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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
DANILO LUNA DE ALBUQUERQUE
HABILITAÇÃO: JORNALISMO
FRAGMENTOS PÓS-MODERNOS: LEITURA E INTERPRETAÇÃO
DO O HOMEM QUE COPIAVA, DE JORGE FURTADO
João Pessoa
2013
DANILO LUNA DE ALBUQUERQUE
FRAGMENTOS PÓS-MODERNOS: LEITURA E INTERPRETAÇÃO
DO O HOMEM QUE COPIAVA, DE JORGE FURTADO
João Pessoa
2013
Trabalho apresentado à Universidade Federal da Paraíba,
em cumprimento às exigências para obtenção do título
de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em
Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio Mousinho
Magalhães
DANILO LUNA DE ALBUQUERQUE
FRAGMENTOS PÓS-MODERNOS: LEITURA E INTERPRETAÇÃO
DE O HOMEM QUE COPIAVA, DE JORGE FURTADO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora do Curso de
Comunicação, da Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para
obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo.
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães - Orientador
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________________
Prof. Dr. Marcel Vieira Barreto Silva
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________________
Prof. Dra. Annelsina Trigueiro de Lima Gomes
Universidade Federal da Paraíba
Média: __________
Aprovado em: ______ de ________________ de 2013
Dedico este trabalho à
Kerlen Willames: técnico, mestre e amigo que me ensinou a importância da perseverança e da
lealdade.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que sinto presente em cada imagem de amor, de beleza e de verdade.
Ao meu pai, Fernando Luna, que me ensinou a valorizar a natureza das coisas, a alma que
existe em cada uma delas, e força que as move.
A Minha mãe, Berenice Lemos, que mesmo distante, sempre se fez presente na demonstração
de carinho, no interesse contínuo de observar meus passos, desde os menores nos primeiros
anos de vida, até os de hoje.
Aos meus irmãos, Plínio e Rafael, por serem exemplos de pessoas que decidiram viver por
grandes ideais, fazendo a vida mais plena, onde o próximo é o início, o meio e o fim.
A minha namorada, Sarah Camelo, por trazer sempre um pouco de céu aos meus dias.
A meus amigos da REDE, por me acompanharem em todos os momentos, fazendo a vida ter
mais graça.
A Lucas Dantas, amigo de uma vida, por estar sempre na lembrança de dias fáceis para ser
feliz.
A Thiago Espíndola, Thairone Lopes, Flávio Gonçalves , Rildo Silmões, John Nery, Pablo
Gomes, Angelo Vidal e Richardson Borges, por serem minha família paraibana, porto seguro
e fonte de alegria para a vida.
A Thaisa Lopes e Luciana Fonseca, por mesmo distante me fazerem sentir que a humanidade
é repleta de boas virtudes.
A meus amigos e colegas de faculdade, no qual agradeço em nome de Gabriel Romio, por ser
um parceiro para todas as horas, um amigo familiar e um exemplo de quem vive para realizar
seus sonhos.
A Matheus Souto e Saulo André, por estarem sempre na porta ao lado para momentos de
alegria ou afobação.
A Kerlen Williames que muito além de um técnico de basquete, foi um grande amigo que me
ensinou a jogar nas regras da vida, respeitando a individualidade de cada pessoa.
A meus companheiros do grupo de pesquisa, sobretudo Afonso, Talitha e Juliana, que se
mostraram sempre disponíveis para as necessidades acadêmicas ou boêmicas.
A todos os professores do Curso de Jornalismo, representados por Victor Braga, que mesmo
com pouco contato, me fez perceber a importância da autoralidade na produção acadêmica, na
produção de um conteúdo com sua própria verdade e mensagem.
Por último e não menos importante, ao professor Luiz Antonio Mousinho, querido Mousinho,
a quem considero um amigo, por toda dedicação e ensinamentos não só nos caminhos
acadêmicos, mas também nas estradas da vida.
ALBUQUERQUE, Danilo Luna de. Fragmentos Pós-modernos: Leitura e interpretação
do O homem que copiava, de Jorge Furtado. Monografia de Conclusão do Curso de
Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba, habilitação em Jornalismo. João
Pessoa, 2013.
RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso tem o intuito de analisar e interpretar aspectos do
filme O homem que copiava, do diretor gaúcho Jorge Furtado, observando questões ligadas à
instância narrativa e ao ponto de vista, conforme teorização de Gérard Genette (1972), com
atenção ao controle do fluxo de informação na narrativa, bem como à caracterização do
narrador e sua posição na história a ser contada. O trabalho também procura investigar a
filiação da obra a uma estética pós-moderna (HUTCHEON,1991), pensando a constituição do
sujeito e sua identidade cultural através dos estudos de Stuart Hall (2006), colocado sob a
ótica da fragmentação da informação que é apresentada no longa-metragem. Nesse sentido,
com o objetivo de interpretar os mecanismos de produção de sentido da obra, procuramos
atentar para aspectos específicos da linguagem cinematográfica (BETTON, 1987; VANOYE;
GOLIOT-LÉTÉ, 1994) aliando a esse interesse a observação da série social, buscando
entender como a obra tematiza e constrói um olhar sobre o modelo de desenvolvimento
econômico contemporâneo e as questões relacionadas às relações sociais ficcionalmente
representadas e à ética dos personagens. Os estudos sobre a conformação do narrador pós-
moderno (SANTIAGO,1989) assim como a estética picaresca (CAMPATO, 2008), também
são objeto de interesse do trabalho, pretendendo assim discutir o filme como dispositivo
midiático e constructo estético.
Palavras-chave: Narrativa; Focalização; Pós-modernismo; Jorge Furtado; O homem que
copiava.
ALBUQUERQUE, Danilo Luna de. Post-Modern fragments: Reading and interpretation
of The man who copied, by Jorge Furtado. Course completion monograph of Social
Communication major in Journalism, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.
ABSTRACT
This final project aims to analyze and interpret aspects of the film The man who copied, by
director Jorge Furtado, noting issues of narrative instance and the point of view, as theorizing
Gérard Genette (1972) with attention to control the flow of information in the narrative as
well as the characterization of the narrator and his position in the story to be told. The paper
also investigates the affiliation of the work to a postmodern aesthetic (HUTCHEON, 1991),
considering the constitution of the subject and their cultural identity through the studies of
Stuart Hall (2006), under the perspective of fragmentation of information that is presented in
the feature film. Accordingly, in order to interpret the mechanisms of meaning production of
the work, we pay attention to specific aspects of film language (BETTON, 1987;VANOYE;
GOLIOT-LÉTÉ, 1994), combining the observation that interest social series, seeking to
understand as the work thematizes and builds a look at the model of economic development
and contemporary issues related to social relations represented fictionally and ethics of the
characters. Studies on the conformation of the postmodern narrator (SANTIAGO, 1989) as
well as aesthetic picaresque (CAMPATO, 2008), are also the subject of interest from work,
intending to discuss the film as well as a media device and aesthetic construct.
Keywords: Narrative, Focusing, Postmodernism, Jorge Furtado, The man who copied.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – André e Cardoso na fuga depois do assalto ao carro forte .................................... 34
Figura 2 – André na primeira cena sem o dinheiro para levar todos os itens que deseja ........ 36
Figura 3 – André durante o trabalho na papelaria do “bolha” ................................................. 39
Figura 4 - André e Sílvia se beijam durante passeio pelo porto .............................................. 41
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13
CAPÍTULO I – O HOME QUE COPIAVA ........................................................................ 16
1.1 A história .......................................................................................................................... 16
1.2 O diretor: Jorge Furtado ................................................................................................ 18
CAPÍTULO II – ANÁLISE FÍLMICA ............................................................................... 21
2.1 Pontos da linguagem cinematográfica ........................................................................... 21
2.2 A imagem de quem diz: Focalização ............................................................................... 23
2.3 Focalização Interna, Monólogo Interior e Fluxo de Consciência ................................24
2.4 Quem fala: A voz narrativa ............................................................................................27
CAPÍTULO III – PÓS-MODERNISMO ............................................................................ 30
3.1 A poética pós-moderna .................................................................................................... 30
3.2 O sujeito ............................................................................................................................ 32
CAPÍTULO IV – FRAGMENTOS E INTERPRETAÇÃOES .........................................36
4.1 Prólogo e a voz do pensamento ....................................................................................... 36
4.1.1 Operador de fotocopiadora .......................................................................................... 38
4.1.2 Sílvia e o lírico ................................................................................................................ 40
4.1.3 Família ........................................................................................................................... 41
4.2 Outros fragmentos ........................................................................................................... 43
4.2.1 Mosaico de tudo: Bricolage ........................................................................................... 43
4.2.2 Diálogo universal ........................................................................................................... 44
4.2.3 O picaresco .................................................................................................................... 46
4.2.4 O narrador pós-modernos ............................................................................................ 47
4.2.5 O humano e o divino ...................................................................................................... 48
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 54
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento deste trabalho está atrelado ao desejo de continuação dos estudos
realizados a partir do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (Pibic) no
período de agosto de 2011 a julho de 2012, com minha participação no grupo Ficção,
Comunicação e Produção de Sentido. Durante a pesquisa trabalhamos a análise fílmica de
ficção audiovisual brasileira, nos detendo sobretudo nos conceitos de focalização e narrador,
propostos por Gérard Genette, e tomados como apoio para nossa observação do filme O
homem que copiava, de Jorge Furtado. Tal temática também está contida neste trabalho,
apresentando a maneira como as narrativas podem ser contadas a partir de um ponto de vista,
que regula o fluxo de informação a ser passada para o espectador, e de onde parte este ponto
de vista, que pode estar localizado dentro ou fora da narrativa.
Entretanto, percebemos a necessidade de ampliar o olhar sobre o objeto fílmico em
questão, trazendo outras abordagens e entendimentos, como a conceituação da pós-
modernidade como fenômeno social e simbólico na qual a obra parece se situar. Além disso,
durante o transcorrer do projeto, outras interpretações e associações surgiram, conduzindo a
um olhar mais detalhado para questões como a construção do narrador pós-moderno, a
percepção para o uso da bricolage, e a semelhança com características do romance picaresco.
O homem que copiava é o segundo longa metragem do diretor Jorge Furtado, que
também assina o roteiro. É ambientando na cidade de Porto Alegre e conta história de André,
um jovem pobre, que trabalha como “operador de fotocopiadora” em uma papelaria no
subúrbio da capital gaúcha. André se apaixona pela vizinha, Sílvia, que ele espiona com o
binóculo da janela do seu quarto, todas as noites. Disposto a mudar de vida, ficar rico,
conquistar a moça, e sair daquela cidade, André planeja golpes criminosos como a saída para
sua libertação, falsificando notas de cinquenta reais, assaltando um carro-forte e assassinando
o pai da garota. Com a ajuda de seus amigos, os personagens Marinês (Luana Piovani) e
Cardoso (Pedro Cardoso) e já com Sílvia ao seu lado, o jovem tem sucesso em todas as suas
empreitadas além de ter a sorte de ganhar na loteria apostando na improvável incrível
sequência 01, 02, 03, 04, 05 e 06. Saindo impune de todas as empreitadas e picaretagens, os
personagens se deleitam em uma orgia de consumo, indo morar no Rio de Janeiro, em final
feliz começando a uma nova vida.
Com as contribuições conceituais de Vanoye ; Goliot-Lété (1994) e Gérard Betton
(1987), traçamos durante o segundo capítulo um olhar sobre o filme a partir da análise
fílmica, refletindo sobre a linguagem linguagem cinematográfica aspectos como montagem,
edição, linearidade fílmica, e, sobretudo a respeito do entendimento da obra como gênero
cinematográfico, inserida em um contexto simbólico como expressão de uma sociedade e de
um tempo, que se relaciona com outras estéticas e linguagens, e também está situada dentro
da evolução histórica da sétima arte.
É dentro desse mesmo capítulo, a partir dos conceitos narratológicos de modo e da voz
(GENETTE, 1980), relacionando o filtro de informação, o direcionamento do foco narrativo e
o conhecimento do narrador no discurso cinematográfico, que este trabalho fundamenta seu
apoio teórico para avaliar características narrativas presentes em O homem que copiava. De
maneira a observar a utilização dessas soluções interferem na produção de sentidos da obra e,
sobretudo, na relação entre espectador e filme. Ainda para acrescentar nos estudos
propriamente narrativos, encontramos em Ligia Chiapinni (1989) e em Alfredo Leme de
Carvalho (1981), conceitos importantes sobre a utilização da voz-over em monólogo interior,
e fluxo de consciência, possibilitando desdobramentos fundamentais na percepção da
instauração da focalização interna no filme.
