UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise...

138
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO OSVALDO RESENDE NETO O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA: uma relação simbiótica entre moralidade política e estrutura normativa São Cristóvão (SE) 2017

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

OSVALDO RESENDE NETO

O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA: uma

relação simbiótica entre moralidade política e estrutura normativa

São Cristóvão (SE)

2017

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

1

OSVALDO RESENDE NETO

O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA: uma

relação simbiótica entre moralidade política e estrutura normativa

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Henrique Ribeiro Cardoso.

São Cristóvão (SE)

2017

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

2

OSVALDO RESENDE NETO

O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA: uma

relação simbiótica entre moralidade política e estrutura normativa

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

_________________________________________________________________________ ORIENTADOR: PROF. DR. HENRIQUE RIBEIRO CARDOSO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE – UFS

___________________________________________________________________________ 1ª EXAMINADORA: PROFª. DRª. KARYNA BATISTA SPOSATO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE – UFS

___________________________________________________________________________ 2ª EXAMINADORA: PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS KNOERR

CENTRO UNIVERSITÁRIO DE CURITIBA – UNICURITIBA

São Cristóvão (SE)

2017

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

3

Dedico a todos aqueles que, mesmo

convivendo com as angústias da impunidade,

sacrificam momentos especiais de sua vida

privada em defesa da coisa pública.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

4

“A democracia é o governo do povo, para o

povo e pelo povo.”

Abraham Lincoln

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

5

O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA: uma

relação simbiótica entre moralidade política e estrutura normativa

RESUMO

Nos últimos anos, uma série de acontecimentos relacionados à corrupção no Brasil têm

provocado os mais acalorados debates políticos impulsionadas pela imprensa e pelas redes

sociais. Nessa conjectura, suscita-se uma análise político-jurídica, dentro do contexto

histórico-linguístico da hermenêutica filosófica, sobre a existência do princípio constitucional

da anticorrupção como componente do núcleo essencial do republicanismo. Inicia-se o

trabalho com a abordagem do nexo entre os direitos fundamentais e a história do homem,

para, posteriormente, se expor as peculiaridades históricas do Brasil que conduziram a uma

cultura de desrespeito à coisa pública. O debate de combate à corrupção ganhou força com a

promulgação da Constituição de 1988, quando é reconhecido ao cidadão o direito

constitucional a uma administração proba. Contudo, é preciso ir além. E é desse além que

emergirá o princípio anticorrupção como fundamento da República, ampliando a necessidade

da preservação dos interesses públicos nas situações de corrupção não convencional. Ao

longo desta dissertação foram examinadas posições doutrinárias de autores nacionais e

estrangeiros que tratam das abordagens discutidas. A metodologia utilizada foi desenvolvida

especialmente pela pesquisa qualitativa exploratória, lastreada em uma análise reflexiva e

sistemática, tomando como pano de fundo a hermenêutica filosófica. Ao final, conclui-se que

a concretização do princípio anticorrupção se revela como caminho mais eficiente ao

atendimento da demanda brasileira, diante do panorama atual, todavia, requer, além de uma

estrutura legal, a conscientização do cidadão em assumir o seu papel de ator político

responsável, fiscalizador e transformador da sociedade.

Palavras-chave: Administração proba. Princípio anticorrupção proba. Princípio republicano.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

6

THE ANTICORRUPTION PRINCIPLE AS A REPUBLIC FOUNDATION: a

symbiotic relationship between political morality and political-legal normative structure

ABSTRACT

In recent years, a series of events in Brazil, the theme of which has focused on corruption, has

provoked the most heated political debates, strongly driven by the media and social networks.

In this context, a juridical-political analysis is proposed, within a historical-linguistic context

of the philosophical heritage, about an existence of the constitutional principle of

anticorruption principle as a component of the essential nucleus of the republican form of

government. It begins with the approach of the nexus between fundamental rights and the

history of man, to later expose the historical peculiarities of Brazil that led to a culture of

disrespect to the public thing. The anticorruption principle debate gained momentum with the

promulgation of the 1988 Constitution, where citizens are given the right to a probationary

administration. However, it is necessary to go further, when the anticorruption principle

emerges as the foundation of the Republic, expanding the need to preserve public interests in

situations of non-conventional corruption. In the course, we examine doctrinal positions of

national and foreign authors that deal with the approaches that emerged throughout this

dissertation. The methodology used was developed especially by qualitative exploratory

research, backed by a reflexive and systematic analysis, taking as a background the

philosophical hermeneutics.

Keywords: Administration proba. Anticorruption Principle. Republican principle.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... 8

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À ADMINISTRAÇÃO PROBA NO

CENÁRIO BRASILEIRO..........................................................................

12

1.1 Direitos fundamentais: uma história de demandas do homem............... 12

1.2 Do Brasil colônia ao cenário atual: ambiente fértil para a corrupção... 20

1.3 Anseios após a redemocratização brasileira............................................. 25

1.4 Administração proba como princípio concretizador dos direitos

fundamentais...............................................................................................

33

2 NOVAS PERSPECTIVAS DO INTERESSE PÚBLICO........................ 44

2.1 O povo como manifestação político-jurídica da coletividade.................. 44

2.2 Interesses públicos e interesses privados: tensões e novas perspectivas 53

2.3 O papel da hermenêutica filosófica na reconstrução do interesse

público..........................................................................................................

62

2.4 A ressignificação do interesse público....................................................... 72

3 O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA

REPÚBLICA...............................................................................................

79

3.1 O princípio anticorrupção como norma constitucional implícita

imanente à forma de governo republicano...............................................

79

3.2 A corrupção quid pro quo como modelo insuficiente para

concretização do princípio anticorrupção................................................

87

3.3 O princípio anticorrupção na linguagem filosófica................................. 100

3.4 Casos práticos da aplicabilidade do princípio anticorrupção no

direito brasileiro.........................................................................................

107

CONCLUSÃO............................................................................................. 121

REFERÊNCIAS.......................................................................................... 126

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

8

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, ou quiçá, anos, o desencadeamento de uma série de

acontecimentos no cenário nacional, cujo tema principal circunscreve em torno da corrupção,

tem provocado os mais acalorados debates políticos.

As discussões, fortemente impulsionadas pela imprensa e pelas redes sociais, estão

sendo vivenciadas em todos os níveis e setores do ambiente político e da sociedade civil.

Estende-se desde agremiações político-partidárias, em que seus interesses são defendidos aos

gritos na tribuna e no silêncio dos bastidores do jogo político do parlamento, até os embates

ideológicos da sociedade civil, inclusive com não raros choques entre manifestantes.

A polarização e o acirramento de ânimos de seus defensores são acentuados pela

grave crise econômica pela qual o país vem passando, a qual, segundo muitos, é derivada de

toda essa conjectura.

Em tais momentos, uma das grandes dificuldades do raciocínio jurídico é a

capacidade do ser humano de desmistificar questões que outrora seriam facilmente

solucionadas, todavia, diante das circunstâncias atuais, o pêndulo do debate tende a ser

puxado de acordo com os interesses, ideologias e convicções dos interessados, ainda que

inconscientemente.

É nesse panorama que este trabalho suscita uma análise político-jurídica, dentro de

um contexto histórico-linguístico, concernente ao princípio anticorrupção como componente

do núcleo essencial da forma de governo republicana.

Para tanto, distribuiu-se a pesquisa em três Capítulos, denominados: 1) o direito

fundamental à administração proba; 2) novas perspectivas do interesse público; e 3) o

princípio anticorrupção como fundamento da República. Cada um deles foram subdivididos

em quatro subitens, conferindo certa simetria topográfica ao texto.

Inaugura-se o Capítulo I com a seguinte indagação: há algum nexo entre os direitos

fundamentais e a história do homem? Superada a inquirição sem muitos esforços, buscar-se-á

o exame desse vínculo.

O ponto crucial dos direitos fundamentais, relevante para este estudo, é justamente a

sua correlação evolutiva com as demandas do homem, que foram surgindo no decorrer da

história. Também é tratado o papel da formação dos Estados Modernos e de que forma as

carências do homem vêm influenciando na criação, forma, conteúdo e alcance dos direitos

fundamentais: de um primeiro momento, no qual os reclamos sociais eram puramente de

abstenção da intervenção estatal, passando-se para ocasiões em que foi necessária a atuação

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

9

positiva do poder público para concretização de tais direitos, até se chegar ao ponto de

maturação em que se debate a legitimação dos direitos fundamentais dentro do modelo de

democracia deliberativa.

Dando continuidade, adentra-se no segundo ponto do Capítulo I, no qual se expõem

sucintamente as peculiaridades históricas do Brasil, que remontam desde o período colonial

até os dias atuais, as quais constituíram a narrativa sociopolítica de desrespeito à coisa pública

na seara dos direitos fundamentais e o ambiente promíscuo entre a iniciativa privada e o setor

público.

No terceiro subitem do Capítulo I, parte-se para um momento peculiar inaugurado

após a redemocratização com a promulgação da Constituição de 1988, em virtude do

surgimento de anseios sociais pelo respeito à coisa pública.

No derradeiro subtópico do Capítulo I, é discorrido sobre a íntima relação da

demanda nacional de respeito ao princípio de administração proba com a concretização dos

direitos do homem, em especial com o princípio da dignidade humana.

No Capítulo II, ingressa-se no debate político, jurídico e filosófico que envolve as

novas perspectivas sobre o interesse público no âmago de uma administração proba, em que

são esculpidas noções de cidadania e coletividade, as quais, por sua vez, exigem alguns

apontamentos prévios sobre a noção de povo.

Logo em seguida, no segundo subitem do Capítulo II, adentra-se nas tensões existentes

entre os interesses públicos e privados, com destaque para as consequências práticas das

críticas realizadas ao modelo clássico da supremacia do interesse público. Adiante, no terceiro

subitem, propõe-se uma solução pacificadora para esse paradoxo, construído com base na

hermenêutica filosófica. Ao final, discute-se a reconstrução do significado do interesse

público, mormente em situações em que se está em debate assuntos envolvendo o direito

fundamental a uma administração proba.

O Capítulo III inicia explorando a temática principiológica inovadora da norma

jurídica constitucional anticorrupção como fundamento da forma de governo republicana,

cujos preceitos rementem às discussões iniciadas principalmente por Aristóteles, Maquiavel,

Montesquieu e James Madison.

Explora-se ainda como o princípio anticorrupção se encontra inserido no ordenamento

jurídico brasileiro e seu grau de relevância em relação as outras normas, em especial, com o

direito do cidadão à administração proba.

No segundo subtópico do Capítulo III, é debatida a amplitude do conteúdo da

corrupção para a concretização do princípio anticorrupção. Nesse ponto, são explorados os

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

10

modelos de corrupção convencional e não convencional, segundo M. Patrick Yingling (2013)

e Zephyr Teachou (2014). Logo depois, o princípio anticorrupção é trabalhado na linguagem

filosófica, onde é correlacionando diretamente a aspectos da historicidade, tradição,

compreensão e linguagem.

Ao final do Capítulo III, são expostos e analisados quatro casos práticos vivenciados

no Brasil recentemente, em que são discutidos nesta dissertação a aplicabilidade (ou não) do

princípio anticorrupção, quais sejam: 1) o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ação

declaratória de constitucionalidade n. 12, que envolveu a temática do nepotismo; 2) o

julgamento pelo Supremo Tribunal Federal das ações declaratórias de constitucionalidade n.

43 e 44, em que se debateram a possibilidade de execução da pena de prisão em virtude de

sentença condenatória antes do transito em julgado da sentença; 3) o julgamento de duas

liminares em sede dos habeas corpus n. 95.009 e 95.137 pelo então ministro Presidente do

Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes e o desfecho da respectiva ação penal principal no

Superior Tribunal de Justiça, ambos relativos à operação policial intitulada Satiagraha; e 4) a

(i)licitude do decreto presidencial de nomeação do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva

para ocupar o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil.

Finalizados os Capítulos, é apresentada a conclusão de cada qual, perseguindo uma

correlação harmoniosa e sequencial dos temas abordados até se estabelecer uma premissa,

onde há um vínculo conectando cada uma das matérias chaves deste trabalho.

Os objetivos aqui empreendidos são no sentido de delinear a importância do

princípio anticorrupção na implementação de medidas jurídicas eficazes para: 1) fiscalizar e

reprimir a malversação do erário e a violação da moralidade pública; 2) estimular a prática de

atos típicos de uma administração pública legal e honesta; e 3) preservar os ideais norteadores

do princípio republicano.

A relevância da abordagem extrapola os limites da administração pública, visto que

enaltece a própria forma com a qual cidadão se enxerga inserido dentro de ambiente

republicano, assim como os seus papéis e as suas responsabilidades diante de questões

político-jurídicas que afetam o interesse público.

No decorrer deste trabalho serão examinadas posições doutrinárias de autores

nacionais e estrangeiros que tratam das abordagens emergidas ao longo desta dissertação,

através da pesquisa bibliográfica de obras, artigos e teses, tendo a internet como ferramenta

auxiliar.

A metodologia utilizada foi desenvolvida especialmente pela pesquisa qualitativa

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

11

exploratória, lastreada em uma análise reflexiva e sistemática, tomando como pano de fundo

a hermenêutica filosófica.

Esta Dissertação foi iniciada e amadurecida sob orientação e supervisão do Prof. Dr.

Henrique Ribeiro Cardoso, no decorrer do Programa de Pós-Graduação em Direito da

Universidade Federal de Sergipe, na área de concentração Constitucionalização do Direito,

dentro da linha de pesquisa 1, qual seja: Processo de Constitucionalização dos Direitos e

Cidadania: aspectos teóricos e metodológicos.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

12

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À ADMINISTRAÇÃO PROBA NO CENÁRIO

BRASILEIRO

1.1 Direitos fundamentais: uma história de demandas do homem

O debate acerca dos direitos fundamentais se revela um tema demasiadamente

amplo, que suscita polêmicas desde a sua nomenclatura1, passando por outros aspectos, como

origem, titularidade, conteúdo, forma, eficácia etc2. Assim, é imprescindível uma delimitação

que se correlacione com os objetivos propostos nesta pesquisa.

A construção de uma possível solução juridicamente viável para a problemática

exposta nesta dissertação requer preliminarmente um Capítulo em que seja analisada uma das

várias facetas que envolvem a abordagem dos direitos fundamentais.

Partindo dessas premissas, necessárias ao bom discorrer deste trabalho acadêmico,

inaugura-se este Capítulo com a seguinte indagação: há algum nexo entre os direitos

fundamentais e a história do homem? A resposta, meio que indutiva, outra não poderia ser que

positiva, malgrado as discussões filosóficas dos a-historicistas3.

Superada sem esforços a primeira indagação, busca-se agora o exame desse vínculo.

Não se pretende tecer exames detalhados sobre o momento histórico e, por qual razão,

surgiram tais direitos. Essa discussão seria monótona e sem maiores surpresas, fugindo às

pretensões desta Dissertação.

1 Paulo Bonavides (2009, p. 560), no início do seu capítulo sobre a teoria dos direitos fundamentais, chama atenção da nomenclatura como a primeira questão que diz respeito sobre o assunto. “Podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais ser usadas indiferentemente?”. O renomado autor observa o uso promíscuo das expressões na literatura jurídica, toda destaca que o emprego de direitos do homem e direitos humanos é mais comum entre os juristas anglo-americanos e latinos, enquanto os publicistas alemães preferem a expressão direitos fundamentais. Como este trabalho acadêmico não se desenvolve sobre esse ponto, optou-se por registrar a existência das diferenças sobre as nomenclaturas, todavia sem optar por alguma em específica. Outro critério, mais aceito pela doutrina, é exposto por Manoel Jorge e Silva Neto (2006, p. 513), segundo o qual “não se pode encontrar absoluta identidade entre ‘direitos fundamentais’, ‘direito do homem’ ou ‘direitos humanos’ porquanto a designação de ‘fundamentais’ é dedicada àquele conjunto de direitos assim considerados por específico sistema normativo-constitucional, ao passo que ‘direitos do homem’ ou ‘direitos humanos’ são terminologias recorrentemente empregadas nos tratados e convenções internacionais”. 2 Robert Alexy (2014, p. 166-168), em estudo sobre a posição jurídica dos direitos fundamentais na Constituição Alemã, reconhece a caracterização de tais direitos como fundamentais acordo com quatro extremos: 1) estão em um grau mais elevado na estrutura escalonada do direito interno; 2) são dotados de maior força executória; 3) decidem questões de maior importância; e 4) possuem maior medida de abertura. 3 Alexandre Araújo Costa (2008, p. 38), em sua tese de Doutorado, recorda que a Modernidade é caracterizada pela negação à historicidade, pois a obtenção da verdade só seria possível com o racional (objetivo e atemporal), através de critérios de validade que não dependam de valores culturais historicamente determinados.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

13

O ponto angular dos direitos fundamentais relevante para este estudo é justamente a

sua correlação evolutiva com as demandas do homem que foram surgindo no decorrer da

história. Para tanto, necessário identificar o ponto de partida, o seu surgimento.

Contrapondo a maioria dos autores, que reconhece manifestações dos direitos

fundamentais desde a Babilônia do ano 2.000 a. C., à Grécia Antiga e à Roma Republicana,

Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2014, p. 10) afirmam que, para se falar em direitos

fundamentais, é imperiosa a coexistência de três elementos essenciais: Estado, Indivíduo e

Texto regulador.

Os autores (DIMOULIS; MARTINS, 2014, p. 10) abordam o Estado no sentido de

poder público institucionalizado (administração pública, tribunais, forças armadas etc.) sobre

determinado território, sem o qual a proclamação de direitos fundamentais careceria de

relevância prática.

Ainda que transpareça supérflua a conclusão de que o Indivíduo é um requisito

básico para a existência dos direitos fundamentais, a questão é mais complexa, vez que não se

trata apenas do indivíduo físico, o ser humano, nem sequer do homem social de Rousseau,

componente da coletividade4. Preza-se aqui também pelo respeito ao indivíduo autônomo,

dotado de identidade e personalidade próprias. De modo que o indivíduo, em sendo sujeito de

direitos, pode fazer valer direitos individuais perante o Estado e a coletividade.

O terceiro requisito para o surgimento dos direitos fundamentais é o Texto normativo

regulador entre Estado e indivíduos. É indispensável a vigência de um texto constitucional

regulador entre os outros dois elementos em dado território com força vinculante sobre as

demais normas jurídicas e sujeitos de direito. É a partir da Constituição que o indivíduo

conhece sua esfera de atuação livre de interferências do poder público e, concomitantemente,

submete o Estado a determinadas normas que impeçam restrições injustificadas dos direitos

da liberdade individual (DIMOULIS; MARTINS, 2014, p. 12).

A coexistência da tríade Estado, Indivíduo e Texto regulador surgiu, pela primeira

vez, na história com a formação dos Estados modernos, no início do século XVI, ao final da

4 Jean Jacques Rousseau, em sua obra Du Contrat Social, afirma que o processo de legitimação do pacto social produz um corpo moral e coletivo em substituição aos indivíduos singularmente considerados. Nesse contexto, o ato de associação vê-se legitimado pela vontade geral inalterável e pura do corpo moral e coletivo, implicando em um compromisso recíproco entre os interesses públicos e os particulares. Se por um lado cada indivíduo, contratando consigo mesmo, é membro do poder soberano em relação particulares, por outro também é membro do Estado em relação ao poder soberano (SOARES, 2004, p. 75). A originalidade do pensamento de Rousseau reside na ação política de não diferenciação das classes sociais, fundamentando-se na vontade geral. “É o povo, e não mais o monarca, que passa a exercer a soberania: por meio da vontade geral é exercida a soberania popular” (BEDENDI, 2010, p. 26).

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

14

Idade Média, enraizados na estrutura de dominação política absolutista5. A monarquia

absolutista permitiu, na Europa continental, a unidade jurídica e o poder do Estado (SOARES,

2004, p.84).

Apenas após a formação dos Estados modernos, abriu-se caminho para que as

mudanças sociais confrontantes com o modelo político então existente tornassem possíveis o

desencadeamento inédito dos direitos fundamentais na história, manifestando-se pelo

absenteísmo estatal em respeito às liberdades individuais no novo modelo de Estado que se

constituía: o Estado liberal (SOARES, 2004, p.85).

O surgimento dos direitos fundamentais relaciona-se intimamente, portanto, à

existência do Estado moderno absolutista e, principalmente, às mazelas sociais advindas do

exagero daquele modelo político-estatal, que impulsionou uma onda de movimentos da classe

burguesa ascendente em prol do respeito às liberdades civis pelo poder público

(SARMENTO; SOUZA NETO, 2012). “A primeira versão do Estado Moderno é, pois,

absolutista, mas é exatamente o absolutismo que, dialeticamente, vai engendrar as condições

para o surgimento de formas de controle do poder” (STRECK, 2002, p. 225).

Nesse diapasão, embora possa transparecer contraditório, o regime monárquico

absolutista efetivamente contribuiu para eclosão dos direitos fundamentais. Inicialmente,

porque consagrou a unidade política do Estado. Posteriormente, porque os seus excessos

culminaram no atendimento dos anseios liberais burgueses de limitação do Estado, que só foi

possível em razão de um poder público pré-estabelecido garantidor dos direitos civis

conquistados, podendo ser resguardados judicialmente não só em face do governante como

também de todos os poderes6.

“Com maior frequência, situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos

fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobre tudo com o Bill of Rights de Virgínia

(1776), quando se dá a positivação dos direitos tidos como inerentes ao homem” (MENDES;

COELHO; BRANCO, 2000, p.106). Esses direitos foram acolhidos na referida Declaração e

ratificada pela Constituição americana de 1787, vinculando todos os poderes e sendo capazes

de serem exigidos judicialmente.

5 O Estado moderno nasceu absolutista por circunstância e necessidade da época. O poder secular foi libertando paulatinamente do poder religioso, todavia sabia sua importância para legitimação. A soberania, absoluta e indivisível, é o atributo essencial do seu poder político, acarretando na supremacia interna e na independência externa (BARROSO, 2015, p. 33). 6 Embora documentos como a Carta de 1215 do Rei João Sem Terra, a Petition of Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689 assegurem direitos aos cidadãos ingleses e, ao mesmo tempo, limitem o poder monárquico, tais documentos não vinculavam o parlamento. Por esse motivo esses direitos não poderiam ser considerados constitucionalizados (MENDES; COELHO; BRANCO, 2000, p.106).

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

15

Desse modo, vislumbra-se que o direito do homem obteve relevo quando a primazia

se deslocou do Estado para os indivíduos nas relações jurídicas que os interligam (MENDES;

COELHO; BRANCO, 2000, p.106). A respeito, Bobbio (2004, p. 8) ensina que essa mudança

de visão é irreversível:

A afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualista de sociedade, segundo a qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, ou seja, dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos.

A partir de então, nota-se um rígido elo que vincula a amplitude e conteúdo dos

direitos fundamentais às demandas sociais que foram eclodindo na história. Em princípio, os

direitos fundamentais não são absolutos e unívocos, pois seu conteúdo varia de acordo com o

tempo e lugar.

São um conjunto de faculdades e instituições que requerem um contexto histórico

para o preenchimento de seu conteúdo e alcance. Assim, a compreensão da história é

imprescindível para a concepção da gênese e desenvolvimento dos direitos fundamentais. “O

caráter da historicidade, ainda, explica que os direitos possam ser proclamados em certa

época, desaparecendo em outras, ou que se modifiquem no tempo” (MENDES; COELHO;

BRANCO, 2000, p.106).

A importância é tamanha que a teoria do direito constitucional aborda, dentre as

diversas classificações existentes, a que leva em consideração o critério histórico-evolutivo.

Nesse raciocínio, os direitos fundamentais são categorizados em gerações ou, como outros

preferem, em dimensões7.

Nessa conjectura, destaca-se que cada uma das gerações ou dimensões de direitos foi

erguida para atender novas demandas, surgidas, paulatinamente, no decorrer da história.

Preciosas são as palavras de Bobbio (2004, p. 9):

7 O discurso acerca do vocábulo mais apropriado – “dimensão” ou “geração” – para a caracterização histórico-evolutiva dos direitos fundamentais “não deslegitima a imagem metafórica e o seu inerente simbolismo, desde que, à evidência, se esteja ciente de que ela não reproduz o devir histórico dialético e dinâmico que marca a formação e reconstrução dos direitos e deveres fundamentais ao longo dos tempos” (SARLET, 2010, p. 57).

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

16

... os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitação do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.

Explicita-se que não se detalhará minuciosamente a exposição classificatória das

dimensões do direito8, por se tratar de matéria já amplamente debatida na seara acadêmica. O

foco é outro, mais precisamente o vínculo existente entre as gerações e as novas necessidades

do homem social, isto é, com as demandas que vão surgindo no curso da história9.

A evolução do homem tem demonstrado que a adoção de novos modelos de direitos

é suficiente tão somente durante um certo período, de modo que, superado um espaço de

tempo considerável, emergem novas necessidades, que normalmente são supridas

temporariamente pela nova geração de direitos, enumerada, didaticamente pela doutrina atual,

com o número ordinal subsequente.

Cada novo ciclo de gerações de direitos, que vem a salvaguardar as demandas sociais

de uma fase histórica, não suprime e nem exclui os seus antecedentes. Ao contrário,

amoldam-se uns aos outros, conferindo eficácia máxima aos direitos fundamentais. Por tal

8 Ao se examinar a teoria dos direitos fundamentais, costuma-se remeter o leitor às lições proferidas pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak, em sua aula inaugural de 1979, no Curso do Instituto Internacional dos Direitos Fundamentais do Homem, em Estrasburgo, na França, onde se delineou os direitos fundamentais sob um critério histórico-evolutivo, consagrando-os, pela primeira vez, em gerações (MARMELSTEIN, 2008, p.42). 9 Os primeiros, intimamente ligados ao paradigma de liberdade clássica, traduzem uma reação à política demasiadamente invasiva do poder público, típica do regime absolutista do final do século XVIII. Nesse período, buscava-se os direitos civis e políticos no plano jurídico, em um novo modelo burguês-liberal: o Estado Liberal (SARMENTO, 2006, p. 12). Mais adiante, foi constatado que a mera proclamação formal da liberdade nas constituições escritas se revelava insuficiente, diante das mazelas sociais trazidas pela Revolução Industrial, a partir do século XIX. O surgimento de uma nova demanda veio a ser atendida pelos direitos de segunda geração: os direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos (SARLET, 2010, p. 47-48). Pode-se dizer que as mudanças ideológicas do final do século XX, a massificação das relações de consumo, a questão ambiental e o desenvolvimento tecnológico-científico incrementaram um conteúdo complexo e até então distinto nessa novel sociedade. Mais uma vez, vicissitudes levaram ao surgimento de novos direitos: terceira geração, destacando os direitos de solidariedade ou fraternidade e a proteção dos direitos transindividuais. Karel Vasak ainda cita o direito à paz como integrante dessa dimensão (MEDEIROS, 2004, p. 74). Em relação aos direitos de quarta geração, há uma nítida divergência entre o tipo de bem jurídico e interesses tutelados por essa dimensão. Para Bobbio (2004, p. 9), os direitos de quarta geração surgiram com os avanços tecnológicos no campo da engenharia genética, suscitando uma série de conflitos éticos. Em sentido diverso, Bonavides (2009, p. 571) classifica como de quarta dimensão o direito à democracia direta, à informação e ao pluralismo. Ademais, o acirramento progressivo do ódio entre culturas diversas, a crescente desconfiança entre nações e a nova movimentação bélica no mundo catalisados pós-atentados terroristas guiaram o constitucionalista Bonavides (2009, p. 579) a uma reflexão sobre a necessidade de uma quinta dimensão de direitos fundamentais: o direito à paz da humanidade. Diferentemente do ensinado por Karel Vasak, que capitulava a paz como direito de terceira geração, Bonavides (2009, p. 590) elege a paz como uma categoria autônoma, no intuito de lhe conferir maior relevância, qualificando-a como um supremo direito da humanidade e a relacionando com a democracia direta.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

17

razão, critica-se a expressão “geração”, visto que poderia levar à equivocada conclusão de

uma nova etapa seria substitutiva e supressora do período anterior, quando, na verdade, são

complementares (SARLET, 2010, p. 52-53).

Os constitucionalistas Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2015,

p. 138) bem explicam:

Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes no momento.

Nesse ponto, vislumbra-se o papel central da historicidade e da tradição10 no ciclo

evolutivo dos direitos fundamentais, vez que, conquanto a história não possa ser concebida

como uma reta ascendente linear, é uníssono o entendimento de que, a cada etapa evolutiva da

história da humanidade, surgem novas necessidades, as quais tendem a ser supridas pelo

direito. Ressalva-se, desde logo, os retrocessos sociais acompanhados de restrições aos

direitos fundamentais, a exemplo de períodos ditatoriais pelos quais passaram vários países

ocidentais.

O historiador francês Numa Denis Fustel de Coulanges (2006, p. 15) expôs com

perspicácia a importância do passado no processo evolutivo do conhecimento humano:

Felizmente, o passado nunca morre por completo para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu estado em determinada época é produto e resumo de todas as épocas anteriores. Se ele descer a sua alma, poderá encontrar e distinguir nela as diferentes épocas pelo que cada uma deixou gravada em si mesmo.

Ratificando o papel do passado na constituição dos direitos fundamentais vigentes,

Mendes, Coelho e Branco (2000, p. 54) recordam:

10 Imprescindível esclarecer que a expressão tradição, no presente contexto, carece da carga negativa em que normalmente vem associada nos textos, em que muitas vezes é uma antítese à razão e ao pragmatismo (LAWN, 2011). Toma-se aqui na sua acepção utilizada usualmente por Gadamer (2015), em que significa passar algo adiante, referindo-se à atividade de transmissão de geração à geração. A tradição, seja ela intelectual, seja prática, constitui-se um legado passado entre pessoas através de gerações.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

18

Esse ir e vir compreensivo, que atravessa séculos e gerações, vai progressivamente enriquecendo e ampliando os objetos com novas interpretações, que nem pelo fato de serem diferentes invalidam as interpretações anteriores, num processo de superação e, ao mesmo tempo, de conservação e absorção de resultados.

A evolução histórico-evolutiva dos direitos fundamentais iniciada com o movimento

constitucionalista diante da crise do Estado Moderno desaguou irreversivelmente na

composição do Estado Democrático de Direito11.

O Estado Democrático de Direito surge agregando a síntese das fases anteriores dos

direitos fundamentais, suprindo lacunas então existentes e adequando-os às novas vicissitudes

do cotidiano. “Só posso ser livre sob a lei, se puder dizer que essa é a minha lei, se tiver tido a

possibilidade efetiva de participar na sua concepção e no seu posicionamento (mesmo que as

minhas preferências não tenham prevalecido)” (STRECK, 2002, p. 225).

Diante desse liame indissociável, observa-se atualmente que os direitos fundamentais

servem como medida de aferição do grau de democracia de uma determinada sociedade. Do

mesmo modo, sem o regime democrático é inconcebível que os direitos fundamentais

cumpram sua vocação conciliadora do poder público com os reclamos humanísticos e

democráticos (MENDES; COELHO; BRANCO, 2000, p.106).

Como foi abordado, a evolução dos direitos fundamentais partiu inicialmente das

conquistas das liberdades civis clássicas, no final século XVIII, com as restrições impostas ao

absolutismo. Contudo, no estágio atual da sociedade, a formulação do conteúdo e alcance

desses direitos se inserem no âmbito do Estado Democrático de Direito, de tal forma que

Habermas propõe uma reconstrução do sistema de direitos fundamentais com o objetivo de

garantir as condições procedimentais do discurso para que os destinatários da norma possam

participar, em igualdade, dos processos de discussão e deliberação (CLÈVE, 2011, p. 383).

Para tal reformulação, Habermas (1997, p. 138) detalha que o nexo interno entre a

soberania popular e os direitos humanos somente se estabelecerá se o sistema de direitos

apresentar as condições necessárias para participação discursiva e deliberativa dos cidadãos,

onde a sua legitimação está apoiada no arranjo comunicativo. “Esse sistema deve contemplar

os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso

11 “Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria” (BARROSO, 2015, p. 112).

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

19

queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo”

(HABERMANS, 1997, p. 154)12.

O Ministro Cesar Peluzo, em discurso proferido em Washington (2011), assevera que

o Estado Democrático de Direito se consolidou como modelo de organização do poder

político de tal modo que Estado, democracia e Constituição se legitimam mutuamente,

definindo o que Bobbio (2004, p. 63) denominou de “regras do jogo”13.

Adentrando na realidade brasileira, o jurista (PELUSO, 2011) assevera que a

experiência político-institucional dos últimos 23 anos ratifica os nexos evidentes entre

Constituição, direitos fundamentais e democracia. Aduz que sem Constituição não há como se

reconhecer direitos fundamentais.

Por sua vez, em um espaço onde os direitos fundamentais não são reconhecidos,

protegidos e vivenciados, não há democracia. Por fim, sem o ambiente democrático não há

um contexto minimamente necessário para a solução pacífica de conflitos e para convivência

ética. “A democracia depende, assim, de um contexto de liberdade e igualdade promovido

pelo Estado de Direito” (CLÈVE, 2011, p. 382).

Por conseguinte, desde a constituição do Estado moderno, as demandas do homem

vêm influenciando diretamente na criação, forma, conteúdo e alcance dos direitos

fundamentais. De um primeiro momento, onde os reclamos sociais eram puramente de

abstenção da intervenção estatal, passou-se, inclusive, para ocasiões em que foi necessária a

atuação positiva do poder público para concretização de tais direitos. Com Habermas, surgiu a

questão da legitimação dos direitos fundamentais em um modelo de democracia deliberativa.

Nota-se, assim, que a cada fase distinta, um clico de direitos fundamentais se acopla ao outro

12 Em sua obra Direito e Democracia, Habermas (1997, p.159-160) estabeleceu cinco categorias de direitos fundamentais: “(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; (2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo; e (5) Direitos fundamentais a condição de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para o aproveitamento em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4)”. 13 Dentre as exigências que visam conferir garantias contra a usurpação do poder legítimo tem-se: (1) “a constitucionalização da oposição, que permite (isto é, torna lícita) a formação de um poder alternativo, ainda que nos limites das chamadas regras do jogo, ou seja, a formação de um verdadeiro contrapoder, que pode ser considerado, embora de modo um tanto ou quanto paradoxal, como uma forma de usurpação legalizada” (grifo nosso); (2) “a investidura popular de governantes e a verificação periódica dessa investidura por parte do povo, através da gradual ampliação do sufrágio” (BOBBIO, 2004, p. 63).

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

20

de modo a conferir maior efetividade aos reclamos do momento, que variam no espaço e

tempo.

Dando continuidade, é relevante expor sucintamente as peculiaridades históricas do

Brasil, que remontam desde o seu período colonial, que conduziram à constituição do

panorama sociopolítico de desrespeito à coisa pública na seara dos direitos fundamentais e o

ambiente pernicioso criado e desenvolvido entre a iniciativa privada e setor público.

1.2 Do Brasil Colônia ao cenário atual: ambiente fértil para a corrupção

Era domingo, dia 22 de abril do ano 1.500, quando parte da expedição que partiu de

Lisboa no mês anterior14, sob o comando-mor de Pedro Álvares Cabral, fidalgo português

com pouco mais de 30 anos de idade, desembarcou na Bahia, na região hoje pertencente à

Cidade de Porto Seguro, batizada naquela data histórica de ilha de Vera Cruz

(GARSHAGEN, 2015, p. 18).

No tocante à polêmica alteração da rota marítima da expedição portuguesa –

mudança para a direita (oeste) – que culminou no descobrimento do Brasil, recorda-se que

“desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses ao Brasil foi obra do acaso,

sendo produzida pelas correntes marítimas, ou se já havia conhecimento anterior do Novo

Mundo e Cabral estava incumbido de uma espécie de missão secreta” (FAUSTO, 1995, p.

30). Intencional ou acidental, o fato é que se inaugurou uma nova fase da história além-mar,

que futuramente veio a constituir a multicultural sociedade brasileira.

O registro oficial do descobrimento foi lavrado pelo escrivão Pero Vaz de Caminha,

componente daquela tripulação expedicionária, descrevendo a terra recém-descoberta e os

seus habitantes “pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”15.

Malgrado seja documento bastante mencionado e lido desde os primeiros anos

escolares, parece que os olhares se voltam muito à descrição objetiva e subjetiva na Carta

sobre a nova terra e os seus autóctones, todavia se omitem acerca da importância de sua parte

final, que veio, de forma inédita, inseminar por escrito aquilo que seria o primeiro gesto

espúrio da relação público-privada em terras brasileiras.

14 Por volta do meio-dia do dia 08 de março de 1500, uma frota com 13 navios portugueses deixaram Lisboa com destino oficial às Índias (FAUSTO, 1995, p. 30). 15 A Carta de Pero Vaz de Caminha é considerada a certidão de nascimento do Brasil. Foi escrita em Porto Seguro/BA, no dia 1º de maio de 1.500.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

21

Assim Caminha finaliza seu registro dirigido ao Rei D. Manuel I (UNAMA, [200-?],

p. 14):

E pois que, Senhor, é certo que assi neste cargo que levo como em outro qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim mui bem servido, a ella peço que por me fazer singular mercê mande vir da ilha de São Thomé Jorge d’Osouro, meu genro, o que dela receberei em muita mercê.

Aproveitando a oportunidade, Caminha pede ao rei autorização para que seu genro,

Jorge d’Osouro, degredado16 na ilha de São Tomé por roubo a uma igreja e agressão um

clérigo, retorne à Portugal. “Inaugurou a nossa excêntrica característica cultural de pedir

favores ao governo para conseguir cargos e privilégios, especialmente em se tratando de

parentes” (GARSHAGEN, 2015, p. 21).

Outra informação relevante contida na Carta de Caminha é a de que o comandante-

mor da expedição, Pedro Álvares Cabral, determinou que dois degredados passassem a

conviver com os indígenas para aprender sua língua, hábitos e costumes. A tripulação partiu

“deixando lacrimosos dois degredados incumbidos de inquietarem da terra e irem aprendendo

a língua” (ABREU, 1998, p. 36).

Assim, constata-se que o Comandante-mor da expedição do descobrimento

selecionou dois degredados para marcarem moradia fixa na então ilha de Vera Cruz, sendo,

desse modo, os primeiros habitantes oficiais da coroa portuguesa a residirem na colônia

brasileira. “Criminosos condenados e em pleno cumprimento de pena permaneceram na terra

recém-descoberta como representantes da coroa portuguesa (...) mesmo que essa prática fosse

comum nas descobertas portuguesas e nas de outras nações, não deixa de ser perturbadora”

(GARSHAGEN, 2015, p. 21).

Portanto, dois fatos inquietantes já se sobressaem nos primeiros dias do mês em que

houve o descobrimento. Um de que na certidão de nascimento do Brasil – a Carta de Caminha

– continha pedidos de favores pessoais pelo seu elaborador. Outro de que os primeiros

representantes da coroa a se fixarem no Brasil foram criminosos degredados, que sequer

queriam permanecer em terras brasileiras.

Acrescenta-se que os contatos iniciais com a população indígena, quando da chegada

dos portugueses em terreno brasileiro, no século XVI, vieram acompanhados de transações

16 Degredado era o indivíduo condenado ao exílio do Reino de Portugal pelo cometimento de algum ilícito.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

22

desarrazoadas, fundadas na exploração severa dos recursos naturais do país pelo extrativismo

português em troca de objetos de valores insignificantes17 e, posteriormente, na utilização da

mão de obra forçada (FAUSTO, 1995). Ainda que tais fatores não possam ser qualificados

estritamente como atos de corrupção, já demonstravam a criação de um ambiente propício

para sua proliferação.

Posteriormente, no decorrer da história, a coroa portuguesa notou que, para a

manutenção de sua preciosa colônia, era necessária uma política de estímulo de povoamento

do solo brasileiro através do envio de fidalgos portugueses, vez que, até então, não havia

interesse na transferência da corte ou seu corpo administrativo.

Para catalisar esse processo, a coroa delegou aos mencionados fidalgos a função de

povoar e organizar as primeiras instituições públicas da colônia. Acontece que, para estimulá-

los, a metrópole não realizava controle e vigilância adequados, conferindo certa liberdade

exacerbada aos enviados.

Durante o Brasil Colônia, a cobrança de tributos era realizada por esses fidalgos e

não diretamente pela coroa portuguesa. Essa prática, dada as circunstâncias mencionadas

acima, conduziu as primeiras extorsões de propina pelos cobradores privados, os quais

exigiam dos contribuintes quantias maiores do que as necessárias para o devido pagamento

dos tributos, os quais outra alternativa a não ser efetuar os pagamentos exigidos, visto que aos

fidalgos também cabiam o controle dos corpos militares locais (MEDICI, 2013, p. 55).

Essa concessão de privilégios e vantagens pessoais para a aristocracia contribuiu para

a formação de setores da iniciativa privada que, se por um lado auxilia na manutenção da

estrutura do poder governamental vigente, por outro, tem grandes benefícios em troca,

causando prejuízos à coletividade, que é a responsável em arcar com todos os custos. “A

estratificação social gerada historicamente tem também como característica a racionalidade

resultante de sua montagem como negócio que a uns privilegia e enobrece, fazendo-os donos

da vida, e aos demais subjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio” (RIBEIRO,

1995, p. 212).

Assim lecionam Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves (2013, p. 45-46):

Especificamente em relação ao Brasil, a corrupção tem suas raízes entranhadas na própria colonização do País. O sistema colonial português foi erguido sobre os pilares de uma monarquia absolutista, fazendo que Monarca e administradores se mantivessem unidos por elos eminentemente pessoais e

17 “Os índios forneciam a madeira e, em menor escala, farinha de mandioca, trocadas por peças de tecidos, facas, canivetes e quinquilharias, objetos de pouco valor para os portugueses” (FAUSTO, 1995, p. 42).

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

23

paternalistas, o que gerou a semente indesejada da ineficiência. Não bastasse isso, tinham por objetivo comum o lucro desenfreado e, como única ação, o desfalecimento das riquezas da colônia a si subjugada, sem qualquer comprometimento com ideais éticos, deveres funcionais ou interesses coletivos. Remonta a essa época a concepção de que a coisa pública é coisa de ninguém, e que a sua única utilidade é satisfazer aos interesses da classe que ascendeu ao poder.

