UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA 3 Codificação de consoantes em português (brasileiro) falado...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA - IPSI
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA - PPGPSI
LETCIA SILVEIRA VASCONCELOS
POR OUTRA PSICOLOGIA DA OUTRA SURDEZ
Salvador
2017
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LETCIA SILVEIRA VASCONCELOS
POR OUTRA PSICOLOGIA DA OUTRA SURDEZ
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Psicologia do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para obteno do ttulo de doutora em
Psicologia, na rea de concentrao Psicologia do
Desenvolvimento. .
Orientadora: Snia Maria Rocha Sampaio
Salvador
2017
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Vasconcelos, Letcia Silveira,
V331 Por outra psicologia da outra surdez / Letcia Silveira Vasconcelos. 2017.
312 f.: il.
Orientadora: Prof. Dr. Snia Maria Rocha Sampaio
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Instituto de Psicologia, Salvador, 2017.
1. Psicologia do Desenvolvimento. 2. Deficientes auditivos - Estudo de casos. 3. Surdez Psicologia. 4. Estudantes - Educao (Superior). I. Sampaio, Snia
Maria Rocha. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Psicologia. III. Ttulo.
CDD: 155
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Arabut, companheiro de tantas viagens,
muitas vezes porto seguro, outras bote salva-
vidas, sempre parceiro, que essa tese tornou
tambm meu marido.
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AGRADECIMENTOS
esperado, dos orientadores, que norteiem os passos de seus orientandos. esperado, dos
orientadores, que se mantenham distantes e imparciais. Mas isso para os outros. Obrigada,
Snia Sampaio, por sulear minha vida, com sua (des)orientao e com sua amizade. Sua
presena extrapola em muito essa tese.
Ao professor Saeed Paivandi, coorientador durante o estgio sanduche, que sequer imagina o
que me proporcionou ao me receber na Universit de Lorraine, agradeo pela suave acolhida.
Como se no bastasse todo o resto, voc me apresentou Anaelle Millon, perle de pluie
venues de pays o il ne pleut pas. Agradeo tambm aos alunos do Master 2 Codef
2014/2015, que me incluram e me ajudaram a penetrar numa nova realidade. Especialmente,
agradeo a Winner Ramirez Diaz, que to bem concilia pesquisa e militncia, com
comprometimento e graa voc colore o velho mundo com seus tons latino americanos.
Aos parceiros do Observatrio da Vida Estudantil, onde a universidade vibra, agradeo pela
companhia na minha construo como pesquisadora e pela chance de desnaturalizar a
experincia acadmica. A Sueli da Ressurreio, pela expresso constante de incentivo, e a
Ana Rico, pela impecvel leitura dessa tese, agradeo a oportunidade gratificante de ver o
meu trabalho atravs dos olhos de vocs.
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado da Bahia, FAPESB, pela concesso de bolsa em
grande parte desse doutorado, e Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior, CAPES, pela bolsa de estgio sanduche, agradeo pela oportunidade de me dedicar
a essa pesquisa e de usufruir de trocas inestimveis. Me esforarei para devolver sociedade
esse investimento.
Aos professores deste programa de ps-graduao em Psicologia, pelas trocas enriquecedoras.
Em especial professora Patrcia Alvarenga, que tornou nossas vidas mais fceis com sua
gesto extremamente competente e comprometida.
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Aos leitores do blog Jeitos de Ser e Conviver, que me ensinaram tanto, sem se darem conta
disso. Espero que esse trabalho lhes faa jus e lhes traga alguma retribuio.
A Frdrique Dupuy, que transferiu sua generosidade de Snia pra mim, sem que eu tivesse
feito absolutamente nada pra merecer isso, agradeo pelas tradues luxuosas que fizeram
esse trabalho melhor.
A Beatriz Santos, amiga querida que essa tese trouxe de volta pra minha vida, agradeo por te
encontrar to diferente e ainda to igual em afeto e profundidade.
s mulheres da Bem Viver, que apoiam meus sonhos como se fossem seus, agradeo pelo
suporte constante e torcida incondicional. um privilgio trabalhar e conviver com vocs. A
Brbara e Juliana, pelas conversas, leituras, sugestes e, principalmente, pela amizade.
Aos meus irmos, cunhados e sobrinhos, que no cessam de me ensinar sobre a vida,
agradeo pelo seu amor e pelos tantos momentos de ternura e felicidade.
Aos meus sogros, brindes inesperados, exemplos em tantas situaes, agradeo pela ateno
afetuosa e pela expresso de admirao e respeito.
Mais uma vez minha tia Naura, agradeo pela correo do trabalho e pela disponibilidade de
sempre e para tudo.
minha v, que to boa v de adultos como foi de (tantas!) crianas, agradeo pelo apoio
constante.
minha me, que tanto respeita e apoia minhas escolhas, agradeo por sua admirao e por
sua presena delicada e absolutamente imprescindvel. Voc o espelho em que mais gosto
de me olhar.
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[...] apenas a aceitao crtica de uma herana
permite pensar com independncia e inventar um
pensamento para o porvir, um pensamento para
tempos melhores, um pensamento da
insubmisso, necessariamente infiel.
(Elisabeth Roudinesco)
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RESUMO
O presente trabalho, intitulado Por Outra Psicologia da Outra Surdez, surgiu como
desdobramento da minha pesquisa de mestrado, na qual investiguei os sentidos produzidos
por duas jovens surdas respeito de suas experincias como estudantes do ensino superior. O
contato com os Estudos sobre a Deficincia e Estudos Surdos, que propem o modelo social
da deficincia e a compreenso da surdez como uma diferena lingustica e cultural,
respectivamente, despertou-me o desejo de compreender melhor o papel da Psicologia no
contexto do trabalho com surdos. Motivou-me a impreso de que o encontro entre esses dois
campos, de pesquisa e atuao, pode levar a uma transformao mtua, com repercusses
benficas para ambos. Com foco na Psicologia do Desenvolvimento, mbito em que se abriga
este doutorado, procuro refletir sobre os diferentes espaos e formas de interlocuo possveis
entre a Psicologia e a surdez e pensar as especificidades da atuao do psiclogo que trabalha
com surdos. Esta tese tem um carter interdisciplinar e, alm dos referenciais supracitados,
dialoga com a Psicanlise, as Epistemologias do Sul e as Neurocincias. Algumas ideias e
conceitos de Foucault servem como lastro para problematizar os temas tratados. So
apresentados seis artigos que ensaiam responder a duas perguntas, em torno das quais se
estrutura o trabalho. A primeira questiona a pertinncia e a utilidade em pensar uma
Psicologia da Surdez, e abordada a partir das dimenses psquica, social e cognitiva, tendo
como tema, a estruturao psquica do surdo, a construo de uma identidade social e a
aquisio da leitura e escrita, respectivamente. A segunda pergunta diz respeito
especificidade do trabalho do psiclogo com a pessoa surda e sua famlia, e abordada por
meio de uma reviso da produo cientfica da Psicologia brasileira sobre o tema, da anlise
de entrevistas realizadas com psiclogos e da identificao de espaos onde a psicologia falta.
Como resultado, defendo uma proposta de Psicologia da Surdez que se afaste de uma
associao direta entre a perda auditiva e um conjunto de caractersticas cognitivas e
psquicas, mas que considere as especificidades do desenvolvimento do surdo e de seu estar
no mundo: a Outra Psicologia da Outra Surdez.
PALAVRAS-CHAVE: Psicologia. Surdez. Psicologia da Surdez. Deficincia.
Interdisciplina.
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ABSTRACT
The present PhD project, entitled For Other Psychology of Deafness, emerges as a
development of my Master's degree research, that investigated the meanings produced by two
deaf young women regarding their experiences as higher education students. The contact with
Disability Studies and Deaf Studies, whose proposals are, respectively, the social model of
disability and the understanding of deafness as a linguistic and cultural difference, has
triggered questions about the role played by Psychology in the attention to deaf people. I was
motivated by the impression that the encounter between these two fields of research and
practice could lead to mutual transformation, with reciprocal benefits. Using a Developmental
Psychology perspective, I aim to reflect on the different possibilities of intersect ions between
Psychology and deafness and about the specificities of the practice of a psychologist with the
deaf persons. This approach has an interdisciplinary character: in addition to the
aforementioned references, it dialogues with Epistemologies of the South, Neurosciences and
Psychoanalysis, including some of Foucaults ideas and concepts. Six papers are produced
and presented in an attempt to answer two questions, around which the project is structured.
The first one inquiries about the relevance and usefulness of thinking about a Psychology of
Deafness, and is approached from the psychic, social and cognitive dimensions, having as
their respective themes the psychic constitution of the deaf person, the construction of a social
identity and the acquisition of reading and writing. The second question concerns the
specificity of the psychologist's work with deaf persons and their families, and is approached
through a review of the scientific production of Brazilian psychology on the subject, analysis
of interviews with psychologists and identification of spaces which lack a psychological
approach. As a result, I advocate for a Psychology of Deafness that overcomes a direct
association between hearing loss and a set of cognitive and psychic characteristics, but rather
considers the specificities of the development of deaf persons and their being in the world.