No terceiro capítulo trazemos discussões sobre a questão da pós-modernidade. A partir
dos estudos traçados por Linda Hutcheon (1991), percebemos o processo de fragmentação de
estruturas sociais, e, por conseguinte da emissão da informação sem alternativa, oriunda de
apenas uma verdade, transformando o processo comunicacional mais difuso, no qual o
conhecimento é repassado em doses menores, de emissores variados e por diversas
linguagens. Tal contexto pós-moderno é referenciado no filme, na medida em que o acesso
fragmentado a informação pelo protagonista vai aos poucos construindo sua identidade
cultural, formulando seu imaginário, e sua construção como sujeito perante o meio e as
interações sociais (HALL, 2006).
O último capítulo apresenta uma ‘visão geral’ do filme, levantando e apontando
aspectos da história, realizando um processo interpretativo do longa-metragem a partir de um
olhar de identificação entre ficção e realidade. Neste trecho do trabalho é observada a maneira
como o protagonista se situa na narrativa, tecendo seu ponto de vista, desde sua autodescrição
no filme, até sua forma de interação social, na medida em que apresenta com meticulosidade
ao espectador sua relação com a família, com o dinheiro, com o trabalho, com as leis, com o
mundo e com Sílvia. Outras características são apresentadas neste trecho do trabalho, como a
utilização intensa de hipertextos, fazendo com que cada informação remeta a outras e outras,
assim como estabelecendo o diálogo com outras obras do cinema, da música e da literatura.
Também tratamos do embate ético sugerido pelo filme, levantando questões sobre o
protagonismo do ser humano como fazedor de sua história, capaz de se auto legislar, perante
um sistema social que lhe mina alternativas.
Alguns aspectos conceituais também são observados neste capítulo como a utilização
da bricolage, como recurso de colagens de texturas, gêneros e fragmentos diferentes com o
objetivo de ressignificação simbólica na caracterização da montagem fílmica. Da mesma
forma, atentamos para a construção do narrador pós-moderno (SANTIAGO, 1989), ao
perceber André como um observador do mundo, de uma sociedade que não o representa nem
o insere como ser participante. Também entendemos a importância de situar o filme dentro da
estética dos romances picarescos espanhóis, reconhecendo na categoria da personagem
cinematográfica o ponto chave da narrativa, na medida em que o filme, assim como as obras
espanholas, colocam a constituição do pícaro (André) como uma consequência social,
refletindo e discutindo signos importantes dos valores morais das sociedades nos quais eles
estão inseridos.
CAPÍTULO I
O homem que copiava
1.1 A história
O homem copiava é o segundo longa-metragem produzido e realizado pela Casa de
cinema de Porto Alegre, produtora de cinema, fundada em dezembro de 1987 por um grupo
de onze cineastas gaúchos. Lançado em 2003, com direção e roteiro assinados por Jorge
Furtado, o filme é ambientado na capital do Rio Grande Sul, e traz a história de André, um
jovem gaúcho pobre que trabalha numa loja do subúrbio como operador de fotocopiadora.
Sem muito amigos e distante de uma vida social intensa, ele mora com a mãe que passa o dia
em casa assistindo televisão, vivendo uma vida conformada com hábitos caseiros. Para fugir
do contexto social em que está inserido, sua condição de pobreza que impõe limites a seus
projetos, André utiliza de sua imaginação para criar sua própria versão da realidade. Entre
uma xerox e outra, o jovem vai capturando das cópias fragmentos de informações: pedaços
de textos, trechos de poemas, frases pela metade, figuras e fotografias. Tudo é levado para seu
quarto e colado na parede, ou reaproveitado em seus desenhos, na tentativa de criar realidades
fantasiosas na qual prefere estar. O cômodo é um refúgio, uma tradução do seu imaginário
cheio das imagens as quais ele tem acesso diariamente na atividade como fotocopiador.
Quando não está no trabalho, André está no seu quarto criando suas ilustrações e
espionando os vizinhos pelo binóculo que lhe custou meses de prestação. É nessa “pescaria”,
(como ele mesmo chama), observando curiosamente a vida alheia pela sua janela, que o
jovem ‘conhece’ Sílvia, garota do prédio vizinho pela qual ele acaba nutrindo um amor
platônico ao acompanhar seus hábitos domiciliares diariamente. Os detalhes da vida da moça
são construídos a partir da espionagem atenta de André pela fresta da janela quase toda
decorada com papel. Ele descobre que ela também é pobre, pois reside com seu pai num
apartamento pequeno como dele, e imagina que ela estuda, pois chega sempre tarde da noite
com livros na mão.
O sentimento pela vizinha leva o jovem para além da espionagem. Decidido a
conhecê-la, ele segue a moça e descobre que ela trabalha como balconista numa loja de
roupas. Se fingindo de cliente, André finalmente conhece seu amor platônico. Descobre que
seu nome é Sílvia, e inventa um álibi de estar ali ao procurar um presente para sua mãe, que
depois ele voltaria para comprar. André volta com o intuito de convidá-la para a inauguração
de um bar, porém, desajeitado, tímido e sem dinheiro para comprar o presente da mãe, sai em
retirada sem mesmo realizar o convite para Sílvia.
Depois de ir à inauguração com sua colega de trabalho, Marinês, e o amigo dela,
Cardoso, André encontra Sílvia dentro do ônibus voltando para casa. Desajeitado como
sempre, e sem saber o que dizer, o jovem acaba falando que vai voltar na loja até o fim
semana para comprar o presente para a sua mãe. É nesse momento que o incentivo, a mola
propulsora que desencadeará as demais ações do filme se instaura. André não tem o dinheiro
para comprar a peça de roupa, logo não teria pretexto para encontrar com sua amada.
Desesperado, o jovem procura Cardoso, que parecia bem de vida no ramo de antiquidades,
mas na verdade é um vendedor de objetos velhos, sendo tão pobre quanto ele. Ao voltar para a
papelaria, já desistente, André recebe um presente da sorte ao perceber que a antiga máquina
copiadora foi trocada por uma nova que faz cópias coloridas. É aí que surge a primeira ideia
“criminal” do personagem de falsificar notas de cinquentas reais. Com uma empreitada bem
sucedida, André volta para a loja, agora já confiante e determinado, e compra o presente para
sua mãe. Ele e Sílvia se aproximam, passam a almoçar juntos em um restaurante da região e a
caminhar pelo porto antes de voltar para o outro horário de expediente. Trocam presentes e
possuem o mesmo desejo de sair daquela cidade e mudar de vida. André imagina-se pedindo a
jovem em casamento, mas, lembrando-se da sua condição financeira, desiste
embaraçosamente.
Para comprar um presente novo para sua amada – uma caixinha na loja de Cardoso,
André volta a falsificar. O amigo descobre o esquema e os dois ampliam as falsificações. Com
o dinheiro das notas falsas trocadas nas lotéricas, o jovem compra uma cortina japonesa para
dar a Sílvia. Com o objeto implantado, agora ele pode espiar tudo que acontece no quarto da
moça com seu binóculo. É neste novo contexto que André descobre a natureza incestuosa do
pai da vizinha, que a observa enquanto ela toma banho, e ainda retira dinheiro da sua bolsa.
Completamente atordoado e furioso, André resolve radicalizar e começar uma nova vida junto
a Sílvia em outra cidade.
Nessas condições, André e Cardoso planejam um assalto ao carro forte do banco perto
da casa do jovem, do qual ele sabe todos os padrões de horário de funcionamento. Para
efetivar o segundo crime, ele compra com as notas falsas uma arma a um amigo marginal. No
dia em questão, para surpresa de André, o vigia do carro-forte é o pai de Síliva, que acaba
levando um tiro na perna durante o assalto. Mesmo com o delito bem sucedido, a sorte acena
mais uma vez para André o premiando com o bilhete sorteado da mega-sena com a sequência
01, 02, 03, 04, 05 e 06, em um dos jogos que ele fez na lotérica quando precisou trocar as
notas falsas.
Milionários pela sorte e pelo crime, André, Cardoso e Marinês – responsável por
retirar o dinheiro da premiação da loteria e já ciente das picaretagens, se esbaldam num
frisson de consumo e ostentação material, gastando o dinheiro com carro importado,
hospedagem em suíte de hotel de luxo, roupas de marca etc.
Entretanto, os problemas do jovem ainda não estão resolvidos. O pai de Sílvia
reconhece André como o assaltante do carro-forte e quer uma parte do dinheiro. Além disso,
Feitosa, o marginal que vendeu a arma para o crime ao carro forte, sai da cadeia depois ter
sido pego com as notas falsas, e também quer uma parte da grana. Nesse meio tempo Sílvia
revela que sempre soube que era espiada. O casal conversa, coloca tudo as claras e se
entendem. André quer entregar o dinheiro ao pai de Sílvia, mas ela não deixa, dizendo que até
mesmo duvida que ele seja seu pai, e que prefere matá-lo para se livrar de uma vez por todas
das chantagens. Antes do assassinato de Antunes (pai de Sílvia), do qual Marinês e Cardoso
também participam, André prepara uma armadilha para assassinar Feitosa depois de tentar
enganá-lo dando uma bolsa cheia de papel, e não dinheiro, em um local em que eles
costumavam se encontrar.
O filme chega ao final nos pés do Cristo Redentor, cartão postal do Rio de Janeiro,
onde os dois casais querem apagar seus passados de pobreza e submissão para construir uma
nova vida. Na última sequência, Sílvia encontra-se com um antigo namorado da sua mãe, que
é um artista interpretado por Paulo José, e que substituirá a imagem de Antunes como pai. Em
uma carta direcionada a ele marcando o ponto de encontro no Cristo, a moça nos revela o
conhecimento de toda a espionagem de André, desde o primeiro instante, e como atuou
perante as investidas do jovem para conseguir seu objetivo de sair daquela cidade ao seu lado.
E assim termina o filme no maior cartão postal do país, com a revisão dos fatos pelo
olhar do Sílvia, com os casais unidos pelos acontecimentos para trás em Porto Alegre, e a
esperança de iniciar uma vida nova.
1.2 O diretor: Jorge Furtado
O diretor e roteirista gaúcho Jorge Furtado é um importante cineasta brasileiro. Suas
obras trazem de modo geral uma assinatura irreverente, usando a comédia ácida, junto às
discussões sociais como marcas de sua arte. Além de apresentar o domínio técnico do trato
audiovisual, Furtado é notoriamente conhecido por “fazer literatura” no cinema, tendo na
construção dos seus roteiros, com histórias intrigantes, a expressão de seus melhores recursos.
O cineasta iniciou sua carreira no início dos anos oitenta trabalhando na produção de
programas e jornais da Tv Educativa do Rio Grande do Sul, onde poucos anos depois criaria o
programa “Quizumba”, misturando ficção e documentário. Até o início da década de noventa,
Furtado começou seu trabalho cinematográfico com a produção de curtas metragens.
Temporal (1984), O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), Barbosa (1988), Ilha das
Flores (1989), e Esta não é a sua vida (1991), foram os primeiros curtas, inserindo Furtado
no espaço cinematográfico. Durante este período, ele também produziu peças de teatro, e
caminhou por outras estéticas, como a publicidade, dirigindo dezenas de comerciais para a
televisão.
Os trabalhos para a televisão continuaram intensamente, se tornando até hoje o maior
campo de atuação de Furtado. O diretor foi roteirista, e algumas vezes também diretor, de
programas especiais, séries e minisséries importantes da tevê brasileira como Memorial de
Maria Moura (1994), A comédia da vida privada (1995), A invenção do Brasil (2000), Os
Normais (2001), Cena Aberta (2003), Cidade dos Homens (2003), e Decamerão – A comédia
do Sexo (2009).
As incursões de Jorge Furtado como diretor e roteirista de longas metragens
começaram em 2002 com o filme Houve uma vez Dois Verões (que tem no título a alusão ao
filme americano de 1971, Houve uma vez um verão do diretor Robert Mullingan). Em 2003,
Furtado lança seu longa metragem mais premiado, O Homem que copiava, seguindo de Meu
tio matou um cara (2004), e finalmente, o seu último longa lançado, Saneamento básico, o
filme (2007). Atualmente o cineasta gaúcho encontra-se em fase de produção e filmagens do
seu quinto filme, chamado Beleza. Furtado também contribui intensamente como roteirista
para outros filmes brasileiros, a exemplo de Caramuru – A invenção do Brasil (2001),
Benjamim (2003), Lisbela e o prisioneiro (2003), O coronel e o lobisomem (2005), Romance
(2008) e Antes que o mundo acabe (2010).
