essa razão, conforme continua Bauman (2001, p. 17-

18):

O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da “segunda modernidade” e da “sobremodernidade”, ou a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida é hoje levada, é o fato de que, ao longo do esforço para acelerar, a velocidade do movimento chegou a seu “limite natural”. O poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico – e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço – o advento do telefone celular serve bem como “golpe de misericórdia” simbólico na dependência em relação ao espaço: o próprio acesso a um ponto eletrônico não é mais necessário para que uma ordem seja dada e cumprida (grifos do autor).

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Na modernidade, o tempo passou a ser estudado porque ao homem era crucial

saber em quanto tempo ele poderia cruzar determinado espaço e, principalmente, como

ele poderia diminuir esse tempo para alcançar cada vez mais lugares. O entendimento

do tempo estava, então, crucialmente ligado ao poder da conquista de territórios e à

capacidade de adquirir espaços, aos quais os mais fortes conseguiam chegar antes dos

outros.

Assim, o desenvolvimento de máquinas e veículos cada vez mais rápidos

marcou o século passado. Não apenas isso: o século passado foi o século da

territorialização do mundo. As duas grandes guerras mundiais e todas as lutas e

revoluções disparadas pelo mundo afora dividiram e ergueram novos muros, novas

fronteiras e fundaram novos Estados.

O poder era medido pela capacidade de marcar, com a presença física, a maior

área possível. Indústrias magnânimas e imponentes prédios começaram a ser erguidos

pelas grandes marcas, que se espalhavam pelo mundo e tomavam muitos países sem

necessariamente lançar mão de batalhas armadas. Dessa forma, se a liquidez é o estado

que conduz nossa época, pode-se dizer que a solidez foi o estado do século passado.

Sólidos obsoletos se “desmanchavam no ar” para que outros mais modernos e

condizentes com a visão futurista cultivada na época fossem fabricados.

Como o território passou a ser uma espécie de fetiche, assim como o acúmulo

de bens materiais passou a ser símbolo de poder e status, era necessário construir e

proteger, espalhar-se e vigiar. Afinal, “Poder-se-ia dizer que a diferença entre os fortes e

os fracos é a diferença entre um território formado como no do mapa – vigiado de perto

e estritamente controlado – e um território aberto à invasão, ao redesenho das fronteiras

e à projeção de novos mapas” (BAUMAN, 2001, p. 132).

Daí que, ainda seguindo Bauman, pode-se entender a modernidade como a era

das máquinas pesadas, que não só facilitavam a tomada do espaço em menos tempo,

como também possibilitavam estratégias para vigiar e controlar as posses. A

modernidade foi a época do hardware, período em que se opunham humanos a

máquinas. Explica Bauman (2001, p. 130) que

O wetware tornava os humanos semelhantes; o hardware os tornava diferentes. Essas diferenças (ao contrário das que derivavam da dissimilitude dos músculos humanos) eram resultados de ações

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humanas antes de se transformarem em condições de sua eficácia, e antes que pudessem ser utilizadas para criar ainda mais diferenças, e diferenças mais profundas e menos contestáveis do que antes (grifos do autor) 4.

Graças ao hardware e aos meios de mobilidade descobertos e desdobrados na

modernidade e, por consequência, à possível flexibilização do tempo, o domínio do

espaço se tornou algo mais rápido e, em termos relativos, mais fácil. Contudo, era

preciso fazer a manutenção dos espaços sob domínio, e a manipulação do tempo em

favor do espaço também era aplicada para esse fim. Inclusive, Bauman recorda que

Foucault vislumbrou o projeto de Panóptico criado por Jeremy Bentham como

arquimetáfora do poder moderno. No Panóptico, os internos estavam presos ao lugar,

confinados entre grossos muros e densas paredes. Eles não tinham liberdade para

movimentarem-se, pois estavam sob forte vigilância.

O mais angustiante nesse projeto é que os internos tinham que se ater aos

lugares indicados já que não sabiam onde os vigias estavam. Eles, os vigias, eram livres

para se moverem sem ser vistos pelos confinados, pois as instalações eram construídas

para facilitar o funcionamento dessa subordinação. Conclui-se, portanto, que

[...] o domínio do tempo era o segredo do poder dos administradores – e imobilizar os subordinados no espaço, negando-lhes o direito ao movimento e rotinizando o ritmo a que deviam obedecer era a principal estratégia em seu exercício do poder. [...] O Panóptico era um modelo de engajamento e confrontação mútuos entre os dois lados da relação de poder. (BAUMAN, 2001, p. 18).

O exemplo do Panóptico usado por Foucault e trazido por Bauman como

metáfora da modernidade parece perfeito quando se pensa na obsessão pelo espaço, que

vigorou em mais da metade do século XX. Mas também ilustra satisfatoriamente o final

dessa obsessão. Pensando-se nesse modelo, que se mostrava perfeito no início, é fácil

deduzir por que ele foi, aos poucos, abandonado. Ter de “rotinizar” o tempo dos

subordinados, segundo Bauman, era também prender os seus administradores e vigias.

Era impossível aos subordinadores trabalharem sem estarem presentes no mesmo prédio

em que se encontravam os confinados, e aprisionar era também, em certa medida, ser

4 Wetware é um termo utilizado por Bauman para se referir ao organismo humano.

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prisioneiro. Além disso, havia o dispendioso investimento financeiro: eram edifícios a

erigir, pessoas a contratar e treinar, tarefas administrativas complicadas e custosas a

cumprir.

O esforço agora deveria voltar-se para a perspectiva da gerência sem a

presença física. Daí o avanço da telefonia móvel, como escreveu Bauman, e a Internet

ajudarem a dissolver a solidez que se afigurava indestrutível. Esses e todos os outros

inventos eletrônicos deixaram a contemporaneidade mais leve, embora esse adjetivo

nem sempre possa ser usado com sentido positivo. A fantasmagoria que envolve os

vigias da era pós-moderna é corrosiva e dissolve muitos aspectos vistos como

ultrapassados no projeto do Panóptico. Dissolve também muitas oposições semânticas

tidas como naturais, já que presente/ausente e longe/próximo deixam de existir em

muitas perspectivas. Então, comenta Bauman (2001, p. 18):

O que quer que a história da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, pós-panóptica. O que importava no Panóptico era que os encarregados estivessem lá, próximos na torre de controle. O que importa nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento – para a pura inacessibilidade (grifos do autor).

Nesta contemporaneidade, era da instantaneidade pós-panóptica, portanto, os

territórios fixos, tomados para sempre, são mal vistos. Manter os caminhos abertos para

o trânsito e o fluxo, para as entradas e saídas, para as conexões e desconexões é o que

importa, porque, como conclui Bauman (2001, p. 20), “Estamos testemunhando a

vingança do nomadismo contra o princípio da territorialidade e do assentamento. No

estágio fluido da modernidade, a maioria assentada é dominada pela elite nômade

extraterritorial”. Disso infere-se que a quase aniquilação do tempo tem como principal

consequência a desvalorização do espaço, pois o espaço pode ser atravessado em tempo

nenhum. O espaço “perdeu seu valor estratégico” (BAUMAN, 2001, p. 136).

Se o espaço não opera mais como elemento de valor, o tempo privilegiado

passa a ser o tempo real e o agora acaba de passar para se restabelecer novamente de

outra maneira, não se pode esperar que a forma de vida dos indivíduos, seus desejos e

aspirações devam continuar sendo os mesmos. O mundo não visa ao indestrutível, mas

ao descartável, que deve, se possível, ser também reciclável, isto é, transformável. O

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aço, o concreto cedem lugar à leveza plástica, com toda ambiguidade que possa caber na

palavra.

Como almejar, nesse lócus, uma carreira profissional com todo o peso que essa

ideia tinha na modernidade? Segurança, estabilidade, uma boa colocação em um bom

lugar não mais combinam com a fluidez de hoje. As únicas coisas que parecem nos

manter girando no mesmo sentido de tudo que existe dentro desse temporal são a

capacidade de mudança demonstrada pelo indivíduo, a tentativa de querer estar sempre

à frente, sempre pós, e a conformidade com a incerteza e com um estádio permanente de

sítio.

Dessa maneira, viver na pós-modernidade adquiriu um curioso status de

sobrevivência performática sobre a qual parecem falar as palavras de Homi Bhabha:

“Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de

viver nas fronteiras do presente, para as quais não parece haver nome próprio além do

atual e controvertido deslizamento pós: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-

feminismo...” (BHABHA, 1998, p. 19, grifos do autor). Na contemporaneidade, todas

as fronteiras aparecem como efeito de linguagem e de poder porque são fronteiras

movediças e ilusórias, como dunas de areia que mudam ao sabor do vento.

Nessas pseudofronteiras, tudo parece caber e coexistir, ao mesmo tempo em

que muitas coisas parecem não ter mais cabimento. Não é mais a dúvida de tudo que

nos incomoda, mas todas as possibilidades existentes, como ironiza Alberto, de Lunaris

(RIBEIRO, 2007, p. 99): “Vivemos (escrevemos) na pós-modernidade, onde tudo faz

sentido, justamente porque nada faz sentido, entende?”.

A durabilidade, por exemplo, não faz mais sentido, conforme escreve Bauman

(2001, p. 148), porque ela “deixa de ser recurso para tornar-se um risco”. As ideologias

que mudaram a face das relações sociais do século XX, como o feminismo, continuam,

de alguma forma, presentes sem, no entanto, manterem intactos seus mesmos poderes

desestabilizadores.

Aliás, tem-se mesmo chamado a este tempo de um tempo sem bandeiras, como

se todas as batalhas já tivessem sido travadas, ao menos as que valeram a pena. Todos

os outros conflitos que ainda vigoram estão explicitamente ligados à política do poder

econômico e, embora alguns estejam camuflados pelas vestes rotas do cinismo religioso

ou pela cansada retórica territorial, na verdade, é o potencial capitalista de possíveis

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produtos rentáveis a serem explorados e uma nova comunidade de consumidores que

estão em jogo.

Assim, o advento da instantaneidade desestabiliza todos os pilares da cultura

humana, pois o que existe é, sobretudo, uma constante transformação. Os hábitos e as

soluções aprendidos para se lidar com os problemas cotidianos estão sendo inutilizados

já que nada permanece como antes. E isso vale para nós, sujeitos pós-modernos. A

famosa frase de Debord pode me ajudar a mostrar a justa medida do fato: escreveu ele

que “os homens se parecem mais com seus tempos do que com seus pais” (apud

BAUMAN, 2001, p. 149). Essa imagem alegoriza perfeitamente a fase presente, em que

homens e mulheres estão mergulhados num carpe diem carregado de hipérbole.

O traço que mais afilia os sujeitos pós-modernos a estes tempos (haja vista a

quantidade de escritos teóricos que brotam sobre o assunto) é, sem dúvida, também a

mais significativa perda que o indivíduo tem sofrido: a perda da identidade. Não quero

dizer com isso que estamos destituídos de identidade, mas, ironicamente ao contrário,

vivemos todos inflados e ao mesmo tempo esvaziados pela profusão de identidades que

nos transpassam, ou, para combinar com o dinamismo do contexto presente e com

Stuart Hall (2012, p. 106), de identificações.

A completa reviravolta na história das instituições sociais e a descoberta do

inconsciente freudiano, que desmistificou o centro inato e racional que o sujeito pensava

carregar desde o nascimento e o revelou, subjetivamente, como resultado de processos

psíquicos formados em relação aos outros, colocaram a identidade vista como a essência

do ser em cheque ou, pelo menos, “sob rasura” (HALL, 2012, p. 104).

Em um trabalho anterior, Hall (2003) já se dispunha a identificar o nascimento

do sujeito pós-moderno, que se dá, segundo ele, justamente com a morte do sujeito

sociológico, já mantenedor de relações complexas com a sociedade, mas que ainda

possuía um núcleo, que “era formado e modificado num diálogo contínuo com os

mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL,

2003, p. 11, grifo do autor). Essa visão de uma subjetividade primordial encaixada nas

estruturas sociais deixava estáveis tanto o sujeito quanto os contextos culturais nos

quais se inseria. Na contemporaneidade, contudo, torna-se impossível estabilizar um e

outro. Afinal, como Hall explica:

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35

Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão “mudando”. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, 2003, p. 12, destaques do autor).

O que se conheceu como identidade unificada e fixa se desvelou como muitas

narrativas do eu, biografias organizadas pelas relações sociais e pelos aspectos culturais.

De outra forma, a identidade emergiu como categoria discursiva interpretada pela

individualidade de cada sujeito e de acordo com as posições que cada um deles é

convocado a assumir nas esferas das vidas pública e privada.

A problemática identitária se instaura justamente na altíssima demanda de

posições ou identificações a que o sujeito pós-moderno é exposto, num jogo de escolhas

e exclusões que envolve sua trajetória cotidiana, por conta dos papéis que precisa

assumir e descartar continuamente. Pois, segundo essa perspectiva, identificar-se com

algo é imediatamente negar a representação do que esse algo não é, ou não pretende ser.

Entretanto, na história atual, tornou-se lugar comum falar em crise de identidades, já

que, muitas vezes, os sujeitos contemporâneos fazem coexistir identificações

provisórias, é bem verdade, mas também bastante contraditórias entre si.

Na era da instantaneidade, em que o sujeito se debate no espaço entre a

dialética do global e do individual, em que a cultura foi coisificada, essa perspectiva se

agrava. Afinal, mesmo as escolhas ou as identidades individuais são fabricadas e

expandidas pelos meios de comunicação em massa e, assim, fica cada vez mais difícil

saber quais das nossas ações foram forjadas pela subjetividade de cada um ou pela

pressão globalizante das biografias prontas, tendo-se sempre em mente que as condutas

pessoais vendidas nos anúncios de TV vão mudar na próxima estação ou de acordo com

a próxima rede social lançada na Internet.

Essa visão é corroborada por Giddens em seu Modernidade e identidade,

quando nos provoca com a seguinte reflexão:

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36

Cada um de nós não apenas tem, mas vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida. A modernidade é uma ordem pós-tradicional em que a pergunta como devo viver? tem tanto que ser respondida em decisões cotidianas sobre como comportar-se, o que vestir e o que comer – e muitas outras coisas – quanto ser interpretada no desdobrar temporal da auto-identidade. (GIDDENS, 2002, p. 20-21, grifos do autor)

A indústria cultural colocou os verbos ter e ser como equivalentes perfeitos.

Sentir-se confortável com seu estado no mundo e seu padrão de existência significa,

muitas vezes, participar de determinado padrão estético, vestir determinadas marcas e

modelos, exibir os últimos produtos eletrônicos lançados no mercado. A atividade física

que mais ajuda o corpo a ficar saudável é a que foi inventada mais recentemente ou a

que está passando na última novela. O crescimento espiritual pode ser obtido

rapidamente através dos dez passos publicados nos últimos livros de autoajuda. Eles

prometem guiar cada pessoa na busca de seus talentos e características próprias, mas,

ironicamente, anuncia nas suas capas terem ajudado mais de um milhão de pessoas pelo

mundo, usando as mesmas fórmulas vagas e gastas.

A bandeira da diversidade erguida e sustentada, há algum tempo, pelos Estudos

Culturais não passou ilesa pelo olhar do sistema de consumo. A mensagem sustentada é:

“você precisa entender e respeitar a diferença do outro, para então entender a si mesmo,

e assim promover uma convivência harmônica com a alteridade”. O outro seria a

representação do que você não é, e a unicidade de todos é que deve ser não apenas

respeitada, mas festejada.

Porém, como cultivar essa diferença? Até que ponto a globalização permite a

diversidade? Talvez, o sujeito possa sentir-se único, conforme se faz acreditar,

consumindo o último modelo lançado de um carro de edição limitada, ou aquele tênis

que promete o desempenho do atleta do ano.

Deve-se desconfiar, por conseguinte, do apelo alardeado pelos meios de

comunicação para que os sujeitos se construam enquanto indivíduos, porque é o mesmo

sentido de individualidade que se tem perdido na cultura da hipervisibilidade. As

pessoas cultivam a necessidade de serem notadas, portando todas as parafernálias de

última geração que adquiriram sob a promessa de felicidade, para que, afinal, se sintam

parte do espetáculo.

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Mas a exposição imagética não tem apenas esse fim. A vigilância das câmeras

que discretamente são espalhadas pelas grandes cidades seduz o sujeito com a promessa

de segurança, quando o preço a ser pago é a ausência da liberdade que a privacidade

enseja. Consequentemente, a privacidade atualmente só pode ser pensada com algumas

ressalvas, como ironizam estas palavras de Žižek:

Fuga para privacidade hoje significa adotar as fórmulas de autenticidade privadas propagadas pela indústria cultural recente – desde lições de iluminamento espiritual, a última mania cultural e outras modas, até atividades físicas da corrida e do fisiculturismo. (ŽIŽEK , 2003, p. 105).

Daí ser crescente o uso da palavra depressão relacionada ao estado de espírito

cada vez mais comum dos sujeitos pós-modernos. Considerando-se apenas os sentidos

dos seus constituintes morfológicos, depressão significa pressão para baixo e, apesar de

esse termo não ser de uso exclusivo da psiquiatria ou da psicologia, a imagem

construída por Sigmund Freud no século passado parece antever exatamente a condição

psicoemocional de muitos homens e mulheres contemporâneos.

Em um ambiente em que todos os objetos nascem para a quase imediata

obsolescência, os quais saem de linha para dar lugar a outros provavelmente mais caros

e com o mesmo caráter descartável, a pressão para que cada pessoa teça sua

personalidade, estabeleça suas identidades mais ou menos duráveis parece terrivelmente

paradoxal em relação aos modelos de comportamentos que entram e somem, a todo

momento, das prateleiras. As identidades tornam-se, por conseguinte, tão descartáveis

quanto o resto, até porque, nesse contexto, posições e aspirações duradouras se mostram

mais uma desvantagem do que um benefício. Contudo, se o mais novo modelo a ser

seguido está sempre à frente da massa, a cultura do consumo provoca um permanente

déficit de autoestima, para o qual há apenas duas opções: ou continuar correndo atrás,

literalmente, do tempo perdido ou se deixar ficar à margem, aceitando o desempenho de

perdedor.

Sandra Edler publicou, em 2008, o resultado da sua pesquisa que visa à

releitura e à aplicação dos conceitos de luto e melancolia pensados por Freud, na

sociedade contemporânea. Em seu livro Luto e melancolia – à sombra do espetáculo,

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Edler relaciona o alastramento da depressão ao estado de insatisfação produzido pela

cultura do consumo. A autora afirma que:

É a cultura do consumo que perpetua, assim, a insatisfação, uma vez que impõe a ideia de que a satisfação completa está adiante, será acessível no momento seguinte. Mas o objeto de desejo, depreciado tão logo obtido, revela-se um logro: um circuito completo de esperança, frustração e desapontamento, tudo realizado em alta velocidade, num instante. De acordo com Bauman (2007), “a vida líquida alimenta a insatisfação do eu consigo mesmo”. A ideologia da satisfação imediata da aquisição premente e das promessas do mercado conspira contra ideias mais conservadoras, como projeto de vida, desenvolvimento de ideais e realização de desejo. (EDLER, 2008, p. 100-101, grifos da autora).

A imediata vivência de todas as ilusões e o imediato abandono dessas mesmas

ilusões colocam o indivíduo sempre como um espaço a ser preenchido, sempre como

um ser adiado, ou no máximo, como uma consciência bricolada e incompleta. Mas se

essas palavras se afiguram demasiadamente dramáticas ou pessimistas, é certo que

também guardam algum fascínio.

E, aproveitando a menção que Edler faz de Bauman, de seu apontamento sobre

a insatisfação, é com outro pensamento dele que começo finalmente a apontar os ganhos

que podemos computar nestes tempos flutuantes. Bauman escreve que “o fascínio da

nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por

experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre mantendo as

opções abertas” (BAUMAN, 1998, p. 112-113, grifos do autor).

O sujeito, enquanto indivíduo, não precisa mais se preocupar com o

fechamento de categorias discursivas a fim de definir e delimitar identidades que lhe

ofereçam uma personalidade inteiriça. O indivíduo identificado com determinadas

categorias de grupo (como gênero, raça, orientação política etc.) está cada vez mais

plural, fragmentado, composto de mosaicos teórico-referenciais. E isso tem implicações

diretas sobre os estudos e teorias que tentam dar conta dos fenômenos sociais da

atualidade. Cito como exemplo uma das teorias recentes, talvez, mais condizentes com

o que foi demonstrado até aqui: a teoria pós-moderna do humano como ciborgue, de

Donna Haraway. Em seu Manifesto Ciborgue, a estudiosa argumenta que:

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Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. (HARAWAY, 2009, p. 37).

E, mais adiante, ela acrescenta: “A ficção científica contemporânea está cheia de

ciborgues – criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que habitam mundos

que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados” (HARAWAY, 2009, p.

37).

Os ciborgues, como proclama a autora em seu manifesto, saíram das ficções

impalpáveis e passaram a habitar o nosso mundo, que se encaixa nos padrões por ela

descrito. Ciborgues, afinal, somos todos nós. A perda do sentido de natureza como algo

dado a priori revelou nossa origem forjada nos interstícios da história política e social,

mil vezes reinventada e reiterada; suplementada enfim. Deixamos de viver uma ficção

disfarçada de realidade inconteste, natural, para vivermos uma ficção que se mostra

cada vez mais como tal, ficção no sentido de ser contada e inventada por homens.

Homens que inventam máquinas incríveis e que, num processo simbiótico, as

incorporam.

Os humanos continuam, é claro, dependentes de todos os processos biológicos

que os mantêm em funcionamento, mas são os mecanismos artificiais que os valem

quando o biológico falha. Esses mecanismos vão de objetos relativamente simples como

as lentes dos óculos que corrigem as falhas da visão, a membros biônicos e órgãos

artificiais fabricados com base na mais alta tecnologia.

Por essa razão, não é simples efeito de linguagem a afirmação feita por

Haraway de que habitamos mundos ambíguos, que são, a um só tempo, naturais e

fabricados; tampouco o é a afirmação de que construímos ficções capazes de mudar o

mundo. Vivemos, é certo, em muitos sentidos, num mundo virtual, ficcional, que, sem

deixar de ser fantástico, deixou, há muito, de ser impossível.

Mas, se fisicamente os humanos são duais, um misto de máquina e organismo,

de animal biológico e cibernético, enquanto seres subjetivos, sujeitos sociais e

indivíduos, sua existência só se revela possível através da multiplicidade representada

pela linguagem, símbolo exato da polissemia que nos constitui sem, no entanto, deixar

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de revelar as nossas fragilidades conceituais. E Haraway não deixa de tocar nesse ponto

quando escreve:

É certamente verdadeiro que as estratégias pós-modernistas, tal como o meu mito do ciborgue, subvertem uma quantidade imensa de totalidades orgânicas. [...] Em suma, a certeza daquilo que conta como natureza – uma fonte de insight e uma promessa de inocência – é abalada, provavelmente de forma fatal. Perde-se autoria/autoridade transcendente da interpretação e com ela a antologia que fundamentava a epistemologia ocidental. (HARAWAY, 2009, p. 37).

A consciência de que à linguagem cabe representar objetos e pensamentos em

um mundo cuja única permanência é o transitório subverte as totalidades, as certezas e

até a nossa inocência. Entretanto, essa mesma subversão e os abalos dela decorrentes

nos deram um espaço de possibilidades antes inimaginável.

A flexibilização das fronteiras teóricas colocou em pauta a questão da

centralidade e do essencialismo de alguns discursos que irradiavam de lugares sempre

privilegiados pela história tradicional, pela filosofia e pela cultura em geral. Esses

discursos selecionaram, durante muito tempo, a literatura que deveria representar o

melhor do pensamento ocidental, o continente de onde viriam todos os modelos

estéticos e culturais, e o que deveria ser representado dessa cultura.

Desde, pelo menos, os meados do século passado, com a emergência dos

Estudos Culturais e a partir de alguns fatos políticos e econômicos importantes, como a

mudança continental do centro distribuidor da cultura e da economia, viram-se emergir

muitas vozes e facetas artísticas e culturais que antes figuravam apenas como um

adendo exótico ou simplesmente não figuravam em lugar nenhum. Os pilares do cânone

literário, se não foram derrubados, foram, ao menos, ampliados. A classificação do que

seria alta cultura ou mesmo a classificação do que seria arte seguindo os antigos padrões

tornaram-se quase impossíveis.

O que está no centro e o que está na margem, se o próprio centro ruiu? Quem

haverá de ser modelo se os modelos são vertiginosamente provisórios? Lembro-me aqui

das palavras do teórico da literatura Wladimir Krysinski, que analisa o contexto atual da

seguinte forma:

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Eu definiria a paisagem cultural e teórica contemporânea como uma multiplicidade de espaços discursivos, axiológicos e interpretativos, espaços ao mesmo tempo conflituosos e complementares. A oposição entre o moderno e o pós-moderno, que atravessa essa paisagem, nem sempre lhes faz justiça, na medida em que ela os faz explodir em uma multiplicidade de discursos. (KRYSINSKI, 2007, p. 19).

No meio do desconcertante furacão em que vivemos, não temos, talvez pela

primeira vez, que nos preocupar em fazer oposição a nenhum conceito com o intuito de

fundar uma nova visão do que quer que seja. A perspectiva, o ponto de vista e o lugar

de fala passam a ocupar um importante lugar nas discussões contemporâneas. A vida

como um grande cruzamento de narrativas, infinitamente reescritas, ao mesmo tempo

em que nos provoca a angústia da incompletude, nos dá o conforto do sempre possível

recomeço.

No tocante à arte, especificamente à literatura, se a modernidade parece ter se

esvaído entre conceitos teóricos, críticos e estéticos, esgotando-se em si mesma

enquanto termo que designa novidade e que induz à transgressão, as artes pós-modernas

não têm a obrigação de fundar nenhum modelo ou nenhum aspecto novo. São livres da

retórica da recusa e da negação de tudo que já existe, pois, conforme comenta Bauman

(1998, p. 129), “As artes pós-modernas alcançaram um grau de independência com que

seus antecessores modernistas só podiam sonhar”. E ainda:

No cenário pós-moderno do presente, falar de uma vanguarda não faz sentido. [...] A multiplicidade de estilos e gêneros já não é uma projeção da seta do tempo sobre o espaço da coabitação. Os estilos não se dividem em progressista e retrógrado, de aspecto avançado e antiquado. As novas invenções artísticas não se destinam a afugentar as existentes e tomar-lhes o lugar, mas a se juntar às outras. (BAUMAN, 1998, p. 127).

É nesse aspecto em que, acredito, reside a novidade da arte pós-moderna: em

sua irônica recusa da novidade e em seu poder de coexistir entre todas as tendências que

estão aí, mesclando-se a elas e mantendo um diálogo irônico com o passado da arte e da

sociedade. Ela se torna, dessa maneira, ainda mais fragmentada, descentrada e composta

de várias orientações identitárias.

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Assim é, pois, a arte que expressa as vivências dos sujeitos contemporâneos.

Afinal, o descentramento, a fragmentação e, por fim, a dissecação da identidade nos

fazem a(u)tores de histórias complexas que somos obrigados a interpretar acerca de

quem somos, de onde viemos e de onde estamos. E é aqui que, numa espiral de ideias,

voltamos ao ponto de onde partimos. No início deste capítulo, Alberto (personagem de

Lunaris) está às voltas com a memória que o narra e que, pelo seu caráter inventivo, o

coloca como pura ilusão. Mas, se os tempos atuais nos deixam, tantas vezes, perdidos a

respeito da coerência do que contamos, das identidades que queremos ou somos

convocados a assumir e a abandonar, também podemos nos pensar em processo

contínuo de autoformação, como um devir cheio de potencialidades.

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2 LUNARIS E ABISMO – ROTAS NARRATIVAS PARA A PROCURA DE SI

A realidade é aquilo que se diz. A “realidade” é alguma coisa posta entre aspas. Antonio Brasileiro

“– Como disse, não tenho a pretensão de revelar a verdade, mas até mesmo o

senhor é capaz de admitir que nós podemos contribuir um pouco nessa busca. Não se

trata de uma verdade definitiva e imutável, mas do reconhecimento interno, individual,

de uma realidade ainda não tocada pelos nossos conceitos viciados (RIBEIRO, 2004, p.

21)”. Inicio o capítulo transcrevendo esse trecho do romance Abismo, de Carlos Ribeiro,

por acreditar que ele apresenta, em suas poucas linhas, uma justa antítese, no interior da

qual nega e, ao mesmo tempo, apresenta o contexto de onde fala.