Key-words: Psychology. Deafness. Psychology of Deafness. Disability. Interdisciplinarity.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Escrita de Sinais, vocabulrio da casa................................................................... 116
Figura 2 Codificao de vogais em portugus (brasileiro) falado complementado .............. 119
Figura 3 Codificao de consoantes em portugus (brasileiro) falado complementado........ 120
Figura 4 Nuvem de palavras gerada a partir das palavras-chave dos artigos analisados ....... 145
Figura 5 Imagem produzida para marcar as comemoraes do Setembro Azul, publicada no
perfil da rede social em 06 de setembro de 2015................................................................. 221
Figura 6 Imagem produzida para homenagear os motoristas surdos, publicada no perfil da
rede social em 24 de julho 2015. ........................................................................................ 221
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Nmero de artigos encontrados por descritor ....................................................... 142
Tabela 2 Temtica de interesse dos artigos analisados ........................................................ 146
Tabela 3 Dados sobre os participantes ................................................................................ 173
Tabela 4 Nmero de implantes cocleares realizados na rede pblica no Brasil entre 2008 e
2012 ................................................................................................................................... 208
Tabela 5 Previso de nmero de implantes cocleares a serem realizados na rede pblica no
Brasil entre 2014 e 2018..................................................................................................... 208
Tabela 6 Quantidade de acessos por publicao, no blog,em 22 de fevereiro de 2017 ......... 217
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Resumo de informaes coletadas em artigos nacionais sobre etiologia da surdez
.......................................................................................................................................... 200
Quadro 2 Trechos de comentrios deixados por leitores no blog ......................................... 222
Quadro 3 Trechos de comentrios deixados por leitores no perfil da rede social ................. 226
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Nmero de artigos por peridico......................................................................... 143
Grfico 2 Nmero de artigos por regio da instituio das autoras ...................................... 144
Grfico 3 Artigos analisados entre os anos de 1995 e 2016. ................................................ 144
Grfico 4 Ocorrncia temtica, por binios, entre 2006 e 2015 ........................................... 163
Grfico 5 Tipo de publicao ............................................................................................. 164
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SUMRIO
APRESENTAO .............................................................................................................. 16
1 INTRODUO ................................................................................................................ 25
1.1 Filosofia e Surdez ....................................................................................................... 30
1.2 Psicologia do Desenvolvimento e Surdez ................................................................... 33
1.3 Psicologia da Surdez .................................................................................................. 39
2. EFEITOS SUBJETIVOS DO NASCIMENTO DE UMA CRIANA SURDA EM UMA
FAMLIA OUVINTE .......................................................................................................... 46
2.1 Manhs ou Fala Dirigida Criana ............................................................................. 50
2.2 Alienao e Separao ................................................................................................ 52
2.3 Efeitos sobre a Entrada do Beb Surdo na Linguagem ................................................ 59
2.4 Efeitos na Apresentao do Mundo ............................................................................ 64
2.5 Algumas Consideraes ............................................................................................. 70
3. IDENTIDADES SURDAS OUTRAS LUZ DAS EPISTEMOLOGIAS DO SUL ......... 72
3.1 Epistemologias do Sul ................................................................................................ 74
3.2 Identidade Surda Global ............................................................................................. 83
3.3 Os Surdos do Sul ........................................................................................................ 86
3.4 Consideraes ............................................................................................................ 98
4. AQUISIO DA LEITURA E DA ESCRITA PELOS SURDOS .................................. 100
4.1 Relao entre o Texto Oral e o Escrito ...................................................................... 103
4.2 Lngua Escrita como Segunda Lngua ....................................................................... 110
4.3 Lngua Falada Complementada ................................................................................ 117
4.4 Desenvolvimento Sociocognitivo ............................................................................. 121
4.5 Em Resumo .............................................................................................................. 125
4.6 Um Passo de Lado .................................................................................................... 129
4.7 Consideraes .......................................................................................................... 130
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5 PRODUO CIENTFICA DA PSICOLOGIA BRASILEIRA SOBRE A SURDEZ ..... 133
5.1 Referencial Emprico ................................................................................................ 136
5.2 Mtodo e Resultados ................................................................................................ 141
5.3 Consideraes .......................................................................................................... 164
6 O SABER FAZER DO PSICLOGO FRENTE PESSOA SURDA............................. 167
6.1 A Entrevista Compreensiva e Aspectos Metodolgicos ............................................ 168
6.2 Anlise das Entrevistas ............................................................................................. 175
6.3 Consideraes .......................................................................................................... 195
7 PRIMEIROS MOMENTOS DA EXPERINCIA COM A SURDEZ, UM TEMPO EM
QUE A PSICOLOGIA FALTA ......................................................................................... 196
7.1 Mudanas na Etiologia da Surdez: Deficincia ou Diferena? ................................... 197
7.2 Diagnstico Precoce da Surdez e Implante Coclear: o Fim das Lnguas de Sinais? ... 203
7.3 Consideraes .......................................................................................................... 213
8 POSTANDO VOZES: UMA VIAGEM AO NOVO MUNDO DOS SURDOS ............... 214
9 A OUTRA PSICOLOGIA DA OUTRA SURDEZ .......................................................... 274
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................ 281
APNDICE A.................................................................................................................... 306
APNDICE B .................................................................................................................... 307
APNDICE C .................................................................................................................... 310
APNDICE D.................................................................................................................... 311
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APRESENTAO
Navegar preciso; viver no preciso.1
As heterotopias, conceito criado por Foucault (1984), assim como as utopias, so espaos
caracterizados por se relacionarem a todos os outros espaos, porm, em uma dinmica de
contradio com estes. Ao passo que as utopias so, por definio, um lugar sem lugar, um
lugar necessariamente irreal, as heterotopias so localizveis, funcionam como um espao
que, enquanto representa, contesta e inverte todos os outros. Presentes, segundo o autor, em
todas as culturas, as heterotopias podem assumir funcionamentos diversos ao longo de sua
histria. Ainda, elas justapem diferentes espaos, mesmo aqueles incompatveis entre si. As
heterotopias criam, quase sempre, heterocronias, recortes no tempo, rupturas na
temporalidade tradicional. Como caracterstica, possuem sempre um sistema de abertura e de
fechamento, que isola, mas, tambm, possibilita o acesso. Por fim, todas as heterotopias
possuem uma funo em relao ao espao restante.
Pois bem, me agrada pensar que, em um trabalho acadmico, a Apresentao pode ser esse
lugar outro, que j , ainda no sendo. Seo opcional, goza de certos privilgios, tais como
uma suspenso das regras formais e uma maior liberdade lingustica. Aqui o autor se
presentifica e se declara. A Apresentao pode ser lugar de expor a implicao do
pesquisador, que, como disse Ardoino (1991, p. 04) da ordem da opacidade, e agrega
racionalidade motivaes, desejos, projees e identificaes, todos co-autores da construo
do conhecimento.
Embora se localize no incio do trabalho, ela no seu ponto de partida. Como um segmento
de reta, une dois pontos, porm, apenas para ressaltar a existncia de infinitos pontos em um e
outro sentido. Esta Apresentao tem, portanto, como toda heterotopia, uma funo, que ,
aqui, a de ligao entre dois pontos; quais sejam, a pesquisadora e seu objeto de estudo. Mas
no apenas esses, ela tambm se presta ligao entre o leitor e o texto. No como um
prefcio, do qual o mesmo Foucault (1972) denuncia o carter restritivo, sendo mais uma
aclimatao. Ainda, a Apresentao lugar de ligao entre a pessoa que eu era ao comear
1 Em latim: Navigare necesse; vivere non est necesse. Frase atribuda ao general romano, Pompeu, que a teria
dito aos seus marinheiros, para encoraj-los a viajar durante um perodo de guerra. Foi celebrizada pelo poema
Navegar Preciso, do poeta portugus Fernando Pessoa. Seu emprego aqui faz referncia ao duplo sentido do
adjetivo preciso, que remete ideia de necessrio, mas tambm de preciso, exatido.
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essa tese, e aquela que serei ao termin-la; lugar, por certo, de idas e vindas, de avanos e
retrocessos, no qual o vivido no cessa de ser ressignificado. A heterotopia no liga, portanto,
como uma ponte, esttica, mas como um navio para Foucault (1984), heterotopia por
excelncia, que fizesse viagens entre dois portos, dois mundos, sujeito a ventos e tempestades,
mudanas de rotas e ataques de piratas. Essa tese o que posso relatar de tais viagens.
Meu contato com a surdez comea h alguns anos, sem que eu possa identificar, claramente,
ter feito uma escolha de me dedicar a esse tema. Esse encontro se deu inicialmente na clnica,
onde acompanhei alguns surdos em psicoterapia; depois, como psicloga do servio de
Implante Coclear do Hospital Santo Antnio, das Obras Sociais Irm Dulce, onde trabalhei
com inmeros surdos e suas famlias, entre 2009 e 2013. Neste percurso, vi-me confrontada
com questionamentos ticos importantes e travei contato com a secular e acalorada disputa
entre bilingustas e oralistas2. Aos poucos, as leituras e a descoberta da heterogeneidade da
populao surda tornaram-me mais apta a perceber a relao de poder que subjaz defesa
desta ou daquela modalidade de aquisio da linguagem pelo surdo, e tambm a entender que
h muito trabalho a ser feito at que possamos compreender melhor as especificidades que
decorrem da convivncia com uma perda auditiva.
Em paralelo, ingressei no grupo de pesquisa Observatrio da Vida Estudantil - OVE, que
desde 2009 trabalha pelo propsito de promover estudos e aes que contribuam para o
acesso e permanncia, com qualidade, de estudantes na educao superior. Deste encontro,
tornou-se possvel a construo da minha pesquisa de mestrado. Nela, estudei o caso de duas
jovens surdas oralizadas, com foco nos sentidos produzidos por elas a respeito de suas
experincias como estudantes do ensino superior; sentidos estes que foram tomados como via
de acesso s suas concepes de surdez. O reconhecimento da universidade como lugar de
construo de subjetividades e de transformao social foi o mote para analisar as mutaes
que foram se operando nestas duas jovens no seu encontro dirio com as dificuldades e xitos
do processo de afiliao estudantil.
Tanto aprendi com essas mulheres que se dispuseram a compartilhar comigo suas histrias!
Destaco aqui a artificialidade de categorias como surdo oralizado, que muito pouco nos
dizem sobre cada pessoa assim denominada. No apenas as duas participantes eram
2 Em linhas gerais, o bilinguismo entende que a lngua de sinais a lngua natural dos surdos, que devem ter
acesso ao idioma nacional, preferencialmente em sua modalidade escrita, como segunda lngua; e o oralismo
utiliza tcnicas e equipamentos para que a pessoa surda aprenda a falar e se a comunicar por meio da leitura oro-
facial (LOF).
