universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

80
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA: PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS (1831-1850). CURITIBA 2010

Transcript of universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

Page 1: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL

O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA: PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS (1831-1850).

CURITIBA 2010

Page 2: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MONIQUE ALESSANDRA SEIDEL

O COMPADRIO ESCRAVO NA FREGUESIA DE PALMEIRA: PERSPECTIVAS E TRAJETÓRIAS (1831-1850).

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Martha Daisson Hameister

CURITIBA 2010

Page 3: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

3

SUMÁRIO

RESUMO 4

INTRODUÇÃO 5

1.PALMEIRA, ESCRAVOS E FAZENDAS DE GADO 9

1.1 BRASIL IMPÉRIO E ESTUDOS DA ESCRAVIDÃO 10

1.2 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA 16

1.3 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA 22

2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA

DE PALMEIRA 28

2.1 SOBRE OS REGISTROS DE BATISMO DE PALMEIRA (1831-1850) 33

2.1.1 As fontes 33

2.2 TRABALHANDO OS DADOS 35

2.2.1 Os batizados de crianças escravas 39

2.2.2 Filhos de livres e escravos 41

2.2.3 Africanos, expostos e índios 46

2.2.4 Segundo padrinho 50

3. PADRINHOS E MADRINHAS: HIERARQUIAS DEFININDO

TRAJETÓRIAS 54

3.1 COMPADRES E COMADRES PREFERIDOS DE PALMEIRA 56

3.2 MANOEL E ESMERIA, COMPADRES E ESCRAVOS 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS 72

FONTES 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 76

ANEXOS 79

Page 4: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

4

RESUMO Palavras-chave: compadrio escravo – campos gerais – século XIX. Na freguesia nova de Palmeira, entre 1831 e 1850, dois escravos se destacavam na função de padrinhos. Manoel e Esmeria, casados, tiveram mais afilhados que qualquer habitante da localidade. Sua trajetória despertou questionamentos não só quanto aos motivos de tal sucesso, mas também quanto aos padrões de compadrio que se estabeleciam em Palmeira durante o período e como essa relação poderia ser parte de estratégias de ascensão social ou de fortalecimento de laços já estabelecidos. Era um ambiente que ainda procurava estabilidade e o compadrio teve seu papel nesse processo. A trajetória do casal de escravos é um exemplo da importância social do batismo, mas está inscrita num conjunto maior de relações de compadrio envolvendo escravos. Por isso, foi necessário o estudo tanto de casos individuais quanto do conjunto. Por meio dessa abordagem, foi possível perceber que a família teve um papel essencial nesses laços. O compadrio foi além do parentesco espiritual entre indivíduos, ele gerou redes envolvendo famílias e seus dependentes, numa relação de troca, solidariedade e poder.

Page 5: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

5

INTRODUÇÃO

Numa pesquisa preliminar dos assentos de batismo da freguesia nova de Palmeira, um

nome passou a chamar muita atenção entre os padrinhos. Era Manoel, escravo de

Domingos Inácio de Araújo, proprietário de terras já conhecido por meio de pesquisas

anteriores da Lista de Habitantes feita no ano de 1835.1 Logo percebeu-se que se tratava

de um homem casado e com filhos. Sua mulher, Esmeria, também foi presença

constante entre as madrinhas da freguesia à época. Uma constatação inesperada foi a de

que o casal de escravos foi o mais ativo no apadrinhamento dos palmeirenses por todo o

período no qual sua trajetória ascendente como padrinhos se inscreveu.

Mas qual o motivo de tal sucesso que ultrapassou até os membros das famílias mais

tradicionais e abastadas da localidade? Para entender esse pequeno e curioso caso da

história do compadrio em Palmeira, foi preciso investigar o contexto no qual ele se

desenrolou e as pessoas que envolveu e que de algum modo compartilharam ou

conviveram com essa atuação.

Mas o que faz com que um casal de escravos tenha mais afilhados que qualquer

fazendeiro ou dona da região? A trajetória do casal de escravos é de fato curiosa, mas

para entender como ela foi possível, é preciso investigar não só contexto o qual ela se

desenrolou, mas também os principais indivíduos que de algum modo compartilharam

dessa atuação.

Para isso, foi adotada a criação de quadros que reunissem informações quantitativas

retiradas dos assentos batismais, separando em grupos os batizandos, conforme sua

condição jurídica. Foram analisados separadamente africanos, crianças expostas e

indígenas, levando em consideração o caráter especial desses apadrinhamentos. Desse

modo foi possível visualizar padrões gerais do compadrio conforme o tipo de afilhado

quanto à escolha dos padrinhos.

Veremos que os padrões estabelecidos foram majoritariamente próximos aos

encontrados por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz para regiões do Recôncavo

baiano, entre os séculos XVIII e XIX. Os autores, sobretudo Schwartz que ainda

complementa esse estudo posteriormente com pesquisas semelhantes voltadas para

1 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

Page 6: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

6

Curitiba, entendem que esse padrões tenha sido comum a muitas regiões brasileiras,

mesmo em casos onde elas apresentam características tão distintas.2

A principal distinção de Palmeira quanto a outras regiões foi a população diminuta,

assim como as fazendas e contingentes de escravos. Mas não foi por isso que essa

sociedade deixou de ser eminentemente escravista. Mesmo com o trabalho livre, de

familiares e agregados, que tiveram mais importância entre as famílias de poucas

posses, o trabalho escravo sempre foi a base de sustentação da produção agrícola e

pecuária dos campos paranaenses. A freguesia nova de Palmeira, que havia se

desenvolvido à beira do caminhos do Viamão, esteve muito ligada a esse comércio de

gado e assim como em outros povoamentos nos campos gerais, teve na fazenda de gado

seu principal meio econômico. Os fazendeiros, por sua vez, dominando essa atividade,

eram os pilares dessa sociedade.3

O compadrio foi amplamente utilizado por essa população, numa freguesia ainda muito

recente e precisada de meios para a estabilização e a formação de vínculos entre os

habitantes e com o lugar. Tanto entre livres quanto entre escravos, os laços de

compadrio tiveram papel importante no rearranjo dos parentescos ou no seu

fortalecimento. Porém, veremos que não há como desvincular essa relação de seu

princípio espiritual e moral, que por sua vez ditava normas na orientação da escolha dos

compadres. Manter esse parentesco espiritual com uma família era uma escolha

irredutível, assim todos os fatores eram pesados. O asseio moral, a imagem pública, a

ancestralidade o status social dos padrinhos, tudo influenciava em sua escolha. Uma

relação de compadrio deveria suprir não só as necessidades morais e espirituais que

poderia expressar o afilhado, mas as preocupações sociais e políticas, das quais

compartilhava a família.4

Padrinhos bem arranjados poderiam significar um degrau para a mudança de condição

jurídica, um bom casamento, bons negócios, educação. Por isso, e por outros motivos, a

escolha normalmente seguia a regra da verticalidade: os padrinhos teriam de ser de um

2 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. 3 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004. 4 GUDEMAN, Stephen. "The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person". In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland vol. 0. (1971). 1971. Royal Anthropological Institute of Great Britain, 1971.

Page 7: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

7

nível superior social ou juridicamente que a família do afilhado, ou pelo menos ter

condições iguais, afinal, padrinhos precisavam ter algo a oferecer em troca da imensa

honra de ser abrigado numa família pelo parentesco espiritual, mais nobre que o carnal

ou o social.5 (nota gudeman)

A trajetória de Manoel e Esmeria foi a mais bem sucedida em termos de quantidade de

afilhados, pelo que podemos acompanhar nas fontes utilizadas, mas assim como eles,

muitas outras pessoas apadrinharam recorrentemente os habitantes de Palmeira.

Reunido esses indivíduos, percebemos que, apesar de os membros da elite se

sobressaírem, há tanto escravos como livres pobres, pardos livres e fazendeiros. A

composição desse grupo de padrinhos é muito variada. O principal é que normalmente

não era apenas o indivíduo que apadrinhava, mas os membros de sua família, todos

representando a casa.6

Notaram-se algumas características bem específicas nessas relações de compadrio,

como duplas de padrinhos homens em substituição à tradicional formação de padrinho e

madrinha, e alguns padres que serviram de padrinhos. Esses casos desobedecem às

regras estabelecidas pelas constituições primeiras do Arcebispado da Bahia quanto aos

batismos no Brasil.

Para abordar todos esses aspectos, foram organizados três capítulos. No primeiro, são

abordadas as discussões sobre o contexto, indo do período imperial à historiografia

voltada para a história do Brasil e principalmente da escravidão, e as modificações na

abordagem dos temas durante o século XX. Também foram contemplados o processo de

povoamento nos campos paranaenses e os movimentos de expansão colonizadora rumo

ao oeste. A freguesia de palmeira, sua formação e aspectos gerais de sua sociedade, com

base na lista de habitantes de 1835, completam essa contextualização.

No segundo capítulo, adentra-se o tema do compadrio. Foi importante uma breve

discussão sobre o batismo e seu simbolismo entre os cristão. Aspectos de sua adoção

como sacramento principal do catolicismo, de seus diversos significados e de sua

importância enquanto laço espiritual que extrapola as portas da Igreja e da

espiritualidade adentrando a esfera social, foram expostos. Numa segunda parte, foram

explorados os dados dos assentos batismais da Paróquia Nossa Senhora da Conceição

5 Ibdem. 6 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Page 8: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

8

de Palmeira. Organizando quadros, chegou-se a padrões no estabelecimento de relações

de compadrio, privilegiando o compadrio envolvendo escravos.

No último capítulo, à partir de quadros em que os padrinhos e as madrinhas que

apareceram cinco vezes ou mais nos assentos batismais foram listados, verifica-se o

parentesco entre os presentes na lista. A participação de famílias inteiras e seus

dependentes em teias formadas pelo compadrio foi discutida. Algumas trajetórias

parciais foram rapidamente descritas e a trajetória de Manoel e Esmeria foi estudada

com mais atenção, chegando-se a seus laços de compadrio e à estrita relação que

mantinham com seus senhores.

Espera-se que esse estudo monográfico contribua para pesquisas futuras voltadas aos

temas do compadrio e da escravidão no Paraná, que vêm sendo cada vez mais

explorados e ainda têm possibilidades amplas de estudo e abordagem.

Page 9: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

9

1. PALMEIRA, ESCRAVOS E FAZENDAS DE GADO.

O que conhecemos hoje por Paraná, foi por um longo período parte de um território

anexado a capitania de São Vicente, que depois se tornou Província de São Paulo 1821.

Segundo Westphalen, até meados do século XIX, os campos paranaenses foram a 5º

Comarca dessa província, também chamada de Comarca de Paranaguá e Curitiba. No

início do povoamento, o território ocupado e explorado pelos portugueses era quase

restrito ao litoral. Uma fronteira móvel e incerta separava as terras portuguesas das

espanholas, e os domínios dos espanhóis se estendiam pelos campos paranaenses,

também pelas terras catarinenses. O ouro, ou melhor, o início da busca por ele, trouxe

muitos garimpeiros esperançosos, aventureiros e algum comércio ao litoral paranaense.

Aos poucos essa população subiu ao planalto, instalando-se onde tempos depois se

formou a vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. A 5ª Comarca começou

a crescer, principalmente no século XVIII, mas não pelo garimpo e mineração, que

acabou se esgotando e perdendo mercado para Minas Gerais, e sim por uma soma de

fatores facilitadores da instalação de povoamentos no planalto. O terreno e a natureza

favoráveis à criação de animais, a passagem de caminhos por localidades próximas e a

preocupação do governo central e da capitania em manter o controle do território e

afastar tanto índios quanto espanhóis, foram decisivos para o estabelecimento de vilas

de portugueses nos campos paranaenses. No litoral, o porto apesar de pequeno tinha sua

importância local, mas só passou a crescer no século posterior, como receptor de

africanos durante a ilegalidade do tráfico.7

Além de algumas expedições de exploração e reconhecimento do território e

principalmente voltadas à preação de indígenas, que de tempos em tempos eram feitas

pelos sertões do Brasil, e ao sul de São Vicente eram muito comuns, a presença

portuguesa ficou presa às proximidades do litoral do centro sul e de parte do nordeste

por muito tempo. Mas no século XVII, e especialmente ao longo do século XVIII, o

povoamento no interior da colônia portuguesa se intensificou, dando origem a vilas e

cidades, ligadas às rotas de comércio que cresciam e às grandes fazendas de

monoculturas, que passaram a ser a atividade principal de várias regiões, voltadas à

exportação.