É através da criação de mundos paradoxais, manifestos tanto por meio da

negação quanto por meio do decalque desfigurado destes tempos, que, acredito, a

literatura ficcional encontra possibilidade de continuar existindo. E, conforme

comprovam as palavras provocativas do personagem-narrador de Abismo, Carlos

Ribeiro inscreve sua escrita na literatura pós-moderna não apenas por interpretar essa

frágil possibilidade, mas por fazer dela um jogo, cujas regras estão espalhadas pelas

questões tão absurdas quanto conhecidas em que vamos tropeçando, tão logo nos

arrisquemos a dele participar.

Essa afirmação encontra respaldo na breve análise que empreendi no capítulo

anterior, quando pontuei algumas questões que transpassam a nossa contemporaneidade.

Dentre tantos aspectos que marcam a atualidade, enumero o caráter virtual que a vida

cotidiana adquiriu, o abandono da percepção tradicional do tempo, a desvalorização da

ideia de território, a mercantilização da cultura, a perda da identidade fixa e unificada, a

conscientização acerca da representatividade de todo conceito e, consequentemente, da

linguagem e, assim, do caráter ficcionalizado do sujeito enquanto operador teórico,

definidor do ser social e individual.

Também lancei mão de muitos termos caracterizadores para tentar dar mais

contorno a este contexto, tais como liquidez, fluidez, instantaneidade e outros mais. Em

um mundo assim, quase impalpável se visto sob esses prismas, parece não mais fazer

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sentido continuar cultivando uma atividade cujo escopo se ancora na criação de mundos

irreais, no sentido de se oporem à verdade concreta, provável e prevista dos fatos. Ou

seja, parece coerente perguntar se a arte e, sobretudo, a literatura, mantendo seu papel

de representar a vida através de imagens e questionamentos que subvertem a ordem

conhecida, teriam ainda o que continuar subvertendo.

A pergunta é tentadora no sentido de nos induzir a dar uma resposta rápida e

negativa. Mas tal indagação tem acompanhado escritores e artistas na urdidura de seus

afazeres criativos, nos intervalos e espaços que a arte sempre reserva para refletir sua

própria existência. Atestam essa preocupação as palavras de Paz, quando ele lança um

olhar teórico sobre a questão que já se ergue aparentemente inevitável, ponderando o

seguinte:

A arte e a literatura são formas de representação da realidade. Representações que são, não necessito recordá-lo, também invenções: representações imaginárias. Mas a realidade, de repente, começou a desagregar-se e a desvanecer-se; apareceu com os atributos do imaginário, se mostrou amena ou irrisória, inconsistente ou fantástica (PAZ, 1990, p. 40).

Contudo, a arte e a literatura continuam existindo e seu estatuto continua se

diferenciando, de algum modo, do que percebemos como a vida verdadeira. Mas, diante

da inconsistência proclamada da realidade, qual é a importância das narrativas de

ficção?

É pertinente lembrar que, independentemente do contexto, a importância da

narrativa literária vem sendo pensada e constatada por variados olhares. São conclusões

contundentes, convincentes e, muitas vezes, poéticas. Por isso, vale a pena trazê-las à

discussão. A exemplo, o escritor J. Mario Vargas Llosa, no ensaio intitulado “É possível

pensar o mundo moderno sem o romance?”, que abre o livro A cultura do romance

(2009), discorre sobre a importância desse gênero literário para a cultura geral, ao passo

que tenta também representar o mundo contemporâneo sem a cultura da narrativa.

Nessa perspectiva, Vargas Llosa destaca o poder sedicioso de toda literatura, assim

como atribui ao romance o papel de alimento do espírito crítico, motor de toda mudança

histórica, além de ser um refúgio para o indivíduo que, estando convencido das

imperfeições deste mundo, acha na narrativa um espaço onde é possível não se sentir

infeliz e onde ainda aprende a estar apto à infelicidade.

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Por fim, conclui ele, de forma dramática, que:

Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão generalizada dos seres humanos ao estabelecido. Também nesse sentido seria um mundo animal. Os instintos básicos decidiriam a rotina cotidiana de uma vida oprimida pela luta pela sobrevivência, pelo medo do desconhecido, pela satisfação das necessidades físicas, em que não haveria espaço para o espírito e a que, à monotonia sufocante da vida, acompanharia, como uma sombra sinistra, o pessimismo, a sensação de que a vida humana é aquilo que deveria ser e que sempre será assim, e que nada nem ninguém poderá mudar o estado das coisas. (LLOSA, 2009, p. 31).

O ponto de vista de Vargas Llosa tem a ver com a humanidade que reveste a

arte, isto é, com o tipo de necessidade que a literatura sacia e movimenta, a qual já não é

simplesmente físico-biológica, mas que passa pela necessidade de experimentar tantas

linguagens, sentimentos, pensamentos e experiências quantos sejam imagináveis.

Experiências tão variadas como jamais seria possível para um indivíduo vivenciá-las

estando preso a uma vida limitada, como é em vários sentidos. Nesse aspecto, a

literatura ensina ao homem o desejo de liberdade, já que, através dela, nos é permitido

correr todos os riscos, aprender com as consequências, passar por transformações

profundas e ainda sair ilesos de todos os processos.

Por causa desses e de outros tantos motivos suspeitáveis e insuspeitos, a arte,

de forma geral, continua e provavelmente continuará a inquietar os espíritos. Contudo,

há quem defenda que a narrativa é um tema que nos permanece crucial, mesmo depois

de muito já se ter escrito sobre ela, por ser esse gênero essencial na constituição da vida

e do próprio ser. Disso nos lembram as considerações que Antonia Torreão Herrera faz

acerca da narrativa:

Esse tema tão corriqueiro, a narrativa nos toca sobremaneira. Ela nos concerne, nos constitui. Somos feitos de narrativas, nossa existência narra-se nos nossos atos cotidianos, no desenrolar de enredos possíveis em nossa imaginação, nos devaneios e nos sonhos em que ganham formato de um objeto construído à semelhança de uma narrativa fílmica. Somos vividos por narrativas, atravessados por elas, numa rede de fios entrecruzados feitos de histórias familiares, sócio-culturais, históricas, e ainda do que foi possível ouvir, do que lemos, do que fantasiamos, do passado vivido e rememorado em nossas narrativas cotidianas [...]. (HERRERA, 2008, p. 275-276).

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De fato, seguindo na esteira dessas reflexões, torna-se impossível separar a

nossa existência do ato de narrar. E ao fazer essa afirmação, lembro-me da lição de

Tzvetan Todorov em seu clássico As estruturas narrativas. A lembrança se dá porque, a

partir do texto de Herrera, noto que as palavras de Todorov transbordam de sentido

lógico. No livro, Todorov (2008, p. 119) dedica um capítulo aos “homens-narrativas”,

pois, conforme nos ensina, “Não há personagens fora da ação, nem ação independente

de personagens”. De acordo com suas premissas, podemos aprender que somos os

principais personagens na narrativa da existência e que a vivência de cada um se resume

às ações que executamos dentro da intrigante história.

Mas, aqui, proponho-me a examinar a narrativa de ficção. E, algumas linhas

atrás, questiono qual seria a importância dessas criações artísticas em um mundo que já

se afigura ficcionalizado de muitas formas. O que elas ainda nos dizem em tempos

assim?

As insinuações injetadas nas frases convocatórias do personagem de Abismo

nos dão as pistas para possíveis respostas. Elas encenam o jogo paradoxal sobre o qual

falei antes. Sem pretender adiantar a análise do citado romance que farei

posteriormente, começar uma partida interpretativa pelo trecho que transcrevi ao iniciar

o capítulo pode lançar luz sobre os caminhos que se bifurcam à nossa frente.

Afirmei, pois, que a fala do personagem-narrador nega e apresenta, a um só

tempo, o contexto presente. No entanto, trabalha essas duas posturas sub-repticiamente,

nas camadas inferiores do que diz, conseguindo, com isso, conciliar o movimento de

aproximação e de rechaço. E podem-se explicitar essas posturas narrativas facilmente.

Relembrando a primeira parte da citação, temos: “– Como disse, não tenho a pretensão

de revelar a verdade, mas até mesmo o senhor é capaz de admitir que nós podemos

contribuir um pouco nessa busca” (RIBEIRO, 2004, p. 21). A negação se produz aí pela

provocação feita ao leitor por meio do vocativo ambíguo “o senhor”, o qual tem o papel

de aliciar o outro personagem com quem se dá o diálogo e, ao mesmo tempo, de aliciar

quem o lê, a fim de que um e outro se sintam tentados a formular uma resposta.

Contudo, é realmente o leitor que se sente convidado a fazer parte de uma busca tão

arriscada quanto absurda, se pensarmos na época presente.

Se a verdade já foi outrora concebida como conceito dependente da realidade

provável, hoje sabemos que ela é fugaz, porque é constituída de linguagem, e atua na

representação de um determinado ponto de vista, que tende a mudar tão logo seja tocada

por outros pontos de vista e outras representações. Se é assim, para que empreender tal

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busca, se ela parece nascer sob o signo da ilusão? Há duas alternativas interpretativas:

imaginar que se trata de um convite irônico, que diz nas entrelinhas exatamente o

contrário daquilo que afirma na superfície do dito, ou acreditar que, por algum motivo,

o personagem convoca o leitor e o outro ouvinte a participar de uma aventura utópica e

até mesmo mística.

De qualquer forma, empreender uma busca pela verdade no sentido tradicional

que o Ocidente cultivou durante muito tempo implica combater este mundo onde

vivemos, quase tão ilusório como a própria ficção. E é dessa forma que a proposta da

narrativa contraria, ou nega, o estatuto da nossa época. Mas a segunda parte do trecho

nos sinaliza por onde seguir: “Não se trata de uma verdade definitiva e imutável, mas do

reconhecimento interno, individual, de uma realidade ainda não tocada pelos nossos

conceitos viciados (RIBEIRO, 2004, p. 21)”. E é aqui, quando o personagem reafirma a

necessidade de buscar a verdade, justamente o momento em que volta a problematizar o

nosso contexto, mesmo que seja por um momento bem transitório.

Aliás, de maneira mais lógica, antes mesmo de analisarmos o trecho, sabemos

que ele também carrega as marcas de sua contemporaneidade, pois, como coloca Ernst

Fischer (2002, p. 17), “Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a

humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as necessidades e as esperanças

de uma situação particular”. Embora a palavra condicionada mereça ser problematizada

por estar marcada cultural e ideologicamente pela perspectiva marxista, que vê a

mobilização política como uma das principais funções da arte, as palavras de Fischer se

confirmam claramente no texto de Ribeiro ao passo que a voz narrativa tenta explicar o

tipo de verdade que devem perseguir, porque “Não se trata de uma verdade definitiva e

imutável”. Aí, o sentido das palavras volta a se reconciliar com a realidade fora do

romance, ou melhor, as duas realidades – a do romance e a do leitor – se reconciliam,

pois não parece ser possível erigir qualquer outro tipo de verdade, a não ser que ela seja

totalmente aberta e transitória. Porém, a reconciliação dura apenas o instante que

antecede o final da proposta, marcada pela conjunção adversativa mas, que cria a

expectativa de oposição à ideia de verdade “definitiva e imutável” e que, porém, voltará

a fazer oposição, a negar as possibilidades que a realidade contextual nos concede.

Afinal, a proposta é encontrar um “reconhecimento interno, individual, de uma

realidade ainda não tocada pelos nossos conceitos viciados” (RIBEIRO, 2002, p. 21).

Que tipo de reconhecimento será possível, sem que seja formulado ou

organizado, a não ser a partir dos conceitos que conhecemos? E como reconhecer algo

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que ainda não conhecemos? Isso seria impensável, a menos que esse reconhecimento se

desse fora da linguagem, que fosse resguardado em algum lugar anterior à nossa

consciência discursiva. E, se for assim, se acharmos uma verdade interna e individual,

como representá-la sem dizê-la?

Para além dessas questões, pode-se perceber, ainda mais uma vez, que as

palavras do romance continuam a cumprir o movimento de aproximação e negação, já

que reconhecem a impossibilidade de haver uma verdade definitiva e imutável para, tão

logo, declarar a necessidade de haver, para cada indivíduo, uma realidade interna,

exclusiva, intocada pelos vícios das convenções que nos podam e nos dirigem.

É justamente no último movimento, movimento de afastamento, que podemos

vislumbrar o que pode ser uma intenção ou, ao menos, a impressão de uma intenção por

trás da fala transcrita. A minha proposta interpretativa é que talvez o reconhecimento

buscado não deva estar exatamente fora da linguagem para escapar de “nossos conceitos

viciados”, mas que ele seja formulado por uma linguagem outra, por uma “outra voz”,

como escreveu Paz (1990); pela voz da literatura, pela “linguagem carregada de

significados” (POUND, 2006, p. 36). A empreitada inquietante que somos convidados a

cumprir só pode ser executada através da ficção justamente porque verdade e realidade

são conceitos que ocupam agora um lugar simbólico muito próximo ao de uma criação

artística.

Além de tudo isso, não é por acaso que o trecho do diálogo começa e termina

negando e se opondo à lógica corrente. É que a arte, a ficção que ainda não foi

destituída de seu espírito insólito, precisa representar, apontar outros caminhos e outras

rotas para a existência, mesmo que seja em tempos como os nossos, cujo caráter virtual

compete diretamente com o estatuto dessa mesma ficção.

O que Carlos Ribeiro nos diz através de sua narrativa ficcional e a maneira

como ele representa os indivíduos da fase presente, suas aspirações e angústias são

conclusões a que pretendo chegar durante o decorrer das reflexões acerca dos romances

Lunaris e Abismo, para as quais me dirigirei mais à frente. Entretanto, quero adiantar

que, partindo de uma leitura prévia e de acordo com os trechos que destaquei até aqui,

Ribeiro representa parte da literatura pós-moderna justamente quando adota essa postura

dupla em sua ficção, que recusa e acolhe a contemporaneidade.

Essa postura que procurei demonstrar não é exclusiva desse autor nem

tampouco da arte pós-moderna. Mas é também por isso que sua narrativa contribui para

a cultura do pós-modernismo, conforme pretendo explicar. Além disso, Ribeiro insere

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sua prosa de ficção na pós-modernidade, sobretudo quando escolhe os caminhos pelos

quais movimenta as perspectivas que expressa em sua escrita, quando escolhe as vias

pelas quais se torna possível ir e vir, afastar-se e aproximar-se deste mundo de fora que

se projeta e se dissipa no mundo de dentro da obra.

Essas vias são duas e se tocam e se influenciam em todo o decorrer das

histórias. São elas o simulacro e o quixotismo. A celebração do simulacro e a presença

de um princípio quixotesco são elementos imbricados que atravessam as narrativas em

questão e que muito nos dizem sobre as aspirações, expectativas e esperanças do

momento presente. Todavia, analisarei como Ribeiro trabalha esses elementos

separadamente por acreditar que cada um deles pode ser apreciado em diferentes graus,

em cada um dos romances.

2.1 Lunaris – um lugar impossível em um mundo de possibilidades

No início deste trabalho, afirmei que o romance Lunaris é emblemático do

nosso contexto. Para explicar melhor essa assertiva, quero fazer uma breve apresentação

do autor e, em seguida, do livro.

Carlos Jesus Ribeiro nasceu em 1958, Salvador, Bahia. É jornalista, ficcionista

e professor universitário. Atendendo bem às multiplicidades do sujeito pós-moderno,

seus afazeres se misturam e dialogam, estando sua escrita jornalística impregnada de

literatura e sua ficção enxertada pela curiosidade crônica de repórter. Não por acaso,

Carlos Ribeiro é autor de gêneros variados, como ensaios sobre teoria e crítica literária,

artigos e matérias de cunho jornalístico, contos, romances e poesia em prosa.

Membro da Academia de Letras da Bahia, sempre manteve uma participação

plural no cenário cultural baiano, apesar de, para a sua escrita ficcional, o contexto de

criação não anular as questões universais contemporâneas, expostas em sua obra. Autor

de numerosas narrativas de ficção, a maior parte composta de contos, teve seu primeiro

livro lançado em 1982. Além disso, Ribeiro é autor de três romances: O chamado da

noite, publicado em 1997, Abismo e Lunaris.

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Lunaris foi escrito em 2007. Seu título busca uma intertextualidade crítica com

o moderno romance Solaris (1961), de Stanislaw Lem, autor polonês. Solaris, e a maior

parte da obra de Lem, explora, através da ficção científica, temas variados, vinculados à

filosofia, que inquietavam o autor e o indivíduo moderno em geral. Estão entre os temas

a especulação futurista em torno da tecnologia, a incompreensão e a falta de

comunicação mútuas, além do lugar da humanidade no universo imenso e

desconhecido.

Lunaris também problematiza ficções, mas, no seu caso, discute

principalmente as ficções que inventamos diariamente e a dificuldade, cada vez mais

crescente, de conceituar a realidade face à espetacularização e às performances que

permeiam nossas relações. Além disso, problematiza a dissolução de tudo aquilo que

nos mantinha mais ou menos seguros, sobretudo as nossas identidades individual,

regional e até nacional. E se, como afirmei antes, o espaço pós-moderno comporta a

coexistência ao invés das oposições radicais, Lunaris participa dessa característica

desde seu título e a mantém por toda a narrativa através das convocações que faz a

vários autores, artistas e obras.

Ribeiro traz ao romance os ecos de muitas vozes numa atitude de análise,

citação e até questionamento quanto ao lugar e à importância de cada obra, inclusive da

sua, forjando uma narrativa bricolada, fragmentada e múltipla. Aliás, é justamente

invocando ícones da literatura e da cultura moderna e contemporânea que a narrativa de

Ribeiro se insere no espaço complexo da literatura pós-moderna.

Se a modernidade seguiu a sina primordial e mortal de perseguir o novo sobre

todas as coisas, a literatura pós-modernista descobriu uma possibilidade de

sobrevivência seguindo no sentido oposto. Afinal, após mais de um século de esforço

artístico para estar avant-garde 5, refletir como a arte se ressignificaria, ou refletir se

haveria ainda essa possibilidade, tornou-se um dos principais pontos das agendas

teóricas e críticas deste milênio. Por isso mesmo, Krysinski propõe a questão em seu

livro Dialéticas da transgressão da seguinte maneira:

5 Expressão francesa que se refere à guarda avançada ou à parte frontal de um exército. Como explica Krysinski (2007), essa expressão gerou o termo vanguarda, que passou a ser usado metaforicamente para nomear, de maneira geral, a arte e a cultura do final século XIX e início do século XX como símbolos de novidade.

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Um dos mais importantes problemas teóricos e históricos que devemos colocar hoje é o seguinte: serão as linguagens transgressivas ainda possíveis? Senão por quê? Em caso de afirmativa, em que condições, segundo quais parâmetros e quais as modalidades de seu funcionamento? (KRYSINSKI, 2007, p. 19).

Bauman havia pensado igualmente a respeito do caminho que as artes pós-

modernas trilhariam depois das inovações modernistas e, de certo modo, chegou a

responder às proposições feitas por Krysinski. Ele enxergou, na problemática, a chance

de libertação da arte em relação a uma tradição que devorou a si mesma; viu no presente

a possibilidade de uma independência estética sem precedentes, talvez a independência

sonhada pelos modernistas. Contudo, Bauman (1998, p. 129) adverte: “Mas há um

preço a ser pago por essa liberdade sem precedentes: o preço é a renúncia de indicar

novas trilhas para o mundo”.

Parece, então, que a arte contemporânea achou em sua redenção a própria

condenação. É livre para revisar estilos, repensar o passado. Todavia, para representar o

seu tempo, só poderá mencioná-lo de forma crítica, parodística, invocando-o para

espantá-lo, encontrando a possibilidade de realizar-se através de sua eterna irrealização.

E essa postura está estampada em toda narrativa de Carlos Ribeiro, sobretudo

nos romances sobre os quais venho comentando. Em Lunaris, por exemplo, romance

composto de dois capítulos, com várias seções curtas que funcionam como se fossem

fragmentos de pensamentos e de delírios, há uma parte especificamente reservada à

questão revisionista e crítica do passado, a qual se torna, por causa disso, um espaço

duplamente ficcional. Primeiro, obviamente, por ser uma cena – na verdade, um diálogo

– ocorrida dentro de uma narrativa literária; depois, por ter sido imaginado por Alberto,

um personagem de ficção, o protagonista da história. Nessa conversa, Alberto discute o

lugar que a história reservou para os ícones da literatura e das outras artes modernistas e

pré-modernistas, com o seu amigo ilusório Márcio. Essa parte do livro, peça importante

no jogo, nos revela a visão do personagem que se quer real (Alberto), do personagem

que se quer irreal (Márcio), do narrador e, quiçá, do autor.

Intitulada “Gênios rebeldes suicidas” (RIBEIRO, 2007, p. 31-36), a breve cena

nos mostra Alberto, que, por um sentimento de saudosismo ou talvez de não

pertencimento ao rebanho daquelas ovelhas que pastavam pelo presente, pensava em

algumas pessoas que fizeram dos séculos passados tempos especiais. Contudo, Márcio

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questiona o que de especial realmente tinham aquelas pessoas que Alberto gostava de

guardar em um lugar particular de sua memória. A maioria, dizia ele, não passou de

uma fraude, com mortes prematuras e trajetórias estúpidas. Para Márcio, era como se a

tal diferenciação que Alberto enxergava funcionasse como uma espécie de destinação

ou pré-disposição ao suicídio literal ou figurado. E se fosse assim, valeria realmente a

pena ser diferente?

Dessa visão subversiva não escaparam os românticos da geração perdida e nem

seu dileto sucessor Baudelaire, que, para Márcio, não passava de um cínico, que viveu e

morreu de forma miserável. Distrata Rimbaud, que morreu aos 37; menciona Fitzgerald,

a quem via como um jovem inconveniente; classifica Hemingway como um suicida

depressivo.

E a música também não deveria se orgulhar das personalidades que marcaram

época. Segundo Márcio:

James Dean teve pressa demais e se espatifou rapidinho, aos vinte e poucos anos, aparentando uma coisa que estava longe de ser. Elvis, the Pélvis, ótimo cantor, com um swing difícil de se encontrar num branquelo do Tenesse, caiu podre, saturado de drogas, medicamentos e do veneno das serpentes que o rodeavam. [...] E aqui entre nós, o rebelde-mor, Raul Seixas, dava até pena de ver nos seus últimos dias: uma caricatura de si mesmo que, na verdade, na sua ácida e bem-humorada crítica ao Sistema, nunca incomodou nenhum dos poderosos, tornando-se, como muitos outros (torceu a boca) transgressores, meros produtos de mercado. (RIBEIRO, 2007, p. 33).

E mesmo com o tom discordante de Alberto, seu amigo envereda pelo cinema

sem nenhuma culpa e coloca dois grandes pensadores na berlinda. Márcio provoca

dizendo:

Pasolini, em sua radical rejeição dos “valores burgueses”, morreu pisoteado pela escória em meio à qual vivia. E alguns ainda dizem que foi morto pelo Sistema. [...] Até mesmo Glauber, com seu discurso revolucionário, passou a ser, nos seus últimos tempos, um enfezado patrulhador de todos aqueles que não rezavam na sua cartilha cinemanovista. (RIBEIRO, 2007, p. 33-34).

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Alberto sentia-se aviltado com todo aquele discurso ressentido e tentava

combatê-lo sem muito sucesso. Mas, mesmo ficando incomodado com aquelas palavras,

Alberto não se deixa esquecer, para que o leitor também não se esqueça, que Márcio

saiu de sua imaginação, delegando, desse modo, ao leitor a responsabilidade de

entendimento de tantas contradições, farsas e representações.

Porém, as menções a outros escritores, pensadores e artistas nem sempre são

feitas de modo tão ácido. Elas estão diluídas em todo o texto, em forma de citação

propriamente dita ou na forma de paráfrase, completando o pensamento de Alberto ou

de outros personagens. Mesmo o nome do autor que assina a capa do livro entra no

jogo. Ele é evocado na narrativa como partícipe da memória de seu personagem, o que,

nesse caso, aumenta, diante de quem lê, os movimentos vertiginoso de aproximação e

afastamento, e de solvência do que separa a ficção da realidade.

Aí pode-se afirmar que texto e forma também se entrelaçam e se confundem.

Assim como o texto se deixa perceber como um mosaico referencial para simular o

homem perdido entre tempos e lugares, a forma do romance delineia os espaços em que

circulamos e as tênues e migratórias fronteiras contemporâneas. As mudanças de cenas,

a percepção que se embaralha e os assuntos que mudam rapidamente durante as

passagens das seções imitam as perspectivas fílmicas que criam, através de cenas

recortadas, uma atmosfera de sonho, nesse caso, talvez de sonhos lúcidos.

Lunaris, então, vai construindo o simulacro de dois mundos que, aos poucos,

vão se interpenetrando e se invadindo. E ao acompanhar essa ideia, percebemos que

também nós assistimos a essas dissoluções diariamente. Dissoluções de identidade, de

fronteiras, de grupos e etnias, dissoluções culturais enfim, como resumem as palavras de

Heidrun Krieger Olinto, ao dialogar com a ideia de local da cultura de Bhabha. Diz ela,

ao pensar justamente nesses espaços, que:

Termos como entrelugar, entremeio e entretempo, nesse âmbito, circunscrevem fenômenos e vidas oscilantes situadas em espaços fronteiriços, numa esfera do além, formulada por Bhabha como “momento de trânsito, em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade”. (OLINTO, 2010, p. 28, grifo da autora).

Essas palavras podem ser usadas para se referirem à ideia de Lunaris como

esse entrelugar ou entremeio que se situa no limiar das concepções dialéticas do real e

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do irreal, um espaço que se encontra numa “esfera do além”, onde as fronteiras se

dissolvem e perdem seu sentido. Aliás, torna-se claro que Carlos Ribeiro utiliza o

espaço ficcional para colocar em debate temas que constituem focos relevantes da

cultura atual. Ele constrói um circuito no qual expõe questões teóricas complexas que

atravessam as histórias e os personagens, que, por sua vez, dramatizam esse “momento

de trânsito” de que fala Bhabha (apud OLINTO, 2010, p. 28).

Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que Lunaris representa ou projeta a

imagem dos conceitos de um não lugar, uma falta de enraizamento quanto ao território,

ao espaço cultural e ao tempo nos quais estamos inseridos. Afinal, Lunaris é um lugar

criado pelo personagem Alberto, um professor universitário de literatura, que se

encaixava, até certo tempo, no padrão comum de um homem instruído, casado, que tem

um emprego e amigos, cumpre obrigações e tenta levar a vida. No entanto, Alberto é

atormentado por uma sensação de deslocamento e abandono a qual nem mesmo todas as

práticas e atividades diárias eram capazes de afastar, pois,

Ao abrir os olhos, vinha-lhe de súbito uma profunda estranheza de existir, uma sensação quase insuportável de ser, de estar, por algum motivo profundamente misterioso, habitando uma bola solta no espaço, cercada de vazios, de ser uma consciência, um pensamento que sequer tem a percepção de quem é, verdadeiramente. [...] Mesmo estando em dia com a sua consciência, não podia evitar a sensação desconfortável de que tudo ia mal com o mundo, lá fora. Usava essa expressão como defesa. (RIBEIRO, 2007, p. 14, grifo do autor).

O desconforto de Alberto tem a ver com o mundo não familiar no qual está,

com o seu esforço para compreendê-lo e com a percepção de que sua identidade foi

costurada à sua vida com linhas muito frágeis que, por vezes, se desfazem e, então, é

necessário sempre um improviso. Pode-se notar, através das impressões sobre Alberto,

que seu desconforto nasce de fora para dentro. Nasce justamente por se sentir atrasado

em relação às mudanças que percebe mas que não necessariamente vivencia.

Esse estranhamento perante o mundo que lhe cerca não nos é tão estranho

assim, pelo menos para quem nasceu antes dos anos 80 do século passado, em que se

podia considerar moderno e ainda manter a perspectiva de um futuro distanciado e

desconhecido. Para Alberto e alguns de nós, seus contemporâneos, a livre ação de ser

tornou-se algo mal resolvido porque alguns indivíduos são, a um só tempo, modernos e

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pós-modernos, e isso implica ter de lidar com concepções que, muitas vezes, se opõem

ou se anulam.