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extremamente diferentes entre si, no que diz respeito construo da linguagem, como cada
uma delas passou por transformaes marcantes no curto perodo em que durou o estudo. Do
mesmo modo, a pesquisa me ensinou sobre a ingenuidade, e inutilidade, de tentar enquadrar o
vivido em categorias tericas, quase sempre dicotomizadas e simplificadas para fins didticos.
O presente projeto desenha-se, portanto, como desdobramento desta pesquisa, que realizei
como aluna do Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento no Programa de Ps-graduao
em Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Ao longo do mestrado, tive contato com um
corpo terico denominado Estudos sobre a Deficincia, que se tornou decisivo para os rumos
daquela investigao. Este conjunto de estudos, que comea a se delinear na dcada de 1970,
prope um modelo social, em oposio viso dominante e eminentemente biomdica da
deficincia (BRADDOCK; PARISH, 2001; DINIZ, 2007).
Para o Modelo Social da Deficincia, no a leso ou condio orgnica que determina os
limites pessoa deficiente, mas a relao entre esta e um contexto social que no capaz de
incluir um corpo com impedimentos (DINIZ, 2007; DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009).
Em oposio a uma compreenso da deficincia sustentada exclusivamente no referencial
biomdico, esse modelo prope que seu estudo frequente, tambm, o campo das
humanidades.
Foi fundamental, ainda, a aproximao aos Estudos Surdos, que partem de uma compreenso
da surdez como diferena cultural e lingustica, e propem a construo de saberes e prticas
que considerem as particularidades da aquisio da linguagem e construo do conhecimento
pelos surdos como qualitativamente diferentes daquelas dos ouvintes, alm de enfatizar o
carter social das limitaes que se impem a estes (BISOL; SIMIONI; SPERB, 2008;
SKLIAR, 2010; SOL, 2005). Alguns temas explorados pelos Estudos Surdos lanam luz
sobre a complexidade que subjaz ao estudo da surdez, entre os quais a relao entre poder e
saber, a natureza poltica do fracasso educacional na pedagogia para surdos e a medicalizao
dos discursos e prticas com surdos (SKLIAR, 2010).
O confronto entre esses referenciais tericos e a participao da psicologia no estudo e prtica
com surdos revela uma relao conflituosa. A tradio normalizadora da psicologia a
aproxima das profisses reabilitadoras, responsveis pela manuteno da hegemonia
biomdica na concepo da surdez (SOL, 2005). Deste modo, para defensores do Modelo
Social da Deficincia e tericos dos Estudos Surdos, suas produes se baseariam em
pressupostos equivocados e simplistas, que contriburam para disseminar afirmaes
equivocadas sobre os surdos.
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Mas eis que o mundo no se divide em oralistas maus e bilingustas bonzinhos, tampouco em
oralistas esclarecidos e bilingustas raivosos. As contribuies tericas e ticas no so
exclusividade de um ou outro paradigma, que, ademais, no so os nicos possveis. Alm
disso, quando se tornam bandeiras de luta, essas duas vises so potencialmente nocivas, na
medida em que o olhar atento s particularidades de cada situao negligenciado e perde-se
de vista o objetivo de melhorar a vida de cada pessoa com quem lidamos, em nome de
disputas por poder e ajustes de contas histricos (BERNARD, 2004).
A psicologia tem uma participao escassa, embora crescente, no pensar e agir com as
pessoas surdas. Essa pode ser uma consequncia das disputas ideolgicas entre diferentes
formas de pensar e cuidar da deficincia. No mbito particular da surdez, h vrios espaos
que podem e devem ser ocupados pela psicologia, alguns deles tratados ao longo do trabalho,
contanto que ela esteja disposta ao dilogo e a abrir mo de sua vocao para a normalizao.
Essa pode ser, creio eu, uma interface poderosa, com repercusses mtuas nos dois campos de
pesquisa.
Para alm do que a psicologia tenha a contribuir, parece-me que o tema da surdez, quando
abordado a partir de um paradigma que inclua as contribuies dos Estudos sobre a
Deficincia e dos Estudos Surdos, confronta a psicologia, em especial a psicologia do
desenvolvimento, com conflitos histricos e ainda atuais, como a relao entre o indivduo e a
sociedade, o inato e o aprendido, a dimenso biolgica e a social; mas, tambm, com a
fragilidade da prpria diviso interna da psicologia em diferentes campos, tais como
psicologia do desenvolvimento, social e organizacional, para citar algumas.
No rebatimento desta discusso, identifico o meu esforo de encontrar meu prprio lugar na
psicologia, com a qual mantenho uma relao desde sempre interdisciplinar, desde sempre
desconfortvel com a necessidade de me posicionar deste ou daquele lado. No obstante a
possibilidade de procurar abrigo em outro lugar, ainda insisto em pensar uma psicologia em
que caibam meus interesses e desejo de repensar as fronteiras do conhecimento. O estudo da
surdez se encaixa bem nessa itinerncia.
Assim, se o trabalho com a surdez no se inicia, para mim, de forma deliberada, o desejo de
permanecer nesse campo, contudo, deve ser assumido como uma escolha. Identifico dois
eixos que sustentam esta deciso, a dimenso intelectual e a tica. Do ponto de vista
intelectual, me fascina o fato de que a compreenso em profundidade da surdez e suas
implicaes cotidianas me obriguem a reconstruir uma srie de conceitos que tomava como
certos. Em alguma medida, esta seria uma motivao bastante egosta, no fosse
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complementada pela inquietao tica que o tema tambm me provoca. Aqui, o
compromisso com o sujeito surdo e sua famlia, tanto pelo respeito s suas escolhas quanto
pela oferta de um acompanhamento qualificado e eficiente, que me leva a seguir estudando, a
seguir questionando meus conceitos e prticas.
Como forma de traduzir essas motivaes em um projeto de pesquisa, tenho refletido sobre os
diferentes espaos e formas de interlocuo possveis entre a psicologia e a surdez e, a partir
da, pensado as especificidades da atuao do psiclogo que trabalha com surdos. Parto de
questes bastante pessoais, que me foram sendo apresentadas pela minha trajetria
profissional, na inteno de elencar alguns conhecimentos e habilidades essenciais para o
trabalho dos psiclogos frente s diversas demandas que nos podem ser aportadas pelos
surdos e suas famlias.
O percurso comea por uma investigao sobre o tema clssico a partir do qual a psicologia se
aproxima da surdez: as relaes entre linguagem e construo de conhecimento. A questo da
Epistemologia Surda, tema que se imps durante a pesquisa de mestrado, mas que no pode
ser explorado em profundidade, pareceu-me, por um momento, um bom fio condutor, pois,
alm da discusso entre pensamento e linguagem, sustenta uma discusso sobre a relao
entre estes e a subjetivao. A ideia de Epistemologia Surda se vincula ao conceito de
epistemologias mltiplas e compreenso de que a construo do conhecimento encarnada,
ou seja, cada um que constri conhecimento o faz a partir de um corpo que marcado por sua
existncia social. Avanando na dimenso ontolgica da epistemologia, temos ainda que, ao
produzir conhecimento, o sujeito produz a si mesmo.
No entanto, o caminho se mostrou repleto de bifurcaes e desvios. A escolha de deixar-me
seguir por vias impensadas, embora arriscada, foi guiada pelo compromisso em assumir a
complexidade do tema. No h como esconder, contudo, a impresso de deriva que essa
escolha imprime ao texto. A esperana de que, ao fim, os registros produzidos ao longo dessa
viagem tenham uma utilidade outra que no s satisfazer aos meus prprios interesses diante
da surdez o nico argumento de que disponho ao meu favor. Afinal, a impreciso da vida
no nos desincumbe da necessidade de navegar.
Isso nos leva a uma discusso acerca do percurso metodolgico desta pesquisa. Durante um
perodo prolongado, ela se pretendeu terica. Seu primeiro ttulo, Dilogos possveis entre a
Psicologia e a Surdez, apontava nessa direo. A proposta de realizar uma tese sem produo
de dados empricos enfrentou alguma resistncia, inclusive da minha parte. O que pode ser
lido como arrogncia, no entanto, foi fruto de minha incapacidade, pois, por mais que
-
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tentasse, no conseguia pensar uma abordagem metodolgicaque ajudasse a responder a
minha questo de pesquisa, a saber, como a psicologia e a surdez, ao dialogarem, poderiam se
modificar mutuamente.
Foi preciso bastante tempo at que percebesse a origem da minha dificuldade: eu estava
trabalhando com categorias inexistentes. A Psicologia e a Surdez no existem como entidades
unificadas, homogneas e acabadas, que pudessem se por a dialogar. Por outro lado, h
psiclogos, ou, para fazer jus prevalncia de mulheres na profisso e ainda mais no campo
do desenvolvimento, h psiclogas e h surdos.
Seria preciso, o que agora me parece ululantemente bvio3, conversar com psiclogas que
trabalhassem com surdos e ouvir suas reflexes e experincias, por meio de entrevistas. Seria
preciso tambm trazer, de forma mais contundente, minha prpria experincia de alguns anos
de trabalho com surdos nos dois contextos j mencionados. No entanto, se desde o incio do
doutorado, meu contato com essa populao havia se restringido bastante, durante o estgio
sanduche, realizado na Frana entre outubro de 2014 e outubro de 2015, esse contato seria
ainda mais restrito. Foi nesse momento que surgiu e se concretizou a proposta de buscar um
meio virtual de interao, que deu origem ao blog Jeitos de Ser e Conviver, discutido mais
adiante nesse texto.
Embora as entrevistas sejam tratadas de forma mais especfica no quinto artigo apresentado,
percebo sua influncia em todo o trabalho; um exemplo: o tema das mudanas na etiologia da
surdez e suas consequncias para o desenvolvimento dos surdos foi apresentado a mim
durante a primeira entrevista, pela pediatra de um grande instituto de surdos na Frana. O
contato com os profissionais apontou temas e direes que, certamente, no se esgotaram
nessa tese. Algumas entrevistas trazem material precioso, que merece ser publicado na
ntegra, projeto que assumo to logo tenha finalizado essa etapa.