7 WESTPHALEN, Cecília M. A Introdução de escravos Novos no Litoral Paranaense. In: Revista de História. Vol. XLIV, ano XXIII, n. 89. Curitiba: Jan-mar/1972.

Page 10: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

10

Esse movimento também envolve o território paranaense. O Paraná, como ressaltou

Cecília Westphalen, sempre foi um local de passagem, de caminhos. A partir do meio

do século XVIII, o comércio entre o extremo sul e o sudeste do Brasil, que compreendia

gado de vários tipos, sobretudo mulas, e charque, cresceu significativamente. Esse

crescimento foi ainda mais intenso após a mudança da corte para a colônia.

1.1 BRASIL IMPÉRIO E ESTUDOS DA ESCRAVIDÃO:

Desde a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, esta cidade

passou a ser sede do governo real. Para alguns historiadores, esse é o marco do fim do

período colonial, pois sendo sede do governo do Império luso, não mais configurava

uma colônia no sentido estrito. Dom João VI foi regente de 1815 a 1821, quando a corte

voltou a Portugal e deixou o príncipe Pedro de Alcantara como regente da coroa no

Brasil. Mas não havia como voltar às mesmas condições anteriores definidas pela

submissão de uma colônia à metrópole européia. Ao passar a sediar a corte, tornar-se o

centro político do reino, o Brasil conseguiu algumas vantagens em sua relação com

Portugal. Mas embates políticos entre colônia e metrópole levaram à independência do

Brasil em 1822, que continuou em regime monárquico, porém com um imperador: Dom

Pedro I, o mesmo príncipe regente da colônia.8

O período chamado de Primeiro Reinado, que vai de 1822 a 1831, quando Dom Pedro I

foi imperador foi turbulento. A independência do Brasil, que se constituiu império,

apesar de ser considerada um processo pacífico (quando pensado apenas como

envolvendo as principais cidades), foi causa de conflitos violentos em regiões

periféricas. Também foi o início de um período de profunda mudança no entendimento

da sociedade sobre si mesma, sobre ser parte de uma nação, de uma unidade. O esforço

para manter a unidade territorial e política do Brasil foi questão primordial então, e esse

processo passava sem dúvida pela consciência nacional da população, que na verdade

não existia e tinha que ser moldada, uma mudança que levaria muito tempo para se

consolidar. A escravidão, argumenta Boris Fausto, seria um elemento a mais para o

esforço de unidade territorial do império. Segundo ele, manter a escravidão em vigência

no Brasil, pois essa era uma instituição que já dava sinais de esgotamento, só seria

possível com a manutenção do controle político de todo o império. A escrita de uma

8 FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930.

Page 11: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

11

constituição também foi um acontecimento importante, mesmo ainda representando o

poder absoluto do imperador.9

O imperador teve, de fato, muitos apoiadores, sobretudo da aristocracia que era

beneficiada com títulos de nobreza, mas isso não fez de seu reinado estável. A disputa

por controle de terras, exércitos e comércio, principalmente entre portugueses e

brasileiros, demonstrava a dificuldade de que o Brasil se estabilizasse como império

independente, além disso, havia as discórdias sobre a constituição e os poderes que ela

garantia ao imperador. Dom Pedro, em 1831 volta para a Europa e deixa no Brasil seu

filho e sucessor. O segundo imperador, no entanto, era ainda uma criança. Regentes se

sucederam em seu lugar até que atingisse a maioridade e esse foi um momento

conturbado de disputa entre facções políticas pelo controle do governo. Por pressão das

elites, a maioridade do príncipe foi adiantada e ele foi coroado aos 15 anos. O período

chamado de Regência dá lugar ao Segundo Reinado. Dom Pedro II reinou de 1840 a

1889. Foi um longo período em que um só homem governou, no entanto nem tudo foi

tão estável. Houve desde a Regência um crescimento das divergências políticas entre

grupos, principalmente representando regiões, interesses de províncias. Quando o

imperador assumiu o poder, dois partidos se formavam: os liberais e os conservadores.

Os conservadores representavam principalmente os interesses da corte e dos produtores

de café, que nessa época despontava como principal produto de exportação, sobretudo

ao sul do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Já os liberais representavam os

interesses das Províncias, alguns conflitos vieram desse enfrentamento. Uma das

principais diferenças entre os dois partidos era que o liberal queria maior

descentralização de poder, mais autonomia para as províncias, enquanto o conservador

defendia o controle centralizado. Inovações como a instalação de serviços bancários e as

linhas de trem que passaram a ser construídas, foram pontos essenciais no

desenvolvimento da economia nas áreas principais de produção e também aumentaram

a comunicação entre diferentes locais. A escravidão, apesar de cada vez mais decadente

no cenário internacional e no Brasil imperial, continuou a fornecer a maior parte da

força de trabalho da qual dependia a produção agrícola que sustentava o país. O Brasil

9 . A assembléia constituinte que tinha como objetivo aprovar a nova constituição foi dissolvida por Dom Pedro, que aprovou a constituição por seus próprios poderes, não sem antes modificá-la. FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930; BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina, Vol. III. São Paulo: Edusp, 2001.

Page 12: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

12

foi último país a abandonar a escravidão, em 1888. No ano seguinte é proclamada a

República.10

Durante esse período, que tomou quase todo o século, alguns conflitos e guerras

aconteceram. A Guerra da Cisplatina, entre 1825 a 1828, foi uma das principais, na qual

o Brasil perdeu parte de seu território do extremo sul, a Cisplatina, que conseguiu sua

independência e passou a ser a República Oriental do Uruguai. A Confederação do

Equador, movimento separatista que envolveu algumas províncias do nordeste e, apesar

da rápida derrota, foi uma clara demonstração da insatisfação com o primeiro império.

O período regencial foi especialmente agitado. Várias rebeliões surgiram, prolongando-

se até o segundo reinado. A Balaiada (começou no Maranhão e alcançou o Piauí) e a

Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) foram as mais sérias. A

Farroupilha durou 10 anos (1835-1845) e conseguiu resistir por longo tempo, com a

criação da República do Piratini e a conquista de Santa Catarina. O movimento teve a

participação de pessoas de diferentes extratos sociais e direcionamentos políticos, tendo

em comum a crítica às decisões políticas da corte e as altas taxas impostas às

mercadorias riograndenses, e culminou na adoção da república. Esse movimento foi um

dos que mais afetou o Paraná, tanto economicamente quanto por sua proximidade

geográfica. Após se acalmarem as revoltas internas, o segundo Império passou pelas

guerras motivadas por controle territorial e econômico de regiões ao sul da América do

Sul. As campanhas platinas, em 1851 e 1864, foram geradas por problemas comerciais e

fronteiriços, com Argentina e Uruguai. Já a Guerra do Paraguai, foi muito mais violenta

e trouxe sérias conseqüências ao Paraguai. A guerra começou em 1864, indo até 1870,

causada principalmente pela disputa de territórios no sul do Brasil e na Argentina, aos

quais o ditador paraguaio Solano Lopez pretendia estender seus domínios, chegando até

o Uruguai. O País era o mais próspero da região, mas após o fim da guerra, derrotado

pela aliança de Uruguai, Argentina e Brasil, teve sua população e indústria arrasados.11

A guerra do Paraguai teve também graves efeitos no Brasil. O Império empreendeu

vários esforços para garantir a vitória, com custos enormes, além de morte de civis e

milhares de soldados. Porém, esse conflito representou a militarização do país de

maneira mais organizada e forte. Outra conseqüência foi o desconforto com a situação

10 FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930. . BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina, Vol. III. São Paulo: Edusp, 2001. 11 Ibdem.

Page 13: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

13

dos escravos que tinham participado da guerra, essa participação é muitas vezes

destacada por contribuir para os crescentes debates sobre a legitimidade da escravidão.12

A escravidão foi uma forte herança deixada pelo período colonial e que vigorou, mesmo

decadente, durante praticamente todo o período imperial. Diversas obras

historiográficas se dedicaram ao longo dos anos a estudar esse tema. É essa uma

temática tão essencial à compreensão da história brasileira que não pode ser ignorada

em obras que vão do específico e regional àquelas que tentam abordar uma história total

do Brasil. Mas o importante de todos esses estudos é a maneira como eles abordam o

assunto. Dois conjuntos historiográficos, ou escolas, são extremamente importantes

nessa discussão: as obras da década de 1930, principalmente Gilberto Freyre, e as

paulistas dos anos 60. O estudo da escravidão após os anos 80 tem como fortes

referências as críticas a essas duas escolas. É importante uma rápida exposição das

idéias principais defendidas por esses movimentos e autores pois elas estão ainda

presentes no ensino escolar e em parte da historiografia, e formam parte do nosso

imaginário sobre a escravidão e a sociedade escravista.

Algumas obras formaram modelos de abordagem da história do Brasil e são importantes

referências, principalmente quando é necessário entender os diferentes olhares lançados

às mesmas questões, ainda hoje incansavelmente discutidas e revistas. Gilberto Freyre é

constantemente invocado quando se discute escravidão e formação da sociedade

brasileira. Seu livro mais conhecido, Casa Grande & Senzala, é um dos mais

importantes referenciais quanto ao assunto escravidão de nossa historiografia, isso

porque formou um modelo de abordagem da temática e abriu um precedente que

colocava esse assunto no topo de qualquer estudo da sociedade brasileira ao longo de

sua história. Para Freyre, o único modo de conhecer a sociedade era voltar às suas

origens, remontar seu passado. Assim ele chegou ao Brasil dos engenhos de cana, dos

senhores e escravos. Uma das principais críticas feitas à sua obra é o modo como o

autor estende esse universo de senhor e escravo, das grandes fazendas, a toda a

sociedade brasileira da época, que apresentava formações bem mais diversificadas que

essa relação simples dualista. Outro ponto severamente questionado, e considero o mais

importante na discussão da obra, é o modo como a relação senhor – escravo, ou mesmo

a escravidão como um todo, era compreendida por Freyre. O autor suaviza essa relação,

diminui a importância dos conflitos e da violência, entende-a de forma branda. A figura

12 Ibdem.

Page 14: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

14

do patriarca é o centro da família, os escravos teriam a esse homem o temor e respeito

que se tem a um pai, e talvez a afeição. Desse modo, Gilberto Freyre aposta na ilusão de

um ambiente pacífico onde o poder de um senhor, menos opressor que tutor, mantém a

ordem. Entretanto, sua obra também destaca uma característica muito importante da

sociedade colonial e que ficou como herança para a historiografia: a miscigenação. O

autor dá destaque a uma miscigenação sexual, mas junto a ela está a convivência, no

espaço público e privado, de brancos e negros que formavam laços e estavam

socialmente ligados, independente de uns serem escravos de outros. Apesar de essa

convivência ter seus limites, não eram mundos separados o dos negros e dos brancos.13

Outro título a ser lembrado é Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. O autor

tem foco no estudo das raízes de características culturais e psicológicas que moldam o

comportamento da sociedade moderna brasileira. Desde a importância da unidade

familiar frente às relações políticas até a falta de identidade do português e mesmo do

brasileiro como princípio daquilo que chama de “homem cordial”, Sérgio Buarque de

Hollanda procura em características da formação do Brasil a origem dos problemas

vividos até sua época.14

Esses modelos passaram a ser mais questionados e realmente superados nos anos 60,

com um enfoque sociológico através da Escola Sociológica Paulista, representada por

Florestan Fernandes, Roger Bastide, Octávio Ianni, entre outros. O movimento passou a

entender a escravidão como tendo na violência seu princípio e sua base e o escravo

como um homem explorado como objeto, coisificado. Desse modo havia um

antagonismo entre senhor e escravo que era pautado na ação violenta e controladora do

senhor e na passividade do escravo explorado. O capitalismo passou a ser considerado

elemento principal da escravidão, o escravo era uma fonte de renda, era a ferramenta e o

trabalho que geravam a renda; e a violência, parte essencial da manutenção desse

regime.15

O rumo que os estudos sobre escravidão tomaram nos anos 80 no Brasil, em contato

com as mudanças na historiografia em outros países, abriu os horizontes do tema

continuamente até o presente. Isso decorre, sobretudo, do diálogo com outras áreas,

como a antropologia. Nesse novo momento dos estudos históricos, diversos estudiosos

13 LIMA, Adriano B. M. Trajetórias de Crioulos: Um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no Termo da Vila de Curitiba (c. 1760 – c. 1830). Dissertação de Mestrado, UFPR, Curitiba, 2001. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 12ª Ed. 1963. 14 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1988. 15LIMA, Adriano Bernardo Moraes. Trajetórias de crioulos. Curitiba, Dissertação de Mestrado em História, UFPR, 2001. P. 9.

