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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
FUNDAMENTOS CONCEITUAIS DA PSICOLOGIA HUMANISTA : AUTOCONHECIMENTO E L IBERDADE NA F ILOSOFIA EXISTENCIAL
Rafael Carlos Neófiti
São Carlos
2005
Monografia realizada como parte das exigências para obtenção do Grau de Bacharel no Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Débora Cristina Morato Pinto
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RESUMO O processo de autoconhecimento e o conceito de liberdade têm chamado a atenção de
filósofos e teóricos da psicologia, e sobretudo tem sido sua preocupação durante os séculos
XIX e XX, estendendo-se até os dias atuais. Tal interesse anda lado a lado das mudanças
ocorridas no contexto mundial nos últimos tempos, além da ruptura com as tradições
racionalista e mecanicista modernas e da crescente ansiedade e angústia existenciais nas
quais o homem de hoje se encontra. Neste sentido, a filosofia dos existencialistas Sören
Kierkegaard e Jean-Paul Sartre, através de suas concepções sobre o sujeito livre, vêm
contribuir para uma melhor compreensão da crítica situação humana. A psicologia dos
últimos tempos tem sido influenciada por tais contextos, sendo a psicologia humanista de
Rollo May a que de forma mais notável incorporou tais influências e articulou os conceitos
de autoconhecimento e liberdade. Assim, na presente pesquisa teórica, estas duas noções
foram enfocadas de acordo com os existencialismos de Kierkegaard e Sartre, numa
tentativa de encontrar convergências e diferenças entre os dois conceitos nestas filosofias, e
ao mesmo tempo identificar as influências destes autores na psicologia humanista de Rollo
May. Para tanto, alguns textos destes três autores foram usados, além de textos de
comentadores destas doutrinas ou teorias. Os resultados revelam que há influências do
existencialismo na psicologia humanista, no sentido de que ambas enfatizam o devir
humano e a possibilidade de o homem conseguir enfrentar sua existência trágica. Também
revelam diversas semelhanças entre conceitos dos dois existencialismos, bem como entre
alguns conceitos destes com a psicologia humanista de Rollo May, tais como a
responsabilidade, a escolha, a angústia, a ansiedade, o desespero, a intersubjetividade e a
consciência.
Palavras-chave: existencialismo; psicologia humanista; autoconhecimento; liberdade; eu; consciência.
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ÍNDICE Resumo .................................................................................................................... 2
Agradecimentos ....................................................................................................... 4
Introdução ................................................................................................................ 5
1: Kierkegaard: Desespero, Angústia e a Existencia Paradoxal .............................. 13
2: Rollo May: Ansiedade e Dilema Humano .......................................................... 39
3: A Dinâmica Dialética na Psicologia e no Indivíduo .......................................... 63
4: Sartre: Consciência e Liberdade ......................................................................... 71
Conclusão ................................................................................................................ 97
Referências Bibliográficas ...................................................................................... 100
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Agradecimentos
Bom, quero agradecer muitas pessoas, e espero que contemple aqui todas aquelas que me deram apoio durante todo o processo de escrita dessa monografia. Se bem que, se eu for fazer isso, vou quase ter de
escrever uma nova monografia, praticamente!! Mas enfim, vamos lá. Quero agradecer à minha orientadora Débora, pois ela foi uma excelente orientadora, me dando um apoio
imenso nos momentos em que eu estava mais desesperado ao ter de entregar relatórios ou outros documentos para a FAPESP de última hora! Sempre de última hora...! Agradeço por ela ter me agüentado com paciência
nestes momentos! Posso dizer que ela sempre me indicou a direção certa, pois sempre que o fez, os resultados foram felizes.
Agradeço também à FAPESP, que financiou este trabalho. Queria agradecer também meu amigo Jonas, que num momento meio difícil na minha vida, e que está
relacionado de alguma forma com a monografia, me ofereceu e efetuou uma grande ajuda, da qual sempre vou me lembrar com muito carinho. Ah, e é claro, pelas vezes que a gente filosofou junto, seja lá o lugar onde
estivéssemos! Quero agradecer também à minha família, meu pai José Carlos, minha mãe Jane, minha irmã Cíntia, pois
todos tiveram de suportar momentos em que eu podia estar matando saudades, mas tinha de estar ali em frente ao computador fazendo este trabalho! Eu sinto que o que eu sou hoje devo muito aos meus pais, a quem amo
muito e trago eternamente no meu coração... Quem mais?... Tanta gente!! Agradeço também aos meus amigos e amigas da faculdade, nos quais penso já
com uma tremenda nostalgia ao ver que daqui a pouco vamos nos separar... Agradeço a eles porque despertam em mim sentimentos, convivi com eles situações, e muito do que se passou acabou servindo de inspiração para rever meus próprios conceitos de autoconhecimento, liberdade e existência! Por mais que fique longa esta parte de agradecimentos, não estou nem aí: quero citar o nome de todos! Carol, Sabrina,
Naila, Laila, Letícia, Aline, Juliana, Caroline, Danilo, Lucas, Neto, Fabiano, Samuel, Luiz, Jonas (de novo), Glauce, Luciana, Melissa, Paola, Miriam, Murilo, Deborah, Renata... Ah, e também aos amigos que não são
da faculdade: Paula, Vivian, Marli, Marcos... bom, espero ter falado o nome de todos! Se não falei, perdoem o meu cérebro, pois o meu coração abarca vocês também, podem estar certos.
Também queria agradecer — olha que loucura — aos livros que usei neste trabalho, e também aos que estavam fora do contexto acadêmico e do corpo da monografia, e que, apesar disso, foram muito
esclarecedores para o tema. Se bem que... acho que deveria agradecer aos autores destes livros, não aos livros em si... Bom, essa é uma questão filosófica que deixarei, quem sabe, para uma futura monografia!
Continuando com os agradecimentos meio anti-convencionais, agradeço às minhas angústias existenciais e minhas vivências emocionalmente caóticas por terem me inspirado neste tema, com o qual, ao final de tudo, aprendi muito. Pensando bem, deveria agradecer não às crises e vivências em si: deveria agradecer ou a mim
mesmo (se for verdade este negócio de que a existência precede a essência), ou a Deus, afinal de contas foi Ele que me criou (será mesmo?...)... É mais uma questão filosófica extensa... Bom, para não ter briga,
agradeço a mim mesmo e a Deus, pronto! Afinal de contas, Deus e eu já estamos cansados de ficar brigando um com o outro!
“Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós próprios.” Fernando Pessoa
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INTRODUÇÃO
Sócrates, na Grécia Antiga, já dizia: “Conhece-te a ti mesmo”. Tudo se origina na
questão “Quem sou eu?”, que raras vezes pode ser formulada sem estar acompanhada de
sentimentos incômodos. Ela acaba sendo acompanhada também de várias outras, tão
perturbadoras quanto: “para onde vou?”, “qual o significado da vida?”, “o quê significa ser
humano?”, “onde buscar propósito?”, “existe um desígnio no Universo?”... e assim por
diante. As literaturas filosófica e científico-psicológica, sem falar das outras áreas do
conhecimento humano, comportam discussões das mais diversas sobre eu, identidade,
conhecimento de si. E a questão, além do mais, também se relaciona com os principais
problemas e conflitos interiores de nosso tempo. Basta vislumbrar qual a situação do
homem contemporâneo para se enxergar do que aqui se fala.
O homem contemporâneo, segundo Rollo May (1977; 1987) sente-se como se
tivesse perdido sua significação, tomado pelo sentimento de vazio. Vem ocorrendo uma
perda de sentido para o ser humano, como descreveu Frankl (1973), com a chamada
neurose noogênica, ou seja, a frustração e o vácuo existenciais. Bühler (1975) diz que todas
estas interrogações, que muitos consideram fazendo parte apenas da adolescência, passam
muito além desta fase. Há monotonia, tédio, medo da solidão, sensação de inutilidade, de
incapacidade de fazer algo a respeito da própria vida e do mundo ao redor. E o foco central
deste estado de intranqüilidade é a perda da consciência do eu (May, 1977).
O conceito de eu é um dos mais discutidos e controvertidos da Filosofia e da
Psicologia. Mas muitas vezes certos teóricos não se atém a aspectos meramente descritivos,
e se interessam pela interação e inter-relação que este eu estabelece com o mundo, e pela
relação que estabelece consigo mesmo. Em particular, este último tipo de relação tem
chamado a atenção. De acordo com Rollo May (1987), é no ser humano, e somente nele, é
que observamos a capacidade de autoconsciência e tal característica o constitui.
A relação do eu consigo mesmo parece estar estreitamente vinculado a lutas e
conflitos interiores. May (1987) diz que a pessoa que se lançar nesta busca descobrirá que
deve aprender a sentir, a experimentar e a querer; e principalmente aprenderá a lutar contra
o que a impede de sentir e querer. E também descobrirá que ela tanto pode estar sendo
vítima de determinações, acorrentada em vários aspectos da vida, quanto pode tomar as
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rédeas nas mãos e conduzir sua existência como preferir; eis o chamado dilema humano: o
homem como objeto ou sujeito. Estamos tratando, portanto, de libertação do ser humano
como um todo; estamos tratando de liberdade. A liberdade não mais aparece como um
problema apenas especulativo; radica-se, isso sim, nas atitudes do homem (Abbagnano,
S/d). Este também é um tema controvertido e, segundo May (1987), anda junto à
autoconsciência. A relação que geralmente se estabelece entre estes conceitos se evidencia
da seguinte forma: se uma pessoa desconhece que é controlada por hábitos,
condicionamentos, etc., etc., ela é menos livre. Entretanto, talvez a relação se mostre
envolvendo diversos outros processos. E é com a mútua contribuição entre Psicologia e
Filosofia que podemos ter em vista, de forma mais clara, que processos são esses, ou que
conceitos são relevantes. Rollo May (1909-1994), enquanto autor que explorou de maneira
mais persistente tal relação, pode ser tomado como ponto de partida. Psicanalista
americano, este autor aborda em sua obra questões como a inocência, a criatividade, a
vontade, a coragem, a ansiedade, a liberdade e o autoconhecimento. Denuncia o “mundo
anônimo” em que vivemos, responsável pela perda da identidade, do sentido do eu no
homem ocidental contemporâneo. Também aborda criticamente a psicologia na atualidade,
levantando a questão do sujeito e objeto, ou subjetividade e objetividade. May se enquadra
no que hoje se denomina psicologia existencial-humanista.
Surge no início dos anos 60 a chamada “Terceira Força”, a psicologia humanista
(Matson, 1975; Schultz, 1981; Teles, 1994). Desenvolvida inicialmente por Abraham
Maslow (1908-1970) e Carl Rogers (1902-1987), esta escola se contrapôs ao
comportamentalismo e à psicanálise freudiana, por considerar tais escolas desumanizantes,
ou deterministas (Schultz, 1981). Os psicólogos humanistas enfatizam aspectos como a
experiência consciente, o livre-arbítrio, o poder de criação individual, a responsabilidade e
o sentido da vida (Schultz, 1981). Segundo Hall, Lindzey e Campbell (2000), esta
psicologia é uma teoria organísmica, ou holística, que é uma tentativa de unir o corpo e a
mente, separados desde Descartes, e tratar o organismo como um todo unificado, em
contraposição ao dualismo e à tradição do associacionismo. Enfatiza a unidade, a
integração, não estudando uma entidade isoladamente; o indivíduo seria movido por uma
pulsão ou motivo soberano, o de auto-atualização ou auto-realização, isto é, os seres
humanos estão sempre buscando realizar suas potencialidades. De acordo com Matson
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(1975), tenta-se explicar o homem não como ele é, mas como devia ser, num compromisso
com o devir humano. Ainda segundo este autor, a psicologia humanista não se constitui
num corpo único de teoria, mas numa tendência de várias escolas de pensamento (na
psicanálise, por exemplo, encontraríamos esta tendência em Jung, Adler, Otto Rank, Erich
Fromm), cujo denominador comum seria o respeito pela pessoa como ela mesma, e não
como objeto, ou mero conjunto de instintos. Outro movimento, surgido na mesma época, é
o da psicologia existencial, que recebeu as influências do movimento existencialista. Este
movimento, entretanto, não é uma escola, e sim uma atitude em relação ao ser humano, que
pode ser adotada em várias abordagens psicoterápicas, embora mais firmemente se vincule
à psicologia humanista (May, 1980). Segundo May (1977), esta abordagem tem crescido
em importância, por levantar questões relevantes tanto no que se refere à relação de ajuda,
quanto à rica fonte de dados. Três aspectos nesta abordagem são enfatizados. Primeiro, é a
nova maneira de se ver a realidade do paciente, proporcionada pela fenomenologia. É um
esforço para tornar o fenômeno como dado, numa posição contrária à tendência de se
explicar as coisas pelas suas causas, seus porquês. Quando, por exemplo, pergunta-se a
alguém o que é a vergonha, a maioria vai falar porque ela ocorre, citando as possíveis
causas, origens; mas poucos vão dizer realmente o que a vergonha é. Geralmente supõe-se
que, descrevendo como uma tal coisa se desenvolve, está-se descrevendo a própria coisa. A
fenomenologia ensina a superar esta tendência, e procurar descobrir e descrever algo tal
como ele se apresenta. Diz May (1977): “Isto não significa eliminar a causalidade e o
desenvolvimento genético mas, antes, dizer que a questão do porquê uma pessoa faz aquilo
que faz não tem significado algum enquanto não soubermos o que uma pessoa é” (p. 97).
Uma segunda ênfase que se coloca sobre a abordagem existencial é a de que todos os
métodos psicoterápicos se baseiam em pressupostos, e que cada abordagem precisa
examinar continuamente tais pressupostos. Devemos sempre nos perguntar: que
pressuposto é adotado a fim de selecionar os componentes para o estudo? De que forma
propomos uni-los? É assim que investigamos nossas concepções subjacentes, e assim
podemos dar uma contribuição original, dar uma nova forma ao problema. A terceira ênfase
decorre das duas anteriores, sendo identificada pela ontologia, o estudo do ser enquanto ser.
A abordagem existencial diz que deve-se formular a questão ontológica do homem, ou seja,
a natureza do homem enquanto homem. Esta psicologia existencial-humanista comporta o
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pensamento de diversos teóricos e filósofos, com especial destaque aos existencialistas.
Para Greening (1975), o que estabelece o bom diálogo entre as duas teorias, o
existencialismo (tratado mais a frente) e o humanismo moderno, são os princípios de
responsabilidade, escolha, envolvimento, crescimento e ação. As duas correntes valorizam
o eu-em-processo. O chamado humanismo existencial combina as duas orientações,
reconhecendo o absurdo, o desespero, o desamparo do ser humano em sua existência, só
que também inclui o postulado de que o homem tem potencial para se transformar e se
realizar.
Temos na filosofia contemporânea um movimento muito importante: o
existencialismo (Marcondes, 1997). O existencialismo moderno surgiu com o francês Jean-
Paul Sartre (1905-1980), e tendo como precursor o dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-
1855), sendo considerado como um movimento originário da necessidade do homem de
encontrar seu significado dentro de si (Marcondes, 1997; May, 1977; Penha, 1986).
Segundo Santos (in Jolivet, 1961), esta posição existencial adveio das situações limites do
idealismo e do realismo, que predominavam na filosofia até então; mas estas duas posições
extremas eram tidas como uma maneira de deixar a existência humana num patamar menos
importante que as abstrações e generalizações que o idealismo e o realismo traziam, numa
espécie de primado da objetividade. Mas, ainda segundo este autor, a existência nunca
poderia ser reduzida a uma conceitualização ou artifício racional. Para Padilha (1981), o
existencialismo surgiu como uma crítica à Filosofia moderna; o compromisso com o
objetivismo, tão cultivado até aí, poderia funcionar muito bem com a realidade empírica,
mas não com a realidade profunda. Santos (in Jolivet, 1961) nos diz que no século XIX, em
especial, havia as duas “aventuras” nas quais a filosofia poderia se engajar: ou o objetivo se
subordinava ao subjetivo, ou o subjetivo se subordinava ao objetivo; acabou se engajando
na segunda opção, por parecer mais segura e mais cômoda. Mas houve a recusa de se
reduzir o homem a meros conceitos, que deturpariam a existência humana, numa espécie de
reivindicação dos “direitos” da subjetividade. As escolas existencialistas divergem entre si
em vários pontos, chegando até mesmo a grandes diferenças, mas elas têm como fator
comum, além dos primados da subjetividade, da existência e da experiência concreta,
também o fato de admitirem que, para o homem, a existência precede a essência (Sartre,
1978). Ou seja, o homem não tem um conjunto de receitas e características que permitem
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produzi-lo e defini-lo (Sartre, 1978); a existência não seria um acidente a se atribuir à
essência, e sim a essência é que seria um acidente a se atribuir à existência (Santos, in
Jolivet, 1961). Assim ganha força a idéia de subjetividade, em que o aprofundamento do eu
e o retorno ao plano pessoal possibilitam o diálogo entre o Ser e os seres. Nesse
movimento, segundo Abbagnano (S/d), a existência do homem é a procura do seu eu
próprio, no qual se empenha; mas tem-se o problema desta existência, em que há
indeterminação e instabilidade do ser no homem. O existencialismo se expressa como uma
atitude com os outros homens; o homem deve alcançar o esclarecimento da conexão
homem-comunidade (ou existência-coexistência) (Abbagnano, S/d). A própria filosofia não
deveria ser uma construção desenfreada de sistemas, e sim deveria ser o ponto de apoio do
homem para se compreender. Ele centra sua reflexão sobre esta existência, considerada em
seu aspecto particular, individual e concreto, enfatizando o poder de escolha do homem
(Penha, 1986). Segundo Jolivet (1961), esta forma de considerar o homem não é uma
ciência, mas uma experiência para desfazer o enigma que o homem é para si próprio, uma
tentativa de arrancar a obscuridade que envolve a nossa existência, nossa condição. Uma
outra consideração que Santos (in Jolivet, 1961) faz é a de que o existencialismo, ou o
conjunto das filosofias existenciais, não poderia ser classificado como uma filosofia
coerente, pois é do domínio do alógico, do absurdo, do mistério; ora, se fosse uma filosofia
coerente, já não seria existencialismo.
No existencialismo, no que diz respeito à questão da liberdade e da subjetividade,
Kierkegaard e Sartre podem ser destacados. Cada um deles estaria em uma de correntes
existencialistas que não seguiriam no mesmo sentido (Jolivet, 1961). Kierkegaard enfatiza
que somente a realidade individual interessa, com todos os seus paradoxos e dialéticas. A
própria vida, a própria vivência exprimiria a verdade; a análise existencial não pode
conduzir a uma verdade universal; o que importa é a pura experiência individual, o contato
pessoal com o absoluto do ser, pelo qual se alcança uma verdade que não é comunicável,
nem formulável; é preciso vivê-la em lugar de pensá-la — “penso, logo não existo”, teria
dito Kierkegaard (Jolivet, 1961). Segundo Giles (1975), Kierkegaard estuda as “diversas
formas de luta do homem consigo próprio para a conquista da existência que é, para ele, a
conquista do próprio ‘eu’ em sua individualidade” (p. 51). O pensamento do filósofo se
formou através de um exame profundo da sua própria personalidade, a partir do seu próprio
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existir, sendo um “pregador para si mesmo” (Jolivet, 1961). “O fracasso dos sistemas, o
paradoxo e o absurdo, o desespero e a angústia, o abandono do homo naturalis e o
compromisso do homo christianus, o sentido do risco e o drama do indivíduo, o valor
exclusivo da subjetividade e a incerteza absoluta do ‘objetivo’ — eis os temas
fundamentais de Kierkegaard” (Jolivet, 1961, p. 31). No que se refere à questão do
conhecimento de si, aqui colocado, dele viria o conhecimento do restante, ou seja, do
homem, do mundo e de Deus. “O conhecimento do mundo é primeiramente, ou antes, é, do
princípio ao fim, conhecimento de si” (Jolivet, 1961, p. 39). Não é cômico exprimir, ao
existir, o que se compreendeu de si mesmo; mas é muito cômico compreender tudo,
excetuando a si mesmo. Em particular, relacionado ao conhecimento de si e à liberdade,
dois conceitos podem ser destacados, quais sejam, o desespero e a angústia; nesta pesquisa,
serão estes os dois temas centrais quando tratarmos de Kierkegaard.
Já Sartre vai preferir seguir o caminho da ontologia, da ciência do ser, de caráter
fenomenológico. De acordo com Penha (1986), Sartre vai afirmar que o homem já é livre,
tendo total responsabilidade pelas escolhas que faz. Ele é aquilo que projeta ser, não sendo
predeterminado. O filósofo defende a supremacia dos atos, pois o existencialismo é uma
moral da ação; é uma filosofia que faz com que a vida humana se torne digna de ser vivida,
o que constitui um humanismo (Sartre, 1978; Penha, 1986). A existência humana, como já
foi dito precede absolutamente a sua essência, e isso faz do homem o responsável por se
formar a si próprio. Segundo Giles (1975), para Sartre “a liberdade, sendo essencialmente
projeto, isto é, tarefa, projeto de libertar-se, ela se descobre no próprio ato, numa unidade
com esse ato” (p. 330, v. 2). Os principais conceitos que parecem estar envolvidos na
discussão da relação entre liberdade e conhecimento de si, em Sartre, seriam a escolha, o
projeto (o homem será o que tiver projetado ser), a consciência e a má-fé. Quando
tratarmos de Sartre, enfocaremos estes conceitos em especial.
Para entendermos melhor como o conhecimento de si se relaciona com a liberdade,
podemos tomar uma descrição, exposta no campo da psicologia humanista, explicitada por
Maslow (apud Hall, Lindzey e Campbell, 2000), que pode contribuir neste sentido:
existiriam certas defesas internas que nos impedem de entrar em contato conosco: o
chamado “complexo de Jonas”, que é a tendência a temer nossas potencialidades divinas, a
tentar fugir de nosso destino, do nosso crescimento e por isso estabelecemos baixos níveis
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de aspiração; outra defesa é a dessacralização, onde aprendemos a negar as qualidades
impressionantes, simbólicas e poéticas de pessoas ou atividades. Outra descrição que está
ligada a esta, ainda dentro do campo da psicologia existencial-humanista, é a que foi feita
por Rollo May (1977): por que a pessoa não é capaz de “saber que sabe” disso ou daquilo?
Tendo em vista todas estas discussões em torno da relação liberdade e autoconhecimento
— recebendo aqui uma definição geral como “relação do eu consigo mesmo” —, uma
questão, formulada pela psicologia existencial-humanista, e que pode ser buscada também
em Kierkegaard e Sartre, é: quais conceitos estão envolvidos na explicação do fato de
que as pessoas não querem se autoconhecer, nem buscar afirmar sua liberdade?
Portanto, o problema colocado pode abrir discussões de vários conceitos e temas
que são comuns à psicologia existencial-humanista de Rollo May, aos existencialismos de
Kierkegaard e Sartre.
Propõe-se aqui, então:
• estudar o conceito de liberdade e autoconhecimento tal como são desenvolvidos por
autores como Sartre, Kierkegaard e Rollo May, com vistas a esclarecê-los e
aprofundar sua compreensão;
• encontrar os fundamentos filosóficos da psicologia humanista e discuti-los através
do estudo conceitual acima citado;
• analisar a pertinência da psicologia humanista, ressaltando o interesse nos conceitos
filosóficos dirigido pelo horizonte da psicologia;
• identificar passagens dos textos lidos que descrevam os processos psicológicos
envolvidos na liberdade e no autoconhecimento;
• estabelecer semelhanças e diferenças conceituais e teóricas entre estes textos, num
aprofundamento teórico-metodológico.
Esta monografia apresenta quatro capítulos, sendo que o primeiro versa sobre as
obras O Desespero Humano e O Conceito de Angústia, de Kierkegaard; o segundo sobre as
obras Psicologia e Dilema Humano e O Homem à Procura de Si Mesmo, de Rollo May; o
terceiro traz uma reflexão no campo da ciência psicológica e apresenta semelhanças entre
as noções apresentadas nos dois primeiros capítulos; finalmente, o quarto versa sobre as
obras A Náusea, O Existencialismo é um Humanismo e o capítulo “Má-Fé” da obra O Ser e
o Nada, de Sartre. Além destas obras principais, também foram utilizados textos de apoio
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de diversos comentadores do existencialismo e da psicologia existencial-humanista. Ao
final, há uma conclusão geral a partir dos dados obtidos durante o processo de pesquisa
teórica.
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1 KIERKEGAARD: DESESPERO, ANGÚSTIA E A EXISTÊNCIA PAR ADOXAL
A filosofia, para Sören Kierkegaard, deveria ser um processo de tomar consciência,
de forma cada vez mais profunda e através do conhecimento da própria existência, das
exigências de uma existência autêntica (Jolivet, 1961). O seu existencialismo procura
valorizar a experiência pessoal humana, a subjetividade (Marcondes, 1997; Penha, 1982), e
tal subjetividade torna-se o critério e a verdade da objetividade. Pois o existente faz parte
do problema; abstrair-se dele é justamente renegar a objetividade (Jolivet, 1961). O que
importa é compreender-se a si mesmo e compreender-se existindo; pois, o que se ganha em
construir um fabuloso palácio dos mais lindos ornamentos e mais encantadora arquitetura,
se se tem de dormir no pobre alpendre logo ao lado? Um sistema promete tudo, sem dar
nada. Muitas vezes recorre a postulados e demonstrações que escapam à demonstração, mas
conserva-se racional, dando uma falsa impressão de que o que se diz é certo. Desenvolve-se
na ficção, começando sua construção pelo teto, e não pelas bases, e a sua perfeição lógica
elimina todo o sentido do real; o sistemático, assim, se opõe à vida como o que está fechado
se opõe ao aberto (Jolivet, 1961). Em suma, Kierkegaard só aceita a filosofia se ela se
mostra como expressão da existência. É a partir deste ponto de vista que ele vai analisar
questões como a fé, o pecado, o eu, o espírito, o conhecimento de si, o desespero, a
angústia, expondo a dialética e o paradoxo envolvendo inerentemente tais temas. E
particularmente o desespero e a angústia são dois conceitos que aparecerão como
fundamentais em toda a obra do filósofo.
O sentimento de existência do indivíduo é marcado a ferro e fogo pela inquietação,
pelo desespero e pela angústia. O homem existente prova-se mais no sofrimento do que na
alegria. Existir é sofrer necessariamente o desespero e a angústia. O primeiro estaria mais
ligado à realidade, e a outra estaria ligada à possibilidade de culpa. Os dois conceitos,
assim, serão explicitados e discutidos aqui, seguindo-se uma comparação para se procurar
estabelecer semelhanças e diferenças, e depois ainda teremos algumas considerações finais
a respeito do filósofo e sua filosofia exposta nos livros O Desespero Humano e O Conceito
de Angústia.
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1. O Desespero
Kierkegaard (1979) define o homem como espírito, e o espírito é o eu. O eu é uma
relação que se estabelece consigo mesma, é o voltar-se sobre a própria relação. No entanto,
o homem é uma síntese: síntese de finito e infinito, de temporal e eterno, de liberdade e
necessidade. Essas instâncias, que podemos definir como instâncias contrárias, nele se
encontram. Mas a síntese é uma relação de dois termos. Então, o eu não pode ser explicado
pela simples soma ou justaposição destes dois termos, não é a relação em si. É preciso que
esta relação se volte a si mesma; o eu é o orientar-se dessa relação para a própria
interioridade. Para exemplificar, Kierkegaard toma a questão do corpo e da alma. O corpo é
o primeiro termo, a alma é o segundo termo, e a ligação da alma e do corpo seria uma
simples relação. Porém, se esta relação se conhece a si mesma, temos um terceiro termo,
que é o eu, ou o espírito. Colocando de outra forma, Kierkegaard nos diz que o eu ou
espírito é o responsável pela interação das instâncias que se notam no homem.
O eu ou foi estabelecido por si mesmo, ou por outro, ou seja, Deus. No caso de a
relação ser estabelecida por outro, então há aí mais outra relação: a com quem a
estabeleceu. Isso culminaria, então, nas duas formas de desespero no homem:
• o desespero de não querermos ser nós próprios;
• e a vontade desesperada de sermos nós próprios.
O eu mesmo ter estabelecido a relação implicaria apenas na existência do primeiro
caso, e não poderia haver o segundo, sendo que os dois casos acontecem quando a relação
foi estabelecida por outro. Isso implica que haja uma dependência do eu: ele não consegue
estabelecer um equilíbrio por si mesmo, sendo preciso se relacionar com aquele que
determinou a relação (Deus).
Mas o que é afinal o desespero? Kierkegaard não explicita claramente, em
linguagem mais direta, o que isso significa. Poderíamos dizer que este conceito é obscuro, e
um tanto subjetivo. Ora, mas ao mesmo tempo diríamos que não poderia ser de outra forma.
Pois podemos passar por esta experiência, nós a podemos sentir subjetivamente. Só
podemos, então, ter uma concepção de desespero através dos processos e outros conceitos
que o envolvem e a ele estão ligados. Em outros termos, a fim de que possamos
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desenvolver esta noção numa definição mais sintética, desespero seria uma sensação
interna, um sentimento, que me acompanha quando me relaciono comigo mesmo.
Kierkegaard (1979) nos fala que o desespero se dá quando ocorre uma discordância da
relação que o outro estabeleceu. Ao ficar ciente de seu desespero interior, e ao tentar
suprimi-lo por si só, o eu concluirá que não o pode, e seu esforço só o afunda mais neste
estado.
No desespero, a discordância não é uma simples discordância, mas a de uma relação que, embora
orientada sobre si própria, é estabelecida por outrem; de tal modo que a discordância, existindo em
si, se reflete além disso até o infinito na sua relação com o seu autor. (Kierkegaard, 1979, p. 196)
O eu quer se desembaraçar de seu Autor, ele quer fazer a relação se dar, mas
percebe que não o pode, e percebe que suas tentativas só o fazem afundar mais ainda.