No tive contato apenas com psiclogas, mas tambm com outros profissionais, como a
pediatra, mencionada acima, a coordenadora pedaggica desse mesmo instituto, a
bibliotecria de outro importante estabelecimento, que, alm da apresentao do espao,
possibilitou o contato com duas psiclogas que trabalham com surdos e tm uma produo
cientfica consistente na rea. Pude participar de uma reunio do servio mdico-psicolgico e
de uma reunio de estudos dessa instituio e tive contato com a assistente social responsvel
3 Referncia ao ttulo do livro O bvio Ululante, de Nelson Rodrigues.
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pelo acompanhamento da insero dos ex-alunos no mundo de trabalho. Participei de
palestras e frequentei eventos culturais e esportivos voltados populao surda. Conversei
tambm com a coordenadora do servio de suporte incluso de pessoas com deficincia na
Universidade de Lorraine, onde realizei meu estgio.
Para alm das trocas de conhecimento esperadas, minha estada na regio da Lorraine e a
vivncia nesta universidade me colocou em contato com uma realidade bastante diferente no
que diz respeito incluso de pessoas deficientes. Nas salas de aula, no transporte pblico, no
comrcio, nos bares, nas ruas, nos eventos, a cidade de Nancy se apresenta, ao menos aos
meus olhos, como um lugar extremamente acessvel e onde a presena de pessoas deficientes
notvel e no causa estranhamento.
Finalmente, a prpria oportunidade do estgio sanduche teve efeitos marcantes na minha
compreenso acerca da experincia de diferena lingustica a que esto expostos os surdos. A
dificuldade de lidar com as questes cotidianas mais banais em um idioma sobre o qual ainda
tinha pouco domnio, particularmente na modalidade oral, permitiu-me vislumbrar, guardadas
as devidas propores, o que passam as pessoas que convivem com essa exigncia
praticamente todo o tempo de suas vidas. Penso que isso contou como uma espcie de tcnica
de aproximao ao campo de pesquisa.
No que diz respeito estrutura formal, optamos por pensar e produzir essa tese como artigos,
por entendermos, minha orientadora e eu, que isso favorece a divulgao do trabalho e
potencializa sua utilidade e retorno para a comunidade. Em que pese a algumas crticas quanto
ao tratamento mais superficial que o formato de artigo pode imprimir ao material, esta prtica
tem ganhado espao nos programas de ps-graduao. Por ser um modelo apenas
recentemente adotado por alguns docentes e discentes do Programa de Ps-graduao em
Psicologia da UFBA, no h diretrizes especficas sobre sua estrutura. A anlise de outros
trabalhos apresentados neste formato, no entanto, aponta para um certo padro, do qual
constam uma introduo geral, em que alguns aspectos tericos so situados, a apresentao
dos artigos como unidades independentes e uma concluso que tenta fazer um alinhavo entre
as demais sees.
Adoto uma estrutura semelhante. Alm dessa apresentao, trago uma introduo, em que
situo algumas questes tericas. Nela, apresento os conceitos de Foucault que contriburam
para a construo desse trabalho. A maior parte desses conceitos funciona como instrumentos
de navegao, ou seja, ainda que no sejam explicitados ao longo do texto, podem ser intudos
na lgica de problematizao e aproximao ao tema. Alm disso, na introduo recupero
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23
alguns aspectos histricos da relao entre filosofia e surdez, e entre psicologia e surdez,
apontando na direo de algumas transformaes mtuas; e discuto a ideia de Psicologia da
Surdez e sua possvel ressignificao. So apresentados seis artigos, seguidos de uma seo de
apresentao do blog e das consideraes.
Os artigos se organizam em torno de duas perguntas e juntos compem uma tentativa de
resposta. A primeira questiona a pertinncia e a utilidade em pensar uma Psicologia da
Surdez. Trs dimenses foram abordadas e a cada uma delas foi dedicado um artigo: a
dimenso psquica, da qual me aproximo a partir da reflexo sobre os efeitos subjetivos do
nascimento de um beb surdo em uma famlia de ouvintes; a social, tratada por meio de uma
reflexo sobre a identidade surda global e seu carter hegemnico; e a cognitiva, que abordo a
partir da anlise das especificidades da aquisio da leitura e escrita pelos surdos. Uma
explicao sobre a escolha dessas dimenses trabalhada na introduo.
A segunda pergunta diz respeito especificidade do trabalho do psiclogo com a pessoa surda
e sua famlia. O primeiro artigo que se orienta no sentido de responder a essa questo traz um
levantamento e anlise da produo cientfica da psicologia brasileira sobre a surdez entre
2006 e 2016. O segundo sistematiza a prtica cotidiana dos psiclogos que atuam com surdos,
a partir da anlise de entrevistas realizadas com profissionais. Finalmente, um ltimo artigo
identifica os espaos onde a psicologia falta, com um olhar em particular para o processo
diagnstico e para os momentos inicias de vivncia com a surdez.
s sees identificadas nas dissertaes e teses analisadas acrescento outra em que discuto e
apresento a experincia de manter, por quase dois anos, um blog dedicado a assuntos
referentes surdez e vivncia cotidiana dos surdos e suas famlias. Esse espao digital de
interlocuo surgiu do desejo de expor minhas construes ainda durante o processo de
desenvolvimento da pesquisa, de modo a afinar minhas reflexes por seus efeitos sobre
aqueles que lidam com a surdez e com surdos de modo cotidiano. Em apreciao posterior,
percebo que os textos do blog podem ser lidos como anotaes de um dirio de campo, ou,
para nos mantermos no campo da metfora nutica, um dirio de bordo, em que registro os
elementos da paisagem que me capturaram o olhar, e elaboro os pontos de
estranhamento/familiaridade causados pelo contato com formas outras de ser e viver com.
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O desejo de integrar o blog tese trouxe-me um desafio formal, que no estou certa de ter
solucionado da maneira mais eficaz4. Uma formatao prpria foi empregada para marcar sua
natureza outra. Alm disso, ao longo de todo o trabalho, o leitor remetido ao blog quando o
assunto em questo tiver sido tratado em um de seus textos. A inteno foi importar uma
organizao hipertextual, comum ao ambiente digital, propondo uma possibilidade de
aproximao no linear informao; mas tambm apontar a intrnseca relao entre o blog e
a tese. No arquivo digital, possvel acessar diretamente o texto clicando sobre o smbolo do
leme , que aparecer na lateral da pgina.
Uma leitura em idas e vindas, ou seguindo a sequncia linear fica a critrio do leitor. A leitura
cronolgica dos textos do blog revela minha itinerncia pelo mundo dos surdos, como fui me
deixando levar ao sabor dos ventos. A leitura a partir das indicaes revela meu esforo
posterior de traar uma rota, ligando os pontos de parada para tentar compreender sua
importncia no trajeto final.
Tendo essa apresentao cumprido a funo a que se props, resta convid-los a me
acompanhar nessa viagem, esperando que ela seja til ou, ao menos, que tenha a justa medida
entre tormentas e calmarias, entre guas doces e salgadas. Bem vindos a bordo e tomemos as
palavras de Guimares Rosa (2006, p. 29) como auspcio: O corpo no traslada, mas muito
sabe, adivinha se no entende. Perto de muita gua, tudo feliz.
4 Mesmo essa tentativa s foi possvel com a ajuda de Arabut Santos, designer grfico e companheiro.
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1 INTRODUO
Eu sustento que a nica finalidade da Cincia est em aliviar a canseira da existncia
humana. E se os cientistas, intimidados pela prepotncia dos poderosos acham que
por amor ao saber basta amontoar a cincia, ao fim, ela pode ser transformada em
aleijo, e suas novas mquinas sero novas aflies, nada mais.5
Segundo Virole (2006), historicamente, a surdez esteve no centro das principais teorias sobre
as relaes entre sujeito, linguagem e conhecimento e teve papel fundamental no
desenvolvimento da histria do pensamento. Em diferentes momentos, o desenvolvimento dos
surdos, assim como dos cegos, foi usado como argumento para defender teorias diversas, por
vezes mesmo contrrias entre si. O estudo da surdez pela filosofia serviu mais para interesses
prprios do que para produzir uma compreenso das especificidades do desenvolvimento
subjetivo, lingustico e epistemolgico do surdo. De fato, alguns preconceitos e ideias
errneas sobre o tema, que persistem ainda hoje, tm suas origens em proposies que datam
da antiguidade. A psicologia tambm tem sua parcela de responsabilidade pelo surgimento ou
propagao de afirmaes esprias sobre o desenvolvimento cognitivo e psquico dos surdos.
Nas sees que se seguem ser possvel identificar a influncia que essas ideias ainda
exercem sobre a forma de concebermos a origem do pensamento e as relaes entre
pensamento e linguagem. Veremos, ainda, como os surdos, seguidamente, foram usados como
argumento para esta ou aquela viso terica e ideolgica, a despeito das consequncias para
sua vida cotidiana e como as diferenas qualitativas entre o desenvolvimento de surdos e
ouvintes nem sempre so levadas em conta.
Conceitos e ideias de Foucault tm ajudado autores que escrevem sobre a deficincia, em
geral, e a surdez, em particular, a pensar o efeito dos discursos cientficos sobre a construo
da viso social sobre deficientes e surdos. Como afirma Verstraete (2011), ao lado de Jacques
Derrida, Irving Goffman e Judith Butler, Foucault parte contundente das referncias tericas
usadas pelos historiadores que investigam a deficincia. Seja por sua teorizao sobre a
fundao da episteme clssica (VIROLE, 2006), seja para tratar da transformao de pessoas
em pacientes (FJORD, 2010). De modo geral, sua teorizao ajuda a compreender a dimenso
5 Trecho da ltima fala do personagem Galileu na pea A Vida de Galileu, de Bertold Brecht. Verso retirada
do roteiro para teatro adaptado por Paulo Noronha Lisboa Filho e Francisco Carlos Lavarda a partir da traduo
de Roberto Schwarz. Disponvel em:
http://wwwp.fc.unesp.br/~lavarda/galileu/a_vida_de_galileu_2012_03_19.pdf Acesso em: 01 fev 2015.
http://wwwp.fc.unesp.br/~lavarda/galileu/a_vida_de_galileu_2012_03_19.pdf
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do poder implcita na linguagem e, consequentemente, na construo de dispositivos de
normalizao a que fica submetido o surdo diante de uma cultura ouvinte dominante.