Page 15: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

15

desenvolveram questionamentos e críticas dirigidas às obras dos anos 60, sobre a

escravidão e a sociedade brasileira. O principal objetivo dos estudos feitos após os anos

80 sobre o tema da escravidão foi contestar o conceito de homem-coisa que os

seguidores da Escola Sociológica Paulista aplicaram ao escravo. Uma infinidade de

temas passou a ser trabalhada, todos eles questionavam a passividade, a inadequação e a

falta de humanidade que o conceito de coisificação agregava ao escravo. Estudos de

família, de alforrias, de resistência, de atividades autônomas indicavam a participação

ativa do cativo na sociedade escravista e até mesmo que sua relação com o senhor era

baseada também na troca, na barganha. A sociedade escravista por esse ponto de vista

ganhava diversas facetas e elementos, saía definitivamente das concepções anteriores. A

violência certamente é levada em conta, está na própria condição do escravo e é um

meio de coação, no entanto divide espaço com outros meios de interação entre livres e

cativos, entre senhores e escravos, sejam eles mantenedores do sistema escravista, ou

sabotadores dele.

Muitas das obras que formam uma base teórica dessa pesquisa são orientadas pelos

debates citados, fazendo ainda uso de fontes normalmente desprezadas e outras

metodologias. No entanto, a maioria dos estudos sobre o tema teve como recorte regiões

onde havia maior número de cativos e mais escravarias.16

A escravidão no Brasil é normalmente pensada nos termos das regiões exportadoras, ou

dos grandes aglomerados urbanos, onde o tráfico de africanos sempre foi intenso e onde

os contingentes de cativos eram constantemente renovados. Nesses locais a proporção

entre homens e mulheres foi tradicionalmente desequilibrada. A preferência dos

europeus e americanos, ao comprar escravos que viriam da África, era normalmente por

homens. Paul Lovejoy observa que no século XVIII o comércio de escravos novos

cresce vertiginosamente e passa a ter como maior mercado o Brasil. Já no século

seguinte, com as proibições do tráfico por todo o Atlântico fizeram com que esse

comércio diminuísse muito até cessar, porém, mesmo ilegal, com fiscalização e pressão

inglesa, os escravos novos não deixaram de chegar às escravarias brasileiras pelo menos

16 FRAGOSO, J. L. R. & FERREIRA, Roberto Guedes . Tráfico Interno de escravos e Relações Comerciais no Centro-Sul, séculos XVIII e XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: LIPHIS (departamento de História da UFRJ e Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA), 2001; MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997; SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial: 1550-1835. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

Page 16: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

16

até 1850, quando houve uma proibição efetiva do tráfico atlântico de africanos para o

Brasil.17

Mesmo com a chegada constante de escravos novos em grande parte do Brasil até a

primeira metade do século XIX, mesmo que a presença masculina fosse majoritária, a

formação de famílias não foi impossibilitada dentro das escravarias e sua importância é

apontada por muitos autores como decisiva e estratégica na melhora de sua condição de

vida ou até na conquista da alforria própria e de dependentes. Robert Slenes percebe a

família como meio principal de manutenção de traços culturais e de reconstrução da

identidade. Enquanto isso, Góes e Florentino destacam outra “função” da formação de

laços parentais: manter a paz, manter um contrato silencioso entre senhor e escravos. A

família não só garantiria ao escravo algumas vantagens dentro do cativeiro, mas

também daria ao senhor maior controle sobre seus cativos, mantendo um ambiente

estável onde a negociação das condições de cativeiro estava implícita.18

Esses estudos têm como alvo a sociedade escravista do Sudeste (Campos dos

Goitacazes no Rio de Janeiro e região do vale do Paraíba em São Paulo), mas o que

encontramos nas escravarias do Paraná é uma propensão ainda maior à formação de

famílias. A renovação do cativeiro com a entrada de novos escravos não teve a

intensidade que percebemos no restante do império, assim foi possível um ambiente de

características únicas. Nesse ambiente os escravos crioulos são a maioria, vivem nas

mesmas propriedades por muito tempo, nelas formam laços que não são ameaçados a

todo o tempo pela separação forçada e a distância. As famílias eram grandes, havia

muitas crianças e essa população provavelmente teria uma ligação muito forte com o

local onde sempre viveram, além disso, seriam o que havia de mais valioso nela.19

1.2 CAMPOS PARANAENSES ESCRAVISTAS E A EXPANSÃO PARA O OESTE:

O caminho que ligava Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, em São Paulo, foi de

extrema importância para a definição do povoamento dos campos gerais no Paraná e do

modo como se comportaram as populações ali instaladas. A rota das tropas condutoras

de mulas cortava os campos gerais e o principal ponto de passagem era Castro. A vila

17 LOVEJOY, Paul. A Escravidão na África: Uma história de suas transformações. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2002. 18 FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997. SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 19 LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004.

Page 17: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

17

de Castro tinha maiores fazendas e mais escravos que os outros povoamentos do

planalto no início do século XIX. Era um dos pontos principais de parada das tropas,

que necessitavam de repouso em vários momentos da longa viagem ao sudeste, para que

o gado recuperasse o peso e descansasse para seguir viagem. A criação de animais foi

estimulada pelo tropeirismo e se tornou a atividade principal dos campos gerais. Do

mesmo modo, muitas pessoas, livres e escravos, entraram para o negócio de tropas,

alguns como simples tropeiros, cuidando do rebanho durante a viagem, outros, que

tinham posses suficientes para investir no negócio, iam até o sul para comprar animais e

revendê-los em Sorocaba.20

Essa característica de passagem do Paraná, de estar entre o Rio Grande do Sul e o

sudeste do Brasil era mais importante que a pouca atividade econômica que se

desenvolvia aqui, e tornava a defesa desse território uma preocupação cada vez mais

presente entre os governantes. Este é também um tema recorrente nas obras dedicadas à

história da formação do Paraná. Romário Martins aponta a proximidade paraguaia,

principalmente no território de Guairá que era muito extenso e pertencia à Província do

rio da Prata, como especialmente preocupante. Essa Província reivindicava o domínio

de uma grande área que chegava ao porto de Santa Catarina. As missões jesuíticas no

Guairá também eram tidas como ameaça à integridade do domínio português, e foram

fortemente combatidas.21

Um dos problemas sempre evidenciados pelos autores que estudaram o

povoamento português no Paraná foi a presença indígena por todo o sertão. Longe de

formarem um grupo homogêneo, as várias nações tinham seus próprios conflitos, seus

inimigos e estavam cada vez mais pressionadas por portugueses de um lado e espanhóis

de outro. A reação desses povos indígenas era tanto de afastamento e por vezes

hostilidade, quanto a formação de alianças com um lado ou outro. Por isso, não só era

preocupante para os portugueses avançarem sobre um território pouco conhecido e que

já era ocupado por índios que poderiam resistir a esse contato normalmente violento,

20 GUTIÉRREZ, H. Fazendas de gado no Paraná escravista. In: Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, pp.102-127, 2004, pp. 102-127. MARCONDES, Renato Leite. Formação da rede regional de abastecimento do Rio de Janeiro: a presença dos negociantes de gado (1801-1811). In.: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, PP. 41-47. 21 MARTINS, Romário. História do Paraná. Travessa dos Editores, Curitiba, 1995. p. 51-62.

Page 18: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

18

como também, e principalmente, a possibilidade desses índios estarem ligados aos

espanhóis.22

Podemos dizer que são três momentos de expansão da ocupação do território paranaense

até que ele se tornasse Província. Primeiro a ocupação do litoral, depois, no XVIII a

formação de pequenos povoamentos no planalto curitibano, já adentrando os campos

gerais e ainda no século XIX, a expansão para a fronteira agrária, a partir de Castro e

Palmeira em direção ao interior do continente.

Este terceiro movimento de expansão dos territórios brasileiros no Paraná, que se

intensificou na metade do século XIX, contou com incentivos governamentais de

diversas naturezas. A intenção era não apenas levar homens que desbravassem a área

além da fronteira agrária, mas também que lá se estabelecessem famílias, que essas

famílias tivessem alguma possibilidade de produção que as segurasse na região, e que as

pessoas ali instaladas pudessem defender o território em caso de necessidade23. Essa

situação está claramente ligada aos acontecimentos pelos quais passava o Brasil durante

o início do XIX e que representavam mudanças profundas no cenário político e também

econômico do país, acontecendo num curto período de tempo.

Sobre a escravidão no Paraná, os trabalhos voltados ao tema vêm ganhando mais espaço

nas últimas décadas. Stuart Schwartz em Escravos Roceiros e Rebeldes, Cacilda

Machado, Fernando Franco Netto, Carlos A. M. Lima, Eduardo Spiller Penna, são

apenas alguns dos autores que trabalharam ou tem trabalhado o tema24. Talvez o assunto

tenha despertado pouco interesse anteriormente por ter sido a quantidade de cativos no

22 BALHANA, A. P.; WESTPHALEN, C.; MACHADO, B. P. História do Paraná. V. 1. Curitiba: Grafipar, 1969. FRANCO NETTO, Fernando. Famílias escravas nos campos gerais do Paraná In.: Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba. 2009. 23 FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família em Guarapuava, século XIX. Guarapuava: Ed. da UNICENTRO, 2007. 24 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: Negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicure, 2008. p.20. NETTO, Fernando Franco. População, escravidão e família em Guarapuava no século XIX. Tese de Doutoramento em História. UFPR, Curitiba: 2005. LIMA, Carlos A. M. . Roças de libertos e seus descendentes nas partes meridionais da América Portuguesa (Castro, 1804-1835). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 166, n. 426, p. 271-303, 2005. PENNA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face: A astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 1990. E ainda: MELLO, Kátia A. V. de. Comportamentos e práticas familiares nos domicílios escravistas de Castro segundo as listas nominativas de habitantes (1824 – 1835). Dissertação de Mestrado e História. Universidade Federal do Paraná. Curitiba: 2004. PORTELA, Bruna M. Caminhos do cativeiro: a configuração de uma comunidade escrava (Castro, São Paulo, 1800 - 1830). Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 2007. WEBER, Silvio A. Além do Cativeiro: A Congregação de escravos e senhores na Irmandade do Glorioso Sã Benedito da Vila de Morretes. Século XIX. Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba: 2009.

Page 19: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

19

Paraná sempre pequena, no entanto a população livre também era diminuta, assim como

as vilas, as propriedades. Horácio Gutiérrez chama a atenção para a proporção: em

alguns locais, dependendo da época, a população escrava representava um quarto da

população, mas normalmente ficava entre um quinto e um sexto. O litoral tinha sempre

as menores quantidades de cativos, enquanto os campos gerais, com o crescimento das

fazendas de gado, agrupavam a maioria. Mas essa sociedade não era tão simplificada.

Havia os senhores, os escravos, os pequenos proprietários, os livres pobres, os livres e

libertos pardos e negros.25

Segundo estimativas de Daniel Pedro Müller, o Paraná tinha 42.890 habitantes em 1836,

crescendo para 56.360 em 1852 segundo José Thomaz Nabuco de Araújo26. No entanto,

essa comparação tem suas armadilhas, já que se trata de estimativas feitas por autores

diferentes, provavelmente com fontes e parâmetros variados. Mesmo assim, nos dão

referências quanto ao tamanho da população e seu lento crescimento durante essas duas

décadas. Iraci da Costa e Horácio Gutiérrez fizeram esse levantamento para vilas

paranaenses em anos selecionados entre 1798 e 1830, com os dados disponíveis em

mapas de habitantes. Segundo eles, em 1830 eram 36.701 habitantes, desses pouco mais

de um sexto (6260) eram escravos. Os apontados como brancos eram quase 70% da

população, mas uma porção significativa (9069) era de pardos e pretos livres. Essas

proporções se alteram de vila para vila, mas são um bom parâmetro para pensar a

formação da população paranaense nesse período. Não só a sociedade, mas tudo que

envolvia a posse da terra, as atividades econômicas e políticas, nos campos gerais

paranaenses, fazia parte de uma estrutura tradicional gerada pelo ciclo do gado e que vai

sendo superada no fim do século XIX, mas deixa sua marca nessa região.27

A população escrava do Paraná era mínima se comparada ao que se veria no Sudeste,

mas formava uma parcela significativa dos habitantes, proporcionalmente próxima a de

muitas vilas do restante da Província de São Paulo ou Minas Gerais. Horácio Gutierrez

calcula que fossem 17,1% em 1830, mas com variações entre as localidades que eram

acentuadas em vilas onde a pecuária era a atividade principal, como já foi dito. Em

25 COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985. 26 Expostas por Iraci Costa e Horácio Gutiérrez. Ibdem. 27 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004, PP. 123–124. COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985.