Ao passo que o leitor acompanha o mal-estar de Alberto em relação à realidade

cotidiana, presencia aquele outro lugar, Lunaris, ganhar cada vez mais cores, pois, ao

andar pelas ruas da atual Salvador, Alberto se depara com a estranheza dos bairros, das

pessoas e dos seus gestos. A mudança que lhe parecia repentina e constante afetava a

cidade em sua vida e potência. Pensava Alberto enquanto se identificava cada vez

menos com tudo que via:

Ele mudara ou foi a cidade que se deixou conspurcar, ao ponto de ficar esvaziada de todas as suas potencialidades, de seus sonhos, da sua utopia? Por que diabo aquela sensação de estar à beira de uma catástrofe irremediável? Mas tudo estava tão normal! E, no entanto, parecia que o desastre já começara – como um incêndio no porão enquanto as pessoas, sem saberem, dançam e negociam e fazem planos nos andares superiores de um velho edifício. (RIBEIRO, 2007, p. 15)

Se, como explicou Stuart Hall (2012, p. 106), “Na linguagem do senso comum, a

identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de

características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de

um mesmo ideal”, Alberto definitivamente não pertencia àquele contexto. O ele que

notava era sempre a diferença gritante entre o que vivia e o que viveu: o tempo e a

cidade que já não eram mais os mesmos.

Mesmo sabendo disso, tinha de continuar sustentando os antigos papéis, sendo

o Alberto pacato, cumpridor de obrigações, cúmplice de convenções nas quais não via

muito sentido. Por isso, começou a visitar, cada vez mais, Lunaris. Lá havia pessoas

com quem poderia conversar sobre qualquer coisa. Amigos que não cobravam dele que

voltasse à razão enquadradora, principalmente porque era um lugar onde ninguém se

preocupava em marcar suas identidades nem reprimir ideias. Era um lugar, enfim, onde

certas narrativas contemporâneas seriam impossíveis.

Assim, aos poucos, pessoas de Lunaris começaram a ocupar cada vez mais

tempo e espaço na vida de Alberto. Deixaram de transitar apenas em seu mundo e

iniciaram um trânsito intenso no mundo real. Elas entravam e saíam da sala de sua casa,

de seu escritório ou de qualquer parte. E, apesar de saber do risco que corria em se

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deixar ficar na companhia de pessoas visíveis apenas para ele, sentia-se muito mais

estranho quando resolvia circular no mundo de fora, aquele que as outras pessoas

enxergavam como normal. Sentia-se confuso e não sabia explicar por que as ruas de

Lunaris sempre se confundiam com as ruas de Salvador dos anos 70.

Ficção dentro da ficção, Lunaris representa o embate de um homem que

procura vestígios de um lugar onde as coisas e as pessoas pareciam possuir essência,

como reflete o discurso de Márcio, um de seus amigos mais próximos:

Esse relativismo sem limites que se impôs na cultura ocidental na última metade do século XX é um dos grandes males dos nossos tempos dessa chamada contemporaneidade (torceu um pouco a boca, quando disse esta palavra). – Existem sim, valores sólidos, absolutos e precisamos nos fortalecer em torno desses valores. A Honestidade, a Ética, a Fraternidade. (RIBEIRO, 2007, p. 27).

Contudo, Lunaris não é totalmente o que Alberto procura. As pessoas que

habitam esse lugar também não são as pessoas que ele conheceu naquela época. Mas é

um lugar no qual é permitido se perder e admitir, sem maiores problemas, que todos

somos, em certa medida, vultos fantasmagóricos. Essas também são as observações que

Alberto faz a respeito do mundo fora de Lunaris, no qual tudo se mostra tão impalpável

que quase nada nos escandaliza, nem o fato de, segundo Alberto, estarmos nos

transformando em fantasmas:

Apesar de todas as informações que circulam pela mídia e pela Internet, o homem parecia se comunicar cada vez menos. Alberto estava cada dia mais convicto de que as relações entre as pessoas – essas pequenas luzes perdidas na planície – eram cada dia mais irreais. Mediadas pela TV e pelo cinema, tornavam-se simulacros de relações. [...] – Este é um problema grave. Estamos nos transformando em fantasmas. (RIBEIRO, 2007, p. 46).

Além do mais, existe em Alberto a consciência de que somos formados por

discursos, por narrativas que, embora necessárias, também nos fazem criaturas

imaginadas pelos outros e por nós mesmos. Percebia que somos convocados a inventar,

então, uma infinita narrativa sobre nós e sobre o mundo, dentro da qual outras tantas

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pequenas histórias emergem. Por isso, muitas vezes, esse livro alcança um tom de

crônica ficcional.

Ora, Alberto carrega consigo a sensação de desterro em uma vida que lhe

parece cada dia mais estranha, como se ela fosse a invenção de outra pessoa. Afinal,

nem a cidade, a Salvador atual em que transitava, se parecia com um lugar familiar.

Alberto duvidava da realidade ou da autenticidade das pessoas com quem convivia, do

jeito como elas levavam a vida e até das suas ações. Ele visitava, com mais frequência,

Lunaris, lugar tão absurdo quanto todo o resto, mas sobre o qual, ao menos, tinha

certeza de seu caráter de invenção, assim como do caráter inventado das pessoas que lá

viviam.

As ruas de Lunaris se confundiam com as ruas da Salvador da década de 1970,

talvez porque aquele era um tempo em que Alberto sentia-se seguro e tranquilo, ao

passo que a cidade atual parecia sempre outra, perdida numa virtualidade alucinada.

Alberto representa um homem-testemunha da transição dos tempos modernos aos pós-

modernos, que se mostram, tantas vezes, vazios no sentido de se poder acreditar em

algo duradouro, em algo que não nasça destinado a ser substituído.

Alberto, enfim, gostaria de recuperar o tempo em que tudo parecia possível, em

que o futuro era uma terra prometida e a vida não figurava apenas como um conceito,

como demonstram as palavras a seguir: “Tinha vontade de colocar os pés num terreno

neutro, numa outra dimensão, na qual poderia fazer tudo o que quisesse, sem que fosse

atingido por qualquer conceito e preconceito” (RIBEIRO, 2007, p. 16).

Aí vemos o quanto pesa a consciência de que tudo é constituído pela

linguagem que se estrutura em discurso, conceitos e interpretações impostas e

reguladas. Lembro-me aqui, de uma reflexão de Paul de Man, inserida no prefácio do

livro O que é um autor?, de Foucault, citada por José Bragança de Miranda e António

Fernando Cascais. De Man (apud MIRANDA; CASCAIS, 2009, p. 15) diz o seguinte:

“Na medida em que a linguagem é figura, na realidade nunca é a coisa em si mesma

mas a representação, a imagem da coisa e, enquanto tal, é silenciosa, muda como as

imagens o são”. Por isso, Alberto deixou emergir como narrativa um lugar feito de

linguagem, símbolo da resistência ao que vivenciava, mesmo sabendo que a linguagem

tem sempre um quê de privação e de ausência:

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Esse lugar que chamava de Lunaris [...] era uma forma especial de pensar. Só mais tarde descobriria que era, de fato, um lugar. Um estranho mundo mutável que, com o tempo, adquiria o status de realidade – estranha, mas nem por isso menos real. Nele, Alberto dava-se ao prazer às vezes pervertido (se tal palavra fizesse sentido naquele lugar), de refazer pessoas, de reconstruir acontecimentos, de eliminar todos aqueles que o aborreciam. (RIBEIRO, 2007, p. 17).

Há, nessa dinâmica, a representação de uma percepção de todas as perdas que

tivemos até adentrarmos nessa nebulosa pós-modernidade. Percepções sobre as quais

Alberto sentia-se à vontade para falar com os seus amigos de Lunaris, pois, fora daquele

espaço, sentia a opressão da vida cotidiana espremê-lo nos papéis que tinha de assumir.

Daí que, em alguns momentos, precisava da presença dos habitantes de Lunaris, com os

quais se sentia seguro para desabafar: “Era horrível o que a vida – seria melhor dizer: o

sistema – fazia com as pessoas, destruindo todos os sonhos, pulverizando toda a beleza

e a juventude, e todas as potencialidades negadas. Que desperdício!” (RIBEIRO, 2007,

p. 15).

Alberto, entretanto, não aspirava a um mundo em que pudesse viver a partir de

verdades absolutas. Afinal, todo absolutismo é uma forma de matar a liberdade. Queria,

apenas, ter a possibilidade de afirmar coisas, queria ter a chance de manter crenças que

não o fizessem parecer um louco ou alguém que não possuísse posicionamentos críticos,

ao mesmo tempo em que queria sentir-se livre para desconstruir e construir as

identidades que o transpassavam de forma altamente performática, já que, como atestam

as palavras de Hall sobre as identidades:

Elas surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva material ou política, mesmo que a sensação de pertencimento, ou seja, a “suturação à história” por meio da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e, portanto, sempre, em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático. (HALL, 2012, p. 109).

A concordância entre os dois discursos, o ficcional e o teórico, exemplifica o

que sinalizei anteriormente a respeito de definições de fronteiras. Lunaris nasce como

um meio de interrogar as questões que nos assaltam na práxis teórica das humanidades.

Seria esse livro, então, apenas ficção? Seria um texto teórico que coloca as ideias do

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autor por meio de narrativas e personagens? Onde começa um intuito e termina o outro?

Podemos, creio, enxergá-lo como um drama que encena a vontade de perder-se

indefinidamente, para poder se achar em outro nível, sem precisar preocupar-se em

elaborar planos provisórios que, sabemos, vão se desvanecer no meio do turbilhão de

imprevistos. Daí o “relativismo sem limites” do qual fala Márcio.

Vivemos um jogo em que as regras de participação podem se resumir em

descobrir o construto que sustenta todas as coisas, demoli-lo e substituí-lo por outros,

como se os últimos fossem a verdade. E mesmo que Márcio defenda valores sólidos e

absolutos, é preciso lembrar que Lunaris não existe concretamente. Esse espaço irônico

seria, então, a celebração de um mundo que se assume pura simulação, um mundo

constituído no intervalo de todo conceito. Lunaris é feita de realidades simuladas. Mas

existe outra forma de realidade? O máximo que podemos afirmar é que tudo é uma

coisa e também outra.

Aliás, o hibridismo parece mesmo ser uma das poucas marcas legíveis da pós-

modernidade, e parece abarcar a tudo. Em Lunaris, abarca inclusive a cidade,

envolvendo-a no jogo da presença e da ausência, conforme ilustrarei a seguir.

2. 2 Lunaris – a metafísica da cidade ausente

Ao analisar como o multiculturalismo tem sido narrado na literatura, Néstor

Canclini cita o romance de Ricardo Piglia, A cidade ausente (1992), como um exemplo,

entre tantos que traz, de como é impossível dizer a cidade através de uma narrativa

inteira, única, linear. Mostra-nos Canclini (2010, p. 121) que A cidade ausente

“exaspera a superposição de histórias e a digressão como sintomas da impossibilidade

de juntar os infinitos relatos em uma só narrativa”.

Desde a modernidade de Charles Baudelaire, a cidade tem figurado como

principal personagem das mudanças que representam um novo momento para o mundo

e para o homem, mudanças trazidas por um progresso assustador que Baudelaire

vivenciava através da figura e da prática do flâneur. Flanar pela cidade e pasmar-se

diante de tanta novidade e, ao mesmo tempo, diante da impessoalidade da turba que

enchia as ruas e do isolamento de cada indivíduo que a compunha eram experiências

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modernas por excelência, simbolizadas pela sua poética. Mais do que isso, o flâneur,

segundo Canclini (2010), não apenas era a testemunha das descontinuidades da vida

urbana, mas também uma forma de tentar organizar as cenas assistidas em mil partes da

cidade.

No que concerne à narrativa, essa mesma modernidade também deixou muitas

marcas. A modernidade fundou uma nova forma de romance porque as narrativas agora

precisavam dar conta de toda perturbação urbana que presenciavam. Precisavam

aprender a lidar com a cidade que agora borbulhava em vida e que parecia reivindicar

seu direito de não mais figurar como mero cenário, mas de emergir como um tipo

diferente de personagem. A respeito da novidade moderna, Steven Johnson conclui o

seguinte:

Para os modernistas que se viam diante das cidades em processo de auto-organização, o problema era grave porque a forma do romance havia se especializado em apresentar a multiplicidade dos destinos individuais ou a vida de famílias interligadas. Como escreveu Raymond Williams, os romances tradicionais eram “comunidades cognoscíveis”. (JOHNSON, 2009, p. 867, destaque do autor).

Do flâneur até aqui, o barulho e a aparente falta de sentido foram, de alguma

forma, transformados em experiência estética, e a cidade, em caleidoscópio dotado de

consciência. As grandes metrópoles aumentaram absurdamente seu fluxo de moradores

e passantes, atraíram pessoas vindas de muitas partes, e o que se tem chamado de

crescimento urbano tem transformado a paisagem das cidades em um grande quebra-

cabeça vivo, que muda suas peças a todo o tempo. A presença de várias culturas

inseridas num mesmo espaço oferece um espetáculo que tem suscitado interesse por

parte da Sociologia, da Antropologia e dos Estudos Culturais, pela observação de uma

dificuldade crescente em se demarcarem claramente as identidades culturais, que

sustentavam o sentimento de pertencimento a um determinado grupo coeso de

convenções e costumes familiares.

A aceleração do ritmo da vida nesses grandes centros elevada à sua potência

máxima mergulha todos os que dele participam em um estado de aceleração crônica por

causa da relação inversa do tempo disponível, as tarefas a cumprir e as informações a

absorver, as quais mudam e se atualizam a todo instante. Esses elementos provocam

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uma certa angústia em nós, mulheres e homens pós-modernos, uma falta de fixidez,

colocando-nos em condição de viajantes que tentam captar o máximo das cenas e dos

acontecimentos que explodem por toda parte e, ao mesmo tempo, como nos dizem ainda

as palavras de Canclini (2010, p. 123): “Como nos vídeos, a cidade se fez de imagens

saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Para ser um bom leitor da vida

urbana, há que se dobrar ao ritmo e gozar as visões efêmeras.”

São, de fato, as visões efêmeras e mutantes que fazem das grandes cidades

contemporâneas um evento de contínuo desaparecimento, cheias da presença concreta

de uma ausência de unidade, da ausência de marcas que possam diferenciar umas em

relação às outras. Os símbolos tradicionais já não são suficientes para sustentar uma

identidade cultural sem infiltrações ou comunicações multiculturais, pois, “Mesmo nas

cidades carregadas de signos do passado, como a capital mexicana, o encolhimento do

presente e a perplexidade diante do devir incontrolável reduzem as experiências

temporais e privilegiam as conexões simultâneas no espaço” (CANCLINI, 2010, p. 121-

122). Daí que o romance, a partir da modernidade, tenha se transformado em um dos

gêneros mais acolhedores desses lugares e de seus transeuntes, pois, sendo narrativa

fragmentária por excelência, representa o indivíduo cindido, multiplicado, juntamente

com a cidade que se mostra um processo em aberto.

É esse mesmo devir incontrolável que esvazia o sentido da cidade atual em que

Alberto circula todos os dias. E esse esvaziamento o faz cada vez mais assíduo em

Lunaris, que também é a simulação da cidade perdida no passado, da qual o personagem

procura vestígios, mas apenas os encontra em sua memória precária e fragmentada, tão

fragmentada quanto a cidade que agora vivencia. Lunaris rasura a metafísica de uma

ausência, já que encena a busca por uma permanência e unidade que não há, nem em

relação à cidade nem em relação ao sujeito. Pois, se a modernidade trouxe a cidade

como componente complexo e ativo para as narrativas, agora, na pós-modernidade, a

falta de nexo experimentada em sua vivência tornou-se máxima, fazendo com que sua

representação se dê através da desistência de organizá-la por meio da narrativa.

Mas, conquanto nos pareça impossível narrar essas cidades em seus flashes e

efervescência, Alberto decide apenas relatar o que vê como um repórter incrédulo e, ao

mesmo tempo, conformado, vagando entre os escombros de um tempo perdido e a

inconsistência de um tempo impalpável. Percebe, então, que a única maneira de

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vivenciar a Salvador nova é como pura abstração, e que, no final das contas, Lunaris e

sua cidade eram feitas da mesma substância fugaz: sonho.

Por isso mesmo, Alberto tenta narrar os dois lugares, mas se depara sempre

com o desconhecido. Começa mesmo a embaralhar as poucas certezas que tem e passa a

confundir pessoas de Lunaris com pessoas da vida exterior. Vê-se perdido entre dois

mundos e multiplicado pelas posições que assume em um e em outro lugar. Suspeita da

existência e da realidade de tudo e de todos, inclusive da sua. Começa a questionar-se,

por fim, sobre a possibilidade de ser ele a invenção de outra pessoa, de seu amigo de

Lunaris, por exemplo, chegando depois à conclusão (embora provisória como tudo) de

que, de alguma forma, era mesmo uma invenção. Que, por isso, é ele, Alberto, como até

então se concebia, e também muitos outros, conforme o concebiam, “que ele era três,

talvez, incluindo ele próprio; ou quatro, incluindo, Judite; ou cinco, incluindo você

leitor; ou seis, incluindo quem lhe escreve; ou...” (RIBEIRO, 2007, p. 48).

Incluir sua esposa Judite, o leitor e até mesmo a persona que assina a capa do

livro é, penso eu, um modo de operar teoricamente o que passa por ficção na história. É

o movimento meta-histórico de ultrapassar os limites do real para, assim, poder melhor

indagá-lo.

O trânsito de Alberto em Lunaris e o conforto que sente mesmo quando

experimenta a expectativa do desconhecido decorrem do fato de Lunaris ser uma

invenção sua, que, estando em pleno processo de construção, funciona como reflexo

invertido dessa época veloz. Lá, o tempo não é marcado, as pessoas não possuem papéis

definidos e nem nomes algumas vezes, mas mantêm vivas as lembranças de um lugar

mais seguro, como as cidades pré-modernas, onde as narrativas atuais não fariam

sentido porque lá as histórias ainda podem ser costuradas com algum nexo. Além de

tudo isso, Lunaris representa a agonia que Alberto experimenta ao transitar por

contextos muito diferentes, mas que coexistem, como afirma Canclini (2010, p. 124):

“Como pessoas modernas e pós-modernas, oscilamos entre duas posições que

coexistem”.

Pensando em Lunaris e nessas palavras de Canclini, outras me ocorrem, e são

com elas que gostaria de finalizar esta seção. Dizem assim: “Enquanto os homens

produzem nexos e concatenações, as histórias tornam a vida suportável e são um auxílio

contra o terror” (WENDERS apud CANCLINI, 2010, p. 125).

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2.3 O simulacro como forma de sobrevivência

Em sua polêmica Genealogia da moral, Nietzsche empreende a seguinte

análise:

Um artista inteiro e consumado está sempre divorciado do “real”, do efetivo; por outro lado, compreende-se que ele às vezes possa cansar-se desesperadamente dessa eterna “irrealidade” e falsidade de sua existência mais íntima e faça então a tentativa de irromper no que lhe é mais proibido no real, a tentativa de ser real. (NIETZSCHE, 2011, p. 39, grifo do autor).

Invoquei essas palavras por encontrar nelas alguma relação com o romance de

Carlos Ribeiro. Conforme venho apontando, o autor parece mesmo estar disposto a

refletir sobre várias questões teóricas presentes no fluxo das discussões atuais, seja o

contexto contemporâneo e o que implica estar nele, seja a forma como o indivíduo se

relaciona com as demandas da pós- modernidade ou ainda as mudanças flagradas nos

espaços em que transita. Todavia, o autor parece ter escolhido pensar todas as questões

que levanta através uma perspectiva: o modo como temos pensado, conceituado e nos

relacionado com a realidade.

Nesse livro que busca questionar as origens das ideias que formaram a nossa

cultura ocidental, quando afirma que um artista está sempre divorciado do real,

Nietzsche (2011) está, sem dúvida, pensando na percepção diferenciada que os artistas,

em especial os poetas, têm do que chamamos realidade. Enquanto a filosofia clássica,

apoiada na tradição platônica, afirmava a existência de uma realidade concreta, derivada

de uma presença imaterial anterior ao próprio tempo, algo que existiria apenas no

mundo metafísico das ideias de onde nasceria a essência de todas as coisas, a arte criava

realidades outras. Realidades que não tinham a pretensão de serem vistas como

verdades absolutas, mas, sim, como possibilidades tão distintas quanto podem ser as

visões de mundo.

Nesse sentido, os artistas são artífices que fabricam realidades cujas origens

remontam ao momento mesmo de sua invenção e criação. A arte apresentaria, assim,

muitas versões do real e, por sua vez, seus criadores estariam, como quer Nietzsche,

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sempre divorciados da verdade, no sentido metafísico do termo, e mergulhados na

irrealidade da imaginação.

Contudo, de acordo com o que se pode concluir até aqui, a irrealidade,

enquanto ficção, criação dinâmica e efêmera, vazou do campo da arte para nossas vidas

cotidianas, desde que ao espaço midiático da TV somaram-se as avançadas tecnologias

de comunicação, informação e propaganda, construindo juntas um mundo

multidimensional no qual produtos, notícias e experiências bombardeiam as nossas

pupilas e ouvidos. As imagens dessa era tecnológica, revestidas de toda magia técnica,

cativam nossos sentidos tornando-se familiares no nosso dia a dia e virtualizando nossas

vidas.

Aliás, a rede virtual permite que qualquer pessoa seja, naquele espaço, quem

quiser ser. Fazer um perfil usando a imaginação, fazer um corpo e um rosto, criar um

nome para alguém que de fato não existe é muito fácil. Então, o quanto podemos

afirmar que as nossas relações são reais? Como podemos definir, enfim, o que é e o que

não é verdadeiro?

O fato de precisarmos nos desdobrar para fazer mil coisas e aprender outras

tantas, sem perder de vista tudo que está aparecendo no mesmo instante, nos iguala, na

maior parte do tempo, a máquinas programadas e, outras vezes, nos deixa vazios como

sombras. Essa é a leitura que se pode fazer do seguinte trecho de Lunaris:

De repente, o mundo real, marcado pela experiência direta com a terra, que oferece resistência, escapa ao homem, deixando em seu lugar, um estranho vácuo no qual nada de sólido pode subsistir. O homem da era virtual já não consegue arrancar segredos à natureza; no oceano da escuridão, apesar de todas as informações que circulam pela mídia e pela Internet, o homem parecia se comunicar cada vez menos. Alberto estava cada dia mais convicto de que as relações entre as pessoas – essas pequenas luzes perdidas na planície – eram cada dia mais irreais. (RIBEIRO, 2007, p. 46).

Essas palavras compõem parte do diálogo entre Alberto e seu amigo de

Lunaris. O desabafo de um homem deslocado no espaço e angustiado com seu tempo é

combatido por Márcio, que não concorda com Alberto e tenta convencê-lo de que sua

visão é exagerada e limitadora. Mas Alberto continuava a achar tudo absurdo, inclusive

aquela discussão e aquelas palavras:

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Agora veja só até que ponto nós chegamos, pensa Alberto. Um fantasma criado por sua carência e por sua solidão, sai do seu mundo inexistente para convencê-lo de que somos reais. Uma ideia atravessou, como um raio, o espírito de Alberto, paralisando-o. “Serei eu, na verdade, uma criação dele? Serei eu o simulacro?” (RIBEIRO, 2007, p. 46).

Essa irônica passagem remete à lembrança de que a desconfiança em relação

ao que experimentamos como real vem de longe e acompanha outras indagações

primordiais. Lembro-me aqui, por exemplo, da antiga fábula oriental na qual consta que,

um dia, um sábio sonhou que era uma linda borboleta, mas, quando acordou, já não

sabia com certeza se era um sábio que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma

borboleta que sonhava ser um sábio. Um pensamento mais recente trazido por Paz

(1998, p. 94) nos leva até o romantismo com as palavras do poeta e dramaturgo

espanhol Calderón De La Barca: “A vida é um bem ilusório porque tem a duração e a

consistência dos sonhos”. Mas a fala de Alberto destacada acima nos leva a dois

pensamentos que considero fundamentais para pensarmos a realidade e sua relação com

a arte e com a vida.

O primeiro deles, que já esbocei brevemente, é fundador da tradição ocidental

da mimese. Tem a ver com a compreensão da vida dividida entre a realidade concreta

das coisas, que são cópias das ideias originais, e com a imitação da realidade através da

arte. E quem primeiro documentou essa oposição foi Platão, cujo ato de expulsão

simbólica do poeta de sua República é um importante ponto da teoria literária. Como se

sabe, para o filósofo clássico, o imitar da arte seria prejudicial ao desenvolvimento da

Polis, pois criava objetos falsos, que confundiam a consciência dos bons cidadãos.

O pensamento platônico, sem dúvida, estruturou a ideia de realidade, de

essência abstrata e das coisas dadas a priori, imanentes de um supramundo. Mimetizar o

real seria, pois, criar mundos falsos onde todo tipo de desproporção torna-se possível.

Depois disso, a mimese foi reconhecida por Aristóteles como legítimo modo de copiar a

vida e, principalmente, um modo de deleitar e ensinar através de seu poder lúdico.

Assim, a arte teria adquirido para sempre um código de simulação, de representação da

potência da realidade.

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Todavia, em 1967, Gilles Deleuze escreve “Platão e o simulacro”, que se

encontra no livro Lógica do sentido, o qual pretende explicar e executar o projeto

nietzschiano, que propunha a reversão do platonismo, conforme explica o próprio

Deleuze (2009, p. 267):

Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência, ou Modelo-Cópia. Essa distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, crepúsculo dos ídolos. (grifos do autor)

Na época em que foi publicado esse texto, o mundo ocidental já operava não

mais através de uma ordem estabelecida e sempiterna, mas experimentava a regência

das desconstruções 6. A ideia de representação não poderia, portanto, ficar restrita à arte,

pois os modelos e as convenções sociais já vinham sendo contestadas como

performances e a própria tradição, como inventada. A arte e a vida não podiam mais ser

organizadas num processo dialético de posições absolutas marcadas. Por isso, Deleuze

faz questão de esclarecer que não se trata mais de distinguir essência e aparência,

modelo ou cópia, pois esses conceitos platônicos não davam conta de definir o mundo.

A arte enquanto criação não nega o seu caráter de simulacro: antes reivindica o

direito de existir como criação vívida e não apenas como representação ou cópia da

realidade. Quer coexistir entre as cópias e os modelos, como campo autônomo porque

“O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega

tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução” (DELEUZE, 2009, p.

267). Portanto, o projeto de reversão do platonismo contesta tanto a ideia de original

como a de cópia.

Conforme estive analisando a partir do romance Lunaris, a noção de simulacro,

como a propõe Deleuze, se aplica à nossa vida de forma muito coerente. Indo mais

longe, Ribeiro, no movimento analítico-reflexivo que empreende em sua narrativa,

acaba por dialogar com outras visões teóricas, como a de Gustavo Bernardo (2006), que

6 Desconstrução é um “Termo proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida, nos anos sessenta, para um processo de análise crítico-filosófica que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência para o logocentrismo, incluindo a crítica de certos conceitos (o significado e o significante; o sensível e o inteligível; a origem do ser; a presença do centro; o logos, etc.) que tal tradição havia imposto como estáveis.” (CEIA, 2015).

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escreve também acerca da problemática ficção/realidade. É como se Carlos Ribeiro

estivesse sinalizando, por meio dos delírios de Alberto, que não há outro caminho a

chegar, a não ser, como teoriza Bernardo (2006, p. 7-8), “à constatação milenar de que,

se a realidade existe, ela não se deixa perceber a não ser como ficção”. Para isso aponta,

por exemplo, o trecho já citado neste trabalho em que o personagem afirma estarmos

todos nos transformando em fantasmas.

Uma leitura apressada daquele trecho pode levar à conclusão de que Alberto

persegue a concretude, a segurança e a essência perdidas. De fato, ele carrega consigo o

fardo dos exilados. Mas não nos esqueçamos de que toda arte nasce com a marca do

simulacro, e como tal expõe as semelhanças e encobre as diferenças. O que quero dizer

é que, de posse desse entendimento, Ribeiro inverte o espelho no qual estamos

acostumados a nos mirar. Usa a ficção para alcançar a nossa realidade ficcionalizada.

Usa a sua ficção para dizer da nossa ficção sem, no entanto, o peso que têm as

declarações categóricas feitas fora da literatura.