Acrescenta-se que a grande distância entre a colônia e a metrópole portuguesa,

milhares de quilômetros que, à época, só poderiam ser vencidos em embarcações, também

dificultava eventuais fiscalizações.

A vinda da família real portuguesa para o Brasil Colônia, no ano de 1808, juntamente

com os principais cargos do alto escalão da corte, fugindo da iminente invasão napoleônica,

criou sérios problemas financeiros para manutenção dos privilégios dos recém-chegados no

Rio de Janeiro. “Era preciso alimentar e pagar as despesas de uma corte ociosa, corrupta e

perdulária” (GOMES, 2014, p. 139). Para tanto, a aristocracia da colônia contribuiu de bom

agrado, na convicção de receber benesses generosos com o auxílio. Também houve o aumento

desarrazoado de tributos, que dissipou o entusiasmo dos brasileiros dos primeiros dias da

chegada da corte.

Assim também ocorreu a independência da colônia perante a coroa portuguesa. Após

67 anos de duração do Brasil Colônia, incumbiu ao rei D. Pedro I, no ano de 1822, negociar e

romper o fim da submissão ao reino de Portugal. Não obstante tenha sido um avanço político

para os interesses do nascente país, não se pode olvidar que houve seus custos durante o

processo. “O grande problema foi que as complicadas negociações para garantir o apoio dos

grandes fazendeiros e dos comerciantes para declarar a independência reforçaram a cultura

estatista baseada em promessas de governo em troca de satisfação de poderosos interesses

privados” (GARSHAGEN, 2015, p. 21).

A Proclamação da República, no ano de 1989, ocorreu com o apoio do exército,

fazendeiros, profissionais liberais e intelectuais – menos do povo. Depôs uma Monarquia

enfraquecida comandada por um imperador velho, doente e cansado, que estava politicamente

dividido18 (FAUSTO, 1995, p. 235).

18 “Todas essas dificuldades resultavam de passivos sociais, econômicos e políticos que o Brasil carregava desde a sua fundação. A construção do país depois da Independência havia sido difícil e tortuosa. O Império era imenso, diversificado, complexo, difícil de administrar. De um lado, havia um grande território, repleto de riquezas naturais e oportunidades. De outro, escravidão, analfabetismo, isolamento e rivalidades políticos e regionais (GOMES, 2013, p. 83).

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

24

Foi no primeiro período republicano do país, conhecido como República Velha, que

o coronelismo19 atingiu seu ápice, ajudando “a lapidar uma relação promíscua entre agentes

privados e políticos e a reforçar uma relação de dependência que estrutura a mentalidade

estatista (GARSHAGEN, 2015, p. 110).

Observa-se, no decorrer da história brasileira, desde sua concepção, que cada

mudança política profunda é acompanhada paradoxalmente das antigas práticas viciadas que

maculam a coisa pública em prol de interesses pessoais. “Não é por acaso, pois, que o Brasil

passa de colônia a nação independente e de Monarquia a Republica, sem que a ordem

fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba” (RIBEIRO, 1995, p. 219).

Transcorridos diversos presidentes e ditadores desde a Proclamação da República, o

Brasil finalmente consegue, em sua história recente, formatar-se como um Estado

Democrático de Direito, a partir da Constituição de 1988, a qual, dentre variados aspectos,

enumera não exaustivamente direitos e garantias fundamentais, divide harmoniosamente os

Poderes, estrutura o Estado, estabelece programas e metas a serem alcançadas, enaltece a

importância de princípios explícitos e implícitos etc. Dentre seus postulados, trata

normativamente, seja através de princípios, seja por regras, acerca da probidade

administrativa e respectivas sanções para os atos que a macule.

Embora os instrumentos de repressão aos atos ímprobos estejam enunciados no

documento político-jurídico máximo do país desde o final da década de 1980, dados

divulgados pelos Estados Unidos através da Foreign Corruption Practices Act (FCPA), em

janeiro de 2017, revelam que o Brasil vai na contramão de toda sua própria diretriz normativa

constitucional, ratificando os velhos vícios inerentes à confusão de interesses público-

privados que remontam desde os pedidos de favores pessoais contidos na Carta de Caminha,

como se nada houvesse mudado, no quesito de respeito à coisa pública, do período do Brasil

Colônia, passando pela Monarquia, até a chegada da República.

Baseando-se em dados obtidos do Departamento de Justiça e do órgão regulador

Securities and Exchange Commission20 norte-americanos, Foreign Corruption Practices Act

19 Sobre o coronelismo, Fausto (1995, p. 263) ensina que “representou uma variante de uma relação sociopolítica mais geral – o clientelismo –, existente tanto no campo como nas cidades. Essa relação resultava da desigualdade social, da impossibilidade de os cidadãos efetivarem seus direitos, da precariedade ou inexistência de serviços assistenciais do Estado, da inexistência de uma carreira no serviço público. Todas essas características vinham dos tempos da Colônia, mas a República criou condições para que os chefes políticos locais concentrassem maior soma de poder. Isso resultou, principalmente, da ampliação da parte dos impostos atribuída aos municípios e da eleição de prefeitos. Do ponto de vista eleitoral, o ‘coronel’ controlava os votantes em sua área de influência. Trocava votos em candidatos por ele indicados por favores tão variados como um par de sapatos, uma vaga no hospital ou um emprego de professora”. 20 A Securities and Exchange Commission equivale a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) do Brasil.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

25

(FCPA) constata que o Brasil passou a liderar pela primeira vez o ranking elaborado nos

Estados Unidos como a nação mais citada por empresas globais investigadas naquele país por

negociações envolvendo o pagamento de propinas no exterior (CARVALHO, 2017).

Esse descompasso entre a previsão normativo-constitucional de repressão à

improbidade com o que ocorre efetivamente no cotidiano dos brasileiros desde o Brasil

Colônia não passou despercebido por Garshagen (2015, p. 110): “a Constituição de 1988,

aliás, é o exemplo perfeito do casamento da utopia política com a distopia da realidade: muito

direito para pouco dever e mínima responsabilidade”.

Nesse diapasão, é nesse clima vulnerável em que é verificada mais firmemente a

presença da corrupção, a qual foi se disseminando na medida em que as instituições públicas

foram sendo criadas e, posteriormente, ampliadas. Contudo, esclareça-se, desde logo, que não

foi algo exclusivo do Brasil, porém tem relação peculiar com o processo de construção

histórico do país.

Nessa conjectura, a preocupação com a probidade administrativa no Brasil assume

contornos imensuráveis para a concretização dos direitos fundamentais tendo em vista que a

malversação do patrimônio público remonta a própria construção embrionária da sociedade

brasileira, que se manifesta com uma propensão para confusão entre a coisa pública e

interesses privados, gerando prejuízo para a coletividade (SOBRANE, 2010).

Trazendo essa concepção para a atual realidade brasileira, vislumbra-se um momento

peculiar inaugurado após a redemocratização com a promulgação da Constituição de 1988,

diante do surgimento de anseios sociais pelo respeito à coisa pública, conforme adiante será

exposto.

1.3 Anseios após a redemocratização brasileira

Como foi dito, no decorrer da história do homem, ao menos na cultura jurídica

ocidental, registra-se a evolução dos direitos fundamentais em dimensões ou gerações de

acordo com o surgimento paulatino de necessidades, de forma que cada dimensão se revela

suficiente e eficaz apenas por um determinado período, sendo necessário ser complementado

por outras novas categorias de direitos21.

21 Não há disputa, supressão e nem hierarquia entre as dimensões, mas sim uma relação de complementariedade. “Apesar da classificação dos direitos humanos em gerações, conforme explicitado acima, vigora nos dias atuais o princípio da indivisibilidade, o qual sustenta que não há hierarquia nem prioridade entre elas. Uma geração não pode efetivar-se sem a outra. De que adianta ter liberdade (direitos individuais – 1ª geração) sem ter saúde ou acesso à educação (direitos sociais – 2ª geração) ou um meio ambiente sadio (direito coletivo – 3ª geração)?

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

26

Ao transpor essa linha de raciocínio para a realidade jurídico brasileira, observa-se

que a Constituição Cidadã de 1988 foi concebida como uma Lei Fundamental imprescindível

para a ruptura do regime de exceção outrora vigente22, este manifestado pela notória restrição

de direitos e garantias fundamentais, bem como pela prevalência e ingerência de um Poder

Executivo autoritário e antidemocrático em detrimento dos outros Poderes e dos cidadãos

(PIOVESAN, 2015, p. 89-90).

“A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição

de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de

direito” (BARROSO, 2015, p. 492).

O regime de exceção iniciado em 1964 findou-se definitivamente, na ordem jurídica,

com a promulgação da Constituição Federal de 1988, onde foram consagradas todas as cinco

dimensões ou gerações de direitos fundamentais, inclusive com referência explícita à defesa

da paz e solução pacífica dos conflitos, os quais, para Bonavides (2009, p. 593), são direitos

fundamentais de quinta dimensão.

A Constituição de 1988 representou o mais avançado texto jurídico-político já

concebido no Brasil. Com inspirações nas constituições democráticas do pós-guerra, o seu

texto filia-se “ao constitucionalismo dirigente, compromissário e social23, que tão bons frutos

renderam nos países em que foi implantado” (STRECK, 2002, p. 358)

Inaugurada essa nova fase de redemocratização do país, criou-se uma nova realidade

no panorama jurídico pátrio. A recente Constituição trouxe em seu bojo novos institutos e

antigos conhecidos restaurados ou ainda repaginados, mais que presentes nesse momento para

Seria possível usufruir essa liberdade? Parece claro que não se pode realmente considerar o indivíduo isolado do mundo, posto que é na sua relação com a sociedade que o ser humano vai exercer seus direitos” (PIACENTINI, 2006, p. 176). 22 “A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. (Palmas.) A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. (Palmas.) Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (Muito bem! Palmas.) Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. (Muito bem! Palmas.) A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia (...) Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria”. Trechos do discurso histórico do então parlamentar Ulysses Guimarães, durante a Assembleia Constituinte, no dia 05 de outubro de 1988 (DISCURSO..., [199-]). 23 A Constituição de 1988 é dirigente ou programática porque não se exaure com a organização do Estado e na imposição de limites ao exercício dos poderes estatais, indo além, prevendo direitos e estabelecendo metas e programas a serem cumpridas pelo Estado e pela sociedade civil. Também se qualifica como compromissária por abrigar o pluralismo social, as diferenças, não representando a ideologia de uma política única, pura e ortodoxa. A adjetivação social relaciona-se com a sua previsão, em sede de direitos fundamentais, dos direitos sociais (segunda dimensão) e os de ciclos posteriores (SARMENTO; SOUZA NETO, 2012).

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

27

atender aos pleitos e reclamos sociais de uma população carente de direitos e garantias

mínimos, visando o combate às intervenções desarrazoadas do poder público nos direitos

civis, a promoção de medidas que assegurassem a efetividade de suas implementações e o

estabelecimento de princípios nucleares que servem de ponto de partida e chegada para todo

ordenamento jurídico24.

A respeito, Bonavides (2009, p. 545-546) destaca que:

A Constituição de 5 de outubro de 1988 foi de todas as Constituições brasileiras aquela que mais procurou inovar tecnicamente em matéria de proteção aos direitos fundamentais. Não o fez porém sem um propósito definido, que tacitamente se infere do conteúdo de seus princípios e fundamentos: a busca em termos definitivos de uma compatibilidade do Estado social com o Estado de Direito mediante a introdução de novas garantias constitucionais, tanto do direito objetivo como do direito subjetivo.

Passados mais de duas décadas da sua existência, já é possível afirmar que houve um

avanço significativo no amadurecimento das instituições públicas e na promoção de direitos e

garantias individuais.

Fala-se em amadurecimento das instituições públicas porque, mesmo em situações de

crise, as soluções são procuradas dentro da legislação vigente, evitando alternativas que

ensejem em promessas de soluções mágicas que contrariem as normas constitucionais e

legais. Luiz Roberto Barroso (2015, p. 492) assegura que:

A Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios deflagraram crises que, em outros tempos, dificilmente teriam deixado de levar à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar, sob acusações de corrupção. Mas houve outros, que trouxeram dramáticos abalos ao Poder Legislativo, como o escândalo envolvendo a elaboração do Orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como “mensalão”. Mesmo nessas conjunturas, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Não há como deixar de celebrar o amadurecimento institucional brasileiro.

Tanto que, não raro, um dos temas trazidos para os debates jurídicos é justamente a

insegurança jurídica ocasionada pelo demasiado apego, sob a justificativa de promover

direitos e garantias fundamentais, de ponderações principiológicas e/ou durante as 24 “Os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano ético para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico” (BARROSO, 2015, p. 238).

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

28

implementações de ações afirmativas (política de cotas, redução da maioridade penal,

ativismo judicial, políticas públicas sobre inserção do homossexualismo na rede de ensino

escolar etc.). Em que pesem seus méritos e benefícios, é preciso cautela (FERREIRA FILHO,

2012, p. 142)

...o equacionamento dessas ações afirmativas é extremamente delicado, pois não só pode ter efeitos negativos, como ensejar privilégios em favor dos grupos por elas avantajados. Ora, isto importaria em violação do princípio constitucional da igualdade, portanto, em inconstitucionalidade. Alguns critérios devem ser levados em conta para aferir a constitucionalidade das ações afirmativas25.

É cada vez mais comum, sobretudo no Poder Judiciário, a invocação da matriz

principiológica constitucional na fundamentação das decisões, algumas contrariando o

previsto e estabelecido pelo próprio legislador. O exagero em tais práticas cria um clima de

insegurança jurídica diante da imprevisibilidade. “La certeza del Derecho se traduce,

basicamente, en la posibilidad de conocimiento prévio por los ciudadanos de las

consecuencias jurídicas de sus actos26” (LUÑO, 1994, p. 143).

Barcellos (2005, p. 185), em estudo sobre o assunto, constata uma relação

inversamente proporcional entre princípios e segurança jurídica. De modo que, quanto mais

princípios existirem em dado ordenamento jurídico, maior será o grau de flexibilidade e sua

capacidade de acomodar e solucionar situações imprevistas. Contudo, também crescerão a

insegurança em decorrência da imprevisibilidade e a falta de uniformidade, com prejuízos

evidentes para a isonomia.

Mesmo com esses eventuais abusos, é inegável que a recolocação dos princípios no

centro do sistema jurídico representou uma mudança de paradigma necessária ao rompimento

dos vestígios do regime de exceção e à consolidação do Estado Democrático de Direito no

país.

25 São eles: 1) a identificação do grupo desfavorecido, e seu âmbito, deve ser objetivamente determinada. Regra de objetividade; 2) A medida do avantajamento decorrente das regras deve ser ponderada em face da desigualdade a ser corrigida. Regra de medida ou proporcionalidade; 3) As normas de avantajamento devem ser adequadas à correção do desigualamento a corrigir. Regra de adequação. Tal adequação se exprime na sua racionalidade. Por isso, é também esta uma regra de razoabilidade; 4) A finalidade dessas normas deve ser a correção de desigualdades sociais. Regra de finalidade; 5) As medidas, como aponta a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, devem ser temporárias. Regra de temporariedade. A esses critérios pode-se acrescentar um outro, um critério reverso: 6) A não onerosidade (excessiva) para outros grupos ou para a sociedade como um todo. É uma regra de prudência: Não cabe na vida social e política o absoluto: Fiat justitia, pereat mundus (faça-se justiça ainda que o mundo pereça). 26 Antonio-Enrique Pérez Luño (1994, p. 143) prossegue, em sua obra La seguridade jurídica, afirmando que “con ello, se tende a esteblecer ese clima cívico de confianza en el orden jurídico, fundada en pautas razonables de previsibilidad, que es presupuesto y función de los Estados de Derecho”.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

29

Malgrado tantos avanços na seara dos direitos fundamentais27, observa-se, na

realidade brasileira em específico, um problema real, evidente e, algumas vezes,

aparentemente intransponível, que diz respeito à ineficácia dos mecanismos de combate à

corrupção, que atualmente é considerado um dos assuntos mais discutidos politicamente no

Brasil.

Findo o regime militar, esperava-se que o amadurecimento das instituições públicas e

o restabelecimento da ordem constitucional iriam ser acompanhados da redução, em concreto,

das situações envolvendo infrações ligadas à corrupção ou, ao menos, da efetividade de

punição dos corruptos e corruptores.

A própria Carta Republicana brasileira de 1988 inovou ao trazer em seu bojo a

previsão expressa do ato de improbidade no capítulo atinente à Administração Pública, além

do princípio da moralidade administrativa (DI PIETRO, 2015 p. 890):

Com a Constituição de 1988, foi previsto o princípio da moralidade no artigo 37, caput, entre os princípios a que se sujeita a Administração Pública direta e indireta de todos os níveis de Governo e, no artigo 5º, inciso LXXIII, foi inserida, como fundamento para propositura da ação popular, a lesão à moralidade administrativa. Além disso, no § 4º, do mesmo artigo 37, ficou estabelecido que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Por sua vez, o artigo 15, ao indicar os casos em que é possível a perda ou suspensão dos direitos políticos, expressamente inclui, no inciso V, a “improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º”.

As diferenças ou semelhanças dos princípios da probidade administrativa e

moralidade são discutíveis. Aquele pode ser concebido como um subprincípio da moralidade. No

entanto, probidade também é recepcionada como conceito mais abrangente do que o da moralidade,

vez que aquela não contemplaria apenas elementos morais. Ainda, em última instância, as expressões

podem se equivalerem, tendo a Constituição, em seu texto, mencionado a moralidade como princípio

(art. 37, caput) e a improbidade como lesão ao mesmo princípio (art. 37, § 4º).

27 Alexandre Albagli, em sua Dissertação, bem recorda que “é natural, não obstante, que abusos existam. Há, e a jurisprudência demonstra isto, inúmeras normas de decisão marcadas pelo excentrismo, pela obscuridade, pelo personalismo, preferências pessoais do juiz. De qualquer sorte, essa ‘abertura’ interpretativa, ou plasticidade, fruto da normatividade (pós-positivista) dos princípios, pode contribuir sobremaneira para o subjetivismo judicial” (2014, p. 71). E continua asseverando que “para o subjetivismo jurídico existem mecanismos de contenção que devem ser cobrados. Trata-se, em bem verdade, de uma segurança jurídica possível – ou de uma insegurança jurídica evitável” (2014, p. 74).

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

30

Retomando a situação brasileira, é notório que os escândalos, quase que diários, de

novos casos de corrupção28 envolvendo valores estratosféricos – as cifras divulgadas nos

noticiários saltaram de milhões para bilhões de reais em desvio de contratos para pagamento a

agentes públicos29 – somados à dificuldade no combate efetivo a essa modalidade de ilícito

(seja na esfera administrativa, seja na penal) estão incrementando um sentimento de revolta na

população brasileira, inclusive com a eclosão cada vez mais frequente de manifestações nas

ruas pela sociedade civil.

Mateus Bertoncini (2007) destaca que o problema não é a ausência de leis

sancionadoras da corrupção, mas na sua ineficácia, por absoluta apatia das elites – as maiores

beneficiárias – em reagir contra os desmandos administrativos, confirmando o que Ruy

Barbosa denominou um “regime da impunidade”, em detrimento do povo brasileiro, sua

maior vítima.

Em análise da ineficiência do sistema judicial brasileiro de combate à corrupção,

Diogo Castor de Mattos (2015, p. 18) escreve:

Nesse contexto, as garantias processuais são tão superestimadas que se esquece que o processo não é um fim em sim mesmo, mormente quando milhares de ações criminais são fulminadas à espera do segundo reexame de mérito no Superior Tribunal de Justiça (...) Em conclusão, “no Brasil, contam-se como exceções processos contra crimes de corrupção e lavagem que alcançam bons resultados. Em regra, os processos duram décadas para ao final ser reconhecida alguma nulidade arcana ou prescrição pelo excesso de tempo transcorrido”30.

Trata-se efetivamente de um problema de interpretação constitucional. Mário Jorge e

Silva Neto (2016, p. 50) asseveram que a inadequação do procedimento interpretativo

28 Não parece ser necessário muito esforço teórico para demonstrar a realidade da má gestão pública no Brasil, é verdade. Não estamos bem situados nos índices de Transparência Internacional, tampouco nos noticiários nacionais e internacionais, menos ainda na percepção geral da cidadania brasileira e, sobretudo, em face dos resultados que os mais variados Governos têm alcançado em suas gestões, cujas falhas, lacunas, vícios e problemas saltam aos olhos da população, que sofre na “carne” e no “espírito” todos os seus possíveis desdobramentos. O espetáculo dos escândalos colabora para o agravamento das percepções pessimistas ou deprimidas, afetando todas as instâncias do Poder Político, arraigando-se nas Administrações Públicas de todos os níveis. Tais constatações não exigem maiores esforço, visto que decorrem de nosso cotidiano, do bom senso que há de marcar observadores isentos e atentos (OSÓRIO, 2011). 29 Os números divulgados pelo Ministério Público Federal somente no caso “Lava Jato” retratam que houve a instauração de 1.291 procedimentos, 643 buscas e apreensões, 175 mandados de condução coercitiva, 74 mandados de prisão preventiva, 91 mandados de prisão temporária, 6 prisões em flagrante, 61 acordos de colaboração premiada, 108 pedidos de cooperação internacional, o oferecimento de 44 denúncias em desfavor de 216 pessoas (sem repetição de nome), 106 pessoas condenadas, a estimativa de desfalque de 6,4 bilhões do erário e a já recuperação de 2,9 bilhões de reais (A LAVA JATO ..., 2016). 30 Nessa citação Mattos (2015, p. 18) menciona trecho de autoria de Moro e Bochenek, no artigo “O problema é o processo” publicado no Jornal O Estado de São Paulo, na edição de 29 de março de 2015.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

31

constitucional adequado produz efeitos altamente desastrosos, inclusive no que se refere à

concretização dos direitos fundamentais, cujas dificuldades de efetivação estão intimamente

ligadas à falta de consciência constitucional31.

“Embora já tenhamos, desde 1988, um novo modelo de Direito, nosso modo-de-

fazer-Direito continua sendo o mesmo antanho, isto é, olhamos o novo com os olhos do velho,

com a agravante de que o novo (ainda) não foi tornado visível” (STRECK, 2002, p.187).

Nesse sentido, o momento atual conduz inexoravelmente à pretensão de medidas

eficazes do resguardo do patrimônio público, de tal modo que leva à reflexão sobre a possível

reformulação da própria significação do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro,

em especial quando se está em debate com questões relativas à preservação ou restauração da

probidade administrativa na medida em que está na seara de concretização dos direitos

fundamentais.

O administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 1095) ilustra com

maestria a força do contexto vigente na modificação da própria forma de compreensão do

Direito:

As ideias jurídicas vigentes em um dado período sofrem inevitável influência do ambiente cultural em que estejam imersas. Com efeito, o mundo do Direito não vive em suspensão, alheio ao contexto socioeconômico que lhe serve de engaste. Pelo contrário, as concepções dominantes em uma sociedade são as que ofertam a matéria-prima trabalhada pelos legisladores e depois pelos intérpretes das regras por ele produzidas. O substrato político, econômico e social conformador de uma coletividade produz uma certa “cultura”, ou seja, uma dada maneira de ver, compreender e valorar o conjunto de relações sociais que ali se processa, de maneira que é neste contexto que residem os ideais presidentes de sua coesão.

A própria concepção da Constituição de 1988, como fica demonstrada desde sua fase

de Assembleia Constituinte, ergue-se com o forte discurso social de combate à corrupção e de

fiscalização. “A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune

31 “A almejada consolidação de uma consciência constitucional no Brasil é um processo em fase embrionária para o qual, como visto, é duvidosa a contribuição da doutrina ao abrigar a ideia de que, finalmente, o sistema da ciência do direito constitucional triunfou, aqui e ali” (SILVA NETO, 2016, p. 22). Percebe-se que o autor, em posição contrária a constitucionalistas como Barroso, traz fortes críticas ao constitucionalismo brasileiro, qualificando como tardio em virtude de causas históricas, políticas e jurídicas que impedem a constituição de uma cultura constitucional, isto é, da formação de comportamentos e condutas, públicas ou privadas, propensas a: I) preservar a vontade da constituição; II) efetivar, no plano máximo possível, os princípios e normas constitucionais; e III) disseminar o conhecimento a respeito do texto constitucional.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

32

tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não

deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública32”.

Portanto, vislumbra-se que a redemocratização brasileira advinda com a nova ordem

constitucional representou indubitavelmente um significativo avanço em sede de direitos

fundamentais, até então cerceados pelo regime de exceção. Entrementes, a concretização

desses mesmos direitos, em especial quando relacionados a temas de repressão à malversação

do erário e assuntos correlatos, ficou bastante aquém do que foi formalizado no texto

constitucional.

E essa deficiência de efetividade afeta diretamente toda coletividade, na medida em

que prejudica33 (i) a prestação de serviços públicos de qualidade (saúde, segurança pública

educação etc.); (ii) acarreta no aumento da tributação para compensar os recursos desviados e

desperdiçados; (iii) prejudica a imagem do país no cenário internacional;34 e (iv) descrença

social perante as instituições35.

Esse imbróglio merece a atenção devida até para não desaguar naquilo em que se

convencionou de compromissos dilatórios presentes em uma linguagem constitucional

hipertroficamente simbólica, em que há a previsão constitucional como meio de diminuir as

tensões existentes entre os grupos interessados, prorrogando a solução do problema para um

futuro incerto. Acalmam-se os ânimos, dando esperança aos incrédulos, todavia a situação a

quo persiste (NEVES, 2011, p.123).

Essa simbologia normativa constitucional, carente de efetividade, teve durante as

duas primeiras décadas, após a redemocratização a função ideológica de promover a

confiança no Estado ou no governo. Contudo, paradoxalmente, converteu-se em fator de

desconfiança na própria figura do Estado, como bem previu Neves (2011, p.123).

32 Trechos do discurso do então parlamentar Ulysses Guimarães, durante a Assembleia Constituinte, no dia 05 de outubro de 1988 (DISCURSO..., [199-]). 33 Malgrado todos os prejuízos advindos com a corrupção, esta produz inusitadamente alguns aspectos positivos, como destaca o autor espanhol Jorge F. Malem Seña (2014, p. 61). “Parece existir certa correlación entre la corrupción y la modernización de um estado y que, por lo tanto, bajo ciertas circunstancias, conviene incentivar las práticas corruptas, y no precisamente prohibirlas. Los efectos <<modernizadores>> de la corrrupción, de acuerdo com estas tesis, pueden examinarse según el impacto que tengan em el desarrollo económico de la sociedad, em la estructura y en la integración social, y em el cambio em las instituciones políticas y administrativas”. 34 Segundo dados apresentados pela organização Transparência Internacional, no último levantamento, realizado em 2015, o Brasil, piorando em comparação ao ano antecedente, obteve o 38º lugar em uma relação de 168 países e territórios, estando em condições mais desfavoráveis do que nações como Ruanda, Namíbia, Senegal e Jamaica. “A country or territory’s score indicates the perceived level of public sector corruption on a scale of 0 (highly corrupt) to 100 (very clean). A country's rank indicates its position relative to the other countries in the index. This year's index includes 168 countries and territories. Click on the column headings to sort the results, or use the search to view the results for one country.” (TRANSPARENCY, 2015) 35 A descrença social perante as instituições atinge sobretudo o Legislativo e o Executivo (BENEVIDES, 1991, p. 197).

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

33

De nada adianta prever o respeito à probidade e à moralidade públicas se

efetivamente não há o respeito pelos indivíduos (abarcando os que compõem a estrutura

estatal) e a devida punição, com restabelecimento dos valores morais e resgate das quantias

desviadas. A ausência de punição para esses tipos de infrações funciona, inclusive, como

efeito catalisador de sua própria proliferação.

Assim, merece o aprofundamento e a efetivação que lhe são desejados pela ordem

constitucional, nesse momento delicado pelo qual passa o país, das normas jurídicas que

vieram para resguardar a probidade da administração pública.

Obviamente, não se propõe o sacrifício de direitos e garantias constitucionais

arduamente conquistados no decorrer da história. Contudo, o falso discurso de respeito aos

direitos fundamentais não pode servir para a própria inviabilidade desarrazoada da

concretização de outros direitos fundamentais, especialmente quando se está em debate

questões relacionadas à probidade.

Nesse contexto, é inequívoco que um dos principais anseios após a redemocratização

brasileira, manifestado diariamente no cotidiano, é o combate efetivo à corrupção e às práticas

similares moralmente condenáveis pela ordem constitucional. A implementação de medidas

jurídicas, administrativas e sociais que contemplem o respeito à coisa pública é uma

de9manda atual da sociedade brasileira.

Prender-se na ilusão da preservação dos direitos individuais, levando-os às últimas

consequências, sem, contudo, uma reflexão mais aprofundada, reflete na fuga de um problema

maior, que está por vir caso não se chegue a uma solução eficaz: esses mesmos direitos civis

preservados aos poucos vão sendo tolhidos pela degradação paulatina da coisa pública36.

Traçado o panorama da demanda nacional de respeito ao princípio de administração

proba e demais correlatados, discorrer-se-á sobre sua íntima relação com a concretização dos

direitos do homem, em especial com o princípio da dignidade humana.

1.4 Administração proba como princípio concretizador dos direitos fundamentais

A discussão que envolve a constatação de que o direito à administração proba é

efetivamente uma manifestação dos direitos fundamentais do homem, em caráter universal,

36 Como foi abordado, a corrupção afeta a qualidade e quantidade da prestação dos serviços públicos. A ausência de investimento adequado em áreas como segurança pública, saúde e educação afeta direitos fundamentais correlatos, como a liberdade de locomoção e o direito de igualdade, por exemplo, ambos previstos no art. 5º, caput, da Constituição de 1988.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

34

inicialmente requer a remissão sobre seus precedentes históricos, notadamente aquele que

veio a ser o grande marco histórico dos direitos fundamentais do homem37.

Não obstante a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,

proclamada durante a Revolução Francesa, é utilizada como marco histórico de consagração

dos direitos de primeira geração, no seu preâmbulo já havia a exposição da corrupção como

expressão da violação dos direitos do homem38.

O art. 12 da Declaração versa que a “garantia dos direitos do homem e do cidadão

necessita de uma força pública. Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para

utilidade particular daqueles a quem é confiada”. Portanto, a preocupação em se distinguir a

coisa pública dos interesses particulares dos governantes não é acontecimento recente,

estando presente expressamente no século XVIII, desde o surgimento dos direitos

fundamentais na formação do Estado de Direito (CASTRO, 2007, p. 251).

Prosseguindo, explicita-se que o art. 15 do documento histórico estabelecia que “a

sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração”. Neste

dispositivo, observa-se nitidamente a conotação do princípio da transparência da

administração pública, bem como a necessidade da prestação de contas do gestor para

apreciação de sua regularidade.

Na etimologia da palavra, corrupção provém da expressão latina corruptio, que, por

sua vez, deriva da junção dos vocábulos cum e rumpo (romper). Assim, interpreta-se

literalmente como romper totalmente, ou seja, “ruptura das estruturas, de quebra daquilo que

constitui o fundamento de algo” (CALIXTO, 2010, p. 17).

No Brasil, desde a sua primeira Constituição, ainda no período do Império, já havia a

inserção de normas relacionadas a probidade administrativa39, na época com previsão para

37 A análise minuciosa dos precedentes históricos mais primitivos sobre corrupção foge aos objetivos deste trabalho, motivo pelo qual se optou por adentrar no tema a partir do referencial mais bem delineado que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Contudo, ressalva-se a existência de fases pretéritas, quais sejam: 1) do referencial linguístico Aristotélico; 2) do império romano; 3) da idade média; e 4) do pensamento político moderno (FILGUEIRAS, 2008, p. 29-81). 38 Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. (DECLARAÇÃO..., [200-?]). 39 Art. 133 da Constituição Imperial de 1824. Os Ministros de Estado serão responsáveis: (...) II. Por peita, suborno, ou concussão. III. Por abuso do Poder. IV. Pela falta de observância da Lei. (BRASIL, 1824). Todas as demais Constituições brasileiras, sejam as promulgadas, sejam as outorgadas, previram expressamente a responsabilização do Chefe do Executivo (Constituições de 1891 – art. 54, 6º; 1934 – art. 57, f; 1937 – art. 85, d; 1946, art. 89, V; 1967 – art. 84, V; 1969 – art. 82, V; e 1988 – art. 85, V). (BRASIL, 1891).

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

35

responsabilização de Ministros de Estado. Na seara infraconstitucional, os diplomas legais

incipientes foram as Leis n. 3.164/1957 (Lei Pitombo-Godói Ilha) e n. 3.502/1958 (Lei Bilac

Pinto), sendo que atualmente a matéria é regida pela Lei n. 8.429/1992.

Em se tratando da atual Constituição, observa-se referência expressa inicial em seu

art. 14, § 9º 40, ao transferir para lei complementar hipóteses de inelegibilidade para proteção

da probidade administrativa e moralidade necessários ao exercício do mandato político.

Mais um pouco à frente do dispositivo supramencionado, o art. 15, inciso V, da

Constituição41, prevê a possibilidade de cassação ou suspensão dos direitos políticos em casos

de improbidade administrativa.

Prosseguindo, tem-se o art. 37, caput, da Constituição que norteia explicitamente a

administração pública, direta e indireta, e de qualquer dos Poderes da República, por

princípios próprios – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, os

quais servem à boa administração, a uma administração proba, o que equivale a prestada com

honestidade, honradez, integridade de caráter e retidão (MEDAUAR, 2013, p. 152-153).

No mesmo dispositivo constitucional, mais especificamente em seu § 4º, há outra

previsão de que os “atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos

políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário,

na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”. Não custa recordar

que a norma infraconstitucional citada é a Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade

Administrativa).

Também há, no art. 85 42, a previsão de crimes de responsabilidade praticados pelo

Chefe do Executivo quando violar a Constituição através de atentado à probidade

administrativa. Regulamentado o parágrafo único do referido disposto constitucional, há a Lei

n. 1.079/1950, recepcionada em grande parte pela atual Constituição. Esse diploma legal foi

alterado parcialmente pela Lei n. 10.028/2000, resultando na ampliação das hipóteses

previstas de infrações político-administrativas, especialmente no que concerne aos crimes

contra a lei orçamentária43.

40 “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. 41 Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (...) V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º. 42 Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) V - a probidade na administração. 43 O capítulo V, do Título I, primeira parte, da Lei n. 1.079/1950, traz os casos de crimes de responsabilidade relacionados a atos que atentem contra a probidade na administração pública, sendo: 1 - omitir ou retardar

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

36

Há também no texto constitucional a instituição do sistema de controle interno das

contas públicas, em atendimento à probidade, consoante art. 7444.

Seguindo a linha delineada pela Constituição, no âmbito infraconstitucional,

destacam-se a Lei n. 1.079/1950, que define os crimes de responsabilidade; Lei n. 8.429/1992

(Lei de Improbidade Administrativa); Lei n. 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro); Lei n.

12.683/2012, que torna mais eficiente o combate à lavagem de dinheiro; Lei n. 12.846/2013

(Lei Anticorrupção), que prevê a responsabilização civil e administrativa das pessoas jurídicas

que atentem contra a administração pública. Existem diversos outros diplomas legais, a

exemplo de disposições específicas no Código Penal e disposições normativas distribuídas na

legislação federal, estadual e municipal.

Em que pese a clareza das normas constitucionais e, consequentemente, os largos

avanços efetuados até o momento45, tem-se vislumbrado que não se está conseguindo, de per

si, cumprir a razão básica norteadora de sua concepção: reduzir a índices toleráveis os atos

que impliquem em dilapidação do erário e atentem contra a moralidade administrativa.

O estágio vigente do mundo, com destaque para a realidade brasileira, requer uma

elevação ainda superior da consagração constitucional desses princípios. É preciso mais. A

roupagem constitucional de princípios relacionados à boa administração foi relevante, todavia

se tem demonstrado insuficiente. O próximo passo histórico-evolutivo está voltado para a

dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo; 2 - não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior; 3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; 4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; 5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais; 6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim; e 7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. 44 “Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União; IV - apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional. § 1º Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária. § 2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”. 45 Um desses avanços é muito bem retratado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2015, p. 804), para quem “a inclusão do princípio da moralidade administrativa na Constituição foi um reflexo da preocupação com a ética na Administração Pública e com o combate à corrupção e à impunidade no setor público. Até então, a improbidade administrativa constituía infração prevista e definida apenas para os agentes políticos. Para os demais, punia-se apenas o enriquecimento ilícito no exercício do cargo. Com a inserção do princípio da moralidade na Constituição, a exigência de moralidade estendeu-se a toda a Administração Pública, e a improbidade ganhou abrangência maior, porque passou a ser prevista e sancionada com rigor para todas as categorias de servidores públicos e a abranger outras que não apenas o enriquecimento ilícito”.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

37

adoção de um novo paradigma, que contemple todo o ordenamento jurídico em suas diversas

facetas.

A compreensão de um novo modelo que seja compatível com os postulados do

princípio da administração proba implica, na esfera dos direitos fundamentais do homem,

como norma de concretização da dignidade da pessoa humana46, servindo de vetor para toda a

realidade, desde a interpretação das normas, como o respectivo processo de elaboração, além

da orientação para os agentes públicos e de aplicações, inclusive, no domínio das relações

privadas quando houver interesse público relacionado à boa administração.

O constitucionalista Silva (2009, p. 180), ao traçar os conceitos dos direitos

fundamentais do homem, ensina sobre os quais que:

além de referir-se a princípios que resumem a concepção de mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível de direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser não apenas reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.

Realizadas tais considerações, suscita-se a indagação sobre a permissibilidade dessa

nova acepção no ordenamento jurídico pátrio. Esse suposto obstáculo sequer existe quando é

feita uma análise mais atenta dos direitos implícitos, do regime vigorante e dos princípios

adotados pela Constituição.

O caput do primeiro dispositivo da Constituição Federal de 1988, ao consagrar a

República como forma de governo, em contraposição ao regime monárquico, sobressalta a res

publica, enaltecendo a importância da coletividade desde o início das normas constitucionais

básicas e pilares.

Seguindo adiante, observa-se que dos fundamentos da República Brasileira47, da

fixação da soberania popular48, dos objetivos a serem alcançados49 e dos princípios que regem

46 Bolesina e Leal (2013, p. 41), em sucintas palavras, salientam com destreza a relação entre direitos fundamentais e a máxima da dignidade humana, expondo que “a maioria dos direitos fundamentais representa o respeito à dignidade da pessoa humana e o meio pelo qual ela será concretizada. Igualmente, tem-se ciência de que os direitos fundamentais, dada a sua importância singular para a dignidade humana, representam a máxima instância de direitos a serem tutelados e protegidos, sendo instituídos, por tal razão, em nível constitucional, com méritos de superconstitucionalidade, no sentido de serem tidos como os principais e nucleares direitos de um ordenamento jurídico”. 47 O art. 1º da Constituição traz como fundamentos da República do Brasil: I – soberania; II – cidadania; III – dignidade da pessoa humana; IV – valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – pluralismo político.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

38

o país nas relações internacionais também é possível extrair um conteúdo que se coaduna com

o direito do homem a uma administração proba, principalmente quando se evidencia que há

uma “relação simbiótica entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais dos

indivíduos” (GARCIA; ALVES, 2013, p. 25).

Assevera-se ainda que os objetivos fundamentais da República brasileira, previstos

em seu art. 3º 50, só serão alcançados no âmago de uma administração proba, pois são

incompatíveis com a corrupção, ineficiência51 e deslealdade institucional52 (OSÓRIO, 2011,

p. 138). “Não há dúvidas de que esses objetivos constitucionais são incompatíveis com os

deletérios efeitos causados pela corrupção” (BERTONCINI, 2007, p. 141).

Corroborando a preocupação com a coisa pública, tem-se a legitimação de qualquer

cidadão para propositura de ação popular para fins de anular ato lesivo ao patrimônio público

ou moralidade administrativa, dentre outras hipóteses, conforme art. 5º, inciso LXXIII, da

Constituição53.

A política de confronto preventivo e repressivo a esses ilícitos – infrações civis,

criminais, político-administrativas, administrativas e/ou de improbidade stricto sensu54 – que

atentem contra uma administração proba deve ocorrer de maneira integrada e coordenada

pelos Estados e em consonância com os acordos internacionais firmados. Bem assim assevera

Ramos (2002, p. 7):

48 O parágrafo único do art. 1º da Constituição dispõe sobre a soberania popular, traçando que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 49 Celso Bastos (1997, p. 159), ao examinar os objetivos fundamentais da República do Brasil, mencionados no art. 3º da Lei Fundamental, diz que “a ideia de objetivos não pode ser confundida com a de fundamentos, muito embora, algumas vezes, isto possa ocorrer. Os fundamentos são inerentes ao Estado, fazem parte de sua estrutura. Quanto aos objetivos, estes consistem em algo exterior que deve ser perseguido”. 50 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 51 O ato ímprobo não se relaciona diretamente com a conduta ilícita dolosa de corrupção, mas à desonestidade funcional relacionada “a ausência de zelo, de atenção, de cuidado com a coisa pública, de diligência, de prudência que se espera e exige de qualquer agente público” (ALBAGLI, 2014, p. 111). 52 A lealdade está vinculada com a confiança depositada nos agentes públicos em geral. “Baliza as relações entre eleitores e escolhidos, administradores públicos e administrados, funcionários públicos em geral e os destinatários de suas decisões, governantes e governados” (OSÓRIO, 2011, p. 139). 53 “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. 54 Os ilícitos que atentem contra uma administração proba podem ser classificados nos seguintes: 1) violadores de normas administrativas ou de normas político-administrativas; 2) violadores de normas penais; 3) violadores de normas civis; 4) violadores de normas da Lei n. 8.429/1992, definidores de atos de improbidade stricto sensu; e 5) violadores de convenções internacionais (GARCIA, 2007, p. 231).