Page 20: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

20

Castro, por exemplo, eram 26,9% nesse ano e em Palmeira eram 31%.28 Além disso,

essa população estava num contexto que lhe atribuía características peculiares, como

maior autonomia em alguns casos, onde a presença dos proprietários era periódica e a

organização e rotina da fazenda era controlada apenas por capatazes ou pelos próprios

cativos.29

Gutiérrez também nota a divisão existente entre proprietários de terras que tinham

escravos e os que não tinham. O trabalho familiar, de agregados ou assalariados era

comum, mesmo sendo bem menos importante que o trabalho escravo principalmente em

grandes propriedades. Para o autor, a possibilidade de crescimento de uma atividade em

certa propriedade era determinada pela presença de cativos. O trabalho livre limitava

esse crescimento.30

Quanto à posse de escravos, as fazendas de gado eram as principais receptoras e

mantinham as maiores escravarias, porém havia pouca renovação externa nesses

planteis. Os africanos eram a minoria entre os cativos, e passaram a chegar mais

escravos novos a essas fazendas no período do tráfico ilegal.31

A questão da militarização dessa população dos campos gerais é interessante, pois faz

parte de uma preocupação no XVIII com a defesa armada do território, incentivada por

políticas públicas. O Morgado de Mateus tem um papel importante nesse contexto,

partindo dele maior parte dos empreendimentos políticos nesse sentido. Era importante

também o estabelecimento de atividades econômicas rentáveis o suficiente para segurar

a população nos novos povoamentos e também dar preferência a famílias que quisessem

se instalar nos locais, pois elas garantiriam a produção e a fixação dos povoadores. A

expansão do início do século XIX, também marcado pelo militarismo, é definida muito

mais pela abertura de novos campos que possibilitassem o crescimento do que

propriamente por levar às regiões fronteiriças uma população que pudesse proteger

militarmente o território, apesar de os dois intuitos estarem juntos e inseparáveis nesse

momento. Essa impressão é reforçada pelas guerras do Prata, que acabaram por

28 GUTIÉRREZ, H. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. Revista História, São Paulo, v. 25, n.1, pp. 100-122, 2006. 29 Carlos Lima e Kátia Mello identificam essa possibilidade em fazendas absenteístas de Castro e Curitiba. LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004. 30 GUTIÉRREZ, H. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. Revista História, São Paulo, v. 25, n.1, pp. 100-122, 2006. 31

GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

Page 21: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

21

direcionar a atenção para o sul, distanciando o Paraná desses conflitos por algum

tempo.32

Porém, não podemos pensar que por ser a população e poucos os núcleos urbanos tão

pequenos, essa porção da Província de São Paulo estivesse isolada dos acontecimentos

no restante do Império. As conseqüências econômicas e políticas eram sentidas como

reflexo das mudanças num contexto maior. Um exemplo foi o aumento do comércio

entre as Províncias que aconteceu com a instalação da corte no Rio de Janeiro, outro foi

a negociação da emancipação da 5ª Comarca de São Paulo diante de revoltas que a

afetavam diretamente. As Revolução Liberal de 1842 em São Paulo tiveram muitos

potenciais apoiadores entre os paranaenses, pois muitos deles eram liberais. Também

era intenção dos farroupilhas chegarem aos campos paranaenses e, como foi feito em

Santa Catarina, com o apoio da população local, talvez separar esse território do restante

do Brasil. A adesão principalmente de proprietários de terra nos campos paranaenses

seria essencial para que esses movimentos tivessem no Paraná um ponto de apoio. Mas,

num acordo com o poder imperial para que tomasse uma posição de neutralidade diante

desses conflitos, o Paraná conseguiu sua emancipação e até contribuiu com tropas no

combate à Revolução Farroupilha.

É evidente, portanto, a participação do Paraná em eventos políticos do Império. Mesmo

quando não havia uma participação direta, esses acontecimentos manifestavam algum

efeito na sociedade paranaense. Além do mais, devemos considerar que a constante

passagem de tropeiros e demais viajantes pelos caminhos que cruzavam o Paraná,

sobretudo entre Sorocaba e Viamão, era um canal de informação sobre vários locais do

Brasil, desde o sul até São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.33

Mais uma questão política do Império que trouxe mudanças para o Paraná foi a

proibição do tráfico de escravos africanos em 1831, que não teve a eficácia desejada. A

Lei de 7 de novembro de 1831, como ficou conhecida, previa a libertação dos escravos

africanos que desembarcassem no Brasil e a punição dos traficantes. Porém essa lei

apenas tornou esse comércio mais discreto em grandes centros e deslocou as rotas de

desembarque de escravos novos para portos periféricos, onde a fiscalização poderia ser

evitada. Westphalen destaca o papel dos administradores e autoridades que controlavam

o porto de Paranaguá e a alfândega, envolvidos na receptação ou apenas fazendo vistas

32 FRANCO NETTO, Fernando. Famílias escravas nos campos gerais do Paraná. 33

GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

Page 22: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

22

grossas quanto aos desembarques clandestinos de africanos no litoral paranaense. Esse

contingente seria destinado a outras regiões, porém parte dele acabava integrando as

escravarias os campos paranaenses. Carlos Lima, analisando a população escrava de

Castro durante o período percebeu um aumento na entrada de escravos novos na época

da ilegalidade do tráfico, somada a um crescimento em geral dos plantéis. Destacou

ainda que em Castro, e isso pode ser estendido a outras vilas, as escravarias eram

majoritariamente formadas por escravos crioulos, com um número de crianças

considerável e que nesse período teve maior presença de africanos que em qualquer

outro, mesmo que tenha sido um número pequeno comparado ao de crioulos e ainda

mais de outras regiões do Brasil. Essa era uma situação comum nos povoamentos dos

campos gerais, se bem que evidenciada em Castro, mas não era o que normalmente se

encontrava em locais do império voltados para a produção em grande escala, ou mesmo

nos grandes centros.34

1.3 A FREGUESIA NOVA DE PALMEIRA:

Segundo Astrogildo de Freitas, Palmeira era nesse período uma freguesia de Curitiba

que começou como um pequeno povoado que também servia de pouso para o gado às

beiras do caminho entre Viamão e Sorocaba. Conhecida então como Freguesia Nova, só

foi realmente elevada à categoria de freguesia em 1833 e a vila em 1869. Seu nome vem

do Capão da Palmeira, região onde o povoado se instalou. Essa terra na verdade

pertencia a filha de Manuel Gonçalves da Cruz, dona Antônia da Cruz França, parte de

uma sesmaria dada ao pai. Depois de alguma confusão sobre a validade da sesmaria e da

herança, e de a posse ficar compartilhada entre alguns, o marido de Dona Antônia

França, Manuel José de Araújo acabou como dono da fazenda onde cresceu o povoado.

Outro impulso para a criação da freguesia naquela localidade foi a necessidade de

transferir os habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Tamanduá, que

estava mal localizada, como afirma Moisés Marcondes, bisneto do então proprietário da

fazenda da Palmeira.35 Em 1819, Manoel de Araújo doou parte de sua fazenda a Nossa

34 WESTPHALEN, Cecília M. A Introdução de escravos Novos no Litoral Paranaense. In: Revista de História. Vol. XLIV, ano XXIII, n. 89. Curitiba: Jan-mar/1972. LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004. 35 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: Reminiscências e Tradições. Volume II. Curitiba, Lítero-Técnica, 1984. P. 13.

Page 23: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

23

Senhora da Conceição, onde estava sendo construída a igreja matriz da localidade, o

povoado cresceu a sua volta.36

É perceptível, desde o surgimento da freguesia, a forte relação da propriedade daquelas

terras e do domínio político da região por algumas famílias, principalmente a do tenente

Araújo, domínio que foi perpetuado pelas outras gerações. Também se deve destacar

que aquele povoamento era muito recente no período estudado, que vai de 1831 a 1850.

Mesmo que as habitações ali já existissem a algum tempo, a organização administrativa

só viria por volta desse período.37

Assim como Castro, por estar no caminho de Viamão, os habitantes de Palmeira se

envolveram com o tropeirismo e com a criação de animais. Porém as fazendas eram

menores, e o número de escravos também. A distribuição de livres e escravos era

próxima à de Curitiba, no entanto, as características geografias e econômicas de

Palmeira eram muito mais parecidas com as de Castro, não tendo, por exemplo, as

características urbanas de Curitiba. A freguesia era estrategicamente importante na

conquista de novos territórios, era uma “boca de sertão”, de onde partiam campanhas

colonizadoras, organizadas por homens de posse, alguns com patentes militares.

Palmas, Guarapuava e Ponta Grossa são povoamentos que receberam muitos

palmeirenses.

Em Palmeira, pelos dados fornecidos pela lista nominativa de 1835, podemos observar

muitas das características destacadas por Gutierrez quando fala do Paraná ou

especificamente de Castro. A principal atividade na freguesia nova era a criação de

gado, que utilizava trabalho escravo em sua maioria. Por ser um povoamento à beira do

caminho do Viamão, sua população tinha nas atividades de tropeirismo sua melhor

oportunidade econômica. Muitos dos habitantes declaram algum vínculo com essa

atividade, os exemplos mais comuns são os negociantes e condutores de tropas de

animais, outros, além de fazendeiros, também forneciam parada para o gado que

seguiria viagem. Porém não podemos esquecer da produção voltada para a subsistência

e para a venda interna. Desde as fazendas até as pequenas propriedades normalmente

tinham produção agrícola em volumes pequenos, e muitos dos que não declararam

serem pecuaristas ou criadores tinham alguns animais, possivelmente para consumo

próprio.

36 FERREIRA, J. C. V. Municípios paranaenses: origens e significados de seus nomes. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2006. PP. 219-220. 37

FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: Reminiscências e Tradições.

Page 24: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

24

A população de Palmeira cresceu pouco de 1830 a 1835, cerca de 14% (de 1288 para

1474 habitantes), em comparação com o levantamento de Costa e Gutiérrez para 1830.

Os escravos, em 1835 eram 445, ou seja, 30,2% da população, um percentual típico dos

padrões paranaenses, ou até um pouco mais alto. Esses índices populacionais tenderiam

a diminuir com a mudança de muitos habitantes para novos campos conquistados, como

Guarapuava ou Tibagi, e os escravos estão incluídos nesse grupo.38

Dados gerais sobre a população da Freguesia de Palmeira:

Cor Condição Domicílios Brancos 683 Livres 1017* Sem escravos 129 Pardos 349 Escravos 445 Com até 5

escravos 41

Negros 442 Libertos 12 Com mais de 5 escravos

31

Total 1474 201 Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. *Apenas 184 deles tiveram a condição de livre declarada, e eram praticamente todos pardos ou negros, o que significa que para os brancos e muitos pardos (130), além de 22 negros, a condição de livre está implícita.

Há também uma pequena parcela da população que é formada por pardos e pretos

livres, sendo que quase metade destes tinha menos de 15 anos, e entre os adultos a

maioria era casada. Outro detalhe dessa população livre e não branca é que, quando o

domicílio era chefiado por um pardo ou preto, não havia escravos. É compreensível,

pois um escravo tinha preço alto, e especialmente valorizado durante esse período.

Portanto, as atividades para o sustento da família eram feitas pela própria família e pelos

agregados. Em maioria essas famílias eram lavradoras, trabalhando em seu próprio

domicílio, com pequenos cultivos, ou vendendo seu trabalho como jornaleiros. Poucos

eram negociantes ou condutores de gado, apesar de alguns criarem gado (vacum

principalmente). Alguns ainda declaravam viverem de algum ofício como sapataria,

ferraria, carpintaria. O mais abastado, o pardo Manoel da Silva, tinha uma pequena

criação, com 78 ovelhas e plantava milho e feijão em quantidade superior aos outros em

sua condição, além de se declarar mineiro, ocupação que pode ter dado a ele meios para

conseguir a liberdade (no caso de já ter sido escravo) e para iniciar suas atividades

38 COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985. LIMA, C. A. M. Tráfico ilegal para a fronteira agrária: Domingos Inácio de Araújo (Palmeira, 1830 – 1851). In.: Anais do IV Congresso Escravidão e Liberdade. Curitiba, 2009. AESP. Listas de habitantes de Curitiba e da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835-1836.