Com uma vasta produção em diferentes linguagens do audiovisual, atuando não só
como roteirista, mas também como produtor e diretor, Jorge Furtado se situa como um
importante cineasta brasileiro do cinema de retomada, trazendo consigo a marca da
originalidade nas histórias, e na predileção em falar e tratar sobre as pessoas, sobre os seres
humanos e suas relações sociais. Esta é uma constante em suas obras, ainda que estas possam
ser caracterizadas por diferentes abordagens, ou por distintos recursos técnicos ou narrativos.
Ilha das Flores (1989), por exemplo, é um marco na história da curta metragem brasileira,
trazendo uma intensa colagem de imagens e hipertextos, recursos até então pouco utilizados
no cenário cinematográfico nacional, dentro de uma “armadilha” cômica para tratar de
assuntos sociais sérios, como o lixo, a desigualdade social, a animalização do ser humano, e a
crítica ao sistema capitalista. Já no curta metragem O sanduíche (2000), Furtado ‘abusa’ da
metalinguagem, da mesma maneira que volta a trabalhá-la em Saneamento básico, o filme
(2007), que já é completamente diferente de Esta não é a sua vida (1991), em que a estética
documental é predominante, ou mesmo da temática juvenil trazida em Houve uma vez dois
verões(2002). Enfim, esses são alguns exemplos dos trabalhos do cineasta gaúcho, passando
por diferentes estéticas e texturas, trabalhando com vários gêneros, experimentando recursos
narrativos diversos, sem perder o fio condutor de evidenciar as relações sociais e as facetas da
sociedade em seus filmes.
Entretanto, é em O homem que copiava (2003), que o diretor gaúcho reúne gêneros,
linguagens e texturas diferentes para contar a história de André, um anti-herói concebido em
uma sociedade pós-moderna, onde a informação é repassada de maneira fragmentada e difusa,
e na qual o modelo de desenvolvimento econômico e social é pensando para as elites,
condenando os pobres a impossibilidade de ascensão social ou sugerindo na transgressão das
leis a saída para a liberdade e para o gozo dos desejos pessoais. É sobre esse objeto fílmico
que este trabalho se debruça, apresentando uma olhar analítico sobre obra, avaliando desde
características narrativas até recursos utilizados no trato audiovisual, assim como assinalando
interpretações sobre o conteúdo simbólico do longa-metragem.
CAPÍTULO II
Análise Fílmica
2.1 Pontos da linguagem Cinematográfica
Ao começar nossos estudos cinematográficos, antes mesmo de adentrar nos aspectos
narrativos específicos, nos debruçamos sobre o procedimento de análise de um filme, cientes
de que cada obra é um vasto universo simbólico, composto de questionamentos, mensagens,
incitações, reflexo do mundo perceptivo pessoal dos realizadores, e artisticamente,
demonstração de um imaginário social coletivo. Portanto, a fim de avaliar os componentes
ficcionais do objeto fílmico em questão, nos apoiamos, inicialmente, no livro Ensaio sobre
análise fílmica de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété.
analisar um filme não é mais vê-lo, é revê-lo, e mais ainda, examiná-lo
tecnicamente. Trata-se de outra atitude com relação ao objeto-filme, que,
aliás, pode trazer prazeres específicos: desmontar um filme, é, de fato,
estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme for realmente rico,
usufruí-lo melhor ( VANOYE ; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.12).
Um filme é fruto de um processo industrial e técnico, imagem da sociedade, da cultura
e das relações sociais existentes durante sua produção. O cinema então, como arte que é, tem
como objetivo retratar “a antinomia entre o real e o sonho, entre a realidade e a verdade” que
é “a fonte inesgotável de toda criação artística”(BETTON, 1987, p.9 -10). Por isso para
obtermos a melhor análise cinematográfica entendemos que
um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio-
histórico. Embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte (com
relação a produtos culturais como a televisão ou a imprensa), os filmes não
poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da sociedade que os
produz (quer se trate da economia, quer da política, das ciências e das
técnicas, quer, é claro, das outras artes) (VANOYE ; GOLIOT-LÉTÉ, 1994,
p.54).
No livro A estética do cinema, Gérard Betton fala sobre a montagem ideológica como
aquela “que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista”. Desta
maneira, um determinando encadeamento e justaposição dos planos pode sugerir alguma ideia
ou exprimir algo que não existe com os planos desencadeados. “O conjunto é superior à soma
das partes” (BETTON, 1987, p.74). Nesse sentido, no filme em questão, podemos analisar na
narrativa, questionamentos de ordem política e ideológica no que diz respeito à vinculação
dos sentimentos dos personagens às suas condições financeiras. No filme com frequência há
trechos onde vê-se angústia e decepção relacionadas à falta de dinheiro dos personagens, e a
felicidade e a conquista, ligadas ao sucesso na obtenção de dinheiro. A partir deste aspecto, já
vemos o interesse da obra em expor a vitrine pós-moderna da sociedade em que o capital já é
muito ligado à convivência humana, indicando, por recursos narrativos, a interferência desse
contexto social nas ações de André e de seus amigos durante o filme.
A edição do filme é bastante trabalhada, os planos revezam-se rapidamente gerando
uma grande variedade de estímulos no espectador, refletindo o estado de André, que só é
capaz de obter informação por intermédio de trechos das cópias que faz no trabalho. Pedaços
de textos, fotografias, desenhos e poemas; a informação absorvida por partes, captada por
vídeo, animação e cinema causa um efeito de fragmentação na trama sem perder a coerência
narrativa. Este recurso da técnica cinematográfica se coloca como ratificador da mensagem da
construção do homem pós-moderno, que não possui mais uma identidade, única, indivisível,
fixa, segura, concebida desde seu nascimento até sua morte, e sim, daquela deslocada, volátil
as interjeições do mundo, das variações sociais que de alguma forma lhe atingem, gerando
esse sentido de identidade fragmentária, expressa por essa metáfora dos fragmentos de
informações que André tem acesso ao executar sua atividade diária, como operador de
fotocópias. Seu trabalho é sua fonte de informações, ainda que estilhaçadas, a partir das
cópias que tira de livros de outras pessoas. Alguns casos comprovam essa característica na
obra, quando, por exemplo, o protagonista tem contato com um trecho do soneto 12 de
Shakespeare, ou um livro sobre a doutrina Roosevelt, e até mesmo com informações sobre
decoração interna de casas de pessoas ricas.
O filme se utiliza da colagem de outros gêneros da arte, possibilitando uma boa
montagem rítmica, tendo esta como “a coincidência entre a duração de cada plano e os
movimentos de atenção que ela suscita e satisfaz” (BETTON, 1987, p.72). O ritmo
cinematográfico também é garantido pelos diálogos inteligentes, rápidos e às vezes sutilmente
engraçados entre os quatro componentes da trama, que “provocam a ação, correspondendo
perfeitamente ao caráter, ao temperamento, à personalidade íntima e à sensibilidade do ato”.
(BETTON, 1987, p.43).
Em A estética do cinema Gérard Betton nos diz que “o cinema tem o poder de
transmutações universais”; o autor se refere ao poder que a sétima arte possui em controlar o
tempo em suas narrativas. Inúmeros são os recursos utilizados como voltar ao passado, ou
mostrar o futuro, comprimir dias em minutos ou multiplicar segundos em eternidades. O uso
desses artifícios de modulação do tempo interfere na montagem narrativa do filme, que é
“utilizada para contar uma ação através da reunião de diversos fragmentos de realidade cuja
sucessão se destina a formar uma totalidade significativa”. Em O homem que copiava nos
deparamos com uma montagem invertida, pois a ordem cronológica não é totalmente
respeitada. Na cena em que Sílvia traz o conceito da palavra “hirsuta” para André, o
personagem pede a mão da moça em casamento e eles se beijam, mas a cena volta, se repete,
e dessa vez André só diz “obrigado”, mostrando uma imagem futura, um desejo da
imaginação do protagonista que não aconteceu. Portanto, o cinema “tem total liberdade para
brincar com o tempo: pode condensá-lo, esticá-lo, desacelerá-lo, acelerá-lo, invertê-lo,
imobilizá-lo, subvertê-lo ou valorizá-lo.” (BETTON, 1987, p.28).
2.2 A imagem de quem diz: Focalização
Toda a narrativa do filme em questão é conduzida pela ótica de André. Seus
pensamentos sobre sua realidade, o ditar de suas atividades e seus julgamentos sobre os atos e
as pessoas no espaço diegético direcionam todo o filme, selecionando o que pode ser visto ou
não na narrativa, interferindo e censurando o fluxo de informação.
O estudo do conceito de Modo narrativo, de Gérard Genette, indica que as narrativas
possuem maneiras diferentes de serem contadas, podem “manter-se a maior ou menor
distância daquilo que contam”, constituindo a distância, e podem ser direcionadas por um
ponto de vista, por um foco, seja de um personagem ou não, instaurando a perspectiva. Esse
dois conceitos são “as duas modalidades essenciais dessa regulamentação da informação
narrativa que é o modo”.
o segundo modo de regulação da informação, que procede da escolha(ou
não) de um ponto de vista restritivo – é questão que foi, de entre todas as
que respeitam à técnica narrativa, a mais frequentemente estudada depois do
fim do século XIX, com resultado dos críticos incontestáveis, como os
capítulos de Percy Lubbock sobre Balzac, Flaubert , Tolstoi ou James, ou o
de Georges Blin sobre as restrições de campo em Stendhal (GENETTE,
1980, p.183).
Encontramos dentro desse espectro teórico, uma evolução de conceitos para designar a
filtragem da narrativa pelo olhar do protagonista, caso que ocorre em O homem que copiava.
No livro, O tempo no Romance, o autor Jean de Pouillon busca, inspirado em Sartre, uma
teoria das visões da narrativa relacionadas ao tempo. “Para ele haveria três possibilidades na
relação narrador-personagem: a visão com, a visão por trás, e a visão de fora”. (LEITE, 1989,
p.19).
o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre
os acontecimentos. Renunciando à visão de um Deus que tudo sabe e tudo
vê( e aquém, fatalisticamente, se submete o destino dos seres ficcionais,
como o destino dos seres reais para a visão cristã), assume-se aqui a plena
liberdade da criatura jogada no mundo, capaz de, sartrianamente, assumir o
nada pra ser (LEITE, 1989, p.20).
Buscando a melhor compreensão para o processo de direcionamento da narrativa a
partir de um único ponto de vista, o do narrador, descobrimos na tipologia de Norma
Friedman o conceito de narrador-personagem, considerando, portanto, uma das partes da
tipologia de Todorov em que o narrador é igual a personagem, ou seja, o narrador apenas diz
aquilo que certa personagem sabe. Nesse caso “o narrador central não tem acesso ao estado
mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado e quase que
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos” (LEITE, 1989, p. 43), tal
como André que não sabe o que se passa na cabeça de Sílvia, menina que ele espiona por seu
binóculo todas as noites.
Como propõe Gérard Genette, para evitarmos “aquilo que os termos de visão, de
campo e de ponto de vista têm especificamente visual”, retomaremos “aqui o termo um pouco
mais abstracto de focalização” (GENETTE, 1980, p.187). Esta análise fundamenta-se neste
conceito, e nas suas ramificações, para melhor entender o direcionamento do fluxo de
informação contido no O homem que copiava. Especificamente em uma das vertentes da
tripartição feita por Genette, que diz respeito à focalização interna do discurso narrativo, ou
seja, “quando a narrativa está restrita àquilo que pode saber o personagem (...) Isso pressupõe
que o personagem esteja presente em todas as sequências do filme ou que diga como obteve
as informações” ( GAUDREAULT ; JOST, 2009, p.177). Portanto, a focalização interna está
presente na obra, direcionando a narrativa sob a perspectiva interna de André como narrador-
personagem, fazendo-nos conhecer até mesmo seus pensamentos e sua forma de ver a vida e
as pessoas que convivem com ele no espaço ficcional, por via das ações comentadas em voz-
over.
2.3 Focalização Interna, Monólogo Interior e Fluxo de Consciência
Percebemos a possibilidade de rendimento do conceito de focalização na abordagem
do filme, lembrando quando Gérard Genette nos diz que a narrativa pode ser guiada por um
ponto de vista, ou seja, que possui uma focalização. Esta pode ser de caráter interno, quando
quem detém a focalização é um personagem que faz parte da história, ou pode ser externo,
quando as ações são descritas pelo narrador heterodiegético, aquele que está fora do universo
ficcional.