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

39

A tutela de probidade administrativa não é mais um imperativo meramente nacional, mas sim internacional, baseada na análise de diplomas normativos internacionais, explicitando o fundamento atual dessa internacionalização do combate a práticas de corrupção, que é a implementação de direitos humanos.

Portanto, nota-se que o interesse do homem a uma administração proba pode e deve,

como de fato o é, ser tutelado pelo direito nos planos jurídicos nacional e internacional.

Ademais, o seu desrespeito enseja grave violação à normas basilares do Estado Democrático

de Direito e da própria concepção de República, primordialmente em um ordenamento

jurídico em que se encontra erguido em prol da dignidade da pessoa humana.

Retomando à taxinomia inaugurada pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak,

Bertoncini (2007, p. 114) inicialmente alocou o direito fundamental à administração proba na

categorização dos direitos de terceira geração e de natureza transnacional. Mais adiante,

passou a considerar como direito transnacional, fundamentando-se no art. 5º, § 2º, da

Constituição55. “Pode-se seguramente afirmar que estamos diante de um direito público

subjetivo dos povos e nações, em outras palavras, um novo direito fundamental: o direto

fundamental à probidade administrativa” (BERTONCINI, 2012, p. 44).

A universalidade ou, como outros preferem, a transnacionalidade do direito

fundamental à administração proba fica evidenciada nos tratados ou convenções

internacionais em que o Brasil é signatário e estão vigentes, tais como: 1) Convenção sobre o

combate à corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais56; 2)

Convenção interamericana contra a corrupção57; e 3) Convenção das Nações Unidas contra a

corrupção58.

Consequentemente, o enfrentamento à corrupção ultrapassa os limites territoriais das

nações, na medida em que, no mundo globalizado, as infrações de colarinho branco e

correlatos tendem também a se internacionalizarem, atuando por meio de organizações

criminosas internacionais, as quais se valem da lavagem de dinheiro59 em smurfing, em

55 Art 5º, § 2, da Constituição. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 56 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 125/2000 e promulgada pelo Decreto n. 3.678/2000, inserindo, por intermédio da Lei n. 10.467/2002, os crimes previstos nos arts. 337-B, 337-C e 337-D no Código Penal, criminalizando a corrupção ativa nas transações comerciais internacionais e o tráfico de influência. Segundo Mônica Nicida Garcia (2007, p. 328-329), o aspecto inovador foi a responsabilização dos particulares, corruptores de funcionários públicos estrangeiros. 57 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 152/2002 e promulgada pelo Decreto n. 4.410/2002. 58 Aprovada pelo Decreto Legislativo n. 348/2005 e promulgada pelo Decreto n. 5.687/2006. 59 O combate à lavagem de dinheiro abrange um regime internacional composto por diversos tratados e convenções internacionais (hard law) e pela atuação de organismos internacionais como o GAFI – Grupo de

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

40

sistemas alternativos de remessas, em giros internacionais, em cuckoo smurfing, em sistema

de dólar-cabo ou euro-cabo, em contas ocultas no exterior, em contas-conduítes, em paraísos

fiscais e centros financeiros (offshores)60, dentre outras tipologias61.

O panorama constitucional – expresso, implícito e de incorporação convenções e

tratados internacionais de direitos humanos – revela a natureza de direito fundamental da

administração proba. “O discurso de ataque à improbidade é, e deve ser, simultaneamente, o

discurso de defesa dos direitos humanos atingidos pelo ato ímprobo, direta ou indiretamente”

(OSÓRIO, 2011, p. 311).

Preciosas são as palavras de Albagli (2014, p. 88):

Assim, não há dúvidas de que o direito à probidade administrativa é um direito de natureza fundamental, com assento constitucional, e visa salvaguardar outros direitos e garantias fundamentais de igual relevância. Neste contexto, transverte-se em uma verdadeira ‘âncora normativa’, fomentando uma saudável relação de interdependência com outros direitos e garantias fundamentais, de mesma forma socialmente substanciosos.

Ação Financeira (soft law) (CARLI, 2014, p. 214). Dentre os documentos internacionais de maior relevo, citam-se: 1) Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena de 1988); 2) Convenção sobre Lavagem, Busca, Apreensão e Confisco de Produtos do Crime (Convenção de Estrasburgo de 1990); 3) Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo de 2000); 4) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida de 2003); 5) Convenção do Conselho da Europa sobre Lavagem, Busca, Apreensão e Confisco de Produtos do Crime e sobre o Financiamento do Terrorismo (Convenção de Varsóvia de 2005); e 6) Resolução 1617 do Conselho de Segurança da ONU de 2005, que incita as nações membras implementarem os padrões internacionais representados pelas Recomendações do GAFI. 60 Para uma análise mais aprofundada sobre o tema, recomenda-se a leitura da obra de Carla Veríssimo de Carli (2014), onde há a autora de forma minuciosa detalha as diversas técnicas utilizadas para o branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Acerca das situações mencionadas, explicita-se sucintamente cada uma delas: 1) Smurfing: divisão de valores maios em menores, através de depósitos ou de movimentações financeiras, com o objetivo de evitar a comunicação obrigatória de operação suspeita ou não despertar confiança por parte dos órgãos fiscalizadores; 2) Sistemas alternativos de remessa: qualquer sistema para transferir dinheiro de um lugar para o outro alheios às operações bancárias; 3) Giros internacionais: fracionamento de valores pertencentes a criminosos que serão remetidos para outros países por intermédio de cidadãos nacionais da nação de destino; 4) Cuckoo smurfing: Ingresso de grandes somas de dinheiro em contas de terceiros de boa-fé de países distintos; 5) Sistema de dólar-cabo ou euro-cabo: remessa de dólar ou euro para o exterior mediante a utilização de doleiros à margem do sistema legal; 6) Contas ocultas no exterior: depósito ou direcionamento dos recursos para contas ocultas no estrangeiro não declaradas à Receita Federal ou ao Banco Central; 7) Contas-conduítes: hipótese em que os criminosos abrem contas no exterior em nomes de pessoas ou empresas com aparência de legalidade em razão de transações lícitas; e 8) Paraísos fiscais e centros financeiros (offshores): investimentos em paraísos fiscais através da constituição de pessoas jurídicas e arranjos legais (trusts), que garantem o anonimato de seus investidores, os quais contam com tributação reduzida ou nula sobre os rendimentos. 61 O Grupo de Ação Financeira da América Latina (GAFILAT) assim conceitua: “tipologia, no contexto de branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, entende-se a classificação e a descrição das técnicas utilizadas pelas organizações criminosas para dar uma aparência de legalidade aos fundos de proveniência lícita ou ilícita e transferi-los de um lugar para o outro ou entre pessoa para financiar as suas atividades criminosas” (GAFILAT, 2000). O rol de tipologias vem aumentando na medida em que as organizações criminosas buscam novos métodos de cometimento da lavagem.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

41

Alexy (1999, p. 61) ensina com maestria peculiar quando um determinado interesse

do homem pode e deve ser tutelado pelo direito, bem como quando esse interesse é tão

fundamental ao ponto de ser elevado à categoria de direito fundamental do homem. “Deve

tratar-se, em primeiro lugar, de interesses e carências que, em geral, podem e devem ser

protegidos e fomentados pelo direito”. Em seguida, o autor exemplifica a necessidade do

homem ao amor, cujo interesse não é passível de ser compelido pelo direito. Continua

afirmando:

A segunda condição é que o interesse ou a carência seja tão fundamental que a necessidade de seu respeito, sua proteção ou seu fomento se deixe fundamentar pelo direito. A fundamentabilidade fundamenta, assim, a prioridade sobre todos os escalões do sistema jurídico, portanto, também perante o legislador. Um interesse ou uma carência é, nesse sentido, fundamental quando sua violação ou não-satisfação significa ou a morte ou sofrimento grave ou toca no núcleo essencial da autonomia.

Além do aspecto constitucional, a probidade incorpora também compromissos ético e

social. Nas últimas décadas, a relação entre ética e Direito adquiriu maior proximidade com o

que se convencionou como neoconstitucionalismo ou o novo direito constitucional62, onde a

manifestação dos direitos fundamentais se dá de forma estreita com valores e ideais de justiça

que ética (ALBAGLI, 2014, p. 90).

O compromisso social da probidade é perceptível quando se observa que os atos do

poder público não visam, por si só, a existência do Estado, mas servem para o atendimento

dos reclamos e anseios sociais e individuais, servindo, ou seja, para satisfação dos objetivos

fundamentais da República enumerados no art. 3º da Constituição (ALBAGLI, 2014, p. 94).

Como bem lembrou Kant (2007, p. 69), “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na

tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e

nunca simplesmente como meio”.

Distinguidas as dimensões social, ética e constitucional da probidade, passa-se, neste

momento, à constatação de que o seu conteúdo formal está presente a partir do momento em

que a constituição e normas infraconstitucionais preveem em suas disposições mecanismos

para o combate à corrupção, ineficiência e deslealdade institucional (ALBAGLI, 2014, p. 94).

62 Barroso (2015, p. 519) leciona que esse novo direito constitucional tem uma trajetória em três marcos: (i) Histórico, consubstanciado no constitucionalismo europeu no período pós-guerras e, no Brasil, com a redemocratização advinda com a Constituição de 1988; (ii) Filosófico, que se manifesta no pós-positivismo, como uma terceira via alternativa que foge os radicalismos do positivistas e dos jusnaturalistas; e (iii) Teórico, que envolve o reconhecimento da força normativa da disposições constitucionais, a expansão da jurisdição constitucional e a nova interpretação constitucional.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

42

Embora não esteja no rol do art. 5º da Constituição, a probidade administrativa é

tratada em expressamente nos art. 14, § 9º, e 15, inciso V, ambos inseridos no Título II, que

trata dos direitos e garantias fundamentais, cuja topografia do texto constitucional revela ser

gênero dos seguintes direitos: “os direitos individuais, os direitos coletivos, os direitos sociais,

os direitos de nacionalidade e os direitos políticos e os relacionados aos partidos políticos,

conforme indicam os vários capítulos do Título II” (DIMOULIS; MARTINS, 2014, p. 42).

No entanto, o aspecto formal não se perfaz suficiente para abarcar o preenchimento

do conteúdo da probidade administrativa. “Definir improbidade administrativa em vista de

exclusiva verificação formal não permite a captação, em sua totalidade, das características

fundamentais dessa categoria” (BERTONCINI, 2007, p. 117).

Imagina-se situações em que o agente público se detém de um objeto de ínfimo

valor, a exemplo de uma caneta ou agenda pertencentes ao patrimônio estatal ou, ainda, que

tenha agido mediante erro escusável. Nesses casos e em hipóteses similares, conquanto haja o

enquadramento meramente formal do ato improbo – por qualquer dos ilícitos previstos nos

arts. 9º, 10 ou 11, da Lei n. 8.429/199263 – não se preenche o seu conteúdo matéria, pois não

havendo efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. “Exige-se do intérprete da norma

contextualizada a realização de indispensável juízo de valor, que ultrapassa análise

meramente formal, sob pena de se realizar uma verificação incompleta dessa categoria

(BERTONCINI, 2007, p. 129).

Outro aspecto que merece destaque, manifesta-se no fato de que a violação ao

princípio à administração proba enseja inevitavelmente no desrespeito ao valor axiológico do

princípio da dignidade da pessoa humana. E, não raro, a vinculação de danos entre esses

direitos fundamentais é também de causalidade objetiva, causa e efeito. “Em outros termos, a

fundamentalidade em sentido material está ligada à essencialidade do direito à implementação

da dignidade humana” (PEREIRA, 2006, p. 77).

Sobre o assunto, Albagli (2014, p. 131) conclui:

Não há dúvida de que o direito (fundamental) à probidade administrativa é essencial (“essencialidade”) ao atingimento (“implementação”) efetivo da dignidade humana. Em suma, há de se indagar como seria possível

63 A respeito do modelo tipológico dos atos ímprobos adotados pela Lei nº 8.429/1992, Albagli (2014, p. 110) afirma que “o legislador ordinário optou por estabelecer um sistema de subsunção típica progressiva, preferindo a tentativa de adequação aos atos estabelecidos no art. 9º (que importem em enriquecimento ilícito), depois os estabelecidos no art. 10 (que causam prejuízo ao Erário) e só então aos previstos no art. 11 (que ofendam princípios da administração pública. A tentativa de subsunção típica do ato concreto em um dos tipos previstos na LIA parte, assim, do art. 9º, ao art. 10 e ao art. 11”. Essa tipologia progressiva da LIA compreende os atos de corrupção, ineficiência e deslealdade institucional, respectivamente.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

43

implementar a dignidade humana, no âmbito da administração pública, prescindindo-se da probidade (honestidade, eficiência e lealdade) administrativa.

Basta imaginar as situações em que o ilícito praticado contra a administração proba

ocasionar desvios de recursos públicos que seriam aplicados em setores da educação, saúde,

segurança pública etc. Mesmo em se tratando de direitos sociais, a inexistência do mínimo

existencial destes irá, no caso aludido, ser um empecilho à efetivação da dignidade da pessoa

humana64. “O mínimo existencial guarda íntima relação com a dignidade da pessoa humana”

(BOLESINA; LEAL, 2013, p. 82-83).

No tocante ao mínimo existencial, Albagli (2014, p. 161) recorda que para uns é

concebido como um direito fundamental, enquanto que para outros é entendido como um

conteúdo mínimo dos direitos fundamentais. O autor prossegue afirmando que a maior

importância não reside nessa diferenciação, mas no reconhecimento da sua fundamentalidade

para a concretização dos direitos fundamentais. “Ao se reconhecer a fundamentalidade do

mínimo existencial, este conteúdo, por mais vago e impreciso que seja, só será efetivamente

preenchido por uma administração pública efetivamente proba”.

Assim como operou em outros ramos da ciência jurídica, a administração pública não

ficou imune ao fenômeno da constitucionalização dos direitos. É justamente uma das áreas do

Direito mais influenciadas, visto que a sua atividade se encontra fundamentada na própria

constituição, consagrando valores e princípios para sua atuação (BEDENDI, 2010, p. 285).

Demonstrado o status de direito fundamental conferido à administração proba, na

medida em que se trata de único caminho possível para implementação do princípio da

dignidade da pessoa humana na seara da administração pública – sua necessidade para a

concretude de uma existência digna –, ingressar-se-á a seguir no debate político, jurídico e

filosófico que envolve as novas perspectivas para o interesse público no âmago de uma

administração proba.

64 Luís Roberto Barroso (2015, p. 284) ensina que o próprio constitucionalismo democrático tem por fundamento e objetivo a dignidade da pessoa humana, a qual é concebida princípio jurídico de status constitucional e fundamental, de modo que desempenha funções de fonte direta de direitos e deveres e de orientar o sentido e alcance dos direitos constitucionais.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

44

2 NOVAS PERSPECTIVAS DO INTERESSE PÚBLICO

2.1 O povo como manifestação político-jurídica da coletividade

Tratar das novas perspectivas do interesse público, na conjectura brasileira atual,

remete, impreterivelmente, às noções de cidadania e coletividade, as quais, por sua vez,

exigem alguns apontamentos prévios sobre a noção de povo, cujo debate demonstra o estreito

vínculo – e não identidade – que envolve os quatros conceitos.

Longe de deter um sentido único e unânime, a acepção sobre o significado da

expressão povo possui uma variedade tamanha que pode gerar confusões e equívocos a

depender do contexto em que esteja sendo utilizada, de tal modo que requer uma prudência

mínima do leitor para a compreensão correta de cada situação. Somente, posteriormente, é

que será possível destacar a acepção relevante para este estudo, qual seja: o seu aspecto

jurídico. “O termo povo está entre aqueles que, pelo uso indiscriminado e excessivo,

acabaram por tornar-se equívocos, sendo necessário um grande esforço para, antes de tudo,

depurá-lo das deformações e, depois disso, estabelecer sua noção jurídica” (DALLARI, 1998,

p. 37).

Povo, em sentido meramente numérico, corresponde à demografia, contempla um

conjunto de pessoas que habita determinado local, podendo ser os indivíduos que residem em

um Estado ou que nele estejam, ainda que transitoriamente65. Nesses termos, compõem a

população todos as pessoas residentes ou presentes no território estatal, em determinado

momento, inclusive estrangeiros e apátridas (BONAVIDES, 1993, p.57). “Seu estudo

científico tem sido feito pela demografia, uma das disciplinas auxiliares da Ciência Política e

que se ocupa tanto de aspectos quantitativos como qualitativos do elemento populacional”66

(BONAVIDES, 2000, p. 81).

Outra noção de povo se relaciona com o aspecto racional e étnico, que seria, a

princípio, preservado pela reprodução natural. Esse aspecto serviu maliciosamente para

65 Fugindo da literalidade restritiva do art. 5º, caput, da Constituição Federal (todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade), Mendes e Branco (2015, p. 173) recordam que a referida norma constitucional também contempla os estrangeiros não residentes no país. “O respeito devido à dignidade de todos os homens não se excepciona pelo fator meramente circunstancial da nacionalidade”. 66 Paulo Bonavides (2000, p. 81) não aceita a expressão povo como sinônimo de população. “Não se confunde com a noção de povo, porquanto nesta, fundamental o vínculo do indivíduo ao Estado através da nacionalidade ou cidadania. A população é conceito puramente demográfico e estatístico”. Portanto, as diferenças variam de autor e de tema, exigindo pelo leitor cautela.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

45

fundamentação de ideologias autoritárias e racistas, a exemplo da doutrina nazista entre as

grandes guerras, como ensina Soares (2004, p. 172):

Os pressupostos da nação racial, i. e., comunidade popular de sangue e raça, vinculam-se às noções de povos e da comunidade. Aquela concebida no nazismo, como uma realidade ética, baseada em princípios de caráter racista e esta significando a ‘entificação’ do povo, a sustentação do coletivo, a existência de total comunhão entre os que participavam do ‘espírito do povo’ através de sua encarnação e identificação com o ser superior vivo e real, que é a ‘comunidade’. A passagem desse ‘espírito do povo’ para a esfera do poder político fez-se através da figura do Führer, que assumiu a direção e guia do povo. Com a ascensão e queda do nazismo, restou demonstrada a insuficiência dos critérios objetivos utilizados para a compreensão de nação, os quais, além de sua degeneração para o racismo e xenofobia, implicavam somente certas hipóteses e possibilidades de uma conexão do povo.

A aferição do povo pelo critério étnico ou naturalístico67 é fortemente criticada por

Bonavides (2000, p. 98), segundo o qual “a tese racista tem sido, e com razão, violentamente

impugnada por cientistas e sociólogos, que entendem não haver raça capaz de definir nenhum

povo, nenhuma nação”. Prossegue o autor, afirmando: “deixemos, portanto, de lado os

antecedentes étnicos de cada povo e busquemos outro dado para melhor caracterizá-la”.

O uso dessas variantes, na história, para justificação de atos de extrema violência e

radicalismo – a exemplo da pureza étnica do nazismo (Volk), do órgão oficial do regime

fascista italiano (II Popolo d’Italia) e do peuple francês que massacrou e decapitou pessoas

durante a revolução de 1789 – torna o povo uma abstração frequentemente usada para

encobrir realidades muito distantes (BOBBIO, 2004, p. 51).

Buscando a etimologia da palavra, rememora-se os tempos de Roma, onde seu

conceito se confundia com o de populus, relacionando-se com a participação de cidadãos

privilegiados nos negócios de interesse geral (SOARES, 2004, p. 65).

Nota-se que, assim como na Grécia Clássica, essa definição abrangia apenas uma

pequena parcela de indivíduos existente no território68, restringindo-se somente aos detentores

67 Paulo Bonavides (2000, p. 101) recorda que o conceito naturalístico de povo (Volkstum) não foi criação inédita da Alemanha nazista, visto que já no século XVIII seus ideais eram defendidos pelos franceses Lapouge e Gobineau e pelo inglês Stewart, os quais teorizaram sobre a hierarquia das raças humanas, onde o topo superior era ocupado pela raça germânica, cujos traços étnicos eram “privilegiados em pureza de sangue e superioridade biológica, que lhe asseguravam a supremacia na classificação das raças”. Produziu o que o constitucionalista classificou como a forma mais insana do nacionalismo: a raça nos moldes políticos. 68 Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 26) recorda algumas peculiaridades da população na Grécia, na tomada de decisões políticas e nas relações entre particulares. “Há uma elite, que compõe a classe política, com intensa participação nas decisões do Estado, a respeito dos assuntos de caráter público. Entretanto, nas relações de caráter privado a autonomia da vontade individual é bastante restrita Assim, pois, mesmo quando o governo era tido como democrático, isto significava que uma faixa restrita da população – os cidadãos – é que participava das

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

46

de certos direitos, dentre os quais o de participação nas decisões políticas da coletividade.

Como acentua José Afonso da Silva (2009, p.137):

Para a democracia grega, povo era apenas o conjunto dos homens livres, excluída a massa dos libertos. Como a maioria dos indivíduos era escrava e libertos, os quais não gozavam de cidadania, não entravam no conceito de povo, aquela democracia era o regime da minoria e em seu favor existia.

Durante a Idade Média, devido à grande submissão ao poder eclesiástico e temporal e

à ausência de um centro unificador, que lhe retiravam o mínimo de poder político e de

homogeneidade, não foi possível uma caracterização precisa quanto a sua participação nas

decisões fundamentais e na formação de uma identidade cultural (DALLARI, 1998, p. 38).

Com a Revolução Francesa, final do século XVIII, é que emergiu a concepção de

povo desprendida da noção de classe social, não se discriminando os cidadãos. Nesse

momento, busca-se a consolidação do sistema representativo. Era o povo em seu sentido

político, revelado na manifestação do poder constituinte originário, consubstanciado no

sistema representativo, em reação ao governo despótico e centralizador do absolutismo

monárquico (SOARES, 2004, p. 166).

A partir de então, a expressão povo adquire um status político, consistente na

participação das decisões política do Estado. “Povo é então quadro humano sufragante, que se

politizou (quer dizer, que assumiu capacidade decisória), ou seja, o corpo eleitoral”. Nesse

sentido, o conteúdo de povo está atrelado ao surgimento dos Estados constitucionais, “sendo

estranho ao direito público das realezas absolutas, que conheciam súditos e dinastias, mas não

conheciam povos e nações” (BONAVIDES, 2000, p. 81).

Assim, quanto ao critério de participação política, o indivíduo como componente do

povo possui uma dupla dimensão, uma objetiva e outra subjetiva. Esta se traduz no povo

como elemento integrante do Estado, por conseguinte, “enquanto membros do Estado, os

indivíduos se acham, quanto a ele e aos demais indivíduos, numa relação de coordenação,

sendo neste caso, sujeitos de direitos”. A dimensão objetiva traduz o povo como objeto da

atividade estatal, desse modo, “estão numa relação de subordinação e são, portanto, sujeitos

de deveres” (DALLARI, 1998, 38).

decisões políticas, o que também influiu para a manutenção das características de cidade-Estado, pois a ampliação excessiva tornaria inviável a manutenção do controle por um pequeno número”.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

47

Essa acepção política de povo foi mencionada pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès69

(2002) em Qu’est-ce que le Tiers État70, durante a Revolução Francesa, o qual o identificou

com a definição de nação, apresentando as reivindicações do Terceiro Estado, na prática os

interesses burgueses, em desfavor dos seguimentos privilegiados da época, em especial da

nobreza e do clero. “Após identificar o terceiro estado com a nação, formulou ele a distinção

essencial entre poder constituinte e poder constituído” (BARROSO, 2015, p. 131). “De

acordo com a formulação de Sieyès, o Terceiro Estado era representado pela nação ou pelo

povo” (SILVA NETO, 2006, p. 9).

Manoel Jorge e Silva Neto (2006, p. 8) ensina que Sieyès distinguiu, de forma inédita

e original, o poder constituinte originário dos poderes constituídos com a finalidade de

fundamentar as reivindicações do Terceiro Estado de participação igualitária na vida política.

Fazendo isso, ergueu a sustentação política necessária à consagração do princípio da

supremacia da constitucional71 (BARROSO, 2015, p. 131).

As pretensões expostas por Sieyès (2002) foram sintetizadas em três petições do

“Terceiro Estado para ser Alguma Coisa”, quais sejam: 1) que seus representantes sejam

escolhidos apenas entre os cidadãos que realmente pertençam ao Terceiro Estado, os quais

não poderiam possuir nenhum tipo de privilégio; 2) que seus representantes sejam em número

igual ao da nobreza e do clero; e 3) que as votações sejam contabilizadas por cabeça e não por

ordens. De conseguinte, não era suficiente a participação do povo nas decisões políticas. Era

preciso que fosse de forma igualitária comparado com os outros “Estados” (tradução nossa).

“O povo devia participar na determinação das regras fundamentais da organização

estatal; tais normas deviam, pois, ser fixadas num documento, que constituísse, por assim

dizer, a realização histórica do mítico ‘contrato social’” (BOBBIO, 1998, p. 61).

69 Barroso (2015, p. 131) explica a origem do comportamento revolucionário de Sieyès, anotando que este sofreu dificuldades para ascensão em sua carreira eclesiástica por não possuir ascendência familiar nobre. 70Sieyès (2002, p. ii): “Considerações preliminares sobre o que é o Terceiro Estado? Enquanto o filósofo não ultrapassar os limites da verdade, não deverá ser acusado de ir longe demais. Sua função é marcar o objetivo, devendo, pois chegar até ele. Se, durante o caminho, ousasse levantar sua insígnia, ela poderia não ser verdadeira. O dever do administrador, ao contrário, é o de combinar e graduar sua marcha, de acordo com as dificuldades. Se o filósofo não busca seu objetivo, ele não sabe onde se encontra; se o administrador não vê o objetivo, não sabe para onde vai. O Plano deste trabalho é muito simples. Devemos responder a três perguntas: 1ª) O que é o Terceiro Estado? – Tudo. 2ª) O que tem sido ele, até agora, na ordem política? – Nada. 3ª) O que é que ele pede? – Ser alguma coisa. Vamos ver se as respostas estão certas. Examinaremos, em seguida, os meios experimentados e os que deverão ser utilizados a fim de que o Terceiro Estado consiga ser, efetivamente, alguma coisa. Vamos dizer, então: 1º) O que os ministros tentaram e o que os próprios privilegiados propõem a favor do Terceiro Estado. 2º) O que deveria ter sido feito. 3º) O que ainda não foi feito para que o Terceiro Estado ocupe o lugar que lhe cabe politicamente” (tradução nossa). 71 Os trabalhos desenvolvidos por Sieyès não limitaram a conceituação de nação e na preparação política para consagração do princípio da supremacia constitucional. Foi além, na medida em que também propôs a criação de um órgão para exame da constitucionalidade das leis (BARROSO, 2015, p. 131).

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

48

Embora não se questione o grande avanço produzido pelas declarações de Sieyès

(2002) na formação do Estado de Direito com a inserção da participação política do povo em

um documento constitucional, tecnicamente costuma-se traçar diferenciações entre povo e

nação.

Paulo Bonavides (2000, p. 97) assevera que para constituição de uma nação é preciso

a conjugação de “fatores naturais (território, raça e língua), históricos (tradição costumes, leis

e religião) e psicológico (consciência nacional)” obtidos em uma comunidade histórico-

cultural. Mesmo com todas diferenças possíveis (dialetos, religiosos, raças etc.), há uma

identidade moral. Com maestria, Bonavides (2000, p. 94) assevera que a nação é nada mais do

que o povo sob o ponto de vista sociológico, “compreendido como toda continuidade do

elemento humano, projetado historicamente no decurso de várias gerações e dotado de valores

e aspirações comuns”72.

Em discrepância à nação, a significação de povo mais largamente utilizada está

relacionada ao seu aspecto jurídico, pois “exprime o conjunto de pessoas vinculadas de forma

institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico” (BONAVIDES, 2000, p. 92).

Dallari (1998, p. 39) recorda que o povo, em seu sentido jurídico, é o conjunto de

cidadãos de um Estado, o qual pode exigir alguns requisitos de ordem objetiva para que o

indivíduo adquira a cidadania. “Dessa forma, o indivíduo, que no momento mesmo de seu

nascimento, atende os requisitos fixados pelo Estado para considerar-se integrado nele, é,

desde logo, cidadão”.

De conseguinte, nota-se que o aspecto jurídico do povo remete à ideia de cidadania,

cujo conteúdo reconduz ao exercício político ativo através de eleições para representantes no

Legislativo ou para chefias do Executivo (SILVA NETO, 2006, p. 221).

Nas linhas introdutórias do direito brasileiro, Nader (2015, p. 131) bem diferencia:

A população que vive em um Estado pode caracterizar-se como povo ou nação. O conceito de ambos, porém, não se confunde. Denomina-se povo aos habitantes de um território, considerados do ponto de vista jurídico, como indivíduos subordinados a determinadas leis e que podem apresentar nacionalidade, religião e ideias diferentes. Nação é uma sociedade formada por indivíduos que se identificam por alguns elementos comuns, como a origem, língua, religião, ética, cultura, e sentem-se unidos pelas mesmas aspirações. Enquanto o povo se forma pela simples união de indivíduos que

72 Carlos Ayres Britto (2006, p. 57) deixa bastante clara a diferenciação ao dizer que o povo representa o presente da população, enquanto a nação adiciona o passado e o futuro no aqui e agora. O autor traça o seguinte exemplo para se referir à nação: “assim como se dá com os membros de uma família tradicional, que mantem os brasões dos seus antepassados e tudo fazem para repassar tais insígnias (com tudo de particularmente honroso que elas simbolizam) às gerações porvindouras”.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

49

habitam a mesma região e se subordinam à soberania do Estado, a nação corresponde a uma coletividade de indivíduos irmanados pelo sentimento de amor à pátria. Essa coesão decorre de um longo processo histórico. Como afirmam os autores, povo é uma entidade jurídica e a nação é uma entidade moral.

Em meio a todas essas definições terminológicas que ora se aproximam, ora se

distanciam, a inserção do povo, no final do século XVIII, na vida política do Estado de

Direito foi o ponto crucial, visto que, além de contemplar o seu sentido político, permitiu o

vínculo jurídico constitucional entrelaçando mais ativamente os cidadãos ao Estado, que, por

ordem prática, “afastou-se da doutrina rousseauniana da vontade geral e da necessidade de

participação direta de cada indivíduo, substituindo-a pelo conceito de representação política.

A soberania popular rousseauniana foi substituída pela ideia de ‘soberania nacional’”

(BARROSO, 2015, p. 132).

Essa aproximação entre povo e nação na Assembleia Constituinte, em virtude da

Revolução Francesa, foi a solução política e, uma vez instalado o Estado, a jurídica

imprescindíveis para a consagração da soberania nacional73 dadas as peculiaridades históricas

da época. Povo e nação formam uma só entidade via, abstratamente existente e superior à

soma das vontades individuais que a compõem.

Os cidadãos, por intermédio de seus representantes, atuam no poder político-

decisório que inaugura toda a ordem jurídica de um Estado, ou seja, no poder constituinte

originário. “É assim que o Poder Constituinte tem a sua mercê o Estado em particular e o

Direito em Geral. A própria Constituição originária, que é a primeira voz do Direito aos

ouvidos do povo, é gestada por ele e somente por ele, Poder Constituinte” (BRITTO, 2006, p.

48).

Portanto, os cidadãos exercem participação política através de seus representantes

eleitos, os quais agem em nome do povo na criação da Constituição (poder constituinte

73 A distinção sensível e principal entre a soberania popular de Rousseau e a soberania nacional pregada por Sieyès “se faz sentir sobretudo quanto aos efeitos da faculdade de participação política do eleitorado, que aqui se limita, circunscrito àqueles que a Nação investir na função de escolha dos governantes e, ali, na doutrina da soberania popular, universaliza-se a todos os cidadãos com o direito que lhes cabe por ser cada indivíduo portador ou titular de uma parcela da soberania (...) A doutrina da soberania nacional dominou quase todo o direito político da França pós-revolucionária na idade liberal de seu liberalismo” (BONAVIDES, 2000, p. 168). O autor continua destacando que o art. 3º das Declara dos Direitos do Homem de 1789 estabelece que “o princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação” e que “nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente”. Já o art. 1º, título terceiro, da Constituição Francesa de 1791assevera que “a soberania é uma, indivisível, inalienável e imprescritível. Pertence à nação. Nenhuma secção do povo, nenhum indivíduo pode atribuir-se o seu exercício”.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

50

originário), de normas constitucionais posteriores (poder constituinte derivado74) e de normas

infraconstitucionais, estabelecendo previamente limites à invasão arbitrária do Estado em prol

dos direitos e liberdades civis.

Nesses termos, observa-se que não há necessária e normalmente coincidência entre o

titular do poder constituinte e o incumbido de exercê-lo na prática. A titularidade pertence ao

povo e o seu exercício, em regra, aos representantes por ele eleitos com a finalidade maior de

manifestação da constituinte e a persecução de suas aspirações (SILVA NETO, 2006, p. 13).

O constitucionalista Carlos Ayres Britto (2006, p. 48) assevera que, com o

surgimento das Constituições, no final século XVIII, o povo manifestou a sua dimensão

política, notadamente como titular do poder constituinte originário, compondo a “encarnação

da sociedade política”:

... no justo momento em que a sociedade consegue dar a si mesma uma nova Constituição, um novo Estado, e uma nova Ordem Jurídica, ela, sociedade, já não é uma sociedade civil. Ela se transmuda para o povo. Era uma população, convenhamos, e de repente sobe à dimensão de povo. Salta do meramente demográfico e econômico para o político e histórico. Assim como a água em estado líquido muda a sua forma para se transformar em vapor, sob o efeito do aumento de sua temperatura a um determinado grau. Em estado líquido, a água só se movimenta por si mesma, descendo. Em estado vaporoso, subindo (prova de que, embora a água permaneça água – o salto químico não chega a ocorrer – o seu modo de estar-no-mundo ou de se manifestar num dado momento já não é o mesmo).

O jurista sergipano (BRITTO, 2006, p. 53) prossegue lecionando que “a sociedade

humana que plenifica o seu próprio ser político e jurídico, alçando-se à condição de povo, é

uma sociedade que se triparte” em: (i) sociedade política: cuja significação é revelada no

poder constituinte originário, onde manifesta, primariamente, sua soberania; (ii) sociedade

estatal: sob o prisma da sua personalização jurídica ou do poder constituído pela sociedade

política, sendo a entidade do Estado; e (iii) sociedade civil: quando atua “civilizadamente”

nos marcos da sociedade estatal, dentro dos parâmetro legais fixados pela ordem jurídica.

A constituição de 1988 foi além da representação, prevendo hipóteses da participação

direta nas tomadas de decisões através de institutos como referendo, plebiscito e projeto de lei 74 Registra-se, mais uma vez, polêmicas terminológicas. No caso em apreço, o uso da expressão poder constituinte derivado é bastante criticado porque pode conduzir o leitor a equívocos, vez que tal poder situa-se no âmbito do poder constituído, estando sujeito a diversas limitações impostas pelo poder constituinte originário. Seriam apenas regras de competência regulada pela Constituição (BARROSO, 2015, p. 179). Em sentido contrário, cita-se Manoel Jorge Silva e Neto (2006, p. 18) que assevera que nada se impede de denominar poder constituinte derivado, “eis que o ato de constituir se protrai no tempo mediante o exercício da competência constitucional reformadora a cada vez que injunções de color político, econômico ou social conduzirem à indigitada iniciativa”.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

51

de iniciativa popular. Como bem disse Ulysses Guimarães em seu discurso na Assembleia

Nacional Constituinte, “tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício

da democracia, em participativa além de representativa, tocando no umbral da Constituição,

para ordenar um avanço no campo das necessidades sociais”75.

Esse alargamento de práticas democráticas termina desaguando na seara de discussão

sobre a legitimidade das normas jurídicas, tendo em vista aumentar na proporção em que se

incrementa a atuação política dos potencialmente destinatários da norma no processo de sua

construção.

Não é por outro motivo que Habermas (1997, p. 164) afirma que “quando

introduzimos o sistema dos direitos desta maneira, torna-se compreensível a interligação entre

soberania do povo e direitos humanos, portanto, a co-originariedade da autonomia política e

da privada”.

Aprofundando o tema, o filósofo e sociólogo alemão desenvolve o princípio do

discurso76. Nele discorre que incumbe aos direitos políticos o estabelecimento de garantias

para que os possíveis atingidos pela norma participam de todos processos de deliberação e

decisão dela com igualdade de participação. Segue adiante, adentrando especificamente na co-

relação existente entre o princípio do discurso e a titularidade do poder político (o povo), onde

aduz que “o princípio segundo o qual todo poder do Estado emana do povo tem que ser

especificado, conforme as circunstâncias, na forma de liberdades de opinião e informação, de

liberdades de reunião e de associação, de liberdades de fé, de consciência...” (HABERMAS,

1997, p. 165).

75 Trecho do discurso do então parlamentar Ulysses Guimarães, durante a Assembleia Constituinte, no dia 05 de outubro de 1988 (DISCURSO..., [199-?]). 76 Em seu princípio do discurso, Habermas busca um contexto ideal de comunicação, que o denomina de agir comunicativo (em contraposição ao agir estratégico), onde se encontram presentes condições de igualdade e liberdade para todos participantes em um modelo de democracia procedimental. Afirma-se ser procedimental porque deixa em aberto os possíveis resultados, que vão construídos ao longo do processo. Assim, os princípios a serem invocados e aplicados devem encontrar as suas justificações no próprio discurso. Para tanto, os participantes devem se reconhecer reciprocamente como livres e iguais e interagir entre si. Obviamente, em países como o “Brasil, onde grande parte da população está à margem do processo decisório, os desafios são maiores” (CLÈVE, 2011, p. 381). Ainda com enfoque nas teorias de Habermas, explicando a diferenciação do agir estratégico do agir comunicativo, tem-se que “no agir orientado pelo sucesso – o agir estratégico – os componentes de determinada situação transformam-se em fatos valorizados à luz da preferência do ator (facticidade), ao passo que no agir orientado pelo entendimento os componentes da situação dependem de uma compreensão da situação, negociada em comum, com a interpretação de fatos relevantes à luz de pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente (validade)” (CARDOSO, 2010, p. 208). Esse agir para o entendimento (o agir comunicativo) trabalha em um ambiente de comunicação racional, onde são imprescindíveis quatro pressupostos: 1) publicidade e total inclusão de todos os envolvidos; 2) distribuição equitativa dos direitos de comunicação; 3) caráter não-violento de uma situação que admite apenas a força não-coercitiva; e 4) sinceridade dos proferimentos.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

52

O Professor Henrique Ribeiro Cardoso (2010, p. 233) exalta, em seu estudo sobre a

teoria do discurso de Habermas, que o Direito, de per si, não tem força legitimadora suficiente

para alcançar seu sentido normativo através de sua forma ou de um conteúdo moral pré-

definido, sendo apenas atingido mediante uma formação discursiva da opinião e da vontade.

Assim, “o poder de tomar decisões obrigatórias para toda a sociedade – poder político –

somente se desenvolve através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos

fundamentais”.

Logo, o estabelecimento da titularidade popular do poder político e das chamadas

democráticas para participação direta e indireta nos processos de formação das normas não

são suficientes se não há previamente um ambiente de informação e demais liberdades civis

para discussão juntamente com o titular do poder: o povo.

O exercício desse poder, como foi abordado, é feito diretamente pelos cidadãos nas

situações de manifestação de democracia participativa ou, como em regra, por intermédio de

representantes, eleitos por eles. Contudo, a novidade está no fato de que a inserção da

cidadania como um dos fundamentos da República brasileira, logo em seu primeiro

dispositivo normativo, o art. 1º, inciso II, da Constituição de 1988, ampliou a extensão de seu

conteúdo, passando a abarcar – não só os casos de exercício direto ou indireto do poder

político – também a vinculação do Estado na obrigação de possibilitar aos seus destinatários a

concretização de direitos fundamentais, inclusive com a adoção de políticas públicas que

permitam que o indivíduo se torne um cidadão (SILVA NETO, 2006, p. 222).

Tratando de direitos fundamentais relembra-se o que foi analisado no capítulo

anterior, onde asseverou-se que, dentre os direitos fundamentais do homem, destaca-se a

matriz constitucional da dignidade humana, a qual só pode ser garantida e implementada, ao

menos minimamente, mediante uma atividade estatal honesta e eficiente, ou seja, por uma

administração proba.

A partir do momento em que a Constituição brasileira elegeu a cidadania como um

dos fundamentos da República, atrelando o Estado às obrigações de concretude dos direitos

fundamentais, a própria concretização do direito fundamental à administração proba é

concebida como medida imprescindível para a satisfação completa da cidadania. Mais uma

vez, visualiza-se a íntima ligação entre conceitos como povo, cidadania e, agora,

administração proba.

Nesse diapasão, é inquestionável que, embora a multivariedade de acepções de povo,

sua significação está intrinsicamente vinculada à noção de interesse público. “O titular do

interesse público é o povo, a sociedade (no seu todo ou em parte)” (JUSTEN FILHO, 2009).

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

53

Nos próprios dizeres do 1º, parágrafo único, da Constituição brasileira, “todo o poder emana

do povo”. Tomando as palavras de Abraham Lincoln, “a democracia é o governo do povo,

para o povo e pelo povo” (SILVA, 2009, p. 137).

Em seu discurso oficial de despedida77 (INTERNACIONAL ESTADÃO, 2016, p. 5),

o então Presidente norte-americano Barack Obama enfatizou a titularidade do poder político

pertencente ao povo:

Nossa Constituição é uma dádiva notável e bela. Mas, na realidade, é apenas um pergaminho. Ela não tem nenhum poder, em si. Somos nós, o povo, que lhe conferimos poder – com nossa participação e com as escolhas que fazemos: se nos posicionamos ou não em defesa de nossas liberdades; se respeitamos e aplicamos as leis, ou não.

O interesse público, cujo titular é o povo, é condição e elemento indispensável para

que os interesses privados possam serem implementados, como bem afirma Jorge Hector

Escola (1989, p. 36):

El interés privado – libertades y derechos – y el interés público no son, de esa manera, dos ideas opuestas y antitéticas. Por el contrario, el interés público, que concluye em el bienestar general, no es sino la condición y ele l elemento indispensable para que todo interés privado pueda, real y efetivamente prevalecer y conseguirse.