Page 25: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

25

agropecuárias. Sua renda pode ser um pouco superior aos demais livres negros, mas está

na média dos domicílios de brancos, porém sua criação de ovelhas é a maior declarada.

Dos 348 pardos ou negros livres, uns poucos viviam como agregados em domicílios de

outros. Provavelmente eram um ajuda na força de trabalho do domicílio, mesmo que

nele existissem escravos. Era uma categoria de habitante muito comum desde o período

colonial em todo o Brasil, e percebemos que parte desses indivíduos foram escravos e

depois de libertados continuaram no domicílio, provavelmente desenvolvendo ainda as

funções de antes. Poucos dos agregados declaravam uma renda ou atividade própria, o

que reforça a idéia de que eles estariam envolvidos nas atividades da propriedade onde

viviam, assim como a família na maioria dos casos, principalmente se não houvesse ou

fossem poucos os escravos.

Em maioria, os domicílios dessa freguesia não tinham escravos, mas entre os muitos

que tinham, foi mais comum que contassem com menos de seis. No entanto algumas

poucas propriedades reuniam o maior número de cativos: apenas 14 domicílios

declaravam ter dez ou mais escravos e quase todos estavam ligados à criação de gado ou

às tropas de animais. No entanto, o máximo de cativos em uma propriedade era 25, nas

fazendas de Dona Rita Maria do Nascimento e Dona Clara Madalena dos Santos, ambas

viúvas. Em terceiro lugar vinha o Capitão Domingos Inácio de Araújo, que era filho dos

fundadores do povoamento.

Desse modo, vemos não só a quantidade de escravos demonstrar a situação econômica

de uma família, mas também uma hierarquia nas quais as famílias com mais cativos

estão normalmente no topo. Porém há famílias que fogem à regra, como a de Alfredo

Manoel Medeiros, capitão e criador, que com apenas dois escravos e uma família bem

pequena, tinha uma renda considerável, de três contos de réis declarada na lista de

habitantes.

Essa é também uma população bem jovem, a grande maioria dos habitantes tinha até

trinta anos de idade, e as crianças eram quase metade da população. A distribuição de

homens e mulheres é bem equilibrada, tanto considerando as crianças parte da

contagem, quanto contando apenas os maiores de quinze anos. Se fizermos essa

contagem apenas com os escravos, veremos que o percentual de crianças é um pouco

menor, mas o de adultos jovens se destaca. No entanto, para uma população cativa, a

quantidade de crianças pode indicar a reprodução interna, e, portanto a formação de

famílias. A distribuição de homens e mulheres é um pouco favorável aos homens se não

forem consideradas as crianças, contando com elas é uma proporção equilibrada.

Page 26: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

26

A Palmeira visitada por Saint-Hilaire no início do século XIX, e descrita como uma

nova freguesia, pequena e de gente simples, mas hospitaleira, era também a Palmeira

escravista e de hierarquia bem demarcada, como a maioria dos pequenos povoados dos

sertões do país, onde política e família formavam um emaranhado com poucas

possibilidades de novos arranjos.39

Era ainda uma sociedade em formação, ou renovação, reunindo uma elite de famílias

que traziam de outras regiões nomes de prestígio e tradição, e principalmente bens,

sobretudo terras, que deveriam ser concentrados por seus novos membros e, aliados às

novas posses conquistadas pelo casamento, mantidas na família. Num contraste com

essa elite, mas sem de modo algum marcar uma oposição ou contrariedade, estão os

pequenos proprietários sem escravos, os pobres, os lavradores e jornaleiros, e ainda os

forros e cativos. Se a demarcação de uma elite fechada restringe a mobilidade social, ela

é maior entre os outros grupos, que formam a maioria da população. Entre os escravos

essa afirmação parece falsa, a não ser pela possibilidade de alforria, mas quando

pensamos na família e não apenas no indivíduo, identificamos um meio de ascensão

pelo menos: o casamento e a prole. Isso pode ser confirmado por registros de batismos,

onde muitos dos batizandos são filhos de escravos com livres, e sendo a mãe livre, o

filho também será. Do mesmo modo, o contrário pode acontecer se uma criança for filha

de um homem livre com uma mulher escrava, iniciando uma trajetória familiar

decadente em direção ao cativeiro.

A quantidade de famílias pobres40, e entre elas muitas formadas por pardos e negros

livres, e de pequenos proprietários de terra, ou donos de poucos escravos, é um exemplo

da diversidade desse grupo de habitantes, que representa um montante de possibilidades

de mobilidade social. Essas categorias de indivíduos, ou ainda, famílias, não estão

isoladas entre si, e sim constantemente renovando vínculos de diversas naturezas que

contribuem para essa questão da mobilidade. Um desses vínculos se dá por meio do

batismo.

O batismo é um dos meios de ter representado no mundo físico, laços referentes à

espiritualidade. Mas por meio desses laços sagrados, podem estar projetadas as

ambições de ascensão social de uma família, ou mesmo de renovação dos vínculos entre

a elite e os que estão fora de sua bolha. Diversos anseios cercariam esse forte vínculo,

39 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: Reminiscências e Tradições. Volume II. Curitiba, Lítero-Técnica, 1984. 40

Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

Page 27: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

27

mas, sobretudo aquele que é a base do compadrio: garantir ao filho um protetor,

compromissado diante de Deus a protegê-lo e guiá-lo na hora da necessidade. Isso para

um escravo significava muito, pois a hora da necessidade estava sempre próxima.

Nos próximos capítulos o compadrio, especificamente o compadrio escravo, e seu

código de escolhas e possibilidades serão investigados, em relação à Freguesia de Nossa

Senhora de Palmeira, entre 1831 e 1850, época de consolidação da sociedade

palmeirense em seus primeiros tempos. Desde a influência da condição da criança

batizada na escolha dos padrinhos, até a hierarquia social que é refletida no

estabelecimento de relações de compadrio, várias questões envolvem o tema e algumas

delas serão desenvolvidas mais à frente.

Page 28: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

28

2. ASPECTOS GERAIS DO COMPADRIO NA FREGUESIA DE PALMEIRA

Há um aspecto de Palmeira, característico de muitos povoados, que ainda não foi

ressaltado: a importância de sua paróquia. O pequeno povoado que era um pouso para

os viajantes e animais conhecido como Tamanduá, foi substituído pela freguesia que se

estabeleceu ao redor da igreja construída num local conhecido como capão da Palmeira.

A igreja erguida em 1830 tinha importância estratégica, já que o pouso era distante de

Curitiba. O costume da missa aos domingos e mesmo outros compromissos dos

católicos como a confissão, estavam sendo abandonados pelos habitantes de Palmeira,

que também era distante de Castro. Para assegurar que a população dessa parte do sertão

continuasse praticando o cristianismo da forma correta e não acabasse pagã, a

construção da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Tamanduá foi considerada

prioridade. O povoamento se estabeleceu ao seu redor.41

Essa paróquia, portanto, foi um ponto importante de convívio e encontro dos habitantes

da localidade. Certamente sua fundação fortificou esse aspecto da sociabilidade de

Palmeira e permitiu que os encontros fossem mais constantes. A intenção comum de

participar das atividades religiosas e cumprir os deveres cristãos permitiu que pessoas

de vários estratos sociais se reunissem, ainda que as distinções hierárquicas e mesmo a

segregação física fosse imposta em muitos momentos.

Maria B. Nizza da Silva ressalta o papel importantíssimo da Igreja Católica no Brasil

colônia e que persistiu por algum tempo durante o império: A igreja era uma instituição

reguladora da sociedade. Mesmo que nem sempre tivesse a eficácia pretendida e que

muitas vezes não conseguisse impor seus ditames a todos os cidadãos (e escravos), a

instituição ditava regras de conduta a seu rebanho e mantinha sempre os olhos atentos

dos párocos voltados para a sociedade e suas relações.42

Porém, não era a pressão de um pároco que mantinha a população alinhada com seus

deveres, o próprio status de um indivíduo, sua imagem perante a sociedade, dependia

dessa conduta. Nizza da Silva, num estudo sobre o casamento no Brasil colonial,

observa toda a complexidade desta instituição e sua importância nas relações sociais. A

Igreja se fez presente por meio deste e outros sacramentos, cultos e instituições.43

41 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: reminiscências e tradições. Curitiba: A.M. Cavalcante, 1977. 42 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. 43 Ibdem.

Page 29: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

29

A conquista do status de “homem bom” ou de mulher honrada passa por um caminho

repleto de armadilhas. Manter essa imagem é igualmente difícil. Precisa-se cuidar dos

gestos, palavras e atos sobretudo perante os outros, pois se a conduta é posta em dúvida

as relações sociais são dificultadas. O social, como a autora percebe em sua pesquisa,

está ligado a uma imagem que se conquista e mantêm e que pode tanto agregar prestígio

a um indivíduo, quanto desvalorizá-lo. Muitas das decisões e dos laços formados pelas

pessoas nesse período dependiam dessa imagem: o casamento, as amizades, os

negócios, os títulos, o compadrio. Por isso podemos entender que há mesmo num

sacramento como o batismo um jogo de faces, apostas e anseios, intimamente ligado ao

status de cada um dos envolvidos, podendo representar ao apadrinhado a abertura de

algumas portas ou seu fechamento.44

Permeando os laços entre os personagens de qualquer sociedade há um jogo de

imagens, interesses e retribuições, que se estabelece por diversos meios. O compadrio é

um dos mais significativos, mas há muito a discutir sobre essa complexa instituição, que

não deve ser entendida de maneira simplista. O compadrio, como definiram Stephen

Gudeman e Stuart Schwartz, “é uma construção, um sistema de signos”. 45 Precisamos,

portanto, entender seus significados e o modo como é construído em diversos níveis de

relação entre as pessoas.46

O compadrio se inicia no batismo, que por sua vez é tão antigo quanto o próprio

cristianismo, ou ainda mais. Esse sacramento tem origem em ritos judaicos de passagem

e iniciação e desde que Jesus foi imerso por João Batista essa é uma prática repetida

entre os cristãos. Mas é a partir do século III que ele passa a ser o principal sacramento

do catolicismo e ter um significado bem definido: purificação do pecado original. A

indicação de padrinhos também é identificada já no século III.47

Alguns autores - e cito Gudeman como o principal48, compreendem a construção e o

significado do compadrio como repetição ritual do mito/dogma da concepção de Jesus

Cristo por Maria. Segundo Antonio Augusto Arantes (1982):

44 Ibdem. 45 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 35. 46 Ibdem. 47 Ibdem; BRÜGGER, Silvia M. J. & KJERFVE, Tânia M. G. Compadrio: Relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas. (Campos, 1754-1766). In: Estudos Afro-Asiáticos. (20):223-238, julho de 1991. 48 S. Gudeman (1969), E. Hammel (1968) e A. A. Arantes (1975);

Page 30: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

30

[Esses] autores, inspirados nas teorias de C. Lévi-Strauss e E. R.