Em A Ordem do Discurso, Foucault (2009) discorre sobre essa relao do discurso com o
desejo e o poder. A hiptese por ele defendida a de que:
[...] em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm
por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio,
esquivar sua pesada e temvel materialidade (p. 8-9).
Para Foucault (2009), o discurso submetido a trs sistemas de excluso: a interdio, a
segregao da loucura e a vontade de verdade. Cada um sua maneira revela o discurso no
apenas como dispositivo de traduo das lutas pelo poder, mas como o prprio poder por que
se luta. preciso, portanto, que tomemos isso em conta ao analisarmos o discurso que se
produz sobre a surdez, por um lado, mas tambm o lugar que se d ao discurso do surdo. Esse
discurso outro, muitas vezes interdito, segregado ou situado fora do verdadeiro,
paradoxalmente, demanda uma escuta.
Tambm nas disciplinas, Foucault reconhece um princpio de delimitao do discurso, no de
natureza externa, como os anteriormente citados, mas interna. As disciplinas controlam a
produo do discurso na medida em que delimitam as regras do verdadeiro. Ainda sobre as
disciplinas, Foucault dedica-se a pensar sobre o surgimento e desenvolvimento das cincias
humanas (FOUCAULT, 2007, 2010a, 2014), aportando contribuies importantes para
compreendermos o efeito dessas no discurso sobre a surdez.
Para Foucault (2007), s no sculo XIX que o homem passa a existir e, com ele, as cincias
humanas, das quais se torna objeto. Essa novidade um acontecimento na ordem do saber
(p. 477). O homem, agora sujeito e objeto das cincias, aquele que vive, que produz e que
fala; ou antes, aquele que constri representaes da prpria vida, que se representa as
relaes de trabalho e que se representa o sentido das palavras. A psicologia, em particular,
surgiu como cincia, ao longo desse mesmo sculo, em resposta s exigncias oriundas das
novas normas impostas pela sociedade industrial aos indivduos (p. 476).
Em 1957, Foucault (2010a) considerava que o trabalho de renovao radical da psicologia
como cincia do homem era ainda uma tarefa incompleta. Para o autor, sua aspirao de ser
um conhecimento positivo fez com que ela reduzisse a realidade humana a um setor da
objetividade natural e que tomasse como modelo os mtodos das cincias da natureza. Porm,
afirma ele, o prprio homem no mais da ordem da natureza (p. 134), e a psicologia se v
tendo que elaborar um novo projeto de cincia. Segundo Foucault, contudo, nem todos se
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27
deram conta de que a renovao dos mtodos s possvel pela emergncia de novos temas
de anlise e pelo abandono de velhos conceitos.
Ainda sobre a psicologia, o autor aponta a importncia histrica do estudo dos
desenvolvimentos atpicos para a construo do saber psicolgico: Sem forar uma exatido,
pode-se dizer que a psicologia contempornea , em sua origem, uma anlise do anormal, do
patolgico, do conflituoso, uma reflexo sobre as contradies do homem consigo mesmo
(FOUCAULT, 2010a, p. 135). Por exemplo, sobre a psicologia do desenvolvimento, Foucault
nos diz que ela nasce justamente pela reflexo acerca das interrupes do desenvolvimento.
Sua transformao em uma psicologia do normal resultaria do esforo de dominar tais
contradies de que fala Foucault, acima.
No entanto, a descoberta do sentido e, em particular, as ideias de Freud, segundo o autor,
expem a inadequao de oposies radicais entre normal e anormal, entre saudvel e
patolgico, entre conscincia e inconsciente, entre indivduo e sociedade. Para a psicanlise,
no h uma diferena de natureza entre esses extremos e as anlises causais recaem sobre a
gnese da significao; alm disso, a lgica evolucionista substituda pela histrica e o meio
cultural predomina sobre o apelo natureza. Para Foucault (2010a), a possibilidade de
afastamento das cincias humanas em relao s cincias naturais se instaura justamente a
partir da descoberta do sentido e de uma compreenso no linear do tempo.
Outro conceito trabalhado por Foucault (2010b) e que aporta contribuies importantes para
pensarmos a surdez o de anormais. Um exame mais detido sobre essa categoria
apresentado pelo autor ao tratar da transformao da psiquiatria em tecnologia do poder.
Segundo ele, essa categoria se constitui de trs figuras, que comeam a se definir a partir do
sculo XVIII e que sero os ancestrais do anormal do sculo XIX. So elas: o "monstro
humano", que viola, por sua existncia e forma, tanto as leis jurdicas, quanto as leis naturais;
o "indivduo a ser corrigido", ainda que incorrigvel, que, quanto mais se mostra inacessvel
aos investimentos familiares e s tcnicas de educao, mais se torna objeto destas; e o
"masturbador", cujo delito revelar o segredo que todos conhecem, mas de que no se deve
falar, e, ao faz-lo, revela o germe de anormalidade presente em cada um de ns.
Essa nova anormalidade vai pouco a pouco se tornando objeto do saber e do poder mdico.
Ser possvel pensar o surdo e a construo social da surdez a partir dessa categoria? Silva et
al. (2010) utilizam o conceito de anormal de Foucault para tratar do extravasamento do saber
psiquitrico para outros campos de saber e de atuao, em particular para a educao, no
tocante ao trabalho com crianas e jovens com deficincia. No que diz respeito surdez,
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subjaz compreenso do surdo como anormal sua consequente medicalizao e
transformao dos espaos educativos em espaos mdico-hospitalares.
Os anormais, antes objeto de extermnio ou excluso , se tornam objeto de
normalizao, que deve ser engendrada pela psiquiatria e profisses afins
(FOUCAULT, 2010b). Teixeira (2007) retoma a passagem de uma forma negativa
para uma forma positiva de poder e a consequente construo de saberes que se faz necessria
para a sustentao das prticas disciplinadoras, para discutir a aplicao dos princpios de
qualificao e correo em marcha nos procedimentos atuais de reabilitao da surdez.
Segundo a autora, na histria da educao de surdos possvel identificar essa passagem de
uma atitude de excluso, pela segregao fsica e posturas higienistas, para uma incluso, pela
qualificao e correo.
Os conceitos de normalizao e de governabilidade participam das reflexes de Foucault
acerca daquilo que chamou de biopoltica. A biopoltica a ao sobre a vida de cada um,
pela manuteno da vida como um todo. Como analisa Martins (2016), ela demarca o lugar
privilegiado do corpo como objeto de atuao do poder, a partir do sculo XVII. Segundo
Lockmann (2013), as diferentes intervenes sobre as condutas e as formas de ser visam
manuteno da ordem na populao. O anormal representa uma ameaa ordem, portanto,
entram em cena os mecanismos de normalizao.
A normalizao diz respeito distribuio dos corpos em referncia norma. Ela
constri conhecimento sobre aquilo que precisa ser governado e opera
intervenes. Esto envolvidos na normalizao os atos de qualificao, medio,
avaliao e hierarquizao (RECH, 2013), de modo a situar cada sujeito no seu devido lugar.
Mais do que isso, ao poder normativo se liga sempre uma tcnica positiva de interveno e
de transformao (FOUCAULT, 2010b, p. 43), de modo a trazer o sujeito para mais perto da
norma. O poder de normalizao um poder positivo, produtivo, e engendra, portanto, uma
srie de tecnologias e saberes, dos quais faz parte a psicologia.
A governabilidade, ou governamentalidade, uma forma de agir sobre as possibilidades de
ao dos outros (SARDAGNA, 2013, p. 45). A governabilidade opera no nvel
micropoltico, sobre o indivduo, e no macropoltico, sobre a populao (LOCKMANN,
2013). Ela extrapola, portanto, as prticas governamentais e seu objetivo conformar a
populao s formas de viver da atualidade. Essas formas de viver atuais so marcadas,
segundo Loureiro (2013), pelo consumo e pela competitividade.
p. 237
p. 229
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29
A educao, que no sculo XIX deixa de ser dirigida a uns poucos e passa a ser dirigida
massa, a um contingente de pessoas que necessitava ser conduzido (RECH, 2013), pode ser
entendida como instrumento de governabilidade da infncia. Para Loureiro (2013), a escola
lugar privilegiado de exerccio da governabilidade, uma vez que atinge um grande nmero de
pessoas, por um longo perodo de tempo, a custos relativamente baixos. Como afirma Rech
(2013, p. 29), a escola subjetiva para regular, vigiar e, na sequncia, normalizar.
O movimento pela incluso de todos na escola, que ganha vulto nas duas ltimas dcadas do
sculo XX, se insere na lgica neoliberal em que a produo e a utilidade so imperativas.
Nessa lgica, o sujeito ideal aquele em permanente processo de aprendizagem e de
ressignificao de si. Alm de um dispositivo para diminuir o risco social, a autora prope
pensar a incluso escolar como uma estratgia biopoltica de fluxo-habilidade, ou seja, que
tem como objetivo fazer circular, fazer fluir no sentido da insero no mercado de trabalho,
pela aquisio das habilidades que podero tornar o aluno um adulto til para a sociedade.
Se Rech (2013) foca na questo da produo, Sardagna (2013) vai pensar a incluso escolar
como poltica de regulamentao da vida e da populao. Pois bem, no caso da educao de
surdos, podemos tambm pens-la como poltica de regulamentao da linguagem, abarcando,
assim, as trs esferas do homem moderno de que nos fala Foucault (2007): vida, trabalho e
linguagem. A lgica do indivduo a ser corrigido, uma das figuras do anormal, se insere em
todos os mbitos da vida do sujeito surdo.
Embora o prprio Foucault tenha afirmado no querer fazer uma "histria de solues"
(VERSTRAETE, 2011) tambm em sua obra que muitos autores identificam as pistas para o
exerccio de um contra poder. Sobre isso, Pogrebinschi (2004) destaca o aspecto do poder-
saber, presente nos conceitos de poder disciplinador e biopoder, como o que confere ao poder
um carter produtivo, positivo, emancipatrio e libertador.