Consigne-se, enfim, que as concepções de povo e cidadania relacionam entre si e se

complementam com a exigência constitucional de uma administração honesta e eficiente,

minimamente necessária para a existência digna de cada um e de todos indivíduos nacionais

ou estrangeiros (e também apátridas), residentes ou em trânsito no território nacional. É, por

assim dizer, um interesse público. Diante desse contexto, é possível afirmar que o interesse

público se reveste de superioridade quando em tensão com os interesses individuais? Passar-

se-á a essa análise e todas suas implicações jurídicas no tópico subsequente.

2.2 Interesses públicos e interesses privados: tensões e novas perspectivas

77 Em seu último discurso oficial como presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pronunciou em tom fortemente emotivo durante cerca de 50 minutos os principais pontos de seu legado e as perspectivas que espera para o futuro, na noite do dia 11 de janeiro de 2017, para uma multidão em Chicago, cidade onde iniciou sua carreira política. No próximo dia 20 de janeiro, ele deixa a Presidência dos Estados Unidos, que exerceu por dois mandatos, desde 2009. Na data, Obama entregará o cargo ao presidente eleito Donald Trump, ganhador das eleições presidenciais em novembro do ano de 2016 (INTERNACIONAL ESTADÃO, 2016).

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

54

Como foi abordado, o interesse público está intimamente relacionado com a própria

ideia de coletividade, sendo corolário do regime democrático, cujos postulados devem

permear toda atividade estatal e também a iniciativa privada, ainda que estejam sendo

debatidas questões estritamente concernentes à esfera individual. Nesse diapasão, deve pautar

todas relações jurídicas: dos particulares entre si, deles com pessoas de direito público e

destas entre si (BARROSO, 2015, p. 96).

A título de exemplo, pega-se como referência a exigência constitucional de que a

propriedade particular deve atender a sua função social, consoante norma prevista no art. 5º,

inciso XXIII, da Carta Magna e na exigência disposta no art. 1.228, § 1º, do Código Civil78.

Mesmo nesses casos, devem estar contemplados os interesses sociais, os quais traduzem a

permanente necessidade de persecução ao bem comum, evidenciando-se uma destinação

positiva que deve ser dada à coisa privada79. “No mundo moderno, o direito individual sobre

as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse de não

proprietários” (GOMES, 2004, p. 129).

Cita-se, em se tratando de direito administrativo, que é viciada à finalidade do ato

quando o administrador o pratica em descumprimento do interesse público (sentido amplo) ou

em desrespeito ao objetivo diverso daquele explícito ou implicitamente previsto em lei80.

Desse modo, afirma-se que houve desvio de finalidade porque “o fim de interesse público

vincula a atuação do agente, impedindo a intenção pessoal” (MEDAUAR, 2013, p. 157). Por

conseguinte, o ato administrativo praticado com objetivo diverso do interesse público ou

específico em lei é viciado.

O debate que envolve o conteúdo e alcance normativo do interesse público não se

encontra adstrito tão somente ao âmbito das relações jurídicas da administração pública. Sua

presença é visível em todos os campos do Direito no ordenamento jurídico brasileiro. No

entanto, é no Direito Administrativo que as discussões foram mais intensas, suscitando

argumentos justificadores para posicionamentos que ora tendem a enaltecer o interesse 78 O art. 5º, inciso XXIII, da Constituição de 1998, diz expressamente que “a propriedade atenderá a sua função social”. Já o art. 1.228, § 1º, do Código Civil, dispõe que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. 79 Essa mesma linha de raciocínio consta no enunciado n. 07, aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação a respeito da propriedade rural: “Na aplicação do princípio da função social da propriedade imobiliária rural, deve ser observada a cláusula aberta do § 1.º do art. 1.228 do Código Civil, que, em consonância com o disposto no art. 5.º, inciso XXIII da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcionalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do trabalho”. 80 A caracterização do desvio de finalidade pode se dar em seus dois sentidos – amplo e restrito – de modo que se pode concluir que o conceito legal de desvio de finalidade ou de poder, constante no art. 2º, parágrafo único, “e”, da Lei nº 4.717/1965, está incompleto (DI PIETRO, 2015, p. 288).

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

55

público através de uma supremacia, ora privilegiam os interesses individuais sob o

fundamento da dignidade da pessoa humana. Por esse motivo, passar-se-á à exposição de

teses administrativistas sobre o assunto, porém ressalvando, desde logo, que a abrangência

que se pretende acerca do interesse público não pode ficar exaurida apenas a um segmento da

ciência jurídica.

Iniciando, explicita-se que o chamado do princípio da supremacia do interesse

público sobre o particular no direito positivo brasileiro é dada através dos estudos que o

contemplam na categoria de princípio constitucional implícito (SILVA, 2013, p. 14).

Aloca-se como implícito porque sua existência não se encontra expressa no texto

constitucional, mas através de interpretações doutrinárias, dentre as quais as construídas dos

dispositivos constitucionais art. 5º, XXIV e XXV, art. 170, incisos III, V e VI81, que, mesmo

não mencionando supremacia ou grau hierárquico do princípio, servem para extração de seu

conteúdo implícito (MELLO, 2015, p. 96).

Desde o seu surgimento no direito brasileiro, que remonta à década de sessenta do

século pretérito, o princípio da supremacia do interesse público foi amplamente defendido

pelo administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello, para o qual, ao lado da

indisponibilidade do interesse público, é um dos pilares do regime jurídico administrativo.

Esse entendimento leva o autor à identificação de duas consequências jurídicas: 1) posição

privilegiada conferida ao poder público para a tutela de interesses públicos; e 2) a supremacia

manifestada em uma relação de verticalidade entre a administração e os particulares

(MELLO, 2015, p. 70).

Assim, eventuais tensões existentes entre o interesse público e privado, segundo seus

defensores, aquele normalmente prevalecerá. Quando o interesse público (de toda

coletividade) estiver em jogo, prevalecerá sobre o privado (FIGUEIREDO, 2004, p. 67).

“Sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de

prevalecer este, uma vez que o objeto primacial da administração é o bem comum”

(MEIRELLES, 2008, p. 50).

Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 61) aduz também que o interesse público

não tem existência autônoma e desvinculada dos interesses individuais, pois é uma forma

qualificada destes, ou seja, uma de suas manifestações. Afirma que os interesses individuais

se expressam de dois modos distintos. Uma primeira quando representa interesses meramente

81 As normas constitucionais previstas art. 5º, XXIV e XXV, art. 170, incisos III, V e VI, versam sobre desapropriação, requisição, função social da propriedade, defesa do consumidor e meio ambiente, respectivamente.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

56

particulares de cada indivíduo. Uma segunda forma quando é manifestação dos interesses

individuais do cidadão como componente da coletividade.

A respeito dessa relação entre interesse público e privado, Jorge Hector Escola

(1989, p. 61) assevera que “o interesse público deve ser conceituado como o interesse

resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados

em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem”.

A justificativa da existência da supremacia do interesse público para seus defensores

reside no fato de que o Estado avoca para si como o grande responsável pela defesa do

interesse coletivo, no caso, os interesses públicos primários (MELLO, 2015, p. 24). Tanto é

que a supremacia não deverá se impor frente ao particular, caso o interesse a ser tutelado pelo

poder público não seja interesse público em sua essência, mas interesse da pessoa jurídica de

direito público.

Essa limitação ao princípio da supremacia do interesse público já era traçada no ano

de 1960 pelo italiano Renato Alessi (1970, p. 184), o qual distinguiu os interesses públicos

primários, cuja satisfação estava a cargo do Estado, dos interesses de uma determinada

organização jurídica coletiva, que denominou de interesses secundários:

Tradándose del poder soberano, estará en relación con la realización de intereses públicos, colectivos. Estos intereses públicos, colectivos, cuya satisfación está a cargo de la Administración entendida como aparato organizativo, sino lo que se lhamado el interesé colectivo primário, formado por el conjunto de intereses individuales preponderantes em uma determinada organización jurídica de la colectividad, mientras que el interés del parato (si es que puede concebirse um interés del aparato unitariamente considerado) sería simplemente uno de los interesses secundarios que se hacen sentir em la colectividad, y que pueden ser realizados solamente en caso de coincidencia.

Seguindo os ensinamentos do Professor italiano de Direito da Universidade de

Bolonia, BARROSO (2015, p. 94-95) detalha que o interesse público pode ser primário ou

secundário. O primeiro é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins – de interesse de toda

sociedade – que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Para sua defesa,

há o Ministério Público e a Defensoria Pública e ações como a popular e a civil pública para

tutela de interesses gerais da coletividade.

Já o interesse público secundário reflete os interesses da pessoa jurídica do direito

público que seja parte em determinada relação jurídica – União, Estados, Distrito Federal,

Municípios e respectivas autarquias e empresas públicas. Em termos gerais, confunde-se com

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

57

os interesses do erário, em maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. São defendidos

pela Advocacia Pública.

No tocante aos eventuais conflitos com o interesse particular, Barroso (2015, p. 95-

96) assevera que o interesse público secundário jamais possuirá supremacia a priori e

abstrata, cabendo ao intérprete proceder a devida ponderação à vista dos elementos

normativos e fáticos para o caso concreto82. Contudo, diferentemente ocorre nas situações de

colisão com o interesse primário, vez que este “há de desfrutar de supremacia em um sistema

constitucional e democrático”, tendo em vista consubstanciar valores fundamentais.

Barroso (2015, p. 96-97) prossegue suscitando a complexidade do debate quando o

confronto envolve interesse público primário consubstanciado em uma meta coletiva e o

interesse público primário que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental. Estes

casos são os mais dificultosos e que se vinculam diretamente o cerne deste trabalho.

Nesses casos de colisões, leciona que o intérprete deverá observar dois parâmetros: a

dignidade humana e a razão pública (BARROSO, 2015, p. 96-97):

O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. A razão pública consiste na busca de elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo político (...) O outro parâmetro fundamental para solucionar esse tipo de colisão é o princípio da dignidade humana. Como se sabe, a dimensão mais nuclear desse princípio se sintetiza na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo.

A máxima da dignidade da pessoa humana exposta na Constituição de 1988, como

um dos fundamentos da República Brasileira, conduziu a doutrina contemporânea defender a

necessidade de reconstrução da visão clássica do princípio da supremacia do interesse público

de modo a harmonizá-lo com a nova ordem de direitos fundamentais inaugurada (SILVA,

2013, p. 11).

Um dos primeiros a questionarem a superioridade do interesse público, no Brasil, foi

Humberto Bergmann Ávila (1998, p. 165), alegando diversos contrapontos, dentre o

82 Não que o interesse público secundário seja desimportante, até porque os recursos financeiros para consecução dos interesses primário pelo Estado são obtidos através da defesa dos interesses secundários. “Sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover investimentos sociais e nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe tocam. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário. A inversão da prioridade seria patente, e nenhuma lógica razoável poderia sustenta-la” (BARROSO, 2005, p. xiv).

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

58

reconhecimento de que, com a nova ordem constitucional, “o interesse privado e o interesse

público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser

separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins”.

“Da condição de súdito, de mero sujeito subordinado à Administração, o

administrado foi elevado ao status de cidadão” (BAPTISTA, 2003, p. 128). Nota-se que a

autora menciona o tratamento constitucional dado à cidadania, um dos fundamentos da

República Brasileira83, como uma das forças propulsoras a alterar o paradigma clássico em

debate. A cidadania passa a ser concebida uma dupla dimensão: 1) nas situações de exercício

direto ou indireto do poder político; e 2) na obrigação do Estado de possibilitar aos seus

cidadãos a concretização de direitos fundamentais que permitam a existência digna (SILVA

NETO, 2006, p. 222).

Rebatendo o princípio da supremacia com a justificativa de incompatibilidade com a

a ordem constitucional vigente, cite-se Daniel Sarmento (2005, p. 26):

Contudo, de um tempo para cá, vozes autorizadas vêm se levantando na doutrina para contestar a existência do princípio em pauta, ou para dar a ele uma nova formulação, mais compatível com os direitos fundamentais e o estatuto axiológico do Estado Democrático de Direito.

Outro ponto de embate pela nova doutrina reside na imprecisão e vagueza da

expressão interesse público, que interfere inevitavelmente no conteúdo e alcance do

respectivo princípio da supremacia (ÁVILA, 1998).

Fábio Medina Osório (2000, p. 73) também critica a supremacia pela vagueza e

multivariedade de sentidos que o termo interesse público pode assumir. “O conteúdo e a

caracterização dependem de múltiplos fatores, normativos e metanormantivos, que mereciam

debate aprofundado”.

Além da “absoluta indeterminação do conceito de interesse público”, Daniel

Sarmento (2005, p. 27) acrescenta a profunda crise no contexto atual em virtude da

fragmentação e pluralismo que marcam a sociedade contemporânea, “nas quais se torna por

vezes impossível extrair, à moda de Rousseau, uma noção homogênea de bem comum ou de

vontade geral”.

O autor (SARMENTO, 2005, p. 52) identifica duas perspectivas discrepantes nas

teses justificadoras da supremacia do interesse público: o organicismo e o utilitarismo. No

organicismo, o interesse público seria algo superior e diferente do somatório dos interesses

83 Art. 3º, inciso II, da Constituição de 1988.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

59

individuais. “O organicismo é uma teoria que concebe as comunidades políticas como uma

espécie de ‘todo vivo’, composto por indivíduos que nela desempenham papel semelhante a

de um órgão dentro do corpo humano”.

Já a doutrina utilitarista se baseia no reconhecimento racional de igualdade entre

todas as pessoas que integram a sociedade política, de modo que o melhor objetivo a ser

perseguido é o que promove o bem-estar, prazer, felicidade ou preferências racionais do maior

número de pessoas. É concebida como consequencialista “o juízo sobre um determinado ato

porque não depende da sua conformidade com princípios morais anteriores, mas das

consequências que ele produzirá sobre os interesses dos membros da sociedade”.

(SARMENTO, 2005, p. 52).

Daniel Sarmento cita ainda a doutrina individualista, que contrapõe os postulados

organicistas e utilitaristas, conferindo uma primazia aos direitos individuais sobre os

interesses coletivos. As três teorias não se compatibilizam com a ordem constitucional

brasileira, que centra na dignidade da pessoa humana e, consequentemente, na igualdade

substancial, na solidariedade, em direitos sociais etc. (SARMENTO, 2005, p. 52).

Não se pretende neste trabalho, expor e dissecar minuciosamente a riqueza de todos

argumentos que combatem o princípio da supremacia do interesse público, assunto para uma

só Dissertação, mas apenas constatar que o clássico princípio da supremacia vem sendo

fortemente criticado84, sem, em algumas ou muitas oportunidades, tomar as devidas cautelas

necessárias para não se deixar cair no radicalismo oposto.

Não se pode olvidar que o interesse público primário (valendo-se do secundário)

vincula-se, antes de tudo, à finalidade maior da gestão pública: a dignidade da pessoa humana.

E, como se afirmou, o seu titular é o povo.

84 Compilando as principais justificativas produzidas pelos críticos à supremacia do interesse público, Denise Martins Moura Silva (2013, p. 62-63) cita: 1 – O interesse público não se identifica com o bem comum; este é a composição harmônica do bem de cada um com o de todos; não é o direcionamento dessa composição em favor do interesse público; 2 – O interesse público não pode ser descrito em separado dos interesses privados; 3 – O dito princípio da supremacia do interesse público por não está previsto expressamente em dispositivo constitucional algum, não pode ser extraído de uma análise sistemática do Direito; 4 – A supremacia do interesse público não e conceitualmente nem normativamente uma norma-princípio, restando-se impossibilitada para descrever alguma relação de supremacia; 5 – A absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, em face dos riscos que sua assunção representa para a tutela dos direitos fundamentais; 6 – A supremacia do interesse público é fulcrada no organicismo e no utilitarismo, enquanto que o Estado Democrático de Direito se baseia no personalismo que foca na pessoa humana, e não no Estado, a medida de todas as coisas serem através de um se concreto, situado, com necessidades materiais, carências e fragilidades; 7 – O direito público, com base na Constituição pluralista, não pode ser mais visto como garantidor do interesse público titularizado pelo Estado, mas sim garantidor dos direitos fundamentais positivos ou negativos; e 8) A supremacia do interesse público sobre o particular não é um princípio jurídico, de acordo com a estrutura normativa atribuída ao conceito de princípio jurídico, proposta por Robert Alexy e que é defendida por Humberto Bergmann Ávila”.

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

60

O interesse público assumiu uma perspectiva especial e relevante com o advento da

Constituição de 1988, uma vez que consagrou a administração honesta e eficiente como um

direito fundamental do cidadão, sendo imprescindível para que o poder público promova a

existência humana com o mínimo de dignidade. Nessa toada, a própria concretude dos direitos

fundamentais pelo Estado traduz em uma dimensão do interesse público.

Ressalta-se que não se pretende reviver o clássico paradigma da supremacia do

interesse público. Contudo, não se pode simplesmente relegar o interesse público a um plano

inferior com o mero argumento de se opor a outros direitos individuais, alterando, em

algumas situações (às vezes, até causídicas), o entendimento outrora firmado sob a alegação

de resguardar direitos individuais. De igual modo, é desarrazoado.

Atualmente, muito se debate sobre a inexistência da preponderância do interesse

público sobre o privado. No entanto, parece faltar o mesmo fulgor para a análise das

consequências a médio e a longo prazo do sacrifício do interesse público quando levado aos

excessos. Essa tendência se mantendo, indaga-se aqui se o Estado terá condições (muitas

vezes precárias) de manter o mesmo aparato estrutural, financeiro e jurídico indispensáveis

para a concretização dos direitos fundamentais de todos outros cidadãos, individual ou

coletivamente considerados. Ademais, os custos não se resumem aos financeiros, englobando

outros, inclusive comportamentais (BOLESINA; LEAL, 2013, p. 82-83):

Nesse sentido, já há algum tempo se tem conhecimento de que as decisões judiciais implicam em consequências – não só jurídicas e econômicas, mas também comportamentais – para a sociedade e para o Estado, notadamente aquelas que digam respeito a questões íntimas às relações de coletividade (...) exemplo oportuno oi sublinhado pelo Ministro Gilmar Mendes ao apreciar o AgR 47p/PE. Na ocasião em que se debatia o direito à saúde, foi destacado pelo julgador que a efetivação de direitos fundamentais pelo Poder Judiciário deve ser uma tarefa diligente e ponderada, não obstante, no Brasil, cada vez mais remansoso é o entendimento de que os direitos fundamentais são direitos de aplicabilidade imediata e direta. A atuação do Poder Judiciário, salientou o Ministro, não pode perder de vista os argumentos que destacam a escassez de recursos, as escolhas políticas para alocação dos mesmos, critérios de macrojustiça e microjustiça e a otimização da aplicação de recursos por meio de políticas públicas.

Pensa-se na hipótese de disposição dispendiosa para tratamento de saúde de

determinado paciente quando existem outras alternativas médico-farmacêuticas medianas.

Imagina-se quantos enfermos terão prejuízos em seus tratamentos diante desse quadro. Não é

demais pensar que a proliferação dessas situações trará prejuízos na manutenção da parca rede

pública de saúde (distribuição de medicamentes, atendimento clínico etc.).

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

61

Recorda-se ainda os polêmicos descumprimentos de decisões judiciais e de

desrespeito à Lei n. 12.965/2014 (Lei do Marco Civil)85 por empresas controladoras de redes

sociais, a exemplo do aplicativo whatsapp gerido pelo Facebook. Quantas atrocidades

cometidas por organizações criminosas devem perdurar saqueando os cofres públicos ou

instituindo um poder paralelo enquanto se permite seu funcionamento sob o discurso da

existência de punições alternativas (até o presente momento ineficazes), quando, na verdade, a

tolerância com a ilicitude decorre da satisfação individual de continuar utilizando o serviço,

mesmo havendo outros aplicativos com idênticas funções86. A satisfação pessoal parece

vendar os olhos da conclusão lógica de que se há um meio de comunicação imune à

fiscalização, ele também será o principal instrumento de comunicação para cometimento de

crimes, notadamente nos delitos mais complexos ou que ultrapassem as divisas e fronteiras.

Fazendo um paralelo com uma situação similar, caso determinada emissora de rede de

televisão passe a descumprir a legislação nacional de prestação de serviço público e a

normatização da ANATEL87, ela deve permanecer transmitindo determinada novela tão

somente porque é a de maior audiência nacional?

Trazendo o debate para a esfera criminal, toma-se como exemplo as ações criminais

cujo objeto são infrações relacionadas ao colarinho branco ou à corrupção. A experiência

brasileira demonstra que é comum, em especial, nos casos em que o rombo ao erário foi

maior, não prosperarem em razão de garantias processuais, algumas das quais exageradas e

descabidas. Condenações que se desvanecem no tempo pela prescrição, abuso no uso de

recursos com intuito protelatório, amplitude do instituto do habeas corpus, foro por

prerrogativa de função em crimes comuns etc. (MATTOS, 2015, p. 16-17).

85 Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. 86 “Policiais federais prenderam na manhã desta terça-feira (1º) em São Paulo o Vice-Presidente da rede social Facebook na América Latina Diego Jorge Dzodan. A ação foi tomada a pedido da Justiça de Sergipe após a rede social descumprir decisão judicial de compartilhar informações trocadas no WhatsApp por suspeitos de tráfico de droga. O Facebook é dono do WhatsApp desde o começo de 2014 (...) Os policiais cumpriram mandado de prisão preventiva expedido pelo juiz criminal da comarca de Lagarto, em Sergipe, Marcel Montalvão. Em casos de prisão preventiva, não há prazo para o investigado deixar a prisão. Segundo a Polícia Federal em Sergipe, o representante descumpriu ordens de repassar à Justiça informações armazenadas em serviços do Facebook, "imprescindíveis para produção de provas a serem utilizadas em uma investigação de crime organizado e tráfico de drogas" (...) Segundo o Delegado Aldo Amorim, membro da Diretoria de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal em Brasília, a investigação foi iniciada em 2015 e esbarrou na necessidade informações relacionadas as trocas de mensagens via whatsapp, que foram solicitadas ao Facebook e não fornecida, ao longo dos últimos meses. Ele revelou ainda que foram aplicadas multas gradativas e que essas multas só irão cessar quando a empresa repassar as informações necessárias. Os valores das multas iniciaram em R$ 50 mil, passando para R$ 500 mil e agora estão no valor diário de R$ 1 milhão. Ainda de acordo o Delegado, existe uma organização criminosa na cidade de Lagarto e o não fornecimento das informações do Facebook está obstruindo o trabalho de investigação da polícia. Ele disse também que toda empresa de comunicação que atua no Brasil deve seguir a legislação brasileira, independente do seu país de origem” (POLÍCIA..., 2016). 87 Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL, 2017).

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

62

Esses casos e outros, que serão expostos na parte final desta Dissertação,

transparecem um certo e egoístico exagero na amplitude dos interesses particulares em

detrimento do interesse público. Como se este fosse uma antítese ou negação daquele. Esse

pensamento chega a remontar os costumes políticos e administrativos brasileiro da gestão da

res publica por agentes estatais como se privada fosse, causando uma verdadeira confusão

entre o público e privado (SARMENTO, 2005, p. 28).

Explicita-se, novamente, que não se quer retomar a supremacia do interesse público.

Não se trata disso. Entrementes, observa-se, com certo cuidado, que sua mitigação exagerada

e paulatina poderá acarretar, em um futuro, em consequências desastrosas para esses mesmos

direitos individuais usados como oposição. Os interesses públicos e privados não se excluem

mutuamente. Ao contrário, complementam-se.

Nesse ponto, preciosas são as palavras de Daniel Sarmento (2005, p. 28):

Porém, no trato do tema é recomendada redobrada cautela. Se, de um lado, a subordinação dos direitos individuais ao interesse coletivo pode ser a ante-sala para totalitarismos de variados matizes, de outro, a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum.

Chamada a atenção para o problema em foco, busca-se neste trabalho uma proposta

pacificadora para o paradoxo, que se manifestará na reconstrução do conteúdo e alcance do

interesse público à luz da demanda social brasileira atual. Para isso, é preciso antes tecer

alguns comentários sobre a importância da hermenêutica filosófica para a ressignificação do

interesse público.

2.3 O papel da hermenêutica filosófica na reconstrução do interesse público

Um dos primeiros passos quando da conceituação de determinado domínio-de-coisa

é inquirir acerca da origem etimológica da palavra. Em se tratando de hermenêutica, afirma-se

que provém do verbo grego hermeneuein, que significa interpretar, ou ainda do substantivo

também grego hermeneia, que simboliza a atividade interpretativa (SOARES, 2013, p.13).

De qualquer sorte, o verbo e substantivo gregos refletem a mitologia helênica,

referindo-se ao deus alado Hermes, entidade mitológica incumbida da função de mensageiro

dos deuses, através da qual exercia a ação comunicativa entre os deuses e os homens,

revelando aos humanos a incompreensível linguagem divina (CAMARGO, 2003, p. 14).

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

63

Por sua vez, o vocábulo interpretação advém do latim interpretare, concernente a

prática de feiticeiros e adivinhos que descobriam ou previam acontecimentos futuros

introduzindo as mãos nas entranhas dos animais (SOARES, 2013, p. 14).

Não é rara a confusão entre hermenêutica e interpretação. Até porque, na visão

clássica, a hermenêutica é concebida como “uma ou um conjunto de teorias voltadas para a

interpretação de algo, não apenas de um escrito, mas de tudo o qual se possa atribuir sentido e

significado, um filme, uma música, uma pintura, até mesmo uma conversa entre amigos”

(FERNANDES, 2014, p. 160).

Em sua Tese de Doutorado, Alexandre Araújo Costa (2008, p. 10-11) relembra a visão

tradicional hermenêutica afirmando:

Em outras palavras, tudo pode ser tomado pelo intérprete como um texto, ou seja, como um objeto interpretável. Uma mulher dos Balcãs observa as linhas formadas pela borra do café turco, no fundo que bebe há pouco. Essa mulher lê o seu futuro na rede desses traços. Quem interpreta normalmente atua como se estivesse a desvendar os sentidos contidos no texto. A crença de que o sentido é imanente ao objeto faz parte do exercício de quase toda atividade interpretação. A mulher interpreta as figuras formadas na borra, acreditando que essas linhas têm um sentido. Ela não duvida de que, de algum modo, aqueles traços mostram o seu futuro. Ou melhor, talvez ela duvide, mas isso não faz diferença, desde que ela atue como se as linhas tivessem um sentido a ser desvendado.

Classicamente, a hermenêutica é concebida como uma disciplina instrumental em um

duplo sentido alternativo: (i) primeiro pode ser entendida como um instrumento que permite

ao intérprete o acesso aos desejos e finalidades ocultos do criador da obra; ou (ii) ferramenta

que permite o alcance de um sentido objetivo, que se torna evidente e, desse modo,

compartilhado por um universo de leitores (FERNANDES, 2014, p. 161). Em ambos, nota-se

uma forma de perspectiva filosófica entre sujeito/objeto. Nessas leituras, a interpretação

consistiria em desvelar um significado oculto no próprio objeto.

Sob esse prisma, destaca-se a forte influência da Reforma Protestante na medida em

que combateu a intermediação da autoridade eclesiástica para revelação dos significados da

Bíblia, defendendo que a verdade dos textos sagrados somente seria alcançada por intermédio

da superação das dificuldades linguísticas-gramaticais do intérprete. A compreensão dos

textos sagrados apenas se concretizaria através da compreensão daquele que crê (COSTA,

2008, p. 68-69).

Seguindo adiante, explicita-se que, na fase de esplendor do racionalismo iluminista,

cujos postulados constituíam uma reação às práticas e tradições medievais, buscou-se a via

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

64

extrema, porém necessária a época, de reduzir o conhecimento humano ao método racional

típico das ciências naturais, de causa e efeito. Nesse entendimento, a verdade era única,

absoluta e universal, cabendo ao intérprete por intermédio de um olhar racional e externo

desvelá-la. “Portanto, a mentalidade científica moderna compartilha o pressuposto grego de

que existe uma verdade a ser descoberta, mas inova ao defender que o modo de alcançar a

certeza da verdade é a aplicação de um método correto” (COSTA, 2008, p. 68-69).

Apenas no início do século XIX, com Friedrich Schleiemacher, o pai da

hermenêutica contemporânea, é que se buscou desenvolver uma teoria geral da hermenêutica

para os quadros dos conhecimentos humano. O que eram disciplinas fragmentadas, torna-se

uma disciplina geral sobre as condições de compreensão, mediante o desenvolvimento de

regras que conduzira a uma compreensão objetiva88 (SOARES, 2013, p. 17).

A construção, desenvolvimento e consolidação de uma teoria geral da hermenêutica

possibilitou a ampliação da disciplina, outrora restrita a determinadas áreas do conhecimento

humano, tais como: filologia, textos bíblicos e literatura clássica. Contudo, criticava-se

Schleiemacher por sua abordagem eminentemente psicológica89, vez que o intérprete deveria

penetrar no pensamento do autor com a finalidade de busca a pretensão deste (SÁ, 2013).

Em seguida, Wilhelm Dilthey procura na hermenêutica seu projeto para o

fundamento das Geisteswissenschafetn, as chamadas ciências de espírito, conhecidas como

ciências humanas ou sociais aplicadas. Era uma retaliação filosófica à supervalorização dos

métodos científicos a-históricos presentes e próprios das ciências naturais. Enquanto as

ciências de causa e efeito – ciências da natureza – objetivam explicar os fenômenos, as

ciências sociais visam a compreensão do mundo e, para tanto, era imprescindível uma atenção

especial para dimensão histórica da experiência (FERNANDES, 2014, p. 161). “Aquilo que

divide estas duas categorias básicas de conhecimento é o seu objetivo. No caso da ciência

88 Embora pregasse a existência de hermenêutica geral, Schleiermarcher não incluía nela a hermenêutica jurídica, pois esta buscava não apenas a interpretação das normas, mas também sua aplicação a casos concretos com bases nessas normas. Foi Emilio Betti quem desenvolveu uma teoria hermenêutica geral que englobasse o Direito. Para tanto, Betti estabelece três grupos de atividade hermenêutica, conforme o objetivo a ser alcançado: 1) interpretação voltada para o entender o objeto, sem preocupação dogmática (intérpretes de obras literárias); 2) além do entender, era necessário explicar a outros o entendimento obtido (a interpretação do historiador, que busca reconstruir um momento histórico para explica-lo a outras pessoas); e 3) extrair do entendimento alcançado uma orientação para tomada de decisão na vida prática (hermenêutica jurídica) (COSTA, p. 341-343). 89 Em uma crítica gadameriana à introspecção psicológica preconizada por Schleiermacher, o administrativista Henrique Ribeiro Cardoso (2016, p. 20) aduz que “o horizonte da interpretação de um texto não pode ser limitado pelo que tinha em mente originalmente o autor nem pelo horizonte do destinatário para quem o texto foi originalmente escrito – conceito do leitor original, idealizado e proposto por Shleiermacher. Em realidade, os textos não devem ser compreendidos como expressão da vida da subjetividade do autor. Referências feitas ao leitor originário ou ao sentido do autor não podem limitar o horizonte do sentido dos textos”. Esclareça-se que não se despreza o que foi pensando quando da criação do texto ou a sua leitura original, contudo, tais referências não podem traçar limites e impor barreiras intransponíveis para a compreensão.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

65

natural, o ponto é disponibilizar explicações. Mas, explicação causal é inapropriada às

ciências humanas; o que é necessário aqui é o entendimento” (LAWN, 2011, p. 74).

Dilthey comenta sobre a existência da circularidade da compreensão, segundo a qual

somente pode-se conhecer o que já se conhece90. “Se é verdade que um texto nada diz a quem

não entenda já alguma coisa daquilo de que ele trata; se também é verdade que ele só

responde a quem o interroga facilmente” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2000, p. 65-66).

A circularidade da compreensão se concretiza a partir de um pré-conceito (esqueça-

se aqui a carga pejorativa do vocábulo91), que precede ao nosso mundo de experiência, que

vai se enriquecendo na medida que vai interagindo com novos conteúdos. Não se trata de um

círculo vicioso, mas uma via de mão dupla produtiva, que se reveem mutuamente, razão pela

qual seria melhor designada pela expressão espiral hermenêutica (FERNANDES, 2014, p

168).

Havia sido dado um grande passo, todavia ainda persistia uma perspectiva sujeito-

objeto para compreensão objetiva dos fenômenos.

Com a inserção da dimensão histórica no processo de compreensão, vislumbra-se

uma abertura mais profunda na perspectiva relação que se estabelece entre a linguagem e

racionalidade, ocasionando, no final do século XX, o rompimento da segmentação

sujeito/objeto e, em substituição, inaugurando a relação sujeito/sujeito, que é mediada pela

linguagem. Era o giro linguístico ou hermenêutico92 (SOARES, 2013, p. 20).

Heidegger observa que compreender não consiste na atividade desvelamento do

objeto. É muito mais. Consiste no dasein, isto é, na própria “condição do sujeito se ver em um

contexto histórico-linguístico, que molda e fornece um horizonte de sentido” (FERNANDES,

2014, p. 167-168). “Com Heidegger, a hermenêutica deixa de ser normativa e passa a ser

filosófica, onde a compreensão é entendida como estrutura ontológica do Daisen (ser-aí)”

(STRECK, 2002, p. 170).

Em poucas palavras, Camargo (2003, p. 29) esclarece com perfeição:

90 Martin Heidegger (2012, p. 41) afirma que todo perguntar é um buscar. “Toda busca tem sua direção prévia a partir do buscado (...) Como busca, o perguntar necessita de uma direção prévia a partir do que é buscado. O sentido de certo modo já está disponível para nós”. 91 Nesse sentido, o “preconceito não significa falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente, pois não são forçosamente errados e destinados a distorcerem a verdade” (SÁ, 2013, p. 181-199). 92 Sobre as expressões giro ou virada linguística ou hermenêutica, Fernandes (2014, p. 166) aduz que “poderíamos apenas trabalhar com a expressão ‘giro linguístico, pois em virtude do mesmo, já estaria incluído o giro hermenêutico (na medida em que não há em se falar atualmente em um giro linguístico sem a existência de um giro hermenêutico)”.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

66

Para Heidegger, a compreensão consiste no movimento básico da existência, no sentido de que compreender não significa um comportamento humano do pensamento entre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Constitui, antes, o movimento básico da existência humana. Compreender, para Heidegger, é a forma originária de estar aí, do ser-no-mundo.

“A compreensão é vista não como técnica, mas como um modo de ser do homem,

vinculando-o à relação do ser com o mundo, ou seja, seu problema hermenêutico está ligado à

compreensão do Dasein, do ser-aí, à compreensão do ser-no-mundo” (SÁ, 2013, p.181-199).

Com a virada linguística, a linguagem deixa de ser o terceiro ente que se interpõe entre

o autor e o objeto para ser “condição de possibilidade, e, mais do que isto, é constituidora do

próprio saber. Isso porque e pela linguagem e somente por ela que podemos ter mundo e

chegar a esse mundo”. Logo, deixa de ser reprodutiva para ser produtiva, fazendo parte do

processo de compreensão, constituindo “totalidade” e “a abertura para o mundo”93 (STRECK,

2002, p. 174).

Apoiando-se no dasein de Heidegger e na dimensão histórica suscitada por Dilthey,

Hans-Georg Gadamer, cuja obra principal é Verdade e Método, desenvolve novas bases para

hermenêutica fundada no diálogo, no qual os interlocutores tentam atingir um entendimento

sobre algo no mundo. “A guinada linguística, compreendida e delineada por Gadamer, com

forte influência da filosofia existencialista de Heidegger, faz surgir um novo paradigma que

põe a linguagem no centro das preocupações filosóficas” (CARDOSO, 2016, p. 4).

Nessa conjectura, as ciências de espírito dispensam a necessidade de desenvolver um

método para que possam usufruir status de ciência. “Com o giro hermenêutico de Gadamer,

aprendemos que não há método que alcance a verdade sobre objetos e nos mostre de forma

pura, absoluta e total. Não temos ‘o’ olhar, mas sim ‘um’ olhar sobre determinado objeto”

(FERNANDES, 2014, p. 169-170).

A operacionalização do processo de compreensão, dentro e pela linguagem94, parte

dos preconceitos do sujeito. A respeito, Gadamer destaca que o Iluminismo, em sua busca

incessante pela neutralidade racional, enfatizou o aspecto negativo dos preconceitos com a

finalidade de afastar juízos subjetivos. Contudo, a compreensão só é possível “não por uma

93 Lênio Luiz Streck (2002, p. 176) prossegue tratando da importância da linguagem: “a linguagem sempre nos precede; ela nos é anterior. Estamos sempre e desde sempre, nela. A centralidade da linguagem, é dizer, sua importância de ser condição de possibilidade, reside no fato de que o mundo somente será mundo, como mundo, se o nomearmos, é dizer, se lhe dermos sentido como mundo. Não há mundo em si. O mundo e as coisas somente serão (mundo, coisas) se forem interpretados (como tais). Apagar uma linguagem, isto é, esquecer as condições de sua insurgência, de sua nomeação, não faz as coisas (como tais) desaparecerem”. 94 “A linguagem é o médium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação” (GADAMER, 2015, p. 503).

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

67

razão neutra e abstrata, mas sim por um conjunto de envolvimentos pré-refletidos com o

mundo que está por trás dos julgamentos e, de fato, o tornam possível”. De modo que “uma

condição para fazer julgamentos refletidos e estimativos sobre o mundo é a posse de

preconceitos: sem pré-julgamento não pode haver julgamentos” (LAWN, 2011, p. 58).

“‘Preconceito’ não significa pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito

permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente” (GADAMER, 2015, p. 360).

Gadamer estabelece que a compreensão humana é histórica95, dialética e linguística. É

um ato histórico e como tal está sempre vinculada às experiências e ao presente. Diz-se ser

dialética porque se firma em um diálogo em que se visa obter um entendimento. Também é

linguística porque a experiência ocorre na e pela linguagem. Enfim, não é um processo

subjetivo do homem em relação a um objeto, mais uma forma de ser do próprio homem

(SOARES, 2013, p. 21-22).

Nesse sentido, não é tarefa da hermenêutica verificar o método para uma apropriada

interpretação e nem desvelar o sentido de um objeto, mas refletir sobre a compreensão em

si96. Essa compreensão em si do indivíduo ocorre por sua situação histórica, a qual se vincula

com as ideias de tradição e horizonte. “O ser humano, devido a sua condição histórica, é, por

isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que alcança e encerra

tudo que é visível a partir de um determinado ponto (CAMARGO, 2003, p. 32). É no campo

da linguagem – e através dela – que vai se operar a tradição e a fusão de horizontes.

Um dos pontos exaustivamente explorados por Gadamer é a ideia de tradição.

Costuma-se, não raro, concebê-la como antítese à razão. Trata-se de uma ingenuidade

originada do sonho Iluminista pela busca da razão que parece persistir na atualidade (LAWN,

2011, p. 54).

Proveniente do latim tradere, significa passar adiante, isto é, refere-se à noção de

transmissão, passar algo adiante de geração a geração. Gadamer afirma que essa uma

transmissão não se opera em uma zona de neutralidade, ao contrário, o passar adiante implica

em recriação, reelaboração, reprocessamento e reinterpretação. A própria razão é passada

95 O historicismo, segundo o próprio Gadamer (2015, p. 354), é um dos pontos que lhe distanciam do pensamento heideggeriano: “o próprio Heidegger só se interessa pela problemática da hermenêutica histórica com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a estrutura prévia da compreensão. Nós, ao contrário, uma vez tendo liberado a ciência das inibições ontológicas do conceito de objetividade, buscamos compreender como a hermenêutica pode fazer jus à historicidade da compreensão”. 96 Sobre o assunto, o Professor Henrique Ribeiro Cardoso (2016, p. 1) explica: “Em Gadamer, a hermenêutica não é a tomada apenas como uma técnica ou conjunto de técnicas para a compreensão de textos sagrados, literários ou jurídicos. Mas que isso, sua hermenêutica busca fazer compreender a totalidade das ciências do espírito (Ciências Humanas ou Sociais), sendo tarefa da Filosofia, em sua amplitude, fundamentar esta compreensão, partindo da noção de finitude do homem em seu contexto de comunicação – âmbito de sua consciência histórica”.

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

68

adiante na história e, nesse processo, termina sendo alterada. Basta imaginar quantas teorias

concebidas como racionais foram mudadas ou negadas posteriormente.

Desse modo, o passado tem sua importância para o presente, sendo transmitido pela

tradição através da linguagem. Mesmo em momentos de rupturas históricas, não se pode

desprezar os papéis do passado e tradição no processo da compreensão. A respeito, Gadamer

(2015, p. 373) ensina:

Inclusive quando a vida sofre suas transformações mais tumultuadas, como em tempos revolucionários, em meio à suposta mudança de todas as coisas, do antigo conservar-se muito mais do que se poderia crer, integrando-se com o novo numa nova forma de validez. Em todo caso, a conservação representa uma conduta tão livre como a destruição e a inovação.

“A tradição é uma força vital inserida na cultura; nunca pode ser obliterada e reduzida

a uma mixórdia de crenças não racionais, pois as crenças e a racionalidade fazem parte de

contextos maiores chamados tradição” (LAWN, 2011, p. 54).

Outro ponto crucial para a compreensão de Gadamer é sua explicação sobre a fusão de

horizontes. O sujeito, cujo entendimento preliminar sobre algo lhe foi transmitido no processo

de tradição na linguagem, quando se defronta com um texto (ou qualquer objeto físico ou

abstrato) dialoga com a linguagem original desse texto, o qual, muitas vezes, detém certo

lapso temporal.

Esse diálogo não ocorre de forma linear, mas em um movimento circular de

reconstrução de significado, em que o campo do autor se funde com o do texto constituindo

um novo horizonte, isto é, o horizonte da obra se funde com o horizonte do autor de modo a

formar, não um melhor, mas um novo horizonte para dar origem à compreensão (SÁ, 2013).