Leach, desenvolveram a preocupação de construir modelos que

captassem o núcleo em torno do qual se constituem essas várias

modalidades de compadrio, como variações em torno de um mesmo

tema. Esses autores cada um a seu modo, procuraram explorar

sobretudo a dimensão simbólica da instituição, não a dissociando de

sua base societária, na tentativa de captar o sentido e a especificidade

do compadrio, assim como as suas múltiplas conexões com outras

instituições sociais relevantes.49

Antônio A. Arantes, por exemplo, retoma a “teoria de família e parentesco contida na

Bíblia” como princípio de sua análise.50 Os temas do nascimento e concepção de Cristo

são encontrados nos Evangelhos segundo São João, São Lucas e São Mateus, lembra

Arantes. Nessa releitura, podemos perceber como, ao conceber o filho de Deus de

maneira imaculada, a virgem Maria tem um filho livre do pecado original. José, que se

casa com Maria apesar de sua gravidez, respeitando e acreditando em seu caráter divino,

transmite a Jesus seu nome e descendência. Ou seja, há duas identidades contidas nessa

criança sagrada: uma mística, como filho de Deus, outra social, como filho de José e

descendente da linhagem de Davi. Ainda segundo Arantes:

Nas Sagradas Escrituras, encontram-se então dissociados pater

e genitor. O filho da Virgem é, ao mesmo tempo, filho social de José e

biológica e espiritualmente filho de Deus. Dos dois pontos de vista, o

foco incide nas vertentes masculinas do parentesco, a mulher

aparecendo como “a serva do Senhor”, na qual se faz “segundo a sua

vontade”.51

Para o autor, o compadrio é um paralelo a esse processo. Enquanto o pai concede ao

filho a incorporação social, o padrinho, intermediário de sua espiritualidade, lhe fornece

a essência mística. Gudeman vai além, observando, sob a mesma perspectiva, uma

evolução no conjunto de pessoas envolvidas no batizado e em seu significado como

personagens desse rito. Os padrinhos não existiram sempre como padrinhos, já foram

49 ARANTES, A. A. Pais, padrinhos e o Espírito Santo: um reestudo do compadrio. In.: (Vários) Colcha de Retalhos. Estudo da família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. P. 197. 50 Ibdem. 51 Ibdem, p. 199.

Page 31: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

31

apenas testemunhas do sacramento.52 Dependendo da sociedade e época, existiram

configurações diferentes entre padrinhos e madrinhas. No entanto, desde os primórdios

do batismo, muitos conjuntos de regras foram criados e superados por outros, no intento

de guiar os ministrantes da cerimônia quanto à escolha de padrinhos, e sua conduta

junto à família a qual estaria ligado espiritualmente. Essas regras e proibições variam de

acordo com o contexto, mas há pontos centrais que não mudam, pois de outra maneira

iriam contra o dogma da instituição. Por exemplo, os pais não podem ser padrinhos de

seus filhos e as pessoas ligadas por esse laço não podem contrair casamento ou manter

relações sexuais. Isso porque o batismo estabelece um tipo de parentesco espiritual entre

essas pessoas e, portanto, um caso amoroso envolvendo dois desses elementos seria

incestuoso tal qual uma relação entre familiares próximos.53 Há também outras regras

quanto à escolha dos padrinhos: estes têm que ser católicos, batizados e comungados.54

No caso brasileiro, a Arquidiocese da Bahia regulamentava as instituições católicas

durante o período colonial, e essas regras continuaram válidas no período seguinte,

conforme ditava o Concílio de Trento. Segundo essa regulamentação, além das regras

básicas já citadas, havia também a proibição de ser o vigário a apadrinhar a criança e de

haver segundo padrinho ou madrinha. Era contra-indicado o batismo em que não

estivessem presentes padrinho e madrinha, a exceção estava nos batismos in extremus,

quando a necessidade de atribuir o sacramento a uma criança à beira da morte era mais

importante que a escolha de um padrinho dentro das exigências eclesiásticas ou mesmo

que sua presença. Também era indicado que o batismo fosse ministrado nos primeiros

dias de vida da criança, e que os escravos africanos fossem batizados. No entanto,

sabemos que muitas dessas regras não eram seguidas e que a prática era estabelecida de

forma dissociada do oficial.55

Essa prática era guiada por outras noções além das regras institucionais. Em primeiro

lugar pelo próprio dogma e pela significação do rito. É esse o momento da entrada da

criança no mundo católico, é sua apresentação por seu padrinho a sociedade, como

define Gudeman, além disso, o batismo é símbolo da aceitação do catolicismo pelo

52 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person. In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, vol. 0. 1971. Royal Anthropological Institute of Great Britain, 1971. p. 45-71. 53 Há uma brecha nessa questão: a anulação da primeira ligação viabiliza a formalização da segunda. Ibdem. 54 Ibdem. 55 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Page 32: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

32

batizando, por intermédio dos batizantes. Acima de tudo, esse sacramento representa a

purificação da alma e sua libertação do pecado original. Nesse momento, como já foi

dito, dissocia-se carne e espírito e se os pais são os principais guardadores da carne, o

padrinho guarda o espírito de seu afilhado e para isso tem suas obrigações.56

Os padrinhos têm a função de guiar a “nova ovelha” pelos caminhos da religião. Têm

que instruí-lo, guardá-lo de desvios e proceder de modo que, com sua ajuda, a criança se

torne um bom cristão. Os clérigos podem ter função semelhante, mas na verdade essas

obrigações individuais cabem ao padrinho; ao padre cabe orientar e olhar pela

comunidade católica de modo geral. Os padrinhos também podem ajudar seus afilhados

em outros aspectos, como na obtenção de melhores condições de vida, na intervenção

em seus conflitos, na facilitação de suas relações sociais. Apesar de não ser essa sua

obrigação, todos esses aspectos se somam na formação moral do jovem cristão e se ele

falhar é uma falha dos padrinhos.57

Estabelece-se então, uma relação muito forte entre os padrinhos, os compadres e o

batizando e esse laço nascido na esfera espiritual, mas que extrapola essa condição, é

projetado no âmbito social.58 Daí podemos averiguar como as relações sociais entre

esses compadres, entre afilhado e padrinhos são expressões59 ou ainda se originam de

solidariedades individuais entre esses indivíduos, podendo ser evocadas em vários

momentos do cotidiano. Há então na escolha dos padrinhos uma grande

responsabilidade. Esse laço durará por toda a vida e além dela, exigindo respeito e

confiabilidade entre as partes. A escolha, para tanto, tem que ser baseada não apenas na

afeição ou simpatia, mas também no respeito que os pais têm pelos compadres, na

possibilidade dos compadres contribuírem para a formação moral e religiosa do

batizando e na imagem que eles projetam perante a sociedade - expressão de sua

correção moral, a qual estará inexoravelmente ligada à imagem do batizando e de seus

pais.60

56 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person. In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, vol. 0. 1971. Royal Anthropological Institute of Great Britain, 1971. p. 45-71. 57 Ibdem. 58 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". 59 Defendem alguns autores como Schwartz, Gudeman, Kátia Mattoso e Antônio Arantes. 60 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person.

Page 33: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

33

2.1 SOBRE OS REGISTROS DE BATISMO DE PALMEIRA (1831-1850):

Segundo tudo o que foi discutido, podemos perceber o quão complexas são as relações

de compadrio e a quantos pormenores estão submetidas. Há muito mais que esses

vínculos podem revelar, principalmente no constante às relações sociais por eles

inauguradas. Mas não podemos esquecer que algo importante: o papel da Igreja no

Brasil como administradora ou documentadora de boa parte da burocracia estatal. Os

registros vitais dos habitantes, por exemplo, eram de controle eclesiástico; entre os mais

importantes estão os de nascimento, casamento, batismo e óbito. As paróquias faziam

normalmente muito bem esse trabalho, que seguia regulamentações prévias. Além disso,

havia um alto apelo ao batismo por parte da população, consciente da importância do

sacramento para a vida espiritual e social dos nascidos, e esse apelo vinha de todas as

camadas sociais.61

Os registros de batismos são, portanto valiosas fontes de informação sobre a sociedade

católica, revelando detalhes de suas teias internas que talvez de outro modo não fosse

possível visualizar. Porém há ressalvas a fazer: esses documentos não podem fornecer

um retrato completo de uma sociedade, apenas estão neles retratados alguns

personagens e em poucas informações. Nas palavras de Kátia Mattoso, falando sobre as

relações entre alforriados e libertos, mas estendendo esse juízo a toda a sociedade

brasileira:

Tarefa nada simples, devido precisamente à densa

complexidade desse pequeno mundo risonho e grave, formalista e

entretanto capaz de todas as adaptações, o mundo brasileiro matizado

e vivaz.62

2.1.1 As fontes:

As fontes investigadas nessa pesquisa reúnem os assentos de batismo da Paróquia de

Palmeira inscritos no segundo e terceiro livros batismais, no período que vai de 1831 a

1850. O livro dois contém ao todo 384 registros, entre 1831 e 1834, no entanto, nem

sempre o ano do registro corresponde ao ano do batismo. Há alguns poucos casos em

que, apesar do batismo ter sido feito anos antes, normalmente em casa e com caráter

emergencial, o registro só foi lançado dentro do período em que foi preenchido esse

livro. Os registros seguem a ordem de lançamento, que nem sempre é a mesma da data, 61 BRÜGGER, Silvia M. J. & KJERFVE, Tânia M. G. Compadrio: Relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas. (Campos, 1754-1766). In: Estudos Afro-Asiáticos. (20):223-238, julho de 1991; GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". 62 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Page 34: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

34

e alguns não apresentam mais que o ano do batizado. Também não há separação entre

escravos e livres batizados, seus dados são todos anotados no mesmo livro, seguindo

apenas a determinação da data de lançamento. No livro três os registros são muito mais

numerosos e abrangem um período maior: são 1557 registros, de 1834 até o natal de

1850. Novamente encontram-se casos de batismos realizados anteriormente. Do mesmo

modo que no primeiro livro, escravos e livres não estão separados.63

Os registros contêm informações básicas sobre o batizando, seus pais e os padrinhos e

às vezes detalhes preciosos à compreensão dos padrões que poderemos vislumbrar ao

fim da análise. Apesar de detalhadas em alguns pontos, algumas informações só são

fornecidas em poucos assentos, como o estado civil e a condição jurídica. Essa falta de

uniformidade entre os registros e a variação da grafia dos nomes são as principais

dificuldades na análise dos documentos. Entre os dados constantes nesses assentos estão

o nome do batizando, da mãe e do pai (quando este é conhecido), do padrinho e da

madrinha. Além disso, é revelada a data do registro e às vezes a data de nascimento do

batizando, podendo também ser informada a condição civil dessas pessoas. Quando

qualquer dos indivíduos é escravo, consta não só essa condição, mas também o nome do

senhor; a condição de forro também é indicada. É possível que existam observações

sobre cada um dos presentes, como filiação, título (o que inclui não só o titulo próprio,

como dona, ou patentes militares, mas também a titulação de escravo de dona, ou

escravo de tenente, por exemplo) e também o parentesco entre os padrinhos. Há ainda as

observações sobre o batismo que apontam as crianças expostas e a maneira como

ocorreu seu abandono ou detalhes especiais do batizado como a localidade de onde

vieram os presentes, no caso de serem de fora. Em alguns casos ainda, pode haver um

segundo padrinho em lugar da madrinha, mas o registro então segue o mesmo

procedimento dos casos normais.64

Em vários momentos é necessário o cruzamento com outra documentação, como no

caso de homônimos, para verificar a identidade do indivíduo. A lista de habitantes da

freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira, feita no ano de 1835 é um

documento próximo em data e com muitas informações importantes e abrangentes sobre

essa população, e foi utilizada em muitos momentos para identificar parentesco,

condição social, situação econômica de alguns dos registrados nos livros de batismo.

Essa lista traz nome, idade, condição jurídica, estado civil, cor, sexo de cada um dos

63 Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. 64 Ibdem.

Page 35: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

35

habitantes de Palmeira e ainda lista-os de acordo com o domicílio ao qual pertencem. A

produção do domicílio também é informada assim como a relação dos moradores com o

chefe da casa. As informações aí contidas são muito úteis, mas nem todos os nomeados

nos registros batismais são encontrados na lista de 1835. A lista posterior, de 1846, é

pouco esclarecedora, aparentemente identificando apenas a população livre e mesmo

assim, só com nome e idade. Uma das dificuldades de trabalhar com as fontes principais

é que elas não abrangem a sociedade como um todo, apenas aqueles que passaram pela

pia batismal entre as datas referenciadas e suas famílias, nem sempre de modo completo

ou esclarecedor. Se tivermos por ponto de questionamento o ano de 1835, ao qual se

refere a lista de habitantes, documento auxiliar nessa pesquisa, teremos apenas 83

batismos em meio a uma população de 1474 pessoas. Mas, ressalvas feitas, esses são

registros importantíssimos, e seu estudo só pode ser enriquecedor, já que de modo único

eles relacionam famílias, indicam laços de solidariedade e, mesmo que não alcancem

toda a sociedade, certamente permeiam todos os grupos sociais.65

2.2 TRABALHANDO OS DADOS:

O objetivo principal dessa análise é a observação do compadrio envolvendo escravos e

os padrões que podem emergir dela, assim como das formas de compadrio adotadas pela

sociedade como um todo. Portanto, o cruzamento dos dados referentes aos escravos

com a equivalente observação do batismo entre livres é necessário para o contraste

dessas informações, evidenciando alguns detalhes que a princípio passam

despercebidos. Por isso, num primeiro momento, serão ressaltados dados gerais dos

grupos de batizandos, seus padrinhos e madrinhas.