Logo depois dos créditos iniciais, André começa a mostrar o seu mundo, de maneira
bem descritiva, engraçada e crítica. O jovem fala sobre seu trabalho, a maneira como executa
sua máquina de fotocópias, o jeito do seu patrão, da família do patrão, da vontade de ser
ilustrador, de todo o seu universo naquela cidade. Durante todo o filme, acompanharemos a
narrativa pelo ponto de vista do personagem, restringindo as informações do campo ficcional
a sua visão. Temos na obra, portanto, um foco narrativo interno sendo direcionado por um
narrador-protagonista, o “herói” que conta sua história.
Com uma linguagem narrativa bastante complexa, a obra possui a utilização intensa do
fluxo de consciência para legitimar a focalização interna, dando ao espectador acesso aos
pensamentos de André. Todas as ações em primeira pessoa fazem parte da escuta da
consciência do protagonista, através do recurso da voz-over, com a associação livre de ideias.
ANDRÉ (VS)
Eu trabalho nesta papelaria, sou operador de fotocopiadora. Aqui você liga e
desliga a máquina. Está vendo? Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga, desliga.
Não é bom ficar fazendo isto muitas vezes, pode queimar. Liga. Desliga.
ANDRÉ (VS)
É melhor parar, o Bolha acaba me vendo pelo espelho bolha dele. Ele diz que
o espelho é para a segurança da loja. O Bolha pensa que eu sou otário.
Considerando o que ele me paga, ele não deixa de ter uma certa razão. O nome
do bolha é seu Gomide. (FURTADO, 2003).
A linguagem coloquial utilizada na narrativa expressa como a voz-over, introduz o
espectador ao universo imaginário do personagem, gerando certa empatia do publico com o
herói. No decorrer do filme o espectador tem acesso as descrições da realidade da vida de
André, sente suas angústias perante a realidade de pobreza que ele vive, participa de sua
aventura para conquistar Sílvia, a falta de jeito para praticar os crimes, e presencia, por via de
seus pensamentos, seu amor juvenil por sua vizinha. Tudo mostrado de maneira lúdica e ao
mesmo tempo irônica, intercalando a colagem de fragmentos da vida de André com recursos
visuais de bricolage e artifícios de repetição para gerar humor. O produto fílmico consegue de
maneira sorrateira e insistente, gerar empatia do espectador com protagonista, suavizando um
possível julgamento da plateia para com o personagem na narrativa e facilitando a adesão ao
mesmo.
O recurso utilizado na obra se configura na linha do que Alfredo Leme de Carvalho
assinala como sendo “a especialização de um determinado modo do foco narrativo.
Poderíamos definir o método com a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se
passa na consciência” do personagem. Portanto, a colocação dos pensamentos de André na
narrativa se mostra como tudo aquilo que o protagonista não verbalizou na diegese, como se
estivesse dialogando consigo mesmo, daí o termo monólogo interior, sendo este “a
apresentação direta e imediata, na literatura narrativa, dos pensamentos não falados de um
personagem, sem a intervenção do narrador” (CARVALHO, 1981, p.50 - 53). Este recurso é
discutido como uma das formas de caracterização do fluxo de consciência, e é utilizado na
obra em questão com minuciosa habilidade pelo diretor, enfatizando a centralidade da
informação (focalização) no protagonista do filme. “A focalização interna só se encontra
plenamente realizada na narrativa em monólogo interior” (GENETTE, 1980, p.191). O filme
revela ao público o que se passa na mente de André, mostrando seus problemas, suas poucas
certezas, mas também suas fantasias, seu imaginário rico e lúdico, fisgando o espectador
como um confidente de sua consciência
O filme de Furtado inscreve-se no rol da narrativa moderna que, através de
técnicas subjetivantes embebem a narração do enredo em vivências líricas e
inserções reflexivas, impessoais, que estão para além (ou aquém) da ação. A
complexidade narrativa de O homem que copiava deve ser analisada sob esse
prisma da riqueza de vozes orquestradas no monólogo interior de André, que
domina toda a longa apresentação do filme e depois continua pontuando a
ação (SARAIVA: 2006, p. 96)
Apesar de encontrarmos em O homem que copiava uma primorosa utilização da
focalização interna,[uma utilização bastante exata da focalização etc; pode ser bastante
produtiva, ou bastante rentável, mas primorosa tá jornalístico demais] compreendemos que
“o partido tomado pela focalização não é necessariamente constante em toda a extensão
narrativa”, pois “a fórmula de focalização nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra,
portanto mas antes um segmento narrativo determinado”(GENETTE, 1980, p. 189).
Reconhecemos no roteiro da obra a inserção de uma focalização externa, em terceira pessoa,
por um narrador não participante que revela conhecimento apenas dos fatos exteriores, ou
seja, se trata de uma narrativa de onisciência neutra externa, conceito desenvolvido por
Cleanth Brooks, Penn Warren e Norma Friedman (LEITE, 1989).
CENA 56 - FRENTE DO PRÉDIO DE SÍLVIA - EXTERIOR/DIA
Sílvia sai do prédio, apressada. André a segue de longe. Ela corre para a
parada de ônibus. Ele a segue (FURTADO, 2003).
Quando uma narrativa possui infrações ao regime de focalização que até então vem
sendo utilizado na obra, ou seja, quando há um furo em relação a restrição do campo ficcional
predominante, é possível que algumas alterações ocorram. Genette em O Discurso da
narrativa classifica essas alterações como paralipse e paralepse. A primeira delas é “a
omissão de certa ação ou pensamento importante do herói focal, que nem o herói nem o
narrador podem ignorar, mas que o narrador prefere esconder do leitor” (GENETTE, 1980,
p.94), enquanto a segunda se trata justamente do inverso: mostrar um excesso de informação
em relação ao que o regime de focalização possibilita.
Nos últimos dez minutos do filme, o filme, como um grande truque narrativo para
surpreender o espectador, apresenta uma paralepse, trocando a focalização interna da
narrativa, que até então se encontrava posicionada por André, para Sílvia. Tudo que até o
momento se mostrava como “observado” passa a ser “observador”. Agora, o público tem a
acesso ao fluxo de consciência da personagem, descobrindo a sua versão de ser espionada
pelo protagonista. Os acontecimentos descritos por André se refazem pela ótica de Sílvia num
flashback rápido e revelador de informações que o jovem jamais soube. A espionagem pela
janela, a perseguição na rua, o diálogo na loja de roupa, o almoço na lanchonete. Tudo é
refeito com os passos e opiniões da personagem, um ineditismo para tudo que já parecia feito,
esgotado e dito. Mais uma vez temos o monólogo interior utilizado com a voz-over, agora
pelos pensamentos de Sílvia, escritos numa carta que ela envia para o ex-namorado da sua
mãe, que a encontra no Rio de Janeiro.
SÍLVIA (VS)
A primeira vez que eu vi o André ele estava me espiando da janela do quarto
dele. Eu fui até a sala, no escuro, e vi que ele estava na janela, de binóculo,
olhando para o meu quarto.
CENA 192 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE
Sílvia em seu quarto, desfila de calcinha e sutiã.
SÍLVIA (VS)
Voltei para o quarto, abri uma fresta na janela, botei uma calcinha nova e
passei na fresta, bem devagar. Depois corri para a sala para ver se ele tinha
visto. Ele tava durinho na janela. (FURTADO, 2003).
Essa paralepse que é “uma informação incidente sobre os pensamentos de uma
personagem que não a personagem focal, ou sobre um espetáculo que ela não pode ver”
(GENETTE, 1980), tem o poder de delimitar o conceito do foco narrativo, comprovando que
quando uma narrativa é inteiramente guiada por um ponto de vista, outro universo de
informações da ficção se omite.
2.4 Quem fala: A voz narrativa
No Dicionário da teoria da narrativa, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, apresentam a
terceira categoria do discurso da narrativa, a voz :
(...), para Genette, as questões ‘que respeitam à maneira como se encontra
implicada na narrativa a narração [...], isto é, a situação ou instância narrativa
e com ela os seus dois protagonistas’ (GENETTE, 1972,p.76) a que
chamamos narrador e narratário.” (REIS E LOPES, 1988, p.141).
Ao saber que Genette faz a distinção entre focalizador e narrador, e já trabalhada a
conceituação do primeiro aspecto na obra em questão, nos coube caracterizar a natureza
ficcional de “quem fala”, ou seja, a escolha do ficcionista em fazer contar uma história por
uma das personagens ou por um narrador estranho à história. Por se tratar de uma narrativa
que altera o seu ponto focal, que ora se passa como interna e ora se passa como externa, temos
em O homem copiava duas formas de narrador.
A expressão narrador autodiegético (...) designa a entidade responsável por
uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da
história relata suas próprias experiências como personagem central dessa
história. (Reis e Lopes, 1988, p.118) (...) A expressão narrador heterodiegético
(...) designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata
uma história à qual é estranho, uma vez que não integrou como personagem, o
universo em questão (REIS E LOPES, 1988, p. 121).
Em O homem que copiava, por mais que a posição de quem conta a narrativa seja
alterada no transcorrer do filme, o ponto de vista, que regula o fluxo de informação, é quase
sempre o de André. Exceto na última sequência de cenas, quando Sílvia revela saber toda a
espionagem do protagonista, atuando como desentendida para ficar com ele e fugir da cidade.
O narrador autodiegético, aquele que relata por uma visão interna da história, se concretiza
logo nos primeiros vinte minutos do filme, quando André começa em monólogo interior a se
autodescrever e relatar sua vida, apresentando seu trabalho, seu orçamento, sua condição
familiar, suas atividades noturnas e Sílvia. A partir daí, na medida em que a personagem
principal começa a interagir socialmente, e os outros personagens passam a ter mais
importância e aparição no filme, é que a caracterização do narrador torna-se heterodiegético,
não se situando como partícipe da história, ainda que a narrativa permaneça focalizada pelo
ponto de vista de André, estabelecendo a diferença entre de quem parte o foco narrativo e
quem está narrando.
Ainda que grande parte do tempo fílmico seja contada por um narrador
heterodiegético, surgem no decorrer da narrativa várias intervenções de André como narrador
autodiegético, descrevendo cenas em primeira pessoa, revelando uma opinião, trazendo um
pensamento solto em fluxo de consciência, ou se explicando de alguma atitude tomada. A
narrativa só volta a ser completamente apresentada de maneira interna, contada por algum
personagem, no desfecho da obra, quando, semelhante a André em seu prólogo, Sílvia revela
para o espectador todo o conhecimento sobre a espionagem do protagonista, a perseguição até
a loja de roupas, e as incursões tímidas do operador de fotocopiadora para comprar um
presente para a mãe.
Temos, portanto, nos momentos em que o monólogo interior se instaura, seja com os
pensamentos de André ou de Sílvia, um narrador autodiegético, que não só está inserido como
personagem na diegese, mas também se caracteriza como o “herói”. Já nos momentos em que
a história se apresenta onisciente, em terceira pessoa, o narrador é considerado
heterodiegético, pois não participa nem participou da história. Apenas observa os fatos e os
descreve de fora da narrativa.
CAPÍTULO III
Pós-modernismo
3.1 A poética pós-moderna
Um conjunto de características estéticas, e por que não dizer simbólicas, caracterizam
obras artísticas em gêneros, escolas, classes e conceitos, dentro de um período histórico
preciso da sociedade. É certo que a instituição dos parâmetros que regem esse procedimento
de enquadramento dentro de um campo específico está influenciada por uma variedade de
fatores referentes ao contexto econômico, social, político e intelectual de um tempo. Mais
certo ainda é deduzir que a classificação que coloca dentro de um mesmo bojo obras com
assinaturas parecidas foge muitas vezes de uma linearidade temporal, de um julgamento
universal e de uma aceitação por diferentes camadas sociais. Em se tratando da pintura, por
exemplo, podemos ter um quadro feito na década de sessenta que se enquadre na escola
impressionista, e outro da década de oitenta que também esteja classificado na mesma escola,
ainda que reconhecido como arte em uma cultura e subproduto em outra. Neste sentido, se
entende que a conformação de segmentações dos gêneros é fundamental para organização
simbólica dos produtos artísticos, assim como de grande importância para apreciação
intelectual das obras.
Depois de colocado este preâmbulo, e trazendo o direcionamento para o cinema,
podemos afirmar, em linhas gerais, que quando assistimos a um filme, não é muito difícil
saber em que gênero ele se enquadra. Terror, suspense, aventura, ficção científica, romance
ou policial, são, na maioria das vezes, assinaturas fáceis de detectar em obras
cinematográficas para a maioria dos consumidores da sétima arte. Entretanto, esta lógica
dedutiva não se aplica quando se está diante de uma obra pós-moderna, que figura entre a não
classificação, e a fusão de tudo que era antes classificável para se instaurar uma nova
categoria. Esse tipo de produto fílmico, que possui interligações de gêneros – suspense,
policial, comédia, reunindo diversas temáticas e estilos, são típicos filmes pós-modernos, nos
quais o fragmento é a imagem mais importante, que reunido a outros diferentes, forma outro
conceito.