Esclareça-se que não se trata de substituição ou supressão de um horizonte por outro,

mas de fusão, acomodação entre os horizontes que se engajam em conexão através do

diálogo. “O ponto não é obscurecer e abolir o horizonte do passado (concebido como o outro),

mas mostrar como aquele horizonte foi adotado e expandido no presente” (LAWN, 2011, p.

96).

Para estabelecimento do diálogo, na fusão de horizontes gadameriana, o intérprete não

pode ficar preso a preconceitos negativos, deve-se “abrir ao novo, às novas possibilidades de

interpretação do mundo, afastando-se dos preconceitos que impedem tomar o novo como algo

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

69

criticamente possível, como uma verdade possível, afastando-se de preconceitos negativos”97

(CARDOSO, 2016, p. 6).

Bem sintetizando Gadamer, Richard Palmer (1997, p. 211) afirma:

Na medida em que cada intérprete se situa num novo horizonte, o evento que se traduz linguisticamente na experiência hermenêutica é algo novo que aparece, algo que não existia antes. Nesse evento, fundado na linguisticidade e tornado possível pelo encontro dialético com o sentido do texto transmitido, encontra a experiência hermenêutica a sua total realização.

Pelo que foi afirmado, constata-se que, dentre os progressos da hermenêutica

filosófica, suscita-se a importância do sujeito para a compreensão. Compreender não é obter a

verdade única e possível por intermédio de um método neutro-racional. Vai lá além. Diz

respeito à própria forma do indivíduo ser no mundo, suas convicções e preconceitos formados

diante de um processo histórico-evolutivo re-criativo transmitido através da linguagem de

gerações para gerações. “Nós não somos sujeitos ávidos por objetos, mas sim seres

‘hermenêuticos’ dentro da tradição” (LAWN, 2011, p. 63). E, nessa busca pela compreensão,

o sujeito funde à sua visão preconcebida com a visão do texto, formatando um novo

panorama, em um processo que Gadamer denominou de fusão de horizontes.

Delineadas os aspectos da historicidade, preconceitos, diálogo, linguagem, tradição e

fusão de horizontes suscitados na hermenêutica filosófica, passa-se a discorrer sobre a

influência na hermenêutica jurídica.

“Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva

para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e

Gadamer” (STRECK, 1999, p. 157).

O Direito, mais facilmente perceptível do que outros ramos do saber, necessita ser

interpretado, ou melhor, compreendido, para que possa irradiar seus efeitos nas relações

humanas que rege. Esse processo de desvelamento na seara da hermenêutica jurídica ganhou

grande impulso recentemente com o neoconstitucionalismo98, dada a mudança de paradigma

97 O autor prossegue afirmando que o hermeneuta deve se livrar “de opiniões e preconceitos extremados (preconceitos que o cegam) que afastem a capacidade de compreender o texto com suas diferenças e verdades, opostas às ideias pré-concebidas. Deve-se permitir que o texto (‘a coisa mesma’) traga sua verdade. A – difícil – tarefa hermenêutica se encontra nesta tensão entre o que existe de familiaridade (pré-compreensão: preconceitos que esclarecem) e o caráter estranho da mensagem nova, devendo o intérprete controlar suas antecipações carregadas de preconceitos (preconceitos que cegam), que o impedem de ingressar na situação hermenêutica. A hermenêutica reivindica uma posição mediadora entre o familiar (pré-compreensão, tradição) e o estranho (o novo), que constitui temas das investigações do intérprete” (CARDOSO, 2016, p. 10). 98 Movimento que deflagrou uma nova percepção da Constituição e de seu papel na interpretação jurídica em geral (BARROSO, 2015, p. 519).

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

70

da hermenêutica jurídica fruto da centralidade, força normativa e supremacia da normas

constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, acrescidos do forte teor axiológico de suas

normas e da expansão da jurisdição constitucional.

No tocante à importância da Constituição na hermenêutica jurídica, Lenio Luiz Streck

(2002, p. 179) leciona:

É preciso ter claro, desde logo, que diferentemente de outras disciplinas (ou ciências), o Direito possui uma especificidade, que reside na relevante circunstância de que a interpretação de um texto normativo depende de sua conformidade com um texto de validade superior. Trata-se da Constituição, que, mais do que um texto que é condição de possibilidade hermenêutica de outro texto, é um fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social.

A crise do Positivismo, que foi acelerada com a necessidade de resgate de valores e

princípios, após as atrocidades da segunda grande guerra no século passado, derrocou o

modelo técnico-formalista interpretativo de subsunção do Direito, que pregava uma suposta

neutralidade ideológica das normas jurídicas.

O esgotamento do modelo positivista hermenêutico abriu caminho, no contexto da

hermenêutica filosófica99, para aspectos que passavam até então despercebidos. A atenção se

volta para o desvelamento das particularidades de cada caso, onde o intérprete detém um

caráter produtivo e não meramente reprodutivo do sistema jurídico. Na formação da sua

convicção, o intérprete é influenciado por todos preconceitos e convicções que traz em sua

bagagem, que vão ser fundidos no campo de horizonte da norma jurídica, em um processo

circular, chegando a uma nova compreensão normativa destinada à justa solução do caso (SÁ,

2013). “A eficácia do texto do dispositivo advirá de um trabalho de adjudicação de sentido,

que será feito pelo hermeneuta/intérprete” (STRECK, 1999, p. 200).

“Condições intrinsicamente associadas à pessoa do intérprete informam o trabalho

interpretativo, considerando-se que fatores de ordem ideológica, cultura ou até mesmo pessoal

influenciam, de modo decisivo, a postura assumida pelo cientista do direito” (SILVA NETO,

2006, p. 75)

Direito é, antes de tudo, uma das manifestações da linguagem. Aliás, tudo se opera no

mundo da linguagem. Ela é totalizante. A reconstrução do interesse público, não poderia ser

99 Até então, por volta de meados do século XX, “as discussões da hermenêutica jurídica não se envolveram com as da hermenêutica filosófica. A hermenêutica jurídica seguiu seu caminho dogmático e metodológico, desenvolvendo um discurso positivista que culminou no peculiar sincretismo que moldou o senso comum dos juristas no século XX: uma base formalista e sistemática, ligeiramente temperada com argumentos teleológicos” (COSTA, 2008, p. 336).

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

71

diferente, também vai estar circunscrita no campo da linguagem e vai se operacionalizar por

seu intermédio.

É na linguagem que o jurista vai formar seus preconceitos – o Direito “é um campo do

saber também repleto de pré-compreensões” (CARDOSO, 2016, p. 8) – e, de igual forma, é

nela que a norma vai ter seu campo de visão a ser fundido com a do intérprete. É nesse

universo que se busca a reconstrução do conteúdo e alcance do interesse público, notadamente

quando em foco questões relacionadas ao direito fundamental à administração honesta e

eficiente.

Nessa toada, é imprescindível atentar para as peculiaridades da historicidade brasileira

no tocante à proliferação do ambiente corrupto e imoral na administração pública e da

ineficácia dos respectivos instrumentos de controle e fiscalização, ainda que previstos na

Constituição. “A decisão do juiz, que intervém praticamente na vida, pretende ser uma

aplicação justa e de nenhum modo arbitrária da lei; deve pautar-se numa interpretação justa, e

isso inclui necessariamente a mediação da história e da atualidade na compreensão”

(CARDOSO, 2016, p. 9).

Assim, questiona-se se a compreensão que o intérprete vem chegando em tais

situações, obtida no diálogo entre campos de horizontes distintos, está efetivamente atingindo

a finalidade da norma constitucional.

Conforme trabalhado no capítulo anterior, a realidade brasileira transparece que o

hermeneuta – aqui intérprete em sentido amplo, abrangendo todos envolvidos nos atos da

administração pública, inclusive os particulares – não tem logrado êxito. Em crítica, Lenio

Luiz Streck (1999, p. 200) afirma que:

Não se dão conta do devir histórico, da consciência exposta aos efeitos da história (Wirkungsgechichtliches Bewussein) e de sua situação hermenêutica, ou seja, não tem a compreensão prévia, a antecipação do sentido do que seja, por exemplo, a função social do Direito (e do Estado).

Nessa conjectura, a hermenêutica filosófica, portanto, assume papel fundamental para

a compreensão do Direito. Longe de se pretender a elaboração de um método infalível, capaz

de ser aplicado com neutralidade e que conduza o jurista a um sentido preexistente da norma,

a hermenêutica filosófica desenvolve estratégias discursivas úteis no campo da hermenêutica

jurídica. Volta-se os olhares para as consequências do giro linguístico que marcou a filosofia

do século XX. A linguagem, pré-compreensão, diálogo, tradição, historicidade e fusão de

horizontes são percebidos pelo mundo jurídico (COSTA, 2008, p. 350).

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

72

Prosseguir-se-á adentrando na seara do contexto histórico-linguístico brasileiro atual

para a reconstrução do significado do interesse público mormente em situações em que se está

em debate assuntos envolvendo o direito fundamental a uma administração proba.

2.4 A ressignificação do interesse público

Inicia-se aqui com uma das expressões que movem este trabalho: o interesse público.

Este é detentor de sentido filosófico amplo e de conteúdo universalizante, cujo cerne nuclear

está disponível no íntimo de cada um de nós, revelado na noção de coletividade.

Tomando licença ao filósofo Heidegger (2012, p. 55), o interesse público antes

mesmo de sua qualificação jurídica é preliminarmente um conceito fundamental que

determina o domínio-de-coisa em nível do prévio entendimento do ser, que vai orientar toda

investigação científica:

Conceitos fundamentais são as determinações em que o domínio-de-coisa que fundamenta todos os objetos temáticos de uma ciência acede a um prévio entendimento, o qual conduz toda a sua investigação positiva. Por isso, esses conceitos só recebem sua autêntica confirmação e “fundamentação” mediante uma correspondente prévia inspeção do domínio-de-coisa ele mesmo. Mas na medida em que cada um desses domínios é unicamente conquistado a partir de uma circunscrição efetuada no próprio ente, essa prévia pesquisa que cria conceitos fundamentais nada mais significa do que a interpretação desse ente quanto à constituição-fundamental de seu ser.

Esse entendimento vago e mediano, inerente a todos, requer uma busca pela

delimitação do que realmente o é juridicamente, sem dispensar o aspecto político, remontando

as lições teórico-políticas acerca da formação dos regimes constitucionais, como já explanado

anteriormente.

O constitucionalista Mário Lúcio Quintão Soares (2004, p.176) chama atenção para o

vínculo intrínseco existente entre interesse coletivo e Estado Democrático de Direito,

afirmando que “a democracia no Estado constitucional, fundada no princípio da

representação, implica premissa de que os órgãos do Estado não pretendem ser povo, mas

representa-lo, fazê-lo presente, atuar em lugar do povo, em seu nome e em seus interesses. ”

Portanto, o interesse público traduz-se na conjunção de valores do coletivo que

devem orientar a atuação do poder público e da sociedade civil no Estado Democrático de

Direito.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

73

O Professor Fernandes (2014, p. 286) ensina que “o Estado Democrático de Direito é

muito mais que um princípio, configurando-se em verdadeiro paradigma – isto é, pano de

fundo do silêncio – que compõe e dota sentido as práticas jurídicas contemporâneas.”

Sendo uma das orientações inerentes ao Estado Democrático100, manifesto logo no

preâmbulo e no caput primeiro artigo da Constituição Cidadã de 1988, a sua significação vem

sendo reconstruída historicamente diante do cenário atual de necessidade de respeito a coisa

pública, isto é, aos valores da coletividade, a qual, muitas vezes, é sacrificada em prol de uma

alegada preponderância de direitos ou garantias individuais.

Ao que parece, malgrado o regime ditatorial tenha sido encerrado com o advento da

Constituição de 1988, a sua sombra persiste, manifestando-se no temor do retorno das

restrições aos direitos e garantias individuais, gerando, consequentemente, um movimento em

sentido contrário, o qual, por sua vez, termina mitigando o interesse público em diversas

situações.

Esclareça-se novamente que não se propõe uma desarrazoada valorização do

coletivo, todavia apenas a constatação da necessidade de sua nova significação diante do

contexto histórico-linguístico de reclamos por respeito à coisa pública, em retaliação à relação

nefasta entre o poder público e a iniciativa privada em prol de interesses meramente

particulares, cujas origens remontam o período de colonial do país e se estende até os dias

atuais.

Como foi abordado anteriormente, o processo de formação do Brasil foi permeado

por um ambiente prolífero para o desenvolvimento da corrupção e atos correlatos, que se

mantiveram presentes em toda evolução histórica do país. A historicidade, nesse ponto, fica

bastante evidente para a compreensão da situação atual brasileira, pois, como asseverou

Gadamer (2015, p. 367-368): “não é a história que nos pertence, mas somos nós que

pertencemos a ela. Muito antes de nos compreendermos na reflexão sobre o passado, já nos

compreendemos naturalmente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos”.

Assim, diante de tudo que foi dito e analisado, pode-se afirmar que houve uma

mudança na pré-compreensão de determinados valores inerentes à coletividade, conforme foi

demonstrado nos tópicos anteriores quando se foi analisado os reclamos jurídico e político de

preservação à administração proba. Essa transformação deverá, ao longo do tempo, refletir na

projeção da realidade e vice-versa, em um movimento mútuo e circular – conhecido como

100 A outra orientação seria o respeito aos direitos fundamentais considerados individualmente.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

74

círculo hermenêutico –, bem delineado pelos dizeres filosóficos de Gadamer101 e Heidegger

(FERNANDES, 2014, p. 168).

Bem sintetizando a importância do círculo hermenêutico (MENDES; COELHO;

BRANCO (2000, p. 54) ensina a formação da compreensão nesse processo:

Esse ir e vir compreensivo, que atravessa séculos e gerações, vai progressivamente enriquecendo e ampliando os objetos com novas interpretações anteriores, que nem pelo fato de serem diferentes invalidam interpretações anteriores, num processo de superação e, ao mesmo tempo, de conservação e de absorção de significados.

A releitura do interesse público implicará inevitavelmente em uma intensa força

propulsora que se irradiará por todo ordenamento jurídico, não servindo de orientação

somente para o intérprete da norma jurídica, mas para toda atividade em que estiver envolvida

interesses diretos ou indiretos da administração pública.

Em uma realidade como a brasileira, é recorrente a carência de eficácia da norma

jurídica pelos mais diversos motivos. Entrementes, o “intérprete constitucional deve ter

compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis,

deverá prestigiar aquela que permita a vontade constitucional” (BARROSO, 2015, p. 341).

Decorridos três séculos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a

propagação frequente pela imprensa de novos escândalos de corrupção de servidores públicos

e agentes políticos, envolvidos em desvios de vultosos recursos financeiros, conduziram à

intensificação do movimento da sociedade civil e das próprias instituições públicas pela

promoção de medidas de combate efetivo à corrupção, constituindo um cenário histórico-

linguístico peculiar no Brasil.

É notório que o regime jurídico vigorante nas normas que dizem respeito à

administração proba, consagrados pela ordem constitucional, não se têm revelado

instrumentos idôneos para satisfazer essa nova necessidade, de tal modo que é imprescindível

uma releitura significativa do interesse público nas questões envolvendo a probidade

administrativa, conferindo força normativa suficiente para deflagrar toda sua eficácia no

ordenamento jurídico.

101 Diferentemente do círculo hermenêutico clássico de Schleiermarcher, cuja relação era da parte para o todo, a hermenêutica filosófica de Gadamer e Heidegger propunha entendimento diverso, em que a pré-compreensão se soma ao horizonte do texto de modo a formar uma nova compreensão. Essa nova compreensão tem caráter de provisoriedade, pois os significados vão se alterando na medida em que surgem novas informações (SOARES, 2013, p. 20-22). Por isso, ao invés de círculo seria mais adequado a denominação espiral hermenêutica (COSTA, 2008, p. 142). Ressalta-se que Gadamer adicionou ao círculo hermenêutico uma releitura linguística dos conceitos hermenêuticos propostos por Heidegger (COSTA, 2008, p. 138).

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

75

Esse assunto merece atenção especial, em se tratando de casos em que é discutida a

violação aos postulados da administração proba, visto que é frequente a adoção nos Tribunais

de interpretações que desprestigiam o interesse público em prol de garantias individuais dos

seus supostos violadores, servindo, na prática como instrumento de impunidade nos ilícitos de

colarinho branco e congêneres.

Mattos (2015, p. 17-18) expõe nitidamente o problema:

Acontece que, no Brasil, a defesa de direitos fundamentais no processo penal se desenvolveu de modo monocular e hiperbólico, tendo em conta que o belo discurso de salvaguarda das garantias individuais só se aplica aos réus de colarinho branco, deixando os acusados da prática de crimes patrimoniais, delitos violentos ou de tráfico de drogas abandonados à própria sorte (...) Nesse contexto, as garantias processuais são tão superestimadas que se esquece que o processo não é um fim em si mesmo, mormente quando milhares de ações criminais são fulminadas à espera do segundo reexame de mérito no Superior Tribunal de Justiça.

O magistrado Moro (2014, p. 1) realiza uma crítica construtiva à tendência

interpretativa do Poder Judiciário Brasileiro nos casos de corrupção, em contraposição aos

entendimentos normalmente firmados nos julgamentos de infrações comuns102, retratando que

é “imprescindível também mudança de percepção dos juízes quanto aos males da corrupção.

Se um terço do rigor contra os criminosos do tráfico de drogas fosse transferido para os

processos de corrupção, haveria grande diferença”.

Malgrado a crise de respeito à coisa pública que culminou em uma série de

acontecimentos negativos em nível nacional, é possível a percepção de efeitos benéficos,

quais sejam: a criação de um ambiente favorável a transformações sociais positivas. Pode-se

estar diante de uma oportunidade ímpar de evolução.

Quem muito bem retrata os possíveis progressos em questões conflituosas é o

Professor Lederach (2012, p. 31):

O conflito nasce da vida. Como ressaltei acima, ao invés de ver o conflito como uma ameaça, devemos entendê-lo como uma oportunidade para crescer e aumentar a compressão sobre nós mesmos, os outros e nossa estrutura social. Os conflitos nos relacionamentos de todos os níveis são o

102 Interpretações díspares pelos Tribunais com manifestações excessivamente garantistas nas situações de colarinho branco em contraposição a uma visão mais repressora nos delitos comuns. É inegável a insegurança jurídica nas infrações que desrespeitam o princípio a uma administração proba. “He reiterado hasta convertirlo em auténtico leitmotiv de estas consideraciones el carácter inequívocadamente axiológico de la seguridade jurídica. En sustento de esta tesis nuclear he intentando mostrarnque la seguridade jurídica no es um mero factum inmanente a cualquiersistema de Derecho, sino um valor del Derecho justo que adquierensu plena dimensión operativa en el Estado de Derrecho” (LUÑO, 1994, p. 140).

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

76

modo que a vida encontrou para nos ajudar a parar, avaliar e prestar atenção (...) O conflito também gera vida: através do conflito nós reagimos, inovamos e mudamos. O conflito pode ser entendido como o motor da mudança, como aquilo que mantém os relacionamentos e as estruturas sociais honestas, vivas e dinamicamente sensíveis às necessidades, aspirações e ao crescimento do ser humano.

Diante dessa nova realidade significativa, abre-se um maior caminho para a

irradiação dos seus postulados em toda administração pública, direta e indireta e de qualquer

dos Poderes constituídos, bem como nas relações com os particulares e nas destes entre si.

O Legislativo também deve ficar atento às mudanças de paradigmas nesse contexto

de ressignificação do interesse público, seja na sua atividade fiscalizadora do Executivo, seja

na melhor readequação da legislação vigente nesse novo modelo. A título de exemplo,

menciona-se a questão do julgamento das contas orçamentárias, da impunidade advinda do

foro por prerrogativa de função, dos recursos protelatórios, dos exíguos prazos prescricionais,

da prisão após condenação em segunda instância etc.

Essa nova concepção requer uma nova postura por todos, de modo a melhor garantir

a sua aplicabilidade efetiva, real no mundo concreto, como Bobbio (2004, p. 32) bem advertiu

das dificuldades de sua implementação:

descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil (…) Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações. Já que interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos homem como um sinal de progresso moral da humanidade, não será inoportuno repetir que esse crescimento moral não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenções, o inferno está cheio.

Por conseguinte, a própria compreensão do Direito não deverá se esquivar dessa

nova realidade, obviamente, compatibilizando com as demais normas jurídicas ou mediante o

recurso da ponderação quando o intérprete tiver que fazer escolhas de normas plausíveis para

o caso concreto. “Ponderar princípios opostos que colidem implica em reconhecer que a regra

da proporcionalidade em sentido estrito é dedutível do caráter principiológico das normas de

direito fundamental” (CARDOSO, 2013, p. 229).

Ainda no tocante à ponderação, o Professor Luís Roberto Barroso (2015, p. 373)

assevera que “consiste ela em uma técnica de decisão jurídica, aplicável a casos difíceis, em

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

77

relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente. A insuficiência se deve ao fato de

existirem normas de mesma hierarquia indicando soluções diferenciadas”.

Não se adentrará na temática da ponderação dos princípios constitucionais em

virtude de não ser o referencial filosófico adotado para ilustrar o pano de fundo desta

Dissertação. Contudo, é imprescindível registrar que a rivalidade existente entre os adeptos

dos postulados da argumentação jurídica, a exemplo de Robert Alexy e os defensores da

hermenêutica filosófica, dentre os quais Lenio Luiz Streck, já é questionada por alguns, que

vislumbram, ao invés de uma relação mutuamente exclusiva, uma complementariedade entre

ambas teorias103 (KAUT; MEDRADO, 2015, p. 23):

Nessa medida, vale o ímpeto de pensar a argumentação jurídica e a hermenêutica filosófica como ferramentas complementares, que, apesar de não serem capazes de dar, se tomadas isoladamente, uma solução abrangente e razoável para os casos difíceis, podem juntas oferecer melhores resultados. Em verdade, é possível que nem mesmo se usadas em conjunto, como propomos, essas teorias serão capazes de compreender a interpretação jurídica em toda a sua complexidade. Mas mesmo nesse caso, seria possível dizer que ao menos vislumbramos, como quer Alexy, a melhor solução possível.

Concluída a análise que implicou na constatação da necessidade de reconstrução do

significado do interesse público para fins de concretização do direito fundamental à

administração proba, diante do conjectura histórico-linguística brasileira, prosseguir-se-á na 103 Os autores Vanessa Nunes Kaut e Vitor Amaral Medrado (2015) explicam bem essa possível relação de complementariedade reforçando a importância de teorias argumentativas como do alemão Robert Alexy na busca pelos juristas da melhor decisão possível, principalmente para os casos difíceis, todavia, para a compreensão do Direito, antes mesmo de ser reduzido a uma interpretação jurídica, traduz o fenômeno da compreensão e, como tal, merece a reflexão sobre como as condições da interpretação se dá, abrindo caminho também para a hermenêutica filosófica. “É inegável a relevância das teorias da argumentação jurídica, sobretudo a de Alexy, para a interpretação e aplicação do direito na contemporaneidade (...) Não é possível compreender o direito sem entende-lo como uma criação humana, historicamente datado e, assim como todo caso jurídico, é imerso em uma cultura, cheia de pré-concepções e referenciais simbólicos específicos” (KAUT; MEDRADO, 2015, p. 23). Exemplificando a importância da hermenêutica filosófica para a argumentação jurídica, os autores citam um caso prático (KAUT; MEDRADO, 2015, p. 218): Este ano, no Texas (EUA), um jovem foi a julgamento porque agrediu o ex-namorado de sua namorada. Josten Bundy não poderia imaginar a sua sentença, proferida pelo juiz de direito Randall Rogers: ele deveria pedir a sua namorada em casamento em 30 dias ou seria condenado a ficar preso por 15 dias. Sem opção, os jovens se apressaram em casar. Obviamente, o caso é incomum, mas através dele se pode levantar a seguinte pergunta: o que diria Alexy a esse respeito? Sem dúvidas, Alexy afirmaria, com razão, que a decisão não é correta, pois não foi cumprido o dever de fundamentação racional. Entretanto, será que essa afirmação não empobrece a riqueza de elementos que compõem o caso? Será que a decisão não tem algo a ver, por exemplo, com aspectos mais complexos, como a inserção das partes e do juiz na cultura conservadora do Texas? E se tiver, será que não há uma filosofia mais atenta a forma como constituímos nossos juízos e preconceitos?” (TRAYNER, 2015).

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

78

temática principiológica inovadora da norma jurídica constitucional anticorrupção como

fundamento da forma de governo republicano.

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

79

3 O PRINCÍPIO ANTICORRUPÇÃO COMO FUNDAMENTO DA REPÚBLICA

3.1 O princípio anticorrupção como norma constitucional implícita imanente à forma de

governo republicano

Logo em seu início, antes mesmo de adentrar nas primeiras disposições normativas, a

Constituição de 1988 deixa evidente em seu preâmbulo que o Brasil é regido pela forma de

governo republicana. Em seguida, no caput do seu primeiro artigo, anuncia os fundamentos

explícitos que regem o país no regime Democrático de Direito, reinaugurado com a

redemocratização, onde estabelece que o Brasil é uma República formada pela união

indissolúvel das outras unidades federativas – Estados-membros, Distrito Federal e

Municípios.

Assunto complexo e detentor de diversos significados a depender do autor ou do

momento histórico (DALLARI, 1998, p. 80), a República assume papel imprescindível para a

compreensão do princípio anticorrupção e de suas funções no ordenamento político-jurídico

do país.

A concepção de República que se adota neste trabalho é a filiada por Mário Lúcio

Quintão Soares (2004, p. 339), segundo o qual, classifica-a como uma das formas de governo

existentes nos Estados soberanos. Forma de governo, por sua vez, é assunto relacionado à

“organização do poder político, tendo como objetivo a estrutura do poder existente em

determinado tipo de Estado, bem como as complexas relações entre os vários órgãos nas quais

se manifesta o exercício do poder estatal”.

República também é gênero que comporta espécies, cujo entendimento também varia

de acordo com o tempo e o cientista político-jurídico tomados como referência, sendo que as

concepções principais remetem a Aristóteles, Maquiavel e Montesquieu (BONAVIDES,

1993, p. 248). Há diversos outros nomes renomados que trabalham o assunto com maestria

(Platão, Bodin, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho etc.), todavia se aprofundar sobre

temas que envolvem a República, em si mesma, foge aos objetivos traçados para esta

Dissertação.

Desse modo, aqui requer sua compreensão traduzida em uma das formas pela qual o

poder se organiza e se exerce, permitindo o agrupamento substancial de indivíduos em um

Estado, com vinculação jurídica e social a um poder. Revela-se, portanto, como as formas de

vida do Estado ligadas pelo caráter coletivo do elemento humano (FRIEDE, 2013, p. 177).

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

80

Detalhando as formas de governo, Aristóteles adotou uma concepção tripartida,

classificando as espécies em três grupos distintos de acordo com o número de governantes,

cada grupo variando de conforme interesses preponderantes a serem perseguidos pelo governo

vigente (DALLARI, 1998, p. 81).

Assim, quando se buscar o bem-geral e os interesses públicos, as formas de governo

expostas por Aristóteles são recepcionadas como puras. Por outro lado, caso os interesses

particulares se sobreponham aos interesses públicos, tem-se as formas impuras ou deturpadas.

De conseguinte, ao elemento quantitativo, adicionou-se o teleológico em sua classificação

(FRIEDE, 2013, p. 177). A diferença fundamental entre a pura e pervertida forma de governo,

ou estado bom e corrompido, é a orientação psicológica daqueles que governam.

(TEACHOU, 2014, p. 5)104.

A classificação aristotélica revela que o primeiro grupo é composto pelo governo de

um só, consubstanciado na Monarquia (forma pura) ou na Tirania (forma impura, onde

predomina o interesse do tirano e o desprezo às leis). No segundo grupo, há o governo

realizado por poucos, podendo ser manifestado pela Aristocracia105 (forma pura) ou

Oligarquia (impura, onde prevalecem interesses particulares dos integrantes desse pequeno

grupo). Por último, o governo de muitos, podendo consistir na Democracia (forma pura) ou

Demagogia106 (forma impura, correspondente ao exercido pela multidão revoltada,

implantando regime de violência e opressão) (SOARES, 2004, p. 339).

Esse elemento finalístico diferenciador das formas de governo em puras e impuras

vai influenciar no arquétipo do princípio anticorrupção, como mais adiante será constatado.

Mais de mil anos após Aristóteles, o florentino Maquiavel, no século XVI,

remodelou a classificação aristotélica tripartida, ocasião em que deduziu que “todos os

Estados que exerceram ou exercem poder sobre os homens, foram ou são, repúblicas

(aristocracia ou democracia) ou principados” (MACHIAVELLI, 2009, p. 10). Por

conseguinte, as formas de governo foram reduzidas apenas à República (um poder plural,

104 Como cada capítulo do livro de Zephyr Teachout (2014) possui numeração independente, será sempre exposto a qual capítulo se refere a numeração toda vez em que a autora for mencionada. Na presente citação, a numeração de páginas se refere ao capítulo 2: changing the frame. 105 Conquanto a concepção aristotélica sobre a forma de governo de poucos, como a Aristocracia, possa conduzir ao leitor mais desatento à visão pejorativa, confundindo-a com a Oligarquia (forma deturpada da aristocracia), não se trata disso. Para Aristóteles a Aristocracia significa o governo dos melhores, dos mais capazes e qualificados para governar (BONAVIDES, 1993, p. 248-249) 106 Reis Friede (2013, p. 190) chama atenção para o cuidado com as expressões no estudo aristotélico, pois tinham uma semântica diferente da utilizada atualmente. “O que hoje denominados demagogia, Aristóteles chamava democracia, pois tinha diante dos olhos a profunda corrupção do governo popular no tempo em que escreveu; e o que denominados democracia, ele designava ‘politia’. A monarquia, denominou ‘realeza’ e a tirania, ‘despotia’”.

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

81

abrangendo a democracia e aristocracia) ou Monarquia (poder singular), cujos traços

característicos distintos fundamentais eram a hereditariedade e a vitaliciedade, presentes na

monarquia, e a eletividade e a temporariedade, típico da República (FRIEDE, 2013, p. 191-

192).

Portanto, vislumbra-se que a divisão binária de Maquiavel rejeitou as distinções

aristotélicas de formas puras ou impuras de governo. E fazia com certa razão, visto que os

governos “se sucedem em ciclos constantes: às formas puras naturalmente sucedem-se as

impuras. Assim, teríamos, pelo menos em tese, um verdadeiro ciclo permanente entre

monarquia-tirania-oligarquia-democracia-demagogia, e assim sucessivamente” (FRIEDE,

2013, p. 179).

Posteriormente, no século XVIII, o barão francês Charles-Louis de Second (2002, p.

23), mais conhecido como Montesquieu, retoma à divisão tripartida das formas de governo,

classificando-o em República (democrática e aristotélica), Monarquia e Despotismo:

Existem três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico. Para distinguir-lhes a natureza, é suficiente a ideia que deles têm os homens menos instruídos. Apresentarei três definições, ou antes, três fatos: ‘o governo republicano é aquele em que o povo, como um só corpo, ou somente uma parcela do povo, exerce o poder soberano; o governo monárquico é aquele em que um só governa, de acordo, entretanto, com leis fixas e estabelecidas; e, no governo despótico, um só indivíduo, sem obedecer às leis e regras, submete tudo a sua vontade e caprichos’.

Em cada uma das formas de governo, Montesquieu consegue identificar uma

natureza – aquilo com que ele seja o que é – e um princípio – aquilo que o faz atuar, que o

anima e o impulsiona ao exercício do poder. “A primeira constitui a sua estrutura particular; o

segundo constitui as paixões humanas que o fazem movimentar” (SECOND, 2002, p. 34).

Conforme esse critério, na República Democrática a natureza estaria no fato da

soberania estar nas mãos do povo, enquanto o princípio reside na virtude traduzida em amor à

pátria, igualdade e compreensão dos direitos e deveres. Já a República Aristocrática possui a

natureza da soberania pertencer a alguns e o princípio da moderação dos governantes107

(BONAVIDES, 1993, p. 251).

107 Para não adentrar em tema estranho à dissertação, menciona-se sucintamente que a Monarquia tem a natureza do governo de um só em obediência às leis e as regras, possuindo como princípio o sentimento de honra, amor às distinções e culto às prerrogativas. Já o Despotismo tem como princípio a ignorância ou transgressão à lei e como natureza o medo, traduzido em desconfiança, insegurança, incerteza e onde os governantes e governados se fazem à base do temor recíproco (BONAVIDES, 1993, p. 251).

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

82

O filósofo francês tem seu nome frequentemente associado ao princípio da separação

dos poderes, porém foi além. Compreender a maneira como refletiu sobre a natureza humana,

governo e corrupção suscitou e ainda suscita a necessidade de uma estrutura principiológica

constitucional adequada e eficaz para que os interesses particulares não se sobreponham ao

interesse público às expensas deste (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 5).

Seguindo esse ponto de vista, o barão propunha que os valores da virtude são

necessários para o bom governo, assim como boa estrutura é imprescindível para a virtude. A

corrupção e o amor ao país são opostos. Malgrado o princípio da separação dos poderes

determine a distribuições de funções, todos, em última análise, dependem de atitudes cívicas

dos cidadãos. A noção de virtude cívica não é reducionista, mas íntima. A virtude, segundo

Montesquieu, é “o amor das leis e do nosso país”. Tal amor requer uma preferência constante

do interesse público ao interesse privado. Esse amor é peculiar às democracias. Para preservar

o governo deve-se amá-lo. Tudo, portanto, depende de estabelecer esse amor em uma

República. A corrupção para Montesquieu estava na erosão deste amor (TEACHOUT, 2014,

cap. 2, p. 5).

Ainda que Montesquieu tenha delineado suas ideias em termos predominantemente

emocionais, românticos e imprecisos, não se pode olvidar dois aspectos cruciais para a

constituição do princípio anticorrupção: os valores da moralidade (traduzidos em sua virtude

cívica) e a estrutura (consistente em todo aparato necessário para a preservação da

administração legal e honesta) (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 5).

Se Montesquieu estabeleceu as diretrizes que serviram de base para as formas de

governo do mundo contemporâneo, o filósofo escocês Thomas Hobbes representou a sua

antítese. Hobbes rejeitou a ideia de que as pessoas deveriam ou poderiam ser virtuosas,

argumentando que não há diferença entre uma República ou Despotismo ou ainda entre a

Monarquia ou Tirania. Do mesmo modo, negou a existência das diferenciações aristotélicas

de governos puros ou impuros. Hobbes aduz que tais formas de governo são exatamente as

mesmas, porém vistas sob diferentes perspectivas. A palavra monarquia é usada por aqueles

que gostam de um líder particular, enquanto a tirania por aqueles que o odeiam

(TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 6)

Por mais esdrúxulo que possa parecer, o pensamento pregado por Hobbes não está

muito distante da realidade atual, notadamente a brasileira. Basta verificar que as acusações

populares depreciativas dirigidas aos corruptores e corruptos normalmente são direcionadas

aos envolvidos detentores de ideologias discrepantes dos seus acusadores. O indivíduo de

cunho ideológico tendente a esquerda vai direcionar suas acusações para os de pensamento

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

83

diverso, omitindo-se – propositada ou involuntariamente – os problemas relacionados a seus

correligionários e vice-versa108.

No processo de formação dos Estados Constitucionais, no final do século XVIII,

Montesquieu é lembrado como a principal autoridade filosófica, até porque sua obra Do

Espírito das Leis, foi escrita apenas trinta anos antes da Convenção Constitucional de

Filadélfia, ocorrida no ano de 1787, influenciando boa parte a estrutura política fundamental

do que veio a ser a primeira constituição republicana (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 5).

Alinhando-se às ideias de Montesquieu, o ex-presidente americano James Madison,

árduo defensor da República e um dos principais fundadores da Constituição dos Estados

Unidos, acreditava na virtude e em outros discursos em que parecia depositar sua fé na virtude

do povo (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 7).

Madison tinha duas crenças a respeito: 1) os homens não são sempre anjos, e,

portanto, as estruturas devem contribuir; e 2) a virtude é necessária, visto que as estruturas

não são suficientes por si só. A conjugação desses dois postulados madisonianos é a chave

para a compreensão da psicologia moral da maioria dos autores aqui explorados, posto que há

uma relação dinâmica entre a estrutura político-jurídica e a moralidade política (TEACHOUT,

2014, cap. 2, p. 7).

Os homens não são sempre virtuosos. Desse modo, as estruturas – leia-se: arcabouço

normativo constitucional e infraconstitucional – devem ser construídas a fim desencorajar

comportamentos particulares egoísticos em sacrifício de interesses coletivos na vida pública.

Por sua vez, a orientação pública que floresce nessas estruturas contribui na sua própria

manutenção e, sucessivamente, ajuda a manter a virtude. De conseguinte, há um movimento

dinâmico e de reciprocidade entre a moralidade política e a estrutura político-jurídica

(TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 7-8).

A difícil tarefa de estruturar a sociedade política é justamente de alinhar o interesse

próprio com o interesse público, não porque as pessoas somente se interessem por si mesmas,

mas porque as pessoas frequentemente se interessam por si mesmas e os incentivos estruturais

podem reduzir a quebra da relação moralidade-estrutura. A corrupção não pode ser feita para

desaparecer, mas seu poder pode ser subjugado com a combinação certa de cultura e regras

políticas (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 8).

108 Esse paradoxo pode acontecer pelo fato do indivíduo efetuar um discurso de convencimento, típico do agir estratégico delineado por Habermas, onde há o planejamento para o convencimento, quando deveria prezar pelo entendimento através do consenso (CARDOSO, 2010, p. 208). Como também pode ocorrer em razão da sua compreensão, aqui no sentido da hermenêutica filosófica, que diz respeito a sua forma de compreender o mundo (HEIDEGGER, 2012, p. 41).

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

84

Atualmente, revela-se preferência pela divisão binária– em República e Monarquia –,

conforme os critérios de acesso ao poder e do seu grau de concentração. Em contraposição à

Monarquia vitalícia e hereditária, a República se apresenta com o acesso eletivo e temporário

ao poder, podendo concentrar (sistema Presidencialista) ou não (sistema Parlamentarista) a

Chefia de Estado com a de Governo (FRIEDE, 2013, p. 191-192).

Nesse raciocínio, o modelo Republicano é, indubitavelmente, o que mais se

aproxima do regime democrático. “A república é a forma de governo típica da coletividade,

em que o poder e o exercício da soberania são atribuídos, não mais a uma pessoa física, mas

ao povo” (SOARES, 2004, p. 350).

Mário Lúcio Quintão Soares (2004, p. 351) explora ainda outra característica

marcante na República, qual seja: a existência de “uma estrutura político organizatória, que

assegure as liberdades cívicas e políticas, um esquema organizatório de controle do poder”, ou

seja, nessa forma de governo é preciso uma estrutura de Estado que assegure minimamente

aos cidadãos diversos direitos fundamentais, dentre os quais direitos políticos, direitos

individuais etc.

Lenio Luiz Streck e José L. Bolzan de Morais, ao tratarem sobre República,

relembram que “surgiu como uma aspiração democrática de governo, através de

reivindicações populares. Buscava-se, além da participação popular, a limitação do poder”

(STRECK; MORAIS, 2014, p. 181).

A própria origem da palavra República – do latim res publica, cujo significado diz

respeito à coisa pública – conduz inexoravelmente essa forma de governo à noção de

coletividade (SOARES, 2004, p. 339). Segundo José Afonso da Silva (2009, p. 102), “é,

especialmente, designativo de uma coletividade política com características de res publica, no

seu sentido originário da coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo”. Prossegue o

autor afirmando que o princípio republicano é de ordem fundamental na matriz constitucional

(SILVA, 2009, p. 103).

Acerca da responsabilidade no trato com a coisa pública, Canotilho (1998, p. 221)

assevera sobre o princípio republicano vincula a função pública e os cargos públicos à

persecução do bem comum e do interesse público, os quais são discrepantes dos assuntos ou

negócios privados dos agentes públicos.

O cidadão, como membro da República, tende à corrupção quando usa seus papéis

públicos para ganho privado, ao invés de satisfazer o interesse público, razão pela qual o

princípio anticorrupção possui uma abstração e abrangência maior do que o direito do cidadão

a uma administração proba, que fica mais limitada às questões da administração pública.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

85

O indivíduo ocupa na condição de cidadão várias funções públicas: o voto, o júri,

falar em público sobre assuntos de interesse geral, peticionar aos órgãos públicos, candidatar-

se a cargo eletivo etc. Os cidadãos são a base do tecido do país, assim como são responsáveis

pela integridade do seu governo. Todos são incumbidos de assegurar que os recursos públicos

atendam seus fins legítimos. O governo republicano, típico de um regime democrático, foi

fundado sobre a autoridade do povo, o próprio povo deve ter integridade e ser publicamente

ocupado para que a nação prosperar (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 11).

Observa-se, portanto, que o princípio republicano está intimamente relacionado à

relação saudável entre os interesses público e privado. A quebra da harmonia nessa conexão

pode conduzir o Estado para o autoritarismo, de um lado ou para a corrupção, do outro.

Ambos excessos são altamente lesivos ao Estado Democrático de Direito.

Quando o pêndulo atinge os limites de um dos lados sob a alegação de satisfazer o

interesse público, tem-se o estado autoritário, que é amplamente debatido e repudiado pelo

mundo político-jurídico. Contudo, quando o mesmo pêndulo atinge o lado oposto, o do

excesso dos interesses privados, o debate ainda transparece tímido. Timidez até justificável,

no caso particular do Brasil, cuja sombra do regime de exceção ainda atormenta a mente dos

mais incautos obscurecendo a visão para problemas notadamente graves relacionados à

corrupção.

“A corrupção enfraquece a República, pois vilipendia o Estado Democrático de

Direito e as instituições republicanas” (CARNEIRO JÚNIOR, 2015, p. 24). Nela ocorre a

substituição exacerbada e egoística de interesses particulares em sacrifício de interesses

públicos. Logo, confronta frontalmente o princípio republicano desde a etimologia da palavra

– coisa pública, cuja semântica expressa a noção de coletividade – até a sua construção

realizada decorrer da história pelos mais ilustres pensadores, a exemplo das acepções de

Aristóteles, Maquiavel e Montesquieu expostas neste trabalho.