Para alm de uma contribuio conceitual, Foucault nos ensina o exerccio da
problematizao, com sua proposta de construo de uma histria crtica do pensamento e a
elaborao de uma forma particular de pensar, a que Le Blanc (2014) chama pensamento
Foucault6. Essa operao terica se constitui em uma tica do pensamento, posto que um
trabalho de modificao de si, pela problematizao do campo de experincia no qual o
sujeito se v modificado pelo jogo de verdade que o liga a objetos particulares de
conhecimento (LE BLANC, 2014, p. 7).
6 La pense Foucault.
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1.1 FILOSOFIA E SURDEZ
Filosofia e construo social da surdez influenciaram-se mutuamente ao longo da histria do
pensamento. Por um lado, quando consideramos as origens das teorias sobre pensamento e
linguagem, devemos levar em conta os efeitos que o estudo da surdez imprime sobre as vises
cartesianas e empiristas acerca da origem das ideias. Por outro lado, alguns conceitos e
teorias, desenvolvidas a partir da, esto presentes at hoje no imaginrio social sobre a surdez
e mesmo em diferentes teorias da psicologia sobre a deficincia.
Na Poltica de Aristteles (1985, 1253a), podemos encontrar uma relao direta entre fala e
pensamento:
Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propsito, e o homem o nico entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor
e o prazer, e os outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente at
o ponto de ter sensaes do que doloroso ou agradvel e extern-las entre si), mas a
fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto tambm o justo e
o injusto; a caracterstica especfica do homem em comparao com os outros animais
que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras
qualidades morais, e a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a
famlia e a cidade.
Para Aristteles, a essncia necessria do homem o fato de ser racional (ABBAGNANO,
2007) e ele associa a racionalidade, principalmente, fala, como mostra a citao acima. Por
deduo, suas ideias serviram de embasamento para a noo de que o surdo, por no ter
acesso linguagem tal como ela para os no-surdos, estaria excludo da condio de
racionalidade e tambm deposto da condio de humano. Pelo menos, at o final do sculo
XVI, isso qualificou o surdo como inapto para o ensino, excludo do direito ao casamento,
posse de bens ou herana (FENEIS; FADERS; SECRETARIA DA EDUCAO, 2005).
No sculo XVIII, em carta publicada em 1751, Diderot (1993) defende que a
observao de surdos-mudos7 de nascena seria a forma ideal de compreender a
formao da linguagem, uma vez que estes reproduziriam o homem primitivo em
seus primeiros contatos com uma lngua e demonstrariam o pensamento em seu estado inicial.
O texto de Diderot, longe de representar o reconhecimento do surdo como sujeito pensante, o
apresenta como um curioso objeto de investigao. Como afirma Virole (1990, p.09), no
apenas sobre Diderot, mas tambm sobre ele: "A referncia aos surdos-mudos na histria das
7A expresso surdo-mudo no mais empregada, mas a utilizo aqui para manter a forma utilizada pelo autor: les
sourds et les muets.
p. 236
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ideias vai se inscrever na linhagem das fices imaginrias que o Homem construiu para se
conhecer a si mesmo."8
Diderot (1993) afirma, por exemplo, sobre a impossibilidade de a pessoa surda compreender
conceitos abstratos, defendendo uma viso que ainda hoje persiste no senso comum,
particularmente explicitada respeito da lngua de sinais, como ela sendo incapaz de
comunicar ideias abstratas e no permitindo a expresso de algumas figuras de linguagem,
como a metfora e a ironia, por exemplo. Esta uma compreenso que, embora
venha sendo negada pelos pesquisadores e usurios das lnguas de sinais, ainda
encontrada na prtica. Como afirma Skliar (2010, p. 24):
Mesmo agora, quando numerosas pesquisas j tm demonstrado que as lnguas de sinais cumprem todas as funes descritas para as lnguas naturais, ainda persiste e
chama a ateno a sua desvalorizao o seu tratamento como mescla de pantomima e
de sinais icnicos, e a sua considerao enquanto um pidgin9 primitivo.
Segundo Virole (2006), a surdez e a cegueira se tornaram eixos centrais nas discusses entre o
pensamento cartesiano e a filosofia empirista de Locke, no que diz respeito origem do
conhecimento. Os antecedentes filosficos dessa discusso podem ser encontrados nas
divergncias entre Protgenes, Plato e Aristteles. Aggio (2006) faz uma anlise das ideias
desses trs filsofos no que diz respeito relao entre sensao e conhecimento. Para
Protgenes, identificado corrente filosfica dos sofistas, h identidade entre sensao e
pensamento e a qualidade sensvel s existe no encontro entre percipiente e objeto, sendo
radicalmente dependente do primeiro.
Aristteles, por sua vez, distingue sensao de pensamento, entendendo ambos como
operaes que tm como funo conhecer. Tal como Protgenes, ele identifica uma funo
discriminativa na percepo. Para ele, a sensao depende das coisas externas, enquanto o
intelecto depende da percepo dessas, posto que se constri sobre formas sensveis. Assim,
h uma relao de dependncia entre sensao e pensamento, mas no de identidade. Segundo
Aggio (2006), diferentemente de Protgenes, Aristteles entende que a qualidade sensvel
uma atribuio real da coisa, enquanto a aparncia se refere a uma afeco do sujeito que
percebe. Para Plato, a reflexo, e no a percepo, que determina o objeto sensvel. Para o
filsofo, no so os rgos dos sentidos que percebem, mas sim a alma que o faz, atravs
8Traduo da autora. No original: La rfrence aux sourds muets dans lhistoire des ides va sinscrire dans la
ligne de fictions imaginaires que lHomme a construit pour se connatre lui-mme ". 9Lngua rudimentar, criada artificialmente para permitir o contato, na ausncia de um idioma comum. uma
soluo historicamente encontrada em zonas de comrcio, onde falantes de diferentes lnguas precisam se
comunicar. No possui uma gramtica elaborada e seu uso limitado a situaes especficas e prticas.
p. 236
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32
deles. Dessa forma, o corpo exerce uma funo apenas material. Segundo suas ideias, a alma
dotada de conceitos inatos e procede a comparaes para discriminar aquilo que o corpo sente
de forma indistinta. Assim, a percepo j uma funo do intelecto.
As ideias de Plato esto nas bases do racionalismo, corrente filosfica que tem na razo a
principal fonte de conhecimento. Descartes considerado o autor inicial do racionalismo
moderno, embora no tenha usado ele mesmo essa denominao. Tal como Plato, ele
defendia a natureza inata das ideias. A inveno e o uso de uma linguagem de sinais pelos
surdos, como instrumento para comunicar seus pensamentos, so apontados por ele
(DESCARTES, 2007) como prova de que o pensamento inato e universal e principal marca
de distino entre animais e homens.
O empirismo, por sua vez, uma corrente filosfica que tem como principal caracterstica
tomar a experincia como critrio ou norma de verdade (ABBAGNANO, 2007), o que
diferente de dizer que ela toma a experincia como nica via de acesso ao conhecimento. De
qualquer modo, a ideia de uma origem sensualista do pensamento a coloca em embate com o
racionalismo. Para Abbagnano (2007), duas caractersticas so essenciais ao empirismo: 1.
negar o carter absoluto da verdade acessvel ao homem; 2. afirmar que toda verdade deve ser
posta prova.
O que nos interessa analisar como a filosofia empirista, particularmente aquela associada s
ideias de Locke, se posiciona diante do conflito posto pela evidncia de que surdos e cegos
so capazes de desenvolver ideias claras sobre as coisas, a despeito da ausncia de um dos
sentidos. De acordo com os primeiros empiristas, a ausncia de um dos sentidos levaria
consigo um tipo de conhecimento, impossvel de ser adquirido por outro meio. Como afirmou
Locke (1999, p. 276): "Porque os que carecem dos rgos de qualquer sentido nunca podem
ter as idias pertencentes a este sentido produzidas em sua mente (itlico no original)." Para
Virole (2006), essa teoria tem repercusses at os dias de hoje, que se tornam evidentes na
compreenso do surdo como algum que possui uma capacidade limitada de compreenso e
abstrao. Ainda, uma das hipteses da teoria do funcionamento sensorial, que busca explicar
a percepo dos surdos, se sustenta na ideia de contgio, que afirma que a privao de um
sentido resulta na fragilizao dos outros (MARTIN-LAVAL, 1980), fazendo eco viso dos
filsofos empiristas ingleses.
Diante deste conflito, os tericos sensualistas franceses se distinguem dos empiristas ingleses
pelo desenvolvimento da noo de suplncia de sentidos, validada justamente pelos resultados
obtidos na educao de surdos. Ao se reconhecer a possibilidade de que um sentido possa
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33
substituir outro na apreenso do mundo e construo do conhecimento, cai por terra a ideia de
uma hierarquia entre os sentidos e revela-se a ideia de que h uma redundncia sensorial na
relao com os objetos do conhecimento (VIROLE, 2006). Esta viso tambm se revela na
teoria sobre o funcionamento perceptual dos surdos, porm na hiptese contrria quela do
contgio, denominada hiptese da compensao. Pela teoria da compensao, diante de uma
perda sensorial, o organismo aumentaria a capacidade de percepo dos outros sentidos
(MARTIN-LAVAL, 1980).
De fato, pesquisas recentes no campo das neurocincias tentam comprovar a potencialidade
da plasticidade cerebral, que pode levar suplncia de sentidos, ou mecanismo semelhante.
Sacks (2006), por exemplo, fala do potencial criativo das deficincias, que podem deflagrar
formas inesperadas de desenvolvimento. Ele cita o trabalho pioneiro de Alexander Luria,
desenvolvido a partir de sua prtica com crianas cegas e surdas, em que ressalta a diferena
qualitativa do desenvolvimento dessas crianas. Tais constataes demandam a construo de
uma nova viso sobre a constituio e o funcionamento do crebro, mais dinmica e que
considere sua capacidade de adaptao.