Colocando de outra forma, o indivíduo quer para si o poder e a total liberdade de se
constituir naquilo que ele quer. Quando ele tenta, percebe que isso não é possível, que ele
não tem esta liberdade nem este poder, e se revolta com Deus, com sua situação, com sua
vida. E isso nos leva a considerar uma nova definição de desespero: ele estaria presente,
além na relação do eu consigo mesmo, também na relação do eu com Deus. É aí que
observamos o papel da fé, pois o contrário de desesperar é crer. “Orientando-se para si
próprio, querendo ser ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até
ao poder que o criou” (Kierkegaard, 1979, p. 196), esta é a “fórmula da fé”. Muito podemos
retirar a partir deste trecho. Pois uma grande contradição da condição humana se observa aí.
Desesperamos por não querermos ser nós próprios, pois queremos nos separar de Deus e
das outras coisas; e desesperamos quando queremos ser nós próprios. Esta segunda forma,
Kierkegaard nos diz, resume todo o desespero. Ou seja, poderíamos dizer que o desespero
reside numa separação eu-Deus: querer se separar é desesperador, e talvez o primeiro
momento do desespero, e também é desesperador tentar ser o eu que verdadeiramente se é,
uma tentativa de recuperar a ligação eu-Deus que fora perdida. Poderia-se questionar o que
é exatamente este “eu que verdadeiramente se é”. Esta noção tem aparecido em muitos
filósofos e em teóricos da psicologia (a humanista como sendo uma delas). Como primeiro
esboço, baseando-nos no que diz Kierkegaard, poderíamos dizer que o eu verdadeiro é
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aquele que foi criado por Deus. No decorrer da pesquisa, vamos desenvolver esta noção
junto a outros filósofos e teóricos.
O filósofo questiona se o desespero humano constitui numa vantagem ou numa
imperfeição. Conclui que é ambas as coisas, em dialética, pois o desespero nos coloca
acima do animal, implicando em espiritualidade, e ao mesmo tempo é uma imperfeição,
pois é “a pior das misérias” e “a nossa perdição” (Kierkegaard, 1979, p. 197). Quando
passamos do possível (virtual) ao real, há progresso, uma ascensão, ou seja, é quando
conseguimos ser o que desejamos — isto é o que se poderia chamar de vantagem —; mas o
desespero não implica numa ascensão, e sim numa queda do virtual para o real (quando
vemos que não podemos ser o que desejamos). Entretanto, mesmo o progresso, apesar de
parecer algo que ocorre na ausência do desespero, não o é. A ascensão significa não
desesperar; mas aqui não se quer dizer a mesma coisa que uma negação qualquer, como não
ser manco ou não ser cego: não estar desesperado acaba culminando na eliminação
constante da possibilidade de se desesperar, o que constitui num desespero, pois “para que
um homem não o esteja verdadeiramente, é preciso que a cada instante aniquile em si a sua
possibilidade” (Kierkegaard, 1979, p. 197). Isto é, o desespero aqui parece ser tratado como
algo inerente ao ser humano, inerente à sua condição. Uma pessoa que quer a todo custo
evitar seu desespero já demonstra, neste ato de evitação, um outro desespero. Aliás,
Kierkegaard nos fala: “O desespero está portanto em nós; mas se não fôssemos uma síntese,
não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se esta síntese não tivesse recebido
de Deus, ao nascer, a sua firmeza” (Kierkegaard, 1979, pp. 197-8). É justamente o fato de
sermos síntese, elaborada por Deus, o “responsável”, por assim dizer, de sermos
desesperados.
De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo própria, pois Deus,
fazendo que o homem fosse essa relação, como que o deixa escapar da sua mão, de modo que a
relação depende de si própria. Esta relação é o espírito, o eu, e nela jaz a responsabilidade da qual
depende todo o desespero, desde que existe; da qual ele depende a despeito dos discursos e do
engenho dos desesperados em enganarem-se e enganarem os outros, considerando-o como uma
infelicidade” (Kierkegaard, 1979, p. 198).
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Temos aí a descrição do homem como “jogado” ao mundo como ele foi feito por
Deus, e no mundo ele depende de si próprio. O eu tem a responsabilidade de cuidar de si, e
essa responsabilidade traz o desespero. O “conhece-te a ti mesmo” fica por conta dele. A
sua verdade cabe a ele descobrir por si só. Mas seria mesmo uma infelicidade humana esta
terrível inquietação não saber quem se é, nem que sentido tomar na vida? Ou seria
justamente a inquietação necessária para o despertar para a vida? Cabe aqui citar Frankl
(1990), que descreveu o caso de um homem que tinha constantes episódios depressivos;
quando foi questionado a ele se questionava-se a respeito do sentido da vida, ele respondeu
que sim, mas apenas nos intervalos em que estava sadio. Assim, o desespero é num certo
sentido um péssimo sentimento, e num outro sentido uma via para nossa espiritualidade.
A doença mortal
A duração da discordância da relação estabelecida por Deus não depende de quantas
vezes se discorda; depende, isto sim, da relação que se relaciona consigo mesma. É ao se
voltar a si própria que a discordância sobrevém. É diferente, por exemplo, de quando
alguém apanha uma doença por imprudência; a pessoa teve a sua culpa naquele momento, e
a origem da doença está cada vez mais no passado, porém não se pode culpar a pessoa por
ainda “estar pegando” a enfermidade a toda hora. De outro modo, o desespero não é
conseqüência da discordância, mas da relação voltando-se a si mesma. A cada momento em
que se volta a si próprio, o desespero sobrevém. Mas também sobrevém quando há a
possibilidade desta relação. “A cada momento de desespero, se apanha o desespero; o
presente constantemente se desvanece em passado real, a cada instante real do desespero o
desesperado contém todo o passado possível com se fosse presente” (Kierkegaard, 1979, p.
198). A pessoa, dessa forma, não quer se conhecer, não quer se relacionar consigo mesma,
e isso faz do desespero algo constante, pois está presente tanto no voltar-se à relação quanto
na possibilidade de voltar-se, em instantes reais que são expressão do passado possível.
O desespero é a “doença mortal”. Mas esta “doença mortal” não quer dizer que é
uma doença qualquer que culmina na morte. A expressão não se mostra neste sentido. Até
porque a morte, para o cristão, é uma passagem para a vida. Ao contrário, a grande tortura é
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não poder morrer, é estar mortalmente doente e não poder morrer, é a impossibilidade de
morrer, a impossibilidade de acabar, a impossibilidade de uma última esperança.
Enquanto a morte é o risco supremo (quando estamos ameaçados pela morte),
confia-se na vida, procura-se evitar, portanto, a morte; no entanto, quando se descobre o
perigo na vida, confia-se na morte como a saída para os males. E se a esperança for a
morte, o desespero é a doença mortal — ou seja, não se pode morrer. O desespero é
eternamente morrer, “morrer a morte” e “viver a morte” (p. 199), pois morrer significa que
tudo está finalmente acabado. Kierkegaard utiliza a metáfora do punhal e dos pensamentos:
o punhal não serve para matar pensamentos; da mesma forma, o desespero não consegue
destruir a eternidade do eu. Assim, a eternidade do eu e o desespero estão ligados. A
vontade do desespero é destruir-se, entretanto isso é justamente aquilo que ele não
consegue fazer. Ele não consegue atingir seus fins, já que o eu é seu próprio sustentáculo. E
esta impotência, por sua vez, é uma segunda estratégia de destruição, malograda
novamente. Ao contrário, é uma acumulação de ser, já que o desespero implica, quer
queira, quer não, em se conhecer. É, portanto, uma autodestruição impotente. Este
insucesso é uma tortura, que ainda por cima é reanimada pelo seu rancor. Acumula-se,
assim, no presente, o desespero passado da impossibilidade de se aniquilar. Eis a
acumulação do desespero.
Geralmente se diz que, para desesperar, é preciso um motivo. Mas o verdadeiro
rosto do desespero não é esse. Quando um homem diz “Ser César ou nada” e não consegue
sê-lo, desespera-se. Mas não é por não ter se tornado César que ele não suporta mais a si, e
sim porque seu eu não o deveio. Ser César não era o que realmente importava para ele. O
que importava era que ele fosse o ser de sua própria invenção. Ele queria se libertar de seu
eu (no caso, do seu “eu verdadeiro”, o eu que Deus criou), mas viu que não podia fazê-lo. O
verdadeiro desespero não é desesperar de alguma coisa; é, isso sim, desesperar de si
próprio. É o caso da jovem mulher que perde seu amado: ela desespera de si própria, pois
perdeu algo de seu eu que deixou neste um “abominável vazio”. Depois que perdeu seu
amado ela tem de suportar o eu sem o outro. E quando se diz a ela que sofre tanto que está a
se matar, ela responde: “Ai de mim! não, a minha pena, precisamente, é não o conseguir”.
Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é porque não pretende
desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se virmos as coisas mais de perto,
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encontramos sempre a mesma contradição. Este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele
não é (pois querer ser o eu que se é verdadeiramente é o contrário do desespero), o que ele quer,
com efeito, é separar o seu eu de seu Autor. Mas aqui ele falha, não obstante desesperar, e apesar
de todos os esforços do desespero, este Autor permanece mais forte e constrange-o a ser o eu que
ele não quer ser. (Kierkegaard, 1979, pp. 200-201)
Conclui-se então que não é possível se libertar do eu que Deus criou. Se quero ser
César e os limites do meu espírito não o permitem, não será possível me tornar César.
Como ficaria então a questão da liberdade? Ela não é possível? Serei obrigado a ser quem
realmente sou para que o desespero tenha fim, e eu tenha paz? Bem, não é dessa maneira
que Kierkegaard trata da liberdade, nem seria possível conceber o conceito de liberdade
desta forma, dentro do pensamento do filósofo, como veremos a seguir.
A universalidade
O autor discorre sobre a universalidade do desespero, dizendo que não há nenhum
homem que esteja isento de se desesperar, mesmo que este seja um estado latente. Como
ressalva de um certo pessimismo, Kierkegaard afirma que este ponto de vista exalta, ao
contrário de desanimar, pois desesperar indica que o homem vive segundo “a suprema
exigência de seu destino: ser um espírito” (Kierkegaard, 1979, p. 203).
Como dissera anteriormente, não ter a consciência de ser desesperado é uma forma
de desespero. Pois declarar-se não-desesperado é um erro profundo, visto que quem o
declara não conhece o espírito. Muitas vezes, o doente se passa por são e o são se passa por
doente; há doenças e saúdes imaginárias, e o médico pode reconhecê-las e saber o real
estado do paciente. De forma análoga, o psicólogo conhece o desespero e sabe que nem
sempre as pessoas são aquilo que dizem ser. Não se contenta com a opinião daquele que se
crê ou não desesperado.
Apesar desta analogia com a doença, Kierkegaard faz uma diferenciação: quando
um médico diagnostica que uma pessoa está saudável e um tempo depois ela fica doente,
pode-se dizer que antes ela estava sã, e agora está doente. Porém, o processo é diferente
com o desespero: a sua aparição já mostra a sua preexistência. Quando uma pessoa, devido
a algum acontecimento, desespera-se, revela-se no fato que, na verdade, toda a sua vida foi
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um desespero. É um momento em que o desespero se mostra e que, ao contrário dos casos
de doença, estar confiado e calmo, não estar desesperado, pode ser o próprio indício de que
na verdade se está. Não estar desesperado pode ser o próprio indício de que o somos.
Quando se estuda o homem sob a categoria de espírito, os estados de doença ou de saúde
deste são igualmente críticos: não existe uma “saúde imediata” do espírito. O homem
jamais deixa de estar num estado crítico.
O desespero é também a inconsciência do homem sobre seu destino espiritual.
Mesmo a felicidade e paz são formas de desespero, pois felicidade não é categoria do
espírito. Para Kierkegaard (1979), “o pior mal é não ter sofrido” (p. 205). A paz e a
segurança são ilusórias. A inocência esconde a angústia; e uma reflexão, que leva à reflexão
sobre o nada, tem as “armadilhas” que provocam nela o seu maior pavor. Aí, podemos
entender que a ignorância do próprio estado desesperado ou angustiado pode ser quebrada a
partir de uma reflexão sobre si — um ato que desfará a ilusão em que se encontra a pessoa.
Mas a regra é, precisamente — e aqui o psicólogo conceder-mo-á sem dúvida — que a maior
parte das pessoas vive sem grande consciência do seu destino espiritual ... e daí toda essa falsa
despreocupação, essa falsa satisfação em viver, etc., etc., que é o próprio desespero.
(Kierkegaard, 1979, pp. 205-6)
Esta questão do destino espiritual torna-se fundamental no pensamento do filósofo.
Pois é justamente a falta de consciência deste destino que ele lamenta neste mundo, que
está cheio de existências desperdiçadas, iludidas por alegrias e tristezas da vida que
impedem a tomada de consciência de ser um espírito, de sentir profundamente a existência
de Deus. Entreter-nos e entreter-se as multidões com tudo, menos aquilo que realmente
importa...
Perante essa miséria eu bem poderia chorar uma eternidade inteira! Mas mais um horrível sinal
desta doença — a pior de todas — é o seu segredo. Não só o desejo e os esforços bem sucedidos
para escondê-la daquele que a sofre, não só que ela o possa habitar sem que ninguém, ninguém a
descubra, não! Mas ainda que ela de tal modo se possa dissimular no homem que nem ele se dê
conta! (Kierkegaard, 1979, p. 206).
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Este soterramento do desespero põe a perder toda a vida vivida: “vitórias ou
derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te dá como seu, ela não te conheceu, ou,
pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!” (Kierkegaard,
1979, p. 206). O que é lamentável é que temos um espírito e não o aceitamos. Temos a
eternidade que nos é oferecida, e a rejeitamos. É o que se chama escândalo. Aqui
Kierkegaard nos conta a parábola de um pobre jornaleiro e do imperador mais poderoso do
mundo. O imperador, certa feita, manda chamar o jornaleiro para tê-lo como genro. O
coração do jornaleiro nunca havia ousado em conceber tamanho acontecimento. Ficou
completamente embaraçado, confuso, constrangido com o fato de o imperador ao menos ter
sabido de sua existência, quanto mais escolhê-lo para desposar sua filha! Ora, o jornaleiro
resolve não contar nada a ninguém; isso seria por demais insensato, estranho, sem sentido,
e bem certamente poderia ser algo como uma tentativa do soberano rir-se às suas custas.
Seria motivo de troça em todos os lugares. Mas não seria o tal convite uma realidade
visível, iminente? Ora, é bem possível; mas como saber? Não é possível... Mas teríamos
aqui de levar em conta não esta realidade exterior, mas a interior. Tudo dependeria da fé do
jornaleiro. “Teria ele a suficiente e humilde coragem para ousar acreditar nela [na realidade
que se apresenta] (uma coragem sem humildade não ajuda nunca, com efeito, a crer): e essa
coragem, quantos jornaleiros a teriam?” (Kierkegaard, 1979, p. 245). Por fim, este
acontecimento, este oferecimento extraordinário que se apresenta diante dele é visto como
uma zombaria, e o jornaleiro diria que é uma coisa alta demais para ele, concluindo que é
uma loucura. O filósofo lamenta esta condição humana, a de que o homem tem diante de si
o extraordinário que Deus lhe oferece, e o recusa inteiramente. O que é de enlouquecer, na
verdade, é justamente isso. É o escândalo, a falta da humilde coragem para crer, e ser o que
se verdadeiramente é. Pois “crer é ser” (Kierkegaard, 1979, p. 250). Na estreiteza de seu
coração, o homem não é capaz de conceber o extraordinário que Deus lhe oferece. É
também aí que reside o pecado, que é, perante Deus, e desesperado, se querer ou não se
querer ser si próprio; ou seja, é o desafio, querer ser o ser de sua própria criação, ou a
fraqueza, querer simplesmente se separar do Criador. É desafio ou fraqueza levados à
suprema potência.
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Personificações: a síntese do eu e a consciência
Kierkegaard (1979) vai tratar das personificações do desespero. Como já havia dito
anteriormente, o eu é uma síntese, e é a partir da análise dos fatores desta síntese que
podemos vislumbrar quais são estas diversas personificações. Apesar de ser uma síntese,
ela pode relacionar-se consigo mesma:
Mas a sua síntese [do eu] é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o
que é a liberdade. O eu é liberdade. Mas a liberdade é a dialética das duas categorias do
possível e do necessário. (p. 207)
Temos então um aspecto do conceito de liberdade em Kierkegaard. A liberdade não
é nem apenas possível (ou seja, tudo é possível), nem é apenas necessidade. Ela é, isso sim,
dialética. Liberdade nem é fazer tudo o que apetece, nem menos ainda se tornar um total
determinado pelas circunstâncias. A liberdade estaria na possibilidade de relacionamento
consigo mesmo, dentro do possível e do necessário. O autor não dá maiores explicações,
mas podemos apreender daí que, ao me relacionar comigo mesmo, posso ter a liberdade de
experimentar meu poder de escolha dentro da situação aparentemente inescapável em que
me encontro. É me autoconhecendo que o faço, e ao mesmo tempo ao fazê-lo eu me
autoconheço.
Daí que a consciência interior dá a medida do eu; quanto maior a consciência, maior
a vontade, e haverá mais eu quanto maior for a vontade. Um homem que não tem vontade
não tem eu, não tem consciência de si. O desespero, a partir de então, será visto sob dois
enfoques. Um é o de sua natureza, que são os fatores da síntese do eu; o outro é o da
consciência de se ser desesperado.
Primeiramente, então, veremos os fatores da síntese do eu.
O desespero será visto sob a categoria do finito e do infinito. O eu é síntese de um
finito que delimita e um infinito que ilimita, e estará desesperado em ambos os casos. Só
estará livre do desespero “quando, tendo desesperado, transparente a si próprio, mergulha
até Deus” (Kierkegaard, 1979, p.208).
Primeiramente, será abordado o ponto de vista do infinito. O principal agente de
“infinitização” é o imaginário, a imaginação. Ela é a reflexão que cria o infinito; reproduz o
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eu e cria o possível do eu, o que acaba afastando o homem de si próprio. Este é absorvido
pelo imaginário, o que vai refletir em três esferas: o sentimento, o conhecimento e a
vontade. No âmbito do sentimento, o homem tem uma sensibilidade impessoal, desumana,
sem vínculo num indivíduo — e é dominado por isso. No âmbito do conhecimento, o
homem pensa que quanto mais adquire conhecimento, mais o seu eu se conhece. E se
engana, pois o conhecimento se torna “monstruoso”, servindo para edificar coisas que
desperdiçam seu eu. O homem se isola no abstrato, produzindo um conhecimento distante
do mundo concreto e do indivíduo. Este conhecimento abstrato se identifica com a
construção de sistemas de explicação do homem e das coisas, os quais o filósofo sempre se
colocou veementemente contra (especialmente o sistema hegeliano). Já no âmbito da
vontade, o homem visa o infinito como objetivo final, ou infinitiza seus fins, e a tarefa fica
mais longe de si própria, mais longe de se realizar agora. Dessa forma, o eu leva uma
existência na imaginação, isolando-se no abstrato. Quem leva a vida dessa forma, vai passar
despercebido ao mundo, pois este não dá importância ao eu; é aquele que menos desperta
curiosidade e o mais arriscado de se mostrar que se tem.
Depois, Kierkegaard (1979) descreve o desespero no finito. A estreiteza e
indigência morais limitam, e o eu desesperadamente carece de infinito. O mundo tende a
dar valor a coisas indiferentes, todos se prendem a pequenas diferenças e não percebem
essa indigência e essa estreiteza, que levam à perda do eu, fechado no finito; o eu se torna
“mais um” qualquer, torna-se um número. Nós nos castramos espiritualmente, deixamos
que “limem nossos ângulos”, deixamos frustrar nosso eu em detrimento de outrem.
Achamos mais simples esquecermo-nos, enchermo-nos de ocupações humanas e
assemelharmo-nos aos outros, achando também que é ousado demais sermos nós próprios.
É uma outra forma de desespero que passa despercebida, como o do infinito. Torna-se a
pessoa que a sociedade quer: calado, temendo qualquer “crime” de uma orientação interior,
qualquer risco. O autor diz, sarcasticamente: “Evitar os riscos, eis a sabedoria” (p. 211).
Mas não arriscar é que significa perder o eu. Pelo contrário, é difícil perder o eu arriscando-
se; se se arriscar, e depois se enganar, a vida vai castigar, vai ensinar. Se não se arriscar,
não haverá ajuda alguma; pode-se até ganhar todos os bens deste mundo, mas o eu se perde.
Um homem pode até mesmo passar à história, mas terá sido ele mesmo? Kierkegaard
responde: não, porque ele espiritualmente não teve um eu, um eu pelo qual se arriscasse.
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O autor prossegue com as personificações do desespero, enfocando-o agora a partir
das categorias do possível e do necessário. O eu se desespera tanto por falta de possível
quanto de necessidade. Este eu é tanto necessidade, pois é ele próprio, quanto possível, pois
deve se realizar.
Quando o eu tem vistas apenas ao possível, sem elo algum com a necessidade, tem-
se o desespero do possível, ou da carência de necessidade. O campo do possível cresce sem
cessar, pois quanto mais possível se tem, mais possível se busca, já que se vê que nenhuma
realidade está se formando. É necessário tempo nesta passagem do possível ao real, mas
este tempo é abreviado, e por fim o eu se torna uma “miragem” (tudo parece possível). O
eu saiu da realidade, e falta-lhe força para obedecer ou se submeter às “fronteiras
interiores”. Assim, ele fica infeliz por não ter tomado consciência de si próprio. O possível
é um espelho que só pode ser usado com destreza: é um espelho “semiverdadeiro”,
enquanto não mostra o eu inteiro. É como a criança que recebe um convite agradável e diz
logo que aceita, sem dar atenção àquilo que os seus pais dizem. E há também duas formas
do possível: o do desejo e o da melancolia imaginativa. No possível do desejo, o homem
persegue seu desejo da mesma forma que um cavaleiro que persegue uma ave, sem no
entanto conseguir alcançá-la, e quando tenta retornar para o lar, vê que está perdido na
noite e na solidão; o homem, portanto, persegue seu desejo até ao ponto de não mais
conseguir retornar a si próprio. No possível da melancolia imaginativa, acontece o mesmo:
o homem persegue algo que evite a angústia pela qual passa, e acaba se afastando de si,
fazendo-o cair na própria angústia que antes evitava.
O filósofo nos apresenta também o desespero na necessidade, ou a carência de
possível. Aí, ele enfatiza o papel da fé. Carecer de possível é como ser mudo. Se o possível
falta, a existência será desesperada. “A Deus tudo é possível”: é essencial para o homem
saber se ele tem a vontade de acreditar nisso — e crer significa perder a razão para ganhar
Deus. A salvação do desesperado é o possível: por isso, a fé. O homem muitas vezes limita-
se à esperança, ao provável, e acaba sucumbindo por achar que uma perda não sobrevirá; e
ela muitas vezes sobrevém. Assim também acontece com aquele que é temerário em suas
ações, achando que nada vai acontecer, nada vai incorrer em perda. Porém o crente vê e
percebe a sua perda como homem, e no entanto crê, e não perece. Crer é compreender a
perda e acreditar no possível. Deus, então, vem ao seu socorro. No entanto, os homens
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declaram que este auxílio é impossível, sem ao menos terem se esforçado para o descobrir;
não têm lealdade ao poder que os criou. O determinista e o fatalista são desesperados que
perderam seu eu, porque para eles só há necessidade. A personalidade, inclusive, é uma
síntese de possível e de necessidade. Aí, uma nova metáfora é utilizada: a personalidade é
como uma respiração, e a sua duração depende da inspiração e da expiração (no caso, do
possível e do necessário). O eu do determinista não “respira”, pois a necessidade pura
“asfixia”. O fatalista perdeu seu eu ao perder Deus; ele cultua o mutismo, a submissão e a
impossibilidade de orar, e para orar é necessário Deus, um eu e um possível. Se houvesse
apenas necessidade, o homem não teria mais linguagem que o animal. Kierkegaard (1979)
cita ainda o exemplo dos filisteus, que são vazios de orientação espiritual e permanece no
domínio do provável, na banalidade, no hábito — e se desesperam ao se verem numa
existência que ultrapassa estes limites. A sabedoria dos deterministas e dos fatalistas é
limitada pela “elasticidade na armadilha do provável”; e o filisteu “passeia na gaiola do
provável” (Kierkegaard, 1979, p. 215), e acha que essa gaiola é de sua propriedade, sem se
dar conta de que ele mesmo fez de si um escravo.
Passamos agora a abordar como o autor analisa o desespero sob a categoria da
consciência. Identifica-se dois tipos de desespero: o desespero que se ignora e o desespero
consciente de sua existência.
No primeiro caso, começa-se a discutir a questão da verdade. Os homens não
consideram um bem estar em relação à verdade. Ao contrário, preferem permanecer felizes
com seu erro a estarem infelizes com a verdade. Preferem, em última análise, a
sensualidade a serem espíritos. O homem prefere habitar a “cave”, o pavimento inferior da
sua “casa” a habitar o “primeiro andar”, sempre vago e esperando por ele. Até mesmo se
zanga se lhe oferecem este lugar, ou fazem vê-lo notar a contradição em que se encontra.
Quando por exemplo o indivíduo que se diz feliz, mostra-se feliz, mas tudo não passa de
fingimento, pois na verdade ele é infeliz... Entretanto, a ignorância também é desespero.
Pior: é permanecer desesperado e em erro. A ignorância está para a angústia, e elas surgem
quando as ilusões dos sentidos se vão. A ignorância do desespero é negação, estando longe
da verdade e da salvação; até mesmo o desesperado consciente assim está. O desespero que
se ignora é o mais freqüente no mundo, sendo exemplificado pela supervalorização da
estética: a elevação do prazer, a abstração decorrente de se não “mergulhar” em Deus, a
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cegueira de si, a aceitação do eu como enigma que não aceita a introspecção. Qualquer
existência que esteja fundada nestes gêneros é uma forma de desespero.
São muito raros os homens que tem uma continuidade de sua consciência interior. A
consciência geralmente é uma intermitência, que se manifesta apenas nas decisões mais
importantes da vida, mas que no cotidiano aparece fechada e inútil. “Como espírito, o
homem não existe durante mais duma hora por semana... forma bem animal,
evidentemente, da existência espiritual” (Kierkegaard, 1979, p. 261). O homem permanece
neste seu pecado, e este permanecer engendra ainda mais pecado. A maior parte das
pessoas vive assim, e vive inconsciente demais de si para notar esta conseqüência.
Por falta do vínculo profundo do espírito, a sua vida, seja por encantadora ingenuidade infantil,
seja por necessidade, não é mais do que uma mistura sem nexo de um pouco de ação, de acaso, de
acontecimentos; vemo-las umas vezes praticar o bem, depois fazer o mal; umas vezes o seu
desespero dura uma tarde, outras prolonga-se por três semanas, e ei-las prazenteiras, e logo
desesperadas por mais um dia. A vida é para elas uma espécie de jogo em que se entra, mas não
chegam nunca a arriscar tudo, nunca ela se lhes representa como uma conseqüência infinita e
fechada. Por isso não falam nunca senão acerca de atos isolados, tal ou tal boa ação, tal falta.
(Kierkegaard, 1979, p. 262)
A vida é para as pessoas uma aventura em que se deve ser errante, sem rumo; deve
permanecer sempre na mesma coisa, como uma variedade aqui e ali só para tentar não se
encher de tédio. É algo próprio daquele que não se enxerga como espírito, não se volta a si
mesmo e, mesmo que o faça de vez em quando, não tem a firmeza para prosseguir no
caminho que poderia levá-lo a retomar o seu sentido próprio.
O outro tipo de desespero é o consciente. A intensidade do desespero aumenta com
a consciência que se tem deste e também do eu. Esta categoria do desespero ainda se
subdivide em dois: o desespero-fraqueza, no qual não se quer ser si próprio, novamente
subdividido em desespero do temporal e desespero quanto ao eterno; e o desespero-desafio,
no qual se quer ser si próprio.
O desespero-fraqueza quanto ao temporal acontece quando o eu permanece passivo
ante as coisas, não reflete. E quando algum acontecimento em sua vida o faz refletir, acaba
por se desesperar. Mas, mesmo assim, continua “fingindo de morto”, ainda na sua
espontaneidade. Com isso, não mais se tornará ele próprio, e acaba por limitar-se a imitar
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os outros. É o caso do cristão “automático”, que realiza todos os atos que um bom cristão
deve realizar (vai ao templo, compreende o pastor etc), mas nunca foi um eu. Não se quer
ter um eu, ou se quer ser outro. Há também o caso do homem que começa a refletir sobre si,
mas tem dificuldades em assumir-se, pois isso lhe causa horror. Ele não se “divorcia” do
seu eu, mas mantém com este uma relação de como se fosse um “domicílio”, e faz algumas
“visitas” para ver se houve alguma mudança. Fica, assim, algo consciente do seu eu, mas
continua num estado passivo, não querendo ser ele próprio. O homem se torna o modelo da
boa sociedade: casado, pai de família, compreensivo, um cristão bem educado, uma grande
pessoa. Permanece na sua “estupidez ética”: para ele, “tudo se arranjará”, “ver-se-á”... Este
é o desespero mais vulgar e comum, sendo o responsável por se fazer pensar correntemente
que somente os jovens são os desesperados na vida. Também os mais velhos vivem
desesperados, vivendo a “vida imediata, acrescida duma leve dose de reflexão sobre si
próprio” (Kierkegaard, 1979, p. 226). O desespero não nos abandona ao crescermos, ao
contrário do que dizem quando afirmam que a ilusão vai se perdendo. Os jovens têm a
ilusão da esperança, e os velhos têm a ilusão da recordação. Os jovens se iludem esperando
o extraordinário na vida, desesperam do futuro. Os velhos revivem a mocidade imaginando
como eram felizes, bonitos, desesperando de algo do passado, mas que encontra ecos no
presente. Assim, há tanto o desespero do temporal (como uma totalidade) e o de uma coisa
temporal (um fato isolado). Ao se desesperar de um fato isolado, o homem acaba elevando
este detalhe ao infinito, até recobrir o temporal como um todo. Sendo essa uma expressão
dialética da outra forma de desespero: o desespero quanto ao eterno.