Categorias de batizandos: Livres Escravos Livres filhos

de escravo Escravos

filhos de livres Africanos Expostos Índios

Total 1938

1385

391

22

19

66

43 12

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Os batizandos foram divididos em categorias, de acordo com a ascendência e condição

jurídica. Cada uma dessas categorias, devido as suas especificidades, demonstrou

comportamentos diferentes. Olhando para cada grupo separadamente é possível destacar

alguns comportamentos e visualizar padrões. Desse exame surgiram algumas questões

sobre o compadrio em Palmeira que serão discutidas ao longo do texto.

65 Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3 e Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

Page 36: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

36

Diante dessa divisão percebemos que os livres são maioria, seguidos pelos escravos. Há

outra separação dentro do grupo de crianças escravas: aquelas que são filhas de mães

escravas, mas seus pais são conhecidos e livres e aquelas que, filhas de mulheres livres,

tiveram pais sabidamente cativos foram examinadas separadamente. O estudo individual

desses casos é interessante já que simbolizam grupos familiares com membros livres,

mas ainda vinculados ao cativeiro por meio de seus cônjuges. Aqueles classificados

apenas como escravos são os que tiveram mãe cativa, pai cativo ou desconhecido, e não

foram alforriados ao nascer (o que só foi notado em quatro assentos).

Há casos em que circunstâncias especiais pedem atenção especial: são os de africanos,

crianças expostas e índios. Os africanos são aqueles em que foi declarado serem de

origem africana, ou que, sem ser conhecida sua origem, foram inscritos como adultos

sem o registro da mãe. As crianças expostas, que foram abandonadas à porta de alguma

casa, têm em sua especificidade o desconhecimento das mães naturais e dos pais, ao

menos oficialmente. Os índios, normalmente descritos como gentios de campos

próximos, ou como bugres, são em maioria crianças; em poucos assentos foram

registrada as mães desses batizandos. Esse tipo de separação segue a utilizada por

Gudeman e Schwartz no artigo Purgando o Pecado Original, como parte da metodologia

de análise dos assentos batismais em localidades no Recôncavo baiano entre o fim do

século XVIII e o início do XIX.66

Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de crianças livres e escravas: Afilhado Padrinho

Livre Escravo Filho de escravo e livre

Total

Livre 1350 276 31 1657 Escravo 31 111 10 152 Forro - 2 - 2 Ausente 4* 2** - 6 Madrinha Livre 1254 260 32 1546 Escrava 14 98 5 117 Forra 5 11 2 18 Ausente 112*° 22**ª 2 136 Substituída por segundo padrinho

101 16 2 119

Total 1385º 391 41 1817 Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. *Em dois a criança foi batizada em articulo mortis; **Em um caso a criança foi batizada em articulo mortis; ° Em 12 casos não houve nem madrinha e nem segundo padrinho; ª Em 6 casos não houve madrinha ou segundo padrinho; º Quatro crianças foram alforriadas ao nascer, todas elas tiveram padrinho e madrinha livres.

66 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII".

Page 37: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

37

Mas quem foram os padrinhos dessas crianças? Supondo que seus pais escolheram os

compadres, vemos quais foram as preferências de cada grupo quando ao estatuto

jurídico desses padrinhos. Na maioria dos assentos de batismos de crianças livres, é

clara a predominância de padrinhos também livres. Não se esperaria o contrário, já que

em diversos estudos, para diferentes contextos, o resultado sempre aponta para relações

horizontais, ou verticais ascendentes. Os padrinhos raramente são de condição inferior

aos pais.67 No entanto, mesmo que seja mínima a participação de escravos ou forros

como padrinhos e madrinhas dessas crianças, essa pequena parcela não pode ser

ignorada. Algumas das mães de crianças livres que tem padrinhos cativos são na

verdade mulheres libertas e essa informação foi inscrita nos assentos. Em outros casos

foi possível confirmar sua origem escrava por meio da Lista de habitantes de 1835,

apontadas como pardas ou negras livres. Mas sobre muitas não há qualquer informação

e apesar da suposição ser atrativa, não é possível afirmar que elas tenham ascendência

escrava. O que sabemos com certeza é que a escolha de compadres de condição jurídica

inferior a sua aponta para uma forte ligação dessas mães livres ou libertas com a parte

cativa da sociedade, e também que alguns indivíduos escravos têm respeitabilidade além

dos portões do domicílio de seu senhor.

Entre os escravos, a preferência por padrinhos de mesma condição ou livres é mais

dividida. Apesar de quase um terço dessa população ter padrinhos escravos (28,5%),

que demonstra a procura de laços de compadrio com aqueles que compartilham sua

condição de cativo, a maioria (70,5%), tem padrinhos livres. Entretanto, os livres que

batizam escravos não são arte de um grupo homogêneo: entre eles, há desde pardos e

negros livres, até familiares de fazendeiros bem sucedidos. Há uma significativa

presença da figura do segundo padrinho nos assentos batismais referentes aos escravos

crioulos. Entre os escravos, 369 dos batizandos tiveram madrinhas. A ausência delas foi

pequena, mas importante, já que seria essa uma presença obrigatória segundo a

Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia.68 A escolha das madrinhas entre os

escravos segue a tendência dos padrinhos, com preferência por mulheres livres.

67 Ibdem; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001; BRÜGGER, Silvia M. J. & KJERFVE, Tânia M. G. Compadrio: Relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas. (Campos, 1754-1766). In: Estudos Afro-Asiáticos. (20):223-238, julho de 1991. 68 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII".

Page 38: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

38

Entretanto há maior escolha de forras para estabelecer o compadrio. Enquanto apenas

um padrinho é forro, 11 madrinhas têm essa condição. São poucos os forros apontados

como tal nas listas batismais e é provável que alguns dos livres tivessem essa condição,

mas a informação pode ter sido ignorada pelo pároco. Se essa possibilidade é real, ela

aponta para a conquista pelos forros de uma posição mais elevada, que mudasse seu

status. Em determinado momento, eles teriam deixado de ser forros para passarem à

condição de livres.69 Mas, como evidenciam os registros de batismo, havia uma forte

identificação dos forros com os escravos, talvez mais que com a sociedade livre.

Os filhos de escravo com livre, que seguiram a condição da mãe (dezenove deles são

escravos e vinte e dois são livres), tiveram chances de ter padrinhos escravos em

proporções muito próximas a dos batizandos do grupo “escravo”. Praticamente um terço

de padrinhos cativos, enquanto dois de padrinhos livres. As madrinhas escravas são

ainda menos numerosas, apenas cinco entre as 39. Duas delas são forras. Há um

segundo padrinho em dois batismos, um deles livre e outro cativo.

Nesse primeiro olhar lançado sobre os batismos pode-se perceber algumas situações se

delineando. O padrinho era essencial, presente em praticamente todos os batismos,

enquanto a madrinha, mesmo que valorizada, às vezes ficou ausente, o que não impediu

a realização do rito. Algumas vezes, a madrinha foi substituída por um homem, um

segundo padrinho, o que é incomum segundo vários estudos de compadrio.70 E nesse

caso tanto escravos como livres, e veremos a diante, também os africanos, expostos e

índios, têm ao menos um caso em que a madrinha é substituída por essa presença

masculina.

As madrinhas ainda mostram outra especificidade. Entre elas houve mais forras que

entre os padrinhos, sobretudo quando se tratou de batizados de escravos. As forras, além

disso, batizaram sempre ao lado de um padrinho cativo, assim como o padrinho forro,

que batizava ao lado de uma madrinha escrava. Essa situação se repete com os outros

tipos de batismos quando um dos padrinhos era liberto.

Essa troca de laços entre escravos e livres pobres ou libertos é o que mais sobressai no

quadro geral dos batismos em Palmeira. Percebemos um espaço entre o cativeiro e a

liberdade onde circula uma pequena, mas significativa parcela da população. Esse

69 Essa questão é abordada por Kátia Mattoso, comparando Bahia e São Paulo, locais nos quais os libertos e mulatos livres apresentam comportamentos diferentes quanto à população branca. MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 70 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII"; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

Page 39: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

39

“limbo”, no sentido de espaço entre duas esferas bem definidas, permitiria relações de

diversas naturezas entre escravos e livres, manteria vivas ligações afetivas, familiares e

econômicas, além de tantas outras.71

Uma das preocupações principais dessa pesquisa é definir padrões nas relações de

compadrio envolvendo escravos, para isso, serão examinados a seguir dados referentes

às crianças escravas batizadas durante o período. Em seguida serão detalhadas as

relações de compadrio de filhos de escravas com homens livres, ou filhos de mulheres

livres com pais cativos.

2.2.1 Os batizados de crianças escravas:

Se nos concentrarmos um pouco nos batismos de crianças escravas, ou seja, aqueles em

que mães escravas escolhem os padrinhos de seus filhos, poderemos ver até onde se

estendem essas relações, quais são as preferências dessas mães para compadres e que

fatores podem demarcar essa escolha.

Padrinhos de crianças escravas em relação ao senhor do afilhado: Em relação ao afilhado

Mesmo Senhor

Outra escravaria

Forros Parentes do senhor

Outros livres

Senhor do afilhado

Padrinho 17 94 2 36 239 1 Madrinha 15 83 11 28 231 1 Segundo padrinho

2 7 -- 2 5 -

Total: 391 assentos Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Separando os padrinhos dessas crianças em grupos, de acordo com suas vinculações

parentais (para os livres) e limites de propriedade (para os escravos), temos um quadro

mais claro dessas relações. A maioria dos padrinhos e madrinhas de crianças cativas é

livre como já vimos. Entre eles, 86,5% não fazem parte da família do senhor de seu

afilhado, ao menos esse parentesco não foi identificado nas fontes. Para as madrinhas

esse percentual aparenta ser um pouco maior, porém o resultado pode ser um pouco

diferente pela dificuldade em identificá-las - pela presença de homônimos e a mudança

constante da grafia de seus nomes completos. Percebe-se que uma pequena parcela teve

padrinhos e madrinhas que eram parentes de seu senhor, e isso parece acontecer com

mais freqüência nas famílias de proprietários com maiores contingentes de escravos.

Apenas em dois casos o próprio senhor apadrinhou seus escravos. 71 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004.

Page 40: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

40

Entre os padrinhos e madrinhas escravos dessas crianças, aproximadamente 15%

pertenciam ao mesmo senhor. Quanto os outros, alguns deles tinham senhores

aparentados dos proprietários de seus afilhados, e alguns poderiam estar vinculados ao

mesmo domicílio, mas para manter a precisão da análise foram contados apenas os que

pertenciam ao mesmo senhor, independente de dividirem o mesmo domicílio. Como a

maioria das escravarias era pequena, um fator pode ter levado esses pais a escolherem

compadres de outros domicílios: alguns não tinham muitas opções dentro da própria

escravaria e a solução foi criar laços fora dela. Essa possibilidade para regiões onde os

escravos estão em pequenos números dentro de cada propriedade já foi apontada por

Schwartz, para Curitiba no início do século XIX.72 Mas também é provável que essas

relações fossem utilizadas também para fortalecer laços entre os senhores dos padrinhos

e dos afilhados, como teoriza João Fragoso para os casos que estudou no Recôncavo da

Guanabara dos séculos XVII e XVIII. Além disso, seria essa uma forma de expandir o

círculo social das famílias escravas.73

As escravarias de Palmeira poderiam ter esse efeito, levando em conta que muitos dos

domicílios tinham poucos cativos, normalmente menos de seis.74 Grande parte dos

cativos era de crianças ou jovens, o que diminui as chances de serem escolhidos como

padrinhos. Isso completa também a impressão de que em escravarias maiores o

compadrio entre escravos do mesmo senhor foi mais fácil, já que nessas escravarias

havia, pela quantidade de pessoas, chances maiores de escolha dos compadres. Também

é possível visualizar as “trocas” de padrinhos escravos entre proprietários: alguns

escravos dos maiores proprietários se batizaram entre si com freqüência. Não significa

que eram sempre os mesmos escravos, apesar de alguns se sobressaírem no papel, nem

que eles estavam batizando filhos de seus próprios compadres, mas que entre alguns

escravos de determinados proprietários se formou uma teia de relações de compadrio.