Vygotsky (1997), parceiro de trabalho de Luria, retoma o conceito de suplncia de sentidos,
porm de forma crtica. Segundo esse autor, preciso afastar-se de uma compreenso
meramente biolgica e ingnua da compensao, ou seja, de uma substituio de sentidos que
se daria de forma automtica e inerente deficincia, e direcionar-se para o reconhecimento
de seu motor scio psicolgico. Para ele, o conflito originado do contato com o meio externo
e com a demanda social que dele advm que pode deflagrar a compensao. No entanto,
conforme afirma Vygotsky (1997), essa no uma condio exclusiva da pessoa deficiente,
mas uma caracterstica geral do desenvolvimento e de sua orientao para o futuro.
1.2 PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E SURDEZ
Historicamente a psicologia se aproxima da surdez pela via das avaliaes cognitivas a partir
do desenvolvimento da psicometria, desde o fim do sculo XIX. Como recupera Martin-Laval
(1980), Greenberger, ainda em 1889, desenvolveu uma tcnica de mensurao da capacidade
intelectual dos surdos. Em 1917, Pintner e Paterson, diante da constatao da inadequao do
teste Binet-Simon, para esse pblico, desenvolveram a Escala de Performance Pintner-
Paterson. Para o autor, desde ento, esse tema mobilizou muito diversos pesquisadores. Ainda
assim, o desempenho de crianas surdas em testes desenvolvidos e validados para crianas
ouvintes serviu como justificativa para atestar que os surdos eram intelectualmente inferiores.
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Essa ideia foi levada adiante pela Psicologia da Surdez, especialmente nas dcadas de 1950 e
1960, que atribua aos surdos problemas com memria imediata, dificuldades de abstrao,
alm de problemas motores, intelectuais e de comportamento.
Sob a gide do ideal de normalizao, a psicologia identifica-se, de forma generalizada, com
uma viso reabilitadora da surdez. Os Estudos Sobre a Deficincia e Estudos Surdos, ao
questionarem a tomada da surdez por um discurso exclusivamente biomdico, convocam a
psicologia a discutir o papel do social na construo da surdez e os efeitos subjetivos de ser
surdo em um contexto no qual isso se traduz numa vivncia de opresso.
Em reforo ao argumento pela necessidade de a psicologia se repensar luz dessas
elaboraes, Olkin e Pledger (2003) salientam que, como efeito dos atuais avanos
no que diz respeito independncia da pessoa com deficincia, h uma crescente
demanda destas por atendimento psicolgico, fora do escopo da reabilitao. Como
desdobramento disto, crescem as chances de que qualquer psiclogo, no exerccio da
profisso, se depare com a necessidade de lidar com as especificidades desse pblico. Para os
autores, o campo dos Estudos Sobre a Deficincia o que sintetiza o conhecimento necessrio
para preparar os profissionais para esse tipo de demanda (OLKIN; PLEDGER, 2003).
Os nmeros sobre a deficincia auditiva no pas parecem confirmar a previso dos autores.
Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) realizado em 2010,
dentre os mais de 9,7 milhes de brasileiros com algum grau de deficincia auditiva, cerca de
dois milhes se declararam como tendo uma perda severa, ou seja, com grande dificuldade ou
incapacidade permanente de ouvir (IBGE, 2010). essencial que a psicologia se prepare, de
forma mais eficiente, para o acompanhamento deste pblico. Julgo que essa preparao
demanda do campo psi, ainda outra vez, debruar-se sobre a tenso da relao entre indivduo
e sociedade, que, na psicologia do desenvolvimento, se expressa tambm na falsa dicotomia
entre inato e aprendido e no entrelaamento das dimenses biolgica e social.
A psicologia do desenvolvimento um campo de estudo que se desenvolve em interface com
outras disciplinas. Nele coabitam um grande nmero de teorias que procuram dar conta dos
diferentes aspectos e enfoques referentes ao desenvolvimento humano. Mota (2005, p. 107), a
partir das ideias de autores da rea, prope uma definio deste campo, genrica o suficiente
para abarcar suas diferentes dimenses, mas especfica a ponto de destacar este de outros
campos de estudo:
p. 257
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O estudo, atravs de metodologia especfica e levando em considerao o contexto
scio-histrico, das mltiplas variveis, sejam elas cognitivas, afetivas, biolgicas
ou sociais, internas ou externas ao indivduo que afetam o desenvolvimento humano
ao longo da vida.
Tambm Biaggio (2008) ressalta essa posio de fronteira da psicologia do desenvolvimento.
Para a autora, ela engloba quase todas as outras reas da psicologia, na medida em que seus
objetos de estudo se sobrepem, e por se vincular a vrias cincias afins. Dixon e Lerner
(1999) tambm salientam a diversidade de teorias, mtodos e ideias que compem este campo
da psicologia, no entanto, identificam cinco grandes modelos explicativos que estariam por
trs das principais teorias atuais em psicologia do desenvolvimento. So eles: o modelo
organicista, o psicodinmico, o mecanicista, o dialtico e o contextual.
Alm disso, os autores apresentam alguns eixos em torno dos quais se organizam as principais
questes a que tenta responder a psicologia do desenvolvimento, entre as quais destacam,
justamente, a controvrsia que acompanhou sua histria, a clssica oposio entre inato e
aprendido, ou nature-nurture controversy, que dividiu os tericos da rea entre nativistas e
empiristas (DIXON; LERNER, 1999). O que fica questionado a partir desta oposio se as
fontes do desenvolvimento se encontram em mecanismos inatos, hereditrios, ou em
processos adquiridos, aprendidos.
Em 1997, o Conselho Nacional de Pesquisa (National Research Council NRC) e o Instituto
de Medicina (Institute of Medicine - IOM), criaram um comit para investigar o que se sabia
sobre o desenvolvimento humano, nos primeiros cinco anos de vida. Esse grupo, formado por
19 pesquisadores experientes, produziu, aps dois anos e meio de trabalho intenso, o relatrio
denominado Dos Neurnios ao Meio: a Cincia do Desenvolvimento na Primeira Infncia
From Neurons to Neighborhoods: the Science of Early Childhood Development
(SHONKOFF, 2003).
Neste extenso relatrio, o Comit para Integrao da Cincia do Desenvolvimento na Primeira
Infncia (Committee on Integratingthe Science of Early Childhood Development) identifica
dez princpios fundamentais que atravessam a vasta e heterognea literatura sobre o
desenvolvimento. De forma sumria, esses princpios afirmam que o desenvolvimento
marcado por uma interao dinmica entre biologia e experincia; influenciado pela cultura
em todos os seus aspectos, e essa se reflete em crenas e prticas parentais; tem na
autorregulao crescente sua pedra angular; as crianas tm participao ativa no seu prprio
desenvolvimento; as relaes humanas so os tijolos para um desenvolvimento saudvel; a
enorme variao individual dificulta a distino entre desenvolvimento normal ou atrasos
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maturacionais e transtornos transitrios ou permanentes; segue uma trajetria individual,
marcada por continuidades e descontinuidades e por transies significativas; moldado pelo
interjogo contnuo entre vulnerabilidade e resilincia; as primeiras experincias so
importantes, mas o desenvolvimento continua exposto a riscos e aberto a influncias
protetivas por anos, at a idade adulta; intervenes efetivas na primeira infncia podem
mudar os rumos do desenvolvimento (SHONKOFF, 2003).
Nos artigos que se seguem, de forma mais ou menos explcita, confronto esses princpios com
o campo especfico do desenvolvimento da criana surda. De modo especial, trato da ausncia
ou inadequao de intervenes precoces que considerem os aspectos psquicos e ofeream
suporte para o desenvolvimento saudvel do surdo e sua famlia. Outro aspecto
extensivamente salientado pelo relatrio a importncia das interaes precoces com pessoas
significativas para a criana. Esse seria o principal fator ambiental a influenciar o
desenvolvimento. Tanto os cuidados e estimulao cotidianos, quanto a transmisso de
valores e construo de um contexto cultural, dependem da qualidade das relaes
interpessoais, que tero efeitos duradouros na vida da criana (SHONKOFF, 2003). Ser
preciso refletir sobre os efeitos da surdez sobre as interaes, seja no sentido daquilo que se
perde pela ausncia do estmulo sonoro, seja no sentido dos efeitos simblicos desse
diagnstico. Essa questo tambm abordada, em diferentes pontos deste trabalho.
Parece-me pertinente recuperar dois grandes temas do relatrio, como relatados por Shonkoff
(2003). Primeiramente, as mudanas sociais e econmicas significativas que experimentamos
na atualidade colocam um desafio aos pais e outras pessoas envolvidas na criao das
crianas, muito particularmente em relao ao tempo e diversidade de influncias adversas a
que esto expostas. Essas novas necessidades das crianas no parecem estar sendo
adequadamente pensadas pela cincia, o que nos leva segunda concluso: preciso repensar,
com urgncia, a relao entre a cincia do desenvolvimento, as polticas de ateno infncia
e as prticas a ela dirigidas. De modo geral, muito pouco do conhecimento que produzido
pelas pesquisas sobre desenvolvimento chegam a influenciar as aes de pais e educadores e a
orientar polticas pblicas de amparo infncia. Esses dois temas sublinham a necessidade de
renovao da psicologia do desenvolvimento e de maior permeabilidade dos gestores de
polticas ao conhecimento produzido nesse campo.
Thelen e Smith (2006), retomando o trabalho de Thelen e Bates, comparam seis teorias do
desenvolvimento: a teoria do desenvolvimento da linguagem de Chomsky; a teoria da
percepo e desenvolvimento perceptual de J. Gibson; a teoria do desenvolvimento cognitivo
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de Vygotsky; a teoria construtivista de Piaget; o coneccionismo de Elman e colaboradores e a
teoria do sistema dinmico, como apresentada pelos prprios autores. As teorias so
comparadas a partir de dez aspectos, entre eles o papel estruturante que atribuem informao
externa e a importncia que a interao social assume em cada uma delas.