Nesta forma, o homem desespera-se da sua fraqueza ao dar tanta importância ao
temporal. Há aí um crescimento, um passo à frente, pois há uma maior consciência do eu
— desesperar quanto ao eterno só é possível com um idéia do eu. Pois a eternidade e o eu
implicam um no outro: o eu é eterno. Este desespero é como “um pai que deserda seu
filho”: o pai o deserda, mas não o afasta de seu pensamento; da mesma forma, não se quer
ter o eu, mas não é possível livrar-se dele. Este estado é menos freqüente no mundo, e nele
há o hermetismo: o homem se refugia, se esconde, a fim de manter os outros distantes de
seus segredos. Necessita de solidão, embora nela se revele nossa espiritualidade. A
sociedade não aprova muito estes “amantes da solidão”, sendo colocados ao lado dos
criminosos. Se se diz ao homem fechado em si que o hermetismo em que está é orgulho, e
28
que ele está ufano de si, ele não confessará, mas talvez dê razão à afirmação; mas, rápido, a
ilusão se reconstitui. Viver neste hermetismo significa que há o risco do suicídio. As outras
pessoas não fazem idéia do quê tem de suportar o hermético; é por causa desta imensa
carga que o risco de suicídio existe. Vem então a discussão sobre a confidência a outra
pessoa. Se a pessoa falar a alguém, qualquer um, sobre tudo aquilo que a aflige, vai se
produzir nela o apaziguamento, e o abaixamento do hermetismo, evitando assim que tudo
acabe no suicídio. Entretanto, há outro risco aí, por outro lado. Pois pode sobrevir o
desespero justamente por se ter contado a alguém; a dor de ter se contado a alguém pode
ser muito pior do que aquela de suportar sozinho e calado. E Kierkegaard menciona que há
exemplos de herméticos que se suicidaram justamente por terem tomado um confidente. Eis
a contradição insuportável do hermético: não pode suportar um confidente, nem passar sem
ele. Esta é uma discussão de grande interesse para a psicologia: até que ponto o cliente está
livre do sofrimento ao revelar suas angústias, seus segredos, ao psicólogo? Será que esta
simples revelação a outrem põe mesmo um fim ao sofrimento, como rezam algumas escolas
da psicologia?
Finalmente, o filósofo descreverá o desespero-desafio, aquele no qual queremos ser
nós próprios. Aqui, teríamos um processo que se seguiria aos dois tipos de desespero-
fraqueza, como se fosse uma última etapa. Primeiro, o desespero do temporal, depois o
quanto à eternidade e a seguir o desafio, no qual o desesperado “abusa” da eternidade de
seu eu. Mas é graças a esta eternidade que o eu quer ser si próprio; como foi dito
anteriormente, o desespero de ser si próprio exige a consciência dum eu infinito. Este eu
pode ser ativo ou passivo. O ativo quer ser criador de si mesmo, quer fazer de si o que quer.
Mas acaba fazendo sem se erigir em Deus, acabando por ver que não pode ser mais do que
é. É, dessa forma, “um rei sem reino”. Tenta conferir aos seus feitos um sentido infinito,
quando é na verdade um “fazedor de experiências”. Este eu quer fazer coisas lendárias,
quer ter o grande prazer de se criar, de se desenvolver, de existir por si mesmo, quer as
glórias de ter conseguido compreender a si próprio. Porém, o “edifício” todo que construiu
pode vir abaixo. Já o eu passivo é aquele que se resigna com seu “espinho”, ou seja, com
sua miséria, tornando-o parte dele, sem pretender tirá-lo, tornando-o seu. E também não
pede socorro, a não ser que este socorro venha exclusivamente sob as condições que ele
determinou. Isto é, o socorro não pode vir de Deus. Para Kierkegaard (1979), esta é a
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origem do mal, a “demência demoníaca”, que não pode ser detectada exteriormente, como
acontece com as demais formas de desespero (como o hermetismo, por exemplo); esconde-
se por trás da realidade, ainda querendo ser si próprio. É uma espiritualização, sim, mas o é
com um “tato demoníaco”. Temos aí o desespero demoníaco: uma objeção contra a
existência, e contra Deus.
Discussão inicial
Pode-se notar que a questão do autoconhecimento em Kierkegaard se dá através de
dialética: tanto querer se ser o eu quanto não querer implica em desespero. Esta consciência
está sempre vinculada à relação com Deus, que o homem quer negar. Mas o eu aumenta
com a idéia de Deus e a idéia de Deus aumenta com o eu. A ligação eu-Deus é
fundamental. A solução, se é que se pode falar assim, seria, ao que parece, uma entrega a
Deus, um retorno a si e ao poder que criou este eu. Este retorno a si e a Deus é a idéia da
religião, do religare. Este retorno, também, poderia ser a possibilidade da liberdade. Mas
como o eu pode ser livre se ele foi determinado por Deus? Como aceitar o destino de ser
um espírito? Destino e liberdade não seriam contraditórios, mutuamente exclusivos? Esta
questão é difícil de se abordar, mas podemos colocá-la da seguinte forma. Primeiro, admitir
que Deus nos criou implicaria em admitir também que temos uma essência, uma natureza
determinada, e dessa natureza não poderíamos escapar. Entretanto, pensar desta forma é
pensar que queremos justamente romper esta ligação eu-Deus, isto é, queremos argumentar
que não pode haver uma essência ou algo que foi determinado sem o nosso
“consentimento”, pois a essência que teríamos é algo limitador. Ora, parece que aquilo que
Kierkegaard quis dizer não foi isso, e sim que a existência é que nos foi dada, nossa
condição nos foi dada, não a nossa essência. E, mesmo se for uma essência fundamental,
por que deveríamos afirmar que ela é limitadora? Em segundo lugar, admitir que há um
destino, que é ser espírito, implicaria em não termos escolhas livres, pois ao que parece as
nossas escolhas já “nasceram feitas”. Dentro do pensamento kierkegaardiano, esta
afirmação é desprovida de sentido. Pois os momentos de decisão são aqueles que mais nos
revelam a nós próprios, e nós somos espírito. Sob este ponto de vista, o nosso destino é a
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liberdade. Quem não segue o seu destino é que não é livre! Este sim, insiste em continuar
preso no seu egoísmo. Esta é a idéia mencionada por Padilha (1981, p. 10):
O homem só se liberta quando se engaja no seu próprio ser, ou dele faz o ser que ele deve ser. Há
em todos os homens um abismo entre a vocação e o destino. Mas é na doação existencial que se
situa a verdadeira face da liberdade, que não foi dada ao homem para ensejar atos parciais de
afirmação existencial, mas para o perene abandono no seio do Ser, através de uma resposta
afirmativa ao desafio de seu pleno existir. É ao assumir o risco de viver genuinamente na
insegurança dos caminhos da existência que o ser se radica na fonte de sua própria existência. Não
há segurança senão dos seres que se entregaram e se doaram, quando mais aguda era neles a
consciência essencial da insegurança existencial.
Conhecermos a nós mesmos é a via de entrega a Deus e a forma mais expressiva de
nossa liberdade.
Qual seria o motivo dessa separação do homem de Deus, e da sua falta de fé,
presentes tanto naqueles que não querem ser si próprios quanto naqueles que querem ser si
próprios? No caso daqueles que não querem ser si próprios, o que faz com que o eu seja tão
aterrador? Seria, neste caso, a verdade? Mas que tipo de verdade é essa? Ou seria a
sociedade, também mencionada várias vezes, que condenaria um eu que assumisse a si
mesmo e se auto-afirmasse? Quanto à verdade, ela é dada pela vida, pela vivência. Segundo
Jolivet (1961), é pela vida que eu devo transformar-me na regra do meu comportamento,
junto à espontaneidade da razão e do coração. “Não há verdade para o indivíduo senão
quando ele próprio, agindo, a produz” (Jolivet, 1961, p. 46). Não contemplamos e
meditamos a respeito da verdade. É ela que nos contempla e nos acena, ela que toma posse
de nós. Para que ela exista para nós, é necessário que a sejamos. Verdade e vida coincidem.
Mas não há verdade que não ponha em jogo tudo o que sou. Verdade e risco estão
necessariamente ligados. E talvez seja este risco o responsável pelo desejo de separação do
homem de Deus. Se eu não quiser assumir o risco, não assumirei a minha verdade. Assumir
o risco é se entregar a Deus e o destino, restabelecer a ligação eu-Deus. Se recuso o risco,
recuso Deus. E, nisto, não tenho fé. A fé é a adesão sincera e o autêntico compromisso
(Jolivet, 1961). Também aqui, verdade e fé coincidem.
No que concerne à condenação que a sociedade impõe, ora, não seria um outro
aspecto desta verdade individual? Melhor dizendo, a sociedade parece impôr uma verdade,
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ou várias verdades previamente construídas às pessoas. Mas, segundo Kierkegaard (apud
Jolivet, 1961), ela não pode ser imposta do exterior. Só a vida e a ação do existente podem
descobri-la. Claro que o indivíduo pode sentir que sociedade é passível de condenar (e
muitas vezes condena de fato) uma verdade que ela não construíra antes. E é perfeitamente
compreensível que este indivíduo não assuma o risco inerente de ser si próprio...
2. A Angústia
Em O Conceito de Angústia, Kierkegaard (1968) desenvolve seu pensamento a
respeito da existência tendo em vista o pecado original e a queda de Adão. O que se oferta
como interesse da Psicologia é a possibilidade do pecado, ou seja, a Psicologia deve se
ocupar de como o pecado nascerá, mas não pode tratar do ato de seu nascimento. No limite
entre a possibilidade do pecado e a sua presença concreta há uma diversidade qualitativa,
um salto qualitativo. Este salto qualitativo nenhuma ciência consegue explicar.
Para o filósofo, “o homem é um indivíduo e, assim sendo, é ao mesmo tempo ele e
toda a humanidade, de maneira que a humanidade participa toda inteira do indivíduo, do
mesmo modo que o indivíduo participa de todo o gênero humano” (Kierkegaard, 1968, p.
32). O indivíduo possui uma história, e da mesma forma a humanidade. E todo indivíduo é
afetado tanto pela sua história quanto pela história da humanidade. Adão é o primeiro
homem, sendo ele mesmo e o gênero humano, não diferindo de todos nós, os seus
descendentes. Adão, dessa forma, representa todos os homens, o gênero humano. E o que
dá a explicação de Adão dá a explicação do gênero humano.
Com o primeiro pecado de Adão e de qualquer homem que sucedeu a ele, o pecado
entra no mundo. O primeiro pecado se caracteriza por uma qualidade, é o pecado, e não um
pecado qualquer. É a partir dele que sobrevém a pecabilidade, que é por sua vez condição
dos pecados posteriores, e estes sim se dão numa progressão quantitativa. Na história do
gênero humano, a pecabilidade se dá por determinações quantitativas, enquanto que na
história do indivíduo ela se dá pelo salto qualitativo. “Não é o gênero humano que reinicia
em cada indivíduo — pois se assim fosse não poderia existir como gênero — porém cada
indivíduo que reinicia o gênero humano” (Kierkegaard, 1968, p. 37). Assim, cada
32
indivíduo, por cada ato que realiza, que renova o ser humano como um todo; não é portanto
um movimento determinístico, em que a história determina o que o indivíduo será então,
mas é um movimento do presente para o futuro, do presente para o que há de ser.
A inocência, a angústia e a queda
Adão, antes da queda, vivia no estado de inocência. Inocência não é nem uma
perfeição a que devemos aspirar a voltar, nem imperfeição que seja necessário superar. É
bastante a si mesma, e a perdemos por meio da culpa. Inocência é ignorância. A explicação
de sua perda é a que cabe à Psicologia.
Na inocência, “o homem não está determinado como espírito, ainda que a alma
conserve uma unidade imediata com o seu ser natural” (Kierkegaard, 1968, p. 45). Sendo o
homem inocente, o espírito ainda sonha. É um estado de calma e descanso. Entretanto, não
é apenas isso. Algo mais existe aí, e este “algo” é o nada. Este nada dá nascimento à
angústia. Ao mesmo tempo em que o espírito sonhador projeta a sua realidade, a inocência
tem sempre diante de si o nada. A angústia é determinação do espírito sonhador. O estado
de vigília estabelece a diferença entre mim mesmo e o outro-em-mim, mas o estado de sono
deixa esta diferença em suspenso; esta diferença aparece como um vago nada. A realidade
que o espírito projetou apenas se mostra, é apenas uma possibilidade — o nada. Daí vem a
angústia, que “é a realidade da liberdade como puro possível” (Kierkegaard, 1968, p. 45).
Na criança podemos encontrar angústia na forma de busca pela aventura, pelo mistério, e
ela é fundamental nesta fase da vida; a criança não quer dispensá-la, pelo contrário: é
encantada pela sua inquietação. Assim a angústia se mostra no homem: simpatia
antipatizante e antipatia simpatizante. O homem a ama e a teme.
O homem é uma síntese de alma e corpo; mas estes elementos se reúnem num
terceiro, que é o espírito. Se assim não fosse, não haveria homem, apenas animal. O
espírito, que já está presente (embora em estado de sonho), aí se mostra como uma potência
ambígua: é o poder inimigo, que confunde a relação alma-corpo; e é potência amiga, que
quer constituir a relação. Por isso, a relação do homem com o espírito é angústia. Uma
relação ambígua.
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O espírito não pode estar contente com ele mesmo, nem apreender-se, enquanto o seu eu se conservar exterior a si mesmo; menos ainda o homem pode naufragar na existência vegetativa, visto que se determina como espírito, o fugir à angústia não é possível porque a ama; porém, amá-la realmente, do mesmo modo não, pois foge dela. Em tal instância, a inocência chega ao ponto máximo. É ignorância, porém não animalidade bruta; trata-se de uma ignorância determinada pelo espírito e, entretanto, não deixa de ser angústia, desde que essa ignorância se abre sobre o nada. Não existe aqui conhecimento do bem e do mal, etc., a realidade completa do saber projeta-se na angústia como o infindo nada da ignorância. (Kierkegaard, 1968, p. 47)
Ora, vamos procurar entender o que seria a angústia. Assim como o desespero,
poderíamos defini-la como um sentimento, mas que desta vez acompanha uma certa
vontade ambígua, e também o nada. Estamos tratando aqui, portanto, de uma escolha.
Diante de uma escolha existencial, o homem se sente inquieto. Pois há a possibilidade, a
qual obviamente não dá certeza alguma de um sucesso. O homem, assim, vê-se numa
situação em que nem pode ficar inerte (“naufragar na existência vegetativa”), nem
consegue agir de forma fiel à sua existência. A angústia está ligada tanto à inocência, “o
infindo nada da ignorância”, quanto à possibilidade de culpa (Marino, XXXX). “Ela não é
culpada, e, contudo, a angústia existe como se já estivesse perdida” (Kierkegaard, 1968, p.
49). Em outras palavras, não fazemos idéia alguma do que pode nos acontecer, ou que tipo
de pessoas seremos ao realizarmos nossa escolha; é, portanto, uma relação nossa com o
futuro, que é repleta de possibilidade e, por isso, repleta de angústia (Marino, 1998). A
única coisa que sabemos é que podemos cair na culpa ao fazê-lo. Voltando à história do
Gêneses, foi pela angústia que se deu o pecado original, e não pela proibição de Deus que
tentou Adão; a culpa não está num sedutor que nos enganou. A tentação ou a sedução não
se deve a algo externo, e sim pela angústia interior, a angústia presente no homem. Na
verdade, “todo homem é tentado por si próprio” (Kierkegaard, 1968, p. 51). Sendo tentado
por si próprio, é fácil enxergar que a culpa que um indivíduo sente seja voltada a ele
próprio.
Mas realizar nossa escolha é justamente exercer nossa liberdade. É por isso que
Kierkegaard (1968) define a angústia como a possibilidade da liberdade. Pois é diante de
uma escolha, de uma decisão, é que notamos a possibilidade de nossa liberdade. É aí que
nos encontramos ante o amar e simultaneamente o temer a existência em que nos
encontramos.
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Aí a inocência chega a seu ponto máximo. A proibição dada por Deus a Adão
(“porém, os frutos da Árvore do Bem e do Mal não comerás”) deixa-o inquieto diante da
possibilidade da liberdade. É graças à realidade da liberdade que a diferença entre o Bem e
o Mal se torna existente. Adão, na inocência, não sabia o que era o Bem ou o Mal, não
entendera o que dissera Deus, mas inquietou-o a possibilidade de poder; e sobre o que
pode, não tem idéia alguma. Deus diz a Adão “por certo morrerás”, se ele comesse dos
frutos da Árvore. Mas Adão não sabe o que é morrer. Não na inocência. E a angústia de
novo sobrevém. Diante da inocência, estão a coisa proibida e o castigo. Mas é necessário
dizer que a possibilidade da liberdade não coincide com o poder escolher entre o bem e o
mal. Esta possibilidade, na verdade, está em poder-se, como já foi dito. Não temos aqui
uma escolha ética simplesmente:
Em um sistema lógico, é fácil discorrer sobre uma passagem do possível ao real; na realidade, as coisas não são tão fáceis e precisa-se de um intermediário. Tal fator é a angústia que, perceba-se, não explica o salto qualitativo nem o justifica eticamente. A angústia, se não é uma categoria da necessidade, igualmente não o é da liberdade; corresponde a uma liberdade obstaculada, em que a liberdade não é livre em si mesma porém cujo obstáculo se insere nela mesma e não na necessidade. (Kierkegaard, 1968, p. 53)
Ora, o que o filósofo quer nos dizer é que explicar uma escolha por meio de
exclusiva necessidade, como inclusive fazem algumas escolas da psicologia, ou por
exclusiva liberdade é algo próprio de um sistema lógico de pessoas que se apressam de
forma estúpida a encontrar explicações a qualquer preço. Pois é uma absoluta contradição,
visto que por estes dois caminhos a angústia não existiria. Como seria tanto melhor! Já que
ou eu escolheria inevitavelmente aquele caminho predeterminado, ou eu escolheria o
quisesse, pouco me importar sob quais condições estou! Que angústia ocorreria aí?
Nenhuma. E, no entanto, não é isso que notamos na realidade humana...
Por vezes se diz que uma criança não é nem boa nem má, mas imersa num meio
bom, torna-se boa, e imersa num meio mal, torna-se má. Entretanto, Kierkegaard (1968)
pergunta: e onde ficaram as determinações intermediárias? A criança pode sempre fazer-se
boa ou má. “Sem intermediários exatos, todos os conceitos ficam perdidos: o de pecado
original, o de pecado, o de humanidade e de indivíduo... e com eles o de criança”
(Kierkegaard, 1968, p. 81). Ora, o que o autor nos chama a atenção é o fato de haver uma
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importância gigantesca do indivíduo na construção de si mesmo. Não é o meio, ou pelo
menos não é somente ele que me determina. Eu me faço pelas minhas escolhas. E fazer
uma escolha é algo que acontece por meio do salto qualitativo. Explicar o salto qualitativo
nenhuma ciência consegue; aquele que tenta fazê-lo, segundo o autor, tenta inscrever este
salto no sistema de que terá alguém de achar os seus óculos, quando não percebe que os
têm sobre o nariz. Isto é, o cientista tenta achar a solução lá fora, num sistema, quando na
verdade, se ele olhar um pouco para si mesmo, perceberá o que estava tentando encontrar; e
o encontrará subjetivamente. A ciência precisa sair de sua estreita visão. Como diz o autor,
“a existência é bastante rica, desde que saibamos olhá-la; não é necessário ir-se a Paris ou a
Londres... e com que finalidade, se não se sabe enxergar?” (Kierkegaard, 1968, p. 79).
3. O Paradoxo da Existência
Semelhanças e diferenças
Tendo em vista estes dados das duas obras, nota-se certas semelhanças e diferenças
entre os conceitos de angústia e o de desespero. Eles caracterizam o existente. “Existir é
sofrer necessariamente o desespero e a angústia” (Jolivet, 1961). Ambos implicam numa
coexistência no homem de duas instâncias conflituosas ou contraditórias. O homem ama e
teme a angústia; ou mesmo a angústia está ligada à potência ambígua do espírito, que é
inimigo e amigo ao mesmo tempo. No desespero, queremos e não queremos ser nós
próprios. Este aspecto será retomado logo à frente. Encontramos também uma semelhança
fundamental entre angústia e desespero: a angústia é a relação do espírito com ele mesmo e
sua condição, e o desespero também advém do eu ao voltar-se sobre si mesmo.
Os conceitos não são iguais, mas a semelhança é que tais definições apenas significa
que ambos estão ligados à relação do eu consigo mesmo, ao autoconhecimento portanto, e
também à liberdade. A diferença é que na angústia a questão do possível e do nada se
destaca como aspecto principal, enquanto o desespero se dá com a não-aceitação de ser o eu
que se é. Além do mais, a angústia é observada no estado de inocência, mas não há
indicações de que o desespero esteja também aí presente. O desespero estaria ligado à
realidade, e a angústia à possibilidade de culpa. De outra forma, o desespero se dá no
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processo de autoconhecimento e a angústia se observa na possibilidade da liberdade. O
desespero é mais ligado à consciência, ao espírito e à reflexão; desesperamos daquilo que
somos. O homem se vê dentro de certos limites, percebendo que o mundo não o pode
completar, e que nem ao menos pode se completar. Acaba tendo então de se relacionar com
o Absoluto, caso contrário não é nada (Jolivet, 1961). “A angústia é a forma que toma essa
consciência e o desespero é o termo a que ela conduz” (Jolivet, 1961, p. 57). Então, uma
ligação que os dois conceitos podem guardar entre si é a ordem de seu surgimento. A
angústia surgiria na inocência: “o espírito não pode estar contente com ele mesmo, nem
apreender-se, enquanto seu eu se conservar exterior a si mesmo” (Kierkegaard, 1968, p.
47), visto que, sonhador, apenas projeta a sua realidade. Quanto ao desespero, surgiria na
relação do eu consigo próprio; poderia-se dizer, o eu já não se conserva exterior a si
mesmo, entretanto não o aceita. Na inocência, o espírito, que é identificado em O
Desespero Humano como sendo o eu, ainda não atua. Ou seja, o eu não se manifesta.
Somente quando o eu surge e relaciona-se consigo, aí temos o desespero. Claro, angústia e
desespero nunca deixariam de estar presentes na vida humana, já que temos freqüentemente
diante de nós o nada, o possível, a necessidade de decisão; e sempre estaríamos lidando
com nosso próprio eu, de uma forma ou de outra. Assim, “a angústia move-se no sentido da
perfeição; o desespero no sentido da libertação” (Jolivet, 1961, p. 59). Num estado
angustiado, o homem precisa escolher o que ele será dali para frente, e o que ele escolhe é
no sentido de sua realização pessoal.
E quanto à liberdade? A proibição que Deus fez a Adão deixou-o inquieto, pois nele
despertou a possibilidade da liberdade. E, como foi dito, a diferença entre o Bem e o Mal
“apenas se torna existente por força da liberdade” (Kierkegaard, 1968, p. 49). Adão podia
comer o fruto ou não. A liberdade, ao que parece, seria o que possibilita uma escolha. Bem,
já em O Desespero Humano, a liberdade certamente não se expressa através do libertar-se
de si próprio, visto que isto não é possível. Pelo contrário, “querer ser o eu que se é
verdadeiramente é o contrário do desespero” (Kierkegaard, 1979, p. 201). A liberdade
estaria aí, então? Em querermos ser, ou melhor, sermos nós próprios? O que não exclui a
definição anterior, pelo contrário, a complementa, pois o ato de decidir é um ato livre pelo
qual cada um de nós escolhe a si mesmo. Este eu, querendo ser si próprio, “mergulha,
através das sua própria transparência, até ao poder que o criou” (Kierkegaard, 1979, p.
37
196). Eis que se pode lançar a hipótese: ser si próprio é ser uno a Deus, e ser uno a Deus é
ser livre. É por isso que angústia e desespero, retomando a comparação anterior,
absolutamente estão interligados. Pois é no ato livre que a pessoa se conhece.
O paradoxo nos conceitos
A angústia é a vertigem da liberdade (Kierkegaard, 1968). O filósofo dinamarquês
nos traz a seguinte comparação: quando nosso olhar se dirige a um abismo, sentimos
vertigem; nesta vertigem, parece-nos não ser possível deixar de encarar o abismo —
queremos nos afastar da beirada, mas não podemos parar de encarar o que está na nossa
frente. O mesmo se dá na angústia. A angústia surge quando o espírito quer estabelecer a
síntese (eterno e temporal, finito e infinito etc.), e ao mesmo tempo a liberdade imerge e
olha para o abismo de suas possibilidades, mas também se agarra à finitude para não se
perder. Neste ponto, a liberdade se acha culpada. A manifestação mais real da liberdade é a
possibilidade de algo se concretizar. Podemos notar aqui a relação entre esta dinâmica da
liberdade e da angústia com o problema desta pesquisa. Pois bem, justamente este problema
é colocado por Kierkegaard, no sentido da ambigüidade, do paradoxo: é o querer, ao
mesmo tempo não querendo.
Para o filósofo, esta é a grande tarefa do homem: optar contra ou a favor da própria
existência (Giles, 1975). A própria existência é constituída de paradoxos. É um desejo de
união da parte de um ser que não consegue unir-se a si mesmo (elemento que está
envolvido no autoconhecimento!). O paradoxo se faz presente em praticamente todos os
principais conceitos que o autor apresenta, e os apresenta através de sua dialética. Teríamos
a angústia, que é simpatia antipatizante e antipatia simpatizante (Kierkegaard, 1968); o
desespero e o pecado, presentes no homem, que quer e não quer ser si próprio, perante
Deus (Kierkegaard, 1979); além do espírito, definido como síntese voltando-se a si mesma
(Kierkegaard, 1979), e potência ambígüa, amigo e inimigo, que constrói e dissolve a síntese
(Kierkegaard, 1968). Notamos assim que o próprio indivíduo, o próprio eu é um paradoxo.
O homem, assim, luta consigo próprio, está num estado de tensão, de conflito entre
extremos. A subjetividade, para Kierkegaard, é a verdade (Giles, 1975); isso também é um
paradoxo, pois como pode ser a verdade algo que não é objetivo e certo?
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O indivíduo, enquanto paradoxo, é também um encontro entre tempo e eternidade
(Giles, 1975). Sem o tempo, não se pode ter contato com o eterno. A existência do
indivíduo se decide no tempo. Mas é no instante que se revela o grande dilema da liberdade
humana e a sua tarefa essencial dada por Deus. O instante é a ligação entre o temporal e o
eterno; é no instante que se dá a opção fundamental pela existência. Mas que “instante”
seria este? Talvez seria quando se dá o salto qualitativo (Kierkegaard, 1968), o momento
em que a liberdade se debruça sobre o abismo de suas possibilidades, mas se agarrando à
sua finitude. Ela pode optar ou por uma, ou por outra, e quando opta temos o salto
qualitativo, representado pela queda de Adão, e que é inexplicado pelas ciências, em
particular a Psicologia. Ao que parece, ao redor das noções de autoconhecimento e
liberdade, vão orbitar o paradoxo e a questão da escolha. Esta escolha abrange tudo, a
salvação e a ruína, a vida e a morte; ela envolve escolher também a si mesmo no seu valor
eterno, pois se arrisca tudo o que é finito numa jogada paradoxal (Jolivet, 1961).
Kierkegaard não traz uma explicação do paradoxo, até porque explicá-lo seria
excluí-lo. Sendo assim, a própria existência pode ser explicada? Tendo em consideração o
que foi exposto, não. Não através unicamente da razão, pelo menos. Ou melhor ainda, a
existência não seria para ser compreendida, e sim para ser escolhida. A existência é a
tensão, o conflito constante entre o racional e o irracional, liberdade e determinismo, o
universal e o particular (Giles, 1975). Nesta tensão, o homem luta para conquistar sua
individualidade, conquistar seu eu. Afinal, como ser um único eu, se este eu está
conflituosamente bipartido? Talvez este seja o grande desafio que a existência oferece, pelo
qual todos temos de passar. Porque aí está o eu que não quer mais olhar para si, que prefere
ficar separado do drama da existência e acaba muitas vezes se perdendo. De onde decorrem
os principais problemas interiores de nosso tempo, segundo Rollo May (1987), como por
exemplo: o vazio interior, em que as pessoas ignoram o que querem e não têm idéia nítida
do que sentem; a solidão; e em especial a ansiedade. Este mesmo autor, da psicologia de
caráter humanista, já descreveu o paradoxo, chamando-o de dilema (May, 1977), e será
portanto o ponto de ligação entre a Filosofia Existencial e a Psicologia Humanista.
Questionamentos finais
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Uma das críticas que se poderia lançar sobre o existencialismo de Kierkegaard é se
ele não se mostra como justamente aquilo que quis criticar, ou, melhor dizendo, será que
toda esta reflexão e descrição a respeito do desespero e da angústia não constituiria
justamente num sistema filosófico, algo que Kierkegaard ataca veementemente? Pois,
poderia se dizer, as diversas caracterizações destes conceitos e dos que os circundam
podem parecer muito fechadas. Mas devemos nos atentar pela ênfase que o filósofo dá à
vivência pessoal e a da verdade como subjetividade. Em nenhum momento ele nos diz que
a verdade é esta ou aquela. Ele caracteriza, de fato, as diversas formas que angústia e
desespero tomam no humano. Mas é uma caracterização da condição humana, e não de
sua essência. Ainda aqui a existência precede a essência; angústia e desespero são
resultantes desta condição do ser humano como agente livre, e não são parte da essência
humana.
E finalmente, poderíamos questionar: por que falarmos em pecado, em espírito e em
Deus numa psicologia? Bem, e a questão de Deus, da existência, e de todo o seu sentido
não são importantes para o homem?... A questão espiritual mal tem recebido a atenção
devida em psicologia, e em especial na psicologia humanista (Hall, Lindzey e Campbell,
2000), mesmo sendo parte fundamental da vida humana. Muitas vezes não percebemos que
os problemas que as pessoas têm acabam tendo por princípio fundamental a busca do quê
fazer com suas vidas, com elas e com a compreensão que elas têm de si mesmas.