Refratária a tentativas de definição, a estética pós-moderna nasce como uma forma de
derrubar todas as barreiras e conceitos, no desejo de gerar o ineditismo, revisitando o que já
foi cristalizado, unindo vozes que já foram ditas para gerar um discurso novo, simbolicamente
para as partes e para o todo.
Por ser contraditório e atuar dentro dos próprios sistemas que tenta
subverter, provavelmente o pós-modernismo não pode ser considerado como
um novo paradigma (nem mesmo até certo ponto da acepção Kuhniana do
termo). Ele não substituiu o humanismo liberal, mesmo que o tenha
contestado seriamente. No entanto, pode servir como marco da luta para o
surgimento de algo novo (HUTCHEON, 1991, p.21).
Surgida por convenção na década de cinquenta, quando se encerra o modernismo, a
escola pós-moderna traz em si características que se direcionam para a dúvida, a incerteza, a
instabilidade, ao que não é único, nem tampouco imutável. São traços desta estética, por
exemplo, a heterotopia (vários mundos em um só), o simulacro, a colagem estilística sem a
intenção de elogiar ou criticar, a alinearidade, a utopia, a anarquia, o desafeto, o confronto
moral e ético, a dualidade da razão e fé e outros caminhos controversos. “O pós-modernismo
é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos
que desafia” (HUTCHEON, 1991). Portanto, é dentro do âmbito da reutilização, da
fragmentação e da montagem de gêneros diferentes, que a linguagem pós-moderna se
conceitua no cenário cinematográfico, promovendo interações estéticas, desconstruções e
confrontos, e gerando mais dúvidas que respostas.
O caráter fragmentário presente na natureza pós-moderna representa e sugere um
esvaziamento de outras correntes de pensamento, a descentralização de pontos de vista até
então indissolúveis e norteadores, e a destituição de valores maniqueístas ligados a moral
humana. Ao mesmo tempo, reflete a maneira estilhaçada como a informação é repassada na
contemporaneidade, onde se recebe doses rasas e rápidas de conteúdo de diferentes
linguagens, advindas de diversos lugares, que podem ou não se complementar ou se
antagonizar. A identidade cultural da sociedade é, portanto, segundo a lógica pós-moderna,
concebida por picados de informação distintos que encontram consonância na complexa
formação da moral e da ética pessoal.
É nesta proposta estética de uso de colagens de gêneros diversos, da fragmentação de
informações e de simulações, que o filme brasileiro O homem que copiava se debruça,
trazendo para o cinema nacional versões e subversões da natureza humana, das relações
sociais, e uma proposta de reflexão sobre moralidade. O longa utiliza a natureza fragmentária
da informação na contemporaneidade para compor, de maneira lúdica, mas ao mesmo tempo
precisa, o imaginário simbólico do protagonista, e os desdobramentos que este processo
provoca na sua construção social e moral. O texto fílmico traz em sua concepção críticas
veladas a um sistema opressor e convidativo, ao mesmo tempo em que explana devaneios
coletivos de uma sociedade que foi doutrinada para o páreo entre o certo e o errado,
desconsiderando a formação de uma verdade empírica, que está à mercê de um julgamento
que foge a lógica humanista. Por essas características, e outras que falaremos mais a frente, o
longa-metragem se instaura como representante do cinema pós-moderno brasileiro, trazendo o
controverso à tona, deixando de maneira consciente a não assertividade como posição, e
levando o espectador a encontrar a sua verdade perante um mosaico simbólico posto
propositalmente.
3.1 O sujeito
O processo de surgimento do cenário pós-moderno está ancorado em uma realidade de
profundas transformações sociais. É neste panorama que “identidades modernas estão sendo
descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas (...) abalando a ideia que temos de nós
próprios como sujeitos integrados” (HALL, 2006). Interessante perceber a construção desta
nova identidade cultural, entendendo a fragmentação do sujeito moderno, que até então se via
unificado moralmente e socialmente, e que agora se depara com modificações que
descentralizam estruturas, conhecimento, desmistificando crenças, costumes e verdades.
(...) parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as
estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os
quadros de referência que davam aos indivíduos a ancoragem estável no
mundo social (HALL, 2006, pag. 7).
Neste sentido, o filme demonstra na criação do protagonista – André, a fragmentação
da identidade do sujeito e as consequências de suas ações perante uma sociedade que também
não está mais indivisível. No longa, André é operador de fotocopiadora (xerox), e seu
imaginário, seu conhecimento, é formado em certa medida a partir de pedaços de
informações que ele tem acesso em poucos minutos enquanto tira cópia de algum material. Há
neste aspecto uma metáfora precisa sobre a construção da identidade da personagem perante
um cenário pós-moderno, refletindo uma geração que “sabe um pouco de tudo, mão não sabe
muito de nada” 1·. O homem que copiava assinala esta relação do desenvolvimento da
identidade do sujeito nesta sociedade da informação picotada, emanada em doses rápidas
durante a troca de canais de uma vasta programação de Tevê a cabo, ou em leituras ligeiras
em páginas específicas da internet.
1 Jorge Furtado em entrevista concedida ao portal da revista Época. URL:
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT550012-1661,00.html
A construção do sujeito fragmentado, neste campo de transformações sociais, também
concede a personagem uma multiplicidade de identidades. Temos em O homem que copiava
diferentes imagens para o protagonista, que assume durante o filme diversas versões de si
mesmo. A criação de sua identidade é contínua, sempre em modificação, estando associada ao
seu acesso espaçado e discriminado às informações.
Sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo
que nossas identificações continuem deslocadas (HALL, 2006, p. 13).
Nestas imagens distintas e controversas de André, temos a timidez e a submissão do
operador de fotocopiadora que ganha dois salários mínimos2 trabalhando para seu Gomide,
em paradoxo com a ousadia de um criminoso que assalta um banco, chegando até a atirar no
segurança do carro-forte. Da mesma forma como a personagem se apresenta como um jovem
tranquilo, cândido, que se preocupa com a mãe e com as despesas da casa; em desacordo com
a figura fria e calculista que arquiteta o assassinato de Feitosa para se livrar da chantagem do
marginal.
A regra da identidade indivisível se destitui a partir das interações do sujeito nas
relações sociais – e aqui lembremos as modificações de atitude de André ao se deparar com
Sílvia, seu amor platônico que ele avista de binóculo pela janela da sua casa; e também do
acesso, ainda que parcelado e fragmentado, às informações.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não
tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se
uma celebração móvel. Formada e transformada continuamente em relações
as formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (HALL, 2006, p. 12).
É desta conformação de sujeito com diferentes formas e caras, que O homem que
copiava coloca em pauta questionamentos sobre a natureza do que é errado e o que é certo,
instaurando um olhar diferenciado para a transgressão social e para o julgamento alheio. O
filme não sentencia o crime como erro, nem como algo passível de punição, ao mesmo tempo
em que também não glorifica a ilegalidade. Os delitos cometidos por André para alcançar seus
desejos materiais, mudar de vida e conquistar Sílvia, são colocados, ainda que de maneira não
direta e clara, como uma saída plausível e acertada perante as opções oferecidas pelo sistema
2 A história é contada no ano de 2000, quando o salário mínimo era de R$151,00.
que lhe oprime. “Meus personagens são transgressores, sim, mas eu torço por eles e os
absolvo. Algumas pessoas tem o direito moral de transgredir como reação à opressões” 3. O
filme fustiga, portanto, ainda que sutilmente, uma revisão sobre a ética e a moral, e para além,
incita o questionamento sobre o protagonismo do sujeito em realizar seus desejos, traçar seus
caminhos, criar suas próprias leis e ser capaz de mudar o seu destino, mesmo que este já
pareça pré-determinado pela condição socioeconômica.
Figura 1. André e Cardoso na fuga depois do assalto ao carro forte.
De maneira geral, a ressignificação de atitudes baseada em valores éticos e morais
também é passada para o espectador. Da mesma forma que André não é punido por suas ações
na narrativa, o público também não o condena. Obviamente este trabalho não tem a pretensão
de determinar que fator provoca tal condição, sobretudo considerando a natureza subjetiva do
ser humano e a complexidade do estudos de audiência. Entretanto, um apontamento parece
colaborar para efetivação deste fenômeno.
Ele reside, como já dissemos, nas características narrativas da obra. A proximidade
entre espectador e personagem é assegurada pelo uso intenso de voz-over, em um monólogo
interior no qual André expõe seus pensamentos, dúvidas e emoções, ainda que estes pareçam
estar reservados somente a sua intimidade. O público é o confidente do protagonista, pois tem
acesso aos seus anseios, questionamentos e pretensões, e a esta altura já se identifica com suas
motivações. André está presente em todas as cenas da história, e com a focalização interna, o
fluxo da informação narrativa está filtrado somente pelo seu “olhar”. Pode-se dizer que o
espectador está “perto demais” para não sentir empatia pela personagem e nem torcer para
que suas atitudes sejam bem sucedidas, ainda que estas se direcionem para a criminalidade.
3 Jorge Furtado em entrevista concedida ao portal da revista Época. URL:
http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT550012-1661,00.html
As transgressões cometidas por André estão situadas dentro de um contexto social
desfavorável e opressor, do qual ele deseja se libertar. O filme constrói a compreensão da
sensação do personagem de uma prisão diária, fundada na impossibilidade da ascensão social
desejada, e a percepção de quanto os desejos são irrealizáveis. Por se tratar de uma
representação da realidade, a obra carrega a verossimilhança de uma sociedade como a
brasileira, com grande disparidade social, e enorme nível de midiatização massacrante, ao
divulgar valores e bens relacionados à ostentação material e a posição social, de tal forma a
interferir na vida das cidades e nas relações interpessoais. Portanto, O homem que copiava,
além de possibilitar uma aproximação que gera empatia, traz o espectador mais perto para
assinalar aspectos de uma sociedade mergulhada no consumo, ditada por símbolos de poder, e
com inexpressividade daqueles que não a controlam.
CAPÍTULO IV
Fragmentos e Interpretações
4.1 Prólogo e a voz do pensamento
São nos primeiros vinte minutos de filme que O homem que copiava indica o arranjo
narrativo que será utilizado durante grande parte da obra. O espectador é convidado já neste
início a se situar como a personagem, no momento em que a voz-over é intensamente usada,
revelando os pensamentos de André, em um monólogo interior que expressa a visão do
protagonista sobre o seu mundo, as pessoas e suas pretensões mais pessoais.
Porém, antes mesmo de discorrer mais sobre essa característica narrativa, falemos
mais sobre a sequência primeira do filme. A obra se inicia com uma cena que contém um
indício das naturezas temáticas que serão desenvolvidas no transcorrer do longa. André está
no caixa de supermercado, e não possui o dinheiro para todos os itens que precisará levar. A
demora em finalizar o pagamento, ao contar cada moeda e perguntar sobre o valor de cada
produto, cria um afobamento coletivo nos outros clientes da fila e na atendente do
supermercado que é obrigada a chamar o gerente para “abrir” o caixa. “André: Quanto é a
carne? Moça: Três e cinco. André: Não vai dar. Eu só tenho onze e cinquenta” (FURTADO,
2003). Com o valor da conta acima de suas condições, ele é obrigado a deixar algum
produto(carne) para levar “os fósforos”, que serão utilizados na cena seguinte quando, André,
ironicamente, os utiliza para queimar notas de cinquenta reais em um terreno baldio.
Figura 2. André na primeira cena sem o dinheiro para levar todos os itens que deseja.
Neste primeiro instante estão colocados aspectos importantes da narrativa que serão
revisitados no decorrer da obra. O primeiro deles é a exposição da condição socioeconômica
da personagem e sua impossibilidade de adquirir o que anseia e até necessita basicamente,
como neste caso, a carne. A falta do dinheiro e a importância do consumo como legitimador
da felicidade e da ascensão social são imagens que serão trabalhadas até o fim do longa, a
exemplo de quando André junto aos seus amigos resolvem realizar “caricaturas” da sociedade
capitalista, como comprar um carro importado, pagar suítes em hotéis de luxo e bancar um
passeio turístico no maior cartão portal do país, o Corcovado no Rio de Janeiro, com o
dinheiro de picaretagens e da sorte de ganhar na loteria. Além disso, a cena também traz a
representação da afobação e insatisfação dos outros clientes na fila do supermercado em
alusão a maneira como a sociedade oprime aqueles que não possuem dinheiro ou que estão
inseridos numa situação de pobreza. Esta posição é colocada durante todo o texto fílmico, e de
alguma forma também é utilizada para justificar, ou suavizar as transgressões sociais que os
personagens cometerão para sair da condição de oprimidos, e se colocarem no topo de todo o
sistema, já condenado como opressor, pelos próprios personagens durante a obra.