Como ensina Luís Roberto Barroso (2015, p. 361-362), o princípio republicano – ao

lado de princípios como da separação dos poderes e da dignidade da pessoa humana –

expressa as decisões políticas mais importantes no âmbito do Estado, assim como seus valores

mais elevados. O Professor prossegue constatando que a jurisprudência extrai do princípio

republicano a responsabilização política, penal, administrativa e civil dos governantes, sendo

também fundamento para a restrição de tratamentos especiais desarrazoados conferidos a

agentes públicos.

A preocupação com a corrupção é uma luta constante que merece a atenção que lhe é

devida, visto que, além de violar o princípio republicano, torna-se um obstáculo à

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

86

concretização do direito fundamental do cidadão à administração proba e, consequentemente,

prejudica o único itinerário viável para implementação do princípio da dignidade da pessoa

humana na seara da administração pública.

Nesse diapasão, nota-se que Zephyr Teachout (2104, cap. 16, p. 1-2) conclama por

uma atenção especial para a corrupção na esperança de que os Poderes do Estado e os

cidadãos reconheçam que o princípio anticorrupção é um princípio fundamental para a ordem

democrática (TEACHOUT, 2014, cap. 16, p. 1-2). É princípio fundamental e autônomo.

A concretização do princípio anticorrupção dependerá da compreensão sobre

conceitos como interesse público e interesse privado, excesso e ganância. A corrupção

envolve a noção de “abuso do poder público para benefício privado”, “os atos pelos quais o

ganho privado é feito a expensas públicas” e quando o interesse privado substitui

excessivamente o interesse público ou grupal no exercício do poder público. Portanto, seus

efeitos surgem quando há uma preponderância exacerbada de um interesse privado no

exercício do poder público, independentemente da corrupção ser convencional (quid pro quo)

ou não convencional. (TEACHOUT, 2014, cap. 16, p. 1-2).

Nesse enfoque, observa-se que a concretização do princípio anticorrupção depende

efetivamente da aspiração por uma sociedade em que os agentes públicos se preocupam

diariamente com o bem-estar coletivo, evitando a prevalência exacerbada de interesses

particulares às expensas do interesse público. Esclareça-se que não se pretende traçar um ideal

impossivelmente alto de virtude pública, mas pensar no princípio anticorrupção como um

suporte para que toda atuação pública proteja os cidadãos e agentes públicos das tentações

recorrentes no cotidiano (TEACHOUT, 2014, cap. 16, p. 1-2).

Deslocando-se para a realidade brasileira, em específico, a Constituição de 1988

elege expressamente, como já foi exposto outrora, a administração legal e honesta ao status de

direito fundamental do cidadão. Acrescentando-se ainda o forte teor democrático que norteia

o princípio republicano.

Nessa conjectura, Carneiro Júnior (2015, p. 39) reconhece:

Constituição possui um propósito anticorrupção cujos efeitos se propagam a todos setores da sociedade, especialmente em relação aos Poderes, forçosamente faz reconhecer a existência de um verdadeiro princípio anticorrupção, no mesmo patamar de outros princípios estruturantes e conformadores, como o da tripartição das funções do poder ou o Federalismo.

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

87

O autor prossegue constatando que a estrutura constitucional da República Brasileira

estabelece princípios, alguns não necessariamente textuais, denominados como princípios

implícitos109 (CARNEIRO JÚNIOR, 2015, p. 39).

Partindo dessa premissa e observando que o arquétipo da Constituição foi erguido

em um regime democrático, sob forma republicana e em consagração da administração proba

como direito fundamental – este também ratificado em diversos tradados e convenções

internacionais – propõe-se aqui uma reflexão acerca do princípio anticorrupção, autônomo e

implícito no texto constitucional, como uma necessidade premente diante do contexto

histórico-linguístico brasileiro, fundamentado e dando sentido à República e centralizando a

luta contra corrupção no centro de todo ordenamento jurídico.

Contudo, esclareça-se que relacionar o princípio anticorrupção como fundamento do

princípio republicano, reforçado ainda pela realidade histórico-linguística brasileira, não uma

carta branca para a má-gestão e prevalência de interesses estritamente pessoais no governo

Monárquico. Não se trata de uma operação aritmética e nem de um mero jogo de silogismo.

Exemplos como o Reino Unido demonstram que é possível sim a administração proba na

Monarquia. Entrementes, dadas as características peculiares da República, explorados neste

trabalho, pode-se afirmar que o princípio anticorrupção é algo imanente e indissociável a esta

forma de governo, sob pena de neutralizar a essência nuclear do princípio republicano.

Finalizando, verifica-se que se falou muito em corrupção, mas sem chamar atenção

para abrangência do seu conteúdo. No tópico seguinte, discutir-se-á a amplitude da semântica

necessária para consagração do princípio constitucional implícito da anticorrupção, ou

melhor, a verificação da incapacidade do modelo normativo que contemple apenas a

corrupção convencional.

3.2 A corrupção quid pro quo como modelo insuficiente para concretização do princípio

anticorrupção

A abordagem sobre a importância do significado que envolve a expressão corrupção

para concretização do princípio anticorrupção é muito bem explorada pela professora e

ativista norte americana Zephyr Teachout110, em sua obra Corruption in America (2014), onde

109 Em relação à existência dos princípios constitucionais implícitos, Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 445) e Luís Roberto Barroso (2001, p. 158) admitem na ordem jurídica constitucional vigente. Tratam do assunto quando analisam o princípio da vedação do retrocesso. 110 Zephyr Teachout é Professora associada titular de direito na Fordham Law School. Era anteriormente Professora visitante de Direito na Duke University e Professora na Universidade of Vermont. Atuou como

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

88

traça uma análise do referido princípio na história do constitucionalismo dos Estados Unidos,

desde a época dos fundadores até os dias atuais.

Dada a especificidade e maestria com que a autora trabalhou o tema, sua obra vai ser

a base para o exame do estudo nesta oportunidade. Acrescenta-se que a doutrina sobre os

efeitos da amplitude do termo corrupção para o princípio constitucional da anticorrupção

ainda é rara e nova, sendo explorada de forma inovadora pela Professora.

Explicita-se, desde logo, que, embora explore o princípio à luz da história do

constitucionalismo norte americano, perceber-se-á que suas bases servem para toda forma

republicana de governo, especialmente a adotada pelo Brasil.

Teachout (2014, cap. 1, p. 1) inicia sua abordagem falando sobre a compreensão do

que diz respeito ao gesto de presentear. Não obstante possa transparecer algo banal e de

menor relevância, a Professora suscita um tema bastante complexo e intricado, envolvendo

questões morais, políticas e jurídicas, que está relacionado à ineficácia das normas jurídicas

de preservação da administração proba, conforme adiante se demonstrará.

A autora assevera que o presente pode ser um brinde. Da mesma forma, um suborno

pode ser um presente. Se um presente é considerado corrupto ou simplesmente generoso

depende inteiramente da nossa estrutura cultural ou política (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1) 111.

Os presentes são muitas vezes parte do que é melhor na sociedade: eles são uma

forma de mostrar as outras pessoas que elas são vistas e valorizadas, talvez até amadas e uma

forma de proporcionar recompensas de uma forma não-transacional. Eles levam à amizade e

ao calor de uma maneira que nenhum negócio explícito pode, mas o mesmo gesto de

presentear, pode desempenhar um papel potencialmente perigoso tanto na prática judicial e

democrática. Eles podem criar obrigações para com as partes que moldam o julgamento e os

resultados dos agentes públicos. Parte do projeto de um sistema político é separar os gestos

positivos dos negativos, isto é, definir quais comportamentos devem ser categorizados como

corruptos (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2).

Esse duplo aspecto do gesto presentear mencionado por Zephy Teachout (2014,

introdução, p. 1) vem inicialmente à baila quando o então embaixador americano Benjamin Diretora de Organização da Internet para a campanha presidencial Howard Dean de 2004. Em 2009, ela ajudou a fundar a Liga Antitruste. Foi a primeira Diretora nacional da Sunlight Foundation, que promove a transparência e a prestação de contas no governo. Ela se ofereceu para Occupy Wall Street, onde encorajou o movimento a se concentrar na importância do poder descentralizado, citando as ideias de James Madison.

111 A hermenêutica filosófica, em especial, a gadameriana, é fundamental para a compreensão de que seja corrupção, pois para sua constituição há aspectos a serem considerados como a tradição, historicidade, diálogo e fusão de horizontes. Acrescenta-se, ainda, que se operara dentro e através do mundo da linguagem.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

89

Franklin deixa Paris, no ano 1785, após vários anos representando os interesses americanos na

França. Em sua despedida, o rei absolutista francês Luís XVI lhe presenteou com um

autorretrato cercado por quatrocentos e oito diamantes, colocados em duas fileiras em volta da

imagem do rei, guardado em um estojo dourado do tipo caixa de rapé. A caixa de rapé e o

retrato valiam até cinco vezes o valor de outros presentes dados a diplomatas e eram

superiores a todo patrimônio que o embaixador havia juntado em sua vida.

Na Europa, os presentes eram socialmente exigidos na partida de um diplomata. Um

presente valioso representava o grande favor de um regente e um trabalho bem realizado, mas

nos Estados Unidos da época, significava perigo. Um presente tão luxuoso era percebido

como tendo o potencial de corromper homens como Franklin (TEACHOUT, 2014,

introdução, p. 2).

Em outras palavras, o presente tinha significação positiva de conexão e graciosidade

entre o estado anfitrião e o representado pelo embaixador. No entanto, nos Estados Unidos

possuía significação negativa de dependência. A caixa de rapé representava a amizade ou a

corrupção, o respeito ou o suborno do velho mundo, consoante a perspectiva tomada. Para os

americanos era um símbolo de sedução, dependência, luxo e uma confusão europeia sobre a

relação apropriada entre política, poder, intimidade e amizade (TEACHOUT, 2014,

introdução, p. 2).

A origem da carga negativa da perspectiva americana tem origem na fase colonial e

também se fez presente nos primeiros séculos após a formação do Estado. Explicita-se que,

durante e após a guerra pela independência norte americana, os fundadores foram motivados

pelo medo de serem corrompidos por potências estrangeiras e de adotar hábitos corruptos do

Velho Mundo (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2).

As duas potências nacionais que dominavam as colônias, França e Grã-Bretanha,

representavam dois modelos diferentes de corrupção. A Grã-Bretanha foi vista como um ideal

fracassado. Era uma nação corrompida, um lugar onde a premissa de governo era basicamente

uma virtude sólida, mas a virtude cívica – a do público e dos funcionários públicos – estava se

degenerando. Por outro lado, a França era vista como mais essencialmente corrupta, uma

nação em que não havia verdadeira política, mas sim trocas de luxo pelo poder. Uma nação

povoada por sujeitos fracos e cortesãos lisonjeiros. A Grã-Bretanha foi a maior tragédia,

porque manteve a promessa de integridade, enquanto a França era simplesmente uma espécie

da pior virtude cívica (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2).

Sobre a França, John Adams (apud TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2) disse: "há

tudo aqui também que pode seduzir, trair, enganar, corromper e debater". Thomas Jefferson

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

90

(apud TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2) – que tinha um carinho por Paris – escreveu em

1801, ano em que assumiu a Presidência: “eles têm tantos outros adeus-interesses de maior

peso, que alguém ou outro será sempre comprado fora. Enredar-se com eles seria um mal

muito maior do que uma aquiescência temporária nos falsos princípios que prevaleceram”.

Este ódio da cultura política europeia e o medo do emaranhamento levaram a um

problema. Os novos americanos queriam fazer parte da comunidade internacional, respeitar as

leis e os costumes das nações por uma questão de princípio e serem respeitados como uma

nova nação autônoma. No entanto, também queriam rejeitar os costumes europeus corruptos.

Quando se tratava de assuntos internos, este não era um conflito importante, mas a mesma

tranquilidade não ocorria quando se tratava de assuntos relacionados à diplomacia

(TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2).

Um dos costumes da comunidade internacional da época era a doação de presentes

luxuosos aos embaixadores. Esse gesto estava inserido na cultura das relações internacionais.

Os presentes eram tipicamente dados no final de passeios diplomáticos. Eles eram caros, via

de regra, configurando, na prática, um complemento aos salários. Em alguns casos, o valor

dos presentes constituía uma parte substancial da renda recebida pelos diplomatas. O valor de

um presente poderia refletir a estima em que um diplomata foi realizada (TEACHOUT, 2014,

cap. 1, p. 2).

Os americanos começaram sua experiência, logo após a Independência,

comprometidos em expandir o escopo das ações que foram chamadas de corruptas para

abranger atividades tratadas como não corruptas nas culturas britânica e francesa.

Decepcionados com a Grã-Bretanha e a Europa, os americanos sentiram a necessidade de

constituir uma sociedade política com virtudes cívicas e um profundo compromisso com a

capacidade representativa. Não queriam incidir nos mesmos erros dos europeus

(TEACHOUT, 2014, introdução, p. 2).

Desse modo, criaram um arcabouço jurídico normativo para repressão à corrupção,

onde alguns comportamentos normais na Europa eram concebidos como comportamentos

corruptos na América112. Os americanos não só criaram um novo país, mas constituíram um

sistema político de prevenção a certas práticas danosas (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 2).

112 Essa prática era odiosa para os americanos porque simbolizava e encarnava parte de uma cultura particular que eles rejeitavam. As joias significam luxo, um privilégio do velho mundo que não seria facilmente adquirido para os mais ricos americanos. Nas mentes dos fundadores, o luxo representava uma espécie de corrosão interna – mesmo nos casos em que não havia dependência externa, um homem podia ser tentado a procurar coisas por si mesmo, em vez de buscar coisas para um país. Os artigos da Confederação incluíam a seguinte disposição proibindo presentes em qualquer hipótese: "nem qualquer pessoa que detenha qualquer cargo de lucro ou de

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

91

Benjamin Franklin e a administração pública da época acreditavam que se a

moralidade daqueles no poder não for estimulada e preservada, não será possível construir um

governo democrático representativo. Quando trataram da temática que envolve a corrupção,

os fundadores focaram na orientação moral dos cidadãos e dos representantes, como os

elementos fundamentais do Estado Republicano. Outras tradições políticas se concentram nos

problemas mais materiais de estabilidade, anarquia, desigualdade ou violência. O americano

deu preponderância às virtudes do amor para o público e os perigos do egoísmo desenfreado.

Este compromisso com uma visão ampla da corrupção permaneceu praticamente o mesmo

nos tribunais para durante os primeiros duzentos anos dos Estados Unidos (TEACHOUT,

2014, introdução, p. 2).

Em contraposição à concepção dos fundadores, diga-se que também há uma visão

restritiva do seu significado, onde a corrupção é reduzida às modernas leis americanas de

suborno e extorsão criminal, contemplando situações bem específicas e explícitas, a exemplo

de acordos espúrios entre agentes públicos e empreiteiros ou até mesmo hipóteses em que

cidadãos comuns aceitam dinheiro para mudar seus votos (TEACHOUT, 2014, introdução, p.

3). Nessa visão restrita, a corrupção é concebida como convencional (YINGLING, 2013, p.

10).

No entanto, a corrupção desempenha um papel social e político maior, mais amplo.

Retomando à situação fática inicial, vislumbra-se que o incidente do quadro com diamantes e

da caixa de rapé demonstrou que a tentação e influência também podem funcionar

indiretamente. Desse modo, a corrupção não se restringe a situações convencionais – quid pro

quo, como às vezes é chamada (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 3).

A expressão quid pro quo tem origem latina, indicando "isso para isso". Seu uso

histórico normalmente está no âmbito dos contratos, onde se refere à ideia de um intercâmbio

relativamente igual entre as partes. Na ausência de relativa igualdade – quid pro quo – um

tribunal poderia invalidar o negócio jurídico (TEACHOUT, 2014, cap. 13, p. 7).

Foi casualmente e coloquialmente usado em relação à corrupção desde o século XIX,

pelo menos, onde o quid pro quo se relacionava aos valores recebidos por eleitores em troca

confiança sob os Estados Unidos, ou qualquer um deles, aceitar qualquer presente, emolumento, cargo ou título de qualquer espécie." Posteriormente, na Convenção Constitucional de Filadélfia, ocorrida em 1787, muitas partes dos artigos da Confederação foram mudadas, mas os redatores mantiveram a parte que se tornaria o artigo I, seção 9 da Constituição. É uma das proibições mais fortemente formuladas na Constituição: "Ninguém que detenha qualquer cargo de lucro ou confiança sob os Estados Unidos, sem o consentimento do Congresso, aceitará qualquer presente, emolumento, cargo ou Título, de qualquer espécie, de qualquer rei, príncipe ou estado estrangeiro". No entanto, a proibição de presentes suaviza a proibição a norma da Confederação, na medida em que permitia presentes e emolumentos desde que fossem aprovados pelo Congresso (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 4-6). Constituição Americana (ESTADOS UNIDOS, [200-?]),

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

92

de votos ou por agentes públicos em casos explícitos de subornados. Nessas situações, quid

pro quo representava um tipo de troca ilícita explícita e específica (TEACHOUT, 2014,

introdução, p. 7).

O quid pro quo traduz a solicitação ou oferta clara de algo específico em troca de

alguma ação governamental específica. O uso de quid pro quo como um termo legal limitador

da corrupção não apareceu na história dos Estados Unidos até os anos 1970, tendo em vista

que, desde os fundadores, no século XVIII, a concepção sobre o que entendiam como

corrupção ia além da corrupção quid por quo, estando relacionada à moralidade e virtude

cívica, de modo que comportamentos nocivos eram desestimulados por normas estruturantes

ou profiláticas (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 7).

Nota-se que a normatização do recém estado americano refletia a preferência dos

fundadores por um certo tipo de norma anticorrupção. Essas normas – estruturais ou

profiláticas – abrangem atividades aparentemente inocentes, em contraste as normais penais

que exigem prova sobre o dolo para condenação (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 3).

Assim, os fundadores trabalhavam com incentivos antes do fato, ao invés de tentar

uma condenação após a consumação do ilícito. A legislação então vigente foi construída para

o combate à corrupção através de normas estruturais. A título de exemplo, observa-se a

exigência constitucional americana de residência eleitoral para concorrerem a vagas do

parlamento. Longe da perfeição, trata-se de norma valiosa, pois protege a democracia de

aventureiros (TEACHOUT, 2014, Introdução, p. 3).

Ao invés de exigir que um julgamento para descobrir se Benjamin Franklin possuía

comunicações secretas com a França ou se houve de fato algum acordo explícito sussurrado, a

única exigência da norma era que nenhum presente seja dado sem a aprovação do Congresso

(TEACHOUT, 2014, Introdução, p. 3).

A nomenclatura corrupção tem uma longa tradição de desempenhar um papel

importante na transformação política da nação. As acusações de corrupção e suas variantes

foram uma força essencial na criação da Constituição Americana e parte de quase todos os

debates sobre a estrutura governamental (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 3).

Nos primeiros cem anos da República Americana, o problema da corrupção levou a

decisões-chave sobre como estruturar o governo e os negócios e como restringir os

legisladores interessados. As acusações de corrupção em todo o sistema possibilitaram a

criação do estatuto antitruste de 1880 (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 3).

O conceito de corrupção também tem sido transformador. As disputas jurídicas em

torno da amplitude do conceito corrupção têm sido frequentemente tão vexatórias que

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

93

obrigaram os tribunais a serem inventivos em outras áreas, dada a ingenuidade judicial. Um

caso de corrupção sobre especulação de terras na Geórgia foi o primeiro caso em que a

Suprema Corte invalidou uma lei estadual em bases constitucionais113 (TEACHOUT, 2014,

cap. 4, p. 3).

Atualmente, a amplitude da noção sobre corrupção está agora no centro da disputa

legal mais importante na democracia norte americana, que ameaça desvendar o que os

fundadores construíram. Esta disputa tem suas raízes no caso Buckley v. Valeo, do ano de

1976, onde a Corte derrubou a legislação que limitava gastos em campanhas políticas.

Embora o Tribunal tenha reconhecido que havia uma razão legítima para a pretensão do

113 O caso é conhecido nos Estados Unidos pela expressão Yazoo. Trata-se de um grande escândalo de suborno americano onde os especuladores pagaram aos legisladores para que vendessem terras do Estado da Geórgia por muito menos do que valia. A especulação fundiária floresceu no início da América. Os Estados mal conheciam suas próprias fronteiras, de modo que o público nem sequer notou que a terra foi vendida ou por quanto. Os especuladores bem-sucedidos estavam bem conectados e usavam influência pessoal para persuadir seus amigos políticos de que a venda de terras era boa para todas as partes: o Estado ganharia renda, os especuladores obteriam terras e o público não iria perdê-la. Alguns investidores compraram terras do Estado com por valores ínfimos, esperando por grandes lucros com recursos naturais. A Geórgia estava particularmente propícia para esse tipo de especulação, pois não tinha controle sobre suas áreas. Ademais, membros de várias tribos nativas americanas viviam nessas regiões – resistentes à colonização – enquanto outras se encontravam desertas. O governador da Geórgia tinha o poder de dar pequenas extensões de terra para as pessoas que a cultivaram por pelo menos doze meses em um sistema destinado a incentivar a apropriação familiar. Na prática, nem a regra da pequena parcela nem a regra da lavoura foram seguidas de perto. Em vez disso, milhões de hectares foram distribuídos em áreas de até 50 mil acres para pessoas de todo o país que não tinham intenção de trabalhar o solo. Quando as negociações vazaram, o público reagiu com raiva e o governo da Geórgia rapidamente modificou o contrato para apaziguá-los. Entrementes, alguns anos depois, novas empresas foram criadas com o mesmo objetivo. A Virginia Yazoo Company, South Carolina Yazoo Company e Tennessee Company juntaram-se à Combined Society. Desta vez, estavam mais preparados, vez que seus associados asseguraram que os legisladores da Geórgia fossem investidos nas associações comerciais para que um projeto de lei fosse aprovado permitindo as negociações. Os registros das empresas mostraram que "todos os membros da legislatura – com uma única exceção – que votaram a favor da lei mencionada eram acionistas nas compras". Para se ter ideia da especulação com o respaldo do legislativo, alguns acres foram vendidos por menos de um centavo. Foi chamado por um comentarista do "maior negócio imobiliário da história". Diante dos fatos, uma série de protestos romperam até que, na eleição seguinte, os eleitores não elegeram os legisladores que votaram pelo acordo. A nova Casa aprovou uma lei revogando a lei autorizadora. No entanto, as empresas Yazoo, desafiando a Geórgia, continuaram a vender créditos para a terra em todo o país. De acordo com os vendedores e compradores, um acordo é um acordo, mesmo que seja ruim, além disso, a terra já não era propriedade do Estado da Geórgia. Através dessas vendas de terras, a questão local rapidamente se tornou nacional. O conflito se estendeu até a Suprema Corte no caso Fletcher v. Peck. Robert Fletcher comprou uma terra de Yazoo de John Peck e então o processou por quebra das garantias de bom título, tendo em vista a nova lei que anulou as vendas até então realizadas. Na decisão sobre o caso Fletcher v. Peck, o magistrado Marshall concluiu que seria muito difícil encontrar uma violação de processo baseada em "os motivos impuros que influenciaram certos membros da legislatura que aprovaram a lei", ou seja, seria difícil descobrir o que constitui a corrupção e difícil criar uma regra que permitisse o controle jurisdicional. O juiz invocou normas constitucionais sobre contratos, voltando-se para a política pública de garantir que os títulos são seguros e a importância de manter aberta "a relação entre homem e homem". Era de extrema importância proteger terceiros inocentes. Marshall argumentou que a Geórgia estava pedindo legislaturas para obter tratamento especial em direito dos contratos. Tratar a legislatura como uma categoria especial para os propósitos desse tipo de transporte levaria o legislador a "despojar qualquer outro indivíduo de suas terras se a vontade do legislador for fazê-lo". De certa forma, a ação mais radical foi a caracterização de Marshall da concessão de terras como um contrato. Isso permitiu que Marshall colocasse o caso no contexto da cláusula de contratos da Constituição dos Estados Unidos, em seu artigo I, seção 10. De acordo com Marshall, esta cláusula foi concebida como um limite para a democracia emocional e democracia excessiva (TEACHOUT, 2014, cap. 4, p. 1-10).

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

94

público em combater à corrupção, decidiu no sentido de que as disposições que limitavam os

gastos não têm relação com a corrupção. Consequentemente, não definiu a corrupção nem o

restringiu completamente às transações específicas e explícitas (corrupção quid pro quo),

como aconteceu, posteriormente, todavia criou uma estrutura jurisprudencial prejudicial aos

interesses cívicos e moralidade, afetando as normas estruturais e profiláticas de combate à

corrupção, sob o fundamento do direito de liberdade de expressão consagrado na Primeira

Emenda da Constituição Americana (TEACHOUT, 2014, cap. 4, p. 3).

A mudança iniciada com a leitura do caso Buckley, em 2006, possibilitou que a

entidade conservadora americana Citizens United ingressasse judicialmente defendendo a

ausência de limites para doações eleitorais, oportunidade em que a Suprema Corte proferiu

uma decisão que estabeleceu uma mudança de paradigma sobre a corrupção na história

política americana. Foi permitido que indivíduos e corporações tivessem o direito de gastar

tanto dinheiro como quisessem, independentemente de pretenderem influenciar nas eleições e

em questões políticas (TEACHOUT, 2014, cap. 4, p. 4).

O cerne do decidido no caso Citizens United foi uma afirmação sobre a natureza da

corrupção e seu papel histórico no direito americano. Limitou a corrupção tão somente às

situações quid pro quo. Obviamente, a utilização da expressão quid pro quo não foi no

sentido literal de contrato entre particulares, como tradicionalmente significava, mas uma

compreensão de que para a configuração do ilícito era imprescindível uma troca explícita de

algo de valor para um ato legislativo ou executivo específico e identificável. Segundo a Corte,

"os gastos independentes, incluindo aqueles feitos por corporações, não dão origem à

corrupção ou à aparência de corrupção", bem como que "o fato de que os doadores possam ter

influência sobre ou acesso a parlamentares eleitos não conduz que esses agentes públicos são

corruptos. Em 2014, a decisão do juiz Roberts em McCutcheon v. FEC consolidou este

entendimento, afirmando que a única corrupção constitucionalmente cognoscível é a quid pro

quo (TEACHOUT, 2014, cap. 4, p. 5).

Esta nova ordem legal trata a corrupção de forma ligeira e limitada, restringindo o

alcance do que é considerado corrupção a negócios explícitos e específicos. Assim,

reclassifica a busca de influência como comportamento político normal e desejável,

esmagando o conteúdo moral do termo corrupção em uma história no mundo povoado por

atores interessados (TEACHOUT, 2014, cap. 4, p. 5).

Esses esforços são equivocados. Não evitam os problemas de definição, porque quid

pro quo, embora soando específico, é em si um termo contestado com uma gama de

significados. Mais importante ainda, é muito perigoso para a saúde da nação. O erro a-

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

95

histórico – e potencialmente trágico – cometido pelo modelo de Kennedy-Roberts114 flui em

parte de uma tendência moderna de olhar para os problemas político-legais através da lente da

Primeira Emenda (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 5).

Sobre os efeitos negativos da modalidade corrupção convencional, Amilcar Araújo

Carneiro Júnior (2015, p. 11) afirmou que são mais danosos e de difícil comprovação:

Parece ser a forma mais poderosa de corrupção, pois a sua invisibilidade a torna muito mais difícil de ser visualizada e, portanto, de ser investigada e provada. O exemplo mais contundente, comum em vários países democráticos é o problema associado com incentivos eleitorais, financiamentos privados de campanhas, considerações legais, ou até mesmo o incentivo independente, nomeadamente chamado de “caixa II, esta ilegal, mas de difícil comprovação. Tais financiamentos legais ou ilegais permitem projetar qual será a conduta a ser tomada pelo agente público.

Partindo do pressuposto da integridade moral dos integrantes da Suprema Corte,

Teachout (2014, Introdução, p. 5) acredita que a ausência de integrantes, em seus quadros,

com experiência em assuntos de poder e política contribuiu para formação do entendimento

de permissibilidade para influência do poder econômico em assuntos eleitoreiros e políticos.

Enquanto tribunais inferiores têm consistentemente ampliado o escopo de leis de corrupção,

um movimento oposto aconteceu no alto, justamente na Suprema Corte. O Tribunal tornou-se

povoado por acadêmicos e juízes de tribunais de apelação, ou seja, não por cidadãos com

vivência prática, que compreendem as maneiras pelas quais os problemas reais de dinheiro e

influência se manifestam.

A decisão proferia no caso Citizens United foi péssima para o sistema político e

exibia uma compreensão ainda pior da história. A visão tradicional difundida pelos

fundadores era para criação de estruturas preventivas no poder público que contivessem as

tentações que levam ao egoísmo exagerado. Certamente esse pensamento não negava a

existência de interesses particulares, porém ao invés de endossá-la cegamente, a abordagem

tradicional americana torna o trabalho do governo de temperar o egocentrismo exacerbado na

esfera pública (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 5). 114 Nesses dois recentes casos – Citizens United e McCutcheon v. FEC –, a Suprema Corte Americana, através dos juízes Anthony Kennedy e John Roberts, decidiu no sentido de que as contribuições de campanhas políticas – uma forma de presentear - dadas com a intenção de influenciar o governo não constituem comportamentos de corrupção. Segundo os juízes, a corrupção exige mais do que a intenção por parte do doador de presentes. Requer algo como um acordo explícito entre o doador e o candidato. Quando a Suprema Corte assim se posicionou, os juízes alegaram seguir precedente. Nos primeiros dias da república, os fundadores americanos tomaram a abordagem oposta. Eles desenharam um grande círculo em torno de comportamento que eles inseriram na seara da corrupção, considerando-os como ameaças ao sistema político, mesmo quando tal tratamento interferisse negativamente em negociações internacionais e não fosse acompanhado por um acordo explícito (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 1-2).

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

96

Assim como a liberdade ou a igualdade, a corrupção é um conceito importante para a

República e com limites pouco claros. Refere-se a interesses privados excessivos na esfera

pública. Um ato é corrupto quando os interesses privados triunfam sobre os públicos no

exercício do poder público. Uma pessoa é corrupta quando usa o poder público para seus

próprios fins, desconsiderando os outros (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 5).

Durante a maior parte da história americana, os tribunais permaneceram

comprometidos com uma visão ampla e tradicional da corrupção. Contudo, a partir do final da

década de 1970, tudo começou a mudar em torno desta questão. A Suprema Corte, junto com

um crescente subconjunto de estudiosos, começou a confundir o conceito de corrupção e jogar

fora muitas das regras profiláticas que foram usadas para se proteger contra ela

(TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 5).

Essa rejeição levou a um estouro do envolvimento da indústria privada em eleições

políticas e a um rápido declínio da ética cívica no Congresso e no Legislativo Estadual. As

antigas ideias sobre a virtude foram jogadas fora como sentimental, mas os antigos problemas

de corrupção e governo persistiram (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 5).

A era contemporânea está repleta de gestos cordiais e presentes incrustados de

diamantes, embora sejam menos prováveis de vir do rei da França. Atualmente, eles vêm de

executivos de indústrias altamente concentradas e monopolistas que, como o rei da França em

1785, têm um interesse intenso e pessoal nas escolhas políticas dos poderes legislativos e um

desprezo casual pelo processo cívico (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 6).

Um exemplo notável dos efeitos negativos da corrupção não convencional, que

aconteceu recentemente nos Estados Unidos, esteve relacionado à aferição dos padrões

nutricionais do governo federal para almoços escolares.

De acordo com os membros da comunidade nutricionista, a obesidade infantil é um

problema significativo nos Estados Unidos. De fato, o Departamento de Saúde e Serviços

Humanos dos Estados Unidos descobriu que a obesidade infantil triplicou nas últimas três

décadas. De conseguinte, vislumbrou-se uma questão de saúde pública, ou seja, de uma das

facetas do interesse público. Assim, esperava-se que em atendimento aos interesses públicos o

governo americano promoveria almoços escolares mais saudáveis115.

115 Em reportagem do site g1, no dia 27 de abril de 2016, noticiou-se que as altas taxas de obesidade em crianças e adolescentes americanos, um fenômeno que começou há cerca de trinta anos e se aprofundou de forma alarmante desde então, persiste sem qualquer sinal de recuo, revelado em um estudo da Universidade de Duke, na Carolina do Norte. Para fazer este estudo, publicado na revista Obesity, os autores analisaram dados de uma pesquisa nacional sobre saúde e nutrição, que abrange várias décadas. O estudo constata que no período 2013-2014, 33,4% dos jovens de 2 a 19 anos tinham sobrepeso, dos quais 17,4% eram obesos. Estes percentuais não diferem estatisticamente dos registrados no

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

97

No entanto, em novembro de 2011, o Congresso Americano aprovou um projeto de

lei de gastos que rejeitou a proposta do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos de

exigir uma meia xícara de pasta de tomate para que qualquer alimento seja classificado como

vegetal. A proposta do Departamento de Agricultura foi baseada em recomendações do

Instituto de Medicina, o braço da saúde da Academia Nacional de Ciências. Ao invés de

acompanhar as recomendações do Instituto de Medicina, o Congresso votou para permitir que

apenas duas colheres de sopa de tomate para contar como uma porção de legumes, que tem o

efeito de classificar uma fatia de pizza como um vegetal (YINGLING, 2013, p. 288).

A essa questão, indaga-se o motivo do Congresso tomar essa atitude se a obesidade

infantil era um problema de saúde pública. A resposta é evidente quando se reconhece que os

lobistas corporativos, incluindo muitos da indústria de alimentos congelados, que gastaram

US$ 5,6 milhões influenciando os membros do Congresso para relaxar os padrões do almoço

escolar. Este é um claro exemplo de agentes públicos eleitos colocando primeira e

excessivamente interesses privados em detrimento do interesse público (YINGLING, 2013, p.

288-289).

Ainda em se tratando de saúde pública, a Professora Maria Victoria de Mesquita

Benevides (1991, p. 101) exemplifica o poderoso lobby realizado no Parlamento francês pelos

viticultores. Na França, há prejuízo para a elaboração de uma política séria contra o

alcoolismo, o qual é considerado um problema nacional que afeta, inclusive, adolescentes e

crianças. A autora destaca que o lobby mencionado tem capacidade de comprometer

efetivamente as chances de reeleição de políticos.

A corrupção não convencional permite a constituição de uma relação de dependência

dos candidatos a vagas no Parlamento e Executivo de indivíduos ricos e grandes empresas em

razão das contribuições de campanha. O impulso para resistir a esses presentes tentadores é

profundamente americano, sendo necessário o caminho de volta às origens da Constituição

Americana, época dos fundadores (TEACHOUT, 2014, introdução, p. 6).

No tocante à essa relação de dependência entre o corruptor e o corrupto, seja a

convencional (quid pro quo), seja a não convencional, diga-se que tende a ser um caminho

pernicioso para o interesse público. A linguagem da dependência e da corrupção são tão

interligadas que, em alguns casos, a corrupção e a independência poderiam soar como

opostos. Os teóricos contemporâneos, em muitas oportunidades, usam as expressões

período anterior, de 2011 a 2012, e mostram que em todas as categorias de sobrepeso e obesidade as cifras mantiveram sua tendência à alta entre 1999 e 2014, constatam os pesquisadores (PRESSE, 20116).

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

98

"corrupção" e "dependência" no mesmo contexto, indicando que a corrupção vem se origina

como resultado natural da relação de dependência (TEACHOUT, 2015, cap. 2, p. 11).

A Declaração de Independência Americana foi, em parte, uma declaração de

libertação da corrupção. Independência é a ausência de uma relação de poder, que

simbolizava a rejeição desse tipo de relacionamento. Dependência, por sua vez, poderia se

referir a uma espécie de dependência estrutural (onde uma pessoa é realmente dependente dos

outros financeiramente e, portanto, deve atender aos interesses daquela) ou uma dependência

psicológica (onde o caráter de uma pessoa é corrompido pelas influências de outro para

pensar e agir de forma diferente). A dependência financeira pode conduzir à dependência

psicológica. Em cada caso, embora em graus variados, a figura dependente mudaria suas

ações para alinhar-se com os desejos particulares da pessoa que tinha poder sobre ele

(TEACHOUT, 2015, cap. 2, p. 12-13).

Nessa conjectura, assevera-se que a dependência, por si só, não define a corrupção,

mas faz parte do conjunto de relações estruturais que levam à corrupção. Um dos objetivos

claros da Convenção Constitucional era a liberdade de uma cultura política onde a

dependência era o modo primário de avanço. O trabalho da arquitetura política era

desencorajar dependências e tentações que poderiam levar à corrupção (TEACHOUT, 2015,

cap. 2, p. 12-13).

Na moderna legislação americana de suborno e extorsão, poder-se-ia supor que esses

diplomas normativos são ferramentas apropriadas e suficientes para combater efetivamente a

corrupção. Entrementes, eles são problemáticos. Se um estatuto de suborno é estreitamente

elaborado (ou interpretado), abrange apenas intercâmbios descarados e não sofisticados, não

resolvendo realmente problemas surgidos com o emprego de grandes somas de dinheiro para

influenciar na política, prejudicando o regime democrático (TEACHOUT, 2014, Introdução,

p. 6).

Uma lei penal punirá apenas políticos desajeitados como William Jefferson, que

escondeu seus rolos de dinheiro em um freezer116. Por sua vez, normas estruturantes ou

116 Em matéria jornalística publicada no Whashingtonpost, no dia 13 de novembro de 2009, noticiuou-se que o ex-deputado William J. Jefferson foi condenado a 13 anos de prisão, no ano de 2009, por ter aceitado centenas de milhares de dólares em subornos. Foi a maior condenação a tempo de prisão em desfavor de um congressista condenado por acusações de corrupção. A sentença para o democrata de Lousiana ficou muito aquém dos 27 a 33 anos sugeridos sob as diretrizes federais de condenação, uma recomendação aprovada pelos promotores. Mas ele ultrapassou o recorde anterior de corrupção no Congresso: a pena de oito anos e quatro meses de prisão que o ex-congressista Randall "Duke" Cunningham (R-Calif.), no ano de 2006, por aceitar subornos. O caso de Jefferson ficou famoso pelos US $ 90 mil que os promotores disseram que era proveniente de suborno, encontrados pelo FBI, em seu freezer. O juiz TS Ellis III disse a Jefferson que ele "conduziu uma vida

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

99

profiláticas, que a Teachout (2014, Introdução, p. 6) chama de leis de intenções corruptas,

podem ser mais amplamente interpretadas, visto que as exigências dogmáticas da norma penal

dificultam demasiadamente a caracterização do ilícito, deixando de abranger uma série de

comportamentos danosos ao sistema político.

Uma lei penal que é concebida como "Guerra contra a Corrupção" é, sem dúvida,

como as guerras contra as drogas ou o terrorismo – quase impossível de se ter sucesso. A

corrupção é muito melhor lutada através da mudança de estruturas básicas de incentivo. Isso

pode parecer intuitivo para qualquer pessoa envolvida na política, mas a maioria da atual

Suprema Corte preferiu abertamente a restrição do conceito de ilícito apenas a situações quid

pro quo (TEACHOUT, 2014, Introdução, p. 5).

Zephyr Teachout (2014, cap. 1, p. 7) ainda indaga se Benjamin Franklin havia sido

efetivamente corrompido pela França por ter recebido o presente do monarca117. A história

não fornece uma resposta, mas anuncia uma atitude em relação à corrupção e uma maneira de

refletir sobre ela. A cláusula constitucional era fundamental porque expressava uma nova

visão da maneira apropriada de ser um representante público de um país no estrangeiro.

De conseguinte, é imprescindível uma compreensão mais profunda e minuciosa das

complexas formas e ocasiões em que as moralidades privadas e públicas se cruzam, bem

como uma maior atenção e respeito pelos perigos políticos que decorrem da ausência de

limites para os interesses particulares em questões de interesse público. Essas mudanças

propostas, de retorno à concepção tradicional, possibilitarão o apoio judicial para regras claras

que impeçam a iniciativa privada e os agentes públicos de sucumbirem às tentações. O que a extraordinária e realizou muito". Mas acrescentou: "Isso torna este evento mais triste para mim e para muitas pessoas". Antes de entregar a sentença, o magistrado Ellis disse: "A corrupção pública é um câncer, e precisa ser removido cirurgicamente". O procurador federal Neil H. MacBride elogiou a sentença. "O Sr. Jefferson é bem conhecido pelos US $ 90.000 encontrados em seu freezer", disse MacBride. "Esperamos que ele agora seja conhecido pela dura sentença proferida hoje, mostrando que ninguém – incluindo os nossos congressistas – estão acima da lei” (MARKON, 2009).

117 Outro evento similar ocorreu com o também ex-presidente norte americano Thomas Jefferson. Não obstante a exigência constitucional de aprovação pelo Congresso, a última caixa de rapé dada como presente na era da Constituição nunca chegou à frente do Parlamento. Quando Thomas Jefferson, depois que a Constituição foi ratificada, tomou seu próprio turno como um diplomata para a França, inicialmente pensou que estaria livre do costume de receber presentes, que achava desagradável. No entanto, o Governo francês lhe deu uma caixa de rapé no final de sua turnê, embutida com brilhantes em torno de um retrato do rei, avaliado um pouco menos do que aquele dado a Benjamin Franklin. Jefferson escreveu a seu assistente, William Short, pedindo que este informasse aos franceses sobre a cláusula constitucional. As dificuldades que acompanhavam o presente causaram a Jefferson "considerável angústia", mas ele finalmente aceitou. No entanto, ao invés de passar pelo Congresso, pediu a sua secretária para pegar o quadro dourado, remover os diamantes, catalogá-los e avaliá-los, vendendo o mais valioso. A quantia foi deposita em dinheiro na conta privada de Jefferson. Se Jefferson não queria ofender os franceses ou não podia resistir à tentação de uma chance de pagar dívidas, não há como precisar. Mas seu desdém simultâneo pelos costumes europeus e sua incapacidade de resistir a eles prefiguram uma longa prática americana, qual seja: o desejo de rejeitar e aceitar as velhas práticas simultaneamente. O destino do retrato "desmembrado" da França é desconhecido (TEACHOUT, 2014, cap. 1, p. 6-7).