A história de sua narrativa não sai da loucura ou da imaginação em direção à

razão, mas ao contrário, quanto mais analisa a ideia do que conhecemos como realidade,

mais dela se distancia. Na verdade, é a realidade imaginada de Lunaris, criada pela

persona fictícia de Alberto, que mais lhe acena como segura e familiar. E parece que é

sobre essa postura inerentemente burlesca do simulacro, e por consequência da

literatura, que Bernardo (2006, p. 9) afirma:

No fundamento, é disso que trata a literatura de ficção: desconfiando que a realidade conhecida seja basicamente fictícia ainda que não se admita como tal, para não mergulhar no niilismo assume a responsabilidade por desenhar uma outra realidade que se assuma desde o princípio como um desenho. Ora, é esta assunção da responsabilidade que empresta à ficção sua força: a força de parecer mais real do que o real cotidiano.

Lunaris é uma leitura crítica dos nossos tempos conturbados. Mas também é

mais. A Lunaris criada por Alberto representa toda a ficção e, por ascendência, a

reversão do platonismo. Observe-se o fato de esse personagem narrar a sua gradual

transformação em um simulacro de si mesmo em um mundo inventado ao qual se vê

cada vez mais adaptado. Alberto confessa passar cada vez mais tempo conversando com

seus amigos de Lunaris. Também se encanta por uma mulher daquele lugar, cuja

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identidade vai sendo construída à custa do apagamento das identidades reais que

Alberto conhece.

E, entre tantas descobertas, a narrativa chega ao ponto em que seu protagonista

precisa decidir entre uma realidade e outra, sob pena de desaparecer se não o fizer. O

narrador não nos diz, com certeza, da escolha de Alberto. Mas, durante todo trajeto, o

personagem se mostra gradativamente distanciado de seu mundo exterior, e a última

visita a Beatriz, a mulher por quem se apaixona em Lunaris, coloca-se como um ato

definitivo. Saindo dali, resta-lhe apenas a derradeira chance de escolher entre as duas

vidas. O homem é posto diante de duas casas idênticas, metáforas dos dois mundos.

Alberto entra em uma delas e se depara com uma mulher que estava nua à sua espera.

Essa mulher, sobre quem não nos é dado maiores esclarecimentos pode ser Beatriz, o

que nos levaria a inferir que Alberto se deixou ficar em Lunaris, de uma vez por todas.

Na verdade, ao entrar em uma das casas, o livre arbítrio de Alberto é suspenso e a

responsabilidade de escolher o seu destino é transferida ao leitor, apesar de as poucas

pistas narrativas tenderem para sua permanência em Lunaris. Todavia, escolher Lunaris

é deixar triunfar o simulacro, é reconhecer sua realidade e potência. Mas escolher a

outra vida também é.

Que conclusão podemos tirar disso tudo então? Uma hipótese é a de que não

existe, como já vimos, outro modo de realidade que não seja alcançada senão pela

ficção. Afinal, Alberto estava dividido entre dois mundos: o mundo de sua esposa

Judite, seu trabalho cotidiano, seus afazeres rotineiros, mas que, nem por isso, era um

mundo familiar; e um mundo totalmente desconhecido, que ia tomando forma de acordo

com o que ele, Alberto, imaginava. A ironia atravessada na história é percebida desde

logo: as duas possibilidades colocadas diante de Alberto são ficções; uma é o simulacro

da outra. Alberto é um personagem de ficção e não pode viver de outra forma.

Em um texto que propõe reler a ideia de Deleuze, Alessandro Carvalho Sales

coloca a seguinte questão subversiva:

O que poderia ocorrer se a imagem – para além de somente despreocupar-se com seu grau de semelhança e em evitar a submissão à ideia – se ela passasse, ardilosamente, a buscá-lo de uma maneira tão correta e precisa que mal fosse possível elaborar a distinção ela e o modelo? (SALES, 2004, p. 3-4).

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Acredito que esse seja o artifício de reversão do platonismo na pós-

modernidade e, por assim dizer, da literatura pós-moderna. Artifício insuspeito de

Platão e também de Deleuze. O simulacro, não mais reivindicando ser independente dos

modelos ao ostentar sua irrealidade outrora mal vista, mas, contrariamente, fundindo-

se, ao máximo, aos aspectos do original, consegue fazer com que sua semelhança

exceda o nível de imagem marcada por uma tênue aparência e inegável diferença e, a

partir disso, constitua em seu exterior uma semelhança mais profunda. Porém, essa

semelhança sentida em profundidade não objetiva tomar o lugar das cópias aceitáveis,

mas, em representando-as, consegue desconstruí-las em suas fragilidades, funcionando

como o espelho de Narciso: a um só tempo revelador e algoz. Afinal de contas,

“Arrastamo-nos em um mundo de simulacros, não há outro” (AGUIAR apud SALES,

2004, p. 4). E pretender ser igual ao modelo seria, em última instância, singularizar-se,

já que aí vemos a imagem falsa que ousou ser a mesma: simulacros e originais

embaralhados.

A leitura de Deleuze auxilia na compreensão desse truque de ilusionismo,

porque, segundo sua perspectiva:

O simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista. (DELEUZE, 2009, p. 264).

O observador faz parte do simulacro em certa medida, pois é a sua visão sócio-

histórica, somada à sua visão individual, subjetiva, que vai formatar a aparência e o

significado do simulacro. Talvez por isso, Oscar Wilde tenha se adiantado em advertir,

no conhecido prefácio de O retrato de Dorian Gray (WILDE, 1998), que “A arte reflete

o espectador e não a vida”. De qualquer forma, em Lunaris, Ribeiro cria, com sua

narrativa, o simulacro de um simulacro maior, embaralhando os sentidos de ficção e

realidade e, sobretudo, apostando no simulacro como a única forma de sobrevivência.

E se o simulacro nasce de uma inventividade subversiva, reconhecê-lo como

potência é também reconhecer a potência do homem, que, confuso, reúne todo seu

potencial e cria na arte maneiras para pensar o mundo e sua própria existência, pois,

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conforme suspeitam as palavras do prefácio do livro O que é um autor?, de Foucault

(2009b, p. 17), “Trata-se de investigar se a realidade do homem não será acessível

apenas fora da distinção entre o psicológico e o filosófico; se o homem, nas suas formas

de existência, não será o único meio de aceder ao homem”.

Contudo, se acreditarmos que o simulacro que é a arte contém, em sua imagem,

também o espectador, não seria prudente deixar de indagar o que Lunaris nos diz sobre

nós mesmos. Ora, esse livro nos oferece a história de um homem cansado de se ver

perdido, mutilado, deslocado e partido em mil pedaços; rodopiando neste furacão

chamado presente, e que tenta, então, fazer o caminho de volta. Quer sentir-se

novamente seguro, inteiro, familiarizado com o mundo e com ele mesmo. Por isso,

Alberto cria Lunaris e por ela se vê tragado aos poucos. Mas isso nos convence de que

sua busca teve sucesso? Lunaris não existia de fato e talvez nem mesmo Alberto.

Mesmo assim, aquele simulacro que nos representa não desiste de sua busca, mesmo

que ela termine no nunca-cumprir-se.

Então, quem sabe a arte, em seu poder refletor, não esteja mostrando o homem

contemporâneo cansado de se saber múltiplo, cindido, estrangeiro de si e do mundo,

tentando fazer o caminho de volta, ansioso que está à procura de si? Resta saber se essa

é uma busca possível. Por ora, o que posso afirmar diante da narrativa de Ribeiro e da

própria vida é que essa é, no mínimo, uma busca quixotesca. É sobre isso que falarei

mais à frente.

2.4 Abismo – uma aventura improvável na selva da contemporaneidade

A narrativa de Lunaris, decerto, cria simulacros que se sobrepõem, se afastam

e se confundem. Esses simulacros são como imagens aparentes, dispostas em uma sala

de espelhos que, refletindo a realidade exterior, não deixam de modificá-la, distorcê-la e

transformá-la. Lunaris relata como o exterior deforma e molda o interior, colocando em

pauta os artifícios de que a subjetividade e a arte têm lançado mão para sobreviver em

um mundo onde “tudo é vento e disfarçar”, como cantou Fernando Pessoa. Lunaris,

pois, não é a representação de uma luta, mas, da rendição final, da entrega dos

combatentes à vitoriosa ficção. Não representa uma derrota, mas uma desistência

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libertadora. É também um alerta e um pedido de socorro emitido aos navegantes desse

revolto mar chamado presente.

Abismo igualmente discute os paralelos e os paradoxos entre a realidade e a

ficção, entre a razão e a loucura, entre o mundo de fora e o mundo de dentro. Mas, é dos

embates e das batalhas que se ocupa. Abismo conta a história de uma jornada sem fim,

que se reitera no ato aventureiro de viver em uma época na qual sonho e lucidez,

realidade e ficção, delírio e racionalidade se confundem no show da vida, onde a

superexposição e a perda da personalidade individual são, ao mesmo tempo, condição e

resultado do espetáculo. Por isso, Abismo é o diário de bordo de uma aventura absurda.

Absurda porque nos relata a busca de um homem por certezas e verdades em um tempo

incerto e duvidoso.

Publicado em 2004, Abismo surpreende pelo discurso e pela história. A

narrativa se inicia com um tom confessional, como se o narrador que é o próprio

viajante, entregasse ao leitor o seu diário ou mesmo lhe convidasse a tomar parte de um

caso curioso. O relato principia já estando guardado no passado, mas, ao que parece, em

um passado próximo, cujo único indicador temporal, “No inverno passado” (RIBEIRO,

2004, p. 13), tem muito mais o papel de deixar a história solta em algum momento da

vida de quem narra do que o de localizá-la em um tempo datado. Esse recurso não

apenas distancia o personagem-narrador do que vai narrar, mas também envolve a

narrativa num quê de mistério, bem à maneira das antigas histórias contadas por

lendários viajantes.

Por essa razão, nem sempre o discurso e a história vão seguir em harmonia.

Afinal, apesar de não sabermos o dia e o ano exatos em que se inicia a jornada de

Abismo, as pistas pelo livro espalhadas intencionam sinalizar a contemporaneidade do

homem que fala. Ele não possui nome, é habitante de uma grande cidade, é jornalista e

escritor, e se acha cansado, pressionado pelo cotidiano estressante que a época da

instantaneidade lhe impõe. Não aceita a superficialidade com que os assuntos são

tratados por conta da falta de tempo e nem o vazio que aparentemente tem tomado conta

de todas as coisas e pessoas. E essa sensação incômoda, sem dúvida, o aproxima de

Alberto de Lunaris.

Contudo, na tentativa de mudar a sua perspectiva de mundo, o personagem-

narrador de Abismo decide executar a ação que dispara a história. Ele nos conta que:

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No inverno passado, movido por uma dessas ideias súbitas que chegam sem aviso ou maiores justificativas, decidi largar tudo que, há algum tempo, me esquentavam o juízo e partir para o Sul. [...] Eram dias ainda frios aqueles, quando o nevoeiro se desfazia no sol de agosto e as águas claras do Itambezinho refletiam os pinheiros que se estendiam em filas simétricas nos campos do planalto e projetavam vértices afilados no céu azul dos Aparados da Serra. As águas refletiam também as paredes amareladas do velho sobrado dos meus tios, Adolfo e Alice, onde cheguei de surpresa, numa gelada manhã, com um mochila surrada e um velho blusão amarelo. [...] Esquecido das tensões do cotidiano, e longe dos prazos de entrega de matérias para jornais e revistas, eu abrigava as imagens que fluíam da natureza para os meus olhos e refletiam-se, dentro de mim, em cores e formas infinitas. (RIBEIRO, 2004, p. 13-14).

Sem dúvida, estes são tempos em que estamos cada vez mais dependentes das

novas tecnologias, agarrados à promessa (verdadeira) de facilidade que elas oferecem e

em que até mesmo os ecoespaços podem ser reproduzidos pelos sistemas

computacionais. Enquanto os ambientes ditos naturais desaparecem, disputados pelas

mais diversas indústrias, vamos nos acostumando, cada vez mais, à selva que antes era

predominantemente de pedra e que agora, mais do que nunca, é constituída de imagens,

neon e várias outras coisas com que sonhou a nossa vã filosofia.

Porém, a despeito desses fatos, o homem que protagoniza o romance decide se

arriscar a empreender uma aventura que contraria o fluxo da vida contemporânea.

Resolve abandonar seu cotidiano ditado por prazos e acontecimentos-relâmpagos para

se embrenhar na natureza que ainda resiste em alguns lugares do planeta e, sobretudo,

em seu imaginário, idealizada como ponto de retorno a uma reserva do espírito humano,

o ponto de encontro com algo que parecia esquecido, mas que lhe é vital.

Volta, então, à casa dos seus tios, no meio da mata que se ergue nas serras do

Sul, mais especificamente na região dos Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul, onde

as imagens do tempo e da natureza permaneciam quietas e intocadas em sua memória

afetiva. E, de fato, lá estavam todas aquelas coisas que o fizeram bater em retirada: a

casa antiga, as pessoas antigas, as árvores, os rios, as aves, seu paraíso particular enfim.

Indo ao encontro de todas essas coisas, sentiu-se renovado, sem dúvida. Mas, quando já

estava mergulhado nas horas tranquilas que passavam ao sabor do ócio contemplativo,

vê-se novamente perseguido pela sombra daquela outra realidade cruel da qual tanto

desejava fugir.

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Os moradores da região estavam, naquele momento, destituídos da paz

costumeira, pois enfrentavam a ameaça de terem suas terras desapropriadas pelo

Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. O IBAMA, além de querer garantir a

preservação dos parques ecológicos, queria evitar que mais acidentes acontecessem,

como os que ocorriam quando as enxurradas desciam das montanhas para levar tudo

que estivesse lá embaixo, nos cânions, inclusive as casas dos colonos erguidas na região

e todos que por ali estivessem. Afinal, com a chegada do asfalto na estrada que dá

acesso aos cânions e aos parques, o número de moradores e turistas havia aumentado

consideravelmente, aumentando também o risco de desastres naturais.

O problema era que muitas das pessoas que moravam nas áreas protegidas

tinham nascido naqueles lugares e não se podiam imaginar vivendo em nenhum outro,

muito menos em grandes centros urbanos. O tio do personagem tinha esse tema como o

principal de suas conversas e, sempre que a ele voltava, vociferava contra o IBAMA,

contra o progresso e contra a imprensa. Cobrava atitude dos jornalistas iguais ao seu

sobrinho, que, segundo ele, deveriam usar as “suas armas” para denunciar aquele crime

abjeto que estavam cometendo contra a sua gente.

Enquanto o personagem escutava o discurso do seu tio repleto de rancor,

sentia-se irritado, desanimado e impotente. Começava, então, a pensar, enquanto, aos

poucos, deixava de ouvir a voz potente do senhor Adolpho:

Adiantaria dizer-lhe que passara dez anos da minha vida fazendo justamente isto: denunciando crimes, enfrentando empresários e especuladores imobiliários, políticos e burocratas encastelados nos seus argumentos em louvor ao progresso... na realidade, um louvor apenas aos seus próprios interesses escusos? [...] Hoje é moda falar em ecologia. Muitos continuam lutando e alguns resultados positivos nos deixam um fio de esperança. Mas, no que me dizia respeito, preferia recolher-me à solidão de um lugar quase virgem e entregar-me por algum tempo ao prazer de sentir, com a máxima intensidade possível, os encantos e as belezas que ainda possui. Pelo menos enquanto não colocassem meus tios para fora do Parque. Tudo que eu precisava era de uma trégua que tio Adolpho parecia não querer me dar. (RIBEIRO, 2004, p. 18-19).

Embora a aparente má vontade de Adolpho pareça ter ligação unicamente com

o problema prático que enfrentava, o narrador nos confessa saber que aquela

indisposição, apesar do afeto do seu tio, também resultava das suas escolhas

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profissionais, da sua atitude e posicionamento pessoal diante da vida e dos fatos, de sua

visão abstrata e, para seus tios, ingênua do mundo. Por isso, seus escritos e suas

opiniões divulgadas através deles eram assuntos também recorrentes nas reuniões à

mesa ou nas horas em que se deixavam descansar depois de degustarem os saborosos

pratos regionais que Dona Alice, sua tia, cozinhava.

Era ela inclusive que, para dispersar as discussões acaloradas entre seu marido

e seu sobrinho acerca do meio ambiente ou da afasia jornalística da qual Adolpho

insistia em acusá-lo, perguntava com um interesse irônico: “Então agora você escreve

sobre temas insólitos?” (RIBEIRO, 2004, p. 19). Ironia que não o deixava indiferente na

tentativa de dar seriedade ao entendimento que tinha da vida, do ser humano, da história

que o constitui e do que a maioria das pessoas chama de acaso:

Não se trata de exatamente de temas insólitos – acentuei a expressão, fazendo o possível para evitar o tom professoral que sempre assumia ao falar do meu trabalho. – O que eu procuro fazer é observar a vida por um ângulo menos convencional. Ou melhor, proporcionar ao leitor uma visão menos estereotipada deste milagre que chamamos de realidade ou existência. [...] A história da humanidade, e de cada homem individualmente, está repleta desses detalhes, referidos levemente entre uma e outra análise pretensamente profunda. São fatos menosprezados ou simplesmente ignorados, por vezes tomados como meros acasos ou coincidências, mas que se prestarmos atenção neles, poderemos ver, digamos assim, nas entrelinhas, acontecimentos significativos [...] A história em geral para essas pessoas, já não é uma dança cósmica, plena de significados, e sim uma expressão miúda das ideias preconcebidas daqueles que a escreveram e dos que as leem. Na realidade, são menos objetivas, no sentido de uma revelação da realidade humana, do que os mitos da antiguidade. E infinitamente mais pobres. Preconceitos soterrando preconceitos, ideologias sepultando ideologias... e a verdade, onde está? (RIBEIRO, 2004, p. 19).

Suas frases, suas expressões, seu tom de voz não convenciam seu tio, que

parecia não acreditar no que ouvia, parecia não acreditar que um homem culto, bem-

informado, pudesse pronunciar aquelas coisas que o mantinham preso do lado de fora

da realidade, a qual, segundo sua visão, estava ali, tão nítida e ordinária, sem lacunas

para contestações.

Por essa razão, nessas ocasiões, Adolpho sempre provocava seu sobrinho com

um riso irônico e amargo, no qual transparecia sua descrença, como na ocasião em que

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seu sobrinho desfiou aquele discurso sobre a história, a vida e a verdade, e ele

perguntou já afirmando: “Presumo que você pretende dizer onde está a verdade”

(RIBEIRO, 2004, p. 21). E, à recusa magoada do sobrinho, completou explodindo:

“Mas pra que diabo vale então seu trabalho? Eu faço história é com as minhas mãos. A

minha verdade se revela com fatos! O resto são bobagens de quem não tem nada mais a

fazer além de espreguiçar-se no lago e empanturrar-se com doces” (RIBEIRO, 2004, p.

21).

Ao relatar todas essas conversas e oposições intelectuais, o personagem-

narrador vai desvelando para o leitor as bases de suas perspectivas, desejos e, sobretudo,

de sua expectativa perante o mundo que esperava descobrir ao olhar através das coisas

gastas do dia a dia. Indicava também que não pretendia desistir de buscar a outra

verdade, diferente daquelas que seu tio professava. Aquela verdade que ele tenta

explicar no trecho transcrito no início deste capítulo, que tem a ver com uma realidade

ainda não experimentada, “uma realidade ainda não tocada pelos nossos conceitos

viciados” (RIBEIRO, 2004, p. 21).

Por isso, não demora muito para que a viagem prossiga e para que o

aventureiro arraste consigo o leitor para lugares incertos e desconhecidos. Mesmo

quando seus tios insistem em lhe expor os fatos reais e urgentes, as demandas práticas

da sobrevivência, aquele homem se mostra disposto a encontrar algo que lhe ajude a

provar que o ato de viver está ligado a um sentido mais profundo e misterioso do que

simplesmente existir entre as coisas e as pessoas.

Ele acreditava, assim como Aristóteles vislumbrou muito antes em seus

escritos ancestrais – e conforme o correr dos dias nos mostra –, que “é perfeitamente

verossímil que aconteçam coisas inverossímeis” (ARISTÓTELES apud BERNARDO,

2006, p. 38). A partir dessa perspectiva, eis que, em meio ao paradoxo que se instalava

entre aquela natureza deslumbrante e os clamores racionais de Sr. Adolpho, surge um

envelope misterioso, marcado com a imagem não menos misteriosa e aterrorizante de

uma ave pré-histórica.

Foi depois de passar a tarde contemplando o rio numa pescaria malsucedida

que a sua tia Alice lhe entregou o envelope. Desde o primeiro momento, os olhos, as

garras e os dentes da ave-réptil desenhada no papel desafiavam o destinatário, como se

ameaçassem, a qualquer momento, desferir o golpe de ataque e de captura. Mas a

abertura do envelope e o conhecimento do que estava dentro dele não deixaram a

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situação menos enigmática. Tratava-se de um convite ao recém-chegado, feito por um

homem que se apresentava como professor Ricardo, morador daquela região. No papel,

havia a localização sua casa, a indicação do caminho que levava até ela e também o

motivo do convite. Assim nos conta o personagem:

Um certo professor Ricardo diz interessar-se pelos meus artigos. Afirma que tenho ideias originais sobre como realçar o sentido oculto das coisas e acrescenta que a originalidade é um atributo da unidade – a fonte original de tudo que é o Nada, concluindo portanto que Nada é original. Por fim, informa que reside num lugar isolado não muito longe daqui e que não costuma receber visitas, mas convida-me para bebermos do vinho de uvas que ele mesmo faz e conversarmos sobre temas de interesse comum. Acrescenta, finalmente, que o convite é exclusivo para mim. (RIBEIRO, 2004, p. 23).

Ouvindo as palavras do sobrinho, D. Alice mostrou-se surpresa em não

conhecer aquele homem que dizia morar a oito ou dez quilômetros dali, na mata, em

direção ao cânion. Não menos surpreso ficou o seu sobrinho em saber que alguém

naquelas paragens poderia ter interesse em discutir temas insólitos, como gostava de

falar sua tia, e mais ainda, ter interesse em conhecê-lo.

O convite, a ave timbrada no envelope e um misterioso admirador são as armas

que disparam toda a ação da trama na qual o personagem-narrador e, claro, o leitor irão

se enredar. Ao aceitar o convite, no dia em que decide caminhar pelo coração da

natureza selvagem, o protagonista abre as portas de mundos paralelos que passam a

emergir na narrativa e que permanecem modificando a atmosfera da história. Enquanto

o personagem-narrador caminha rumo ao desconhecido, pode-se perceber uma espécie

de vertigem que vai migrando do texto para o leitor como uma corrente elétrica. Essa

sensação decorre da mistura de sentimentos e impressões que passam a reconstruir o

cenário móvel e mutante da jornada.

Talvez esses sentimentos transmitidos pelo homem que caminha se

assemelhem aos dos primeiros navegadores quando singraram seus barcos rumo ao

oceano desconhecido, e dos primeiros desbravadores das terras longínquas. Era, a um só

tempo, a sensação de medo e de orgulho, da coragem de seguir apesar de tudo, assim

como deve ter sentido Ulisses, Eneias, Arthur e tantos outros.

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A vertigem que salta da narrativa para o ato da leitura também tem a ver com a

mudança de perspectiva que ocorre quando o narrador abandona, aos poucos, o

distanciamento dos fatos narrados para ir mergulhando, gradativamente, no acaso dos

acontecimentos. É mesmo como se tudo estivesse sendo transposto do passado para o

presente, não mais pela rememoração, mas por algum recurso mágico. Como se o leitor

passasse a acompanhar a história, pela dinâmica de um filme no qual o destino dos

personagens muda durante as cenas e em que o porvir é inteiramente desconhecido.

Tudo isso ainda é intensificado pela contradição temporal que se instaura na mente do

aventureiro e do leitor. Paradoxalmente, caminhando rumo ao desconhecido, o homem

se move rumo a uma espécie de túnel do tempo que não o transportará do presente para

o futuro, mas, sim, para um passado longínquo e esquecido, representado pela ave pré-

histórica, um tempo cuja existência pode ser apenas pressentida:

Oh! Mas ali estava o desenho – a terrível ave-réptil lembrando-me um destino e um processo: antes, lá atrás, tia Alice, com seus quitutes e sua imensa generosidade; à minha frente, o desconhecido. Em algum lugar do planalto, isolado numa casa no meio de algum bosque, um homem, com suas ideias e a sua visão de mundo, aguardava a chegada de outro homem, agora levemente apreensivo: suportaria eu a visão de um arqueoptérix pousado no espaldar da cadeira, olhando-me com sua expressão medonha [...]. (RIBEIRO, 2004, p. 26-27).

A ave, sem dúvida, simboliza o elo perdido entre aquele homem, sua vida e

algo mais profundo e valioso que ele não sabia definir com certeza, algo que era o

motivo dos passos que o levariam ao Abismo. Então, caminhando como quem segue o

destino irredutível, o protagonista estava indo ao encontro de um estranho que, como

ele, buscava outras verdades, outra realidade, outra maneira de ser.

O homem morava em uma mansão povoada de objetos históricos, valiosos e

raros, achados arqueológicos que juntos cochichavam segredos sobre a história da

humanidade, das sociedades e do mundo. A casa parecia deslocada no tempo e no

espaço. Professor Ricardo ostentava uma aparência distinta, como as imagens das

antigas pinturas, como se houvesse “saído de um desses relatos do século dezessete, nos

quais homens de fina estirpe se confundem com aventureiros, corsários e déspotas”

(RIBEIRO, 2004, p. 35).

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Foi bebendo vinho que Ricardo, na companhia de sua filha Helena, cuja beleza,

aos olhos do visitante corporificava a divindade pagã das deusas nórdicas, revelou seu

intento, revelando também que não era, em certa medida, tão estranho àquele outro

homem que lhe olhava desconfiado e curioso. Os dois pertenciam à mesma casta de

combatentes descobridores, cuja missão era salvar o mundo da banal materialização e

da desintegração dos sonhos. Nesse sentido, era um igual, perdido nas planícies do Sul e

longe da face luminosa do mundo. Por isso mesmo, foi difícil aceitar o reconhecimento

que veio à tona nas palavras do professor, quando ele admitiu que havia convidado o

homem porque enxergava em suas ideias, imprevisíveis e elásticas, a abertura para

acessar novas realidades. Pois, “O que precisamos verdadeiramente – disse o professor

– é de mentes flexíveis o suficiente para penetrar em universos cujas portas começam a

ser abertas em nosso tempo” (RIBEIRO, 2004, p. 42-43).

Vendo o estranhamento no olhar do visitante, Helena completa o raciocínio do

pai, expondo, de uma vez, seus planos, envolvendo o personagem-narrador no diálogo

que se segue:

Nós o esperávamos – disse ela. – Há muito tempo esperávamos que se unisse a nós na busca que pretendemos. Claro que não sabíamos que seria você exatamente você, mas não tivemos dificuldade de reconhecê-lo quando tomamos conhecimento de seus artigos e reportagens. [...] – Mas o que vocês esperam encontrar? – perguntei, aflito com a ideia de ser cooptado para uma aventura que eu não sabia aonde me poderia levar. O professor Ricardo levantou-se, olhou-me fixamente por alguns instantes e, assumindo uma seriedade que me pareceu excessiva, disse: – O Santo Graal. Você já deve ter ideia do que se trata. (RIBEIRO, 2004, p. 46-47).

A proposta é absurda, mas, no entanto, o absurdo precisa ser levado a sério na

narrativa, fazendo-se o centro da trama. Isso atesta o tom formal com que Carlos

Ribeiro reveste a linguagem do personagem-narrador, que, mesmo ouvindo palavras

surreais, esforçava-se para permanecer o mais equilibrado possível.

O professor Ricardo, sentindo-se, àquela altura, inapto para executar a busca,

acredita que aquele homem, que tinha coragem de olhar o mundo por “ângulos insólitos,

novos e surpreendentes”, de “Realçar detalhes que até então foram desprezados”

(RIBEIRO, 2004, p. 42), tinha o potencial necessário para empreendê-la. Acreditava em

seu espírito livre, o suficiente para aceitar o chamado individual, que, mais cedo ou

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mais tarde, todos os homens escutam, mas que a maioria ignora em nome de uma

segurança que todos os dias se prova uma ilusão. Seria ele quem deveria descer, ao

fundo do cânion, do abismo profundo, para encontrar e resgatar o objeto sagrado.