Outro indicativo de recurso utilizado durante o desenvolvimento do filme é a ironia. O
mesmo André que não tem dinheiro para pagar a conta inteira do supermercado é o mesmo
que queima notas de cinquenta reais no terreno baldio logo em seguida. O homem que
copiava traz o questionamento sobre a obsessão pelo dinheiro na sociedade contemporânea,
trabalhando este conceito de maneira controversa e paradoxal. Ao mesmo tempo em que
assinala a função da grana como caminho para saciar os desejos pessoais e ascender
socialmente, como fica claro no final feliz de André e seus amigos aos pés do Corcovado; o
filme também aponta a falibilidade da moeda, colocando-a apenas como um papel, passível de
replicação, que serve como combustível para a labareda no terreno baldio.
Esta cena da fogueira com as notas de cinquenta reais se caracteriza como um
flashfoward. Trata-se da “interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela
interpolação de eventos ocorridos posteriormente” 4. Portanto o filme apresenta ao
espectador, já neste prólogo, uma ação que ainda acontecerá no decorrer da narrativa, neste
caso, a produção das notas de cinquenta reais falsas que André replicará na máquina de
fotocópias do seu trabalho.
É após essa primeira cena sem focalização, que André começa a se apresentar em voz-
ver, agora já com a focalização interna como falamos anteriormente, durante os próximos
vinte minutos iniciais do filme. A descrição das atividades diárias, da sua história, da relação
platônica com Sílvia, ou mesmo apontando a visão que possui do mundo e das pessoas, são
colocadas por processos mentais em forma de um monólogo interior onde se deslancha “um
4 Texto retirado da internet. URL: http://pt.wikipedia.org/wiki/Flashforward, em 10/08/2013.
verdadeiro fluxo ininterrupto de pensamentos que se exprimem numa linguagem cada vez
mais frágil em nexos lógicos” (LEITE, 1989, p.68).
Substitui-se o narrador por uma voz diretamente envolvida no que narra,
narrando por apresentação direta e atual, presente e sensível pela própria
desarticulação da linguagem, o movimento miúdo das suas emoções e o
fluxo dos seus pensamentos. E, com isso, anula-se a distância entre o narrado
e a narração, alterando-se também outro princípio básico da narrativa
clássica: a causalidade (LEITE, 1989, p. 72).
A forma alinear como André vai conduzindo sua apresentação, já arrematando as
presenças dos hipertextos, vai caracterizando a incidência do fluxo de consciência que
corrobora a focalização interna se tratando de “padrões de pensamento humano que sejam
ilógicos, não gramaticais e principalmente associativos, sejam ele falados ou não falados”
(CARVALHO, 1981, p.53). “Eu moro em Porto Alegre, uma cidade no sul do Brasil. Moro na
Presidente Roosevelt, que é essa rua. Fica no Quarto Distrito. Roosevelt foi presidente dos
Estados Unidos, ele era casado com uma gordinha que era prima dele”, diz André inserindo
hiperlinks em sua autodescrição, em fluxo de consciência, “em que se perde a sequência
lógica e onde parece manifestar-se diretamente o inconsciente” (LEITE, 1989, p.68).
É sob a luz dessas características narrativas – focalização interna, monólogo interior e
fluxo de consciência, que O homem que copiava produz a sensação de aproximação entre o
espectador e André logo nas primeiras cenas, trazendo assim toda história mais próxima para
ser contada a partir da perspectiva do protagonista. É com esta empatia criada entre quem
conta e quem ‘escuta’, ou seja, entre narrador e narratário, que o filme levantará
questionamentos éticos contundentes sobre o modelo de desenvolvimento contemporâneo,
ainda que estes apontamentos estejam suavizados pelas inserções do cômico, ou pela
limitação da informação a partir tão somente da observância de André para os acontecimentos
da narrativa. Esta aproximação entre espectador e narrador logo no inicio da obra, se
apresenta quase como uma “armadilha”, um recurso estético, que fisga o público para a
atenção na continuidade do texto fílmico e os desdobramentos que o filme pretende trabalhar.
4.1.1 Operador de Fotocopiadora
André começa o monólogo interior descrevendo de maneira meticulosa e precisa seu
trabalho como operador de fotocopiadora. A edição do filme neste ponto é feita com cortes
rápidos para dar ênfase ao o passo-a-passo de sua atividade diária. “De vez em quando a
máquina tranca, aí tem que abrir e tirar o papel, e a cópia tem que jogar fora. Quase sempre tu
só tem de apertar estes dois botões, start, stop, start, stop, start, stop”, diz André alertando
sobre a vigilância do patrão, do qual ele ironicamente apelida de “o bolha’, que colocou um
espelho para fiscalizar as ações do funcionário.
A relação entre empregado e patrão é apresentada de forma cômica e distante,
condicionada apenas ao universo profissional, sem qualquer contato mais próximo. Tanto que
André mal sabe o nome do filho do chefe, “O nome do bolhinha é Rodrigo. Ou Diogo. Eles
chamam o bolhinha de Guigo, acho que é Rodrigo” (FURTADO, 2003). Ainda que não seja
muito trabalhado, mas há de maneira sutil nesta primeira apresentação a indicação de um
certo ressentimento ou rancor de André em relação ao bolha(Gomide). “O Bolha pensa que eu
sou otário. Considerando o que ele me paga, ele não deixa de ter uma certa
razão”(FURTADO, 2003). O filme traz na imagem do patrão um símbolo importante do
sistema vigente que condiciona a personagem a estar naquele determinado contexto. Gomide
representa a diferença das classes entre quem oprime e quem é oprimido, incitando, ainda que
levemente, e inicialmente, o desconforto por parte de André. Esse “marcos” do modelo de
desenvolvimento da sociedade contemporânea são colocados no decorrer do filme como
‘alvos’ ou estruturas que a personagem suplanta, como por exemplo, o atentado ao banco -
importante símbolo para a sociedade de consumo, e as transgressões das leis civis, ou da
moralidade estabelecida que é excludente.
Figura 3 . André durante o trabalho na papelaria do “bolha”.
O trabalho de André é também apresentado neste primeiro momento dentro de uma
lógica fabril, industrial, de atos mecanizados e repetitivos que são corroborados, mais uma
vez, com uma edição rápida de imagens mostrando o protagonista realizando as mesmas
ações velozmente em dias distintos no emprego. O filme traz mais signo da diferenciação das
classes dentro do sistema capitalista, aludindo a caracterização do proletariado na exibição das
atuações da personagem no exercício do seu trabalho. “Quando a gente faz um alguma coisa
que não precisa pensar muito, acaba usando o tempo para pensar em outras coisas”, sentencia
André ao demonstrar sua atividade que não lhe cobra muito esforço mental ou imaginativo.
“Quantos neurônios um sujeito precisa para fazer essa merda?” (FURTADO, 2003).
Um último aspecto levantado a partir desta primeira parte do monólogo interior em
que André descreve seu trabalho, é a relação que ele faz de sua atividade como algo
subqualificado, sem prestígio e socialmente mal visto. “Operador de fotocopiadora. Grande
merda. É o que eu digo para as gurias se elas me perguntam. Só se elas me perguntam”,
afirma o protagonista já em tom conformista, aceitando seu lugar de oprimido em uma
realidade que não lhe apresenta alternativas de mudança ou crescimento. A mobilidade entre
classes é uma ideia não cogitada neste primeiro instante da narrativa, sucumbindo André a sua
posição de pouca importância dentro da estrutura social.
4.1.2 Sílvia e o lírico
Também é neste início em voz-over que André apresenta Sílvia, indicando sua
atividade de espionagem com o binóculo da janela do seu quarto. “Ela ainda não chegou”, diz
ele ao saber seus horários e inferir que “ela estuda a noite, chega sempre com os livros”.
Diferente do que até então vinha sido colocado como apresentação da vida de André, o olhar
sobre Sílvia é delicado. A trilha sonora, assinada por Léo Henkin, se torna mais harmônica,
mais romântica, terna e intimista, e será assim durante as outras aparições de Sílvia, com a
inserção da música Parece mais fácil, composta por Henkin para as cenas do casal.
A edição também sofre alteração. As imagens recortadas rapidamente nos primeiros
minutos de apresentação são trocadas por cenas mais extensas. É o olhar de André mais
demorado. Por uma fresta da janela dela, ele vai formando imaginativamente a espacialidade
do quarto da moça a cada momento em que o espelho da porta do guarda-roupa, que nunca
fecha de primeira, rebate e revela uma parcial visual do ambiente.
André fala de Sílvia com carinho. “Ela chegou. Linda. Ela vai direto pro quarto”. A
relação com a vizinha é quem trará todo simbolismo lírico para o filme. O sentimento que o
protagonista nutre platonicamente pela moça é a grande mola propulsora da narrativa. É por
meio desse sentimento que ele resolve sair da sua condição oprimida, para ir atrás dos seus
objetivos e conquistar a vizinha. Sílvia, portanto, é a personagem estruturante da obra, o ponto
de esperança e a motivação na vida da personagem principal. É nela e por ela que o olhar de
André toma força, independência e o leva a traçar seu próprio destino.
Figura 4. André e Sílvia se beijam durante passeio pelo porto.
Sílvia é apresentada na narrativa como aquela que surge para preencher as lacunas na
vida de André. O filme faz alusão a está condição quando a jovem completa e explica o
soneto 12 de Shakespeare, que o jovem tinha lido pela metade durante um das cópias que
tirava no trabalho e que não tinha entendido. O poema que trata sobre a passagem do tempo,
é apresentado em cenas que asseguram o romance na narrativa, seja no primeiro beijo do
casal, seja no pedido de casamento e na proposta de saírem juntos daquela vida.
ANDRÉ: É, eu entendi. "Pois a graça no mundo em abandono, morre ao ver
nascer a graça nova. Contra a foice do tempo, é vão combate. Salvo a prole,
que o enfrenta se te abate". O que é isso?
SÍLVIA: Isso é um jeito de ganhar da morte. De enganar o tempo. A prole.
Os filhos.
ANDRÉ: Entendi. É bonito mesmo. Obrigado.
SÍLVIA: Eu tenho que voltar pro trabalho.
ANDRÉ: Não, tá, claro.
ANDRÉ: Sílvia? Tu me espera?
SÍLVIA: Espero.
ANDRÉ: Tu... Tu quer casar comigo e sair daqui?
SÍLVIA: Claro que sim.
ANDRÉ: Pode levar uns seis meses.
SÍLVIA: Eu espero. Eu espero até mais, se precisar. Te cuida
(Furtado,2003).
A relação entre os dois junto às inserções cômicas são, portanto, dentro da narrativa, o
contrapeso em relação à angústia da situação econômica do protagonista, e da tensão trazida
durante as cenas que envolvem os crimes. Os momentos entre Sílvia e André trazem a ternura,
a esperança e algumas caricaturas do amor idealizado, apontando ainda que minimamente,
mas ainda assim presente vertente lírica no longa metragem.
4.1.3 Família
“Destino ou burrice. No meu caso, um pouco dos dois. O meu pai foi embora quando
eu tinha quatro anos, essa é parte do destino.” É com esta sentença que André, durante o seu
prólogo, começa a descrever sua condição familiar, primeiramente pelo seu pai. André diz
que estava assistindo desenho animado no dia que seu pai foi embora. Ironicamente, neste
momento a obra traz a colagem da Família Trapo, desenho animado que mostra uma família
feliz em uma casa cortada ao meio, onde o pai sai para trabalhar. A ironia e os hyperlinks
continuam com uma cena de volta ao seu ambiente de trabalho, onde o protagonista está
copiando o livro A vida – modo de usar, de Georges Perec, no qual a capa é justamente a
imagem de uma casa cortada no meio, assim como no desenho, onde se pode ver os que as
pessoas estão fazendo nos cômodos.
“Pai: Guarda a correspondência pra mim? André: Ele não recebia muita carta”, diz
André de maneira fatídica ao descrever o instante em que seu pai o deixou. O filme traz cenas
da personagem acumulando as cartas, as cobranças e os anúncios em várias caixas de sapato
que as poucos vão ficando insuficientes, remetendo André da quantidade de tempo sem a
presença do pai. A ironia da desordem familiar ainda é mais incisiva quando o filme apresenta
em forma de desenho animado a ligação das duas razões colocadas como determinantes para a
o contexto social no qual André está inserido: o destino (saída do Pai aos quatros anos) e a
humilhação sofrida por André na escola que foi revidada com violência.