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ROLLO M AY : A NSIEDADE E D ILEMA H UMANO
O autoconhecimento e a liberdade na obra de Rollo May se dão através de certos
conceitos que estão baseados em observações a respeito dos sentimentos e das situações em
que se encontra o homem nos tempos atuais. Estaríamos passando por uma época de
revisão, e até mesmo de uma reversão de valores e padrões, que nos impediria de ter uma
visão mais nítida de nós mesmos. Ao mesmo tempo, entretanto, é justamente nestes tempos
de insegurança que o homem tem a oportunidade de se lançar na busca de si mesmo. A
desintegração pela qual a sociedade passa acaba se tornando uma espécie de inquietação
como um caminho para o despertar. A psicologia estaria tentando acompanhar e trazer luz a
esta busca generalizada, e em especial a psicoterapia lança mão de propostas que apóiem as
pessoas ao lidar com as questões existenciais. O autor apresentará então novos “insights” da
psicologia, com o apoio de conceitos como os de ansiedade, dilema humano,
responsabilidade, liberdade, criatividade, self, autoconsciência entre outros.
1. O Homem Contemporâneo
Rollo May (1977; 1987) vai dar um panorama da situação do homem no século XX,
mostrando que esta época está marcada como um momento da História em que o dilema da
vida humana se intensifica. O autor vai procurar mostrar o que motivou o surgimento dessa
situação, caracterizar o contexto histórico e como o ser humano refletiu este contexto.
Quais seriam os principais problemas interiores do nosso tempo? Que tipo de
conflitos existem no homem?
Este homem perdeu a sua significação, perdeu a sua identidade enquanto indivíduo.
O sentido do eu é deficiente. As perguntas “quem sou eu?”, “para onde vou?”, “qual o
significado da vida?” permanecem sem respostas, mas persistem. As pessoas não mais se
utilizam de sua força, não afirmam sua própria identidade, e assim não conseguem ter
importância, exercer influência e potência, sendo vítimas passivas das circunstâncias
41
exteriores, despidas de significação. Ocorrem os processos “de massa” (cultura, educação,
comunicação, tecnologia), que acabam ditando como se deve ser, resultando em revoltas e
crises, em que as pessoas tentam se reafirmar como indivíduos. As “convulsões” culturais
da civilização intensificam o dilema e abalam a imagem que a pessoa faz de si própria. E as
grandes ameaças, como por exemplo a ameaça da guerra termonuclear na época da Guerra
Fria, fazem com que os seres humanos se sintam impotentes (e pode-se citar também, nos
tempos atuais, a ameaça do terrorismo e da guerra contra este terrorismo). Entretanto, o que
se encontra subjacente a todos estes sintomas? May (1977; 1987) lista aspectos que
estariam envolvidos em toda a constituição humana que hoje denunciaria sua grande crise
existencial; estes aspectos envolveriam o vazio, a solidão e, principalmente, a ansiedade.
O Vazio
Um número cada vez maior de pessoas, que procuram a psicoterapia com o objetivo
de alcançar uma “integração interior”, tem sido um sensível indicador dos conflitos e
tensões que se revelam na sociedade; tensões e conflitos estes que ainda não atingiram o
seu ponto culminante, mas talvez irrompam em breve (May, 1987). Grande parte da
responsabilidade por este fato é o que tem ocorrido na relação do indivíduo com as outras
pessoas:
[O homem] não procura destacar-se e sim adaptar-se; vive como se tivesse um radar preso à
cabeça, orientando-o e perpetuamente dizendo o que é que os outros dele esperam. Este tipo aceita
dos demais as motivações e orientação; como o homem que se descreve como um jogo de
espelhos, é capaz de reagir, mas não de optar; não possui um centro próprio de motivação eficaz.
(May, 1987, p. 18).
Temos desta forma indivíduos que mal se colocariam perante os demais como
aqueles que agem como sujeitos de suas próprias ações. A discussão que teríamos aqui é a
do quanto de autonomia uma pessoa possui com relação ao que faz e pensa. Uma pessoa,
da forma descrita, apenas reagiria, e não tomaria decisões; apenas se adaptaria, e não
atuaria de forma ativa no mundo ao redor. Pelo contrário, as atitudes das pessoas de nossa
época são caracterizadas como de passividade e de apatia (May, 1987). Muitos dos jovens,
42
de maneira especial, renunciaram à opção de se destacar, de ter ambições. Desejam ser
aceitos pelos integrantes de seu grupo, mesmo que isso custe o seu desaparecimento como
pessoas.
Claro, poderíamos questionar aqui se essa fuga do destaque é algo “ruim” em si
mesmo. Afinal de contas, se alguém não quer se destacar, isso seria uma posição que
deveríamos respeitar. Mas talvez a discussão que o autor pretende colocar não comporta
apenas uma questão de se classificar um comportamento como “bom” ou “ruim” para a
pessoa. Podemos entender aqui uma descrição de sentimentos e pensamentos tomados
como indicadores de uma falta de consciência de si, o que por sua vez refletiria numa
persistência do conflito interior.
Para R. May (1987), a conformidade estaria sendo elevada a algo parecido com uma
“religião”. A grande regra que as pessoas seguiriam é: “não se destaque, faça o mesmo que
os outros”. Foi uma espécie de herança que o homem vitoriano deixou: uma pseudoforça
interior, um método destrutivo de adquirir força, e sua orientação interior se identifica
como um substituto moralista da integridade, e não como a própria integridade. É
necessário descobrir um novo centro de força íntima. O que estaria em jogo, neste caso,
seriam as potencialidades, conceito importante dentro da psicologia humanista. “O ser
humano não pode viver muito tempo no vácuo. Se não estiver evoluindo em direção a
alguma coisa acaba por estagnar-se; as potencialidades transformam-se em morbidez e
desespero e eventualmente em atividades destrutivas” (May, 1987, p. 22). A conformidade,
portanto, seria uma posição ou um estado pessoal que inibe o exercício e desenvolvimento
das potencialidades individuais. Esta conformidade estaria ligada à sensação de vazio.
A sensação de vazio provém, em geral, da idéia de incapacidade para fazer algo de eficaz a
respeito da própria vida e do mundo em que vivemos. O vácuo interior é o resultado acumulado, a
longo prazo, da convicção pessoal de ser incapaz de agir como uma entidade, dirigir a própria
vida, modificar a atitude das pessoas em relação a si mesmo, ou exercer influência sobre o mundo
que nos rodeia. Surge assim a profunda sensação de desespero e futilidade que a tantos aflige hoje
em dia. E, uma vez que o que a pessoa sente e deseja não tem verdadeira importância, ela em
breve renuncia a sentir e a querer. (May, 1987, p. 22).
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Ou, de outra forma, para May (1977), esta impotência causa a ansiedade, que por
sua vez leva à apatia, e daí para a hostilidade e à alienação do homem em relação ao
homem, ou “encapsulação”. Este é um círculo vicioso na dinâmica psicológica, já que o
isolamento intensifica o sentimento de impotência. O que vem acontecendo é uma
diminuição ou mesmo perda da consciência do eu. Este é o ponto central da perda de
significação.
Como parte da caracterização desta perda, o autor prossegue descrevendo um outro
aspecto fundamental, a solidão.
A Solidão
“A solidão é uma ameaça não violenta e penosa para muitos que não possuem a
concepção dos valores positivos do isolamento e até se assustam com a possibilidade de
ficar sós” (May, 1987, p. 23). É o medo da solidão, mais especificamente, que faz com que
as pessoas absolutamente não se encontrem. Quando alguém percebe, com insegurança e
confusão, que não pode usar dos valores e metas que os outros ditaram, sente o vácuo
interior, e para preencher este vácuo é natural que procure outras pessoas para obter uma
orientação. É devido às primeiras relações com os demais que o homem fica apto a adquirir
autoconsciência, a base de sua orientação na vida. O homem, desta forma, precisa
relacionar-se com outras pessoas a fim de se orientar.
Temos aqui o conceito de self. É através destas relações que o ser humano tem suas
experiências do self, quando está sozinho teme perder esta experiência. O self é o processo
desenvolvido pelo indivíduo em interação com seus semelhantes e através do qual se torna
capaz de tratar a si mesmo como objeto, isto é, observar-se, considerando seu próprio
comportamento do ponto de vista alheio.
Devemos frisar a relevância que este conceito comporta com relação ao
autoconhecimento. Também Carl Rogers (segundo Hall, Lindzey e Campbell, 2000) se
utilizou de um conceito homônimo, embora este autor o tenha descrito de forma mais
detalhada que Rollo May.
Damos muito valor à aceitação social. É a melhor maneira que encontramos de
afastar a ansiedade e obter prestígio. Temos a necessidade de provar que não andamos sós,
e que os demais nos procuram. Buscamos ser estimados. Rollo May (1987) cita
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Kierkegaard, que teria dito que as pessoas fazem de tudo em matéria de diversão para
afastar a idéia de solidão, à semelhança de povos nas florestas que procuram manter
distância os animais selvagens se utilizando de tochas e gritos. Mas o medo acaba sendo
maior ainda que as defesas que armamos, implicando numa ansiedade maior.
Todo ser humano adquire parte do senso de sua própria realidade pelo que os outros dizem e
pensam a seu respeito. Mas quem foi longe demais nessa dependência alheia acabou temendo que
se ela faltasse perderia o senso de sua própria existência, ficaria “disperso”, como água escorrendo
na areia. Muita gente vive assim, tateando como cego, tocando uma sucessão de pessoas. (May,
1987, p. 28).
Esta total dependência do outro torna o indivíduo extremamente vulnerável pois,
quando a orientação externa é falha (e quase sempre o é), ele tem de contar com os recursos
próprios e a própria força interior. Mas o desenvolvimento destes recursos e desta força é
justamente aquilo que foi negligenciado por ele, por conta do vazio!
O que o autor pretende mostrar aí, e o que todos estes “círculos viciosos” parecem
apontar, é que solidão e vazio fazem parte de uma experiência ainda mais fundamental, já
citada anteriormente, que seria a ansiedade. Este é um dos conceitos mais comentados
dentro da obra do teórico.
A Ansiedade
Ser vazio e solitário só preocupa as pessoas quando elas se sentem em meio à dor e
confusão psicológicas chamadas de ansiedade (May, 1987). Uma primeira e básica
definição se dá na diferenciação entre medo e ansiedade: temos medo quando sabemos o
que nos ameaça; mas quando estamos ansiosos nos sentimos ameaçados sem saber o que
fazer para enfrentar um perigo que não é perceptível. A ansiedade, ao invés de aguçar a
percepção, torna-a embotada. De uma maneira geral, vivemos ansiosos ao ignorar que
papel devemos assumir ou em que princípios devemos crer.
Diferenciam-se dois tipos de ansiedade: a normal e a neurótica (May, 1977). A
ansiedade normal é aquela que ajuda a escapar da situação de ameaça, aquela que aguça os
sentidos e faz com que se tome alguma atitude para enfrentar a situação; é ansiedade
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construtiva. Já a ansiedade neurótica consiste numa intensificação deste estado, com a
diferença que não se consegue fazer nada para enfrentar a situação, ao diminuir a percepção
e a consciência do que está acontecendo; é ansiedade destrutiva, aquela que prolongada
leva à despersonalização e à apatia. A ansiedade acontece quando o indivíduo sente que
seus valores estão ameaçados. “É a reação básica do ser humano a um perigo que ameaça a
sua existência, ou um valor que ele identifica com sua existência” (May, 1987, p. 34).
Assim, se os valores sociais, emocionais, morais são ameaçados, também a existência do eu
é ameaçada. A reação se dá, portanto, quando a ameaça se torna séria o bastante para
envolver o self total, o âmago da razão de viver de alguém. A ajuda que o psicoterapeuta
pode dar às outras pessoas consiste em conduzir da ansiedade neurótica à ansiedade normal,
e fazer com que se conviva bem com esta ansiedade, que é construtiva. É preciso ampliar a
consciência para que se tome medidas de superação das ameaças. May cita Kierkegaard,
que afirma que “a ansiedade é nosso melhor mestre. (...) Aquele que aprendeu corretamente
a ser ansioso aprendeu a mais importante de todas as coisas” (May, 1977, p. 57).1 É
necessário saber avaliar e engajar: a ansiedade é usada construtivamente quando a pessoa se
relaciona com a situação, faz sua avaliação e engaja-se numa ação, a exemplo de Sócrates,
que contestou mais corajosamente porque acreditou com maior coragem.
A idéia que encontraríamos aí é a de que, primeiro, a ansiedade normal é inevitável
e de que, segundo, ela tem duas faces: tanto pode ser responsável por prejudicar a
autoconsciência, quanto ser a própria oportunidade de se alcançar tal autoconsciência (daí a
citação de Kierkegaard). É aí que temos a utilização da ansiedade normal de maneira
construtiva.
2. As Causas da Ansiedade
1 Aqui devemos ter o cuidado de apontar uma certa inadequação na tradução dos termos “angústia” e “ansiedade”. A “angústia” kierkegaardiana foi traduzida para o inglês como “anxiety”, que corresponde a “ansiedade” em português. O tradutor das obras de Rollo May traduziu a citação de Kierkegaard (que pertence a sua obra O Conceito de Angústia) como “ansiedade”, quando no original o termo correto seria “angústia”. Felizmente, esta inadequação não afeta a análise aqui colocada, porquanto “ansiedade” em Rollo May tem algumas características diferentes de “angústia” em Kierkegaard.
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Rollo May (1977; 1987) vai tratar sobre as causas da ansiedade. Para isso, faz
inicialmente um histórico das teorias de ansiedade, e dos fatos mais relevantes que
envolvem a situação do homem na atualidade.
A Perda do Foco de Valores
As pessoas são influenciadas por sua cultura e sua história. A ansiedade do
indivíduo e seus métodos de enfrentá-la estão condicionados pelo ponto em que está o
desenvolvimento da cultura em que está inserido (May, 1977).
Na Idade Média, as emoções eram colocadas sob rigidez; cada um tinha o seu lugar
(o clérigo, cavaleiro, servo), sendo que estas emoções eram canalizadas nas cerimônias
religiosas. Os valores eram aceitos sem grandes problemas. Com o Renascimento, houve
um grande crescimento na crença do poder do indivíduo, além de um interesse maior pela
natureza física e pelo conhecimento empírico. Isso teve como conseqüência uma confiança
maior do indivíduo, uma maior coragem para resolver os problemas por si mesmo. A
dominação e o controle da natureza passou a ser a maior preocupação do homem ocidental.
No final do Renascimento, tem-se os precursores do pensamento psicológico moderno,
como Giordano Bruno, o místico Jakob Boheme (que descreveu a relação entre ansiedade e
o esforço criativo individual) e Paracelso (que destacou a importância da força de vontade
do doente no processo de cura).
A queda do absolutismo e do feudalismo e a conseqüente ascensão da burguesia
foram produto do princípio intelectual dominante na época: a crença das faculdades
racionais do indivíduo. Tal ênfase culminou nas formulações filosóficas de Descartes, entre
outros. Para Descartes, a razão individual era a base para a identidade psicológica do eu. Há
aquela história que contam de que este filósofo se isolou e não saiu de lá até que tivesse
pronta sua filosofia do “penso, logo existo”. Para May (1977), esta história ilustra o
isolamento individual próprio do racionalismo vigente. A dicotomia corpo e espírito ou
alma desde então foi um problema filosófico que nos perseguiu e acabou se tornando o foco
central da questão da ansiedade. Pois o corpo, sendo aquele de natureza física, era
controlável por leis mecânicas. Isso fez com que a preocupação se abrisse somente para
fenômenos que pudessem ter um tratamento mecânico e matemático, suprimindo da
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filosofia e das ciências tudo aquilo que fosse irracional ou não-mecânico. Este mecanicismo
foi eficiente na dissipação da ansiedade, pois deu margem para que as necessidades
materiais fossem satisfeitas e para que os temores irracionais dos humanos fossem deixados
tranqüilamente de lado.
Depois de Descartes, outros filósofos continuaram com a tradição racionalista e
mecanicista. Um deles foi Spinosa, o qual fala que as emoções humanas são controláveis
através da razão matemática. Esperança e medo, por exemplo, são emoções presentes em
pessoas que não sabem utilizar sua razão. Rollo May (1977) diz que, é claro, parece muito
fácil e atraente tal suposição, mas dificilmente uma pessoa do século XX pode conseguir
uma segurança psicológica dessa forma. Mas no próprio século de Spinosa, o século XVII,
surge uma voz discordante. É a de Pascal, que não compartilhou da confiança na razão
individual e abordou o tema da ansiedade. Para ele, a natureza humana não era
compreendida pela sua razão, nem que as emoções estivessem sob domínio dela. Na
verdade, a razão é que é influenciável pelas emoções, pela situação concreta em que o
indivíduo está. Pascal lembra das inquietações que os homens passam e as diversões em
que se engajam para evitarem os pensamentos que têm sobre eles próprios. O filósofo
relacionou a ansiedade com a existência precária do homem.
Entretanto, apesar dessa voz discordante, o racionalismo persistiu. Entretanto, um
problema ainda ficava: como superar a tendência de isolamento da razão individualista?
Pois o isolamento e o individualismo rompiam qualquer contato com o outro, o que
culminava em desamparo e ansiedade. Então, o que se fez para evitá-la? A solução foi a
crença na harmonia pré-estabelecida. Na economia, este princípio se evidenciava pelo
laissez-faire, em que cada um perseguia seus próprios motivos lucrativos, e isso acabaria
por beneficiar todo o grupo; quanto mais alguém trabalhasse para atingir seus interesses
econômicos, e quanto mais enriquecesse, mais contribuiria para o progresso da
comunidade. No plano psicológico, de forma semelhante, havia a crença de que a
exploração da razão individual conduziria a uma harmonia das conclusões de cada um com
seus semelhantes. Mas esta luta do indivíduo para seu próprio ganho deixou de constituir
um bem para a comunidade, e mesmo para a pessoa, gerando muita hostilidade e
ressentimento nos grupos, aumentando a ansiedade e o isolamento (May, 1977; 1987).
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A partir da segunda metade do século XIX, houve uma crescente falta de unidade,
com a crença na razão individual sendo substituída gradativamente por uma ênfase nas
técnicas. Karl Marx denunciou tal situação ao falar sobre a alienação e desumanização das
pessoas. Nietzsche disse que a ciência se tornava uma fábrica, temendo que o grande
avanço técnico conduzisse ao niilismo. A falta de unidade está em que cada um dá a sua
visão sobre a natureza humana e cada fato empírico era “esticado” para caber numa idéia
preconcebida. Os sistemas de pensamento são cultuados e elevados a um patamar
inalcançável, tal a sua importância. O homem tenta resolver seus problemas psicológicos
com os mesmos métodos utilizados para dominar a natureza física. A crença no controle
racional das emoções se converte em hábito de se reprimi-las. Uma falta de unidade interior
e uma ansiedade decorreram de tudo isso. Coube a pensadores como Freud, Kierkegaard,
Kafka, Schopenhauer e Nietzsche redescobrirem as fontes irracionais (May, 1977; 1987).
Em especial, Kierkegaard rejeitou o racionalismo tradicional como artificial. Era
contra o sistema de Hegel, que identificava o pensamento abstrato com a realidade, pois
isso levaria a uma forma de evitação da situação humana. A realidade só pode ser abordada
não por aquele que somente pensa, mas que também sente e atua. No que diz respeito à
ansiedade, o filósofo observou, segundo a interpretação de May (1977), que conseguimos
evitar a ansiedade neurótica ao nos tornarmos livres como indivíduos e realizamos a
comunidade com os outros. A ansiedade neurótica advém de um medo da liberdade e acaba
por causar um bloqueio de consciência e de experiência. É preciso, assim, avançar,
enfrentar e ir além das ameaças, a fim de que a ansiedade, que é onipresente, torne-se a
maior mestra (May, 1977).
Não podemos nos orientar pelos objetivos do passado. Os valores e metas que
buscamos para conseguir apoio já deixaram de ser convincentes, e ficamos sem saber para
onde nos voltarmos. Pelo contrário, devemos encontrar um novo centro de apoio, através da
transmutação dos valores (May, 1987).
O autor vai procurar mostrar como os valores são significativos para a pessoa. O
homem é um ser avaliador, que interpreta sua vida e seu universo em função de símbolos e
significados, identificando-os com a sua existência como eu. Como já se disse, qualquer
ameaça a estes valores implica em ansiedade, já que significa uma ameaça à existência.
Esta ameaça pode ser física, ou seja, a morte; ou psicológica, envolvendo a perda da
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liberdade; ou a algum valor como patriotismo, prestígio entre os pares, amor a uma pessoa
especial, devoção a uma verdade científica ou a uma crença religiosa. O valor pode se
tornar algo até mesmo maior que a vida — pessoas preferem morrer a renunciar a seus
valores. A vida física, em si mesma, não é significativa enquanto uma pessoa não puder
conscientemente escolher um outro valor que ela considere mais caro.
A Perda do Senso do Self
O homem é capaz de enxergar a si mesmo, e se observar. Pode se situar até mesmo
num futuro distante e ansiar pelo que ainda não é. Podemos compreender o passado e
influenciar o futuro. Todas estas capacidades são constituintes do self. Os valores e a
ansiedade que se relaciona a estes valores estão condicionados pelo momento do
desenvolvimento histórico da cultura. Um valor predominante no homem ocidental desde o
Renascimento tem sido o êxito financeiro e prestígio competitivo no trabalho, por exemplo.
Se isto é conseguido, a pessoa se sente realizada; se não, fica sujeita a uma grande
ansiedade e perde o sentido do ser como um eu. Retomando a questão da conformidade e as
demais características que a rodeiam, a pessoa valida-se ao se ajustar ao “rebanho”. Temos
então a ansiedade da solidão, a consciência da separação. O conformismo preponderante
dos nossos dias reflete esta solidão. A solidão é uma experiência comum entre aqueles que
se conformam: por um lado, são impelidos à conformidade por causa da solidão e, por
outro, a validação do eu pela procura de se tornar igual a todo mundo reduz no indivíduo o
seu sentido do eu e a sua experiência de identidade pessoal. Tal processo favorece o vazio
interior, aumentando a solidão.
Este isolamento pode ter decorrido da ruína das relações do homem com a natureza,
a qual era encarada como algo que devia ser dominado. Inclusive a própria natureza
humana passou a ser vista desta forma, numa “guerra não declarada contra si próprio”. No
século XX procurou-se achar meios de manipulação de si, numa clara expressão de
impessoalidade. Por isso houve tanto “congestionamento” nas clínicas psicológicas, com a
esperança de que a cura chegasse pela aplicação da própria doença, ou seja, procurava-se
superar a impessoalidade através de métodos impessoais. Mas vem acontecendo uma
procura pela recuperação da relação homem-natureza. Encontramos evidências disso pelas
50
descobertas da Física Moderna, com Heisenberg, e pelo interesse cada vez maior pelo
pensamento oriental, que não sofreu a divisão entre sujeito e objeto, entre o eu e o mundo
externo, nem a separação com a natureza. Veremos como isso aparece na ciência
psicológica, no próximo capítulo, ao tratarmos das vertentes mecanicista e holística em
Capra (1998).
Perdemos o sentido do valor, da complexidade, da dignidade e da liberdade do ser
humano (May, 1987). Nas décadas de 30 e 40 aceitaram-se muitas provas de que o
indivíduo era insignificante e que a decisão pessoal não tinha importância. Encontramos,
assim, boas razões externas para nos julgarmos insignificantes e impotentes.
Toda esta perda do senso de self se mostra como resultante das transformações
históricas da nossa sociedade (May, 1987). Claro, não devemos entender este processo
como uma simples questão de causa-e-efeito: também os sintomas encontrados na
sociedade estão intimamente ligados à perda do self; não podemos vê-los como se fossem
eventos separados, mas sim interatuantes.
Para May (1987), ainda, a busca do senso de self deve ser vislumbrada segundo o
preceito de Sócrates, o “Conhece-te a ti mesmo”, o mais importante e o mais difícil dos
desafios. Temos aí, obviamente, a procura pelas potencialidades individuais através do
autoconhecimento. Junto a isso, outra afirmação que se mostra importante é a de
Kierkegaard, que proclamou: “Aventurar-se, no sentido mais elevado, é precisamente tomar
consciência de si mesmo”. É o que discutimos no capítulo anterior, em que o ato de escolha
é uma forma de conhecermos a nós mesmos. É, portanto, a busca do senso de self que se
mostra como a tarefa mais essencial às pessoas, e é neste sentido que Rollo May
empreenderá a definição de seus conceitos mais relevantes.
3. O Dilema Humano
Rollo May (1977), ao se referir ao termo dilema humano, refere-se a um paradoxo,
ou polaridade. Os dilemas podem provocar ansiedade, mas também, enquanto polaridade,
são fonte de criatividade; o “confronto construtivo” das tensões faz com que essa
criatividade humana se revele.
51
A Psicologia, por vezes, estaria suprimindo muitas das características próprias do
ser humano, e que não podem ser deixadas de lado quando se trata de estudá-lo. As teorias
psicológicas acabam super-simplificando as coisas, e dessa maneira a forma de estudar o
homem fica deficitária. Tais teorias acabam transformando o homem em objeto de estudo,
esquecendo-se muitas vezes de que ele também é sujeito. Poderíamos nos perguntar, afinal
de contas: o que é o humano? Sujeito ou objeto? Ou seja, ele é aquele que toma iniciativas,
aquele que deseja, que quer, que sente, que escolhe, ou é aquele que sofre as ações de
elementos e valores externos, aquele que deve fazer? Bem, o dilema humano decorre
exatamente dessa tensão: é justamente a capacidade do homem de sentir, simultaneamente,
como sujeito e objeto. O homem é as duas coisas, e oscila entre elas. Se uma pessoa tenta
viver unicamente como sujeito, sem dar atenção e obedecer às coisas externas, torna-se o
neurótico que se entrega à liberdade irresponsável. Se tentar viver unicamente como objeto,
será uma máquina determinada, controlável, manipulável; é o neurótico que controla de
forma obsessiva qualquer ação. Tanto num caso como no outro “brinca-se de Deus”, isto é,
tenta-se recusar que somos as duas coisas, procurando ser algo de nossa própria criação,
negando o paradoxo inerente ao ser humano. Nossa consciência é um processo de
oscilação, uma relação dialética entre o que experimentamos enquanto sujeitos e enquanto
objetos. Este processo de oscilação descrito confere uma potencialidade, qual seja, a
capacidade de escolher um ou outro. Esta capacidade acaba revelando a liberdade. A
liberdade da pessoa está em viver, experimentar ambos os modos. Há uma “liberdade
finita” do homem, segundo Paul Tillich (apud May, 1977): ele está sujeito a inúmeras
forças deterministas, mas tem a liberdade de se relacionar com estas forças, ficando
consciente delas. O homem tem a consciência e a liberdade para se relacionar com o meio
objetivo, dando-lhe significação, selecionando e favorecendo este ou aquele elemento.
Veremos adiante concepções complementares a respeito da liberdade. Assim, o que May
queria demonstrar inicialmente é que “no processo dialético entre esses dois pólos reside o
desenvolvimento, assim como o aprofundamento e a ampliação da consciência humana”
(May, 1977, p. 29).
A abordagem existencial em psicoterapia, de acordo com o autor, é que parece
oferecer um caminho mais adequado para lidar com o dilema, embora, é claro, ainda esteja
em processo de desenvolvimento.
52
A Psicoterapia com Abordagem Existencial
Rollo May (1977) vai desenvolver suas concepções sobre o homem tomando como
base a prática da psicoterapia, com especial ênfase na abordagem existencial. Esta
abordagem tem crescido em importância, por levantar questões relevantes tanto no que se
refere à relação de ajuda, quanto à rica fonte de dados.
May (1977) enfatiza a importância de se formular pressupostos ontológicos
(aclarando sempre para si mesmo que pressupostos são estes). Dá a sugestão de que o
terapeuta pode pressupor que o paciente quer preservar algum centro: os seres humanos
estão potencialmente centrados em si mesmos. Mas há uma peculiaridade no ser humano. A
centralidade da árvore, por exemplo, é dada automaticamente. Mas a do humano depende
de sua coragem em afirmá-la. O homem é a criatura cujo ser depende de sua coragem. Se
não for capaz de exercer esta coragem, devido ao grau de sua patologia, ou por
circunstâncias externas, perde este seu ser. O paciente, ao mesmo tempo que quer preservar
sua centralidade, ele tem a necessidade e a possibilidade de sair desta centralidade a fim de
que participe em outros seres, se relacione com os demais. Essa necessidade envolve um
risco: perder a identidade, envolve o medo de “sair”, envolve ansiedade. Muitas pessoas
permanecem na sua postura rígida, num estado de inibição. Mas às vezes elas saem longe
demais, esvaziando seu ser: têm medo do ostracismo, de não serem aceitas, de serem
jogadas para fora do grupo, de ficarem sozinhas, isoladas. Nesta situação, acabam se
ajustando a outrem, e o valor pessoal torna-se não-significativo.
Pode-se perceber portanto a descrição de duas “forças” contrárias no homem, tanto
no que se refere ao dilema, quanto à questão da centralidade. Neste último caso,
percebemos uma força ou instância que procura preservar a centralidade, e uma outra que
faz com que haja uma necessidade de sair dessa centralidade para participar em outros
seres. A centralidade, de acordo com o autor, é identificada conjuntamente à identidade; se
a pessoa tem necessidade de sair da centralidade, para se relacionar com os outros, isto
pode significar uma necessidade de autoconhecimento através do outro (a psicoterapia
operaria segundo este princípio). Desta forma, um aspecto do autoconhecimento, embora
53
seja aparentemente contraditório, seria: preciso afastar de mim, através dos meus
relacionamentos, para que eu possa conhecer-me.
Uma outra característica ontológica é o nível de awareness, ou percepção (May,
1977). O grau de liberdade aumenta de acordo com o nível de awareness; este termo
significa aquilo que percebemos, que sentimos, que não difere da forma de percepção de
animais. Porém, nos homens está presente também uma forma especial de awareness,
constituindo numa diferença entre os animais e as plantas, e os homens. Esta forma é a
consciência de si mesmo, conscientização, percepção consciente ou ainda consciousness.