E é assim que, a despeito da primeira relutância, o personagem-narrador sem

nome, cidadão cosmopolita e comum, aceita lançar-se na empresa extraordinária, aceita

arriscar-se de posse de um mapa valioso e de várias instruções que deveria cumprir, a

fim de completar a missão e descobrir a terra escondida nas profundezas do cânion,

como a Avalon arthuriana. Isso porque o personagem-narrador, assim como o professor

Ricardo, acreditava que: “A terra santa está sempre em algum lugar, dentro e fora de

nós, mesmo que vivamos numa grande metrópole, cercados de cartazes luminosos que

procuram nos convencer de que a segurança e o conforto do mundo são a nossa única

salvação” (RIBEIRO, 2004, p. 63).

Abismo é um romance que não apenas fala sobre transformações, mas que

realiza transformações perante os olhos do leitor, como poucas histórias conseguem

fazer, muitas delas tendo ganhado, por isso, um lugar entre as chamadas narrativas

clássicas. A transformação mais significativa é a transfiguração do cidadão comum em

herói. Não um herói que siga um modelo específico, mas um herói que nos remete a

tantos outros, que se funde a muitas personalidades fictícias para tornar-se um herói

improvável, em um tempo inóspito, que se entrega a uma busca insólita e, talvez por

isso mesmo, essencial. E essencial com todo o peso que essa palavra tem em uma época

que vem proclamando o fim da essência.

Justamente por essas razões, Carlos Ribeiro aproveita a história da saga heroica

para tocar em vários assuntos que, apesar de estarem, aos poucos, voltando à pauta da

nossa vivência, ainda se colocam como questões bastante abstratas. A aventura que se

delineia para o personagem envolve lendas e mitos de vertentes pagã e cristã, é povoada

de criaturas e entidades mágicas. Ela visita nuances teóricas de bases psicológicas,

ligadas aos estudos do sonho de Carl Jung e às do surrealismo, assim como trata do

embaraço e da expansão do consciente, tanto através dos efeitos de bebidas e plantas

alucinógenas, quanto de rituais mágicos.

Com base nessas perspectivas, não seria um equívoco afirmar que o livro se

constitui como uma grande metáfora ou que se constitui de várias metáforas. E,

partindo-se do fato de ser narrado pela persona que delas experimenta, não é difícil

perceber que Carlos Ribeiro acolhe um tom lírico em sua história, pois o desejo de fazer

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com que o ser humano se empenhe em percorrer os caminhos da autorreflexividade e da

autodescoberta, representados pela aventura empreendida pelo herói que desponta na

história, talvez não pudesse ter êxito se não fosse pelos veios da poeticidade.

Assim como acontece com as imagens condensadas de um poema, conforme

afirmei anteriormente, a narrativa concilia vários significados e fala de muitas coisas. É

uma história de aventura e, ao mesmo tempo, uma viagem intimista. Fala sobre sonho e

delírio; sobre o embate entre a razão e a subjetividade; sobre ecologia e meio ambiente;

sobre as necessidades individuais e as impostas pelo mundo opressivo e poderoso da

contemporaneidade; sobre ciência e mito. Fala também sobre descrença e fé. E fala que,

quando tudo parece estar estanque e em polos opositores, na verdade, está intimamente

ligado pela analogia da diferença.

O abismo para o qual se encaminha o personagem é místico e esotérico, é

racional e encantado. Aliás, trata-se de um encantamento que espera latente nas

profundezas do ser, mas que, uma vez apreendido, é capaz de reencantar os mundos de

fora e os de dentro, “porque não é possível olhar o novo se não temos o novo no olhar”

(RIBEIRO, 2004, p. 45). Aí inclui-se mais um assunto ou mesmo mais uma tarefa para

a qual o herói é designado: encontrar a chave que abre as portas de uma outra forma de

percepção, de reencantamento da vida, da natureza, do humano e da linguagem, para

renovar a capacidade de espanto diante da existência. E é também nesse ponto que a

prosa de Abismo se aproxima da luta poética de cada dia. Enfim, como já pontuei em

algum momento deste texto, Abismo narra a história de várias buscas, inclusive a busca

pela reinvenção da própria narrativa.

2.5 Uma escalada épica ou a epopeia da ilusão

No ano de publicação de Abismo, Luciano Rodrigues Lima escreveu um ensaio

tecendo considerações acerca das características desse romance. Esse texto, postado no

site de Carlos Ribeiro, começa com uma afirmação que vai direto ao cerne teórico da

narrativa, a qual acredito ter muito proveito para esta discussão. Afirma Lima, com toda

lógica a seu favor, que “Não se pode mais narrar como nos tempos homéricos, e por

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razões diversas” (LIMA, 2004). Mesmo sem recorrer ao restante do ensaio, é muito fácil

imaginar algumas razões para concordar com esse raciocínio.

Antes de mais nada, se a evolução das narrativas heroicas e a descendência das

histórias épicas forem verificadas, notar-se-á que cada herói corresponde exatamente à

mentalidade histórica e social da época em que foi criado. Que cada um deles representa

o ideal humano, individual e coletivo de seu contexto. Assim, de Ulisses ao anti-herói

moderno, pode-se atestar uma distância imensa. Principalmente porque, conforme

pontua Lima (2004), os ideais e valores que conduziam os heróis épicos como justiça,

ética, honra, beleza, coragem etc., eram conceitos muito bem resolvidos, eram certezas

que faziam parte das aspirações daquelas sociedades.

No modelo de epopeia que veio à luz na Grécia Antiga, os assuntos

transmitidos nasciam de questões históricas e, ao mesmo tempo, as ultrapassavam em

sua temporalidade, guardando um tipo de verossimilhança que ficava entre o fantástico

e as crenças coletivas. Aquelas histórias, geradas na oralidade, deveriam garantir o

orgulho de um povo, ensinar condutas valorosas e, ao mesmo tempo, garantir uma

espécie de respeito e obediência ao destino regido por forças supranaturais.

Ao passo que o entendimento da vida política foi sofrendo transformações,

influenciando e sendo influenciado pelas mudanças da percepção individual de mundo,

as concepções, as condutas e os ideais também mudaram. As aspirações humanas e suas

forças contrárias foram sendo problematizadas pela ficção.

Nessa perspectiva, quando se fala a respeito de narrativa épica e de heróis

épicos, tem-se a impressão de estar se tratando sobre elementos superados no

desenvolvimento da prosa literária, presentes no imaginário de leitores e de autores, mas

que já se distanciam dos possíveis protagonistas de romances e contos contemporâneos.

De fato, Ulisses, exemplo clássico de herói, enfrentou os famosos desafios homéricos

em sua viagem, cujo destino e prêmio final eram retornar para sua cidade, sua casa e sua

Penélope. Venceu seres míticos e obstáculos naturais com sua astúcia e coragem, guiado

por valores como honra e fidelidade às suas promessas.

Na Idade Média, as narrativas romanescas trouxeram os cavaleiros andantes,

que personificavam o ideal de justiça e coragem, generosidade e disciplina. Essas

figuras representaram, sem dúvida, o desejo de mudança e a esperança das sociedades

europeias que definhavam sob o despotismo do regime feudal. Com a transição da Idade

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Média para o Renascimento, com a evolução nas técnicas de fabricação de armas à base

de pólvora, com o aumento do poderio bélico e a maior capacidade de deslocamento

através das grandes navegações, o ideal cavalheiresco foi, aos poucos, suplantado pela

imagem heroica dos exércitos, dos soldados e dos descobridores.

Contudo, o diálogo com as formas mais antigas da épica, com aquela maneira

de interpretar a vida, permanecia nítido. Pois, mesmo nessa época de mudanças

estruturais, epopeias mais jovens como Os lusíadas (1572), que narravam os feitos

extraordinários ou dignos de serem eternizados, realizados por um homem ou por um

povo, o faziam ainda lançando mão de formas líricas. Ou seja, o enredo era

explicitamente tocado pelo olhar íntimo daquele que a contava, guardando-se, assim,

um grande espaço para a subjetividade individual. Dessa forma, a epopeia representa a

transição de uma mentalidade mítico-poética para um racionalismo humanista que

permeava e inquietava as consciências da época.

Com todas as fusões e transformações sofridas pelo gênero épico, fusões e

transformações que nos trouxeram o romance e tantos outros gêneros em prosa, a

narrativa passou a operar com outras formas e outros elementos, coerentes com mundo

que se desvelava: o mundo do capitalismo e da industrialização. Aliás, muitos teóricos

afirmam que o romance é o gênero narrativo que representa a modernidade por

excelência, como é o caso de Claudio Magris:

O romance nasce quando se desfaz a civilização agrária e a ordem feudal, espelho de estruturas perenes ou ao menos de longuíssima duração. [...] Pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno? O romance é o mundo moderno; não apenas não poderia existir sem este, como a onda sem o mar, mas por alguns aspectos, identifica-se com este, é a mutável expressão dele, como o olhar e o contorno da boca são a expressão de um rosto. (MAGRIS, 2009, p. 1016).

O motivo dessa intensa identificação entre o gênero literário e o contexto

histórico é a radical mudança das mentalidades e consciências que se tinham da história,

das sociedades e, principalmente, dos valores e mesmo das instituições que regiam o

velho mundo. Afinal, como aponta Magris (2009, p. 1016), são “aquelas características

de modernização, para o bem e para o mal, e de ambivalência que definem o verdadeiro

romance”, ou seja:

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Sua relação com a dissolução da épica, a ambivalente simbiose de crise epigonal e inovação técnica, resíduos do universo épico remodelados e recompostos em novas estruturas, declínio de antigos valores e arrojada construção da realidade; mistura de estratégias narrativas populares, serial e feuilletons que fascinaram o publico antigo, como mais tarde o burguês, polifônica contaminação de gêneros – e especialmente de registros e temas – altos e baixos (MAGRIS, 2009, p. 1016).

Dessa forma, o romance não apenas representa a modernidade, mas também

lhe oferece uma visão duramente crítica, fazendo com que um seja o alimento do outro.

A visão heroica de um indivíduo que podia superar os obstáculos fantásticos que a vida

e os deuses lhe impunham parece, em muitos aspectos, impossível no mundo moderno,

principalmente porque aquele mundo antigo, mesmo que, tantas vezes, monstruoso, era

um mundo familiar que mudava lentamente. Era, um mundo que podia ser narrado

artesanalmente enquanto se fiava ou enquanto se descansava do trabalho na lavoura.

Mas a aceleração do ritmo do trabalho automatizado, a pressa capitalista e a

urbanização, que transformavam o mundo em um lugar cada vez mais estranho,

mudaram também a forma com que o indivíduo relacionava sua subjetividade com a

vida exterior, justamente porque:

A abstração e a natureza mecânica do trabalho parecem desautorizar o sujeito e contrapor à sua poesia do coração – a exigência de viver uma vida verdadeiramente sua, experiências irrepetivelmente individuais e significativas – a “prosa do mundo”, a rede anônima de relações sociais, na qual se encontra apenas como meio, a ser empregado pelo mecanismo social para finalidades que lhe escapam. (MAGRIS, 2009, p. 1017-1018, grifos do autor).

A sensação de fragmentação, de flutuação e de deslocamento que a vida

moderna nos legou, sem dúvida, fertilizou a criação de narrativas com histórias

fragmentadas, sobrepostas e pluritemáticas, nas quais o mundo grandioso que se

alavancava dava sustentação a anti-heróis e cuidava do esmagamento dos mais fracos.

Algumas dessas narrativas tornaram-se verdadeiros exemplos emblemáticos dessa

“prosa do mundo” da qual fala Magris, como a novela A metamorfose (1915), de Franz

Kafka, e os romances As vinhas da ira (1939) e Vidas amargas – A leste do Éden

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(1952), de John Steinbeck. Essas histórias apresentam a humilhante impotência dos

indivíduos diante do perverso sistema social que se fortalecia cada vez mais à custa de

suas fraquezas; sistema que aniquila todas as possibilidades de heroísmo clássico e no

qual os valores épicos se tornariam risíveis ou motes para ironias ácidas e cruéis, como

o é Agilulfo, o cavaleiro inexistente do romance de 1959, de Italo Calvino.

As narrativas citadas, assim como tantas outras, são crônicas ficcionais que

representam o homem moderno, perdido e abatido, sempre correndo atrás de um sentido

inexistente, de um sentido que não há, um homem que representa um herói às avessas

empenhado na “odisseia de uma desilusão”, que é como Magris (2009, p. 1018)

classifica os romances modernos.

Embora haja claras oposições entre os códigos estéticos das epopeias clássicas

e os romances modernos, oposições que os distanciam em todos os sentidos que foram

pontuados, é exatamente por meio delas, dessas oposições, que as epopeias e os

romances também permanecem ligados e implicados. O anti-herói é o justo contrário do

herói que aprendemos a identificar e é através de sua existência idealizada que notamos

as fraquezas daquele, tantas vezes, vencível. Se, nas epopeias antigas, um grande feito

eternizava-se através do nome que o executava, nos romances modernos, não raro,

constatamos que a violência e o progresso ameaçam, a todo o momento, tragar os

personagens e arremessá-los permanentemente para uma massa anônima e disforme.

Essa observação corrobora o pensamento de Magris quando afirma que, guardadas as

devidas especificidades, “de resto, o fim do mundo antigo parece, cada vez mais, um

espelho do fim do mundo moderno e da elusiva iminência de algum outro, e

radicalmente diferente, que percebemos mas não sabemos definir nem imaginar”

(MAGRIS, 2009, p. 1016).

Esse mundo outro, indefinível apesar de iminente, que não é o antigo nem o

moderno, é a nossa contemporaneidade. Essa afirmação levanta uma pertinente questão:

de que forma se torna possível narrar na contemporaneidade se, como escreveu Lima

(2004), “Não se pode mais narrar como nos tempos homéricos”, já que as certezas

épicas se dissiparam e as mudanças sociais que assombraram o homem moderno se

constituíram um padrão constante? Acredito que, através da narrativa de Abismo, Carlos

Ribeiro fornece algumas pistas que podem nos ajudar na formulação de respostas

possíveis.

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Abismo é uma saga de aventura, mas também é um livro contemporâneo.

Torna-se quase impossível não achar nele numerosas referências implícitas à narrativa

épica, às novelas de cavalaria e a algumas narrativas modernas de aventura que mostram

o indivíduo em uma viagem que parte do exterior para o mundo interior. E é exatamente

por fundir várias bases estéticas e temáticas, e por lançar mão de numerosas questões –

abstratas, práticas, objetivas e subjetivas –, que ele pode ser classificado como uma

narrativa pós-moderna por excelência. Foi o que também notou Lima (2004):

Caracteristicamente pós-moderno, o livro dialoga claramente com os grandes épicos da humanidade, principalmente com Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Mallory (não interessa se com a obra escrita ou se a versão filmada com o título de Excalibur, pois o narrador pós-moderno se reporta também a outros meios virtuais de narrativa). [...] Um livro é sempre formado de componentes diversos, que são aproveitados do repertório do autor, suas vivências, suas leituras e, sobretudo, sua imaginação. Em Abismo, pode-se perceber a presença de diversos diálogos estéticos, uns explicitados, outros não, com a Odisseia, de Homero, as lendas arturianas, O inferno, de Dante, As Viagens de Gulliver, de Swift, A Máquina do tempo, de H. G. Wells, os contos góticos e de mistério ingleses, como A pata do macaco, de W. W. Jacobs, as narrativas das viagens dos exploradores como Darwin, Humboldt, Spruce, Burton e outros, os contos de Poe, a série de TV O mundo perdido, as aventuras de Indiana Jones, os contos subjetivos de J. L. Borges, impregnados da essência e da linguagem do lírico. O épico pós-moderno, portanto, funde-se com o lírico, e tanto cuida da movimentação exterior – a viagem – quanto da introspecção mais profunda, nos subterrâneos do eu.

De fato, pode-se notar, em Abismo, todas essas presenças e diálogos temporais,

além de uma miscelânea de características que nos remetem desde as narrativas

intimistas de Paulo Coelho até à ironia triste de Miguel de Cervantes. Contudo, fica

evidente, na leitura desse romance, que essas não são referências que simplesmente

ocorrem como que para dar sustentação à narrativa. Elas comparecem em um jogo

complexo de releituras e composição do texto, no qual Ribeiro maquinou

minuciosamente a participação de todas as vozes que sussurram nas entrelinhas ou que,

de vez em quando, bradam através dos personagens envolvidos na trama. É um jogo de

fumaça e luz, que revela e encobre, instrui e desnorteia. Abismo é épico e não é, porque,

sobretudo, é filho de seu tempo. Exibe, no entanto, suas afiliações sem o receio de

parecer um passadista.

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O livro tem um enredo simples, mas a narrativa é complexa. Ela gira em torno

de um homem que decide enfrentar perigos conhecidos e desconhecidos, se embrenhar

na mata selvagem para encontrar vestígios de um lugar mágico, perdido no crepúsculo

dos tempos e assim resgatar um objeto lendário; um homem que aceita caminhar por

estradas de limites tênues, que, por todo o enredo, se distanciam e se confundem. Desse

modo, ora o aventureiro opta pela via da razão, ora se deixa perder pelas veredas dos

sonhos e do delírio, ora caminha através da nebulosa contemporaneidade e seus

impasses imediatos, e ora embrenha-se pelas trilhas das lendas e dos mitos originários

do despertar da subjetividade humana.

Em Abismo, vemos um personagem que também é o narrador ser alçado da

posição de homem comum à posição de herói. Ele é movido por algo que, lhe sendo

interior, lhe excede e faz-se maior que seu poder de decisão, um chamado primordial,

como disse seu orientador, professor Ricardo. Isso, assim como a sua vontade de buscar,

de vencer os obstáculos e de chegar ao objetivo de resgatar o Santo Graal, o aproxima

das narrativas épicas. Nota-se, ainda, em toda a narrativa, a presença de seres mágicos e

míticos, desde entidades que habitam a floresta como duendes e gnomos; deusas pagãs,

a dialética do bem e do mal, que escora a crença cristã, fantasmas e até o deus Pã, além

de pessoas misteriosas que aparecem e desaparecem. Esses são elementos cruciais à

tradição épica, como lembra Maria Lúcia Aragão (1984, p. 79) a respeito do gênero:

“Outra característica a se ressaltar é a presença do maravilhoso: atuação de deuses e de

fatos sobrenaturais que se interpõem na solução de um problema”.

Mas, conforme afirmei, Abismo é inegavelmente pós-moderno porque, a

despeito das tradições mais antigas, Ribeiro decide movimentar a narrativa através de

um protagonista anônimo, sem nenhuma referência mais clara às suas identidades, a não

ser sua profissão e suas raízes geográficas. Isso aponta para a contemporaneidade do

sujeito representado na ficção como herdeiro daquilo que ao homem moderno se

afigurava como um temor: sumir como consciência individual em meio a todo

progresso e evolução modernos. Esse temor, conforme coloca Magris, levava o sujeito

ao sentimento de culpa por não conseguir erigir um código ético e de valores bem

definidos. Contudo Magris esclarece que:

Esse sentimento de culpa não menospreza o progresso e suas conquistas, nem se volta a idealizações nostálgicas e falsas do antigo,

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mas realça o nexo estreitíssimo entre o progresso e a violência das transformações que o realizam, o perigo que ameaça o indivíduo, que corre o risco de ser destronado e tragado em um anonimato indistinto. (MAGRIS, 2009, p. 1020).

A escolha de narrar a aventura de um indivíduo sem nome não está limitada

apenas à menção daquela percepção que o homem moderno tinha do seu contexto. A

ausência de nome do personagem-narrador é, sobretudo, uma estratégia metafórica. Um

nome talvez seja a principal tentativa de fixar a identidade do ser, diferenciando-o. Mas,

nessa narrativa, quando o leitor olha em direção à voz que narra, não vê ninguém, senão

a si mesmo. E também vê muitos, pois o personagem-narrador é todos os homens ao

mesmo tempo, inclusive o escritor, presente na profissão do protagonista e nas poucas

marcas que ele traz. A metáfora, aliás, é explicitada pelo próprio personagem a certa

altura da viagem, quando ele se encontrava na estranha quietude da mata:

Nas matas, no curso constante e perene dos rios, nas fendas profundas dos penhascos sobre as quais saltava, agora, com o coração vibrando de alegria, eu me dava conta, pela primeira vez, que não estava só. Percebi que carregava em mim uma quantidade infinita e homens e mulheres. Quantos deles não andaram também pelos caminhos do mundo, nas circunstâncias mais difíceis e atrozes? (RIBEIRO, 2004, p. 151).

Isso reforça a ideia de aproximação e rechaço que trago à discussão na abertura

deste capítulo. A narrativa de Ribeiro se aproxima e se afasta do contexto

contemporâneo, mas através de movimentos paradoxais, pois é sempre no movimento

em que encena o afastamento que ocorre a aproximação.

Ao embaralhar autor, narrador, personagem e leitor, Ribeiro traz à baila uma

questão que frequenta as discussões crítico-teóricas acerca do texto ficcional. Se, no

século passado, parecia haver uma necessidade de definir que tipo de narrador daria

mais credibilidade à narrativa, que ponto de vista adotado por ele traria mais

verossimilhança à história e, principalmente, como separar as categorias autor/narrador,

na contemporaneidade deste século, essas categorias se embaralham como consequência

da desconstrução conceitual de ficção, realidade e identidade. Mas, a despeito do que se

pode pensar sobre a contemporaneidade dessa disposição em conceber o apagamento

dos limites entre autor e narrador e, no caso, de tantas personas ficcionais, com vistas a

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questionar alguns estatutos conceituais, esse mecanismo narrativo não é tão recente

assim.

Afinal, quando Ernst Fischer nos convida a pensar sobre a necessidade da arte,

que permeia a presença humana na história do mundo, ele aponta para uma vontade que

atormenta a consciência de finitude que carregamos conosco:

O homem anseia por absorver o mundo circundante, integrá-lo a si; anseia por estender pela ciência e pela tecnologia o seu “Eu” curioso e faminto de mundo até as mais remotas constelações e até os mais profundos segredos do átomo; anseia por unir na arte o seu “Eu” limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade. (FISCHER, 2002, p. 13).

A consciência de nos sabermos poucos diante das inúmeras possibilidades de

vida que poderíamos ter, das incontáveis experiências que poderíamos apreender se não

fosse a obrigação de morrer um dia qualquer, como acontece a todos, nos pesa sobre os

ombros. No entanto, a arte, segundo a perspectiva de Fischer, é o único meio de aliviar e

enriquecer a árida caminhada. Através dela, homens e mulheres tomam parte de viagens

que outros fizeram e que, não fosse por essa via, seriam para sempre roteiros

desconhecidos. Sensações familiares e estranhas, penas e recompensas que pertencem a

outros, mas que ao tocarem a humanidade de cada leitor/espectador se tornam deles

também, porque:

[...] o que um homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias. (FISCHER, 2002, p. 13).

Mais especificamente, a arte de narrar (oralmente ou pela escrita) parece ter

sido, desde sempre, uma maneira de procurar lançar pontes entre o eu e o outro, de

procurar a identificação através da semelhança e da diferença, sendo, ao mesmo tempo,

uma forma de sair de si e de empreender um percurso rumo ao “conhece-te a ti mesmo”.

Deve ter sido desse percurso que nasceu a oposição entre a ficção e a dita realidade

objetiva. Não apenas pela conclusão lógica de que a arte cria discursos quase sempre

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baseados no improvável, mas também porque a grande maioria das pessoas acredita não

ser possível um conhecimento integral do outro e nem delas mesmas. Daí que, da

tentativa de um autoconhecimento pela via artística (ou mesmo por qualquer outra via),

ou de um conhecimento completo, pode-se supor uma busca quixotesca, nos sentidos

todos que esse adjetivo ganhou no decorrer do tempo, mas principalmente no sentido de

ser inútil, irrealizável ou utópica. Entretanto, será esse um motivo para não fazê-la?

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3 QUIXOTISMOS PÓS-MODERNOS NA NARRATIVA DE CARLOS

RIBEIRO

As épocas que subestimam a utopia são épocas de empobrecimento intelectual, ético e estético.

Carlos Ribeiro

Há mais de 400 anos, nasceu a narrativa que, para muitos estudiosos (e.g.

FERRAZ, 2010; BERNARDO 2006), inaugurou o romance ficcional e que estremeceu,

de forma ímpar, a credibilidade do narrador e das suas supostas fontes junto ao leitor.

Esse livro, então, inauguraria uma nova forma de narrar, de representar o mundo e o

homem em pleno ponto de mutação. Refiro-me à obra O Engenhoso Fidalgo Dom

Quixote da Mancha (EL Ingenioso Hidalgo Dom Quijote de La Macha), de Miguel de

Cervantes, publicado pela primeira vez em 1605. O livro, que narra as peripécias do

engenhoso fidalgo, talvez tenha sido o primeiro a brincar com os limites das categorias

ficcionais para colocar na berlinda irônica a própria escrita ficcional e a ideia de

realidade.

É certo que, na história de sua longa e vigorosa vida, os sentidos das coisas

narradas pelo livro e o significado do seu personagem principal sofreram mudanças que

podem ter sido drásticas se levarmos em consideração que foram não apenas lidos a

partir das mais diversas perspectivas, mas também interpretados, suplementados...

Exatamente como escreveu Heitor Ferraz em um texto complementar à edição do livro

de 2010 publicada pela Editora Abril, “Ao longo de quatrocentos anos, Dom Quixote já

encarnou várias figuras, indo do cômico ao trágico, do anti-herói ao herói.” (FERRAZ,

2010, p. 363). Isso porque o livro de Cervantes é uma obra clássica e, como disse Italo

Calvino (2007, p. 11), “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que

tinha para dizer”.

Dom Quixote deve ser um dos personagens de ficção mais conhecidos da

história. E até mesmo aqueles que não conhecem seu autor ou sua origem têm ideia

sobre o que significa dizer que alguém é quixotesco ou quixotesca. Isso porque os

adjetivos que se referem ao cavaleiro cervantino possuem, em seu campo semântico,

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sinônimos que o caracterizam sempre a partir de uma perspectiva negativa, risível ou,

no mínimo, ingênua. Apenas para se ter uma ideia, vejamos como Antônio Houaiss e

Mauro de Salles Villar (2001, p. 2367) definem o adjetivo quixotesco no Grande

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:

quixotesco adj. 1 que diz respeito a D. Quixote; próprio de D. Quixote 2 relativo a quixote ou quixotada 3 p. ext. que é generosamente impulsivo, sonhador, romântico, nobre, mas um pouco desligado da realidade (num gesto q., estendeu a capa sobre a poça para ela passar) 4 fig. característico ou próprio do fanfarrão [...].

Mas, se Calvino tem razão quanto à definição de clássico, esse personagem

está longe de se deixar caracterizar de forma simplista. Inclusive porque essa aura

melancólica e até triste parece ter se cristalizado sobre a fronte do Cavaleiro da Triste

Figura a partir do século XIX, tomado como modelo de uma visão realista e sombria do

homem e de um mundo que se dissolviam entre o trabalho rudimentar e as primeiras

chaminés industriais. A exemplo disso, trago um trecho da leitura que o poeta

parnasiano Olavo Bilac faz do romance de Cervantes, a qual apresentou nas

Conferências Literárias do Gabinete Português de Leitura em 1905:

Este livro é a sátira mais feroz e dolorosa com que jamais se amaldiçoou a baixeza humana. Os seus 116 capítulos são 116 estações da via sacra do ideal. O sonhador caminha de desilusão em desilusão e de desastre em desastre. Tudo de belo quanto seu sonho cria e anima, fica logo desfeito em fealdade e em vulgaridade. Já não há na Terra aventuras dignas de tal aventureiro. (BILAC, 2016 [1905]).

É claro que as desventuras do Quixote e seu modo de ver as coisas não

inspiram uma visão tão só otimista ou alegre da vida e do humano. Mas, como disse,

seria ingênuo olhar esse livro e esse personagem, que mudariam, de uma vez por todas,

o gênero do romance narrativo, de forma unívoca.

É justamente por ser um divisor de águas da literatura ocidental no que diz

respeito à escrita narrativa que proponho uma breve releitura para o quixotismo.

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3.1 A reversão do quixotismo: proposta para uma nova leitura

Quando penso sobre o engenhoso romance de Miguel de Cervantes, algumas

palavras de Umberto Eco me vêm à mente. São palavras impressas no prefácio de seu O

Nome da Rosa, de 1980, que entram imediatamente em colóquio com a leitura que faço

acerca do Quixote. Dizem elas:

Eu não creio que o pós-moderno possa ser cronologicamente circunscrito: é uma categoria espiritual, ou melhor, uma kunstwollen (vontade da arte), um modo de operar. Poder-se-ia dizer que cada pós-moderno liga-se a uma época, assim como cada época tem seu próprio maneirismo (a tal ponto que me pergunto se o pós-moderno não seria o nome do maneirismo enquanto categoria meta-histórica.). (ECO, 2009, p. 15).