ANDRÉ (VS): No outro dia, na escola, eu disse para o Mairoldi, um
gordinho que tinha uma mancha vermelha na cara, que eu achava que o meu
pai não ia mais voltar.
ANDRÉ CRIANÇA: Eu acho que o meu pai não vai mais voltar.
MAIROLDI: Ele viajou?
ANDRÉ CRIANÇA: É.
MAIROLDI: Quando?
ANDRÉ CRIANÇA: Faz sete anos.
ANDRÉ (VS): Ele começou a rir, a rir muito. Ele ficou cego de um olho.
Essa foi a parte da burrice. Foi o meu último dia no colégio. Eles me
expulsaram. É, eu também não queria mais ir mesmo (FURTADO, 2003).
Importante ressaltar que esse episódio é determinante para o futuro de André. É a
partir dele que o protagonista é impedido de completar a escolaridade, o que resultará na
redução de suas alternativas de ascensão social, ao menos pelo trabalho. Esse contexto traz a
tona uma problemática que é comum na sociedade brasileira, bastante desigual, inclusive
quanto às condições de educação básica e fundamental.
A aparição da mãe é sempre fantasmagórica, sem uma relevância conceitual nem na
trama nem na vida da personagem. Escrava da televisão, ela leva uma vida com hábitos
caseiros e previsíveis, que André descreve com meticulosidade. A relação de bom filho que
divide as despesas da casa, e que não cria problemas, é sempre preservada, sobretudo na
lembrança de André, em seu final feliz, no alto do Corcovado, que se recorda da mãe e a
escreve uma carta dando notícias.
Após estra apresentação inicial, a condição familiar de André só é novamente pautada
do desfecho da trama, momento em que o protagonista assume o controle sobre sua vida e
decide ir embora. Em um ato quase que de libertação, com o simbolismo implícito de que a
partir daquele instante ele será capaz de fazer do seu próprio destino, André queima as cartas
guardadas do pai, se desfazendo desta condição da qual ele não tinha poder, e instaurando um
novo momento em sua existência.
4.2 Outros fragmentos
4.2.1 Mosaico de tudo: Bricolage
É durante o exercício do seu trabalho de tirar cópias que André captura fragmentos
de informações diversas entre um livro e outro. O conteúdo nunca é absorvido por completo,
mas é reutilizado pela sua imaginação que se torna um depósito de pedaços de tudo, e muito
de nada. Ao chegar em casa, depois do trabalho que não lhe propicia esforço imaginativo
algum, André faz do seu quarto uma tentativa de tradução do seu imaginário, uma grande
colagem de informações. Esboços de desenhos, recortes de revistas, pedaços de jornais,
cartazes e fotografias são colados de maneira avulsa nas paredes do quarto da personagem,
representam a fragmentação das informações que ele tem acesso durante sua atividade de
trabalho.
Os estilhaços de conteúdo, que separados não dizem nada conclusivamente, se
ressignificam simbolicamente no momento em que André os coloca sobre sua vontade,
criando um fio mediador que só é compreensível para ele.
Este depósito de informações dispersas no imaginário de André, traz para o filme uma
intensa utilização de hipertextos visuais e textuais. Em O homem que copiava a proposta de
que uma informação leva a outra ganha mais vida quando colocada dentro da estrutura
estética pós-moderna que não encerra a obra em apenas um gênero, ampliando o limite de
imaginação para outras abstrações. A bricolage se instaura de maneira intensa no filme desde
a utilização de fragmentos de vários gêneros diferentes em uma mesma narrativa – sejam eles
policial, romance, social ou noir; até o diálogo que o produto fílmico estabelece com outras
formas de linguagens como a animação, ilustração e o desenho animado.
termo francês que significa, literalmente, um trabalho manual feito de
improvisos e aproveitando toda a espécie de materiais e objetos. Nas modernas
teorias da literatura, o termo passa a ser sinónimo de colagem de textos ou
extratextos numa dada obra literária, o que nos aproxima da ideia de hipertexto.
(CEIA, 2013, p.1).
O recurso apresentando no filme “também serve para traduzir uma prática dita pós-
modernista de transformação ou estilização de materiais preexistentes em novos (não
necessariamente originais) trabalhos” (Carlos Ceia). Neste sentido, é na mistura que O
homem que copiava acerta a mão, e encontra sua essência tanto como em conceito como em
linguagem, surgindo no ambiente de longas metragens do país como um filme de proposta
inovadora e de importância conceitual, no momento em que pretende trabalhar a
ressignificação de gêneros diversos numa mesma narrativa, e trazendo deles discussões e
propostas diferentes que se entrelaçam, mas não se anulam.
4.2.2 Diálogo Universal
“A vida é original. O resto é cópia”. A epígrafe em tom existencialista e irônico
presente no cartaz de divulgação do filme já desponta a natureza de diálogo da narrativa. O
“resto”, no qual também está incluído o cinema, e logo O homem que copiava, é permeado de
pedaços de outras coisas, que já foram feitas, ditas e vistas. O filme é uma compilação de
hipertextos, formando um painel com colagens de gêneros, estilos e linguagens distintas em
fragmentos de informação que se depositam em um mesmo espaço e interagem entre si. A
epígrafe também desponta a contravenção e a ironia ao perceber que no filme, a vida de
André é colocada e construída a partir das informações extraídas nas cópias que ele tira
durante seu trabalho. Portanto a vida também pode não ser original, também ela é feita a partir
de referências e colagens, de pedaços de informação e de observação do diferente.
Em O home que copiava a intertextualidade e o diálogo estabelecido com outras obras
são colocados de maneira precisa, com importância simbólica dentro da narrativa e
fundamental para a produção de sentido em alguns aspectos.
Uma das primeiras referências apresentadas no filme é uma parte do soneto 12 de
Shakespeare que André só conseguiu ler algumas linhas enquanto tirava cópia do livro de
alguém. “Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia: 23 de Abril de mil novecentos e
dezesseis”, diz o jovem criando a conexão com outro fragmento de informação que ele tirou
em outro dia. O texto do escritor inglês se torna uma peça fundamental na narrativa para o
desenlace da relação amorosa entre Sílvia e André, assegurando uma porção lírica na
narrativa, como falamos anteriormente. De toda forma, o soneto está atrelado às cenas de
carinho e esperança do casal, a exemplo da conversa do casal durante o horário do almoço
onde se realiza o primeiro beijo, a proposta de casamento e o desejo de saírem juntos daquela
vida.
Outra referência colocada no filme está centrada no desfecho da trama no momento
em que Sílvia assume a condição de narrador, e já no Rio de Janeiro com André, lê em voz-
over a carta escrita para Paulo, ex-namorado de sua falecida mãe, que mora na Cidade
Maravilhosa. Na carta, Sílvia descreve momentos de sua vida mostrados no filme, mas agora
por sua visão, revisitando sua relação com André, com seu pai, e sua vontade de também se
libertar daquele universo e ir embora para outro lugar. “(...) A vida é mais complicada que um
quebra-cabeças. Mas acho que eu consegui, escrevendo esta carta, contar quase a verdade. E
só isso já me deixa mais tranqüila. Agora parece mais fácil entender a vida”, diz Sílvia em
tom existencialista no final da carta, que é um trecho da obra Carta ao Pai, escrita em 1919
pelo escritor tcheco Franz Kafka. O texto teve publicação póstuma e se trata de uma carta que
Kafka escreveu para seu pai e nunca enviou.
O homem que copiava também traz referências à obra de Alfred Hitchcock, Janela
Indiscreta, um clássico da produção cinematográfica americana, na qual o protagonista (Jeff)
espiona seus vizinhos por um binóculo assim como André, numa atividade continua e intensa
em vários momentos da narrativa. No caso do filme brasileiro, a atividade de espiar seus
vizinhos é apontada como um momento de prazer e de observância da personagem para com o
mundo. A espionagem como forma de ‘interação social’, é o meio de descobertas importantes
para André dentro da diegese, como a construção do amor platônico pela vizinha, o
conhecimento do mau caráter do pai de moça, e mais à frente, pela reviravolta no ponto de
vista, quando Sílvia revela que sabe durante todo o tempo que André a espiona.
Além de estabelecer referências e diálogos com a literatura e o cinema, o longa-
metragem também se comunica com universo da música, através na trilha sonora. Informado
pelo próprio diretor gaúcho, em um programa de entrevista chamado Jogo de Ideias em 2005,
a sinfonia Júpiter, de Mozart, foi descoberta por Furtado quando assistia o final do filme
Manhattan, de Woody Allen, no qual o protagonista diz que a vida vale a pena por algumas
coisas como As maçãs, de Cézanne; Billie Holiday e a sinfonia Júpiter. Sem conhecer a
última obra, e curioso de saber que maravilha seria equivalente às outras citadas, Furtado
comprou o disco e muitos anos depois colocou a peça musical no filme, durante a cena em
que André espia o apartamento de Sílvia e descobre a natureza incestuosa do pai da moça.
4.2.3 O picaresco
As personagens são elementos fundamentais nas narrativas. Compreender suas
características nos diversos gêneros é, sem dúvida, uma maneira de entender o universo
simbólico em que ela se insere. O cinema “seria uma simbiose entre teatro e romance” e “é
tributário de todas as linguagens, artísticas ou não” e que “mal pode prescindir desses apoios
que eventualmente digere” (GOMES, 2009 p.105), delimitando os mecanismos de produção
de sentido entre o real e ficcional, já que nos filmes “nos defrontamos, não com pessoas, mas
com o registo de suas imagens e vozes” (GOMES, 2009 p.113). Dessa forma, ao trabalhar a
categoria personagem, percebemos no decorrer do desenvolvimento deste trabalho uma
relação estética entre O homem que copiava e os romances picarescos, iniciados na Espanha
durante a primeira metade do século XVII. As obras têm na construção do pícaro
(personagem) e na crítica ao sistema socioeconômico os pontos norteadores de suas
narrativas.
Assim sendo, os romances picarescos terão sempre um forte sentido de sátira
social. No caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta os
mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava por
princípio os valores básicos da burguesia e na qual o parecer prevalecia
nitidamente sobre o ser (SILVA, 1992, pg.18).
Principal categoria narrativa dos romances picarescos, e se tratando de um anti-herói
por excelência, “o pícaro é qualificado como uma personagem de condição social humilde,
sem ocupação certa, vivendo de expedientes, a maioria dos quais escuso” (CAMPATO,
2008), que se encaminha para a atos criminalidade a fim de alcançar, de maneiras fácil e
desonesta, seus objetivos de ascensão social.
Acrescente-se que o pícaro, em sua trajetória existencial, geralmente, tem um
choque áspero com a realidade circundante – o qual constitui a maior desculpa
para suas picaretagens - que o leva a mentir, a dissimular, a roubar. Para
Antonio Candido (1978, p. 319), na origem, “o pícaro é ingênuo; a brutalidade
da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como
defesa”. Com efeito, não se nasce pícaro, torna-se um, sendo os fatos da vida
extremamente importantes para que o pícaro possa aprender com tais
experiências (CAMPATO, 2008).
Como apontamos, algumas características da conformação do pícaro estão presentes
na construção da personagem de André, apresentando um plano individual de ascender
socialmente, excluindo o trabalho deste caminho, e se valendo de condições desonestas e
ilegais para atingir seus objetivos, ainda que tais atitudes possam ser colocadas a luz da
justificativa do contexto social em que ele está inserido. Ao nos depararmos com tais
conceitos, percebemos a relação simbólica e estrutural entre O homem que copiava e as obras
picarescas, sobretudo na construção de André como um pícaro, que além da aliar o narrador
na primeira pessoa à narrativa ficcional, implica essencialmente a instauração do anti-herói
como protagonista e eixo estrutural de um texto ficcional narrativo. Portanto, O home que
copiava representa de forma consistente a estética do romance picaresco no cinema brasileiro,
equalizando a conformação social como variante fundamental no surgimento de um anti-
herói, ainda que este esteja distante de caracterizar-se como um vilão.