Posso estar aware de uma mesa, mas também posso estar consciente de que sou o ser que
tem a mesa. Esta é a característica central que constitui o eu em sua existência como tal. A
capacidade do ser humano de usar símbolos e transcender a situação imediata confere a ele
a capacidade de se relacionar com o mundo, com os outros e com o próprio eu. Segundo
Rollo May (1977), eis a base ontológica da liberdade humana.
4. A Autoconsciência
A discussão sobre a conscientização do eu ocupa um papel central na obra de Rollo
May. Ele pergunta: o que é que constitui o ser humano como tal?
Mais Considerações sobre o Conceito de Self
É com mais ou menos dois anos de idade que surge no indivíduo uma peculiar
qualidade humana, a autoconsciência (May, 1987). Ela se constitui como a capacidade de
se distinguir entre o eu e o mundo, possibilitando a capacidade já mencionada de suspender
o tempo, sair do presente e se imaginar no passado ou no futuro. É capaz de “sair de si
mesmo” e contemplar sua história. É então uma capacidade própria do self. Porém, ao
mesmo tempo em que estão presentes todos os “dons” do self, a ansiedade e crises íntimas
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tornam-se presentes. Notamos muito bem isso quando lançamos nossas expectativas ao que
pode acontecer conosco numa determinada situação, por exemplo. “O nascimento do self
não é simples e fácil, pois a criança defronta-se com a temível perspectiva de ser
independente, sozinha, sem a total proteção dos pais” (May, 1987, p. 71).
E o que significa sentir-se como self? O teórico nos diz que temos uma experiência
de nossa personalidade que nos leva a uma convicção básica de que somos seres
psicológicos.
Isto nunca pode ser provado de maneira lógica, pois a autoconsciência era pressuposição de
qualquer discussão a respeito. Haverá sempre um elemento de mistério na percepção do próprio
ser-mistério significando aqui um problema cujos dados o envolvem inteiramente. Pois esta
percepção é pressuposição de auto-indagação. Isto é, o simples meditar sobre a própria identidade
significa que já se está empenhando na autoconsciência. (May, 1987, p. 74)
E logo a seguir ele fala sobre o problema deste conceito na ciência e na filosofia:
Alguns psicólogos e filósofos desconfiam do conceito de self. Argumentam contra ele por não
gostarem de separar o homem do continuum dos animais e crendo que prejudica a experimentação
científica. Mas rejeitá-lo como “não científico”, por não poder ser reduzido a equações
matemáticas é mais ou menos o mesmo que argumentar, conforme se fazia há duas ou três
décadas, que as teorias de Freud e o conceito de motivação “inconsciente” não eram científicos.
Uma ciência que usa determinado método e rejeita todas as outras formas de experiência humana
que nele não se encaixam é defensiva e dogmática e, portanto, não é uma verdadeira ciência. É
certo que o continuum entre os homens e os animais deve ser considerado com clareza e realismo,
mas não é preciso saltar à duvidosa conclusão de que não existe, portanto, qualquer distinção entre
o homem e os animais.
Não precisamos provar o self como se ele fosse um “objeto”. Basta demonstrar de que modo as
pessoas são capazes de se relacionarem. O self é a função organizadora no íntimo do indivíduo,
por meio da qual um ser humano pode relacionar-se com outro. (May, 1987, pp. 74-5)
Rollo May parece, então, responder à posição de se rejeitar a autoconsciência e o
autoconhecimento por não serem de alguma forma científicos. Esta posição rejeitaria a
introspecção, ao afirmar que aquilo que observamos em nós mesmos é enviesado, ou seja,
não é necessariamente “verdadeiro”: o resultado da auto-observação estará sempre
55
impregnado de uma concepção externa, social; definimos a nós mesmos com base no que
aprendemos. Esta posição parece ter muito de verdadeira, pois em geral descrevemos a nós
mesmos segundo uma linguagem que aprendemos no meio social. Entretanto, até que ponto
esta afirmação não guardaria uma visão parcial e restrita? Ora, é claro que transmitiremos
aos outros o que sabemos sobre nós mesmos de uma maneira verbal! De que outra forma
poderíamos fazê-lo? De que outra forma poderíamos transmitir o que conhecemos sobre
nós senão de uma forma lógica, compreensível? Se assim não for, logo classifica-se o
autoconhecimento e tudo o que acompanha tal conceito como não-científico, por não
atender um determinado “dogma” da ciência. Rejeita-se a verdadeira experiência pessoal
em detrimento da reafirmação de uma teoria; teoria esta que afirma que nada mais importa
além da investigação empírica para se explorar e conhecer o comportamento humano. E por
fazer isso não estaria justamente adotando uma postura não-científica ao rejeitar
experiências que fazem parte da própria subjetividade, parte inerente ao ser humano como
um todo? É claro que a linguagem será sempre restrita para se ter uma compreensão do que
o outro conhece sobre si mesmo. Mas, ao mesmo tempo que ela é útil para se ajudar um
indivíduo a se compreender, ela não trará sozinha esta compreensão; quem pode se
autoconhecer é o indivíduo, e apenas ele, ninguém o fará por ele. Neste sentido, ele está, de
fato, sozinho para realizar tal tarefa. E devemos nos perguntar também até que ponto a
visão social que temos não prejudica a visão de quem realmente somos (adotando o ponto
de vista de que há um eu verdadeiro). Seria possível afirmar que temos dificuldades em nos
conhecer porque nos enxergamos com “óculos sociais”?
Prosseguindo, May (1987) diz que o self não é simples soma dos vários papéis que
representamos. Pelo contrário, é a capacidade graças à qual sabemos que representamos tais
papéis, o centro pelo qual temos consciência das diferentes facetas de nossa personalidade.
O processo de “tornar-se pessoa”, isto é, termos a experiência de nossa própria identidade,
é o que temos de mais profundo em nossa vida. É esta a necessidade central na vida:
descobrir-se e realizar as potencialidades. Não é tarefa simples, pois esta evolução não se
dá automaticamente, mas deve ser escolhida e confirmada pelo próprio indivíduo. O
homem realiza suas potencialidades apenas quando escolhe conscientemente. Notamos aí
desta maneira uma aproximação muito clara entre os pressupostos da psicologia humanista
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e a filosofia existencialista. Pois para realizar as potencialidades individuais é preciso uma
busca de si através das escolhas que a se faz, sendo-se fiel a si mesmo.
A individualidade é uma das facetas da autoconsciência (May, 1987), no seguinte
sentido: nunca sabemos exatamente como o outro se vê, e o outro não sabe como nos
vemos. A consciência é algo singular. É o “santuário íntimo” onde cada um está sozinho
(como foi dito anteriormente), no que constitui a grande tragédia e o inevitável isolamento
da vida humana. Mas constitui também uma indicação de que é em nós mesmos que temos
de encontrar forças para permanecer neste “santuário” e nos afirmarmos como indivíduos.
Ao dependermos inteiramente de acontecimentos externos acabamos inevitavelmente por
sofrermos decepções; a realidade será sempre mais, ou menos, do que esperamos. Não
procurar forças dentro de si mesmo é deixar de cumprir as potencialidades, e deixar de
cumpri-las significa adoecer: se uma pessoa não andar, suas pernas atrofiam; o que não será
a única conseqüência, pois o organismo como um todo se enfraqueceria, perderia o vigor.
Aliás, qual afinal o significado das potencialidades? Até aqui, poderíamos talvez
pontuar que as potencialidades seriam justamente se afirmar como indivíduo através das
escolhas que se faz. Ou seja, é o processo que nos leva a fazer escolhas, a sermos
autênticos. Ou melhor, fazer escolhas e exercer as potencialidades são atos existenciais que
são idênticos: fazer escolhas é exercer as potencialidades, e exercer as potencialidades é
fazer escolhas. Esta é uma hipótese inicial, e poderemos complementá-la posteriormente.
Uma Releitura do Mito de Édipo
Na mesma linha de pensamento desta faceta “trágica” que indica o isolamento
individual, Rollo May (1977) faz uma breve releitura do mito de Édipo.
Para o autor, o mito permite vislumbrar o surgimento e o significado da consciência,
diferente do que fez Freud. May compreende a situação edipiana como o conflito trágico
dentro da pessoa, em sua relação com o mundo e com os outros, e no surgimento da
consciência do eu. A questão básica do mito é: “Édipo reconhecerá o que fez?” May (1977)
afirma: “A questão trágica é a questão de ver a realidade e a verdade a respeito de nós
próprios.” (p. 107) Após saber de toda a verdade, Édipo arranca os olhos, o órgão da visão
e do reconhecimento, e exila-se. Mas exila-se a si mesmo, o que constitui na alienação
quanto aos semelhantes, o que é um problema psicológico dos homens contemporâneos. O
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drama consiste na tragédia de fazer face ao que somos e à nossa origem, a tragédia do
homem que conhece e enfrenta seu próprio destino. Quando alguém está apto a se
conscientizar que é a pessoa um ser responsável, gera-se uma ansiedade potencialmente
trágica. A tendência dos terapeutas é tranqüilizar o paciente nessa situação; no entanto, ele
precisa estar ansioso, de forma construtiva. É preciso que ele enfrente a morte, o problema,
o conflito, o que é um requisito para a consciência do eu. O “aspecto trágico” envolve a
admissão de nossas atitudes e comportamentos destrutivos em relação a pessoas as quais
sinceramente amamos; também envolve o reconhecimento dos atuais motivos de aversão e
destrutividade, além da eliminação das nossas racionalizações sobre a nossa própria
nobreza. Esta eliminação faz parte do nível existencial, implicando numa tomada de
responsabilidade. Implica também em solidão: pois reconheço que este é meu ódio, a minha
destrutividade, e vejo que sou o único que pode tomar esta responsabilidade. A consciência
trágica subentende que não podemos amar completamente aqueles a quem se dedicou, sem
algum elemento de destrutividade, e além disso não podemos saber se a decisão que
tomamos é a certa. É um risco inerente à autoconsciência.2
A Experiência do Próprio Corpo e Sentimentos
No processo de autoconsciência, a pessoa deve começar a redescobrir os próprios
sentimentos (May, 1987). Em geral, observamos a declaração de alguém: “estou bem” ou
“péssimo”, mas estas declarações se mostram tão vagas como se estivessem declarando
uma frase qualquer. O contato que a pessoa tem com seus sentimentos é remoto, elas
apenas têm uma idéia dos seus sentimentos. E talvez seja este justamente o problema: elas
os encaram como se fossem passíveis de análise racional... O que importa é sentir que o eu
ativo é que está sentindo: se se sente raiva, é necessário se adotar a postura de que “sou eu
que sinto esta raiva”, “esta raiva é minha”. É um nível de experiência que afeta o próprio
ser, e a pessoa sente com vivacidade intensificada.
2 Abbagnano (S/d) afirma que o ato de decisão, o ato existencial, é o ato de vontade em que se empenha todo o ser, mas que implica em indeterminação. Todo ato existencial é um ato de indeterminação problemática. A decisão tem um risco, mas este mesmo risco constitui a decisão — uma decisão não é decisão se não tiver um risco. O homem que não decide fica em estado de dispersão: não se possui, nem possui suas possibilidades de escolha, não assume a responsabilidade de sua escolha; é um homem que não tem autoconsciência.
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Vamos procurar entender o que o autor parece querer dizer com isso. Parece que o
importante é não julgar o próprio sentimento, pois este julgamento pode levar a uma
destrutividade tanto com relação aos outros, quanto com relação a si mesmo. Parece esta ser
a base do conflito interior. O julgamento tem suas origens em concepções sociais, e elas
muitas vezes impedem tomarmos uma experiência como nossa.
De forma análoga aos sentimentos, precisamos recuperar a consciência do nosso
próprio corpo (May, 1987). O corpo é o primeiro e originário âmago do self, e percebê-lo é
de grande importância durante toda a vida. Muitos perderam esta percepção: consideram-no
como uma máquina inanimada, um objeto a ser manipulado, um “carro” a ser dirigido.
Quando se fica doente, a atitude com relação a isso é a de uma pessoa
compartimentalizada, uma atitude passiva, que não sente o corpo como parte de si, abdica
da sua autonomia sobre ele. Podemos remeter esta concepção à metáfora do “fantasma na
máquina”, como se houvesse uma entidade substancial que dirige a matéria de que é feito o
corpo. Óbvio que estamos tratando aqui de dualismo: mente é uma coisa, corpo outra. O
posicionamento de Rollo May é o de identificar um com o outro, através dos conceitos de
autoconsciência e de self, muito embora não encerre a questão, pois ela é bem mais
complexa, e sem consenso algum. Aliás, esta tendência à separação não é algo que se
identifica apenas em sistemas filosóficos e científicos — é claro que a tendência vem antes
disso; a tendência vem das próprias pessoas em geral! May (1987) diz que o corpo é tratado
como um veículo de sensações, o que se liga a uma atitude desligada com relação ao sexo:
o parceiro sexual é um “objeto” sexual; ou afirma-se “eu tenho impulsos sexuais”, ao invés
de “eu quero ter relações sexuais”. Percebe-se uma separação entre corpo e self, entre
atividade sexual e self.
Um passo para a união, ou re-união, do corpo ao self significaria uma
experimentação do próprio corpo (May, 1987). Não seria dizer “meu corpo sente”, e sim
“eu sinto”. Seria como isolar as cordas vocais e dizer que, por exemplo, elas querem falar
com meu amigo! Além disso, é preciso colocar o self como integrante da saúde física: “sou
eu quem fica doente, e sou eu quem se cura”. Bem, para May (1977), existem problemas
para a compreensão da natureza do homem no que diz respeito à definição de saúde, doença
e neurose. Deduzimos a partir da doença e da neurose a imagem do homem normal.
Identificamos a neurose em alguém que não se ajusta à sociedade, e acabamos numa
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concepção do homem que é o espelho desta sociedade. Esta é uma visão que se torna
progressivamente vazia. Adotamos uma definição social-conformista de saúde; utilizamos
palavras como “ajustamento”, “adaptação” ou “compatibilização” como critério para dizer
que uma pessoa está saudável. Os sintomas do paciente são o modo de limitar o âmbito do
seu mundo, para que sua centralidade fique protegida de ameaças; são modos de bloquear
certos aspectos do meio e da experiência, para que possa se ajustar aos demais. A atividade
mental é protentiva. Por isso, o “ajustamento” é justamente o que a neurose é.
Quando se considera, do ponto de vista do self, os diferentes males físicos, psicológicos e
espirituais (o último termo refere-se ao desespero e senso de inutilidade na vida) vê-se que todos
são aspectos da mesma dificuldade do self para encontrar-se a si mesmo neste mundo. (May, 1987,
pp. 90-91)
Assim, “a luta pela saúde deve ser vencida no plano mais profundo de integração do
self” (May, 1987, p. 91). É a separação corpo-mente a responsável pelos males pessoais em
geral (é claro, não todos), e a sua integração é o ponto-chave para uma auto-realização.
Essa integração envolve também aspectos inconscientes, pois eles também fazem parte do
self. Esta questão do inconsciente é analisada em seguida.
A Experiência Inconsciente
Embora as intuições e tendências do inconsciente estejam desligadas da percepção consciente,
continuam a fazer parte do self, e podem, em diferentes graus, ser a ela conduzidas. Quanto mais
rápido se recuperar a soberania daquela porção do reino interior, tanto melhor. (May, 1987, p. 94)
A psicologia humanista não rejeita o papel do inconsciente na vida psicológica do
ser humano. Mesmo Carl Rogers, segundo Hall, Lindzey e Campbell (2000), afirmou que o
campo fenomenal, a estrutura de referência do indivíduo, é constituído por experiências
conscientes (que são simbolizadas) e inconscientes (que não foram ainda simbolizadas), na
chamada subcepção.
Porém, os existencialistas e fenomenologistas em geral rejeitam esta idéia. Mas o
grande problema, segundo Rollo May (1977), é o conceito de “porão” inconsciente, ou seja,
um lugar onde estão armazenadas entidades responsáveis pelo determinismo de causa-e-
60
efeito. Chama a atenção para a questão da causalidade genética, ou seja, o “me comporto
assim porque na minha infância aconteceu isso”. Esta causalidade é que deve ser colocada
de lado. Pois ficamos muito interessados no porque e esquecemos o quê uma pessoa está
fazendo. Isso prejudica a compreensão genuína do homem.
Para May (1977), o grande problema é: por que a pessoa não é capaz de “saber que
sabe” disso ou daquilo? Se desembaraçarmos da hipótese do inconsciente, perderemos
grande parte da riqueza e significado da experiência humana.
A “inconsciência” consiste nas experiências que a pessoa não pode se permitir
concretizar. Coloca-se a pergunta: como é possível que ela se feche para algo que, num
outro nível, ele sabe que sabe? Num nível diferente da conciousness, ela sabia o tempo
todo. Então, a questão não é saber que trauma particular bloqueou a experiência, e sim
saber o que está acontecendo na pessoa que não permite a ela experimentar o “eu sou eu”.
Claro, não se deve ignorar um trauma na infância, mas este trauma não explica por si
mesmo a persistência da repressão da experiência (May, 1977).
O conceito de inconsciente de May (1977) é dado desta forma: “Experiência
inconsciente são as potencialidades de ação e percepção que a pessoa não pode ou não quer
tornar concretas.” (p. 133) Assim, são os processos e as potencialidades mentais que são
reprimidos. Este conceito deve ser entendido a partir da consciência, e não o inverso, como
se faz usualmente.
A finalidade da psicoterapia, considerando a questão, seria transformar o awareness
em consciousness. Ao se fazer isso,
(...) temos uma dinâmica para a mudança, isto é, aumentando a esfera de conscientização, e experiência do paciente, a qual é inerente ao próprio ser do paciente. O impulso e o movimento para a mudança e realização plena não têm de ser trazidos de fora, por voluntarismo vitoriano, ou por condicionamento, ou pela moderna moralização conformista. Promanam diretamente do ser do paciente e da sua necessidade de realizar este ser. (May, 1977, p. 134)
Desta forma, a permanência no nível awareness é o que caracteriza a pessoa que
mantém inconscientes suas potencialidades. Levar o paciente ao consciousness significaria
levá-lo a perceber suas potencialidades e estar mais apto a se auto-realizar.
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Segundo Gabriel Marcel (apud May, 1977), tem havido uma repressão do sentido
ontológico, numa fuga à conscientização do próprio ser. É esta repressão, e não a dos
instintos, que é responsável pelos sintomas neuróticos. E, com relação à psicoterapia, ela
não se propõe a fazer um tratamento, e sim proporcionar um encontro da pessoa com sua
própria existência, através de suas decisões. Uma pessoa não estará pronta a ter uma
introvisão, a ver a verdade, a menos que chegue a decisões sobre sua própria existência.
Quando alguém que se diz existencialista rejeita o inconsciente, está adotando uma postura
não-existencial. O autor defende esta posição dizendo:
Mas o verdadeiro significado histórico da formulação de “o inconsciente” por Freud tem um
sentido muito diferente. O seu grande significado é uma ampliação da dimensão da personalidade,
um avanço radical sobre o estreito racionalismo e voluntarismo do homem vitoriano. A idéia de
experiência inconsciente confere à personalidade dimensões profundas que a cultura vitoriana
procurou refutar, as profundidades do que designamos por idéias e impulsos irracionais,
primitivos, reprimidos ou esquecidos, e outros aspectos da personalidade que estão intimamente
vinculados a muitas potencialidades trágicas do homem. (...) Embora o próprio Freud cometa um
erro ao usar esse conceito de forma extremamente simplificada, o seu verdadeiro gênio manifesta-
se no mais amplo significado atribuído ao termo, a saber, a ampliação radical das dimensões
profundas da personalidade humana. Em meu entender, muitos dos argumentos dos autores
existenciais e fenomenológicos contra “o inconsciente” pecam por excessivo legalismo, atendo-se
à lógica verbal e esquecendo-se de tomar o termo em seu significado dinâmico e existencial. (...)
Mas devemos estar aptos a incluir a experiência inconsciente. (May, 1977, pp. 142-3)
Não podemos apreender a pessoa se não a virmos em suas tentativas de se tornar
outra. Deve-se considerar que o autoconhecimento também envolve a experiência
inconsciente. Então: por que o ser humano, falando de uma maneira geral, reprime suas
potencialidades? É exatamente esta questão que faz parte do problema desta pesquisa
teórica. Pelo que se pode perceber aqui, o tema do inconsciente está intimamente ligado a
tal problema. A experiência inconsciente, assim, identifica-se com a dinâmica envolvendo a
repressão do conhecimento de si e das potencialidades, bem como o processo contrário, a
da conscientização do eu, ou autoconsciência. É a luta no íntimo para o indivíduo “tornar-se
pessoa”.
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Os Estágios da Autoconsciência
Por último, vamos esboçar uma última caracterização da autoconsciência, feita por
Rollo May (1987). Diz respeito aos estágios de autoconsciência pelo qual o homem passa.
O primeiro estágio é o da inocência, fase que antecede ao surgimento da
autoconsciência na criança. O autor não dá maiores explicações sobre este estágio. O
estágio que se segue é o da rebeldia, própria da criança de dois ou três anos e chegando até
mesmo à adolescência. É quando o indivíduo luta para se libertar, para estabelece uma
força interior independente, e pode incluir desafio e hostilidade, numa transição que visa
romper “velhas cadeias” e buscar novas.
O terceiro estágio é o de autoconsciência comum. A pessoa pode, até certo ponto,
distinguir seus erros e restringir preconceitos, além de utilizar sentimentos de culpa e
ansiedade como experiências que proporcionam aprendizado, e tomar decisões com
responsabilidade. É a autoconsciência tal como viemos falando até aqui.
Mas há ainda um quarto estágio, que a maioria das pessoas raramente experimenta.
Suas características se mostram como quando se tem um súbito insight de um problema,
quando se tem uma inspiração. Na tradição oriental, mostra-se descrita como vislumbre de
verdade objetiva. O termo que geralmente se usa é o de êxtase. May (1987) denomina de
autoconsciência criativa. O êxtase significa literalmente “ficar fora de si mesmo”, sentir
algo de uma perspectiva diferente do ponto de vista limitado e habitual. É um estado trans-
racional, em que se experimenta uma conscientização intensificada, em que temos idéias
que antes ignorávamos, temos uma visão mais clara do que podemos fazer, num
aguçamento da razão (May, 1977). Ele empresta significado às nossas ações e experiências
nos planos inferiores, “como se a pessoa se encontrasse no alto de uma montanha e visse
sua vida daquela ilimitada perspectiva” (May, 1987, p. 116).
5. A Liberdade e a Responsabilidade
A partir da seguinte história, May (1977; 1987) introduz o tema da liberdade, que
será desenvolvido juntamente à noção de responsabilidade.
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Um rei, certa vez, ao observar um determinado cidadão, teve a idéia de colocá-lo
dentro de uma jaula, devido a um interesse científico: o que aconteceria a um homem que
fosse preso, sob determinadas condições? Este interesse foi compartilhado por um
psicólogo, que acompanharia todo o processo. E assim o rei ordenou que se fizesse, e o
cidadão, que tinha uma certa rotina diária, logo estava preso. De início, o cidadão
questionou por quê estavam fazendo isso, e se preocupou com as suas tarefas diárias que
precisavam ser cumpridas. Depois que se deu conta do quê acontecia, o homem protestou
veementemente contra a sua situação. E esta raiva, com o decorrer do tempo, tomou a
forma de um ódio tremendo. O rei por vezes o questionava, sem saber o porquê da cólera,
já que o enjaulado sempre recebia uma fartura de comida, tinha boa cama e não precisava
trabalhar. Os protestos depois foram parando, e só se via o olhar de ódio do homem. Com o
tempo, mesmo este olhar desapareceu, e o homem desenvolveu, numa conversa com o
psicólogo, uma teoria sobre a aceitação do destino, viver de acordo com a sua sorte. Agora
a voz dele era monótona e inexpressiva, ele estava amuado. Já não tinha expressão
nenhuma, ou o que expressava era totalmente vazio, sem sentido. Chegou ao ponto em que
não usava mais a palavra “eu”. Parecia que algo se perdera.
O período de mudanças de valores pelo qual passamos se alinha ao surgimento dos
dilemas da vida humana, em especial aos que se referem aos temas da responsabilidade e da
liberdade.
May (1977) prossegue falando a respeito da autoconsciência do homem. A
capacidade de selecionar, moldar, adaptar-se à história, e não apenas ser mero produto dela,
é um processo que constitui sua liberdade. “Eis que verificamos que, ao definirmos espírito
e personalidade, falamos também sobre liberdade. Pois não é a capacidade do homem de
ser cônscio de si próprio como o indivíduo que experimenta, realmente, também a base
psicológica da liberdade humana?” (May, 1977, p. 180). Na psicoterapia, os pacientes
geralmente expressam uma incapacidade de escolher, bloquearam a sua conscientização:
não sabem o que sentem, não sabem quem são. No início da terapia, apresentam quadro de
falta de liberdade. E o progresso da terapia pode ser medido de acordo em função do
progresso da consciência da liberdade, de se estar cônscio de que a pessoa é aquela que tem
este mundo e que está nele. Quanto maior a consciência do eu, maior a consciência do
mundo. O eu e o mundo estão juntos, são inseparáveis. Um implica no outro. E a relação
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eu-mundo implica em responsabilidade. Responsabilidade significa “responder a”; devo
estar empenhado a responder ao mundo. E agora temos uma relação entre os termos
liberdade e responsabilidade: pois a pessoa pode se tornar cônscia das experiências
determinísticas de sua vida, cônscia de que é também um ser determinado pela cultura, pelo
seu momento histórico, pela sua própria história pessoal, e esta consciência amplia sua
margem de liberdade (May, 1977).
A liberdade não está “localizada” em nenhuma parte do psíquico, por assim dizer.
Nenhuma “parte” pode ser livre por si mesma. Esta confusão envolvendo a liberdade se
deve à fragmentação da pessoa, devido aos variados estudos psicológicos (estímulo e
resposta; id, ego e superego...). A liberdade atua em totalidade no eu centrado. Outro
aspecto é que a liberdade sempre envolve responsabilidade social. Isso acarreta em limites
da liberdade. Fazer o que apetece não é ser livre, pois implica justamente que não haja um
eu centrado. A liberdade, isso sim, implica na capacidade de enfrentar conscientemente os
limites. Requer aceitar, suportar e viver com a ansiedade (May, 1977).
Liberdade não é revolta, nem rebeldia. Pode até ser uma etapa normal do processo
de conquista da liberdade, mas não é idêntica a ela. Também não é se agarrar a uma
tradição qualquer, ou vê-la de acordo com um determinado sistema. Fazer isso é
transformá-la num dogma (May, 1987).
A liberdade, isso sim, seria a capacidade do homem contribuir para sua própria
evolução (May, 1987). Isso envolveria uma aceitação das limitações, não como uma
rendição, mas como uma forma construtiva, uma forma que dá mais resultados criativos do
que se uma pessoa não tivesse de lutar contra limitação alguma. O homem livre não perde
tempo lutando contra a realidade: ele “enaltece a realidade”, segundo Kierkegaard teria
dito. Pela liberdade, o homem cria a si mesmo, tendo a capacidade de nos tornarmos o que
verdadeiramente somos.
Neste sentido, a conquista da liberdade se dá ao se “optar por si mesmo” (May,
1987). Ou seja, o indivíduo afirma a sua responsabilidade pelo seu self e pela própria
existência. É uma atitude de vivacidade e de decisão.
Não há dúvida que quem pensa compreende teoricamente que a liberdade e a responsabilidade
andam juntas: quem não é livre é um autômato e, é evidente, não tem responsabilidade, e se não
pode ser responsável por si mesmo não pode ter liberdade. Mas quando se faz uma opção pessoal,
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esta união de liberdade e responsabilidade torna-se mais do que uma idéia agradável. A pessoa
experimenta-a em sua própria pulsação. Ao optar por si mesma torna-se cônscia de ter escolhido,
conjuntamente, a liberdade pessoal e a responsabilidade. (May, 1987, p. 144)
66
3
A D INÂMICA D IALÉTICA NA PSICOLOGIA E NO I NDIVÍDUO
A constante e simultânea presença de duas instâncias contrárias no homem é um
traço notável na obra de Kierkegaard, e também em Rollo May. O assim denominado
paradoxo da existência revela-se nas suas formulações através dos diversos conceitos que
circundam a descrição da vivência concreta do indivíduo no mundo, em sua subjetividade.
Subjetividade essa que se identifica como ponto de partida não apenas deste filósofo, mas
também de todo um movimento filosófico e científico que se contrapôs à tendência
cartesiana e mecanicista de pensamento; dentro deste novo paradigma encontramos de
forma especial o existencialismo como um todo (numa crítica ao pensamento moderno) e a
psicologia humanista. Este outro enfoque, ou melhor, este outro movimento que privilegia
este enfoque chamou a atenção para a relação que o homem estabelece consigo mesmo,
tirando um pouco da excessiva ênfase na relação do homem com o ambiente. O tão
grandioso entusiasmo com a realidade empírica foi abalado pelo enfoque na realidade
profunda. Os existencialismos de Kierkegaard e Sartre põem na mesa a questão da
existência individual, a psicologia humanista é “centrada na pessoa”, e os dois movimentos
reconhecem o aprofundamento do eu como processo que é necessário para limitar e ao
mesmo tempo complementar o pensamento estritamente mecanicista e racional. Até mesmo
poderíamos dizer que os paradoxos encontrados no homem se fazem refletir no conflito
entre os dois paradigmas na ciência, o mecanicista e o holístico. Assim, primeiramente
podemos traçar um esboço dos dois paradigmas conflitantes na ciência, obviamente com
destaque para a psicologia. Depois, veremos como no indivíduo esta idéia de dois lados
conflitantes se desenvolve.