Eco deixa claro que se refere a características estéticas e formais, ou à falta

delas, ou talvez e ainda à presença de todas ao mesmo tempo. Fala de uma forma de

operar que se encaixa no que vim pontuando como as formas disformes da arte pós-

moderna. Mas, obviamente, seu pensamento não tem como referência um momento

histórico-cultural que possa ser considerado como equivalente a isto que chamamos de

pós-modernidade.

Seguindo o raciocínio de Eco e olhando de onde estamos, não seria descabido

afirmar que Cervantes, por meio do seu Dom Quixote, lançou o germe do romance

moderno ao criar um personagem símbolo da decadência de certos valores. Indo além,

ao parodiar uma tradição, ou mesmo um ideal extinto pelo progresso do século XV, e ao

usar a ficção para provocar uma reflexão muito crítica acerca dela mesma, acerca da

ideia de realidade e de verdade, o autor espanhol também alcança ecos pós-modernos

(daquela forma que pensou Eco), provavelmente sem ter em mente essa consciência

temporal.

Cervantes lança questões ficcionais e filosóficas em seu romance de maneira

complexa, como também o faz Ribeiro, especialmente se levarmos em consideração as

conjunturas sociais e históricas, e mesmo a mentalidade geral da época, documentada na

esteira das tradições culturais europeias. Ali, sua escrita surpreendeu, emergindo sob o

signo da exceção que marca toda obra de arte.

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Ainda hoje, após tantos anos de releituras e interpretações, não se pode afirmar

com certeza se a narrativa seria cômica se não fosse trágica ou vice-versa. O que se

percebe na obra, sem dúvida, é uma ironia refinada e ácida, inesperada no correr

daqueles tempos, a qual atinge a todos os personagens e a todos os significados que o

leitor conseguir colher de suas páginas. Afinal, como pondera Bernardo:

O nosso magro personagem se apresentava, quando o romance de Cervantes foi publicado, como uma metonímia da Espanha e da decadência espanhola. Com o tempo, e as sucessivas edições em todas as línguas, o cavalheiro cresceu e estendeu-se, tornando-se uma metáfora tanto da dignidade quanto da própria ficção. (BERNARDO, 2006, p. 47).

Dom Quixote ficou conhecido por decidir transformar-se em cavaleiro andante

e viver segundo os ideais cavalheirescos em uma época na qual tais figuras já não

passavam de personagens ficcionais. Mesmo com a idade marcando seu corpo, o

Engenhoso Fidalgo consegue transformar ou mesmo rejeitar a realidade da qual se via

cativo. Logo, consegue transmutar as coisas e as pessoas segundo seu olhar empolgado

e aventureiro. Meteu-se no que via como uma armadura. Da bacia de barbeiro, fez um

elmo mágico de Mambrino; e seu Rocinante, esquálido e velho, fez-se seu cavalo de

batalha, forte e destemido.

Com a ação subversiva do seu olhar, conseguiu até mesmo um fiel escudeiro,

antes um camponês pançudo e baixo, que inicialmente quis acompanhá-lo a fim de

lucrar com a sua suposta loucura, mas que, aos poucos, foi tragado pelo mundo que

Dom Quixote lhe apresentava, passando a agir conforme o estatuto dos cavaleiros,

protegendo seu frágil senhor.

O magro Quixote precisava sair pelo mundo, buscando aventuras dignas da

coragem que carregava. Quixote queria combater o mal. E é claro que os personagens

ao seu redor atribuíram sua atitude à loucura causada pelos romances de cavalaria que o

fidalgo devorava trancado em sua biblioteca. Mesmo Sancho Pança tentava alertá-lo

para a sua confusão quando Quixote se lançava contra pessoas, desafiando-as com sua

lança e sua espada; julgando-as como opositoras da fé cristã e da boa moral; vendo

saqueadores no lugar de rancheiros, belas donzelas no lugar de camponesas pobres,

mouros sanguinários em vez de marionetes.

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Todavia, não é pelos já esperados insucessos de suas batalhas que a história

chama a atenção, mas pela persistência do Cavaleiro da Triste Figura em continuar,

ainda que ferido e humilhado pela realidade que os outros professavam. Dom Quixote,

mesmo quando abatido pela negação de sua verdade, acha uma explicação bastante

plausível para as suas atitudes e também para as dos outros. É o que mostram as

palavras de um dos seus famosos diálogos com o roliço escudeiro, no capítulo XXV da

terceira parte:

Como é possível que, em todo esse tempo que andaste comigo, não tenhas visto que todas as coisas dos cavaleiros andantes parecem quimeras, necessidades e desatinos, e que são todas feitas às avessas? E não porque seja isso assim, mas porque há sempre entre nós uma caterva de encantadores que todas as nossas coisas mudam e trocam, e as transformam a seu bel-prazer e segundo sua vontade de socorrer-nos ou destruir-nos; e, assim, isso que a ti te parece bacia de barbeiro a mim me parece o elmo de Mambrino, e a outro lhe parecerá outra coisa. (CERVANTES, 2010, p. 325).

Essa é uma das partes do livro em que Cervantes usa seus personagens para

lançar ainda mais desconfiança sobre o leitor. E esse trecho não é o único em que Dom

Quixote atribui os mal-entendidos disparados pelas suas ações a feiticeiros ou a

encantadores. Parece nítido, na fala transcrita acima, que é sobre a questão do ponto de

vista que o cavaleiro realmente nos fala. Mais do que isso, é sobre a impossibilidade de

a realidade ser apenas uma, algo dado a priori, baseada apenas em uma única verdade.

Sobre esse entendimento quixotesco, Bernardo comenta que:

A mesma coisa pode ser outra. A loucura de Dom Quixote não é patética, mas sim corajosa: ele leva a sério suas verdades e abdica de julgar a verdade dos demais. A fantasia quixotesca não nos afastaria do verdadeiro conhecimento, mas todo o contrário: ela é precisamente a via para esse conhecimento. (BERNARDO, 2006, p. 19).

Logo, poderíamos falar em uma loucura consciente, que tem o papel metafórico de

representar o avesso de uma razão pré-formulada e imposta.

Entretanto, se pensarmos que o Cavaleiro da Triste Figura possui alguma

consciência, teremos que pensar também em qual seria o papel simbólico dos

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encantadores, que insistem em atrapalhar a sua visão e, principalmente, por que, mesmo

sabendo que as coisas podem mudar segundo o olhar de quem as mira, Dom Quixote

ainda se arremete contra os moinhos de vento. Não por acaso, Bernardo, analisando as

ações quixotescas, desconfia da loucura do cavaleiro, interpretando-a da seguinte

maneira:

O absurdo não reside somente em ver gigantes onde há trinta ou mais moinhos de vento, mas principalmente em arremeter-se sozinho contra todos eles gritando: “Non fuyades, cobardes y viles criaturas, que un só caballero es el que os acomete”. Só não se lê esta coragem como suicida caso se suponha que a loucura de Dom Quixote é, antes, uma fantasia plenamente consciente de sê-lo. (BERNARDO, 2006, p. 64).

As minhas leituras também desconfiam da plena insanidade atribuída ao

Quixote e a suas ações quixotescas. Quando o cavaleiro é constrangido pela realidade

que ele rejeita, justifica-se sempre apontando para a duvidosa aparência das coisas. Mas

não penso apenas na aparência das formas quando ele diz que tudo que ali se passa

parece-lhe acontecer “ao pé da letra” (CERVANTES, 2010, p. 366).

Se, nesse momento, aceitarmos o jogo de inversões proposto por Cervantes,

podemos entender que a expressão “ao pé da letra” aponta para o discurso em si, o qual

cria realidades sem criá-las. Afinal, a realidade que oprime Quixote também é discurso

e discurso ficcional. O cura, o barbeiro, a ama e sua sobrinha, que maldiziam os

romances de cavalaria, só têm existência na linguagem ficcional. Daí aparecer, através

das arestas narrativas, alguma ponta de consciência nos atos quixotescos.

Neste ponto, inclusive, não posso deixar de lembrar-me das mais famosas

leituras interpretativas e analíticas, cristalizadas no arcabouço teórico literário, que se

fizeram da obra cervantina. Refiro-me, por exemplo, às escritas de Almeida Garrett,

Teixeira de Pascoaes, Miguel de Unamuno, José Ortega y Gasset e, sobretudo, a de

Erich Auerbach em seu famoso Mimesis: a representação da realidade na literatura

ocidental, publicado pela primeira vez em 1946. No capítulo dedicado ao Quixote,

intitulado “A Dulcineia encantada”, Auerbach (2004 [1946]) destoa de outras vozes

interpretativas, ao descrever um Cavaleiro da Triste Figura como um ser que não se

pretende heroico nem trágico, mas simplesmente indiferente.

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Não irei discutir se essa é uma conclusão válida, pois, decerto, seria uma

discussão inócua e injusta, uma vez que as análises que Auerbach nos oferece em seu

livro são extremamente bem fundamentadas e perpassadas pelo olhar de um leitor voraz

e de um crítico arguto. Entretanto, quero discordar da leitura oferecida pelo mestre

alemão.

Auerbach destaca um trecho do Capítulo X da segunda parte de Dom Quixote

como ponto de partida para uma interpretação anódina do personagem. Curiosamente,

ele escolhe, para isso, um dos trechos mais complexos que estruturam a problemática do

quixotismo. No caso, trata-se do episódio em que o cavaleiro pede a Sancho Pança para

procurar sua amada Dulcineia e anunciar-lhe a sua visita. Mas, sem saber como

proceder, ante a inexistência daquela dama, Sancho decide organizar uma espécie de

teatro a fim de satisfazer a vontade de seu mestre e livrar-se do embaraço. O escudeiro,

então, aponta três lavradoras que se aproximam montadas em burros como sendo

Dulcineia e suas criadas, e improvisa uma cena dedicada à devoção respeitosa das

damas ajoelhando-se diante delas. Contudo, a lógica da narrativa se inverte e, ao reparar

na aparência vulgar das mulheres, Dom Quixote recusa-se a fazer o jogo fictício

proposto por Sancho. Ou seja, como coloca Auerbach (2004 [1946], p. 303):

Sancho improvisa uma cena de romance, enquanto a capacidade de Dom Quixote de transformar os acontecimentos segundo a sua ilusão falha diante da crua vulgaridade do aspecto das lavradoras. Tudo isto parece ser altamente significativo; tal como nós o apresentamos aqui (propositadamente), parece triste, amargo e quase trágico.

Conquanto seja possível explanar o desordenamento do jogo proposto por

Cervantes, Auerbach fixa-se na reação posterior do cavaleiro e nos elementos cômicos

que invadem a cena minimizando o choque de Dom Quixote e todas as possibilidades

reflexivas que ela pode suscitar, passando, então, para uma análise geral da simbologia

de sua loucura. Para Auerbach, a cena em questão é boa porque é hilariante, não

passando de uma brincadeira, algo como uma peça pregada pelo proponente da própria

farsa. De acordo com Auerbach (2004 [1946], p. 310):

Encontra-se, pois, muito pouco de problemático ou de trágico no livro de Cervantes – embora seja uma das obras primas de uma época,

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durante a qual se formaram a problemática e a tragédia europeias. A doidice de Dom Quixote nada revela disto; o livro todo é um jogo no qual a loucura se torna ridícula quando exposta a uma realidade bem fundamentada.

Na cena descrita, Dom Quixote encontrava-se na encruzilhada que podia por fim

à sua empresa cavalheiresca, já que a recusa da farsa envolvendo Dulcineia implicaria o

abandono de um dos principais elementos do ideal da cavalaria andante: a figura da

mulher representativa do amor cortês. A saída que encontrou, portanto, foi a que vinha

adotando: ora, Dulcineia estava encantada. Comicamente manteve sua coerência

desvairada e resguardou sua ideia fixa.

É a análise que Auerbach faz dessa postura quixotesca que chama a atenção. Em

relação a isso, ele conclui: “Devemos deixar de lado o trágico durante a análise da sua

loucura, assim como devemos esquecer a combinação especificamente shakespeariana e

romântica de sabedoria e loucura na qual uma coisa é inconcebível sem a outra”

(AUERBACH, 2004 [1946], p. 312). E, mais à frente, conclui:

Não é qualquer filosofia nem tendência, nem mesmo é uma comoção pela insegurança da existência humana ou pela violência do destino, como é o caso de Montaigne ou de Shakespeare. É uma atitude – uma atitude diante do mundo, e, portanto, também diante dos objetos da sua arte – da qual participam, em ampla escala, a valentia e a indiferença. Ao lado da alegria com o jogo múltiplo e sensível, há nele algo meridionalmente áspero e orgulhoso que o impede de levar o jogo muito a sério. Ele o vê, ele o constrói e se diverte às suas custas; também diverte o leitor, de forma cultivada. Mas não toma partido (salvo contra os livros mal escritos); fica neutro. (AUERBACH, 2004 [1946], p. 317).

A indiferença é vista por Auerbach como elemento que combate a tragicidade do

cavaleiro. Para ele, a loucura de Quixote não tem intenções filosóficas ou mesmo

poéticas, mas funciona como uma característica insípida que promove todo um caráter

risível da obra – objetivo, a seu ver, almejado por Cervantes. De fato, também acredito

que o trágico não prevalece na obra e nem pode prevalecer. Penso, entretanto, que o

elemento que combate a tragicidade do cavaleiro é justamente aquele que Auerbach

relega à insipidez: a loucura.

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Afinal, se Quixote fosse um herói trágico, em nada abalaria a configuração da

realidade expressa pelo livro. O divertimento e a surpresa quixotescos estão na recusa

absurda da tragicidade da vida.

Em todos os momentos em que a situação leva o cavaleiro e seu fiel escudeiro às

raias do amargor violento, um elemento inesperado, cômico ou ridículo, entra em cena e

faz com que o sentimento trágico se dissipe rapidamente. Porque, de fato, muitos

momentos de tensão brincam e fingem que vão destruir a alegria maluca do Quixote ao

colocarem o real, demasiadamente real, de forma literal, frente a frente com a triste

figura, como, por exemplo, ocorre no encontro tramado por Sancho.

Apesar de Auerbach fazer uma leitura para concluir que o principal mistério do

livro de Cervantes é não haver mistério algum, ou, por outra, que o Quixote tenta olhar

todos os disparates e contingências da vida com indiferença ingênua, só alcançada com

uma loucura pura, sem segundas intenções, sua própria análise mostra, a partir da cena

comentada, que as coisas não são bem assim. O lampejo de lucidez quase trágica que

brilha no olhar de Quixote quando ele não reconhece a camponesa desgraciosa como

Dulcineia é preocupante, mas a saída do encantamento dá a solução cômica para o

dilema.

A leitura de Auerbach também chamou a atenção de outros leitores como, por

exemplo, Danilo Gazzotti (2013), que, em artigo dedicado às considerações de

Auerbach a respeito da obra cervantina, aponta para a inesperada dificuldade que o

teórico demonstra em analisar a loucura quixotesca por não haver nela, segundo o seu

olhar, traços comparativos com outros loucos da literatura clássica. Segundo Gazzotti

(2013), “Uma grande dificuldade de Auerbach, em sua análise, é a relação entre o puro

e o insensato. Ele não consegue resolver o moderado e o puro com a loucura. O autor

passa boa parte de seu capítulo tentando entender a loucura de Quixote.” Gazzotti

(2013) acrescenta: “Um dos problemas dessa análise de Auerbach é que o autor não

compreende que o Quixote é um louco lúcido”.

O fato de ser um louco lúcido, ao contrário do que pensa Auerbach, nos remete

ao modelo dessa lucidez maluca ou dessa maluquice lúcida: Hamlet, personagem da

obra homônima de Shakespeare, publicada em 1603. Obviamente, é preciso deixar claro

que Cervantes não recria simplesmente a loucura de Hamlet, mas, adotando a postura

pós-moderna sobre a qual nos falou Eco (2009), o faz através de uma paródia e, ao

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mesmo tempo, de uma paráfrase, como acontece em relação aos romances de cavalaria

(Cervantes ora revitaliza os modelos cavalheirescos, ora os ironiza e os rebate).

Não quero afirmar, com isso, que necessariamente Cervantes teria sido um leitor

de Shakespeare, apesar de essa ser uma possibilidade bastante plausível já que Dom

Quixote foi publicado dois anos após a publicação de Hamlet. O que quero dizer é, sim,

que não é o Hamlet personagem que aparece nas folhas cervantinas, mas o seu dilema

filosófico-existencialista que ecoa para sempre em nossas consciências: a difícil escolha

de ser ou não ser, ou mesmo de existir ou não existir.

Dom Quixote atualiza o dilema shakespeariano fazendo já uma intertextualidade

baseada na troça e na ironia. O jogo promovido pelo louco que precisa decidir ser ou

não ser perante a realidade que o oprime. Esse dilema, revivido ficcionalmente inúmeras

vezes, é reconstruído em Cervantes, mas sem o seu maior apoio ou apelo filosófico: a

tragicidade. Ou então, o trágico é trazido à história cervantina para “dar com os burros

n’água”, pois, como já pontuei, o divertimento e a originalidade quixotescos estão na

recusa insuspeita da tragicidade inerente à vida.

Se lembrarmo-nos de Hamlet, concordaremos que o dilema da loucura lúcida

nasce justamente da necessidade que aquele herói sentiu em dizer as “verdades”

recusadas e encobertas pela hipocrisia social que assolava e apodrecia o Reino da

Dinamarca, a sua família e o sentimento de humanidade. Afinal, decidir ser/parecer

louco licenciava Hamlet a discursar sobre tudo que feria e desagradava a falsidade e a

farsa que regia seu mundo. É como se Hamlet nos gritasse que, muitas vezes, é preciso

ser louco para dizer o óbvio. Também não o faz Dom Quixote? Diria que sim. E ainda

de uma forma mais ousada, ao dispensar o peso e a tragicidade que a loucura tem em

nossa cultura.

Tomemos cuidado, no entanto, para não vislumbrarmos o Quixote como o

outro extremo da imagem que comumente lhe atribuem, ou seja, como um emblema das

questões filosóficas sérias que perturbam e desconcertam a humanidade ordinária.

Considere-se como exemplo a leitura que Miguel Filipe Mochila (2016) faz do princípio

do quixotismo baseando-se no filósofo francês Michel Onfray. Em seu texto, ele lembra

a longa linhagem da qual Onfray faz parte, formada principalmente pelos idealistas

alemães do século XVIII, que se revelam interessados na significação do Quixote

cervantino e que, segundo Mochila, fazem:

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[...] mais do que a devoção ao exercício filológico de decifração do texto, uma filosofia do quixotismo que atualiza a obra cervantina para a compreensão do mundo contemporâneo, recordando que o herói de Cervantes é ‘mais do que ele próprio: ultrapassa a sua definição física e moral para adquirir um sentido lendário, simultaneamente mitológico, filosófico e emblemático’. (MOCHILA, 2016).

Mochila acerta mais quando diz:

Esse quixotismo surge como princípio de voluntarismo e de fé (como fora já para Unamuno) de horizonte ético: contra um mundo desprovido de sentido, em que os exemplos de injustiças se multiplicam, um delirante pseudo-cavaleiro de fraca figura reivindica a honra, a renúncia, a degradação e o horror, num agonismo perpétuo de um autêntico exilado, como o descreve Onfray, como aquele que se sente perpetuamente estrangeiro perante uma realidade repulsiva, excitado de leituras. (MOCHILA, 2016).

Afirmo que acerta não pelo “agonismo perpétuo”, mas, decerto, por ser um

autêntico exilado que se sente completamente estrangeiro. Diria mesmo que duplamente

estrangeiro e exilado. É duplamente inexistente.

Dessa forma, no que diz respeito à figura de Dom Quixote, não vejo como

pode ser enriquecedora a tentativa de fixar ou mesmo de escolher um modelo

significativo que detalhe e espelhe uma única visão de mundo. Menos interessante ainda

é esvaziar a complexidade e as possibilidades que conseguem coexistir, ser conciliadas,

e que se confrontam naquele frágil arranjo de cavaleiro.

Corroboram meu pensamento as palavras de Maria Augusta da Costa Vieira,

que, ao discutir os paradoxos na obra de Cervantes, examina algumas leituras e

impressões que, ao longo do tempo, esse “longo grafismo, magro como uma letra”

(FOUCAULT, 2007, p.63) suscita nos espíritos leitores. Apoia sua reflexão, por

exemplo, na referência que Jorge Luis Borges faz ao comportamento tolerante de

Cervantes em uma Espanha fanática por dogmatismos. Diz-nos Costa Vieira (2015, p.

51) que, “Se a tolerância de Cervantes se choca com o fanatismo espanhol, é muito

provável que a essa qualidade cervantina se deva muito da sua visão de mundo capaz de

reunir múltiplos ângulos, sejam eles contraditórios ou não”.

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E é justamente por evidenciar os contornos angulosos de Dom Quixote que

Costa Vieira chega à análise de Auerbach bem como ao episódio do livro de Cervantes

destacado por ele, análise que estive há pouco comentando. Suas conclusões importam

no sentido de fundamentarem e darem corpo à minha própria leitura. Ela conclui que “O

episódio traz consequências sérias que vão minando as certezas do cavaleiro na sua

conexão com o mundo da cavalaria.” (COSTA VIEIRA, 2015, p. 63). E completa:

Mas visualizar o trágico num personagem que, sem margem a dúvida, é um louco rematado seria tão paradoxal quanto encontrar razão no desatino. Essa possibilidade parece criar certa perplexidade em Auerbach que, insistindo na ausência do sério e problemático e na presença do jogo e do divertimento, explica a travação complexa do texto de Cervantes através das camadas sobrepostas que reúnem o desequilibrado e o sensato. Parece que a dificuldade presente em sua análise é entender a nobreza de princípios instalada numa mente orientada pela loucura. [...] Talvez, em lugar de ater-se exclusivamente às categorias do trágico e do cômico ao se tratar do Quixote, o mais acertado seja incorporar as múltiplas perspectivas que permitem reconhecer os vieses mais paradoxais de sua existência. A visão distanciada – engrenagem essencial do humor cervantino – é imensamente tolerante, sendo capaz de compreender, por exemplo, que o elevado e o sublime podem converter-se em loucura e que a loucura, em algum momento, pode tornar-se heroica. (COSTA VIEIRA, 2015, p. 63-64).

Quixote não é e não pode ser um cavaleiro medieval de fato, que vai salvar os

inocentes das vilanias e injustiças, desarmonizadoras de um mundo ideal. A graça da

leitura se dá justamente por haver, no livro, várias realidades discursivas e não haver

nenhuma. Como lembra Mercedes Fariña (2016), não deve haver um olhar único em

direção a Dom Quixote e ao quixotismo, uma vez que tudo no livro é múltiplo, ou

melhor, a unidade do livro se dá pela multiplicidade ou, nas palavras da própria

pesquisadora:

Desde a engenhosa seleção dos principais personagens, Sancho e Quixote, Rocinante e o burro, vemos a clara intenção do autor em representar as classes sociais espanholas, formadas por uma fidalguia empobrecida (cavalo magro) e por um campesinato que aspirava a burguesia (correr mundo para enriquecer). Os personagens são, ao mesmo tempo, representantes de si mesmos e de seus pares. Tudo em Cervantes é altamente simbólico e, por isso mesmo, se abre para uma multiplicidade de entendimentos. O todo que essas quatro figuras

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formam é uno, mas nem por isso suas partes perdem a identidade e a individualidade, que ao mesmo tempo se completam.

Na abertura do Capítulo I de Dom Quixote, as marcas históricas e literárias

advertem o leitor de que ele conhecerá uma história verdadeira sobre um fidalgo que

queria ser cavaleiro, sobre aventuras narradas e atestadas por outro autor que não ele.

Cervantes ergue as paredes de um labirinto recheado de miragens, que, pouco a pouco,

rouba e descompensa as certezas do leitor, como o faz, por exemplo, ao iniciar o relato

localizando a história na região da Mancha para, logo depois, promover o apagamento

territorial dessa delimitação ou estendê-la ao mundo: “Num vilarejo da Mancha, de cujo

nome não quero lembrar-me, há muito tempo vivia um fidalgo dos de lança em lanceiro,

adaga antiga, rocim magro e cão corredor” (CERVANTES, 2010, p. 51). Ao mesmo

tempo em que Cervantes nos remete para um lugarejo manchego, nos desorienta

utilizando-se de expressões cristalizadas pelas fábulas e contos fantásticos, como, por

exemplo, "há muito tempo vivia...”, que pode ser facilmente substituído por “Era uma

vez...”.

Penso que o modus operandi quixotesco, que coloca as histórias todas do livro

em movimento, aponta para a urgente e, ao mesmo tempo, irrealizável tarefa de se

pensar a realidade objetiva. Não quero dizer que a vida inteira precise ser revisada sob

uma lente niilista ou cética, colocando-se em xeque as realidades que vivenciamos.

Porém, talvez o cavaleiro inexistente queira mostrar que todas as coisas só podem ser

descritas e ditas através das palavras que ora se baseiam nas coisas, ora contrapõem-se a

elas, ficando sua similitude em suspenso, como disse Foucault em As palavras e as

coisas:

Seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprisse despertar para que se pusessem de novo a falar. Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a ser a linguagem dos livros, na medida imperceptível em que se assemelham aos castelos, às damas e aos exércitos. Semelhança sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisão e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros. Mas a própria não similitude tem seu modelo que ela imita servilmente: encontra-o na metamorfose dos encantadores. De sorte que todos os indícios da não semelhança, todos os signos que mostram que os textos escritos não dizem a verdade assemelham-se a este jogo de enfeitiçamento que introduz, por ardil, a diferença no indubitável da similitude. E, como essa magia foi prevista e descrita nos livros, a

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diferença ilusória que ela introduz nunca será mais que uma similitude encantada. Um signo suplementar, portanto, de que os signos realmente se assemelham à verdade. (FOUCAULT, 2007, p. 64).

Por tudo isso, proponho um outro sentido para o quixotismo. Não

necessariamente venho sugerir um sentido novo, mas venho propor que, ao menos, se

recupere outro sentido ou até outros sentidos para o termo. Preferir gigantes a

inanimados moinhos de vento não é simplesmente um ato de loucura no que se refere à

falta de razão ou de clareza de raciocínio: é, principalmente, uma forma de lutar contra a

falta de mistério e o desencanto. É também uma forma de minar a ficção usando seus

próprios recursos, implodindo a narrativa para renová-la.

Quixote não luta para tornar real a sua ficção, mas, pelo contrário, luta pelo

direito de dar à ficção uma realidade autônoma, que enriqueça e duplique as

interpretações e as leituras de mundo. Nesse ponto, continuo concordando com as

palavras de Bernardo, que analisa as intenções de Cervantes quando criou um

personagem para ironizar aquele seu contexto e aqueles costumes de sua época, erigindo

como escudo a suposta loucura de Quixote. Ao fazê-lo, assumiu o duplo risco de ser

lido como um fraco ou como um hipócrita. Escreve Bernardo:

No entanto, a verdade não se encontraria nos extremos, mas também não exatamente no meio. [...] No lugar de ingenuidade, Cervantes revela consciência bastante fina a respeito do ser humano no mundo. Seu Dom Quixote oferece uma nova maneira de ler o mundo, formulando uma sofisticada crítica da leitura. (BERNARDO, 2006, p. 58).

O quixotismo seria, então e sobretudo, a dúvida, tão necessária à sobrevivência

da nossa espécie em vários sentidos. Imagino que, sem a dúvida, ainda poderíamos estar

nas cavernas escuras, acreditando que, do lado de fora, somente sombras poderiam

existir. No entanto, depois de darmos à luz a vontade de conhecer, veio a vontade de

poder, cuja forma de expressão mais antiga é o discurso dogmático.

Normatizar a percepção das coisas seria uma forma de manter uma ordem

perfeitamente controlável por aqueles que detinham o conhecimento e o poder. Afinal,

seria impossível imaginar uma realidade que fosse plenamente satisfatória para todos. E

a única formar de garantir a satisfação de alguns poucos se mostrou através da

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imposição de uma verdade idealizada. A partir daí, torna-se fácil entender o papel do

despotismo tanto político quanto religioso que tinge a nossa história de sangue. Tudo

isso nos leva novamente à questão do poder subversivo da arte, pressentido por Platão e

atestado pelos diversos contextos culturais, com mais ou menos intensidade.