4.2.4 O narrador pós-moderno
É na calada da noite, depois que sua mãe se cansa de assistir televisão e sai arrastando
o chinelo até o quarto para dormir, que André inicia sua prática de “interação social”. Diz que
assiste tevê por alguns minutos, zapeando sem parar em nenhum canal, apontando mais uma
vez a referência da fragmentação da informação, “Ligo a tevê e fico vendo bem pouco de
tudo”. Depois segue para a janela do quarto para observar atentamente a vida de seus
vizinhos, categorizando seus horários, seus gostos e preferências, criando suposições em seu
imaginário sobre cada um deles e desenvolvendo padrões para funcionamento de atividades
rotineiras nas ruas. A natureza de espionar pelo seu binóculo se expressa quase como uma
compensação social da personagem, que resguardada da boa imagem na sociedade, é privada
de interações sociais normais.
Nessa atividade solitária de André, o filme traz a construção do narrador pós-moderno
que tem um olhar lançado como espectador e não como participante. A observância do
protagonista para a vida dos vizinhos aponta o seu desejo de interação social, que lhe é
negado num cenário pós-moderno perante sua condição socioeconômica.
aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um
repórter ou de um espectador. Ele narra da platéia, da arquibancada ou de uma
poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante
(SANTIAGO,1989, p.38).
André conta a história não a partir de experiências que teve com Sílvia, ou com o
‘Gordo’ que fica dançando até tarde, mas sua versão é baseada apenas na observação. Esta
condição indica um dos principais aspectos do narrador pós-moderno, que narra experiências
alheias e não as que por ele foram vividas. André está localizado de forma distante ao fato
narrado no espaço ficcional. Diferente das formas clássicas de narrar, como, por exemplo, as
da experiência, relatada nas narrativas orais, que é situada a partir vivências do próprio
narrador.
Entretanto, como obra permeada pela estética pós-moderna, em que nada parece se
manter na mesma estrutura ou linguagem durante muito tempo, a partir dos primeiros vinte
minutos de prólogo, a imagem de André como um narrador pós-moderno, atento ao pedaço de
intimidade de cada um de seus vizinhos, e platônico no que diz respeito a Sílvia; é destituída
no momento em que ele resolve descobrir onde ela trabalha e passa a interagir socialmente
com a jovem. A partir deste ponto da obra, o monólogo interior vai ficando cada vez menor e
mais espaçado. O narrador clássico, no sentido daquele que retrata suas experiências sociais,
começa a se construir no percurso do filme, com a aparição de outros personagens (Marinês,
Cardoso, a própria Sílvia), e os diálogos estabelecidos entre André e eles.
Nesse aspecto da observância do mundo por um narrador que está distante da
experiência, o filme, estruturado como colagem de gêneros e informações de hiperlink,
dialoga com outras produções cinematográficas, possuindo relações intertextuais, por
exemplo, com o filme Janela Indiscreta de 1954, do diretor americano Alfred Hitchcock, em
que o protagonista Jeff espiona seus vizinhos pela janela com um binóculo, descobrindo
coisas sobre a vida alheia, assim como André no longa-metragem. “Um filme jamais é
isolado. Participa de um movimento ou se vincula mais ou menos a uma tradição” (VANOYE
; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.24).
4.2.5 O humano e o divino
Outro apontamento importante inserido no filme está relacionado à rivalidade entre o
homem e Deus. A condição de André como fazedor do seu próprio destino está apontada na
narrativa em contraposição com a ideia teocêntrica da vida traçada e planejada por uma
entidade divina. Esta conclusão pode parecer vaga inicialmente, mas toma corpo quando
percebemos a inserção de alguns signos ligados ao cristianismo presentes na obra. Essas
aparições ora estão associadas de maneira irônica perante as transgressões do protagonista,
quando, por exemplo, André reza a oração do “Santo Anjo do Senhor” depois de ter
conseguido trocar suas notas falsas numa lotérica, ora estão associadas a necessidade de um
julgamento ou de indulgência de Deus perante as atitudes dos personagens. Pensemos nas
duas formas separadamente.
Outros exemplos são trazidos na obra que intensificam a ironia e a banalização de
símbolos considerados de natureza cristã ante os pensamentos de André e suas transgressões
entendidas como sendo de caráter pecaminoso. “Eu esperei na frente do prédio dela. O nome
do edifício é Santa Cecília. Os romanos cozinharam Santa Cecília numa sala com vapor mas
ela não morreu, aí eles não conseguiram pensar em nada mais divertido e cortaram a cabeça
dela”, comenta o protagonista no momento em que a edição apresenta recortes de revistas
encenando o degolamento da santa. A vulgarização do objeto comprado por André a Cardoso
para dar de presente a mãe do protagonista também é assinalada na narrativa. A não
identificação da imagem – que ninguém sabe se é um Anjo, um Arcanjo ou São Miguel, é
apontada de maneira cômica, sobretudo quando o protagonista, ironicamente, reza para a
imagem agradecendo o sucesso na sua empreitada ilegal, depois do objeto ter sido o ponto de
distração para a atendente da lotérica enquanto as notas falsas eram trocadas.
O despeito ou a necessidade dos personagens para com o julgamento divino é tratado
no filme como uma procedimento relacionado a conceituação do que é certo e errado, ético ou
imoral, pecado ou não. É este embate que está sendo colocado simbolicamente na narrativa. A
obra indica no final, como as transgressões de André ratificam a ideia do homem sendo o
centro de tudo, capaz de criar suas próprias leis, e decidir a natureza de suas ações e suas
justificativas. Lembremo-nos da simbologia presente no final do filme, no qual os
personagens se encontram felizes por uma nova vida que se inicia a beira do corcovado, como
se recebessem a benção divina depois de cometerem vários crimes, e por assim dizer,
pecados.
O trato audiovisual também é repensado em algumas cenas a partir desta ótica. Por
exemplo, ao situar vários planos em plongée, o filme sugere que os personagens estão sendo
observados, julgados, por Deus ou alguma entidade superior. Lembremos a utilização deste
tipo de plano na cena em que André corre para o apartamento de Sílvia depois de descobrir a
natureza incestuosa do pai da moça, e para na esquina do apartamento da vizinha. Neste
momento André é observado de cima, a partir da visão de alguém que está fiscalizando aquele
instante de maneira superior. Esta composição sugere quase um pedido de súplica por parte da
personagem para alguém que está a velar por todos, ou reitera, de maneira visual – pois André
abaixa a cabeça e volta para casa, a percepção para o protagonista de sua incapacidade de
fazer algo perante aquela situação.
“Eu sou antes de tudo, penso, quero ser um humanista. Eu aposto no ser humano.
Acho que o ser humano é a única coisa que realmente me interessa” (Jorge Furtado, 2005)5.
De toda forma, O homem que copiava coloca em pauta este embate existencial sobre a
autonomia da vida e do destino, apostando no homem como fazedor de seu caminho, que não
necessita da intervenção de uma possível ideia de Deus para avaliar ou permitir suas ações e
determinar o rumo da sua história.
5 Frase extraída durante entrevista concedida ao programa virtual Jogo de Ideias, em 2005. URL: http://www.youtube.com/watch?v=s3sAwqf7_3M
CONCLUSÃO
No transcorrer deste trabalho procuramos analisar e interpretar aspectos do filme O
homem que copiava, [observando o tratamento audiovisual configurado no corpo da obra,
procurando ainda fazer relações entre estruturas narrativas e a construção de um olhar sobre a
série social. A apreciação dos conceitos que compõe a estética pós-moderna foi de
fundamental importância para situar a obra dentro de momento histórico social, possibilitando
a referência da construção de André como um sujeito pós-moderno, e a constituição da sua
identidade cultural perante a sociedade e os símbolos que ela ostenta. O quadro
contemporâneo da fragmentação da informação também foi trazido para a apreciação do
filme, no momento em que este insere diretamente a relação entre os estilhaços de conteúdo
apreendidos por André em seu trabalho para formação seu imaginário.
A partir das indicações trazidas nos conceitos de Vanoye e Goliot-Lété (1994) e
Gérard Betton (1987), pudemos trabalhar aspectos de análise fílmica da obra. Dessa forma,
refletimos sobre seu constructo estético visto também em seu contexto de produção,
percebendo o filme como um olhar lançado sobre questões sociais da sociedade
contemporânea. Somado a isto, a partir dos conceitos de Reis e Lopes (1998), pudemos
trabalhar associadamente aspectos narratológicos, como a velocidade narrativa, onde “o
narrador pode tentar respeitar o mais fielmente possível as dimensões temporais da história, o
que em princípio implica uma narrativa de velocidade sincronizada com os fatos a narrar”
(REIS E LOPES, 1998, p.297), ao perceber a montagem do filme no prólogo, por exemplo, no
qual os cortes rápidos estão associados à velocidade das atividades de André na papelaria, à
mecanização do seu serviço e a fragmentação das informações, remetendo a forma como o
protagonista se vê no seu trabalho, e por consequência na sociedade. Nesse mesmo sentido, a
intensa troca de imagens, é permutada com cenas mais lentas, planos mais longos, quando
André fala e descreve sobre Sílvia, sua vizinha, a qual ele nutre um amor platônico e será a
grande responsável pelo desenlace da narrativa.
Da mesma forma, compreendemos como os recursos narrativos utilizados no filme
possibilitam aproximação e empatia entre André e o espectador, assegurando a aceitação e o
não julgamento do público para com as atitudes da personagem, ainda que estas estejam
relacionadas a transgressões sociais e crimes como caminho para a ascensão social e a
realização de desejos de consumo. Os conceitos de restrição do fluxo de informação na
narrativa trazidos por Gérard Genette (1980) nos guiaram para assinalar a utilização de uma
focalização interna na obra, na qual a história é passada a partir do ponto de vista de André. A
presença deste foco narrativo, a partir da perspectiva da personagem principal é assegurada
com a utilização de uma intensa voz-over em forma de monólogo interior, endossado pelo
fluxo de consciência, como percebemos a partir dos conceitos estabelecidos por Ligia
Chiapinni (1989) e Alfredo Leme de Carvalho (1981).
Sendo assim, entendemos que alguns dos recursos narrativos utilizados em O homem
que copiava, como o regime de focalização interna a partir do personagem principal,
assegurado em sua plenitude pelo uso do monólogo interior intenso, possibilitam ao
espectador uma contaminação com o imaginário, sentimentos e dúvidas do protagonista. Isso
gera, ao final do filme, uma proximidade enorme do público com André. Como protagonista
que é, pelo tempo de tela que ocupa, pela intimidade narrativamente construída pela voz over
e restrição à sua percepção, pelo trabalho na montagem, fotografia e trilha, por tudo isso
André parece entrar em correlação empática com o espectador. Coloca-se assim um embate
em torno de questões éticas, que durante toda a obra foram apontadas no diagnóstico de uma
sociedade desigual e fundada na indiferença, nos métodos tomados pelo protagonista e pelos
seus amigos. Questão, então, que se acirra quando as soluções surgem pela violência, mesmo
quando as vítimas se configuram como crápulas (o traficante, o pai de Sílvia, o pequeno
empresário mesquinho da papelaria, a sociedade avara como um todo).
Apesar da justificativa de todo o contexto social e sua interferência crucial na vida do
jovem, que é esmagado pela lógica do capitalismo pós-moderno, fica no ar a conclusão
desagradável que, para ele e seu grupo de amigos, os fins justificariam os meios, ou seja, os
crimes cometidos por André estariam abonados por sua condição. Ao mesmo tempo,
desejando avidamente o aburguesamento e incorporando seus signos mais caricatos, os
personagens parecem aceitar com facilidade a lógica ultra-hedonista, superconsumista, o
estilo de vida predatório que reflete o tipo de engrenagem que os oprimia antes e os rege
agora, fundada na aposta do desejo de gozo sem fim. Vale pensar, de maneira desconfortável,
se as soluções que partem do enredo, tecidas por todo o processo de construção do filme (os
artifícios na obra que criam essa atmosfera de empatia do público, visto que no filme, só há
acesso a uma versão da obra, que é a do herói) levam a um assentimento com os rumos dos
personagens. Se esta aproximação traz a uma concordância e uma empatia por essa saída
individual traçada pelos personagens e no que ela resulta como relação com a existência.
Resta indagar se o filme, em seu conjunto de dados, propõe esse tipo de solução e se o
espectador incorpora esse olhar. Ou se, por outra via, a obra constrói um eficaz dar-a-ver de
alguns aspectos do contemporâneo, de substituição da indiferença pela indiferença, num
desejo de gozo que abre mão da utopia e de qualquer solução coletiva enriquecedora e
solidária. Dessa forma, O homem que copiava parece se colocar como um importante filme do
cinema de retomada, apontando aspectos a respeito da ética, do modelo de desenvolvimento e
da conduta moral da sociedade a partir de soluções narrativas que interferem no fluxo de
informação ao aproximar o espectador do produto fílmico.
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