1. Os Métodos Racional e Intuitivo na Psicologia
Segundo Capra (1998), a filosofia do Cogito de Descartes encorajou os ocidentais a
adotarem como identidade a mente racional, e não o organismo total. Houve a divisão entre
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espírito e matéria, e a partir daí sobreveio a concepção do universo como um sistema
mecânico montado a partir de objetos separados, redutível a componentes fundamentais,
como tijolos que constroem um edifício. Tal concepção se estendeu aos organismos vivos,
como também ao homem.
Segundo este mesmo autor, haveria no homem dois tipos de conhecimento, ou dois
tipos de consciência, que são o método intuitivo e o método racional. O intuitivo é baseado
na experiência direta, não-intelectual da realidade, sendo sintetizador, holístico e não-linear.
O racional é linear, concentrado, analítico, com predomínio do intelecto, que discrimina,
mede, classifica, divide.
Na Psicologia, em especial, encontraríamos os dois tipos de abordagem. Aqui
vamos trazer um contexto dessas duas visões na ciência psicológica para fundamentar a
dinâmica paradoxal-dialética que encontramos no indivíduo descrito por Kierkegaard e
Rollo May.
Capra (1998) diz que o problema mente-corpo moldou o desenvolvimento da
psicologia científica ocidental. Mente e corpo, para Descartes, pertenceriam a domínios
paralelos, mas totalmente diferentes; o corpo poderia ser estudado de uma maneira, a mente
de outra. E a psicologia acabou evoluindo a partir desta concepção, sendo que filósofos e
cientistas adotaram tal formulação, também presente nas idéias matemáticas de Newton.
Daí esta vertente da psicologia ser chamada por Capra de psicologia newtoniana. Com as
idéias mecanicistas assim expostas, e com as idéias empiristas de Locke, Hobbes e Hume, o
método racional em psicologia ganhou força com a concepção de que as sensações eram os
elementos básicos da mente que se combinavam num processo de associação. O
associacionismo, assim, foi primariamente incorporado por Wundt, fundador da psicologia
científica, Ernst Weber, Gustav Fechner, além de Titchener, da escola estruturalista. Surge
posteriormente a reflexologia, que terá influência marcante na psicologia, especialmente na
figura de Pavlov. Mas mesmo durante essa época dois movimentos contrários ao
mecanicismo tomam forma, adotando uma abordagem holística: a Gestalt e o
funcionalismo. A Gestalt, de Wertheimer e colaboradores, tinha o pressuposto de que os
organismos percebiam as coisas em termos de totalidades significativas, e não de elementos
isolados. O funcionalismo, tendo como principal expoente William James, via a
consciência como um fenômeno dinâmico, pessoal, integral e contínuo.
68
Porém, no século XX as duas correntes principais da psicologia, o behaviorismo e a
psicanálise, continuaram adotando o modelo newtoniano da realidade. No behaviorismo, a
ênfase se dá pelo estudo dos processos de aprendizagem, dos reflexos condicionados e
pelos experimentos quantitativos. Watson identificou a psicologia com o estudo do
comportamento, não vendo nenhuma diferença essencial entre animais e seres humanos.
Ele objetivava identificar a psicologia como uma ciência natural objetiva, adotando a
metodologia e os princípios newtonianos. O método introspectivo deveria ser abolido, bem
como termos mentalistas como consciência, pensamento, mente, sentimento etc. O
behaviorismo clássico de Watson foi posteriormente substituído pelo behaviorismo radical
de Skinner, o qual desenvolveu uma teoria mais rigorosa, adotada predominantemente na
psicologia científica. Porém, apesar de adotar uma postura contrária a Watson, Skinner
continuou adotando uma postura mecanicista; ainda para ele os fenômenos ligados à
consciência humana deveriam ser excluídos por não serem passíveis de estudo
experimental e observação.
Claro que esta visão de Capra se mostra um pouco precipitada. Há muitos que
dizem que Skinner não é mecanicista, cartesiano, nem muito menos dualista. O que se pode
argumentar é que Skinner colocou uma ênfase no ambiente, ou seja, colocou uma ênfase
em apenas, digamos assim, um dos lados do dualismo.
Já a psicanálise de Freud não foi muito diferente no que diz respeito ao método
racional. Freud se preocupou em fazer da psicanálise uma disciplina científica, que
descendesse das ciências naturais. Ele teria aconselhado a seus seguidores a serem “frios
como um cirurgião” ao investigarem a psique, o que mostra um ideal reducionista e de
objetividade. Na psicanálise, além disso, a concepção mecanicista da realidade é
caracterizada como tendo um rigoroso determinismo. Cada evento psicológico tem uma
causa definida e um efeito definido. O organismo humano era uma complexa máquina
biológica. Claro, todas estas características da psicanálise freudiana foram condicionadas
culturalmente e pela época em que ela surgiu, ou seja, quando a ciência positivista estava
em alta. Apesar destas características, a teoria de Freud, com seus conceitos de inconsciente
e transferência, por exemplo, abriu caminho para muitos outros revolucionários
desenvolvimentos na psicologia. Uma nova visão começou a ser produzida, mais ampla que
a mecanicista-reducionista. Vários seguidores de Freud acabaram se separando dele por
69
conta desta nova visão que tiveram, numa visão sistêmica de saúde, integrando terapias
físicas e psicológicas. Adler com a psicologia individual, Reich com a psicoterapia
corporal, Rank com a concepção do trauma do nascimento, e em especial Jung, que tentou
compreender a psique em sua totalidade, como um sistema dinâmico auto-regulador, que é
caracterizado por flutuações entre pólos opostos. (Aliás, esta mesma idéia será
desenvolvida a seguir no existencialismo de Kierkegaard e na psicologia de Rollo May). As
novas descobertas na física moderna serviram de inspiração para a nova visão, ou talvez
tenham sido a maior expressão de que ela estava emergindo. Outras linhas da psicologia
adotaram este paradigma holístico, como a psicologia de espectro de Ken Wilber e Stanilav
Grof, e a psicossíntese de Roberto Assagioli; e podemos destacar a chamada “terceira
força” na psicologia, a psicologia humanista. Liderada por Kurt Goldstein e Abraham
Maslow, enfatizava que os seres humanos devem ser estudados como organismos integrais,
visando o crescimento pessoal e a auto-atualização ou auto-realização. Essa teoria
organísmica supõe que o indivíduo é motivado por esta pulsão soberana (de auto-
realização), o que dá direção e unidade em nossa vida (Hall, Lindzey e Campbell, 2000).
Na psicoterapia, o grande inovador foi Carl Rogers, que destacava a importância de se
considerar o cliente de forma positiva, num processo não-diretivo, a fim de reconhecer os
potenciais inerentes aos seres humanos (Capra, 1998). A psicologia humanista
posteriormente foi a base para a psicologia transpessoal, que incluía o caráter espiritual do
ser humano.
É preciso ficar atento às definições de Capra (1998). Ele traz, é claro, uma questão
muito importante dentro da filosofia, muito relevante no que se refere ao estudo da
psicologia humana. No entanto, a sua classificação pode nos levar a uma visão simplificada
de toda a discussão envolvendo o problema mente-corpo.
Também Rollo May (1977) aborda este ponto. Para ele, a ciência do homem é
aquela que vai oferecer uma teoria operacional que permitirá compreender as suas
características específicas, peculiares.
Em geral, há inadequação da concepção de homem, uma confusão em que há várias
vozes discordantes. Quando buscamos uma perspectiva histórica, percebemos que tal
confusão advém de nossa cultura. Métodos para o controle da natureza foram formulados
por filósofos do século XVII, dentre os quais se destaca Descartes. Ele formulou a idéia de
70
que a natureza física tinha propriedades que diferiam das do pensamento, do espírito. Esta
dicotomia fez com que o homem moderno pendesse para um lado: a natureza passou a ser
vista como algo que podia ser medido. O maior progresso, de fato, foram das ciências que
se utilizavam da matemática. E é compreensível que se aplicassem tais métodos ao homem.
Mas os aspectos subjetivos (valores, liberdade, consciência, responsabilidade) foram postos
de lado. A dicotomia foi se aprofundando e hoje pouco sabemos os motivos de as pessoas
odiarem, amarem, se destruírem. O que é um perigo, pois pode levar a uma destruição cega,
ou seja, as pessoas se destroem, mas não têm a mínima idéia do que estão fazendo.
O behaviorismo, ou as “psicologias lockianas” tentam superar a dicotomia
cartesiana mediante a ênfase sobre um lado dela. Os físicos modernos Bohr e Heisenberg
sustentam que uma ciência totalmente objetiva, independente do homem, é uma ilusão.
Seguimos uma concepção muito estreita de ciência. Não somente a quantificação pode ser
um método para descobrir sobre a legitimidade da realidade, mas também outros como
coesão interna e descoberta de padrões. O behaviorismo deixa de fora muitos dados, muitos
comportamentos (olhar da pessoa, postura, os sonhos) e leva em pouca consideração que o
homem pode se conscientizar de seu condicionamento e fazer uma “pausa” entre estímulo e
resposta.
Ainda tratando da dicotomia, Rollo May aborda a questão mente-corpo. É
popularmente aceito que tanto o corpo afeta a mente quanto vice-versa. Mas essa indagação
não é crucial. A questão maior é: como é que a pessoa, em sua autoconsciência, se
relaciona com seu corpo e sua mente? Essa é a categoria essencial: o eu em relação a si
mesmo. Mas esta concepção de eu é muito mal vista pela ciência em geral, pois parece
remeter ao conceito de “alma”. É-se contra a afirmação de que a alma fez com que a pessoa
se comportasse. May também é contra tal concepção, mas excluir este problema do eu ou
da alma é uma expressão de uma ciência defensiva, e que perde muito com isso. Uma boa
atitude a tomar seria estudar o conceito de eu e de alma na História, superando o medo dos
“fantasmas intelectuais”.
Bem, tendo em vista estes dois paradigmas na ciência, pode-se perceber que a
concepção de ciência é que está mudando. Antes, ciência e método racional eram idênticos;
qualquer coisa que não adotasse o método racional não era ciência. Mas hoje isso está
mudando. O método intuitivo começa a tomar espaço dentro da investigação da realidade.
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A coexistência dos dois métodos é essencial para se fazer mais e mais descobertas.
Qualquer ciência que adote apenas um ou outro método acaba por enxergar, digamos assim,
apenas metade da verdade. O próprio método racional, que é analítico, separador, impede
que haja essa coexistência; enquanto o próprio método intuitivo tende a unir, a efetivar essa
coexistência. Tendo esta idéia como base, vamos agora enxergar como esta dinâmica se dá
no próprio indivíduo, e como Kierkegaard e Rollo May seriam enquadrados também dentro
da nova visão holística, contrária à cartesiana.
2. A Dinâmica Dialética no Indivíduo
Aqui vamos retomar certos conceitos de Kierkegaard e Rollo May explicitados
anteriormente.
Toda a análise do desespero se mostra como uma série de categorias que têm seus
dois lados, e a permanência num destes lados constitui-se numa espécie de estado
psicológico. E mesmo estando “dentro de um dos lados” existem por vezes mais paradoxos
e contradições. Agora veremos como esta dinâmica se manifesta no conceito de angústia
(Kierkegaard, 1968).
A angústia explica a liberdade e a necessidade (ou determinação), que se encontram
concreta e simultaneamente no homem. A angústia mostra-se como mais um conceito
caracterizado por uma dinâmica paradoxal-dialética que exibe um ser humano na sua crise
frente à liberdade. Da mesma forma, o desespero é a crise do homem frente a seu eu. Tanto
estes dois conceitos quanto aqueles que o circundam (pecado, fé, culpa, espírito, eu,
liberdade etc.), somando ainda as suas implicações psicológicas, tudo isso é caracterizado
como tendo dois extremos, dois pólos. O desespero está ligado ao eu, uma síntese de dois
termos que se volta a si mesma. Angústia tem íntima relação com a liberdade, pois provém
dela e é seu obstáculo. Agora, podemos ver como na psicologia humanista de Rollo May
esta dinâmica aparece e quais conceitos estão nela envolvidos.
May (1977) aborda os “dois lados” no homem através de seu conceito de dilema. O
dilema se refere a um paradoxo ou polaridade, refere-se à questão de ver o homem como
sujeito ou como objeto. O dilema pode provocar ansiedade, mas enquanto polaridade é
também fonte de criatividade, se houver o confronto construtivo das tensões. Nossa
72
consciência é um processo de oscilação, uma relação dialética entre o que experimentamos
enquanto sujeitos e enquanto objetos.
Outra caracterização que estaria ligada à polaridade é a diferença entre ansiedade
normal e ansiedade neurótica. Estas não são exatamente formas contrárias da ansiedade,
mas são formas de lidar com o paradoxo no homem. A ansiedade neurótica é aquela que se
desenvolve a tal ponto que faz com que a pessoa se desloque a um dos extremos do dilema:
ou sujeito, ou objeto, decorrendo daí ou a liberdade irresponsável, ou o controle obsessivo.
Já a ansiedade normal é aquela que integra os dois lados, sendo fonte de criatividade e
crescimento (May, 1977).
Outro ponto, ainda, e que se liga a esta dinâmica de equilíbrio-desequilíbrio, é a
descrição ontológica do homem enquanto potencialmente centrado em si mesmo. A então
chamada centralidade do ser humano depende de sua coragem em afirmá-la. Daí
concluímos mais um paradoxo: a ansiedade se dá na auto-afirmação, mas é a mesma
ansiedade que faz com que o indivíduo escape da concretização dessa auto-afirmação. As
semelhanças com o conceito de angústia kierkegaardiano são óbvias. Ainda mais: segundo
o autor, existe a necessidade de se sair da centralidade para se relacionar com o outro. Essa
necessidade envolve um risco: perder a identidade, envolve o medo de sair, envolve
ansiedade. Estes são os processos envolvidos no dilema ou paradoxo, segundo Rollo May.
Agora, podemos fazer uma revisão dos conceitos discutidos até aqui, enfocando dois pontos
em especial: um reexame do conceito de liberdade segundo a dinâmica paradoxal-dialética,
e a discussão da bipartição versus unicidade.
Um Reexame da Liberdade
Segundo Kierkegaard, a liberdade significa tanto poder contribuir para a própria
realização quanto negá-la (Giles, 1975). Construir ou destruir. Ou ainda, diz que o eu é uma
relação que, apesar de derivada, relaciona-se consigo própria, no que constitui o
fundamento da liberdade (Kierkegaard, 1979). Pois bem, o que significaria esta
“realização”? Bem, antes disso vamos retomar o conceito de Rollo May e estabelecer
analogias com o do filósofo; para May (1977), a liberdade está em viver tanto como sujeito
como objeto, experimentar e escolher cada um dos lados. Ao que parece, há uma pequena
73
diferença nessas concepções, uma diferença sutil, mas cuja coexistência é inteiramente
possível.
Temos então a polaridade. Sujeito-objeto, infinito-finito, possibilidade-
necessidade... A liberdade, segundo May, está em poder viver e escolher tanto um extremo
quanto o outro, oscilar entre os pólos. Já para Kierkegaard a liberdade é poder construir ou
destruir nossa realização. Essas concepções se situam em níveis distintos. Enquanto para
May poderíamos oscilar entre um ou outro extremo, para Kierkegaard não somente isso,
mas também a liberdade residiria em integrar os dois pólos ou mantê-los separados.
Vemos que a relação do eu consigo mesmo é deficitária quando, digamos assim, a balança
está pendendo para um dos lados. Pois isso é notável nas descrições que tanto Kierkegaard
quanto Rollo May propõem: há uma perda do sentido do eu no desespero tanto do finito
quanto do infinito, e tanto na possibilidade quanto na necessidade, e também há neurose
tanto no indivíduo enquanto apenas sujeito ou apenas objeto. O eu, assim, só se concretiza
quando esta relação de dois termos se volta a si mesma. Este deve ser o sentido da chamada
realização. Juntando, então, as duas concepções, concluímos que a liberdade é tanto voltar-
se para um dos dois pólos quanto integrar ou manter a separação destes dois pólos. Isso
quereria dizer então que a meta, afinal de contas, é concretizar o eu? Neste ponto, podemos
nos valer do conceito de centralidade em Rollo May. O indivíduo quer preservar a sua
centralidade; entretanto, ao mesmo tempo, ele precisa sair dessa centralidade para participar
de uma relação com o outro. Mais um paradoxo se apresenta! A função é preservar a
centralidade, mas isso não é possível sem que se saia dela. Parece haver então uma
dinâmica constante de equilíbrio-desequilíbrio da relação. A relação contém dois termos,
mas eles podem ser reunidos ou separados segundo um terceiro termo, que estabeleceu a
relação. Esta é a trindade, formada pelos dois pólos mais o terceiro termo, que integra ou
desequilibra a relação entre os dois pólos. Este terceiro termo seria o espírito.
E chegamos agora a um “paradoxo final”: o homem é ambíguo e é uno. É ambíguo
porque é uma síntese de dois termos, e é uno porque é espírito. Claro, o próprio espírito é
potência ambígua, porquanto constrói e dissolve a síntese. Mas o espírito é o eu, que é uno.
A trindade é una. Aliás, nem mesmo podemos falar que os dois termos são coisas
completamente diferentes, pois nisso se constituiria em mais um dualismo cartesiano. Na
verdade, podemos dizer que são duas faces de uma mesma moeda, um completa o outro.
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Em Kierkegaard (1979) temos exemplos bem claros disso: primeiro, tornar-se si próprio é
impossível permanecendo só no finito ou no infinito; e depois, a possibilidade e a
necessidade são como a expiração e a inspiração, e havendo somente um dos processos não
haveria respiração, ou seja, sem necessidade ou sem possibilidade o espírito “sufoca”. A
dinâmica é uma só, mas está sob a influência de duas instâncias do espírito, uma que separa
e outra que integra. Estas duas instâncias poderiam ser notadas também nos conceitos de
centralidade (preservar e sair da centralidade) e de ansiedade (normal e neurótica) de Rollo
May. Indo ainda mais longe, seria possível enquadrar estas duas instâncias como sendo
parte de uma única tendência, descrita pela psicologia humanista, que é a de auto-
realização. Pois é preciso tanto o processo de equilíbrio, para se conscientizar dele e
aprender com ele, quanto o processo de desequilíbrio, pelo mesmo motivo. É nesta
dinâmica paradoxal-dialética que há o crescimento do ser humano, do indivíduo.
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4 SARTRE: CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
1. Uma Introdução ao Existencialismo Sartreano
É em O Existencialismo é um Humanismo que Sartre (1978) expõe tanto o seu
existencialismo quanto as críticas feitas a esta doutrina, surgidas com a publicação de O Ser
e o Nada. O Existencialismo é um Humanismo, é preciso dizer, entretanto, foi uma forma
bastante simplificada de expôr toda a tese sartreana, tendo diversas limitações do ponto de
vista conceitual.
São três as críticas principais feitas ao existencialismo. Primeiro, muitas vezes se
diz que ele incita as pessoas a um quietismo de desespero e angústia, pois acentuaria que
não haveria soluções para os problemas, não importando que ações fossem tomadas; essas
críticas partiriam dos marxistas. Em segundo lugar, o existencialismo é acusado de colocar
em evidência tudo o que há de mais sórdido no ser humano, negligenciando o que há nele
de grandioso. Por último, os cristãos acusam os existencialistas de negarem o lado sério dos
empreendimentos humanos, esquecendo os mandamentos e fazendo tudo aquilo que se
quiser (Sartre, 1978).
Primeiramente, o autor nos diz que o existencialismo é uma doutrina que torna a
vida humana possível, já que é ela que expõe a possibilidade de ação que o homem tem
sobre sua vida. Declara também que toda a verdade e ação implicam um meio e uma
subjetividade humana. Haveria dois grupos de existencialistas: os cristãos e os ateus (nos
quais Sartre se enquadra), mas eles teriam em comum o fato de afirmarem que a existência
precede a essência, e que se deve partir da subjetividade humana. Inclusive, poderíamos
colocar aqui que essa posição está em acordo com Kierkegaard, quando afirmou que a
verdade é subjetividade (Kierkegaard apud Giles, 1975). Sartre (1978) dá o exemplo do
corta-papel para explicar o que significa a afirmação de que a existência precede a essência.
O corta-papel é um objeto que foi fabricado segundo uma receita, um plano, um conceito
inicial. Aquele que vai fabricar um corta-papel já tem uma idéia de como será o objeto e
que função ele vai desempenhar. Assim, a essência deste objeto já está definida, ou seja, já
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se tem definido que características ele terá e como ele será feito. No caso do corta-papel,
sua essência, sim, precede a sua existência. Essa concepção técnica do mundo tem sido
utilizada inclusive para explicar e conceber a natureza humana e, para Sartre, esse é um
erro. É claro que aqui a questão que se coloca é a da existência de Deus. Concebemos Deus
justamente como uma espécie de artífice que tem uma idéia preconcebida do que seja um
ser humano. No espírito de Deus, há o conceito de homem, e o “fabrica” segundo uma
técnica. É assim que pensavam os filósofos no século XVIII: o homem possui uma
natureza, e cada indivíduo é uma expressão particular dessa natureza.
Sartre reverte tal maneira de pensar.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara que, se Deus não existe, há
pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser
definido por qualquer conceito, e que esse ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade
humana. (Sartre, 1978, p. 12).
O homem não é um artefato previamente concebido. Primeiro, ele surge no mundo,
se descobre, e somente depois disso se define. Não sendo previamente concebido, o homem
primeiramente é nada; depois, ele se define a si mesmo. É neste sentido que a filosofia de
Sartre exige que não exista Deus. Parece que o filósofo quer refutar uma determinada
definição de Deus, vigente desde a filosofia do século XVII: Deus, numa concepção
tradicional, deveria ser uma espécie de artífice, que tem na sua “mente” a concepção de
homem, e a partir disso o “fabrica”. Este conceito está impregnado de uma noção de que, se
há um Criador, este já “monta” sua criação como quer, e essa criação será como ele quer,
não havendo espaço para liberdade alguma de essa criação construir o seu próprio ser. A
discussão parece girar em torno de algo como “Deus define o fatal destino para cada
pessoa”, e nessa situação não haveria liberdade, tal como Sartre defende. O artífice
determina a forma e função que desempenhará o corta-papel durante toda a sua duração; e
Deus determina a forma e função que o homem desempenhará durante a sua duração no
mundo. É contra esta semelhança de definições que Sartre se coloca. De certa forma,
poderia-se dizer que Sartre seria a favor da idéia não de que Deus cria o homem, mas é o
homem quem cria Deus. E na verdade, não haveria diferença alguma se por acaso houvesse
alguma prova definitiva da existência de Deus, pois isso não alteraria em nada a questão, ou
77
a realidade humana tal como se apresenta; Sartre não quer provar que Deus não existe, quer
indicar que isso não altera em nada a questão. Portanto, o homem não poderia ter, segundo
Sartre, uma natureza preconcebida. Uma crítica que normalmente se faz neste sentido diz
respeito a esta natureza humana: o fato de ele, o homem, ser um ser cuja existência precede
a essência não apontaria justamente uma natureza humana? Esta última crítica também foi
feita por May (1977).
O homem é o que se concebe e também como ele quer que seja; ele não é nada mais
do que ele faz (Sartre, 1978). Ele é o que se lança para um futuro, e que é consciente de se
projetar para o futuro. O homem, portanto, é projeto.
(...) nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, o homem será antes de
mais o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Porque entendemos vulgarmente por
querer é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele
próprio se fez. (Sartre, 1978, p. 12).
Devemos entender o que Sartre quer dizer com a noção de projeto. Num certo
momento, posso querer ser algo qualquer; ora, as pessoas querem ser muitas coisas, mas é
claro que nem sempre elas podem ser aquilo que elas querem, já que se construíram de um
outro modo, como um estudante, um funcionário público, um médico e assim por diante.
Pois o projeto de tais pessoas foi, e é, outro; elas se fizeram de outra forma, seu passado
não permite aquilo que elas querem ser. Posso querer ser o rei de um país. Ora, muitas
pessoas querem ser reis de um país, seria maravilhoso ser rei de um país, obtendo todas as
regalias e luxos que tal soberano tem direito. Mas essa realidade não condiz com o que fiz
de mim até hoje. Sou aquilo para o qual me dirijo, sou o que projeto ser. Se sou um
estudante e estou me dirigindo à minha graduação, então já sou aquele que se graduou. O
futuro escoa em minha direção; o estudante que se formou escoa em minha direção, e já sou
este futuro, ou melhor, já sou esta possibilidade. Quando estiver chegando à graduação, um
novo projeto sobrevém, digamos um autônomo, e depois vem outro projeto, e outro
sucessivamente. Mas isso não constitui um determinismo? Ou seja, meu passado me
determina, e determina minhas escolhas, sendo por isso que não poderei ser aquilo que
quero? E meu futuro é inevitavelmente aquele que virá ao meu encontro? Não, não se passa
78
desta forma, pois este mesmo passado foi a própria pessoa que construiu! A pessoa é
responsável pelo que é no presente. E é responsável também pelo que projetou.
Assim, o homem tem total responsabilidade de sua existência; mais ainda, ele é
responsável não apenas por si mesmo, mas por toda a humanidade (Sartre, 1978). O
subjetivismo é a impossibilidade humana de superar a sua própria subjetividade. “Quando
dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um se escolhe a si próprio;
mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os
homens” (Sartre, 1978, p. 12). Mas o que significa este “escolher-se a si mesmo”? Significa
escolher de acordo com aquilo que desejo ser, que projeto ser. Ao projetar ser um escritor
famoso, faço minhas escolhas neste sentido, e ao fazer essas escolhas eu acabo escolhendo
a mim mesmo, numa espécie de fidelidade a si mesmo. Ao fazer esta escolha, eu acabo me
afirmando enquanto ser humano, e isso faz com que eu seja fiel também à humanidade,
pois reafirmo que a minha existência precede minha essência, o que é uma característica
própria do humano. “Assim sou responsável por mim e por todos, e crio uma certa imagem
do homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho o homem” (Sartre, 1978, p. 13).
Porém, sabemos que nem sempre é tão fácil fazer uma escolha; aliás, quase nunca é
fácil! Pois o homem é angústia. O homem se dá conta de que ele não é apenas aquele que
faz suas escolhas, mas também aquele que é responsável por si mesmo e pela humanidade.
Este sentimento de profunda responsabilidade é angústia. Muitas pessoas vivem sem este
sentimento, mas Sartre (1978) nos diz que elas disfarçam, evitam este sentimento, numa
atitude de má-fé. Elas pensam que seu ato implicará apenas nelas próprias. Mas não é
verdade que nossas escolhas vão envolver, no mínimo, as pessoas que estão à nossa volta?
E a angústia, mesmo se a disfarçarmos, ainda estará presente. O filósofo cita a angústia de
Abraão, colocada por Kierkegaard (apud Sartre, 1978); Abraão teria recebido de um anjo a
ordem de sacrificar o filho. Mas quem garante que sou eu mesmo Abraão, e quem garante
que quem me deu a ordem foi um anjo? E se for uma alucinação? Vivemos pedindo por
uma ajuda dos céus; se por acaso algum mensageiro divino vier até nós, quem garante que
ele é um mensageiro divino de fato? Não há prova alguma, não há sinais. Sempre serei eu
aquele que decidirá se a voz ou aparição será um anjo, Deus, ou seja lá o que for. Além
disso, nada me determina como Abraão, ou seja lá quem for. Sou eu quem decide. Muitas
vezes agimos como se toda a humanidade tivesse os olhos voltados para nós, e achamos
79
que a humanidade deveria se regular pelos nossos atos. Devemos fazer-nos esta pergunta:
“terei eu seguramente o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos meus
atos?”. Quem não se faz tal pergunta disfarça sua angústia. A angústia se faz presente
justamente por causa da responsabilidade que cada homem tem com a humanidade. E essa
angústia vem junto com a decisão. A angústia é a própria condição da ação, faz parte da
ação (Sartre, 1978). Quantas vezes relutamos em decidir alguma coisa, sendo que o motivo
da relutância são os outros? Miramo-nos pelos outros. Quando refletimos sobre a decisão a
ser tomada, vislumbramos as opiniões dos outros. Um exemplo simples, é de quando nos
ocorre “o que as pessoas vão pensar?...”. E é claro que muitas vezes isso é inevitável, pois
as conseqüências virão: com a escolha, modificamos quem está a nossa volta; além do
mais, usamos o que aprendemos com os outros para tomar a decisão.
Para Sartre (1978), o desamparo é também parte da existência humana. Voltando ao
tema de Deus, se ele não existe, não há como termos o bem a priori. Não havendo o bem,
não somos obrigados a sermos honestos, ou a não mentir. No mundo, há somente seres
humanos. E tudo é permitido se Deus não existe. Neste caso, permanece o homem
abandonado à sua indeterminação, à sua incerteza. Se a sua existência precede a sua
essência, não há natureza humana e imutável; não há determinismo. O homem é liberdade.
Não encontramos valores ou imposições que ditam como deve ser nosso comportamento.
Estamos sozinhos nisso. É por isso que Sartre (1978) nos diz que o homem está condenado
a ser livre. “(...) o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a
cada instante a inventar o homem” (Sartre, 1978, p. 16). Vemos aí que toda a
responsabilidade que antes era atribuída a Deus, ou seja, a de estabelecer todas as
características e o destino do ser humano, é transferida para o próprio ser humano. Ele, o
homem, não é governado pelas suas paixões, nem recebe sinais divinos que ditam o que
deve fazer. Ninguém age de determinada forma porque suas paixões foram mais fortes. A
pessoa é que é responsável pelas suas paixões. E também ela é que é responsável por
atribuir um significado num determinado sinal. Como diz Sartre (1978), há um “futuro
virgem” que a espera, e ela está completamente desamparada. Ninguém pode decidir a
priori o que pode se fazer numa certa situação. Não há uma moral, um valor que somos
obrigados a seguir. Deveríamos, talvez, guiarmo-nos pelos nossos sentimentos então? Mas
o que determinaria o valor de um sentimento? Posso muito bem dizer: gosto tanto desse
80
amigo que sacrificaria uma enorme quantidade de dinheiro por ele. É um sentimento que
está impregnado com o que poderíamos chamar de um nobre valor. Mas só posso dizer que
faria este sacrifício se numa situação dada eu realmente o fizer. Amo o bastante minha mãe
para ficar junto dela; mas só posso dizê-lo se eu ficar junto dela. Se quero que um
sentimento justifique meu ato, mantenho-me num círculo vicioso. Ou seja, permaneço
numa tal inércia de decidir de acordo com o sentimento, que acabo não decidindo nada.