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

100

América enfrenta agora, se não houver mudanças estruturais fundamentais na relação do

dinheiro com os Poderes Legislativo e Executivo, não é nem governo da multidão nem

democracia, mas uma oligarquia, conforme a visão aristotélica exposta por Montesquieu

(TEACHOUT, 2014, introdução, p. 8).

Percebe-se, assim, dois pontos fundamentais: 1) a concretitude do princípio

anticorrupção depende de um modelo amplo da compreensão sobre o que seja corrupção; e 2)

o princípio anticorrupção é detentor de uma liga inseparável da República, possuindo uma

amplitude maior do que o princípio da administração proba, visto que aquele engloba todas

situações, políticas e jurídicas, presentes na sociedade e no poder público em um Estado eu

adote o governo republicano, enquanto este, por estar mais afeto à temas da administração

pública, termina possuindo uma abrangência mais limitada.

A seguir, explorar-se-á o princípio anticorrupção de acordo com a linguagem da

hermenêutica filosófica.

3.3 O princípio anticorrupção na linguagem filosófica

O princípio anticorrupção, conquanto esteja sendo discutido apenas recentemente,

não surgiu de forma inesperada e repentina, pois trata-se de uma construção da historicidade

humana. Nesses termos, foi sendo erguido paulatinamente por fatores socioculturais, que

criaram um ambiente favorável e adquiriram maior impulso com o surgimento dos estados

constitucionais.

A Professora Zephy Teachout (2014, cap. 16, p. 6-7) vislumbra que seu marco inicial

na história foi a Convenção Constitucional de Filadélfia, no ano de 1787, que ratificou, o que

viria a ser a primeira e única Constituição dos Estados Unidos, cuja vigência se inaugurou no

1789. Entretanto, só foi possível em virtude de ideias que vinham sendo desenvolvidas há

séculos, desde períodos anteriores à era cristã, a exemplo das formas de governo puras e

deturpadas expostas por Aristóteles.

Particularmente, apenas após as teorias propagadas por Montesquieu (TEACHOUT,

2014, cap. 2, p. 5), no século XVIII, foi que uma primeira Constituição pode consolidar-se em

um regime democrático – o princípio republicano e, consequentemente, criar uma estrutura

normativo política-jurídica para defesa da administração pública legal e honesta.

Essa estrutura de prevenção e combate à corrupção, não convencional e

convencional, foi sendo transmitida de gerações a gerações, isto é, através daquilo que o

filósofo Gadamer denominou de tradição (LAWN, 2011, p. 54).

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

101

Nota-se, no entanto, que a amplitude da corrupção foi sendo ora estendida, ora

restringida, no decorrer da história, a depender do contexto sociopolítico vigente. Mais uma

vez, retoma-se as lições da hermenêutica filosófica para explicar que a tradição não se opera

similarmente a uma linha de produção industrial, como se a maneira de compreender o mundo

fosse sucedida exatamente igual a anterior. Ao contrário, nesse processo há a reconstrução, re-

elaboração ou re-interpretação de tudo aquilo que lhe é transmitido (LAWN, 2011, p. 54).

Nesse reprocessamento da compreensão sobre corrupção, operada pela tradição

gadameriana, Zephyr Teachout (2014, cap. 13, p. 7-8) constatou que a partir dos anos 1970,

houve uma restrição pela Suprema Corte Americana do conteúdo da corrupção, passando

abarcar somente casos da corrupção quid por quo, de modo que prejudicou efetivamente a

concretude do princípio anticorrupção, na medida em que houve o desprezo da jurisprudência

por toda legislação que proibia a interferência de indivíduos ricos e grandes empresas no

processo eleitoral americano. Houve a legitimação da interferência do poderio econômico nas

eleições americanas e em decisões políticas, bem como a legitimação do lobby profissional118.

A Suprema Corte Americana limitou a questão da corrupção, no final do século XX e

início do XXI, a situações estritamente convencionais (dar algo em troca de uma conduta

específica do agente público), onde há a preponderância pelo modelo punitivo, ao invés do

118 Zephy Teachout (2014, cap. 7, p. 1-2) assevera que a função social do lobby é tomar dinheiro e transformá-lo em poder político. Os lobistas são contratados como alquimistas, para transformar o dinheiro em poder através da produção de informações e do uso cuidadoso da influência. Quando é eficaz, lobby significa que todo o poder do governo se desloca para servir os objetivos sociais daqueles que podem pagar os lobistas. Lobby, no seu pior, permite a extração de recursos públicos do público. Parte do quebra-cabeças é descobrir onde colocar o lobby – como um bom comportamento cívico ou um comportamento anti-cívico corrupto – deriva do fato de que os lobistas têm múltiplas funções. Um deles é o compartilhamento de informações, permitindo que a sabedoria do negociante de automóveis fluir para o escritório do membro do Congresso, por exemplo, mas os lobistas também são coletores de informações e passam grande parte de seu tempo avaliando oportunidades, criando assimetrias de informação para os cidadãos. Além disso, eles atuam negociando de forma a não expor todas as características das transações, evitando os limites legais. Bons lobistas imaginam o que os candidatos políticos precisam (geralmente contribuições de campanha, mas às vezes empregos, ajuda em empréstimos ou pagamentos diretos). Eles então determinam o que seus clientes querem: estancar uma lei ou regulamentação, alterar normas fiscais, receber alguma isenção etc.. Eles então descobrem como habilitar uma série de ações que não operam como trocas quid pro quo, mas permitem o fluxo de cliente para candidato e de político para cliente, ao tomar uma taxa para permitir o fluxo e obscurecer a transação. No entanto, muitos estudiosos modernos argumentam que o lobby é “vital para a democracia representativa”, porque ajuda a dar informações aos eleitos que precisam ser capazes de desenvolver leis, avaliar os impactos e entender como os diferentes grupos irão reagir. Esses estudiosos argumentam que os lobistas preenchem uma lacuna no ecossistema da informação e produzem a necessária e valiosa informação pública. No entanto, lobby nem sempre foi tratado desta forma. Um dos debates públicos mais interessantes sobre o lobby e seu papel na sociedade política ocorreu em Atlanta, em meados de julho, na Convenção Constitucional da Geórgia de 1877. O projeto de Constituição tornou o lobby um crime. Suportes argumentaram que o lobby estava corrompendo o governo. Os lobistas tinham sido pagos para usar a influência pessoal para influenciar na legislação. Essa tendência acompanhou a jurisprudência americana até o século XIX, oportunidade em que os tribunais foram gradativamente permitindo o lobby profissional na medida em que surgiam as normas regulamentando essas situações (TEACHOUT, 2014, cap. 7, p. 15-16).

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

102

preventivo e as condenações são mais difíceis em razão das exigências da dogmática jurídica

penal.

Entrementes, a corrupção não deve simplesmente viver em um gueto de direito

penal. Não se exaure no quid pro quo. Como a maioria das pessoas sabe, acordos explícitos

podem traduzir casos de corrupção, mas eles não são a coisa em si. A corrupção não deve

limitar-se às trocas ou centralizar-se nas trocas. Não deve ser definido literalmente por um

estatuto jurídico. Ninguém deve esperar que um estatuto defina a “corrupção” como também

não pode esperar que um estatuto defina em sua inteireza conceitos como “igualdade” ou

“amor” ou “segurança” (TEACHOUT, 2014, cap. 16, p. 3).

O princípio anticorrupção confere um sentido mais forte à relação do cidadão com o

país. Uma relação íntima e fiel com um país é psicologicamente desafiadora quando

relacionada a um grande estado territorial e burocrático no qual a maioria dos cidadãos não

tem interações próximas com o governo, mais uma razão para incentivá-lo. A corrupção,

nesse sentido, estaria relacionada ao princípio que governa uma relação fiduciária geral que

todos os cidadãos têm com o público (TEACHOUT, 2014, cap. 16, p. 3).

O arcabouço normativo político-jurídico que envolve o princípio anticorrupção

expressa uma visão de comportamento humano indesejável e, por outro lado, invocava o

desejável e possível comportamento político humano. Apesar de todas imprecisões

terminológicas, expressadas por linguagens diferentes sobre o tema, a corrupção envolve o

senso de sacrifício desarrazoado do interesse público em prol de uma exacerbação de

interesses particulares (TEACHOUT, 2014, conclusão, p. 2).

Assim, operacionaliza-se dentro do fenômeno da compreensão humana, na forma do

homem enxergar e se ver no mundo. É a partir do que Heidgger (2012, p. 139-141) chamou

de dasein que irá se compreender o que se trata a corrupção.

O fenômeno da compreensão é sempre re-elaborado quando transmitido pela tradição

(LAWN, 2011, p. 54). Tanto é que, em que pesem todas as críticas com suas atitudes

extremistas, conservadoras e xenófobas, o atual Presidente americano, Donald Trump, tão

logo que assumiu a presidência expediu um decreto impondo limites ao lobby relativos ao ex-

agentes públicos119.

119 Assim que assumiu a Presidência, Donald Trump expediu uma série de decretos, dentre os quais o que proibiu oficiais da administração de praticarem lobby para governos estrangeiros. Uma proibição de cinco anos também foi aplicada a outras atividades de lobby. Trump usou a medida para colocar em prática parte de sua promessa de campanha de “limpar o pântano” de Washington. Ele havia dito que aqueles que quisessem trabalhar para ele deveriam se concentrar no trabalho e não em exercer influência depois de terem passado pelo governo (TRUMP, 2017).

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

103

Essa atitude do Presidente corrobora a explicação da Professora Zephyr Teachout

(2014, Introdução, p. 5) sobre os motivos que levaram a Suprema Corte Americana a reduzir a

amplitude do conceito de corrupção. Disse a autora que o Tribunal era composto, em sua

maioria, por juristas e acadêmicos com inexperiência prática sobre os efeitos danosos da

interferência do poderio econômico na política e nos interesses coletivos. O Presidente, por

sua vez, é um dos empresários mais ricos e bem-sucedidos dos Estados Unidos(O

TRIUNFO..., 2016), por conseguinte, detentor de uma visão de mundo sobre os efeitos

nocivos que os interesses particulares podem fazer ao interesse público por intermédio do

poderio econômico e de influencias dos lobistas.

No Brasil, algumas medidas já foram tomadas para evitar interferências de ex-

agentes públicos no serviço público, a exemplo da exigência constitucional do período de

quarentena de dois anos para que magistrados e membros do Ministério Público possam

exercer advocacia no juízo ou tribunal a que serviram, conforme previsão contida no art. 95,

inciso V, e art. 128, § 6º, da Constituição, respectivamente.

Nota-se que essa exigência foi inserida no texto constitucional brasileiro apenas no

ano de 2004, pela Emenda Constitucional 45/2004. O cidadão e os agentes públicos

compreenderam, a partir de determinado momento, que era imprescindível adotar a medida de

quarentena para que interesses privados não prevalecessem desarrazoadamente sobre o

interesse público.

Prosseguindo, a história mostrou que era preciso ainda mais. Nesse momento,

discute-se, no parlamento brasileiro, a necessidade de um período de quarentena para que

juízes e promotores possam concorrer a mandatos eletivos. Busca-se com isso evitar: 1) que

esses agentes públicos incluam interesses particulares durante o serviço público com a

finalidade de angariar apoio político futuro; e 2) que, quando candidatos, prevaleçam-se de

relacionamentos constituídos ao longo do serviço público120.

120 O Plenário do Senado aprovou, no dia 15 de julho de 2015, um prazo de dois anos de desincompatibilização para magistrados e membros do Ministério Público que querem concorrer a cargos eletivos. O projeto de lei do Senado nº 476/2015, que altera a Lei Complementar nº 64/1990, (Lei de Inelegibilidade), foi apresentado pela Comissão Temporária da Reforma Política. Juízes e promotores já são obrigados a pedir exoneração do cargo para concorrer a cargos eletivos. O projeto, que agora segue para a análise da Câmara dos Deputados, acrescenta uma quarentena de dois anos após a exoneração. Para os ocupantes de mandato dentro do Poder Judiciário ou de órgãos do Ministério Público, como presidentes de tribunais ou procuradores-gerais, o prazo só será contado a partir da data prevista para o término do mandato. “Segundo o relator da Comissão da Reforma Política, senador Romero Jucá (PMDB-RR), a medida tenta coibir o ‘desvirtuamento’ das atribuições legais dos membros do Judiciário e do Ministério Público, já que alguns buscam popularidade para posterior candidatura a cargos eletivos. Segundo Jucá, o ‘perigo’ está exatamente na atuação midiática e autopromocional desses agentes durante o exercício de uma função ou cargo público, em carreiras típicas de Estado, visando ao credenciamento à cena político-eleitoral. Jucá informou que o projeto é sugestão do senador Fernando Collor (PTB-AL) e foi

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

104

Retomando as lições de James Madison, sob inspiração do Barão de Montesquieu, o

ex-presidente americano traz duas exigências: 1) a da moralidade política; e 2) a da estrutura

normativo político-jurídico. As duas devem ser conjugadas em uma relação simbiótica para a

concretização do princípio anticorrupção. Faltando-lhe, a outra não terá a capacidade, de per

si, de consagrar o princípio anticorrupção (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 7).

Veja-se que o Brasil possui toda uma estrutura normativa político-jurídica

consagrada na Constituição de 1988121, em leis122 e em tratados e convenções

internacionais123, além de todas disposições administrativas que regem o serviço público. A

estrutura está presente, mas, como o próprio Thomas Jefferson falou, uma apenas não se

revela medida suficiente.

A concretização do princípio anticorrupção se opera através e dentro da linguagem.

A linguagem totaliza o mundo, como o próprio Gadamer (2015, p. 503) ensinou. E o Direito é

uma das formas de linguagem, todavia não é a única, nem sequer basta, de per si, para que o

princípio aqui defendido logre êxito. Sem a moralidade política dos cidadãos de determinado

Estado, oriunda do sentimento cívico de respeito ao interesse público e ao bem-estar coletivo,

as medidas de combate à corrupção serão ineficazes.

Nessa linha de raciocínio, não se pretende retomar à visão romântica e imprecisa da

corrupção, mas se intenta destacar que o papel do cidadão é fundamental para a eficácia de

toda estrutura normativa de repressão à corrupção (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 5). E esse

papel só é percebido pela forma de como o indivíduo compreende e se ver no mundo, o seu tratado até com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Serão dois anos para se filiar e depois mais um ano para se candidatar, explicou Jucá” (APROVADA..., 2015). 121 A título de exemplo, citam-se: art. 1º, caput, estabelece a República como forma de governo; art. 5º, inciso LXXIII, prevê como direito fundamental da cidadania a ação popular para anular ato lesivo ao patrimônio público ou a moralidade administrativa; art. 14, § 9º, transfere para Lei Complementar hipóteses de inelegibilidade para proteção da probidade administrativa e moralidade necessários ao exercício do mandato político; art. 15, inciso V, estabelece a possibilidade de cassação ou suspensão de direitos políticos em casos de improbidade administrativa; art. 37, caput, traz rol exemplificativo de princípios norteadores da administração pública; art. 37, § 4º, dispõe que atos de improbidade administrativa importarão em suspensão de direitos políticos, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário; art. 74, estabelece sistema de controle interno de contas públicas; e art. 85, inciso V, prevê crime de responsabilidade do Presidente da República quando atentar contra a probidade administrativa. Nota-se que esses dispositivos não exaurem a estrutura constitucional que norteia o princípio anticorrupção, pois todo arquétipo da Constituição é constituído a consagrá-lo, seja por outras normas, seja por distribuição de competências e funções entre órgãos e poderes, seja pela existência de princípios implícitos. 122 Lei n. 1.079/1950, define os crimes de responsabilidade; Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa); Lei n. 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro); Lei n. 12.683/2012, torna mais eficiente o combate à lavagem de dinheiro; Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), prevê a responsabilização civil e administrativa das pessoas jurídicas que atentem contra a Administração Pública. Há diversos outros diplomas legais, a exemplo de disposições específicas no Código Penal. 123 Exemplificam-se as seguintes convenções: 1) Convenção sobre o combate à corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais; 2) Convenção interamericana contra a corrupção; e 3) Convenção das Nações Unidas contra a corrupção.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

105

dasein (HEIDGGER, 2012, p. 139-141). Aqui a expressão cidadão se refere a todos, à

sociedade civil e àqueles que exercem a função pública ou que tratam com o poder público.

Como o Professor João Ubaldo O. P. Ribeiro (1998, p. 17) ensinou, a classe política

não é composta por seres alienígenas ou organismos diversos, é reflexo da própria sociedade.

“Se todos eles são ruins de forma tão radical, o corolário é que todos somos ruins, já que,

parafraseando uma frase bíblica, uma árvore boa não pode dar tantos frutos maus”.

Tampouco é útil se refugiar no discurso de mera negação da política, até porque isso

também é fazer política, (RIBEIRO, 1998, p. 17):

Se não gostamos do comportamento dos políticos e do funcionamento do sistema e não fazemos nada quanto a isso, estamos sendo políticos: estamos contribuindo para a perpetuação de uma situação política indesejável ou inaceitável. Se queremos fazer alguma coisa para melhorar a situação, também estamos sendo políticos, pois a única via de ação possível, neste caso, é a Política.

A responsabilidade pela coisa pública também é dos cidadãos como integrantes da

sociedade. A respeito, Zephyr Teachout (2014, cap. 2, p. 11) afirmou que todos possuem a

incumbência pela integridade do governo republicano, devendo assegurar através dos meios

democráticos que os recursos públicos atendam seus fins legítimos. Há um papel social

decorrente da moralidade política.

Sobre a inação política do cidadão, Bruno Garschagen (2015, p. 190) assevera que “é

muito confortável responsabilizar o Estado e os governos por todos os males e nada fazer. É a

maneira mais cômoda e certeira de errar”. O autor (2015, p. 191) prossegue afirmando que

“ao nos colocarmos na posição de agentes não responsáveis pelos políticos que existem e

foram eleitos, e pela existência e funcionamento das instituições, renunciamos ao papel de

atores fundamentais para o florescimento do país”.

Ainda sobre a moralidade política do cidadão, diga-se que uma das críticas realizadas

ao constitucionalismo brasileiro é o “pífio desenvolvimento da ideia de democracia e

república” (SILVA NETO, p. 2016, 39). O autor prossegue afirmando que o baixo nível de

consciência democrática no Brasil interfere negativamente na produção de cultura

constitucional124. “O povo se torna cético quanto às instituições republicanas forjadas pela

124 O autor, em posição contrária a constitucionalistas como Barroso, traz fortes críticas ao constitucionalismo brasileiro, qualificando como tardio em virtude de causas históricas, políticas e jurídicas que impedem a constituição de uma cultura constitucional, isto é, da formação de comportamentos e condutas, públicas ou privadas, propensas a: I) preservar a vontade da constituição; II) efetivar, no plano máximo possível, os princípios e normas constitucionais; e III) disseminar o conhecimento a respeito do texto constitucional (SILVA NETO, 2016, p. 22).

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

106

democracia, como é o Caso do Congresso Nacional. Cultura democrática de que nos

ressentimos tanto quanto a aludida ausência de cultura constitucional” (SILVA NETO, p.

2016, 39).

A virtude política, que não se confunde com virtude religiosa ou moral, funciona

como campo de modelagem da cidadania. O Brasil, por tudo que foi dito, não tem apego

acentuado às virtudes políticas (BENEVIDES, 1991, p. 193).

Portanto, a existência de apenas a estrutura sem a moralidade política impregnada

nos cidadãos, trocar-se-á os corruptos e corruptores por outros. O princípio não visa

repressão, mas a adoção de práticas efetivas que reduzam os índices de corrupção a níveis

toleráveis.

Por outro lado, a presença da moralidade política sem a estrutura pode conduzir à

demagogia, na medida em que os agentes públicos e particulares envolvidos com a corrupção

profeririam um discurso em prol da moralidade pública, mas confiando na impunidade em

razão da inoperância da estrutura – o agir estratégico delineado por Habermas. A respeito,

veja-se as seguintes palavras de Carvalho (2015, p. 282):

O projeto de lei que dá à corrupção o estatuto de “crime hediondo” não teve origem inocente, nem sequer decente: foi enviado à Câmera em 2009 por aquele mesmo indivíduo que, acusado de inventor e gestor do maior esquema de corrupção que já se viu neste país, apostou na lentidão da Justiça como garantia de sua eterna e tranquilíssima impunidade.

O princípio anticorrupção emerge em um momento peculiar da realidade nacional, de

anseios e reclamos em prol da administração honesta e legal. Uma oportunidade em que “há

indícios de que parte da sociedade brasileira mudou ou está em processo de mudança. Nas

escolas, nas universidades, nos institutos, nas instituições políticas e jurídicas, na imprensa

(...) há muita gente pensando de forma diferente e agindo para mudar o status quo”

(GARSCHAGEN, 2015, p. 187).

Garschagen, (2015, p. 188) aponta como fator preponderante para esse fenômeno a

contribuição das redes sociais da divulgação e defesa de concepções políticas contrárias ao

estatismo e ao tipo de governo construído ao longo da história brasileira. Indivíduos que

nunca se interessaram pelo debate político agora agregam no discurso suas opiniões e

convicções.

Com a presença da estrutura normativa político-jurídica necessária para o princípio

anticorrupção, o debate circula entorno de como o cidadão compreende seu papel cívico, sua

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

107

função de agente fiscalizador e transformador da República, defendendo-a das interferências

lesivas ao erário e moralidade pública (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 11).

Uma vez constatada a moralidade política, a estrutura será reforçada. Trata-se de um

movimento de mão dupla, dinâmico (TEACHOUT, 2014, cap. 2, p. 7-8). Um reforça o outro.

Atenta-se que a afloração da moralidade política na sociedade também incidirá no agente

público, tanto em seu dever de ser honesto e mais eficiente possível como também na busca

para isso, a exemplo de um parlamentar que propõe projetos de lei a respeito, do

administrador que estreita a fiscalização e eficiência de sua gestão ou do magistrado que

decida de forma a tornar a estrutura eficiente, afastando a impunidade reinante nesses tipos de

ilícitos.

Estabelecida a conexão entre a linguagem filosófica e o princípio anticorrupção,

seguir-se-á com a demonstração de situações vivenciadas pelo Poder Judiciário Brasileiro em

que houve ou deveria ter havido a sua concretização.

3.4 Casos práticos da aplicabilidade do princípio anticorrupção no direito brasileiro

Ainda que não esteja sendo mencionado expressamente pela jurisprudência, decisões

judiciais dos últimos anos demonstram a já aplicabilidade do princípio anticorrupção no

direito brasileiro, notadamente porque revelam o sentimento de moralidade política e a

utilização da estrutura normativa em prol do interesse público, que só se torna possível com

uma administração legal e honesta capaz de garantir aos cidadãos uma existência com um

mínimo de dignidade.

Neste momento, serão analisadas quatro situações, sendo que nas duas primeiras

houve a concretização do princípio anticorrupção e nas duas últimas a sua violação, onde

interesses particulares sobrepuseram excessivamente o interesse público.

Um julgamento em peculiar, bastante conhecido, deixou bem evidenciado a

consagração do interesse público nos termos aqui propostos. Foi a decisão do Supremo

Tribunal Federal na ação declaratório de constitucionalidade n. 12 interposta pela Associação

dos Magistrados do Brasil em defesa da resolução n. 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça,

que traçava limites à livre nomeação de cônjuges e parentes até o terceiro grau de magistrados

e servidores para cargos em comissão e funções gratificadas, no âmbito do Poder Judiciário.

Na época da edição da resolução, “boa parte dos Tribunais de Justiça estaduais

insurgiu-se contra a medida. Havia uma longa tradição de nomeação da parentada para

aqueles cargos” (BARROSO, 2012, p. 370). As Cortes dos estados-membros questionavam as

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

108

atribuições do Conselho Nacional de Justiça, que teria surgido em uma emenda constitucional

violadora da Separação dos Poderes e o fato de que a restrição estava sendo imposta por um

ato normativo e não por lei.

O apego à tradição positivista criava um certo empecilho ao reconhecimento do

mérito da causa. “A causa, de fato era moralmente boa, mas enfrentava dificuldades jurídicas”

(BARROSO, 2012, p. 370).

Não obstante, no dia 20 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal, em

confirmação de decisão liminar outrora deferida, reconheceu que a resolução em debate não

afronta a Separação dos Poderes, visto que o Conselho Nacional de Justiça não é órgão

estranho ao Poder Judiciário. Asseverou ainda que os condicionamentos exigidos pelo ato

normativo estão em consonância com os mesmos exigidos pela Constituição de 1988,

dedutíveis dos princípios republicanos da impessoalidade, eficiência, igualdade e moralidade.

Nota-se que a decisão se baseou em princípios constitucionais setoriais da

administração pública (impessoalidade, eficiência e moralidade), bem como no princípio

constitucional geral (igualdade)125. Todos deduzíveis do princípio republicano, o qual tem

uma conexão imanente com o princípio anticorrupção.

Tanto é que o princípio anticorrupção não se satisfaz com a mera repressão e

invalidação de ações do poder público. Ele requer e estimula um comportamento mais

proativo de todos – cidadãos e agentes públicos – de modo a desestimular a prevalência

desarrazoada de interesses particulares sobre o interesse público. E foi indo além que, no dia

seguinte à decisão histórica do Supremo, que, por iniciativa do Ministro Ricardo

Lewandowski, foi aprovada a súmula vinculante n. 13, estendendo a vedação da prática de

nepotismo a todos os Poderes da República126.

Mais recentemente, outro caso em que se aponta à concretude do princípio

anticorrupção foi por ocasião do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 05 de

outubro de 2016, das ações declaratórias de constitucionalidade n.s 43 e 44 interpostas pelo

125 Barroso (2015, p. 357) leciona que os princípios constitucionais, quanto ao critério material, podem ser: 1) fundamentais: expressam as decisões políticas mais importantes e são os de maior abstração, como Estado Democrático de Direito, dignidade da pessoa humana; 2) gerais: são pressupostos ou especificações dessas decisões políticas e possuem maior densidade jurídica e aplicabilidade concreta, a exemplo da isonomia e legalidade; e 3) setoriais: regem determinados subsistemas abrigados na Constituição, tais como a moralidade da administração pública. 126 Segundo dispõe a súmula nº 13 do Supremo Tribunal Federal: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal” (BRASIL, 2008c).

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

109

Partido Nacional Ecológico e pela Ordem dos Advogados do Brasil, em que o cerne do debate

se envolveu em torno da possibilidade ou não de início da execução da pena de prisão após a

condenação em sede de segunda instância, tendo em vista o princípio da inocência consagrado

no art. 5º, inciso LVII, da Constituição127 e a clareza da norma prevista no art. 283, do Código

de Processo Penal128, sendo que, neste último dispositivo, havia expressa previsão da

impossibilidade de prisão antes do transito em julgado da sentença condenatória.

O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, foi favorável à concessão da medida

cautelar, sendo acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Rosa

Weber e, em parte, Dias Toffoli, os quais defenderam a clareza da norma constitucional e

infraconstitucional, assim como que o princípio da inocência é direito fundamental

arduamente conquistado na história dos cidadãos na luta contra arbitrariedades do poder

público. Logo, não se pode utilizar-se de uma hermenêutica de índole regressista para

sacrificar essa norma. Para estes, prevalecem o direito fundamental individual.

Entretanto, os demais membros da Corte foram a favor da denegação da medida

cautelar129. Uma votação apertada, de seis votos contra a concessão da medida cautelar

pleiteada e cinco a favor. Assim, por maioria de apenas um voto, o Supremo Tribunal Federal

reconheceu a possibilidade da execução da prisão.

Quem abriu a divergência com o relator foi o Ministro Edson Fachin, o qual conferiu

ao art. 283, do Código de Processo Penal, interpretação conforme à Constituição, segundo a

qual afasta a norma que impediria o início da execução da pena de prisão quando esgotadas as

instâncias ordinárias, exceto quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso pelas

cortes superiores. Disse também que a Constituição não objetivou criar uma terceira e quarta

instâncias. As cortes extraordinárias servem aos papéis de uniformização das normas

constitucionais e infraconstitucionais.

Dentre os votos vencedores, o Ministro Luís Roberto Barroso relembrou que o

princípio da inocência não possui caráter absoluto, pois deve ser ponderado com outros

valores, a exemplo da efetividade do sistema penal, cujos problemas agravam o descrédito da

127 Dispõe o art. 5º, inciso LVII, da Constituição que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nota-se que a norma constitucional utiliza o termo “culpado” e não a expressão “prisão”. 128 Diferentemente da norma constitucional, observa-se que o texto do artigo 283 do Código de Processo Penal se refere expressamente à impossibilidade de prisão antes do transito em julgado: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Não se insere aqui a inclusão do debate acerca do princípio da não-culpabilidade, mas se essa norma legal é compatível ou não com a ordem constitucional vigente. 129 Os seguintes ministros votaram a favor da execução da pena de prisão: Edson Fachin, Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Carmen Lúcia.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

110

sociedade em relação ao sistema de justiça. Nessa mesma linha de pensamento decidiu a

Ministra Carmen Lúcia.

Já o Ministro Teori Zavascki, além de afirmar que o princípio da inocência não pode

esvaziar o sentido público da justiça, atestou que os exames de fato e matéria probatória são

desenvolvidos até a segunda instância: “é ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o

duplo grau de Jurisdição”. Outro importante argumento foi o do Ministro Luiz Fux: “Estamos

muito preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito

fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada a sua ordem penal”

(BRASIL, 2016c).

Vislumbra-se que os argumentos utilizados pelos votos vencedores traduzem o

sentido da moralidade política contida no conteúdo do princípio anticorrupção,

consubstanciado na prevalência, desses casos, do interesse público sobre o particular. Isso fica

evidenciado, por exemplo, no emprego de ideias que envolvem o direito fundamental da

sociedade e sentido público da justiça. Recorda-se, para tanto, que o princípio não se restringe

às situações convencionais (quid por quo).

Registra-se que o sacrifício da moralidade política, nessas situações, conduziria ao

descrédito social à estrutura de normas político-jurídicas que conferem sustentáculo ao

princípio anticorrupção. Relembrando James Madison (apud TEACHOUT, 2014, cap. 2, p.

7), nessa relação de mão dupla, um não sobrevive sem o outro.

Demonstradas duas situações em que se empregou implicitamente o princípio

anticorrupção, prosseguir-se-á no exame de hipóteses opostas, onde houve sua violação em

razão da exacerbação de interesses particulares em sacrifício do interesse público.

O primeiro caso foi decorrente da investigação criminal de suposta quadrilha que

cometia crimes de corrupção, financeiros e lavagem de dinheiro, cuja operação foi deflagrada

pela Polícia Federal, no dia 08 de julho de 2008, com o cumprimento do mandado de prisão

temporária expedido em desfavor do banqueiro Daniel Dantas, com base na Lei n. 7.960/1989

(Lei de Prisão Temporária) (ENTENDA..., 2009). A operação foi batizada de Satiagraha, em

alusão a seu significado em sânscrito: o caminho da verdade (SENKOVSKI, 2014).

Ressalta-se que, pouco antes da deflagração da operação policial, o Professor

Universitário Hugo Chicaroni, emissário de Daniel Dantas, ofereceu e entregou R$

500.000,00 (quinhentos mil reais) em dinheiro aos delegados federais Protógenes Queiroz e

Victor Hugo Rodrigues Alves Pereira, em ação controlada devidamente autorizada pela

Justiça Federal (MATTOS, 2015, p. 93).

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

111

Como foi dito, a prisão do banqueiro ocorreu no dia 08 de julho de 2008. Contudo,

no dia seguinte, o Min. Gilmar Mendes analisou o habeas corpus n. 95.009 sob a alegação de

que o investigado havia impetrado anteriormente habeas corpus preventivo com pedido de

acesso aos autos da investigação. No entanto, a ordem já havia sido denegada no Tribunal

Regional Federal da 3ª Região, no Superior Tribunal de Justiça e no próprio Supremo

Tribunal Federal. Portanto, percebe-se que as ações – habeas corpus preventivo e repressivo –

tinham causa de pedir e pedidos totalmente distintos. Acrescenta-se ainda que o Ministro

analisou a matéria durante o recesso judiciário de julho na condição de Presidente do

Supremo Tribunal Federal (MATTOS, 2015, p. 93).

Ademais, a decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes foi proferida pouco

mais de 24 horas da prisão do banqueiro e confrontou entendimento do próprio Supremo

firmado na súmula n. 691: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas

corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal

superior, indefere a liminar”.

Tratou-se de uma situação de flagrante supressão de instância, tendo como

beneficiário o banqueiro.

Em hipótese semelhante, a então Ministra Ellen Gracie havia sido decidido que a

súmula n. 691 deve prevalecer sob pena de supressão de instância, conforme julgamento do

habeas corpus n. 93.462/DF, no dia 10 de junho de 2008.

O investigado foi posto em liberdade, em atendimento à concessão do habeas corpus

n. 95.317. No entanto, o magistrado de 1ª instância competente para o caso, após

representação de reconsideração do delegado de Polícia Federal, decretou a sua prisão

preventiva sob o fundamento da conveniência da instrução criminal, de assegurar a aplicação

da lei penal e de garantia da ordem pública e econômica, no dia 10 de julho de 2008.

Novamente, em menos de 24 horas, o Ministro Gilmar Mendes concedeu outra liminar,

determinando a liberação do banqueiro. Agindo assim, superou por duas e em tempo recorde,

as estatísticas que analisam o tempo médio de concessão de liminares em sede habeas corpus:

no Supremo Tribunal Federal é de vinte e sete dias e, em se tratando do Min. Gilmar Mendes,

a média é de trinta e sete dias (MATTOS, 2015, p. 96).

O desfecho do mérito da ação penal em foco também chamou atenção, tanto pelo

momento em que ocorreu como pelos motivos ensejadores. O término se originou na

oportunidade de um simples pleito no Superior Tribunal de Justiça, em sede de habeas

corpus, da anulação de uma sessão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O Superior

Tribunal, ao julgar, decidiu por maioria em conferir maior extensão ao pedido e,

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

112

consequentemente, anulou todas as provas da operação Satiagraha sob a alegação de

ingerência não autorizada de agentes da Agência Brasileira de Inteligência na investigação. A

corte foi além do que a defesa tinha pleiteado nos autos, generalizou a ingerência do órgão de

inteligência (também havia outras provas produzidas por policiais federais) e violou a Lei n.

9.883/1999 – que estabelece o sistema brasileiro de inteligência e permite o compartilhamento

de informações do órgão. Ao final, a única condenação efetivamente foi a de perda de cargo

de Delegado federal Protógenes Queiroz pelo crime de quebra de sigilo de informações

(MATTOS, 2015, p. 98-105).

O processo criminal da Satiagraha ilustra bem a preocupação de Zephy Teachou

(2014) e Patrick M. Yingling (2013) no tocante à interferência do poder econômico nas ações

do poder público, quando os autores escrevem sobre corrupção não convencional.

O último caso a ser abordado se reveste de polêmicas, pois, como já foi dito aqui, a

depender da convicção ideológica do leitor, adotar-se-á por um entendimento radialmente

oposto. Para evitar qualquer induzimento se aterá da maneira mais objetiva possível aos fatos

– se é que é possível evitar – que resultaram no decreto presidencial de nomeação do ex-

Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Alguns anos após o julgamento do processo criminal rotulado como “Mensalão”,

referente à Ação Penal n. 470/MG (BRASIL, 2012) de competência originária do Supremo

Tribunal Federal, um outro caso tem preponderado nos noticiários nacional e internacional

quando se refere à corrupção Brasil, principalmente pela capacidade financeira dos

investigados, alguns ainda presos preventivamente, pelo vultoso numerário desviado (falam-

se em bilhões de reais) e pelo pernicioso relacionamento com o Estado em um suposto

esquema de fraudes a licitação e lavagem de dinheiro.

Trata-se da investigação conduzida pelo Departamento de Polícia Federal e

Ministério Público Federal, nos autos do processo criminal 5006205-98.2016.4.04.7000, na

13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Paraná da Justiça Federal, intitulada operação Lava-

Jato130.

Ao que parece, é o maior caso de corrupção investigado e levado ao Poder Judiciário

para processo e julgamento, atingindo diversos partidos que compõem a base governista e a

130 O Ministério Público Federal abriu um espaço em seu endereço eletrônico sobre o caso “Lava Jato”, onde detalha algumas medidas já realizadas e expõe didaticamente o modus operandi da suposta organização criminosa (BRASIL, 2016).

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

113

oposição, refletindo que a malversação da coisa pública se estende muito além de um único

grupo político131.

À medida em que avança surgem novos nomes nas investigações, seja através das

polêmicas delações premiadas efetuadas com base na Lei n. 12.850/2013, seja por outras

provas ou indícios, catalisando ainda mais a crise política e econômica no país.

Em meio a esse conturbado ambiente, o nome do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da

Silva começou a ser veiculado na imprensa como um dos possíveis beneficiários do esquema

criminoso descoberto na operação Lava-Jato, notadamente em virtude das indagações acerca

da propriedade de alguns bens registrados em nomes de terceiros e da origem do dinheiro

pago em prestações de serviços a título de palestras.

Na manhã do dia 04 de março de 2016, foi deflagrada a vigésima quarta etapa da

operação Lava-Jato, ocasião em que a Polícia Federal cumpriu mandado de condução

coercitiva em seu desfavor e o conduziu para ser ouvido no referido procedimento

investigativo, além de efetuar cumprimento da ordem judicial de busca e apreensão em sua

residência132.

Poucos dias depois, em 09 de março de 2016, o Ministério Público do Estado de São

Paulo ofereceu denúncia em desfavor do ex-Presidente pelo suposto cometimento dos de

lavagem de dinheiro e falsidade ideológica e representou pela sua prisão preventiva, conforme

se vislumbra nos autos do processo 0017018-25.2016.8.26.0050133.

É preciso destacar que, ao declinar a competência, o Juízo de Direito da 4ª Vara

Criminal da Comarca de São Paulo remeteu os autos com a denúncia e o pedido de prisão

formulados pelo Ministério Público paulista para análise pelo titular da 13ª Vara de Seção

Judiciária do Paraná, onde passou a compor o caso Lava-Jato.

Nesse interim, aumentou o rumor sobre a possível decretação de uma prisão cautelar

em desfavor do ex-Presidente. Concomitantemente, iniciou-se com mais evidência o debate 131 Os números divulgados pelo Ministério Público Federal no caso “Lava Jato” retratam que houve a instauração de 1.114 procedimentos, 484 buscas e apreensões, 117 mandados de condução coercitiva, 113 mandados de prisão cumpridos, 49 acordos de colaboração premiada, 97 pedidos de cooperação internacional, o oferecimento de 37 denúncias em desfavor de 179 pessoas, 93 pessoas condenadas, a estimativa de desfalque de 21,8 bilhões do erário e a já recuperação de 2,9 bilhões de reais (BRASIL, 2016). 132 Em nota divulgada em seu site, o Ministério Público expõe as razões do cumprimento de tais medidas (BRASIL, 2016). 133 No julgamento do processo 0017018-25.2016.8.26.0050, no dia 14 de março de 2016, a Juíza de Direito Maria Priscilla Eernandes Veiga Oliveira, da 4ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, declarou-se incompetente e declinou a competência para a 13ª Vara da Seção Judiciária do Paraná, onde tramita o processo da operação “Lava Jato”. Como consequência lógica pela declinação da competência, absoluta, a magistrada deixou de analisar os pedidos de cautelares formulados na denúncia, bem como o pedido de prisão preventiva, entendendo que não há urgência que justifique a análise, até porque os requerimentos já foram todos divulgados publicamente pelo próprio MPSP, sendo de conhecimento inclusive dos investigados. O andamento do processo 0017018-25.2016.8.26.0050 (SÃO PAULO, 2016).

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

114

em torno de sua nomeação para compor algum Ministério de Estado, onde,

consequentemente, teria foro por prerrogativa de função.

No dia 16 de março de 2016, a Presidência da República anunciou em nota oficial, a

nomeação do seu antecessor para ocupar o cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Civil

(NAIRA, 2016, p. 1)134:

A Presidenta da República, Dilma Rousseff, informa que o ministro de Estado Chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, deixará a pasta e assumirá a chefia do Gabinete Pessoal da Presidência da República. Assumirá o cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Civil o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Assumirá, ainda, o cargo de ministro de Estado Chefe Secretaria de Aviação Civil, o Deputado Federal Mauro Ribeiro Lopes. A presidenta da República presta homenagem e agradecimento ao Dr. Guilherme Walder Mora Ramalho pela sua dedicação.

Paralelamente, ainda no mesmo dia 16 de março de 2016, o Juízo de Direito

responsável pelo processo e julgamento da operação Lava-Jato, na Justiça Federal da

Comarca de Curitiba/PR, suspende o segredo de justiça existente, sob os fundamentos de

interesse público e da publicidade dos atos processuais, expondo conversações travadas entre

Luiz Inácio Lula da Silva e terceiros, dentre os quais, a titular da pasta da Presidência da

República (PARANÁ, 2016, p. 3):

Como tenho decidido em todos os casos semelhantes da assim denominada Operação Lavajato, tratando o processo de apuração de possíveis crimes contra a Administração Pública, o interesse público e a previsão constitucional de publicidade dos processos (art. 5º, LX, e art. 93, IX, da Constituição Federal) impedem a imposição da continuidade de sigilo sobre autos. O levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.

A revelação do conteúdo dos telefonemas interceptados do ex-Presidente Luiz Inácio

Lula da Silva veio a ser o ingrediente detonador de uma incansável discussão política sobre a

validade do decreto de sua nomeação para o cargo de Ministro da Casa Civil.

134 Segundo a nota oficial anunciada pela Presidência da República, com a nomeação o ex-Presidente passa a ocupar o lugar de Jaques Wagner na Casa Civil, o qual é transferido para a chefia do Gabinete Pessoal da Presidência da República. Embora não confirmada, a posse do Sr. Luiz Inácio Lula da Silva no cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Civil é prevista para o dia 22 de março de 2016.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

115

Explicita-se que não se está analisando juridicamente a culpabilidade acerca dos

fatos supramencionados, todavia é imprescindível seu registro cronológico e objetivo.