Para as autoras, apenas a teoria de Chomsky no leva em conta o ambiente como uma fonte
de estrutura. Em todas as outras e, especialmente, na teoria de Vygotsky, a informao
externa ao organismo considerada como elemento causador de desenvolvimento. No
entanto, e isso parece contraditrio, apenas a teoria de Vygotsky considera a interao social,
de modo consistente, como fonte estrutural no desenvolvimento cognitivo (THELEN;
SMITH, 2006).
claro que estas seis teorias no resumem todas as teorias do desenvolvimento, mas a
contradio acima parece mostrar que existe uma diferena grande entre considerar a relao
com o ambiente como sendo importante para o desenvolvimento e poder, de fato, desenvolver
uma teoria que explicite os mecanismos pelos quais esta informao externa participa do
desenvolvimento. Achados do relatrio Dos Neurnios ao Meio permitem concluir que o
longo debate natureza versus meio extremamente simplista, alm de cientificamente
obsoleto (SHONKOFF, 2003).
Como sugerimos, at ento, o social tem sido considerado apenas como oposio ao biolgico
como fonte de causao do desenvolvimento. Os debates atuais parecem ter encontrado uma
maneira de resolver a controvrsia entre inato e aprendido, aceitando que tanto fatores
internos, biolgicos, como externos, sociais, influenciam no desenvolvimento. Desse modo,
no caberia mais discutir se seriam os fatores biolgicos ou os sociais que levariam ao
desenvolvimento, mas em que medida cada um deles interferiria neste e como interagem entre
si.
Em certa medida, a prpria oposio entre inato e aprendido carece de sentido. Esta separao
faz parecer que no da natureza humana aprender com o outro e com o meio e se construir a
partir desta relao. Alm disso, opor o social ao biolgico situa o social como algo alheio ao
organismo, como uma entidade reificada que poderia existir sem os sujeitos. O estudo da
surdez, luz dos Estudos Sobre a Deficincia e dos Estudos Surdos, no possvel mediante a
manuteno dessa dicotomia.
As reflexes at ento apontadas nos conduzem a pensar que a psicologia do desenvolvimento
no nega a importncia do social para o desenvolvimento, mas falha em compreender, de
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forma mais aprofundada, o modo como inato e aprendido se interpenetram e se definem
mutuamente. Penso que a psicologia do desenvolvimento no poder responder a novas
questes empregando mtodos antigos. Biaggio (2008, p. 26) recupera o trabalho realizado
por Ziegler, em 1963, acerca da evoluo da psicologia do desenvolvimento, para defender a
ideia de que o objeto de estudo de determinada cincia ou rea de uma cincia condiciona o
tipo de metodologia privilegiada e este, por sua vez, leva a conceitos tericos que no lhe so
indiferentes.
Julgo ser fundamental uma discusso a respeito dos mtodos de pesquisa empregados por esse
campo de conhecimento. Podemos identificar na psicologia do desenvolvimento duas crticas
que GonzlezRey (2010) faz ao modo como a pesquisa tem sido realizada nas cincias
sociais. Trata-se do metodologismo e do instrumentalismo. O autor denomina de
metodologismo a inverso das posies entre mtodo e teoria, pela qual os instrumentos e
tcnicas se tornam legitimadores incontestes das informaes que produzem, alheios s
representaes tericas de base. Por instrumentalismo ele entende a reduo da pesquisa
aplicao de uma srie de instrumentos, cujos resultados sero sintetizados pelos testes
estatsticos, prescindindo, muitas vezes, da elaborao terica do pesquisador.
A origem da psicologia do desenvolvimento remonta aos estudos sobre inteligncia e
aprendizagem, tradicionalmente atrelados construo e aplicao de escalas e instrumentos
de medidas de habilidades individuais. A compreenso crescente de que o desenvolvimento
afetado pelo contexto, assim como o afeta, e as novas demandas que tm sido postas
psicologia do desenvolvimento, apontam para a necessidade urgente de reviso dos mtodos
de pesquisa em psicologia (MOTA, 2005). Porm ainda assistimos a uma importao de
mtodos de pesquisa, que no so pensados levando-se em conta a realidade social brasileira,
provocando, muitas vezes, interpretaes errneas ou, ao menos, parciais dos resultados.
Quando nos voltamos para subgrupos, como o caso dos surdos, as consequncias podem ser
ainda mais catastrficas, originando e perpetuando vises distorcidas, como apontamos acima
e seguiremos tratando mais adiante.
A psicologia do desenvolvimento brasileira est confrontada com o desafio de construo de
novos mtodos, sob pena de seguir contribuindo para a naturalizao da desigualdade social.
S por uma renovao metodolgica poderemos alcanar de fato, no campo emprico, o frgil
consenso sobre a indissociabilidade entre indivduo e sociedade que se anuncia no discurso
terico. Tal renovao deve passar por uma abertura para dentro da psicologia, superando
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uma diviso artificial desta em subdisciplinas, e para fora, em um dilogo com outros campos
de conhecimento.
A importncia da interdisciplina para o avano de uma cincia do desenvolvimento um
aspecto amplamente discutido no relatrio Dos Neurnios ao Meio em particular, ele cita
como promissora a interseco entre psicologia, neurobiologia e gentica molecular, com a
pediatria assumindo um papel integrativo; alm da maior integrao entre cincias bsicas e
aplicadas. A importncia de conhecer os fatores socioeconmicos e seus efeitos sobre o
desenvolvimento j foi ressaltada, mas cabe repetir. O relatrio aponta, ainda, a necessidade
de procedermos a avaliaes mais efetivas e frequentes das intervenes dirigidas primeira
infncia. Em suma, h um grande trabalho a ser feito.
1.3 PSICOLOGIA DA SURDEZ
Nas dcadas de 1950 e 1960, a proposta de uma Psicologia da Surdez baseava-se na
associao direta entre a perda auditiva e um conjunto de caractersticas cognitivas, psquicas
e, mesmo, psicopatolgicas, que afetariam os surdos de modo geral (BERNARD, 2004;
BISOL et al., 2008). A difuso destas ideias incide, diretamente, sobre a proposio de
intervenes teraputicas e pedaggicas, mas, tambm, sobre a construo de uma viso
social a respeito dos surdos, cristalizando concepes errneas at hoje presentes no
imaginrio popular.
Essa compreenso se inscreve em uma viso mdico-clnica da deficincia, que, na sua forma
mais pura, infere uma relao direta entre uma leso orgnica ou uma perda sensorial e um
conjunto predeterminado de limitaes e sintomas (BARTON; OLIVER, 1997; DINIZ, 2007;
SCHMITT, 2014). A viso mdico-clnica, neste formato, ignora, portanto, os aspectos
sociais, e mesmo pessoais, que se somam leso, contribuindo para as limitaes e
especificidades s quais esto expostos os surdos, quando vivendo em uma comunidade
formada, majoritariamente, por ouvintes.
A essa viso, ope-se o Modelo Social da Deficincia, ou concepo socioantropolgica, que
quer resgatar os aspectos contextuais que marcam a experincia de portar uma leso no corpo,
em um meio social marcado pelo ideal de normalizao. No mbito especfico da surdez, esse
modelo desenvolvido pelos Estudos Surdos. O modelo social traz as discusses e
intervenes sobre a deficincia para fora do domnio da patologia e, consequentemente, da
terapia, focando sobre o papel do social na definio das barreiras impostas aos deficientes.
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Como principal consequncia, essa mudana faz recair tambm sobre o social a
responsabilidade pela construo de um ambiente inclusivo, substituindo a ideia de superao
pessoal pela de justia social (DINIZ, 2007).
Segundo essa nova viso, a proposta de uma Psicologia da Surdez, tal como descrita acima,
carece de complexidade e conduz a explicaes esprias sobre o desenvolvimento psquico e
cognitivo dos surdos. A tradicional associao da psicologia ao modelo mdico e a assuno
de um papel essencialmente reabilitador tiveram como consequncia o empobrecimento de
suas discusses. Como esplio desse debate, podemos identificar diversos espaos de
teorizao e atuao que deveriam ser ocupados, de forma mais contundente, pela psicologia.
Algumas dessas lacunas sero apontadas e discutidas ao longo do trabalho, com destaque para
o acompanhamento do processo do diagnstico e primeiros momentos de convivncia da
famlia com a surdez de seu novo membro.
Uma reinsero da psicologia, no entanto, depende de uma abertura dos profissionais e
pesquisadores desse campo do saber aos conhecimentos que se construram pela adoo do
paradigma da surdez enquanto diferena cultural e lingustica e por tudo aquilo que
conquistaram os surdos, impulsionados pelo desenvolvimento dessa perspectiva. Porm, no
obstante, todas as importantes transformaes aportadas por esse paradigma, ao fazer pender
radicalmente o foco do biolgico ao social, ele pode incorrer no mesmo erro de apagamento
da subjetividade, agora pela sua diluio no contexto. O risco mais presente quanto mais o
social for pensado como uma entidade desencarnada e em relao de oposio direta ao
individual, hoje cada vez mais ancorado numa compreenso geneticamente determinada do
humano. O desenrolar da histria dos surdos no mundo, com ateno ao momento atual no
qual as questes identitrias se transformam de forma vertiginosa, testemunho inconteste de
que essas velhas formas de pensar no do conta das novas demandas.
A anlise, que apresento, dos artigos produzidos por psiclogos, no Brasil, sobre a surdez,
parece apontar no sentido de uma crescente superao dessa dicotomia. Se, entre 1996 e 2005,
Bisol et al. (2008) puderam identificar uma tendncia de predomnio da adoo do modelo
scioantropolgico pelos pesquisadores, a anlise dos artigos produzidos entre 2006 e 2016
no permitiu classificar os trabalhos segundo essas duas formas de pensar a deficincia, sem
incorrer em simplificaes foradas.
Penso que a psicologia, por sua posio de fronteira, tem potencial para apontar caminhos de
superao da dicotomia frrea que se estabeleceu entre partidrios de um e outro modelo, de
forma ainda mais potencializada quando se trat