Pois como julgar que um sentimento é mais forte ou tem mais valor que um outro? Como,
por exemplo, posso decidir se meu sentimento de amor é maior do que um sentimento de
vingança? Não tem como. A dúvida vai permanecer, seja no âmbito da moral, seja no
âmbito dos sentimentos. Os sentimentos se constituem pelos atos que se praticam; não
posso consultá-los para me guiar por eles. Ou seja, nem em mim mesmo posso me basear
para tomar uma decisão! O que reafirma a posição do filósofo de que o homem inventa a si
mesmo. Sobre o homem pesa a responsabilidade da decifração dos sinais do mundo.
Também o desespero é parte do ser humano (Sartre, 1978). Pois ele está limitado a
contar com o domínio das possibilidades, e com o que depende de sua vontade. Espero que
um amigo chegue para me visitar. Mas com isso estou contando que não tenha havido nada
de errado durante a viagem, ou algo que o impeça de chegar etc. Se as possibilidades que
estou considerando não são determinadas por minha ação, não devo depositar todas as
minhas esperanças nessa ação. Devo agir sem esperanças. Isso quereria então dizer que
devo me manter no quietismo, já que o que eu faço não tem garantia alguma de que dará
certo? Claro que não é isso. Muito pelo contrário, isso quer dizer que não terei ilusões!
Minhas expectativas não vão se elevar demais — o que, aliás, seria o desespero do infinito,
segundo Kierkegaard (1979): o homem visa o infinito como objetivo final, ou “infinitiza
seus fins”. O existencialismo é contra o quietismo, pois declara que só há realidade na ação.
O homem só existe na medida em que se realiza, não é nada mais que a sua vida, os
seus atos (Sartre, 1978). Este é o motivo pelo qual o existencialismo assusta tanto as
pessoas; pois muitas vezes a melhor maneira que encontram para suportar suas misérias é
colocando o motivo destas no que é externo. Se não fui feliz no amor, é por causa dos
outros, porque não achei ninguém que me realizasse etc. Mas “para o existencialista não há
amor diferente daquele que se constrói” (Sartre, 1978). Este pensamento leva à
compreensão de que só conta a realidade; quando uma pessoa sonha, tem expectativas, tem
81
esperanças, ela acaba se definindo como um sonho malogrado, como uma expectativa
inútil, quando não realiza estas esperanças. As pessoas se definem em negativo, não em
positivo. Lamentam tudo aquilo que não conseguiram alcançar, esquecendo-se de que são
uma série de empreendimentos, são o conjunto das relações que constituem estes
empreendimentos. É fácil ser infeliz lamentando tudo aquilo que não se conseguiu alcançar
na vida. É fácil culpar os outros por isto também. Sabemos que há um grande abismo entre
o que esperamos e o que acontece na realidade, entre o que planejamos e o que acontece de
fato, entre, enfim, uma teoria e uma prática. É por isso que o agir sem esperança se faz
necessário.
As diversas censuras ao existencialismo, segundo Sartre (1978), devem-se a esta
dureza otimista, não a um pessimismo. Pois as pessoas se dizem fracas, covardes,
indolentes ou más por causa de um determinismo orgânico, social, psicológico... E fazem
isso para ficarem sossegadas e dizerem que cada um é o que é, e não há nada a se fazer
contra isso. Mas o existencialista diz que um covarde é responsável pela sua covardia. Não
é porque a sociedade o fez covarde, porque tem um coração covarde, e sim porque se fez
covarde, construiu-se covarde através de seus atos. O covarde, afinal das contas, é definido
pelo ato que praticou. As pessoas não nascem heróis, elas se fazem heróis. E há sempre
possibilidade de o covarde se fazer herói, e o herói deixar de o ser.
O ponto de partida do existencialismo é sempre a subjetividade do indivíduo (Sartre,
1978). Não há outra verdade senão por ela, é por aí que se atinge a verdade absoluta da
consciência. E esta verdade absoluta é simples, está ao alcance de todos: é apreendermos
sem intermediário. O existencialismo não faz do homem um objeto, nem seu subjetivismo
indica que é puramente individual, pois pelo cogito cartesiano atingimos não somente a
nós, como também aos outros.3 Ou ainda, atingimos a nós mesmos em face do outro. O
homem não pode ser nada, a não ser que o outro o reconheça como isso ou aquilo. Se eu
falo que sou ciumento, por exemplo, isso se dá sempre por causa do reconhecimento de
outrem. “Para obter uma verdade qualquer sobre mim, necessário é que eu passe pelo
outro” (Sartre, 1978, p. 22). O outro é indispensável ao conhecimento que tenho de mim
mesmo. A descoberta de mim mesmo culmina na descoberta do outro como uma liberdade
3 Esta retomada do cogito cartesiano exige uma complexa e extensa discussão, que não será colocada aqui, já que se apresenta pouco vinculada à presente pesquisa.
82
colocada em face de mim. O homem se encontra num mundo de intersubjetividade e “neste
mundo é que o homem decide sobre o que ele é e o que são os outros” (Sartre, 1978, p. 22).
O que está em questão aqui é o olhar (Bornheim, 2003). O outro apareceria para mim como
um mero objeto. Mas tal experiência não se passa da mesma forma que a percepção de um
livro, por exemplo. Pois entre mim e o outro há uma “ligação fundamental”, que se
manifesta através da experiência de que o outro me olha, me vê. Para Sartre (apud
Bornheim, 2003, p. 86), “o outro é, por princípio, aquele que me olha”. No encontro com o
outro, tomo consciência de ser visto, e esta experiência do ser-visto perturba a pureza da
percepção, suplantando a relação sujeito-objeto. O olhar do outro devolve-me a mim
mesmo: “o olhar é, antes de mais nada, um intermediário que remete de mim a mim
mesmo” (Sartre apud Bornheim, 2003, p. 86). Minhas relações com o outro estão
condicionadas pelo poder ser visto pelo outro. Ao me deparar com o olhar do outro, vejo
que há uma consciência por trás daquele olhar, e daí vejo também que eu sou consciência.
Poderíamos nos questionar, segundo esta noção de intersubjetividade colocada pelo
filósofo, se o que ele entende por autoconhecimento é um processo que depende dos outros.
Será que só nos conhecemos devido aos outros? Ou seja, se os outros não existissem, não
nos conheceríamos? Bem, se por acaso me conheço como ciumento, não é porque sou
ciumento em si, e sim porque este julgamento se dá baseado nos que os outros me
disseram, ou porque aprendi que agir de determinada forma constitui em ciúme etc. Este
próprio julgamento se constitui num julgamento por advir dos outros. Se eu paro e me
observo, qualquer coisa que digo a respeito de minhas características, tais como meus
sentimentos, minha aparência física, meu comportamento de uma forma geral, não estará
contaminada de um julgamento que proveio de uma forma ou de outra dos outros? É
preciso ficar atento a isso, pois se só posso me autoconhecer ao me autodescrever, isso quer
dizer que tudo o que descubro sobre mim desta maneira é o que aprendi através dos outros.
Mas não seria este um outro aspecto do autoconhecimento: algo que não pode ser exposto
em elementos verbais? Quando Sartre (1978) diz que o outro é indispensável ao
conhecimento que tenho de mim, pode tanto querer dizer que só no conhecemos pelo outro,
quanto que passar pelo outro é necessário para que eu posteriormente aprenda a abandonar
os julgamentos dos outros com relação a mim mesmo.
83
Para Sartre (1978), existe uma universalidade humana de condição. A condição é
tudo no mundo que estabelece limites. Posso nascer escravo numa determinada época. Essa
é minha condição, a situação em que existem os mais diversos limites. Pode haver, é claro,
infindáveis condições para o homem...
Mas o que não varia é a necessidade para ele de estar no mundo, de lutar, de viver com os outros e
ser mortal. Os limites não são nem subjetivos nem objetivos, têm antes uma face objetiva e uma
face subjetiva. Objetivos porque tais limites se encontram em todo lado e em todo lado são
reconhecíveis; subjetivos porque são vividos e nada são se o homem não os viver, quer dizer, se o
homem não se determina livremente na sua existência com relação a eles. E embora os projetos
possam ser diversos, pelo menos nenhum me é inteiramente estranho, porque todos se apresentam
como uma tentativa para transpor estes limites ou para os fazer recuar ou para os negar ou para nos
acomodarmos a eles. (Sartre, 1978, p. 22).
Se o homem é livre, isso não quer dizer que ele pode fazer o que quiser. Isso é
irreal, não há como fazê-lo seja lá como for. As pessoas querem muitas coisas, mas elas
estão dentro de limites. Quero me atirar de um precipício e sair voando; mas não posso,
pois há uma série de limites que me impedem de fazê-lo! Não posso escolher qualquer
coisa a qualquer momento, mas sempre escolho alguma coisa. “A escolha é possível num
sentido, mas o que não é possível é não escolher” (Sartre, 1978, p.23). Deparo-me com a
oportunidade de sair do país, abandonar tudo o que construí aqui e tentar uma vida nova em
outro lugar. Não quero escolher entre ficar ou ir embora, mas mesmo aí, não escolhendo, já
fiz uma escolha. Não é possível que o homem não assuma a responsabilidade total em face
do problema. Como já foi dito, o homem se constrói, é ele que inventa a sua lei. Mas todo
homem que se refugia num determinismo está agindo de má-fé. Um homem pode dizer que
agiu de determinada maneira porque foi dominado pelas suas paixões, não podendo agir
com a sua razão, e dá essa desculpa baseado numa filosofia já concebida que afirma que os
sentimentos dominam a razão. Este homem está agindo de má-fé, pois colocou numa teoria
qualquer a responsabilidade pelo seu ato. A má-fé é uma mentira, pois dissimula a
liberdade do compromisso. Os homens de boa-fé, ao contrário, procuram a liberdade pela
liberdade; a liberdade não tem outro fim a não ser querer-se a si própria. Depende do
homem dar um sentido à sua vida. Ela, a vida, não tem um sentido a priori. O meu valor é
o sentido que eu escolhi para minha vida (Sartre, 1978). Muitos buscam o sentido de sua
84
vida em algo fora, talvez num princípio que existe fora de cada um, como se ele existisse
antes; como se houvesse uma predestinação ou algo do gênero. Mas não adianta buscar um
sentido lá fora. Primeiro, porque não vou conseguir encontrá-lo, pois ninguém pode me
dizer; mesmo se um anjo vier e me disser o que tenho de fazer, como posso ter garantias de
que quem apareceu a mim foi um anjo de fato, ou uma alucinação? E quem pode saber mais
de minha vida senão eu mesmo? Segundo, porque o sentido pode ser qualquer um, pode
inclusive ser igual ao de milhares de outras pessoas. Por exemplo, posso ter a convicção de
que meu sentido é casar e procriar; mas muitos outros seres humanos seguem este mesmo
sentido. Então, como posso dizer que este é o meu sentido da vida, e de mais ninguém? E se
este sentido é o de todos, como afirma alguma doutrina cristã, por exemplo, eu não teria
motivo algum para reivindicar para mim mesmo um sentido, nem para me queixar de que é
algo imposto por Deus ao meu ser. Se defendo que deve haver um sentido determinado para
mim, mas ao mesmo tempo reclamo que este sentido me é imposto, então me encontro
numa óbvia contradição. Também neste caso estou agindo de má-fé.
Tal questão da má-fé será desenvolvida logo adiante, em conjunto com uma
definição um pouco mais detalhada de consciência.
2. Consciência e Liberdade
Apesar de a obra O Ser e o Nada ser fundamentalmente uma reflexão no âmbito da
ontologia, em que uma metafísica seja seu principal núcleo, também dela podemos retirar
conceitos importantes para a construção ou complementação de uma psicologia.
Sartre parte da consciência da mesma maneira que Husserl, ou seja, a consciência é
sempre consciência de algo — a intencionalidade da consciência (Giles, 1975). E mais, a
consciência é o nada. Se dizemos que toda consciência é consciência de algo queremos ao
mesmo tempo também dizer que ela é intuição daquilo que não é ela. Há um movimento de
aproximação das coisas do mundo que faz com que ela se esvazie, há um movimento,
portanto, em que é levada até a realidade. Portanto, o movimento é da consciência e o seu
sentido vem das coisas do mundo.
85
Temos aí uma procura de nadificação (Giles, 1975). Teríamos o ser em-si (que é o
que é), de um lado e a consciência humana ou o para-si de outro. Esta é uma diferenciação
importante na obra de Sartre e vai servir de base para sua ontologia fenomenológica.
Mais ainda, a consciência é consciência de si (Giles, 1975). Geralmente, quando se
fala desta consciência de si, fala-se em reflexão, um meio de saber de si. Mas a reflexão,
para Sartre, não é uma maneira de reencontrar a “consciência fonte”4. A consciência é
irreflexiva ou não-posicional. Pois ela surge sem conteúdo algum, não tem interioridade,
não tem essência. Ela é existência sem essência. “A consciência é o ser cognoscente
enquanto é, não enquanto é conhecido” (Giles, 1975, p. 311). Ou ainda, logo a seguir:
“Toda a existência consciente existe como consciência de existir”. A consciência é nada,
ela não pode ser conhecida. Ela é projeto de essência, ela visa a construção de uma
essência, a todo momento. Não é um ser. Pelo contrário, retira-se do ser para transformá-lo
em projeto, dirige-se totalmente a este projeto. É este o grande rompimento que Sartre
acaba fazendo com todas as teorias que vêem a consciência como um objeto, ou como mais
um ser em-si. A consciência surge livre, sem quaisquer determinações fundamentais.
Podemos notar muito bem quais as implicações desta definição à presente pesquisa.
Se queremos saber como se dá o processo de autoconhecimento, ou do eu com relação a si
mesmo, um dos movimentos que podemos imaginar a princípio é que: existe um eu, e este
eu pode voltar sua consciência para si mesmo; de outra forma, é um processo introspectivo.
Estamos falando de introspecção, ou como Sartre define, de reflexão. Poderíamos pensar
este processo com a metáfora do espelho. Temos um eu, e no momento que nos voltamos a
ele vemos a sua imagem refletida (daí a reflexão); isso seria o autoconhecimento, ou pelo
menos envolveria esta visão. Por vezes chamamos este movimento de “ver-se a si mesmo”
de consciência de si. Posso tomar este exato momento, o momento de agora, e prestar
atenção ao que está acontecendo comigo — talvez um sentimento de tristeza, um pouco de
ansiedade, um certo desconforto, uma dor em alguma parte do corpo etc. Isso chamaríamos
de consciência de si. Mas não é assim que Sartre denomina este movimento. Ele o
denomina de reflexão, não de consciência. Pois a consciência é nada, ela não é uma “coisa”
que possa ver a si mesma. Pelo contrário, ela se dirige a tudo aquilo que não é ela mesma.
Para o filósofo, portanto, dizer que “a consciência está agora consciente de si” é uma frase
4 A teoria da reflexão se encontra em A Transcendência do Ego.
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totalmente desprovida de sentido. A consciência não se volta a si mesma. Uma outra
questão parecida ainda é a noção de que o homem é aquele que percebe as coisas, mas
também percebe que percebe as coisas. Muitas vezes se diz que, neste segundo caso, há
consciência. Mas podemos enxergar muito bem que Sartre não seria adepto desta maneira
de pensar. Sartre diria que a consciência está mesmo antes disso, está no simples perceber
as coisas, pois, como se disse, a existência consciente é consciência de existir. No simples
fato de existirmos e termos consciência já está implicada a consciência de si. Novamente, é
provável que aquela noção de perceber que se percebe também seja chamada de reflexão,
por Sartre.
Consciência e liberdade estão inerentemente ligadas (Bornheim, 2003). Não tendo a
consciência um fundamento no em-si, nada há nela que a determine — ela é totalmente
livre de determinações que lhe ditem como deve “funcionar”. Esta liberdade é projeto, ou
seja, se volta ao futuro. Ela engaja a consciência no mundo, o que a leva sempre ser uma
consciência em-situação. Ela é a relação da consciência com o mundo; no entanto, e isso é
importante, ela não é a relação do eu com o mundo. Assim como a consciência, ela não é
uma essência ou qualificação da consciência: ela é projeto de um mundo (Giles, 1975). Não
há uma liberdade pura, que depois vai se relacionar ao mundo; mas a liberdade é justamente
aquela que está no mundo, na situação.
Segundo Bornheim (2003), “o poder nadificante do para-si inaugura toda a ação
humana” (p. 111). Não há determinações primeiras que conduzem o homem a um ato, não
há determinismo, não há um estado primordial que motive por si mesmo a consecução de
um ato. Não há qualquer estado dado anteriormente que não tenha sido constituído pelo
poder nadificador do para-si. A consciência vem justamente para se dirigir ao não-ser. O
passado não produz um ato. Essa é uma passagem interessante, pois se volta justamente
contra o que muitas correntes psicológicas colocam: o que aconteceu no passado serve de
explicação para um dado fenômeno, ou, já que estamos falando de psicologia, para um
dado comportamento. Pelo contrário, o movimento em questão não é do passado para o
presente, mas do futuro para o presente. É claro que todo ato implica que tenha motivos e
móveis. O móvel é o fato subjetivo: o desejo, a paixão, o sentimento etc. O motivo é como
se lida com a situação de modo a ver como ela pode servir de um meio para um
determinado fim; ou, de forma mais simples, qual é o fim que se quer atingir. Apesar destes
87
motivos e destes móveis, eles não servem de explicação para uma “causa” do ato. De forma
reversa, é o ato que vai construir os motivos e os móveis. Novamente, a existência precede
a essência. A liberdade é o fundamento de todas as essências. Mas por isso não se deve
entender que a liberdade é algo inerente à minha natureza, é algo acrescido à minha
natureza. Justamente porque a liberdade é nada, corresponde ao poder nadificador do para-
si! “Por ser o homem livre, escapa ao seu próprio ser, faz-se sempre outra coisa do que
aquilo que se pode dele dizer” (Bornheim, 2003, p. 111). É por isso que muitos dos adeptos
da psicologia existencial afirmam: não há teoria para explicar um indivíduo. Claro, pois o
indivíduo sempre escapará de um sistema teórico, haverá sempre algo nele que não
“encaixará” com o que é proposto pela teoria, ou mesmo há algo nele que vai contradizê-la
até. Se retomarmos Kierkegaard, é também o que ele denuncia.
O homem está condenado a ser livre, só não pode ser livre para deixar de ser livre
(Sartre, apud Bornheim, 2003). Está condenado para ir sempre além dos seus motivos e
móveis. Porém, muitas vezes os homens admitem alguma outra necessidade ou
determinismo como recusa à liberdade. Ou, de outra forma, tomam-se os motivos e os
móveis como entes determinantes de si próprio, visto como um ser em-si. Escapa-se sempre
para uma desculpa que responsabiliza Deus, a natureza ou a sociedade. Isso é má-fé, não se
reconhece que “a liberdade coincide em seu fundo com o nada que está no coração do
homem” (Sartre, apud Bornheim, 2003, p. 112). A angústia, dessa forma, é vista como a
conseqüência de se tentar colocar a liberdade como constituinte do ser; pois a liberdade não
é constituinte do ser, o que acaba revelando que a realidade humana não é algo pronto e que
na verdade tem uma “insuficiência de ser”. O para-si está condenado a sempre se fazer.
Para Sartre, ou o homem é absolutamente livre, ou não é livre. “Ou determinismo absoluto,
ou liberdade absoluta” (Bornheim, 2003, p. 112). Vemos aí, portanto, uma discordância em
relação ao que Rollo May (1979; 1987) coloca: que o homem é ao mesmo tempo sujeito e
objeto, e oscila entre os dois estados. Para Sartre não: o homem é apenas sujeito. Não no
sentido de que o homem nunca encontra seus limites, pois há a facticidade, como veremos
depois. Mas ele sempre construirá a si mesmo. Sempre escolherá seus motivos e móveis.
Levando-nos à raiz do problema, Bornheim (2003) inquire a respeito da “escolha
original” — o que está relacionado ao problema que colocamos antes a respeito da escolha
da criança. Como se dá, então, a primeira escolha que alguém faz? Da perspectiva de
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Sartre, certamente ela não se deu por causa dos motivos e móveis, que levaram a uma
determinada decisão. A escolha original, como a expressão diz, está na origem, antes de
tudo. Dizer que, por exemplo, meu comportamento se organiza de acordo com um inicial
complexo de inferioridade é dizer que minha natureza está irremediavelmente presa a este
complexo — o que me resta, portanto, é desistir de lutar contra isso e tudo o que posso
fazer é aceitar tal natureza completamente calado e quieto. Mas não, para Sartre o que
aconteceu foi que eu escolhi originariamente este complexo. Eu me faço desde o início.
Kierkegaard também se referiu em outros termos a esta escolha original, no caso de Adão.
O que poderia se questionar aqui é qual o aspecto desta escolha: ela seria uma escolha
racional? No exemplo dado, eu “pensei” a respeito de um complexo de inferioridade e
então o escolhi? Toda escolha se dá desta maneira?
Aqui, ainda, podemos apontar uma questão importante. Pois bem, há uma escolha
original que não foi condicionada por motivos e móveis. Mas como se explicam os diversos
padrões por toda a humanidade? Peguemos exemplos. Como se explica que existam tantas
pessoas que exibem certos padrões de comportamento como alucinações, fuga da realidade
etc., próprios de uma esquizofrenia? Por que existem tantas pessoas que exibem
comportamentos repetitivos e compulsivos? Ou tantas pessoas que exibem comportamentos
sexuais semelhantes — heterossexuais, homossexuais, masoquistas...? Essas pessoas
fizeram escolhas iguais, ou mesmo escolhas originais iguais? Em que nível Sartre define
esta escolha? Seria apenas no nível comportamental ou psicológico? Ou ainda mais: se esta
escolha for apenas no nível comportamental-psicológico, ela vai acabar se vendo no
mínimo influenciada por outros aspectos, como o próprio aspecto biológico, ou mesmo o
social. Esperamos ter uma pista desta questão ao tratarmos de facticidade.
Sartre nos diz que a liberdade, de um lado, deriva do nada do para-si; entretanto, por
outro, é graças ao em-si que ela surge (Bornheim, 2003). As resistências ou limites que o
ato livre encontra é que permitem o “surto da liberdade”. Ora, se a liberdade é um nada que
se encontra no ser, obviamente devemos supor que haja um ser — analogamente, não há
uma figura sem um fundo. Mas o que se deve apreender daí é que há uma relação entre
liberdade e dado (o em-si), mas não é uma relação de causalidade: o dado não pode causar
o surgimento da liberdade. A causalidade está apenas no em-si. A liberdade também
nadifica o dado. E este não lhe aparece como existente bruto, ou seja, não é algo que
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absolutamente não possa ser transformado, contornado, enfrentado etc. O dado, isso sim,
vai aparecer como motivo, como um fim. É esta relação entre liberdade e em-si que é
chamada de condicionamento ontológico da liberdade. Este condicionamento nos leva à
questão da situação. Pela situação, o dado se transforma em motivo. “Toda liberdade está
em situação, e não há situação sem liberdade” (Bornheim, 2003, p. 118). A situação é
aquela pela qual o para-si nadifica o em-si. Os seres humanos esbarram em resistências e
limites na realidade, mas essas resistências adquirem um sentido no ato livre. A situação,
portanto, estabelece-se junto à facticidade. Há várias facticidades: o lugar onde estou, o
meu passado, as outras pessoas, meu corpo... Aí temos uma resposta à questão formulada
anteriormente. De fato, não posso escolher em que tipo de corpo irei viver — isso é parte
de minha facticidade. Mais ainda: se não há minha liberdade para nadificar meu corpo, não
haverá meu corpo! Isto é, é inútil tentar apreender o em-si; o em-si “em-si” não nos
aparece. É claro que o corpo apresenta seus diversos limites, mas é justamente por estes
limites que a liberdade pode ter, por assim dizer, uma razão de existir. Outro exemplo é o
do passado: não podemos mudá-lo; mas podemos dar a ele uma significação e dar mesmo
uma nova significação. É do futuro que vem a força do passado. É assim que a ambigüidade
está na situação (Bornheim, 2003). É aí que podemos fazer uma analogia com a questão
colocada nos capítulos anteriores a respeito do paradoxo da existência.
A liberdade seria uma autonomia da escolha? Posso escolher qualquer coisa, sem ter
influência alguma dos limites dos dados? Para Sartre, só há duas situações em que esta
autonomia não se dá; são as situações-limite, o nascimento e a morte (Bornheim, 2003).
São os dois únicos fatos que o poder nadificador do para-si não alcança. São “puros fatos”
(Sartre apud Bornheim, 2003), ou facticidades puras. Excetuando-se estes fatos, o ato livre
é sempre autônomo, não há condicionamento algum. Mas até mesmo, Sartre afirma, eu
escolho meu nascimento. Isso porque eu posso significá-lo: posso arrepender de ter
nascido, posso odiar ter nascido, ou adorar ter nascido etc. O que Sartre vai veemente
contra é a admissão de que qualquer facticidade seja determinante do para-si. Isso é abdicar
à realidade humana, além de ser uma típica postura de má-fé. Ou seja, se afirmo que minha
liberdade ou minhas escolhas são condicionadas ou determinadas pelo ambiente em que
vivo, essa é uma postura de má-fé; isso seria o mesmo que afirmar que o para-si se constitui
a partir do ambiente (por exemplo), o que Sartre vai refutar.
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Até porque o para-si é negação, não uma presença positiva, um “algo”. O ser
humano é aquele “que pode tomar atitudes negativas a respeito de si” (Sartre, 1972, p. 91).
A consciência surge no mundo como um Não, tal como um escravo em relação a seu amo,
ou ao prisioneiro que tenta fugir de uma sentinela. Pois bem, a má-fé estaria ligada a esta
negação. Diz-se que a má-fé é mentir a si mesmo. A má-fé possui, sim, uma estrutura de
mentira, mas implica em outras coisas. A mentira, segundo Sartre (1972), implica que o
mentiroso saiba exatamente da verdade, para enganar o outro; pois não se mente sobre o
que se ignora. Mentir ao outro é afirmar a verdade negando-a. É uma atitude positiva, é
objeto de um juízo afirmativo, pois o mentiroso tem a intenção de enganar o outro. Mas no
caso da má-fé isso não se passa da mesma forma. “Na má-fé eu mascaro a mim mesmo a
verdade. Assim, a dualidade do enganador e do enganado não existe neste caso. A má-fé
implica por essência a unidade de uma consciência” (Sartre, 1972, p. 93). É preciso uma
intenção primeira e um projeto de má-fé. Isso implica numa compreensão da má-fé
enquanto tal e uma captação pré-reflexiva da consciência como se efetuando de má-fé.
Aquele a quem se mente e aquele que mente são uma pessoa; isso exige que, enquanto
enganador, devo saber a verdade que escondo do enganado. Como pode então haver uma
mentira se a dualidade (enganador mais enganado) que a constitui não existe? Neste caso,
recorre-se ao inconsciente. Na interpretação psicanalítica, haveria um censor que escolhe o
que deve ou não passar à consciência, e nesta hipótese a dualidade do enganador e do
enganado seria mantida. Pois a distinção do ego e do id cindiu o psiquismo em dois.
A psicanálise substitui a noção de má-fé com a idéia de uma mentira sem um mentiroso; permite
compreender como posso não mentir a mim mesmo senão ser mentido, já que me coloca com
respeito a mim mesmo na situação do próximo frente a mim, recoloca a dualidade do enganador e
do enganado, condição essencial da mentira (Sartre, 1972, p. 96).
O filósofo, assim, explica que a má-fé é um autonegar-se, no entanto não implica
em recorrer a um inconsciente. Mas o que é má-fé, afinal? O ser humano tem uma dupla
propriedade: é facticidade e transcendência. A má-fé não procura nem superar as duas
propriedades, nem coordená-los; ela procura afirmar a identidade de ambos conservando
suas diferenças. “A ambigüidade necessária para a má-fé procede em afirmar que sou
minha transcendência no modo de ser da coisa” (Sartre, 1972, p. 103). Em outras palavras,
91
trata-se de mostrar a transcendência transformada em facticidade, numa fonte de desculpas
para nossos fracassos e debilidades. Um dos exemplos que coloca é o do garçom.
Consideremos este garçom. Tem o gesto vivo e marcado, algo demasiado exato, algo demasiado
rápido. (...) Toda a sua conduta nos parece um jogo. Esforça-se a engrenar seus movimentos como
se fossem mecanismos regidos uns pelos outros, seus gestos e sua voz mesmos parecem
mecanismos. (...) Mas, para quê joga? Não é preciso observá-lo muito para se dar conta: joga a ser
garçom. Não há nisso do que se surpreender: o jogo é uma espécie de demarcamento e
investigação. A criança joga com seu corpo para explorá-lo; o garçom joga com a sua condição
para realizá-la. (Sartre, 1972, p. 105).
É como um jogo de atores ou marionetes. Cada pessoa assume um papel que deve
representar. No caso, o garçom vira a coisa-garçom (Bornheim, 2003), somente isso e nada
mais. Os homens se esforçam por se aprisionarem ao que são, a criarem para si mesmos
uma segunda condição. Ou seja, o que as pessoas não querem enfrentar é a sua condição de
existência, e querem criar uma outra condição, talvez mais confortável, talvez mais segura,
em que não é preciso lidar com a imprevisibilidade dos acontecimentos; mas esta
imprevisibilidade está sempre ali, a todo momento mostrando sua face. Temos o perpétuo
temor de que apareça esta condição. Mas nossa consciência é para-si, é nada, e o garçom
não poderá ser garçom na mesma medida que uma pedra é uma pedra, um livro é um livro.