Tanto mais cabível se torna essa visão quanto mais pensamos no ofício da

literatura de ficção: criar realidades outras através das palavras, imagens verbais

incapazes de escapar totalmente dessa identidade flutuante, produtoras de faz-de-conta

por excelência, mesmo quando se querem literais.

A ficção foi sempre um vão misterioso entre os mundos ideais e as realidades

que se desenrolam nas práxis humanas. E, por isso, a narrativa de Cervantes e,

principalmente, aquele magro personagem destacam-se temporal e atemporalmente.

Dom Quixote é um semeador de dúvida. Ele a semeia e a cultiva desde a primeira

aventura e a estende para fora das páginas. No início, há um homem cuja identidade só

se fixa através do nome fictício: antes de decidir ser um cavaleiro, o narrador não tem

certeza de seu nome. O que vemos em primeiro plano é um lunático, sedentário, que

decide deixar o tédio da vida medíocre de uma forma bastante insólita. Tanto leu ficção

que teria sido tragado por ela.

De um momento para o outro, já não rimos tão largamente quando suas

tentativas de transformar o mundo que se dissolvia, transbordando de crueldade e

injustiça, só lhe traziam humilhação e descrédito. Depois nos distraímos com as outras

pequenas narrativas que atravessam a história maior, a ponto de esquecermos, muitas

vezes, que o cavaleiro Dom Quixote estava lutando para existir através de quem o

escrevia ou de quem o lia.

De repente, é como se ele tivesse sempre existido e tivesse igualmente sempre

sido negado. Aliás, cada negação parece dar mais vida e corpo ao quixotismo. Além

disso, a cada derrota sofrida pela Triste Figura, nos perguntamos, sem podermos

formular uma resposta assertiva, o porquê de sua insistência em seguir lutando.

Somos convencidos de que a dúvida é o único caminho para a leitura do livro e

da vida. E, nesse caso, a dúvida é a própria ficção. A suposta loucura do Quixote, no

fim das contas, não segue um programa nonsense. Ele cumpre e cobra sentidos dentro

do que escolhe viver, sendo, muitas vezes, lúcido em seu delírio. E, nesses momentos,

não apenas duvidamos da sua inexistência como podemos entender que a ficção, por

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erigir-se como tal, pode tornar-se assustadoramente lúcida perante a inverossimilhança

daquilo que chamamos de realidade. Por fim, se o quixotismo é a dúvida e se a dúvida é

a base da ficção, a luta de Quixote não é bem por realizar o sonho de ser cavaleiro, nem

mesmo para sair vencedor de suas batalhas. É, parece-me, antes de tudo, pelo direito de

sonhá-las e de reivindicá-las como verdades leves e mutáveis.

O quixotismo nos lembra que a ficção nos é necessária enquanto arte, enquanto

espaço de liberdade, já que seus discursos não têm nenhuma obrigação com a vida

objetiva e concreta, e, por isso mesmo, estão liberados para tocar os recônditos mais

escuros da nossa humanidade. O quixotismo de toda ficção, isto é, o germe da dúvida,

mina e afrouxa os nós dos dogmas massivos que, tantas vezes, vêm se escorar sobre os

ombros dos homens de pouca fé e muito medo. O quixotismo pode evitar que sejamos

esmagados pelas verdades e certezas impostas e, quase sempre, improváveis.

O quixotismo pode ser cultivado para que a nós continue sendo concedida a

graça das possibilidades e para que a brevidade da vida seja suportada com mais

entusiasmo. Precisamos, pois, redimir o quixotismo, assim como faz Carlos Ribeiro.

3.2 Lutando com moinhos de vento: os Quixotes de Carlos Ribeiro

No livro em que propõe analisar cinco paradoxos da modernidade, Antoine

Compagnon descreve o que, para ele, seriam as características do romance pós-

moderno:

Se eu tivesse de citar um romance pós-moderno, reunindo todos os traços frequentemente mencionados – a indeterminação do sentido, o questionamento da narração, a exibição dos bastidores, a retratação do autor a interpelação ao leitor e a integração da leitura –, pensaria no belo livro de Louis-René des Forêts, Le Barvard (1946) (O tagarela), sobre o qual escreveram Blanchot e Bennefoy. Um personagem narra várias crises de tagarelice, depois se retrata, denuncia sua narrativa como uma mentira e como verdadeira a tagarelice; culpa o leitor e, finalmente, não resta nada. (COMPAGNON, 2010, p. 118-119).

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É claro que, em várias épocas, desde o aparecimento do romance como o

conhecemos, isto é, narrativa mais ou menos extensa escrita em prosa, podemos achar

um ou vários exemplos literários que se enquadram nos aspectos descritos acima ou que

compartilham, ao menos, alguns pontos destacados por Compagnon. De forma curiosa,

é possível, por exemplo, aproximar, por meio de alguns desses traços estilísticos, a

narrativa de Carlos Ribeiro, extremamente contemporânea, do romance mais conhecido

de Miguel de Cervantes e de obras de Machado de Assis e de Italo Calvino, guardando

entre eles as devidas proporções temporais e individuais.

Mas, como o título deste capítulo indica, pretendo mostrar como essas

características que Compagnon chamou de pós-modernas já se encontram presentes na

mais conhecida obra de Cervantes. Digo, na construção do Cavaleiro da Triste Figura e

das outras histórias que compõem a obra, e como essas mesmas características se

apresentam na narrativa de Ribeiro, indo muito além de meras coincidências estilísticas,

coincidindo quase num protocolo ficcional. Quero começar pontuando o que

encontramos em Dom Quixote e que corresponde à descrição citada anteriormente.

Do que sabemos, o que Cervantes escolheu chamar de prólogo é já parte do seu

jogo narrativo, no qual, desde a primeira linha, pretende enredar o leitor, cuja atenção é

posta em prova através do vocativo “desocupado leitor”. A partir daí, uma espécie de

narrador número um, ou o que Maria Lúcia Dal Farra (1978, p. 19) chamou de “autor-

implícito” 7 (um ser que faz o papel do autor, aquele que assina a capa do livro), escreve

ao leitor para denunciar os textos que abrem as aventuras quixotescas. Era comum que

houvesse textos escritos por leitores nobres para “cantarem” a maestria e a argúcia do

escritor, os quais comumente figuravam como indicadores de prestígio da obra,

sobretudo daquelas novelas cavalheirescas que Cervantes ironiza homenageando ou

homenageia satirizando. Em geral, eram sonetos ou vilancetes, cunhados por

personalidades letradas cuja fama o autor usava para respaldar suas histórias.

Mas ali, ao contrário, o narrador que traz o Quixote a lume confessa ao “leitor

suave” que, não tendo talento para ornamentos poéticos e nem relações suficientemente

influentes, resolve aceitar o conselho de um amigo e inventar autores com nomes

7 Maria Lúcia Dal Farra explica que o autor implícito seria uma “Máscara criada pelo demiurgo, o narrador é um ser ficcional que ascendeu à boca do palco para proferir a emissão, para se tornar o agente imediato da voz primeira. [...] O homem responsável pelo romance, cujo nome aparece na capa, traz sua face apagada dentro da ficção. Seu rosto está encoberto pelos muitos véus da mistificação romanesca e seu olhar velado pela perspectiva do narrador que criou”. (DAL FARRA, 1978, p. 19, grifo da autora.).

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pomposos ou assinar ele mesmo nomes de relevante fama, para darem graça àquelas

histórias, espelho da cavalaria andante, nas quais o personagem maior, “segundo a

opinião de todos os habitantes do distrito do Campo de Montiel, foi o mais enamorado e

o mais valente cavaleiro que de muitos anos a esta parte se viu naquelas paragens.”

(CERVANTES, 2010, p. 33). E, em um aparente surto de sinceridade, aproveita ainda

para abrir mão da paternidade do livro no que diz:

Mas eu que, conquanto pareça pai, sou padrasto de Dom Quixote. Não quero seguir a corrente do costume nem suplicar-te, quase com lágrimas nos olhos, como outros fazem, leitor caríssimo, que perdoes ou dissimules as faltas que neste meu filho vires, pois nem és seu parente nem seu amigo, que tens tua alma e teu corpo e teu livre arbítrio como qualquer, e estás em tua casa onde és senhor dela [...]. (CERVANTES, 2010, p. 24).

Ao fazer do leitor um confidente e ao abrir as cortinas dos bastidores da

preparação do livro através desse narrador que o interpreta e que também não quer

aparecer como autor legítimo da história, sendo a paternidade atribuída a um tal mouro,

de nome Cide Hamete Benengeli, Cervantes arquiteta a armadilha ficcional que quer

colocar em suspenso tanto a noção de mentira quanto a noção de verdade. Pode-se

pensar que Cervantes trabalha com a tríade imaginada por Wolfgang Iser (1996) que

constitui, segundo ele, as teias da trama do mundo fictício. Fariña comenta sobre isso

que:

O fictício, segundo Iser, está numa relação tríade com o real e o imaginário. No ato de fingir, o imaginário adquire uma configuração que não lhe é própria, ganhando dessa forma um atributo de realidade. O caráter difuso do imaginário se perde, por isso o fingir também não é idêntico ao imaginário. A sua objetivação através de signos constitui-se numa transgressão. Da mesma forma, o real ao ser ficcionado contém sempre uma transgressão de limites. Assim sendo, tanto há no texto ficcional muita realidade, como no texto histórico há muita ficção. (FARIÑA, 2016).

Portanto, sob o pretexto bem-humorado de evitar uma possível crise de

consciência, as identidades começam a se embaralhar, assim como a verossimilhança e

o absurdo de tudo que será contado. Afinal, aspectos históricos e detalhes geográficos

aparecem atrelados a histórias mais incríveis, como também aparecem diversas pistas

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biográficas que vão fundindo não apenas a identidade de Cervantes com a daquele

narrador padrasto ou autor-implícito, mas também com o mouro Hamete Benengeli

(que, àquela altura, soa já como uma anedota) e com o próprio Quixote, pois, ainda

seguindo Fariña (2016), “Os conceitos de realidade e ficção, fictício e imaginário

dialogam, se entretecem, se confundem, se aproximam, se afastam.” Com o passar do

tempo, quanto mais o Cavaleiro da Triste Figura ganhava contornos na memória

cultural do Ocidente, mas o nome do seu autor ajustava-se a sua existência ficcional,

tornando-o quase um duplo da sua criatura.

Em 1605, esse procedimento literário provavelmente não era comum e, pela

força que teve o romance, pode-se supor ter inaugurado uma nova maneira de escrever

ficção. Acerca do recurso narrativo adotado por Cervantes, que confunde as vozes do

autor, do narrador e do personagem, Bernardo comenta o seguinte:

A confusão de Dom Quixote e dos personagens que o rodeiam se tem representado, na literatura, através de uma confusão específica: a impossibilidade de distinguir o narrador do autor. As teorias mais elaboradas sobre a literatura perseguem este requisito de formalidade como se perseguissem o cálice do Santo Graal. [...] Há estudos que tentam elencar, entre os supostos erros do escritor espanhol, a incerteza sobre o nome original do seu protagonista: Quijada, Quesada, Quejana, ou Quijano? Ora, que o narrador de Cervantes não soubesse o verdadeiro nome do seu herói não é de modo algum um erro, porque implica uma sugestão clara, escrita sobre as linhas e não nas entrelinhas, de que não há coisa tal como o nome verdadeiro de alguém. (BERNARDO, 2006, p. 60).

Bernardo ainda segue refletindo a respeito na narrativa de Cervantes:

Quem narra Dom Quixote? Nos termos da história, há pelo menos dois narradores, um oficial e o outro implícito. O narrador oficial é o mouro Cide Hamete Benengeli, o “primeiro” autor, cuja crônica dos fatos é traduzida por um outro mouro e, posteriormente, editada por Cervantes, que se apresenta como uma espécie de “segundo” autor. O narrador implícito é o próprio Cervantes que, além de assinar a obra, coloca seu eu na famosa sentença do romance: “En um lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía um hidalgo de los lanza en astillero, adarga antiga, rocín flaco y galgo corredor”. [...] Trata-se de um requinte sintático em que o sujeito do verbo encontra-se implícito no próprio verbo. Jean Canavaggio, na edição comemorativa da Galáxia Gutenberg, afirma: “el que expressa essa negativa é um ser fantasmal”. Ou seja, o autor se

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constitui deliberadamente como fantasma do próprio livro. (BERNARDO, 2006, p. 61).

Ora, a pergunta que Bernardo faz sobre Dom Quixote também é aplicável a

Abismo e, na verdade, aos outros romances de Ribeiro. Pensando-se a respeito de

Abismo, por exemplo, cabe perguntar quem narra essa aventura contemporânea, já que é

o próprio herói que nos conta das suas buscas e já que ele não se apresenta

nominalmente. Uma resposta plausível seria pensar que, tal como afirma Bernardo em

relação a Cervantes, Ribeiro também esteja dizendo que não é possível conhecer

verdadeiramente porque todo nome é uma metáfora, ou seja, uma aproximação e não

mais que isso.

E, embora o nome Quixote esteja impresso na memória cultural do Ocidente, a

comédia de erros encenada através da confusão de nomes, incluindo o do próprio

protagonista, quer nos mostrar que o herói do livro não sabe quem é realmente. Assim

como não o sabem seus narradores e nem mesmo o seu criador. Inclusive, o fidalgo

manchego só começa a ganhar uma identidade quando assume a persona ficcional do

cavaleiro. Mas como se trata de uma identidade forjada pela ficção, ela continua uma

interrogação. A partir daí, Cervantes transforma a todos e a si mesmo em fantasmas.

Aliás, todos ali, incluindo o autor, aparecem como invenção e ficção, da mesma forma

que acontece com Alberto de Lunaris, que vai se desintegrando à medida que coloca em

xeque o que julgava ser real. Conforme vimos, aliás, assim como Quixote, Alberto é

duplamente inexistente e, ao avançarmos na leitura, percebemos que ele pode muito

bem ter inventado esse nome, que ele pode ser o próprio narrador ou até o próprio autor

que aparece na narrativa em terceira pessoa.

Já o personagem-narrador de Abismo aparece como uma sombra sem rosto e,

dentre a profusão de vultos que vagam pela narrativa, sem dúvida, também está o de

Ribeiro, conforme flagramos no trecho abaixo: “Penso agora que, além de personagem,

sou o autor do livro da minha vida, que construo ao meu bel-prazer”. (RIBEIRO, 2004,

p. 220).

Da mesma forma que o autor do Quixote pode ser flagrado nas marcas

sintáticas com que costura o dizer da história, o autor de Abismo também se faz presente

em suas linhas, talvez até de maneira mais explícita quando o pronome “eu” aparece nas

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sentenças ao lado de alguns detalhes biográficos. E as semelhanças entre os narradores

não param aí.

Apesar de o livro de Cervantes ser dividido em dois volumes, publicados

originalmente em épocas distintas, as aventuras de Dom Quixote podem ser divididas

em três. Os sucessos quixotescos aconteceram quando de suas três saídas em busca de

aventuras, dignas das novelas de cavalaria que havia tão bem internalizado. No decorrer

dessas três saídas é que vemos o velho fidalgo transformando a realidade impressa no

livro ao mesmo tempo em que se transforma em cavaleiro andante, ainda que o

Cavaleiro da Triste Figura.

Resolveu sair pela primeira vez, não sem antes nomear seu magro cavalo de

Rocinante, limpar as armas que foram de seu avô e, claro, arranjar uma senhora digna

de sua adoração, que tivesse um nome tão sonoramente belo e nobre como o seu

próprio. Imaginou a donzela a quem chamou de Dulcineia do Toboso. Precisava, como

andante benfeitor, ter alguém a quem dedicar suas vitoriosas empresas. Partiu a fim de

fazer aquilo que os heróis medievais deveriam fazer, sagrou-se cavaleiro em um lugar

que todos diziam ser uma estalagem simplória, mas onde Quixote via um valoroso

castelo, e passou a noite em vigília sob a lua, guardando suas armas. Depois, então, de

pôr-se em armadura, lança e espada, resolveu executar as artes da cavalaria, mas na

primeira aventura foi espancado e humilhado. Na verdade, humilhado aos olhos dos

outros. Voltou ao vilarejo, onde encontrou o cura, o barbeiro, a ama e a sobrinha a

esconjurarem os romances de cavalaria e decididos a porem fim ao motivo que levara a

sua sanidade. Daí procede a famosa discussão sobres os autores que mereceriam ou não

ser salvos da fogueira em que queimariam tão imaginativas histórias.

Nesse ponto, destaca-se sempre o curioso caso em que Cervantes faz com que

os amigos do valoroso Quixote discutam e explanem sobre o escrutínio literário dos

famosos livros que formavam a biblioteca da casa e o gosto literário corrente. No

episódio, aparecem nomes de famosos autores e títulos bem difundidos, incluindo A

Galateia, romance escrito pelo próprio Cervantes. Ali, mais um ato pós-moderno,

naquela perspectiva descrita por Eco (2012), pode ser observado. A forma de narrar do

romance cavalheiresco parece que havia se esgotado no que se refere à novidade das

narrativas, que traziam sempre uma estrutura parecida de enredo bem como um modelo

de herói. Então, o autor do Quixote escreve sobre um romance de cavalaria à revelia do

que seria um. Um cavaleiro improvável, em uma época em que os cavaleiros eram

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ficções contumazes. Por isso, resolve queimar novelas de cavalaria dentro de uma

novela de cavalaria às avessas. Da mesma forma, conforme apontei no segundo

capítulo, Carlos Ribeiro e outros escritores contemporâneos trazem à baila toda sorte de

estilos e formas literárias marcantes de diversas épocas e contextos não para revitalizá-

los, mas antes para colocá-los em pleno diálogo irônico, pondo sempre em dúvida se a

presença do passado se faz para denúncia, sátira, resgate ou pura reinvenção diante da

impossibilidade do novo como conceito original.

Seguindo o ritmo quixotesco, tem-se a segunda saída de Quixote, que, dessa

vez, não está sozinho, mas em companhia daquele mais famoso escudeiro da história: o

lavrador e vizinho Sancho Pança. O pobre lavrador decide seguir o fidalgo atraído pelas

promessas de lucro e de bom título, de forma que se põe a acompanhar Quixote,

deixando para trás a vida árida que tinha junto à mulher e aos filhos. É na companhia de

Sancho que o cavaleiro protagoniza a cena que iria tornar-se símbolo do quixotismo

enquanto utopia delirante: a luta contra os moinhos de vento.

Durante a campanha de Dom Quixote e Sancho, vemos a narrativa principal

ficar, às vezes, em suspenso, por ser entrecortada por outras histórias que irrompem dos

caminhos incertos. São estórias curtas cujos sentidos são independentes da história

maior, mas que funcionam como formas dinâmicas que enriquecem e alargam os

horizontes das viagens dos dois companheiros. Essas breves narrativas têm um papel

formal especial no livro porque colocam seu estilo à prova, confundem e fundem

gêneros narrativos e líricos, usando a indefinição não apenas como base para a

interpretação textual, mas também para apontar a estrutura da narrativa e um novo jeito

de conceber o romance.

Aos poucos, vamos percebendo que as histórias que ora são carregadas de

drama, ora de humor são os insumos e os espólios que os andantes conseguiram reunir,

são o tesouro e o alimento da empresa cavalheiresca. Assim também vemos, diante dos

nossos olhos, as coisas se transformarem como antes acontecia apenas a Dom Quixote.

Não apenas personagens secundários e passantes ou objetos, mas vemos Sancho, pouco

a pouco, ser absorvido e tocado pelo olhar daquele que inicialmente lhe parecia tão

somente um tolo abandonado pela razão.

Vemos mais. É como se, sem darmos por isso, de leitores e juízes, passássemos

a compor o grupo e a lutar ao lado daqueles desamparados aventureiros. Se, ao início da

caminhada, Sancho tentava convencer seu patrão de que os gigantes não passavam de

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moinhos, ou os outros de que eles não deveriam levar a sério as ofensas que o velho

fidalgo desferia, fazendo-o como se falasse a inimigos, ou ainda de que Dulcineia do

Toboso não passava de uma camponesa feia e pobre, a certa altura, o mesmo Sancho

passa de fato a fiel escudeiro, protegendo seu senhor e defendendo seus ideais e sua

visão de mundo. De outra forma, o que poderia explicar sua leal amizade, arriscando-se

por Dom Quixote mesmo depois de ter passado muito tempo sem nenhum sinal da

riqueza ou glória prometida?

Os diálogos iniciais sobre ínsulas, prêmios e títulos passam a dar lugar a

questões poéticas, filosóficas e literárias, que questionam o estatuto do “isto ou aquilo”

e dão lugar à dúvida como forma legítima de indagar e compreender a vida e, sobretudo,

como o esteio de toda ficção. Tanto é assim que, contrariando toda a lógica, quando, na

última batalha, o Cavaleiro da Triste Figura fere-se gravemente, só recobra a

consciência ao ouvir os lamentos de Sancho, que discursava a favor de seu mestre e da

arte da cavalaria andante. Encontra-se, nessa segunda parte do livro, o fim da segunda

saída de Quixote pelo mundo que seus olhos encantava.

Contraria mais as expectativas o fato de que, ao final do livro, tendo retornado

o cavaleiro a sua casa, muito fraco e ferido depois da segunda andança, ainda tornou a

sair pelo mundo uma terceira vez, acompanhado novamente de seu fidelíssimo

escudeiro, mas disso o narrador apenas teria ouvido falar, não possuía provas muito

palpáveis. Portanto, ele não pode dar detalhes de seus sucessos ou de sua morte, apesar

de as memórias da Mancha contar e cantar todas essas coisas:

Só a fama guardou, nas memórias da Mancha, que D. Quixote, na terceira vez que saiu de casa, foi a Saragoça, onde se viu numas famosas justas que naquela cidade fizeram, e que ali lhe sucederam coisas dignas de seu valor e aguda inteligência. Nem de seu acabamento pode encontrar coisa alguma, nem a teria encontrado nem sabido se a boa sorte não lhe tivesse deparado um velho médico que tinha em seu poder uma caixa de chumbo [...] na qual caixa se haviam achado uns pergaminhos escritos em letras góticas, mas em versos castelhanos, que continham muitas de suas façanhas [...] e da sepultura do mesmo D. Quixote, com diferentes epitáfios e elogios de sua vida e costumes. (CERVANTES, 2010, parte II, p. 347-348).

Também são três as saídas ficcionais concebidas por Ribeiro, feitas em três

romances diferentes. O Chamado da Noite (1997), Abismo (2004) e Lunaris (2007).

Nesses romances, Ribeiro retoma, a seu modo, aventuras que se tornam quixotescas no

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contexto pós-moderno. Os personagens parecem retomar a caminhada que ficou em

pausa na pena de Cervantes, mas que, de modo algum, foi encerrada.

Apesar de não ter comentado, até este momento, lembro o primeiro romance de

Ribeiro, que funciona, numa perspectiva comparativa, como a primeira saída de Dom

Quixote, na qual o cavaleiro começa a se formar como tal.

N’O chamado da noite, temos um narrador que é autor e que decide narrar uma

espécie de fluxo de pensamento enquanto pensa na narrativa, ou seja, ele se narra

enquanto personagem de sua tentativa de escrita ficcional, escrita que nunca chega a se

cumprir totalmente, aliás, essa é a ideia fixa do personagem-narrador. Um homem que

carrega a mesma vontade de vagar que o cavaleiro cervantino, tem visões que misturam

o presente e um passado feito de recortes e cortes temporais, e que curiosamente

também é atormentado pelos livros e personagens que leu durante sua vida, como nos

mostra o seguinte trecho:

Essa minha mania de só querer navegar em águas consagradas, como se nada mais valesse a pena além de Kafka e Borges; de Guimarães e Hemingway, de Graciliano e Dostoievski – sim, porque as livrarias estão sempre muito cheias de títulos e nomes, e estão sempre chegando outros e outros que se acumulam ao longo dos anos [...]. (RIBEIRO, 1997, p. 34).

Ou, ainda, mais nitidamente, nas palavras que se seguem:

Sempre que me sinto desamparado, me vejo caminhando nas ruas da cidade, à noite, anônimo no meio da multidão, perdido na noite, acho que é por isso que gosto tanto do filme do John Schlesinger, porque é assim que me sinto, mas sem aquele ar desamparado do Jon Voight, na realidade me identifico mais com a personagem d’O Homem na Multidão, de Poe [...]. E acho que sou também um daqueles homens que andam à noite nas ruas de Londres, algo assim como Dr. Jekyll, e Mr. Hyde, mas as cidades, as grandes cidades deste final de século já não têm o fascínio dos cenários que abrigam as visões de Stevenson, Poe e Baudelaire [...]. (RIBEIRO, 1997, p. 89-90).

Assim como Dom Quixote, o homem vaga à procura de identificação entre o

mundo que povoa sua cabeça e o mundo que está fora dela. Ele procura uma ideia para

escrever, observa as pessoas e a cidade que se transmuta. Conversa com pessoas e com

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fantasmas que ele imagina. Vultos e vampiras povoam sua vida e sua escrita, aliás, vida

ficcional e escrita ficcional se misturam e se dissolvem. Ainda está só, e tenta achar nas

lembranças algum momento em que não estivesse. Lembra-se dos seus contatos

superficiais da vida real e cria laços profundos com o que inventa, mas a solidão é a

única companheira que permanece.

Um dia, esse homem vê uma mulher na rua, mas não temos certeza de que ela

existe na primeira realidade ficcional narrada pelo livro ou se frequenta apenas o

segundo plano narrativo que expressa o mundo imaginativo do personagem. Ele trava

um diálogo com ela, cria um laço afetivo. No entanto, ela desaparece de sua vida, a

única que julgava real. Então, decide criar uma outra mulher, Beatriz – uma

personagem. Mas ela o aprisiona na ficção e toma o seu lugar. Vagando pela cidade,

encontra a outra mulher por quem o narrador-personagem havia ficado tão atraído e

descobre que também ela não passa de ficção. Em um diálogo verdadeiramente

ficcional, a mulher explica a Beatriz como e por que se aproximou daquele homem:

Os seres humanos cada dia mais se assemelham a nós. Pensei que em breve teríamos todos conosco do outro lado da porta, no nosso mundo. Mas não faríamos companhia uns aos outros, seríamos apenas uma multidão de sombras solitárias. [...] A porta está se alargando: ela é uma síntese de imaginação, desencanto, chips e hologramas. (RIBEIRO, 1997, p. 105).

Essas palavras transbordam ironia, sem dúvida. Nelas também assistimos à luta

para denunciar o apagamento da ficção dentro da ficção. O embaralhamento das

identidades e das vozes que se multiplicam também está presente durante toda a

narrativa. No final, aquele que se coloca como autor, narrador e personagem retoma a

voz ficcional para denunciar a impossibilidade de escrever algo que seja real e para

falar, assim como o fez Cervantes por seu Dom Quixote, da impossibilidade de pensar a

realidade e a mesma necessidade que temos de pensá-la. Então, diz-nos a voz do

romance:

Acho que será impossível para mim escrever um livro, um romance realista, onde as personagens se tornem quase tão reais como nós mesmos. Neste romance, meu amor, acontece justamente o contrário: neste romance é o autor que se torna irreal. (RIBEIRO, 1997, p. 107).

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Aí está o projeto, ou melhor, o não projeto: fazer com que a ficção se erga

autônoma dentro da realidade cada vez mais virtualizada, dos chips e dos hologramas,

virtualização que parece transformar a todos em fantasmas. Mas, como o Cavaleiro da

Triste Figura, o narrador de O chamado da noite decide seguir andando, vagando pela

noite infinita enquanto dura. Talvez siga buscando, através da ficção, achar uma

verdade possível, um nome, uma identidade, como deixa transparecer o seguinte trecho:

[...] então eis que me vejo mais uma vez caminhando sozinho na noite [...], aqui só vejo essa gente que passa para um lado e outro, e me sinto mais uma vez como a personagem de Poe, nas ruas de Londres, seguindo o homem na multidão; mais não serei eu o homem na multidão? não aquele pavoroso, não o Mal, mas apenas um fantasma, um fantasma, um fantasma, um fantasma... (RIBEIRO, 1997, p. 107).