Também não se está defendendo nem impugnando a (i)licitude das interceptações telefônicas

supracitadas, das delações premiadas colhidas, das conduções coercitivas e nem de quaisquer

outras medidas cautelares que estejam vinculadas ao caso Lava- Jato135.

Persegue-se tão somente uma análise jurídica dotada de imparcialidade sobre a

suposta validade do ato político-administrativo que nomeou o ex-Presidente para o cargo de

Ministro da Casa Civil.

Sabe-se que a multiplicidade e inovação das relações humanas torna impossível a

previsibilidade integral de todas situações possíveis na realidade mundana. Assim, não

raramente, o legislador se utiliza de recursos legais que permitam a subsunção de

determinadas vivências humanas aos postulados de uma mesma norma, desde que não

extrapolem certos limites predeterminados. Podem-se ser citadas as normas penais em branco,

os conceitos jurídicos indeterminados, a aplicabilidade do princípio da insignificância no

Direito Penal etc. Em se tratando do Direito Administrativo, tem-se o tão conhecido poder

discricionário, onde o administrador também está subordinado à lei, porém detém uma

margem de liberdade, conforme os critérios de conveniência e oportunidade, para escolher a

solução que melhor atenda o interesse público, dentre as alternativas possíveis (DI PIETRO,

2015, p. 124).

Trazendo para o caso tomado como paradigma, registra-se que a Presidência da

República justificou a tomada de decisão da nomeação do ex-Presidente em virtude da sua

experiência acumulada em dois mandatos presidenciais, somadas à vida parlamentar, além do

poder de liderança e de articulação política, convenientes e oportunos ao enfrentamento da

grave crise política e econômica que assola o Brasil136.

Ainda em prol do mérito dos atos administrativos, a 1ª Turma do Supremo Tribunal

Federal, no julgamento do RE 475.954 AgR/RS, publicado no DJe 09/09/2013, decidiu que

“não cabe ao Poder Judiciário adentrar no exame da oportunidade e da conveniência de ato do

Poder Executivo no exercício de sua discricionariedade, sob pena de violação do princípio da

135 Sem sombra de dúvidas, do processo do caso “Lava Jato” desdobram-se diversos temas polêmicos, que demandam pesquisas mais profundas e sobre assuntos diversos, alguns muitos combatidos por nomes renomados, a exemplo das delações premiadas negociadas com o Ministério Público Federal em que o investigado abre mão de teses defensivas para antecipar seu status libertatis. 136 Com a divulgação dos telefonas interceptados, após a suspensão do sigilo no processo da “Lava Jato”, a Presidente Dilma Rousseff parte em defesa de seu antecessor, justificando a sua nomeação (PASSARINHO; ALEGRETTI; MATOSO, 2016). Também há a exposição mais minuciosa dos argumentos pela validade do ato político-administrativo de nomeação do ex-Presidente em suas petições de defesa apresentadas no Supremo Tribunal Federal, no Mandados de Segurança Coletivo n. 34.070/DF e n. 34.071/DF.

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

116

separação de poderes...”. Nesse sentido, defender a discricionariedade administrativa implica,

indubitavelmente, pregar a garantia da separação harmoniosa do exercício das funções da

República, consagrada no art. 2º da Constituição Brasileira.

A nomeação e exoneração de Ministro de Estado pelo Presidente da República é

norma constitucional clara e expressa no tocante à fixação de sua competência privativa para

tanto, conforme dispõe o art. 84, inciso I, da Constituição. A princípio, outro Poder, inclusive

o Judiciário, não pode interferir nessa seara de natureza estritamente político-administrativa

afeta privativamente ao Chefe do Poder Executivo Federal sob pena de violação ao princípio

de separação dos poderes (SILVA, 2009, p. 110).

O cargo de Ministro de Estado possui a atribuição primordial de auxiliar diretamente

o Chefe do Executivo Federal na criação, elaboração e execução de políticas governamentais,

de modo que deve ser ocupado por pessoas de sua confiança a ser escolhida

independentemente de crivo prévio ou posterior do Judiciário ou Legislativo. “Os Ministros

atuam, pois, como a longa manus da Presidência da República, na consecução de seus

objetivos político-administrativos” (OLIVEIRA, 2011, p. 213).

Os defensores do ato de nomeação afirmam ainda que as restrições ao mencionado

ato político se encontram delineadas no art. 87 da Carta Magna, estando direcionadas ao

destinatário do cargo, o qual deve preencher os seguintes requisitos cumulativos: 1) ter

nacionalidade brasileira; 2) possuir idade mínima de 21 anos; e 3) estar em pleno gozo de seus

direitos políticos. O nomeado se encontra em pleno exercício dos direitos políticos, é maior de

21 anos e possui nacionalidade brasileira. Nesse diapasão, satisfaz os requisitos para

nomeação ao cargo de Ministro de Estado.

A mera existência de investigação ou processo criminal não tem o condão, de per si,

de obstaculizar sua nomeação, em atenção ao princípio da presunção de inocência. Somente o

trânsito em julgado de sentença condenatória em ação penal poderia implicar na suspensão

dos seus direitos políticos e, consequentemente, seria causa impeditiva da nomeação,

consoante diz o art. 15, inciso V, da Constituição Republicana.

O tema ganhou relevo após a suspensão do segredo de justiça dos autos de processo

da operação Lava-Jato, vindo ao conhecimento público conversações entre o ex-Presidente e

interlocutores, dentre os quais a atual Presidente da República, a qual afirmou que estava

encaminhando o seu termo de posse, que deveria ser utilizado “em caso de necessidade”137.

137 “DILMA: Alô. LILS: Alô. DILMA: Lula, deixa eu te falar uma coisa.

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

117

Afirmou a Presidência da República em nota oficial que enviou antecipadamente o

termo de posse tão somente para que o nomeado assinasse previamente, tendo em vista que

uma eventual ausência à solenidade não impediria a concretização da sua assunção para o

cargo de Ministro de Estado138.

Portanto, o decreto de nomeação do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o

cargo de Ministro de Estado Chefe da Casa Civil, sob aspecto formal, não contém vício.

Reveste-se de aparência de legalidade.

Não obstante a regularidade formal, há de se lembrar sobre o pressuposto teleológico

dos atos administrativos, a finalidade, a qual traduz a perseguição pelo administrador da

consagração do bem jurídico objetivado pelo ato. Fazendo um exame com a discussão central

deste trabalho, pode-se afirmar que a nomeação de um Ministro de Estado, além da

obrigatoriedade de atender o interesse público (sentido amplo), deve simultaneamente ser

realizado com o intuito de buscar uma maior eficiência da gestão pública da referida pasta

(sentido restrito) (DI PIETRO, 2015, p. 253).

Em se tratando de finalidade, aduz-se que é viciada quando o administrador pratica

ato em descumprimento do interesse público (sentido amplo) ou em desrespeito ao objetivo

diverso daquele explícito ou implicitamente previsto em lei139. O vício, embora relacionado às

intenções do gestor, é de natureza objetiva, visto que é suficiente para sua caracterização

apenas o descompasso entre a finalidade real e a legal (TÁCITO, 1974, p. 17-18). LILS: Fala, Querida. "Ahn" DILMA: Seguinte, eu tô mandando o "BESSIAS" junto com o PAPEL pra gente ter ele e só usa em caso de necessidade, que é o TERMO DE POSSE, tá?! LILS: "Uhum". Tá bom, tá bom. DILMA: Só isso, você espera aí que ele tá indo aí. LILS: Tá bom, eu tô aqui, eu fico aguardando. DILMA: Tá?! LILS: Tá bom. DILMA: Tchau. LILS: Tchau, Querida”. Diálogo interceptado transcrito no julgamento da liminar pelo Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança Coletivo n. 34.070/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes. 138 Em nota oficial a Presidência da República, por intermédio da Secretaria de Imprensa e Comunicação Social, divulgou para “conhecimento público, divulgamos cópia do termo de posse assinado hoje à tarde pelo ex-Presidente Lula e que se encontra em poder da Casa Civil. Esse termo foi objeto do telefonema mantido entre o ex-Presidente Lula e a Presidenta Dilma Rousseff, sendo, no dia de hoje, divulgado, ilegalmente, por decisão da Justiça Federal do Paraná. A Presidente assinará o documento amanhã em solenidade pública de posse, estando presente ou não o ex-Presidente Lula. A transmissão de cargo entre o Ministro Jaques Wagner e o ex-Presidente Lula foi marcada para a próxima terça feira. Trata-se de momento distinto da posse. Finalmente, cabe esclarecer que no diálogo entre o ex-Presidente Lula e a Presidente Dilma a expressão ‘pra gente ter ele’ significa ‘o governo ter o termo de posse’, assinado pelo Presidente Lula, para em caso de sua ausência já podermos utilizá-lo na cerimônia de amanhã. Por isso, o verbo não é ‘usa’ mas sim o governo usar o referido termo de posse. Assim, o diálogo foi realizado com base nos princípios republicanos e dentro da estrita legalidade” (MATOSO, 2016). 139 A caracterização do desvio de finalidade pode se dar em seus dois sentidos – amplo e restrito – de modo que se pode concluir que o conceito legal de desvio de finalidade ou de poder, constante no art. 2º, parágrafo único, “e”, da Lei n. 4.717/1965, está incompleto (DI PIETRO, 2015, p. 288).

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

118

Retornando para o cerne deste artigo, sabe-se que a nomeação do ex-Presidente

ocorreu logo após uma série de acontecimentos em seu desfavor (oferecimento de denúncia e

pedido de prisão pelo Ministério Público de São Paulo, encaminhamento da denúncia e

representação de sua prisão para o caso “Lava Jato” após o declínio de competência da Justiça

Paulista, cumprimento de mandado de condução coercitiva em seu desfavor, cumprimento de

mandado de busca domiciliar em sua moradia, delações premiadas invocando expressamente

seu suposto envolvimento etc.).

Como se não bastasse, um outro fato merece destaque: a antecipação de sua posse

do dia 22 para o dia 17 de março de 2016, isto é, logo após a divulgação de diálogos do

nomeado e interlocutores que geraram diversas indagações, inclusive sobre a finalidade real

de sua nomeação, que seria o atendimento de interesse particular, muito discrepante com as

funções de um Ministro de Estado.

Embora não se examine a licitude dos diálogos, é preciso mencionar que a

interceptação telefônica deferida judicialmente gozava de presunção de legitimidade, de modo

que os indícios extraídos do contexto probatório conduziram a Procuradoria-Geral da

República e o próprio Supremo Tribunal Federal, este em caráter liminar, a se manifestarem

no sentido de que o decreto presidencial padecia de desvio de finalidade, porquanto

objetivava conferir foro por prerrogativa de função ao nomeado, em uma afronta ao princípio

do Juiz Natural, contido no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, ambos da Constituição, cujos

pilares são a imparcialidade, competência e a aleatoriedade140.

O desencadeamento dos fatos e a nomeação e posse repentinas demonstram que

uma das finalidades do ato, senão a principal, era de conferir foro por prerrogativa de função

ao ex-Presidente, vez que todas investigações e processos conduzidos em sede de primeira

instância seriam remetidas imediatamente ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria-

Geral da República, por força do foro por prerrogativa de função previsto no art. 102, I, “c”,

da Carta Republicana.

Acrescenta-se que é de conhecimento generalizado que as ações penais de

procedimento originário em tribunais, regido pelos termos da Lei n. 8.038/1990, em

contraposição ao Código de Processo Penal conduzido por juízes de primeira instância,

normalmente se desenvolvem com maior complexidade e morosidade, cujos atrasos podem

140 As decisões do Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança Coletivo n. 34.070/DF e n. 34.071/DF, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes.

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

119

frustrar eventual condenação, levando-se em conta ainda que o ex-Presidente já conta com

mais de 70 anos de idade141.

Desse modo, afirma-se que houve desvio de finalidade porque “o fim de interesse

público vincula a atuação do agente, impedindo a intenção pessoal” (MEDAUAR, 2013, p.

157). Assim, o ato administrativo praticado com objetivo diverso do interesse público ou

específico em lei é viciado. No caso, busca-se frustrar persecução penal da operação “Lava

Jato”.

Embora um pouco extenso, para os padrões que se propõe este trabalho, é

imprescindível citar os ensinamentos de Vladimir Passos de Freitas (p. 3, 2016), onde trabalha

com maestria peculiar às situações de efetivo desvio de finalidade daquelas em que o foro por

prerrogativa de função é uma mera consequência do ato administrativo:

Por exemplo, imagine-se que um médico renomado, portador de títulos acadêmicos, seja convidado para assumir a Secretaria de Saúde do Estado e que responda, no Juizado Especial Criminal, pelo crime de lesões corporais leves, em virtude de um soco desferido em seu vizinho em meio a uma acalorada discussão em assembleia de condomínio. Seria ridículo imaginar que a indicação de seu nome visava subtrair do JEC a competência para processá-lo, passando-a ao Tribunal de Justiça. No entanto, diversa será a situação se a indicação for feita a um dentista envolvido em graves acusações de estupro de pacientes para ocupar o cargo de ministro dos Transportes, no momento exato em que o Tribunal de Justiça julgará apelação contra sentença que o condenou a 20 anos de reclusão. Aí o objetivo será flagrantemente o de evitar o julgamento pelo TJ e a manutenção da sentença condenatória e a sua execução imediata, transferindo o caso para o Supremo Tribunal Federal. O ato administrativo será nulo por evidente desvio de finalidade.

Nesses termos, “independentemente de qualquer outro vício, se o ato foi praticado

contrariando a finalidade legal que justificou outorga de competência para a prática do ato, ele

é nulo.” (FURTADO, 2007, p. 303). As situações de desvio de finalidade se manifestam pela

execução de uma conduta que aparenta estar em conformidade com uma determinada norma

que confere poder à autoridade (regra de competência), todavia, ao seu final, implica em

resultados absolutamente incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento,

razão pela qual é ilícita.

Nota-se que a finalidade primordial da nomeação, conquanto possuísse aparência

regular, tinha finalidade preponderante de atender interesses particulares, qual seja: evitar a

141 Diga-se que o art. 115 do Código Penal reduz de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos. De modo que um eventual julgamento tardio do ex-Presidente poderá resultar na perda do direito estatal de punir pelo decurso do tempo.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

120

prisão cautelar do ex-Presidente naquele momento. É outro caso típico de corrupção não

convencional e, portando, de violação escancarada ao princípio anticorrupção.

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

121

CONCLUSÃO

O Brasil tem sido cenário nos últimos anos de uma série de escândalos envolvendo

questões relacionadas à corrupção, geralmente ocasionada pela confusão entre interesses

públicos e privados, em que estes tendem a prevalecer excessivamente sobre aqueles. Esse

fato constitui um abalo aos postulados básicos que nortearam o surgimento da forma de

governo republicana.

A outrora pacificidade do brasileiro paulatinamente foi se desvanecendo até propiciar

o atual clima de discussão política sobre a ética e o destino do país que vem sendo debatido

no cotidiano, impulsionados pela mídia, internet e, principalmente, massificação do uso de

redes sociais.

Uma inquietude toma conta do país, levando indivíduos sem pretensões político-

partidárias as ruas em prol do respeito à coisa pública. É notória a eclosão de uma forte

demanda social em repúdio à corrupção.

A história demonstra a existência de uma relação direta entre as demandas sociais e o

surgimento de direitos. A própria história da República condiz com a evolução dos direitos

fundamentais, na medida em que foi idealizada e consolidada como uma medida necessária às

invasões arbitrárias do poder público e uma forma mais democrática de Governo.

Em um primeiro momento, exigiu-se do Estado uma postura negativa, não invasiva à

esfera de direitos dos indivíduos. Contudo, mais a frente, verificou-se a necessidade de uma

atuação proativa do poder público visando à efetivação de direitos fundamentais. Atualmente,

passa-se a uma fase em que se discute a legitimação das ações estatais, de modo a convocar os

cidadãos para um amplo e sincero debate sobre as decisões que envolvem os interesses

públicos. Assim, vislumbra-se que a cada fase evolutiva dos direitos fundamentais, um novo

clico de direitos surgia e se acoplava aos anteriores, conferindo maior efetividade aos

reclamos do momento, que variam no tempo e espaço. Na atualidade do país, conclama-se à

expurgação dos males advindos com a corrupção.

No entanto, vislumbra-se que não se trata de tarefa simples e fácil, em especial, em

um país cuja corrupção se encontra fortemente enraizada, cuja concepção e crescimento do

Estado Brasileiro, desde a época colonial até os dias vigentes, ocorreram em um ambiente

prolífero ao desrespeito egoístico à coisa pública. Cada mudança política profunda no Brasil

sempre foi acompanhada paradoxalmente das antigas e repudiadas práticas que maculavam a

coisa pública em prevalência de interesses particulares. Assim, a preocupação com a

probidade assume contornos mais evidentes para a concretização dos direitos fundamentais.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

122

Corroborando essa necessidade ímpar e a deslocando para o contexto iniciado após a

redemocratização com a Constituição de 1998, vislumbra-se indubitavelmente que um dos

principais anseios sociais, manifestados no cotidiano, é o combate efetivo à corrupção e

práticas similares moralmente condenáveis. A implementação de medidas jurídicas que

contemplem o respeito à coisa pública é uma demanda atual brasileira. Pugna-se, portanto,

por uma administração honesta e legal.

O cidadão tem direito à administração honesta e legal, aqui chamada de proba, que

possui status de norma constitucional em virtude de estar prevista em diversos dispositivos da

Constituição, em convenções e tratados internacionais e em normas infraconstitucionais.

Esse direito traduz no único caminho possível para a concretização do princípio da

dignidade da pessoa humana na seara da administração, conferindo ao homem uma existência

com um mínimo de dignidade.

Observa-se que o problema debatido tem como pilar a relação entre o interesse público

e privado. Diante das tensões entre ambos, a doutrina contemporânea tem impugnado o

modelo tradicional da supremacia do interesse público desde que este assumiu perspectiva

especial e relevante com o advento da Constituição de 1988, vez que consagrou a

administração proba como um direito fundamental do cidadão.

Ressalta-se que não se pretendeu reviver o clássico paradigma da supremacia do

interesse público. Entrementes, não se pode simplesmente relegá-lo a um plano inferior com o

argumento de se opor a outros direitos individuais, alterando, em algumas situações, o

entendimento outrora firmado sob a alegação de resguardar direitos individuais. De igual

modo, é desarrazoado.

Atualmente, muito se debate sobre a inexistência da preponderância do interesse

público sobre o privado. Entretanto, falta o mesmo fulgor para a análise das consequências a

médio e a longo prazo do sacrifício do interesse público quando levado aos excessos. Caso

essa tendência se mantenha, certamente o Estado não terá as mínimas condições de manter o

mesmo aparato estrutural, financeiro e jurídico indispensáveis para a concretização dos

direitos fundamentais de todos outros cidadãos, em um futuro não tão distante.

Buscou-se neste trabalho uma proposta pacificadora para esse paradoxo através da

reconstrução do conteúdo e alcance do interesse público à luz da demanda social brasileira

atual, tomando como parâmetro, para tanto, a hermenêutica filosófica. Nela, conceitos como

linguagem, historicidade, tradição, fusão de horizontes e compreensão reconstroem a forma

como o cidadão se enxerga inserido no ambiente republicano, assim como seu papel social e

sua responsabilidade política.

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

123

Nesse raciocínio, é imprescindível atentar para as peculiaridades da historicidade

brasileira no tocante à proliferação do ambiente corrupto e imoral na administração pública e

da ineficácia dos respectivos instrumentos de controle e fiscalização, ainda que previstos na

Constituição.

Assim, observou-se que a compreensão do intérprete tais situações, obtida no diálogo

entre campos de horizontes distintos, de forma geral não está efetivamente atingido a

finalidade da norma constitucional.

Nessa conjectura, a hermenêutica filosófica assume papel fundamental para a

compreensão do Direito. Longe de se pretender à elaboração de um método infalível, capaz de

ser aplicado com neutralidade e que conduza o jurista a um sentido preexistente da norma, a

hermenêutica filosófica desenvolve estratégias úteis à concretização do direito do cidadão à

administração proba.

É notório que o regime jurídico vigorante nas normas que dizem respeito à

administração proba, consagrados pela ordem constitucional, não se têm revelado

instrumentos idôneos para satisfazer essa nova demanda, de tal modo que é imprescindível

uma releitura significativa do interesse público, com supedâneo na hermenêutica filosófica,

conferindo força normativa suficiente para deflagrar toda sua eficácia no ordenamento

jurídico e social do país.

Esse assunto merece atenção especial em se tratando de casos em que são discutidas

a violação aos postulados da administração proba, visto que é frequente a adoção nos

Tribunais de interpretações que desprestigiam o interesse público em prol de garantias

individuais dos seus supostos violadores, servindo, na prática como instrumento de

impunidade nos ilícitos de colarinho branco e congêneres.

Malgrado a crise de respeito à coisa pública que culminou em uma série de

acontecimentos negativos a nível nacional, é possível a percepção de efeitos benéficos, como

a criação de um ambiente favorável a transformações sociais positivas. É uma oportunidade

ímpar de evolução. Dessa nova realidade significativa, em conformidade com o contexto

histórico-linguístico nacional, abre-se um maior caminho para a irradiação dos seus

postulados em toda administração pública, direta e indireta e de qualquer dos Poderes

constituídos, bem como nas relações com os particulares e nas destes entre si.

De conseguinte, a própria compreensão do Direito não deverá se esquivar dessa nova

realidade, obviamente compatibilizando com demais normas jurídicas ou mediante o recurso

da ponderação quando o intérprete tiver que fazer escolhas de normas plausíveis para o caso

concreto.

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

124

A administração proba é necessária e relevante, notadamente para a concretização de

uma existência humana com o mínimo de dignidade pelo Estado, mas, em um governo

republicano, cujo núcleo essencial exige o respeito aos interesses públicos, inclusive com uma

demanda social pela reconstrução de seu significado, é preciso ir além. É nesse além que irá

emergir o princípio anticorrupção.

Trata-se de princípio constitucional implícito e autônomo, decorrente do arquétipo da

Constituição, erguido em um regime democrático, sob forma republicana e em consagração

da administração proba como direito fundamental. Sua concretização é uma necessidade

premente diante do contexto histórico-linguístico brasileiro, fundamentado e dando sentido à

República e centralizando a luta contra corrupção no centro de todo ordenamento jurídico.

Assevera-se que o princípio anticorrupção é mais abrangente do que o da

administração proba porque não se limita à corrupção convencional (quid pro quo), em que

para configuração do ilícito é preciso que se prove a existência, ao menos, de um negócio

explícito e específico. Contempla também situações não convencionais, em que são comuns a

interferência do poderio econômico e outros fatores na esfera de atuação pública.

Conclui-se, assim, dois pontos fundamentais: 1) a concretude do princípio

anticorrupção depende de um modelo amplo da compreensão sobre o que seja corrupção; e 2)

o princípio anticorrupção é detentor de uma liga inseparável da República, possuindo uma

amplitude maior do que o princípio da administração proba.

O princípio anticorrupção, em sendo imanente da República, possui dois

pressupostos cumulativos: 1) a da moralidade política; e 2) a da estrutura normativo político-

jurídico. As duas devem ser conjugadas em uma relação simbiótica para a concretização do

princípio anticorrupção. Faltando-lhe, a outra não terá a capacidade, de per si, de consagrar o

princípio anticorrupção. Veja-se que o Brasil possui toda uma estrutura normativa político-

jurídica consagrada na Constituição de 1988, em leis e em tratados e convenções

internacionais, além de todas disposições administrativas que regem o serviço público. A

moralidade política, por sua vez, está relacionada ao sentimento cívico do cidadão pela

República, pela sua responsabilidade na fiscalização e utilização da coisa pública também é

dos cidadãos como integrantes da sociedade.

Portanto, a existência de apenas a estrutura sem a moralidade política impregnada

nos cidadãos, trocar-se-á os corruptos e corruptores por outros. O princípio não visa

repressão, mas a adoção de práticas efetivas que reduzam os índices de corrupção a níveis

toleráveis. Por outro lado, a presença da moralidade política sem a estrutura pode conduzir à

demagogia, na medida em que os agentes públicos e particulares envolvidos com a corrupção

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

125

profeririam um discurso em prol da moralidade pública, mas confiando na impunidade em

razão da inoperância da estrutura. Uma vez constatada a moralidade política, a estrutura será

reforçada. Trata-se de um movimento de mão dupla, dinâmico. Um reforça o outro. Atenta-se

que a afloração da moralidade política na sociedade também incidirá no agente público, tanto

em seu dever de ser honesto e mais eficiente possível como também na busca para isso.

A concretização do princípio anticorrupção surge como o caminho mais eficiente ao

atendimento da demanda brasileira, diante do panorama atual, ampliando o alcance de

preservação da coisa pública para situações além da estrita corrupção, todavia, requer, além

de uma estrutura legal, a conscientização do cidadão em assumir o seu papel de ator político

responsável, fiscalizador e transformador da sociedade.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

126

REFERÊNCIAS

A LAVA JATO em números. Endereço eletrônico do Ministério Público Federal. 2016. Disponível em: <http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/resultados/a-lava-jato-em-numeros-1> Acessado em: 26 jul. 2016.

ABREU, João Capistrano de. Capítulos da história colonial: 1500-1800. Biblioteca básica brasileira. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1022/201089.pdf?sequence=4> Acessado em: 20 nov. 2016.

ALBAGLI, Alexandre. O direito fundamental à probidade administrativa: valor constitucional da probidade, contornos normativos e repercussões jurídico-legais. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão: UFS, 2014.

ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Trad. de Buenaventura Pellisé Prats. Tomo I. Barcelona: Casa Editorial Boch, 1970.

ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático. Rio de Janeiro: Revista do Direito Administrativo, 1999.

ALEXY, Robert. Teoria discursiva do direito. Trad. de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

APROVADA quarentena para magistrados e membros do MP que querem se candidatar. Agênciasenado. 2015. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/07/15/aprovada-quarentena-para-magistrados-e-membros-do-mp-que-querem-se-candidatar> Acessado em: 20 jan. 2017.

ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 159-180, 1998.

BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da criação do Conselho Nacional de Justiça. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al (Coord.). Reforma do judiciário primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 425-445.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

127

BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.

BASTOS, Celso. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

BEDENDI, Luis Felipe Ferrari. Ainda existe o conceito de mérito do ato administrativo como limite ao controle judicial dos atos praticados pela administração? In: DI PIETRO, Maria Sylvia; RIBEIRO, Carlos Vinicius Alves. (Coord.) Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 278-302.

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plabiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991.

BERTONCINI, Mateus. Ato de improbidade administrativa: 15 anos da lei 8.429/1992. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

BERTONCINI, Mateus. Direito fundamental à probidade administrativa. In: OLIVEIRA, Alexandre Albagli.; CHAVES, Cristiano; GHIGNONE, Luciano (Coords.). Estudos sobre improbidade administrativa em homenagem ao prof. J. J. Calmon de Passos. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2012,

BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BOBBIO, Noberto. Dicionário de política. Trad.d de Carmen C. Varriale et al. Brasília: Editora Universidade Brasília, 1998.

BOLESINA, Iuri; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. O mínimo existencial e o controle jurisdicional de políticas pública: análise de sua operacionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Curitiba: Multideia, 2013.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BRASIL. Decreto-lei n. 3.689/1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm> Acessado em: 20 jan. 2017.

BRASIL. Agência Nacional de Telecomunicações. 1997. Disponível em: <http://www.anatel.gov.br/institucional/> Acessado em: 06 jan. 2017.

BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Constituição de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/principal.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

128

BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acessado: 30 jun. 2016.

BRASIL. Decreto n. 3.678/2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3678.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Decreto n. 4.410/2002. 2002a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4410.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Decreto n. 5.687/2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5687.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Enunciado n. 7 da V jornada de direito civil. 2012. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil> Acessado em: 20 jan. 2017.

BRASIL. Lei n. 1.079/1950. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L1079.htm>. Acessado em: 02 mar. 2016.

BRASIL. Lei n. 10.406/2002. 2002b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acessado em: 02 jul. 2016.

BRASIL. Lei n. 10.467/2002. 2002c. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10467.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 12.683/2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12683.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 12.846/2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 12.965/2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm> Acessado em: 20 jan. 2017.

BRASIL. Lei n. 3.164/1957. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3164.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 3.502/1958. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3502.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 4.717/1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4717.htm>. Acessado em: 20 jul. 2016.

BRASIL. Lei n. 8.429/1992. Disponível em:

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

129

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 9.613/1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9613.htm> Acessado em: 18 nov. 2016.

BRASIL. Lei n. 9.883/1999. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9883.htm>. Acessado em: 24 jan. 2017.

BRASIL. Ministério Público Federal. A Lava Jato em números. 2016a. Disponível em: <http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/resultados/a-lava-jato-em-numeros-1> Acessado em: 10 de abr. 2016.

BRASIL. Ministério Público Federal. Caso Lava Jato. 2016b. Disponível em: <http://lavajato.mpf.mp.br/lavajato/index.html> Acessado em: 10 de abr. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação declaratória de constitucionalidade n. 12, pleno. Distrito Federal. Autor: Associação dos Magistrados do Brasil. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. 2008a. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606840> Acessado em: 22 jan. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações declaratórias de constitucionalidade n. 43 e 44, pleno. Julgado em 05 de outubro de 2016. 2016c. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326754> Acessado em: 22. jan. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações penal n. 470. 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/relatoriomensalao.pdf> Acessado em: 10. abr. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n. 93.462/DF, 2ª Turma. Julgado em: 10 jun. 2008b.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar no mandado de segurança coletivo 34.070/DF. 2016d. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/gilmar-suspende-lula-casa-civil.pdf>. Acessado em: 10 abr. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar no mandado de segurança coletivo 34.071/DF. 2016e. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/medida-cautelar-mandado-seguranca-34071.pdf>. Acessado em: 10 abr. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 13, pleno. DJ 29 de agosto de 2008c. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=1227> Acessado em: 22 jan. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 691, pleno. DJ 09 de dezembro de 2003. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=691.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas> Acessado em: 24 jan. 2017.

BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

130

CALIXTO, Rubens Alexandre Elias. Ação por improbidade administrativa: críticas e proposições. Tese (Doutorado em Direito das Relações Sociais, Direito Processual)- PUC, São Paulo: PUC, 2010.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1998.

CARDOSO, Henrique Ribeiro. A linguagem na hermenêutica filosófica de Gadamer. Paper apresentado no curso de mestrado da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2016.

CARDOSO, Henrique Ribeiro. Controle da legitimidade da atividade normativa das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação: a teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: Juruá, 2013.

CARLI, Carla Veríssimo de. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2014.

CARNEIRO JÚNIOR, Almicar Araújo. A república brasileira e o princípio constitucional anticorrupção. Tese (Doutorado em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI)- Faculdades de Direito e Economia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2015.

CARVALHO, Mario Cesar. Brasil é líder em ranking de propina nos Estados Unidos. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 jan. 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/01/1849403-brasil-e-lider-em-ranking-de-ropina-nos-estados-unidos.shtml> Acessado em: 14 jan. 2017.

CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. 17. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

CEZAR, Peluso. Constituição, direitos fundamentais e democracia: o papel das supremas cortes. 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/eua_cp.pdf> Acessado em: 20 jan. 2016.

CLÈVE, Clèmerson Merlin (Coord.). Constituição, democracia e justiça: aportes para um constitucionalismo igualitário. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 7 do Conselho Nacional de Justiça, de 18 de outubro de 2005. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_07.pdf> Acessado em: 06 jan. 2017.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

131

COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. Tese (Doutorado em Direito)- Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2008.

COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. eBooksBrasil. São Paulo, EDIMARIS (2006). Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fustel%20de%20Coulanges-1.pdf> Acessado em: 10 jan. 2016.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

DECLARAÇÃO de direitos do homem e do cidadão de 1789. Biblioteca virtual de direitos humanos da Universidade de São Paulo. [200-?]. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acessado em: dia 10 ago. 2015.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

DISCURSO de Ulysses Guimarães. Discurso da assembleia nacional constituinte proferido na sessão de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20-%20DISCURSO%20%20REVISADO.pdf/> Acessado em: 06 nov. 2016.

ENTENDA a operação Satiagraha da Polícia Federal. Uol. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/2009/03/19/ult5773u850.jhtm> Acessado em: 24 jan. 2017.

ESCOLA, Jorge Hector. El interés público como fundamento del derecho administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 1989.

ESTADOS UNIDOS. Constituição. [200-?]. Disponível em: < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/constituicao-dos-estados-unidos-da-america-1787.html> Acessado em: 11 jan. 2017.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da USP, 1995.

FERNANDES, Bernado Gonçalves. Curso de direito constitucional. Salvador: Jus Podivm, 2014.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

132

FILGUEIRAS, Fernando. Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008.

FREITAS, Vladimir Passos de. Nomeação para dar foro privilegiado a réu é ato administrativo nulo. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-13/segunda-leituranomeacao-dar-foro-privilegiado-reu-ato-administrativonulo#_ednref5> Acessado em: 18 mar. 2016.

FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do estado: teoria constitucional e relações internacionais. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2013.

FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2015.

GAFILAT. Grupo de ação financeira da América Latina. 2000. Disponível em: <http://www.gafilat.org/content/inicio/> Acessado em: 04 jan. 2017.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GARCIA, Mônica Nicida. Responsabilidade do agente público. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo: porque os brasileiros não confiam nos políticos e amam o estado. Rio de Janeiro: Record, 2015.

GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Globo, 2014.

GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da república no Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013.

GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Atualizador por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 1 v.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.

INTERNACIONAL ESTADÃO. Discurso de despedida do então presidente norte americano Barack Obama. 2017. Disponível em: <http://internacional.estadao.com.br/blogs/eua-2016/leia-integra-do-discurso-de-despedida-de-barack-obama/> Acessado em: 20 jan. 2017.

JUSTEN FILHO Marçal. O direito administrativo reescrito: problemas do passado e temas atuais. Revista Negócios Públicos, ano II, n. 6, 2009.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

133

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Casagraf, 2007.

KAUT, Vanessa Nunes; MEDRADO, Vitor Amaral. Os juristas sabem do que estão falando ou sobre o que sabem? Um diálogo entre argumentação jurídica e hermenêutica filosófica. In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo; COSTA, Ilton Garcia da; SARTORI, Vitor Bartoletti (Coord.). Teorias da Justiça, da decisão e da argumentação jurídica. Florianópolis: CONPEDI, 2015.

LAWN, Chris. Compreender Gadamer. 3. ed. Tradução de Hélio Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2011.

LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.

LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La seguridade jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1994.

MACHIEAVELLI, Niccolò. O príncipe. eBooksBrasil.com. 2009. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/principe.pdf> Acessado em: 20 dez. 2016.

MARKON, Jerry. Ex-Rep. Jefferson (D-La.) gets 13 years in freezer cash case. Washingtonpost. 2009. Disponível em: <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2009/11/13/AR2009111301266.html> Acessado em: 10 jan. 2017.

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.

MATOSO, Filipe. Planalto divulga termo de posse só com a assinatura de Lula. 2016. G1.Globo.com. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/03/lula-recebeu-e-assinou-termo-de-posse-nesta-quarta-veja-documento.html> Acessado em: 10 abr. 2016.

MATTOS, Diogo Castor de. A seletividade penal na utilização abusiva do habeas corpus nos crimes de colarinho branco. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica)-Universidade Estadual do Norte do Paraná. Jacarezinho: UENP, 2015.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 17. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013.

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

MEDICI, Ana Paula. As arrematações das rendas reais na São Paulo setecentista: contratos e mercês. In: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; MARSON, Izabel Andrade (Org.). Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 37-68.

MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29. Ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

134

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

MORO, Sérgio Fernando. Não é dos astros a culpa. Jornal Folha de São Paulo, Edição de 24 de junho de 2014.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

NAIRA, Trindade. Dilma Rousseff anuncia oficialmente a nomeação de Lula para casa Civil. Correio Braziliense. 2016. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2016/03/16/internas_polbraeco,522450/dilma-rousseff-anuncia-oficialmente-a-nomeacao-de-lula-para-a-casa-civ.shtml>. Acessado em: 10 abr. 2016.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

O TRIUNFO inesperado de Donald Trump: quem é o presidente eleito dos EUA. BBC. 2016. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37795804> Acessado em: 18 jan. 2017.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro?. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 220, p. 69-107, 2000.

OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

PALMER, Richard. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições, 1997.

PARANÁ. 3ª Vara Federal de Curitiba. Pedido de quebra de sigilo de dados e/ou telefônicos n. 5006205-98.2016.4.04.7000/PR. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/decisao-levantamento-sigilo.pdf>. Acessado em: 10 abr. 2016.

PASSARINHO, Nathalia; ALEGRETTI, Laís; MATOSO, Filipe. Dilma exibe termo de posse de Lula e chama grampo de ‘ilegal’. G1.Globo.com. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/03/em-posse-dilma-diz-que-lula-e-maior-lider-politico-do-pais.html> Acessado em: 10 abr. 2016.

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

PIACENTINI, Dulce de Queiroz. Vygotsky, Freire e Morin e a educação para os direitos humanos. In: COLAÇO, Thais Luiza et al. (Org.). Aprendendo a ensinar direito o direito. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 167-189.

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

135

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

POLÍCIA prende vice-presidente do facebook na América Latina em SP. G1.Globo.com. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/03/policia-prende-representante-do-facebook-na-america-do-sul-em-sp.html> Acessado em: 06 jan. 2017.

PRESSE, France. Obesidade persiste em crianças e adolescentes dos Estados Unidos. G1.Globo.com. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/04/obesidade-persiste-em-criancas-e-adolescentes-dos-estados-unidos.html> Acessado em: 12 jan. 2017.

RAMOS, André de Carvalho. O combate internacional à corrupção e a lei da improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio Lei et al. (Org.). Improbidade administrativa: comemoração pelos 10 anos da Lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 1-34.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIBEIRO, João Ubaldo. Política: quem manda, como manda. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

SÁ, Waltenberg Lima de. O Círculo Hermenêutico como Fator de Legitimação da Jurisdição Constitucional. In: Ubirajara Coelho Neto. (Org.). Temas de Direito Constitucional: estudos em homenagem ao prof. Carlos Augusto Alcântara Machado. 1ed.Aracaju: Clube de Autores, 2013, v. único, p. 181-199.

SÃO PAULO. 4ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo. Sentença no processo n. 0017018-25.2016.8.26.0050. 2016. Disponível em <http://estaticog1.globo.com/2016/03/14/Decisao_Maria_Priscilla_Oliveira.pdf>. Acessado em: 10 abr. 2016.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen, 2006.

SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. Interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23-116.

SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

SECOND, Charles-Louis de. Do espírito das leis. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.

SEÑA, Jorge F. Malem. La corrupción: aspectos éticos, económicos, políticos y jurídicos. Barcelona: Gedisa, 2014.

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

136

SENKOVSKI, Antônio. “Professor Pardal”, “Vassourinha”, “Satiagraha”... saiba como surgem os nomes das operações da PF. Gazeta do Povo. 2014. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/professor-pardal-vassourinha-satiagraha-saiba-como-surgem-os-nomes-das-operacoes-da-pf-e9fvjyn3h2t66mdpjx0ejm632> Acessado em: 24 jan. 2017.

SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Qu’est-ce que le tiers état?. Paris: Éditions du Boucher, 2002.

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SILVA NETO, Manoel Jorge e. O constitucionalismo brasileiro tardio. Brasília: ESMPU, 2016.

SILVA, Denise Martins Moura. Limites da supremacia do interesse público quando contrapostos ao interesse do cidadão. Dissertação. (Mestrado em Direito)- Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão: UFS, 2013.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica jurídica. In: BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2013.

SOBRANE, Sérgio Turra. Improbidade administrativa: aspectos materiais, dimensão difusa e coisa julgada. São Paulo: Atlas, 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luís Bolzan de. Ciência Política e teoria do estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

TÁCITO, Caio. Teoria e prática do desvio de poder. Revista de Direito Administrativo, vol. 117:1-18, jul./set. 1974. Disponível em: <http://zip.net/bvs436> ou <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/40110> Acessado em: 16 abr. 2016.

TEACHOUT, Zephyr. Corrupcion in America: from Benjamin Franklin’s snuff box to Citizens United. London: Harvard University Press, 2014.

TEIXEIRA MARTINS Advogados. Defesa de Luís Inácio Lula da Silva no mandado de segurança n. 34.070/DF. 2016a. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/pedido-lula-gilmar-mendes-34070.pdf> Acessado em: 10 abr. 2016.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE … · Nessa conjectura, suscitase uma análise político-jurídica, dentro do contexto - histórico-linguístico da hermenêutica

137

TEIXEIRA MARTINS Advogados. Defesa de Luís Inácio Lula da Silva no mandado de segurança n. 34.071/DF. 2016b. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/pedido-lula-gilmar-mendes-34071.pdf> Acessado em: 10 abr. 2016.

TRANSPARENCY International. Corruption perceptions index 2015. Disponível em: <https://www.transparency.org/cpi2015/> Acessado em: 18 nov. 2016.

TRAYNER, David. Texas judge orders defendant to marry girlfriend in 30 days – or go to jail. Independent. 2015. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/americas/texas-judge-orders-defendant-josten-bundy-to-marry-girlfriend-in-30-days-10447316.html> Acessado em: 10 jan. 2017.

TRUMP assina decretos banindo lobby e reestruturando Conselho de Segurança. O Povo online. 2017. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/noticias/mundo/ae/2017/01/trump-assina-decretos-banindo-lobby-e-reestruturando-conselho-de-segur.html> Acessado em: 18 jan. 2017.

UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA (UNAMA). A Carta de Pero Vaz de Caminha. Belém, PA: NEAD Núcleo de Educação a Distância. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf Acesso em: 18 nov 2016.

YINGLING, M. Patrick. Conventional and unconventional corruption. Duquesne: Copyright Duquesne University, 2013.