Essas coisas são o que são, mas não o garçom, que é consciência nadificante. É o sujeito
que deve-ser. O garçom representa, mas não é um garçom. Pretende realizar um “ser-em-
si-garçom”; mas não o pode. As situações, o tempo, tudo aquilo que faz, vai mostrá-lo que
não o pode. “O homem deve ser algo com o qual nunca consegue coincidir; se represento
uma função, não a sou” (Bornheim, 2003, p. 49). É neste sentido que o para-si é o que não
é, e não é o que é. Eis o grande drama da existência, em que há uma ausência que nunca se
pode preencher. Mesmo o chamado “campeão da sinceridade” age de má-fé, pois o homem
sincero procura “ser ele mesmo” e isso pressupõe uma estabilidade nele, um em-si (Sartre,
1972).
Mas qual a razão pela qual o ser humano procura “afogar” sua liberdade? Por que é
tão angustiante construir a si mesmo por esta liberdade? Por que é mais seguro se sentir
como determinado, procurar se ser um em-si?
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A má-fé se mostra como um conceito intimamente ligado ao problema desta
pesquisa, e as questões acima, se for possível respondê-las, são desafios que ajudarão a
entender melhor o que é, afinal de contas, o homem enquanto tal.
93
APÊNDICE:
A Náusea e a Gratuidade da Existência
Segundo Bornheim (2003), tanto Descartes quanto Sartre partem da dúvida para
atingir o reino humano. Porém, enquanto Descartes limita a dúvida à esfera do
conhecimento, Sartre o faz de forma mais ampla, estendendo-a à existência humana e à
gratuidade dessa existência. É no romance A Náusea que o filósofo vai explicitar todos os
desdobramentos dessa dúvida no próprio sentido da existência.
O protagonista, Antoine Roquentin, anota num diário suas impressões e observações
a respeito dos fatos cotidianos que acontecem a seu redor (Sartre, 1986). É a busca da
verdade da existência que está em questão. A busca, não de um princípio primeiro que seja
apenas intelectual, mas de um princípio primeiro que rege a existência.
E houve também essa seqüência de coincidências, de qüiproquós que não consigo entender. Mas
não vou perder tempo colocando tudo isso no papel. Enfim, é fora de dúvida que tive medo ou
algum ressentimento no gênero. Se pelo menos soubesse do que tive medo, já teria dado um grande
passo.
O curioso é que absolutamente não me sinto inclinado a me considerar louco e vejo até, com toda
evidência, que não estou louco: todas essas mudanças dizem respeito aos objetos. Pelo menos é
disso que gostaria de ter certeza. (Sartre, 1986, p. 14).
Vemos aí uma certa tentativa de entender o que ocorre na existência (“Se pelo
menos soubesse do que tive medo”; “é disso que gostaria de ter certeza”), e a explicitação
de uma certa compreensão da sua gratuidade (“essa seqüência de coincidências, de
qüiproquós que não consigo entender”). E há uma óbvia tentativa de compreender que não
há nele mesmo qualquer responsabilidade quanto a seus sentimentos: qualquer temor que
sinta é devido aos objetos, ao mundo que está mudando; mesmo assim, apesar da afirmação
dessa certeza, percebemos que ela vem acompanhada de dúvida: seriam mesmo os objetos
os responsáveis pelo temor, pela loucura? Notamos isso logo a seguir, quando Roquentin
descreve do seu quarto todo o movimento que ocorre nas ruas. Ao notar que tudo transcorre
da mesma maneira que nos outros dias, diz: “o que se pode temer num mundo tão regular?
Creio que estou curado” (Sartre, 1986, p. 15). A regularidade do mundo, assim, é percebida
94
como uma forma de se sentir seguro; e, por ela, ele se sente “curado”, isto é, livre da crise
de “loucura”, que antes afirmava não ter tido.
O sentimento indefinido vem a todo momento perturbar esta aparente segurança:
Já não posso duvidar de que alguma coisa me aconteceu. Isso veio como uma doença, não como
uma certeza comum, não como uma evidência. Instalou-se pouco a pouco, sorrateiramente: senti-
me um pouco estranho, um pouco incômodo, e isso foi tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu,
ficou quieto e pude me persuadir de que não tinha nada, que era um alarme falso. E eis que agora a
coisa se expande. (Sartre, 1986, p. 17).
A seguir há um súbito despertar de um questionamento da própria existência:
E depois, de repente, despertei de um sono de seis anos.
A estátua me pareceu desagradável e estúpida, e senti que me entediava profundamente. Não
conseguia entender por que estava na Indochina. O que fazia ali? Por que falava com aquelas
pessoas? Por que estava vestido de maneira tão estranha? Minha paixão morrera. Durante anos, ela
me submergira e me arrastara; agora me sentia vazio. Mas isso não era o pior: diante de mim,
instalada com uma espécie de indolência, havia uma idéia volumosa e insípida. Não sei bem o que
era, mas não podia encará-la, de tal modo me repugnava. (Sartre, 1986, p. 19).
Ora, que idéia seria essa senão a da própria liberdade e da responsabilidade que a
existência exige de cada um? Roquentin acaba chegando a um questionamento de tudo e do
porquê de tudo. A falta de sentido das coisas se alia à percepção de que há uma
responsabilidade (apesar de neste caso essa percepção não ser clara de início). Diz Giles
(1975) a respeito do personagem: “[Roquentin] descobre na angústia, que nada na vida tem
motivo e justificação, e no entanto essa gratuidade não o livra da sua liberdade e de sua
responsabilidade (...). É ele que deve criar toda a justificação” (p. 313). Esta busca culmina
numa necessidade de entender a si próprio: ele se pergunta aonde tudo vai parar, o que
acontecerá dali um tempo — e sente medo do que vai nascer nele. “Gostaria de me
entender com exatidão antes que seja tarde demais” (Sartre, 1986, p. 20), diz.
A náusea, o sentimento ou o estado em que estamos questionando o porquê da
nossa vida, e a falta de resposta imediata a essa questão, é a experiência que parece
despertar a necessidade do autoconhecimento. É tomar consciência de que nossos atos não
95
são justificados (Giles, 1975). Se o homem pára e examina sua vida cotidiana, pode notar a
total falta de explicação para tudo, a falta de sentido — daí, há medo, terror, desespero,
angústia... A questão do sentido é vista como tendo muita importância na psicologia, o que
se nota em Frankl (1973; 1990). Seria melhor tanto haver um sentido já estabelecido,
quanto deixar de existir. Visto que a última opção se revela impossível, a busca de um
sentido já estabelecido seria o melhor caminho. Mas digamos que alguém descubra, através
de uma experiência qualquer, qual é seu sentido; digamos que um anjo apareça e diga a esta
pessoa qual a sua missão. Bem, não podemos negar que haverá um conforto: ela nunca
mais precisará pensar numa questão tão perturbadora e fundamental. Mas o que acontecerá
com o seu projeto pessoal? Digamos que tal pessoa fosse encarregada pelo anjo de ajudar a
erradicar a miséria na África. No entanto, qual conforto ela teria ao receber a notícia de ter
de ir a um lugar completamente desconhecido, e se de certa forma ela sempre achou que
poderia prosperar abrindo um negócio? Não voltamos à questão inicial, de qualquer
maneira? Pois haverá uma questão fundamental em que ela deverá se posicionar, deverá
escolher: afinal de contas, se seu sentido na vida é ajudar a erradicar a miséria na África,
ela deve, num sentido de obrigatoriedade, escolher este caminho ao invés de procurar abrir
um negócio? É esta a escolha “certa”? Não voltaríamos à noção de que há um “certo” e um
“errado” que está acima de nós, e comanda nossas ações? Ao se ver nesta situação, a pessoa
não será tomada no mínimo de angústia? Todo este aspecto que Sartre coloca é
fundamental na realidade humana, e está no cerne do que seja talvez o maior drama que um
indivíduo possa passar na sua experiência.
Para Sartre, a existência é desnecessária, é um simples estar aí (Giles, 1975). A
náusea significa reconhecer essa realidade. A responsabilidade é sentida como horror,
queremos recusá-la, sem podê-lo. Sartre vê com desconfiança qualquer tentativa de dar
sentido à existência sem passar pela náusea: “aquela falsa seriedade de homens que não se
questionam em todo o rigor e pretendem justificar o fundo da existência em base de
preconceitos, de rotinas e de convenções superficiais” (Giles, 1975, p. 316). São os homens
que vivem suas vidas achando-as coerentes e se colocando numa atitude confortável e
segura. Escondem a angústia que vem da liberdade e da responsabilidade, construindo uma
imagem cheia de honorabilidade, posição social respeitável e a consciência de seus
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direitos5; porém pergunta-se: “Mas será isso suficiente para justificar um homem?” (Giles,
1975, p. 316). Uma reflexão como a empreendida por Roquentin responde que não. Ora,
mas por que condenar no homem a sua busca de segurança? Não seria um comportamento
natural (se é que se pode dizer assim)? O que está em questão aqui são os valores morais.
Sartre talvez condene esses homens como uma maneira de “acordá-los”. Os valores morais
são convenções, são máscaras; são, enfim, justificativas já prontas. Mas não pode haver
justificações já prontas, pois há a liberdade e a responsabilidade, que obrigam o homem a
criar suas próprias justificativas. Essa mudança de perspectiva empreendida por Sartre
talvez demonstre a própria característica do homem a partir do século XX; parece haver
uma mudança de valores, ou antes, a morte dos valores antes estabelecidos.6 Diz Giles
(1975, p. 317-318):
É incontestável que, mesmo se novos valores aparecerem em nossa época, o sistema de valores
sobre o qual vivia o século passado sofreu um grande abalo. O que se chamava o “bem”, o “belo”,
o “verdadeiro”, o “justo” são noções que se puseram em discussão devido à evolução inevitável dos
costumes e das circunstâncias, por causa de uma nova psicologia, por causa da modificação dos
critérios científicos da realidade e da verdade e por causa do envelhecimento dos valores em si, que
à força de serem utilizados pela sociedade, sofreram a conseqüência normal de uma utilização às
vezes inadequada e hipócrita, isto é, o desbaratamento. (...)
Uma época como a nossa, em que se muda assim tão rapidamente e de maneira tão cataclísmica,
faz terrível destruição de mitos e de noções; por esta razão, o homem contemporâneo dificilmente
se imagina enquadrado por noções e convenções que pretendem guiar sua vida, pois estas se
desgastam muito rapidamente e se tornam um espírito de conforto, de rotina, e de hipocrisia;
mudam-se muito depressa numa sociedade em que não são mais estáveis e que as deprecia por um
uso frenético e às vezes vil; o homem então se torna como uma criança perdida, sem conselho e
sem apoio. Assim, os valores e, para simplificar, o bem e o mal, são sentidos no nosso século como
confusos e astuciosamente misturados, de tal sorte que o homem deve viver sozinho e sem ajuda
nesta confusão, afirmando no entanto a sua responsabilidade.
Sartre (1986), em A Náusea, oferece a nós um personagem que é a encarnação desta
gratuidade; mas, apesar de todo o caráter angustiante, e de certa forma até desencorajadora,
que tal situação possa ter, ela justamente compele o homem a superá-la. Somos livres para
5 Essa descrição aproxima Sartre de Kierkegaard. 6 E isso aproxima Sartre de Rollo May, que denunciou também a mudança de valores.
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isso, somos livres para dar um sentido às coisas, um sentido que é nosso. Ou melhor, um
sentido que é meu, pois nessa tarefa estou completamente só. Tal experiência da solidão,
inclusive, é apontada por Roquentin. Fala de sua infância, e lembra que havia um homem
que vivia andando sozinho pelas ruas. “Tínhamos um medo horrível dele, porque sentíamos
que era um homem sozinho” (Sartre, 1986, p. 24). Logo em seguida expressa seu medo da
solidão: “Pela primeira vez me incomoda estar só. Gostaria de falar com alguém sobre o
que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a assustar os
garotinhos”.
A própria perda do sentido alcança uma proporção radical quando Roquentin se
olha no espelho:
É o reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não entendo
nada desse rosto. Os dos outros têm um sentido. O meu não. Sequer posso decidir se é bonito ou
feio. Acho que é feio, porque me disseram. Mas isso não me impressiona. No fundo, até me choca
que se possam atribuir a ele qualidades desse gênero, como se chamassem de bonito ou feio um
pedaço de terra ou um bloco de rocha. (Sartre, 1986, p. 34).
E nessa passagem também se nota a perda dos valores, ou mais especificamente de
um valor em especial, o da beleza. Cita inclusive a origem deste valor: os outros. Mais
ainda: um valor é meu quando o aceito através dos outros.
O drama do personagem se agrava com a constatação mais forte do tédio da vida.
Constata que na sua vida não houve o que se possa chamar de uma “aventura”.
Não tive aventuras. Aconteceram-me histórias, fatos, incidentes, tudo o que se quiser. Mas não
aventuras. Não é uma questão de palavras; começo a entender. Há algo que eu prezava mais do que
todo o resto, sem perceber muito bem. Não era o amor, Deus meu, nem a glória, nem a riqueza.
Era... Enfim eu imaginara que em determinados momentos minha vida podia assumir uma
qualidade rara e preciosa. Não eram necessárias circunstâncias extraordinárias: tudo o que eu pedia
era um pouco de rigor. Minha vida atual nada tem de muito brilhante (...). Acabo de descobrir
bruscamente, sem razão aparente, que menti a mim mesmo durante dez anos. As aventuras estão
nos livros. E, naturalmente, tudo o que se conta nos livros pode acontecer realmente, mas não da
mesma maneira. Era essa forma de acontecer que era tão importante para mim, que eu prezava
tanto. (Sartre, 1986, p. 63).
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Quantos homens querem fazer de sua vida uma aventura, e quantos homens se
iludem! Pois a aventura, como disse Roquentin, está no livro — e de certa forma é também
uma convenção como qualquer outra; tem o mesmo peso de um valor moral. A angústia se
acentua (Sartre, 1986, p.65):
Sim, é isso que eu queria — ai de mim! É isso que quero ainda. (...).
A Idéia continua ali, a inominável. Espera tranqüilamente. No momento parece estar dizendo:
— “Sim? É isso que você queria? Pois bem, é precisamente isso que você nunca teve (lembre-se:
você se iludia com palavras, chamava de aventura ouropéis de viagem, amores de prostitutas,
brigas, quinquilharias) e não terá jamais — nem você nem ninguém.”
Mas por quê? POR QUÊ?
Essa é a terrível constatação que leva a um sofrimento tão intenso. Ao refletir mais a
esse respeito, o personagem esboça:
Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e
basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador
de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias de outrem, vê tudo o que lhe acontece
através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.
Mas é preciso escolher: viver ou narrar. (Sartre, 1986, p. 66).
Vemos aí uma outra forma de descrever a má-fé. Poderíamos dizer que a má-fé é
sinônimo de narrar a própria vida. Narra-se a vida, representa-se a vida. A escolha
fundamental se dá desta forma: ou escolho existir, ou escolho representar; ou escolho
minha liberdade, ou escolho ser de má-fé. A reflexão em cima desta questão prossegue. O
viver é uma sucessão de acontecimentos, de pessoas, de cenários e mais nada além disso;
são as horas, os dias, os anos... enfim, o tempo que passa.
Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém
nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se pudesse haver histórias verdadeiras;
os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar
do início: “Era numa bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente em Marommes.” E na
verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas
poucas palavras a pompa e o valor de um começo. (...). Mas o fim, que transforma tudo, já está
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presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são
bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras. (Sartre, 1986, p. 67).
A vida é tediosa, e procuramos escapar deste tédio e desta falta de justificação
recorrendo à criação de uma aventura. Este “fim” descrito parece também corresponder a
um valor. Narramos toda a história em detrimento de um valor — pois o “fim” é bom, e se
ele é bom, é uma convenção que devo seguir.
Mas Roquentin chega ao princípio de um entendimento: “É preciso não sentir
medo” (Sartre, 1986, p. 110). Isto é, parece que é preciso retomar a responsabilidade e se
reconhecer livre; só assim a gratuidade pode começar a ser superada, ou antes, pode-se lidar
com ela. E então temos o reconhecimento da náusea: “Então é isso a Náusea: essa evidência
ofuscante? Como quebrei a cabeça! Como escrevi a respeito dela! Agora sei: Existo — o
mundo existe — e sei que o mundo existe. Isso é tudo” (Sartre, 1986, p. 182). Mas este
reconhecimento não é acompanhado por tranqüilidade:
Gostaria tanto de me abandonar, de deixar de ter consciência de minha existência, de dormir. Mas
não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, pela
boca...
E subitamente, de repente, o véu se rasga: compreendi, vi.
Não posso dizer que me sinta aliviado nem contente; ao contrário, me sinto esmagado. Só que meu
objetivo foi atingido: sei o que desejava saber; compreendi tudo o que me aconteceu a partir do
mês de janeiro. A Náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não
estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a Náusea sou
eu. (Sartre, 1986, p. 187).
É a visão de que se está condenado à liberdade. Segundo Bornheim (2003), a náusea
se revela como sendo “eu mesmo”, como sendo algo constitutivo daquilo que o homem é. E
a compreensão toma a sua forma final, expressando a própria tese do existencialismo de
Sartre (Sartre, 1986, pp. 188-194):
Fiquei sem respiração. Nunca, antes desses últimos dias, tinha pressentido o que queria dizer
“existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar com suas roupas de primavera.
Dizia com eles: o mar é verde; aquele ponto branco lá no alto é uma gaivota, mas eu não sentia que
aquilo existisse, que a gaivota fosse uma “gaivota-existente”; comumente a existência se esconde.
100
Está presente, à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos dizer duas palavras sem
mencioná-la, e afinal não a tocamos. (...). Compreendi que não havia meio-termo entre a
inexistência e aquela abundância extática. Existindo, era necessário existir até aquele ponto, até o
bolor, a tumidez, a obscenidade. (...). E eu — fraco, lânguido, obsceno, digerindo, revolvendo
pensamentos sombrios —, também eu era demais. Felizmente não o sentia, sobretudo não o
compreendia, mas não estava à vontade, porque temia senti-lo (mesmo agora temo isso — temo
que esse sentimento me agarre pela nuca e me erga súbita e violentamente como um maremoto).
Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar pelo menos uma dessas existências supérfluas.
Mas até mesmo minha morte teria sido demais. Demais, meu cadáver, meu sangue sobre aquelas
pedras, entre aquelas plantas ao fundo daquele jardim risonho. E a carne corroída teria sido demais
na terra que a recebesse, e meus ossos, finalmente, limpos, descarnados, asseados e imaculados
como dentes, também teriam sido demais: eu era demais para a eternidade.
A palavra “Absurdo” surge agora sob minha caneta (...). E sem formular claramente nada,
compreendi que havia encontrado a chave da Existência, a chave de minhas Náuseas, de minha
própria vida. De fato, tudo o que pude captar a seguir liga-se a esse absurdo fundamental. (...)
Esse momento foi extraordinário. Estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível.
Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea,
possuía-a. (...) O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência
não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os
encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. (...) Ora, nenhum ser necessário pode explicar a
existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por
conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio.
A própria noção do eu se modifica, assim como a da consciência (Sartre, 1986, p.
247):
Agora, quando digo “eu”, isso me parece oco. Já não consigo muito bem me sentir, de tal modo
estou esquecido. Tudo o que resta de real em mim é existência que se sente existir. Bocejo
silenciosamente, demoradamente. Ninguém. Antoine Roquentin não existe para ninguém. Isso me
diverte. E o que é exatamente Antoine Roquentin? É algo de abstrato. Uma pálida lembrança de
mim vacila em minha consciência. Antoine Roquentin... E de repente o Eu esmaece, esmaece e,
pronto, se apaga.
Lúcida, imóvel, deserta, a consciência se encontra entre as paredes; perpetua-se. Já ninguém a
habita. Ainda agora alguém dizia eu, dizia minha consciência. (...) A cosnciência existe como uma
árvore, como um fragmento de relva. Está sonolenta, entedia-se. Pequenas existências fugitivas a
povoam como pássaros em galhos. Povoam-na e desaparecem. Consciência esquecida, abandonada
entre essas paredes, sob esse céu cinza. E eis aqui o sentido de sua existência: é que ela é
101
consciência de ser demais. Dilui-se, dispersa-se, procura se perder na parede escura, junto ao
lampião ou lá no nevoeiro da noite. Mas nunca se esquece de si mesma; é consciência de ser uma
consciência que se esquece de si mesma. Seu destino é esse.
Parece aí que toda a tese de O Ser e o Nada aparece em A Náusea como vivência. E
tem aí, também, uma forma de instaurar um novo humanismo, segundo Bornheim (2003). A
Náusea é um impasse, mas que ao mesmo tempo impele a uma tomada de atitude.
Simplesmente aceitar a náusea é ficar insistindo num ponto: a vida não tem um sentido e
pronto. E acabamos nos retorcendo em cima dessa conclusão, o que equivale a continuar,
de certa forma, no estado anterior. Equivale a um “ceticismo existencial” (Bornheim,
2003). É preciso superar este ceticismo e a náusea. Mas como? Para Bornheim (2003), a
náusea não deve ser uma experiência totalmente absorvente, devendo haver uma forma de
transcendê-la. Uma forma inicial talvez seja sentir e pensar a própria náusea, enxergar que
se é a náusea. De certa forma, é necessário passar por isso. E talvez essa possa fazer parte
da própria experiência do autoconhecimento: conhecimento ou reconhecimento da própria
condição na existência, o que dá a possibilidade de, a partir de então, seguir em frente.
Roquentin finaliza com uma ponta de esperança (Sartre, 1986, p. 258):
Vou embora, sinto-me vago. Não me atrevo a tomar uma decisão. Se tivesse certeza de ter talento...
Mas nunca — nunca escrevi nada nesse gênero; artigos históricos sim — e mesmo assim... Um livro.
Um romance. E haveria pessoas que leriam esse romance e diriam: “Foi Antoine Roquentin que o
escreveu, era um sujeito ruivo que estava sempre nos cafés.” E pensariam em minha vida, como eu
penso na dessa preta: como em algo precioso e meio lendário. Um livro. Naturalmente, no início
seria um trabalho tedioso e cansativo; não me impediria de existir e de sentir que existo. Mas
chegaria o momento em que o livro estaria escrito, estaria atrás de mim, e creio que um pouco de
claridade iluminaria meu passado. Então, talvez através dele eu pudesse evocar minha vida sem
repugnância. Talvez um dia, pensando exatamente nesse momento, nessa hora sombria em que
aguardo, as costas encurvadas, o momento de subir no trem, talvez sentisse meu coração batendo
mais rápido e dissesse a mim mesmo: “Foi naquele dia, naquela hora, que tudo começou.” E
conseguiria — no passado, somente no passado — me aceitar.
102
CONCLUSÃO
Ao fazermos uma revisão geral dos principais conceitos que surgiram no decorrer
da pesquisa teórica, podemos apontar semelhanças, diferenças e fazer um levantamento
global das noções que circundam a liberdade e o autoconhecimento.
Nos textos de Sartre aqui analisados não se encontra muito sobre este
autoconhecimento; encontra-se bem mais a respeito de liberdade. Já em Kierkegaard
encontramos tanto liberdade quanto autoconhecimento descritos de forma mais entrelaçada
um com o outro. Em Rollo May, isso também se observa, sendo que o autor dá um enfoque
ainda maior ao autoconhecimento.
Verificamos que em Kierkegaard o autoconhecimento se vincula não só a uma
relação do eu consigo mesmo, mas também do eu com Deus. Uma pessoa se desespera
quando, ao se voltar a si mesma, descobre que depende de si mesma. Deus criaria o
indivíduo, mas este indivíduo dependeria apenas de si mesmo. Dizendo de outra maneira,
uma pessoa não pode determinar o momento que vai passar a existir, nem determinar o
local em que isso vai acontecer; sobre isso ela não tem controle algum, mas ela vai
descobrir que, existindo, ela é responsável e é livre. E é esta condição de responsabilidade
e liberdade que a faz desesperada. Desespero este que não consegue suplantar tal condição.
Em Sartre, encontramos uma descrição muito semelhante. O filósofo define o homem como
aquele ser cuja existência precede a essência, aquele que se constrói através de sua
liberdade, aquele que está “condenado a ser livre”. Apesar desta semelhança, não há em
Sartre uma descrição da relação do indivíduo com Deus, o que é observado, por sua vez,
em Kierkegaard. Para este, há uma “suprema exigência” do destino do homem, que é ser
um espírito. Ora, mas o que é ser um espírito? Levando em conta todo o contexto da
descrição kierkegaardiana deste termo, podemos concluir que ser espírito é justamente ser
livre e responsável. Ao que parece, há uma diferença terminológica entre Sartre e
Kierkegaard, mas ambos querem dizer uma mesma coisa: que o homem é livre e se constrói
através de suas escolhas, apesar de não se encontrar numa condição que ele próprio
determinou. Isso se identifica também com a noção de ser o “eu que verdadeiramente se é”,
encontrada em Kierkegaard e Rollo May. Muitas vezes o homem quer dissimular este
103
estado; aí também encontramos, nos dois autores, descrições que se assemelham. Para
Kierkegaard, o indivíduo desesperado quer esconder dos outros e de si mesmo que é um
espírito, a isso quer negar, negar a sua eternidade, resultando em escândalo, numa falta de
humilde coragem para crer, numa “falsa satisfação em viver”, numa “falsa
despreocupação” e nas variadas personificações do desespero (finito-infinito, temporal-
eterno, possível-necessidade...). Já em Sartre, encontramos esta dissimulação no conceito
de má-fé. Em May, esta dissimulação também aparece, mas aqui junto à descrição do vazio,
do medo da solidão, da perda de significação e da ansiedade no homem contemporâneo.
Sartre, assim como Kierkegaard, dá definições de angústia e de desespero. Mas o
filósofo francês define este último como o estado do homem que se sente restrito ao
domínio das possibilidades e incertezas do mundo. A sua definição de angústia é mais
próxima à de desespero em Kierkegaard, ou seja, o sentimento de profunda
responsabilidade que o homem tem sobre si. Angústia, em Kierkegaard, é o sentimento
ambíguo, advindo do nada, da possibilidade da liberdade; é uma “liberdade obstaculada”.
Essa liberdade obstaculada também se verifica de modo semelhante em Rollo May,
que afirma que a liberdade confere ao homem a capacidade de se adaptar, moldar e
selecionar o contexto histórico, não sendo unicamente determinado por ele. Além disso, a
própria capacidade de ser cônscio de si mesmo é constituinte da liberdade humana, bem
como a capacidade de contribuir para a própria evolução, construir-se.
No que se refere à consciência, tanto Kierkegaard quanto Rollo May têm definições
semelhantes, só diferindo um pouco na terminologia. Para Kierkegaard a consciência só
está “ativa” quando o homem exerce sua liberdade e responsabilidade, quando é um
espírito. Para May, isso também acontece, mas não com a consciência propriamente dita
(que o autor não define claramente), mas com a autoconsciência ou consciousness. É por
isso que ele descreve que vem ocorrendo uma perda de consciência do eu e perda de
significação no homem contemporâneo. Já Sartre tem uma definição bem diferente de
consciência, que é livre, nadificadora e intencional; não é, portanto, intermitente como
afirmaram os outros dois autores, nem é descrita como tendo uma relação direta com o
autoconhecimento. Este autoconhecimento é definido em Sartre como reflexão. Outra
diferença é que May inclui a chamada experiência inconsciente, que está relacionada ao
fato de as pessoas se impedirem de “saber que sabem” algo sobre si. Sartre não fala sobre
104
um inconsciente, ou mesmo nega-o. Mas os dois autores fazem críticas ao conceito
freudiano de inconsciente.
As relações com os outros também se mostram como aspecto importante no
autoconhecimento e na liberdade. Mas isso não é descrito em detalhes por Kierkegaard.
Rollo May e Sartre o fizeram de forma mais clara. Para May, é através das relações com os
demais que a pessoa desenvolve a autoconsciência e o self. Para Sartre, é importante o
papel do olhar do outro sobre nossas ações livres.
A ansiedade descrita em May está vinculada também ao problema da pesquisa. É
definida como o sentimento que a pessoa tem ao ver que existe uma ameaça aos seus
valores, à sua existência, ou ao self. Está também presente no processo de oscilação do
dilema humano, da oscilação sujeito-objeto, prejudicando a autoconsciência e conferindo,
ao mesmo tempo, o desenvolvimento das potencialidades. Ansiedade guarda algumas
semelhanças com os conceitos de angústia e desespero, no sentido de que a pessoa se sente
ansiosa ante a sua liberdade e a sua condição, bem como quando se relaciona consigo
mesma.
As dialéticas e paradoxos envolvendo os conceitos em Rollo May e Kierkegaard,
descritos no terceiro capítulo, não são encontrados explicitamente em Sartre.
O devir humano, o movimento do homem para o que há de ser, é também algo que
se nota nos três autores, e que encontra fortes semelhanças com o movimento da psicologia
humanista, a qual enfatiza que é muito importante ver o homem não pelo que é, mas pelo
que pode vir a ser, com suas potencialidades. Potencialidades estas que, ao vislumbrarmos
tudo o que foi estudado nesta pesquisa, baseiam-se na capacidade de escolha e na liberdade
do ser humano. Talvez este devir seja o principal aspecto que se encontra como fundamento
da psicologia humanista, encontrado no existencialismo, bem como a presença de um certo
otimismo com relação à existência humana. Este otimismo é mais explícito em Rollo May,
que enaltece a realidade humana e o próprio homem, depositando esperanças de que ele
pode se realizar. Já no existencialismo ele aparece, como disse Sartre, como uma dureza
otimista, já que a realidade humana é trágica, é angustiante, é desesperadora, mostrando ao
mesmo tempo que o homem deve se construir e é responsável por si mesmo, não sendo
vítima de determinismos. Claro, a psicologia humanista não nega este trágico da realidade,
mas ele aparece mais velado. Tanto a psicologia humanista quanto o existencialismo,
105
embora adotem pontos de vista um pouco distintos, parecem querer dizer e mostrar, no final
das contas, uma mesma coisa: que resta uma esperança e uma saída ao homem
desamparado no mundo, e que ele, somente ele, pode encontrá-las em si mesmo.
106
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