Note-se que Ribeiro finaliza o romance sem o finalizar, isto é, colocando seu

cavaleiro em plena marcha, através da noite escura, noite que pode, muito bem, fazer o

papel destes tempos nebulosos, que dissipam e transfiguram as faces. Por isso, ao

visualizarmos esse homem que nos dá as costas para seguir na sua aventura quixotesca,

vemos apenas uma imagem espectral, fantasmagórica, que se mistura à massa tão

amorfa quanto ele.

A segunda saída quixotesca na narrativa de Ribeiro é tecida em Abismo. O

mais cavalheiresco e épico e, por isso mesmo, talvez o mais pós-moderno dos seus

romances.

O herói sem nome de Abismo, perdido na selva da pós-modernidade, e o velho

fidalgo espanhol compartilham motivações semelhantes. Afinal, o protagonista de

Ribeiro também é perturbado por visões distintas da realidade, embora não haja

totalmente o abandono da razão lógica, sendo a oscilação das percepções de mundo sua

maior batalha, pois, “Em vez do escudo e da espada, eu só tinha nas mãos uma grande e

opressiva interrogação” (RIBEIRO, 2004. p. 150). Ele sabe que:

Mesmo num mundo em constante e frenética transformação, é necessário, para manter um mínimo de equilíbrio psicológico, que o nosso rosto no espelho hoje seja o mesmo de ontem, embora sejamos na realidade uma infinita sucessão de eus solitários. Neste mundo fugidio, as formas têm uma aparência de irrealidade que me deixa

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perplexo e angustiado. É como se eu andasse de olhos vendados à beira de um abismo. (RIBEIRO, 2004, p. 185).

As ponderações do personagem de Abismo nos mostram um homem que não

está totalmente imerso em delírios oníricos ou na plena irracionalidade, mas que, ainda

assim, se coloca em uma busca insólita pelo Santo Graal, mesmo duvidando, muitas

vezes, que, de fato, o encontraria. Nesse caso, tanto lutar com os moinhos de vento

quanto enfrentar fantasmas, demônios e a força da natureza para encontrar o cálice

sagrado representam, nesse sentido, batalhas perdidas antes mesmo de acontecerem.

Quando o homem sem nome, desencantado com a vida, chega, depois de

muitas batalhas, ao centro do Abismo, nas ruínas do templo sagrado, encontra outro

homem que o aguarda. Esse homem, para sua surpresa, era ele mesmo, era seu duplo

que o havia esperado pelos séculos. A cena representa o reencontro do homem consigo

mesmo, fazendo com que a busca do herói alcance sucesso – era por si que ele buscava.

Abismo e Lunaris, de Ribeiro, e Dom Quixote, de Cervantes, são epopeias da

ilusão, no sentido de narrarem fatos extraordinários em jornadas ainda mais

extraordinárias. Elas narram as aventuras de heróis desacreditados na busca pelo

reencantamento do mundo, na busca pela ilusão salutar a todo ser humano, porque a luta

pela sobrevivência cotidiana é uma batalha desiludida. Ao contrário do que tudo nos

leva a supor, esses heróis já se distanciam dos anjos caídos que perambulavam pela

modernidade. Os heróis de Cervantes e de Ribeiro participam de odisseias fantásticas,

mas não são trágicos, antes abatem a tragicidade pelo poder da própria ficção.

Além disso, Ribeiro, através da sua escrita ficcional, tenta superar os abismos

que afastam o homem de todos os seus múltiplos, achar o templo sagrado onde todos

possam voltar a ser um. Ribeiro reveste seus heróis incógnitos com a armadura

quixotesca para que eles lutem representando todos os homens contemporâneos

perdidos, sujeitos estilhaçados pelas incertezas pós-modernas, para que eles percorram

um caminho fantástico à procura de si. Como nos provocam a pensar as palavras

seguintes:

Segurando firme o cajado, finco-o no chão e levanto-me. Com a sua luz do sol que retorna, vejo surgir ao longe as ruínas do templo, e entre mim e elas, o homem que me olha. Observo-o surpreso. O homem sou eu!

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[...]

Aproxima-se mais, com um sorriso enigmático.

– Finalmente chegamos ao nosso destino – diz ele, e mostrando as ruínas do templo, que estão às suas costas, acrescenta: - Eis aí o templo. O templo no qual fomos, um dia, rei e sacerdote; no qual invocamos as forças do dia e da noite, da luz e da escuridão. O templo que foi para nós, a plenitude e o vazio, o pleroma e o vácuo. Onde vivemos – lembras? (RIBEIRO, 2004, p. 207).

As sentenças destacadas na última página do livro, como se um pensamento

interrompesse o fluxo narrativo, chamam atenção por serem as últimas, por encerrarem

a segunda saída daquele Quixote em Abismo. Não sendo palavras do personagem-

narrador nem de outra voz inserida na narrativa, fazem-nos indagar quem as teria

proferido. Elas dizem assim: “O sonho não acabou. Abro os olhos. ‘A jornada começa

agora’, penso. E sorrio...” (RIBEIRO, 2004, p. 221). Por meio da indagação,

terminamos a leitura como começamos: em um labirinto ficcional. O que essas palavras

querem ou podem dizer? O que significam as reticências? Seria o próprio Ribeiro nos

indicando que a aventura continua?

O terceiro Quixote que Ribeiro colocou em marcha está em Lunaris. Ali o

cavaleiro pós-moderno já está ciente daquilo em que havia se transformado. Era como

se não fosse mais Quesada, Quijada ou Quijana, mas já uma identidade quixotesca,

reunião de todos os homens e todas as mulheres que não se entregaram ao pragmatismo

que anula a utopia. Essa persona é um mister de imaginação, sensação de deslocamento

e de sonho, tudo condensado em um nome comum: Alberto. E, em Lunaris, essa

aproximação identitária não está mais subtendida, mas explícita pelas palavras do

narrador: “Alberto era uma pessoa normal. E não era, de forma alguma, um pessimista.

Havia nele uma bem dosada mistura de Quixote e Sancho, de forma que, apesar de se

sentir um pouco deslocado entre seus semelhantes, tocava sua vida sem maiores

problemas.” (RIBEIRO, 2007, p. 17).

Assim como o Cavaleiro da Triste Figura dava pistas da consciência de saber-

se ficção, de que queria ser outro, Alberto demonstrou ter semelhante consciência ao

decidir criar para si Lunaris, onde podia andar por entre o encantamento da imaginação

plena, no sentido de não querer ser outra coisa. Lá podia ser como queria, podia furtar-

se, como fez o fidalgo espanhol, da realidade que queriam lhe atirar sobre os ombros –

um lugar opaco que se apagava pouco a pouco no enfrentamento da força imaginativa.

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Na vida insuportavelmente objetiva e sem surpresas que vivia fora de Lunaris, Alberto

sabia que

O herói estava morto. Morrera em algum lugar do trajeto da sua própria vida, mas não podia dizer exatamente onde. Alberto, que já alimentara e acreditara em tantas utopias, vivia agora para preservar a sua integridade moral como uma construção particular – como uma casa que constrói em cima de uma árvore, no quintal, a qual vistoria diariamente para ver se permanece limpa e sólida, como um refúgio à estupidez do mundo. Um lugar pequeno, entretanto, para caber muitas pessoas; um lugar seleto, no qual podia colocar sua família e um ou dois amigos, mas cujas portas jamais poderia escancarar para o mundo. (RIBEIRO, 2007, p. 16).

Tal qual o personagem cervantino, Alberto era um leitor voraz. Deixava-se

passear pelos pensamentos e sentimentos de autores que admirava e também gostava de

se imaginar vivenciando suas experiências, como mostra a seguinte passagem:

Olhando para sua própria subjetividade, Alberto pensa que, na verdade, nenhuma palavra, nenhum conceito pode dar conta de sequer um bilionésimo da vida e da biografia de qualquer pessoa. E, muito menos, de homens tão complexos com um Baudelaire, que Márcio arrasou tão tranquilamente como quem vai ali no açougue comprar a carne. Imaginou-se vendo e sentindo os sentimentos do poeta maldito; as infinitas sensações que lhe tocaram o espírito; o que pensava realmente do mundo, a partir da sua Paris. A sua dor. (RIBEIRO, 2007, p. 37).

Fica claro que o que Alberto deseja é retomar sentimentos, bandeiras

ideológicas e mesmo crenças que teriam ficado para trás, pisoteados pelo admirável

mundo novo que oprime com a falta dessas possibilidades. Aliás, a palavra crença

parece ter adquirido, neste nosso contexto, algum significado vergonhoso ou totalmente

inadequado. Alberto queria o direito de ser outro, talvez alguém inteiro, mas não menos

múltiplo por causa disso. A finitude e a brevidade da vida humana só podem ser melhor

compreendidas se entendermos o universo múltiplo que nos habita.

Mesmo o amor fora de Lunaris era, para Alberto, um sentimento reprimido

pelas responsabilidades diárias e por todas as urgências que anulavam o desejo e o

mistério. Por isso, em Lunaris, havia uma mulher, assim como havia Dulcineia para

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Quixote. Mulheres simulacros, que simulam o desejo do irrealizável, do conhecimento

incompleto. Afinal, a utopia como não lugar parece ser o único território desconhecido

em um mundo sem fronteiras. Dom Quixote, Alberto e os outros personagens de

Ribeiro parecem insinuar que, talvez, fora dele, não haja muitos outros que valham a

pena.

Aquele personagem absurdamente humano estava cansado de uma existência

que o dividia enquanto consciência. No fim das contas, do que vale o apagamento da

identidade se esse apagamento nos transformar em fantasmas?

Ao escrever sobre Lunaris em páginas anteriores, pontuei que, ao final, Alberto

precisou escolher um modo de vida. E tudo leva a crer que ele optou pela ficção. Mas aí

também estão a dúvida e o jogo narrativo, porque qualquer escolha seria ficção.

Contudo, escolher Lunaris provavelmente tem a ver com a busca por se reinventar, por

ser conhecedor e autor da narrativa que dá conta de si mesmo. Ora, se as nossas

identidades são construtos discursivos, não é absurdo que Quixote ou Alberto queiram

tomar a pena das mãos de seus autores para inventarem a eles mesmos, nem que

queiram viver onde algumas verdades ainda possam ser ditas e alguns ideais ainda

possam servir de bandeira.

Não podemos ignorar, porém, a revelação feita pelo homem que é o reflexo do

personagem em Abismo. Ele afirma:

Tudo isso é ficção! Como eu, teu autor. E o meu autor. E o autor dele e, assim, indefinidamente. Vous êtes moi. No fim de tudo, por trás dessa multidão, apenas um homem que sonha na noite infinita. Ele também está aqui. Tudo isso é um sonho. Esta é a grande revelação do Abismo. Essa é a nossa verdade. (RIBEIRO, 2004, p. 213).

A sentença final, “Essa é a nossa verdade”, parece nos dizer muita coisa, apesar

dessas poucas palavras. Através dela, o homem que é o duplo do herói, que é o narrador

e o personagem, que é o autor, o leitor e todos os homens e mulheres, nos diz que a

ficção torna-se, neste mundo, a única forma de verdade possível ou que, levando-se em

consideração que todo discurso é uma representação aproximativa do que concebemos

como realidade, tudo é ficção, inclusive nós.

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Seria, então, a busca por si uma busca quixotesca na selva da nossa

contemporaneidade absurda. Por isso, o único fim possível para o Quixote de Cervantes

ou para o Alberto de Ribeiro tenha sido devolvê-los à ficção. O que restou do cavaleiro

foi um amontoado de pergaminhos dando notícias do que ele teria feito segundo suas

vontades. Alberto decidiu abrir uma porta ficcional para ficar lá, podendo ser e fazer o

que não pode na realidade indiferente.

Cervantes e Quixote, tantas vezes confundidos e interpenetrados na trama da

história narrativa e na narrativa da história, muitas vezes também se distanciam, ainda

que esse distanciamento claramente faça parte do jogo vertiginoso que fazem dançar as

perspectivas da obra, como o que acontece quando entramos em uma sala de espelhos.

Carlos Ribeiro e seus heróis quixotescos também se confundem e se distanciam. Esse

distanciamento acontece sempre que o jogo das semelhanças entre vida ficcional e real

também se misturam e se tocam.

No que diz respeito ao Cavaleiro da Triste Figura, fica-nos claro que ele busca

pela semelhança entre um mundo que era sustentado por valores bem definidos e em

que homens guiados pela boa fé combatiam o mal e entre aquilo que os outros

chamavam de mundo real, onde as injustiças e as violências se multiplicavam e onde já

todas as certezas do mundo medieval, de um mundo familiar, passível de definições

estatuárias, começavam a ruir. Assim, “Jamais Dom Quixote poderia aceitar tamanha

contradição. [...] Afinal, Dom Quixote busca o espelhamento entre o mundo circundante

e as novelas de cavalaria, de forma que a realidade se converta em signo, como as

palavras e não com a realidade.” (COSTA VIEIRA, 2015, p. 109).

Mas quando essas semelhanças quase já se configuram em certezas, há sempre

as arestas das diferenças, introduzidas por Cervantes e Ribeiro, em suas respectivas

narrativas, para nos lembrarem de que, apesar de o real como algo concreto ter já

começado a se desvanecer, isto que vivemos e em que se inserem as nossas vidas não é

pura e simplesmente um mundo fictício. O simulacro da arte, outro tipo de realidade ou

de potência viva, não deve ser confundido com as simulações que desestruturam a

contemporaneidade.

O fictício cria imagens que lembram o não fictício, mas que são diferentes,

seguindo aquele pensamento aristotélico que engendra a arte como aquilo que poderia

ser e não exatamente o que deve ser. Por isso, quando está perto de findarem-se as

aventuras quixotescas de Cervantes, Quixote abatido e já de volta à sua casa tem um

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momento de lucidez (?), reconhecendo que toda aquela história de cavalaria não faz

sentido. Mas é claro que também esse episódio pode ser visto como uma troça, uma

ironia, como bem o percebe António Mega Ferreira (2014, p. 61) ao descrevê-lo: “Ei-lo,

personagem de papel, nascido da ficção e para ficção, fazendo acontecer o que a

realidade, indiferente, não lhe oferece”.

Tudo isso encontra equivalências nos romances de Carlos Ribeiro. Por

exemplo, Lunaris é o lado ideal do mundo ou o mundo idealizado pelo personagem,

mas é também um mundo com diferenças gritantes em relação ao dito mundo normal. E

como acontece no Quixote, vemos, em dado momento, a narrativa voltar-se sobre si

mesma. Afinal, Alberto sabia que, em certa medida, Lunaris não existia, mas abandonar

a sua ideia o levaria à morte ou àquela loucura outra, a que mata a sensação de liberdade

que deve animar a toda alma humana.

A lucidez suspeita de Quixote o faz, em vários momentos, saber de sua fama e

redefinir suas aventuras. Alberto, de Lunaris, também escreve seu destino fictício para

então entregar-se a ele. Já sabemos que, mesmo incitados ao riso por vários momentos

das leituras que possamos fazer desses livros, não é demais afirmar que há muitos

momentos de incômodo e de desconforto. E por quê? Talvez encontremos, se não uma

provável, ao menos uma poética hipótese nas palavras de Jorge Luis Borges. Elas dizem

assim:

Por que nos inquieta as mil e uma noites no livro de As mil e uma noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que se os caracteres de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios. Em 1833, Carlyle observou que a história universal é um infinito livro sagrado em que todos os homens escrevem e leem e tratam de entender, e no qual também os escrevem (BORGES, 2016 [1952]) 8.

8 Cf. trecho original: “¿Por qué nos inquieta las mil y una noches en el libro de Las mil y una noches? ¿Por qué nos inquieta que Don Quijote sea lector del Quijote, y Hamlet, espectador de Hamlet? Creo haber dado con la causa: tales inversiones sugieren que si los caracteres de una ficción pueden ser lectores o espectadores, nosotros, sus lectores o espectadores, podemos ser ficticios. En 1833, Carlyle observó que la historia universal es un infinito libro sagrado que todos los hombres escriben y leen y tratan de entender, y en el que también los escriben.”.

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Essas conclusões a que chego, contudo, se erigem também como verdades. E

como toda verdade aspira à certeza dogmática e a arte é o justo revés do dogma, elas, as

conclusões, podem servir apenas como hipóteses plausíveis e provisórias. Isso porque,

se há alguma verdade que se pode colher pelos descaminhos da ficção, acredito que ela

concordará com o silogismo pensado por Bernardo (2006, p. 53). Ele nos ensina que

“toda verdade é uma metáfora; ora, toda metáfora é quixotesca; logo, toda verdade é

quixotesca”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Voltando agora à questão que motivou essas reflexões, ou seja, o que a

narrativa de Carlos Ribeiro comunica, o que a caracteriza e o que a motiva no contexto

pós-moderno, hiperprático, hipercapitalista e cada vez mais virtual, não resisto à

tentação de pensar uma via de resposta através de outras perguntas. Primeiro porque as

perguntas permitem respostas variadas como as histórias ficcionais que andei a analisar.

Depois porque essas perguntas que me assaltam aparecem com oportuna pertinência

para o momento. Elas não foram cunhadas propriamente por mim, mas por Umberto

Eco ao passear sua escrita pelos bosques da ficção. Pergunta Eco:

Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como se fosse uma obra de ficção? Ou, se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoriamente confortáveis, por que não tentar criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes quanto o mundo real? (ECO, 2012, p. 123).

A existência de muitas obras literárias, muitos personagens e autores

respondem à segunda proposição de Eco, e sem dúvida o Dom Quixote de Cervantes, o

Alberto de Lunaris e os outros personagens de Ribeiro estão entre eles. São existências

fictícias que provocam as nossas percepções acerca da realidade que nos cerca. Esses

livros e esses personagens são existências que nos permitem observar uma intersecção

entre a ficção e a realidade, um elo entre superfícies que se cruzam e se transformam

indefinidamente. Wolfgang Iser (1996) já explana sobre isso: a realidade e a ficção

imaginada não estão sozinhas, sempre se tocam e se transformam.

E é justamente essa confluência, esse contínuo encontro entre dois mundos,

que responde a primeira indagação. Às vezes, lemos o mundo real como ficção

justamente porque um alimenta a outra e vice-versa. Talvez tenha sido sempre assim.

Mas acontece que, como tentei mostrar páginas atrás, o mundo contemporâneo se

mostra mais ficcionalizado a cada dia, por vários motivos. Se é assim, então, o que

justifica ainda narrativas literárias, o que comunicariam ainda? Penso que as possíveis

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respostas podem já ter aparecido no decorrer das leituras que fiz acerca da escrita

ficcional de Carlos Ribeiro e do seu quixotismo pós-moderno.

Ora, a ficção não quer tomar o lugar da dita realidade objetiva. E, no entanto,

mesmo inseridos em um mundo tantas vezes absurdo, percebemos que a narrativa

ficcional parece ser cada dia mais necessária, contrariando as expectativas.

Pensemos no primeiro Quixote. Como aponta Bernardo (2006, p. 65), “lutar

com moinhos de vento tornou-se, desde o romance de Cervantes e em todas as línguas

ocidentais, o paradigma da luta inútil”. Se for assim, podemos imaginar que escalar os

rincões do tempo e do espaço para achar o Graal é igualmente absurdo.

Mas a busca pelo Graal, a luta com os moinhos de vento ou a aventura de

restaurar a consciência, para que não mais esteja cindida e estilhaçada, serão entendidas

como ações inúteis se forem vistas como os objetivos finais das respectivas jornadas, se

forem interpretadas como um fim em si mesmo. Tanto a batalha impossível como a

busca absurda são questões importantes e irresistíveis para esses heróis. Eles descobrem

que já não se trata apenas de vencer os gigantes ou de resgatar o Santo Graal – que pode

ser entendido como a identidade do sujeito, perdida no abismo da selva contemporânea,

onde as individualidades morrem ao mesmo tempo em que ficamos cada vez mais

sozinhos.

Na trama quixotesca, o cavaleiro primeiro enxerga gigantes e depois os

próprios moinhos de vento. E é claro que, quando cai ferido ao chão, atribui a culpa de

sua frustração aos encantadores. Mas o ponto é: mesmo que os moinhos fossem

gigantes, o magro fidalgo provavelmente perderia a luta. Porém, isso não lhe era

importante. A luta de Quixote era contra o encantamento que tornava o mundo pobre de

sonhos, era contra a dita realidade objetiva que lhe negava o direito ao pasmo essencial

diante da vida e do mundo. A luta de Dom Quixote, enfim, era a luta pela imaginação,

era a luta da própria ficção com a realidade. Portanto, o que importava à triste figura era

a necessidade do combate como um protesto.

O Quixote de Cervantes inicia sua aventura porque está tomado pela ficção.

Todas as vezes que o mundo fictício confronta o mundo imaginário, a saída que ele

encontra é duvidar da realidade do real, pois o real, feio, sem graça e excludente ao seu

olhar, só pode estar encantado pelas maldades dos feiticeiros invejosos.

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A solução para escapar da armadilha trágica que os quixotes de Ribeiro

encontram passa também pela dúvida da realidade e pela certeza da ilusão do real. As

três saídas dos quixotes de Ribeiro arrebentam a tensão da exposição que eles fazem da

vida quando flanam pelo mundo contemporâneo à procura de aventuras que valham a

pena. Mas, todas as vezes em que o nonsense dos embates estão para suplantar a

história, a saída é a ficção.

Assim acontece em O Chamado da Noite, quando o narrador andante assume

sua posição de personagem; em Abismo, quando o (não) desfecho da aventura nos

sugere que tudo que foi contado numa espécie de diário de bordo pode não ter passado

de um sonho; e em Lunaris, que, desde o início, se autodenuncia como ficção. Contudo,

o fato de as narrativas de Ribeiro acabarem denunciando a ficção que as anima o coloca

em pleno diálogo com o que faz Cervantes com seus personagens. De acordo com

Fariña (2016):

Cervantes nos sinaliza, através de Quixote, que o homem não é capaz de sobreviver sem a ficção, sem a vida imaginativa. Sanidade e loucura, realidade e fantasia se encontram, se olham, se acompanham, se mesclam, se simbiotizam como seus personagens representantes, Quixote e Sancho.

Por isso, o herói sem nome de Abismo, tão desajeitado quanto Dom Quixote,

carregado de dúvidas e incertezas próprias de nossa época, descobre que não importa

mais achar os vestígios da cidade perdida para finalmente levar o Graal à luz do mundo

exterior, pois o objeto sagrado é a própria busca e a terra esquecida permanecia dentro

dele, soterrada pelo acúmulo de desencanto. Por essa razão, a interpretação da história

de Abismo é dupla como todo o resto. O herói encontra e não encontra o Graal. Ou

melhor, encontra somente no sentido metafórico.

Descer ao abismo foi uma missão de redescoberta e principalmente de

reencantamento do mundo, mas, sobretudo, do próprio olhar. A tarefa é difícil,

principalmente porque envolve o abandono de um olhar viciado, que rejeita o mistério

em nome de um conhecimento que leva à desilusão. O herói sabia que precisava ter a

coragem ingênua e a bondade de Dom Quixote: “Eu tinha que ser efetivamente um

Cavaleiro Andante que atravessa as sombras do mundo com seu escudo, sua espada e

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seu valor. Com sua fé, pois isso era tudo com que agora eu poderia contar” (RIBEIRO,

2004, p. 178).

Em Lunaris, o último cavaleiro andante de Ribeiro se debate entre a realidade e

a ficção. Mas por que a ficção torna-se mais segura? Porque é a sua Terra Natal. Das

palavras nasceu e às palavras voltou. Precisamos celebrar o nonsense e o absurdo da

vida sem sermos esmagados por eles, do contrário, o alerta de Alberto e do personagem-

narrador, d’O chamado da noite, cumprir-se-á definitivamente: poderemos nos

transformar em fantasmas.

Entretanto, não é só isso, pois, relembrando novamente Hamlet, Ribeiro lança

mão da loucura ficcional para dizer coisas sérias. Ou seja, os narradores e os

personagens de Ribeiro discutem “de mentira” questões sérias que embasam hoje as

teorias e movimentam as cenas acadêmicas. Porém, por que escrevê-las e discuti-las em

um livro de ficção? Porque é preciso ser louco para dizer o óbvio. Apenas a literatura

suporta algumas reflexões, justamente pelo fato de não pretender, a priori, dizer

verdade alguma. Como colocou Todorov (2009, p. 80):

A literatura tem o papel particular a cumprir nesse caso: diferentemente dos discursos religiosos, morais ou políticos, ela não formula um sistema de preceitos; por essa razão, escapa às censuras que se exercem sobre as teses formuladas de forma literal. As verdades desagradáveis – tanto para o gênero humano ao qual pertencemos quanto para nós mesmos – têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica ou científica.

Voltando ao ponto de partida, vimos que a narrativa de Carlos Ribeiro insere-

se dentro do panorama da literatura pós-moderna por fazer coexistirem e dialogarem

diversos textos, paratextos, contextos históricos e culturais; por conciliar formas, estilos

e visões literárias que se distanciam nas suas origens ficcionais. Mais do que tudo, a

narrativa de Ribeiro traz à tona uma forma de sentir, questionar e pensar o mundo que

parecia não caber no tempo da instantaneidade e das possibilidades infinitas, num tempo

em que não temos tempo para o espanto perante o inesperado, por esperarmos qualquer

coisa.

Ribeiro investe seus heróis de armadura e espada para reacender o fogo

primordial da imaginação para lutar pelo direito a utopias que talvez sejam irrealizáveis.

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Porque alguns sonhos só valem a pena se os sonharmos infinitamente. Disso já nos

lembram as palavras de Mario Quintana, um outro Quixote, que buscava a beleza das

coisas simples:

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!

Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!

(QUINTANA, 2016)

Bem podem ser as utopias que motivam a narrativa de Ribeiro, como motivam

qualquer arte em tempos tão pouco propícios. E pensando em uma perspectiva mais

analítica, toda arte, por mais fantástica que possa parecer, parte sempre de um ponto

comum a todos, de questões que sejam familiares a todos dentro de um determinado

contexto. Nesse caso, o que poderia ser esse ponto na narrativa de Ribeiro? O que salta

dessa narrativa que expõe simulacros reais e simulacros ficcionais?

Penso que, em vários momentos da escrita contemporânea desse autor, seus

personagens simulam o humano de agora, cada vez mais esvaziados pelas imagens que

o espetáculo diário produz. Afinal, muito se fala sobre diferença, diversidade e

liberdade, mas a ordem do hipercapitalismo é fazer crer que, nesse caso, ser diferente é

ser igual. Os discursos que debatem o nosso rumo em uma época que roda em torno de

si mesma, muitas vezes, nos convencem de que somos como um palimpsesto no qual

muitas identidades, crenças e verdades foram mil vezes apagadas e reescritas e

novamente apagadas.

Ao trilhar os caminhos ficcionais dos personagens de Ribeiro, estive, diversas

vezes, no papel de Sancho, que no romance espanhol servia de intermédio entre a

realidade e a completa ficção. Acredito que, por isso, seus quixotes iniciem sozinhos as

suas aventuras, porque em algum momento da leitura aceitamos o pacto de viver nas

possibilidades das entrelinhas da narrativa. E, na ficção, todos aqueles heróis deslocados

estão à procura de saber quem são. Já não querem mais debater-se no furacão do

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presente onde nada deve ser definitivo. Mas eles seguem em busca do conhecimento, de

alguma verdade que não se apague rapidamente como desenhos feitos na areia da praia,

mesmo que seja a verdade da ficção.

Se Ernst Fischer está certo quando diz que toda arte representa a humanidade

em suas necessidades em uma situação histórica particular, sem dúvida, esses

personagens quixotescos podem estar apontando para as nossas próprias vontades e

aspirações. Mas será possível para nós, neste ponto a que chegamos, costurar

identidades desfeitas, recuperar ou descobrir verdades mais sólidas para, então,

desfrutar da multiplicidade que cada um de nós certamente carrega de forma menos

problemática? Não seriam essas aspirações deveras quixotescas?

Nos descaminhos que temos trilhado, conseguir organizar discursivamente

essas questões já é de muito proveito. Buscar respondê-las seria ter de escolher uma

certeza que, mesmo sendo provisória, contraria tudo que expus sobre a pós-

modernidade, sobre a escrita quixotesca de Carlos Ribeiro e sobre toda ficção

contemporânea. A saída irônica está justamente em ter de seguir sempre o caminho da

dúvida, já que o ceticismo também é, de certa forma, uma certeza dogmática. Além do

mais, já vimos que a dúvida quixotesca é, muitas vezes, imprescindível, funciona como

antídoto contra a opressão desta realidade inconsistente.

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