Portanto, há uma forte ligação entre essas escravarias, assim como esses núcleos

familiares da elite escravista do local que muitas vezes faziam parte de um mesmo

tronco familiar que se mantém parcialmente fechado em seus laços. Essa questão será

aprofundada no capítulo seguinte.

72 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. 73 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 74 Considerado o panorama de Palmeira em 1835, segundo a Lista de habitantes referente a esse ano.

Page 41: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

41

Olhando apenas para os padrinhos escravos, independente de que tipo de afilhado eles

estavam apadrinhando, vemos que eles batizaram ao lado de madrinhas livres apenas 29

vezes. A maioria de seus afilhados nesses casos eram escravos (17 ao todo), mas há

muitas crianças livres (12), inclusive uma indígena. Em nenhum desses casos o

padrinho era escravo da madrinha. Gudeman e Schwartz percebem em suas

investigações que nos poucos casos em que os padrinhos tinham condições desiguais, a

madrinha tendeu a ser socialmente inferior ao padrinho. Entre os padrinhos também

existe certa noção de igualdade, ao menos quanto à relação espiritual com os compadres

e o afilhado. Seria contraditório à ordem social que um escravo e sua senhora, ou o

contrário, fossem padrinho e madrinha lado a lado, igualando seu valor. Já os padrinhos

escravos que batizaram sem a presença de madrinhas são 20 ao todo, mas apenas em

seis assentos a madrinha faltante não foi substituída por outro padrinho.75

Quando tanto afilhado quanto padrinhos eram escravos, notamos que, entre 77, apenas

quatro casos reuniram cativos de mesmo senhor. No entanto, em 38 casos, o padrinho e

a madrinha são do mesmo senhor, enquanto a criança pertence a outro. São também 29

assentos em que a madrinha escrava batizou junto a um padrinho livre. Em 22 desses

casos o afilhado era cativo, mas apenas um africano. Apesar de claramente haver uma

relação de parentesco entre alguns dos senhores de escravos batizados e os padrinhos

dessas crianças, não há relação identificável entre eles e os senhores das madrinhas.

Chama a atenção, nesse último exame, a exclusão dos africanos dessa conjuntura. Se

entre as crianças escravas a chance de ter um casal de padrinhos em condições jurídicas

desiguais era pequena, para os africanos ela era quase nula.

2.2.2 Filhos de livres e escravos:

Os assentos de batismos daquelas crianças que tiveram mãe escrava e pai livre, ou mãe

livre e pai escravo, receberam atenção especial. Trata-se de famílias de condição mista,

que podem indicar por meio do compadrio, o uso de estratégias de libertos e cativos

para obter mais espaço na sociedade dos livres ou de manter vivos os laços com os

escravos e a antiga escravaria.

Foram listados padrinhos, madrinhas, pai, mãe e o senhor daqueles que eram escravos,

os quadros que reúnem esses dados estão em anexo. Aconteceram 41 batismos desse

tipo, separados de acordo com a condição da mãe do batizando. Como a condição

75 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”.

Page 42: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

42

dessas crianças é controversa, elas acabam sempre por “seguir o ventre”, critério que é

comumente aplicado pelos senhores para requerer direito de proprietário sobre a criança

caso sua mãe seja escrava. Por isso, esses assentos foram divididos em dois grupos: um

com dezenove batizandos que, filhos de escravas, permaneceram no cativeiro; outro

com vinte crianças livres, seguindo o ventre. Para facilitar a visualização desses laços,

os dados gerais estão reunidos em quadros.

Crianças escravas, com mãe escrava e pai livre: Padrinho Madrinha Livre 16 16 Escravo 3 2 Total 19 18*

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. *Um caso com ausência da madrinha, que foi substituída por um segundo padrinho livre.

Os padrinhos foram sobretudo senhores de escravos ou livres pobres. Entre os senhores

identificados não estão grandes proprietários. Pode ser que entre os pobres livres

estivessem alguns libertos, mas por terem nomes muito comuns não foi possível atestar

sua identidade. Apenas duas mães recorreram a escravos para o batismo de seus filhos,

são elas Brígida, escrava de Felisberto dos Santos que teve cinco filhos batizados nessa

época e Mariana, cativa de Francisco das Chagas. Três filhos de Brígida tiveram

padrinhos escravos, sua filha Teresa teve também a madrinha nessa condição, já o filho

Calixto teve como madrinha uma parda livre. A escrava Mariana teve uma escrava

como comadre. Os pais das crianças são em algum momento referidos como forros, e

por vezes indica-se o estado civil de casado. Mesmo que esses companheiros não

tenham sido oficialmente casados durante todo o período em que tiveram seus filhos e

os batizaram, vemos que eram relações estáveis aquelas apresentadas. Em nenhum caso

os pais foram referidos como solteiros ou essas crianças como ilegítimas.

A formação de família é mencionada por alguns autores, como Robert Slenes, Roberto

Góes e Manolo Florentino, como um meio de obter alguma estabilidade na senzala,

melhorar as chances de negociação com os senhores. Também funciona como unidade

que consegue resguardar e manter viva uma cultura escrava que junta elementos

africanos com brasileiros e permanece em constante mudança. A família também pode

representar uma via facilitadora da liberdade.76 Mas essa é uma via de mão dupla: ao

mesmo tempo em que traz vantagens ao escravo, pode prejudicá-lo e ser positiva para o

76 SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997.

Page 43: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

43

senhor. Como observam Góes e Florentino, a família também atrela o cativo à

escravaria, inibe fugas ou revoltas mais violentas, pacifica sua relação com os

proprietários. Então, mesmo que seja uma maneira eficaz de obter estabilidade, maior

status e um passo a mais para a liberdade, as formações familiares podem ter resultados

não tão compensadores e às vezes cruéis. Um caso que exemplifica bem essa questão é

o de Rita. Escrava de Joaquim Pinto, segundo consta no assento do batismo de seus

filhos, ela pode ser também a escrava Rita da viúva Maria Inácia Martins, que

novamente consta no livro. Essa possibilidade se deve ao nome do pai, em ambos os

assentos, ser o mesmo: José da Silva, um forro. Se a informação está correta, então

podemos ver que seus filhos são todos escravos, mesmo sendo seu companheiro um

homem alforriado. Cruzando os dados com a Lista de Habitantes de Palmeira de 1835,

encontra-se Rita já como escrava de Joaquim Pinto, que pode tê-la comprado da antiga

proprietária, enquanto a filha Joaquina na aparece. No domicílio de Maria Inácia,

senhora anterior da mãe, há uma menina escrava chamada Joaquina, de idade

correspondente à da filha de Rita. Portanto, considerando verdadeiras as hipóteses

acima, o casal não conseguiu a liberdade de seus filhos ou de Rita. Mãe e filha foram

separadas.77

Cacilda Machado, estudando trajetórias de casais mistos, se deparou com uma variedade

de resultados para a condição jurídica das famílias formadas por esse tipo de casamento.

Os assentos de batismo foram um apoio importante para acompanhar esses resultados

em longo prazo. A autora percebeu que, assim como alguns indivíduos escravos ao

casarem com livres conseguiram a alforria, a maioria acabou vinculada ao senhor do

cônjuge escravo, acabando numa condição de escravidão informal.78

Crianças livres, com mãe livre e pai escravo: Padrinho Madrinha Livre 15 17 Escravo 7 4 Total 19 21*

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. * Um caso com ausência da madrinha, que foi substituída por um segundo padrinho escravo do mesmo senhor que o pai da criança.

77 Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3 e Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. 78 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004.

Page 44: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

44

Ao primeiro olhar já percebemos entre os padrinhos e madrinhas das crianças filhas de

mulheres livres com pais escravos uma presença maior de cativos: sete padrinhos e

quatro madrinhas, além de duas batizantes com condição jurídica de forra declarada no

assento. Um casal em específico demonstra preferência por compadres escravos ou

alforriados. São eles Constância Maria, forra, e Antônio, escravo de Manoel de Paula

Teixeira. Entre seus seis filhos, quatro tiveram padrinhos escravos, entre as madrinhas

havia uma escrava e ao menos duas forras. Outras famílias do grupo tiveram esse

comportamento de modo menos acentuado. Mesmo com maiores chances de essas

crianças terem padrinhos escravos e forros, normalmente os padrinhos e madrinhas

foram senhores de escravos, algumas vezes familiares do senhor de seu compadre

cativo.

Comparando os dois grupos, as diferenças são sutis. A pequenez do conjunto dificulta o

destaque de diferenças. Porém, é perceptível que entre os padrinhos e madrinhas das

crianças livres (as filhas de mulher livre e homem escravo), a presença de escravos se

avoluma, enquanto que, como compadres de mães escravas, esses cativos só aparecem

em casos isolados. Se pensarmos que eles fazem parte de um mesmo grupo, e que o

objetivo de obter a liberdade para os membros da família é coerente com todos esses

casos, então porque, quando separamos os assentos da maneira proposta, eles passam a

indicar direções opostas em suas tendências de relações de compadrio?

Talvez a condição do afilhado influenciasse a escolha no sentido de que, quando o filho

era escravo, os pais preferiram que ele tivesse padrinhos livres para, quem sabe,

intercederem por ele em problemas futuros, como acontece com os outros batizandos

cativos. Havia também a esperança de que vínculos com pessoas livres facilitassem a

conquista da alforria para os filhos. Além disso, esses laços poderiam significar uma

valorização do status social da família e prover relações futuras com mais pessoas

livres. É um meio de chegar perto da sociedade livre mesmo sem pertencer a ela, na

esperança de colher frutos positivos dessa proximidade. Essas relações também sugerem

que, como observa Fragoso, houvesse uma aproximação entre famílias e mais, entre as

famílias senhoriais aparentadas ou entre aqueles com quem mantinham relações

clientelísticas.79

No entanto, a preservação de laços com escravos, principalmente pelos pais que tiveram

filhos livres, fortalece a percepção de que a alforria não subtrai o liberto de seu meio

79 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)".

Page 45: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

45

antigo – sobretudo nesse caso em que ao menos a mãe da família ainda estaria presa ao

cativeiro. A manutenção ou formação de vínculos com alguns elementos desse meio era

desejável e valorizada. A maioria desses padrinhos escravos pertencia ao mesmo

proprietário do pai da criança, que em muitos casos deveria ser também antigo senhor

da mãe, então vemos que os laços não são com elementos isolados, mas com a antiga

escravaria. Além disso, esse poderia ser mais um meio de manter essa família presa ao

cativeiro no entendimento do senhor.

Com todos esses dados explorados, entende-se que os padrões estabelecidos para a

escolha de padrinhos são próximos aos encontrados por Gudeman e Schwartz na Bahia,

mesmo que os contextos sejam muito diferentes. O tamanho das escravarias de

Palmeira, muito menores que as presentes no ambiente estudado pelos autores, interfere

nas diferenças identificadas, mas outra questão deve ser levantada.80

A escolha dos padrinhos, acredita-se, partiria dos pais da criança. Mas não seria uma

escolha dupla, já que é um convite aos possíveis compadres? É aceitável que os pais ou

a mãe da criança almejassem relações de compadrio que representassem de um modo ou

de outro, vantagens para seus filhos apadrinhados ou mesmo para toda a família. Esse

desejo poderia ser o de fortalecer laços afetivos, aumentar o status social, apostar na boa

intenção dos compadres de melhorar as condições de vida de seu filho ou mesmo de

agraciá-lo com alguma herança, ou então aproximar as duas famílias. As motivações

que levam à aproximação de pais e padrinhos não podem ser alcançadas por nós de

maneira direta, apesar de podermos vislumbrá-la por alguns instantes pelas pistas que

nos deixam as fontes.

Mas essas relações têm duas pontas, e na ponta dos padrinhos, há a responsabilidade de

um vínculo eterno com o afilhado e a necessidade de respeito, confiança e solidariedade

para com os compadres. Portanto, a decisão de aceitar o convite e batizar a criança

deveria ser bem avaliada.81 Muitos dos padrinhos, e madrinhas, aos quais somos

apresentados pelo livro de batismos, constam várias vezes nos registros. Sua presença

repetida é sinal de que lhes é atribuído valor como ocupante desse papel, e

provavelmente em outros campos da sociedade, então pode ser que eles filtrassem esses

batismos, escolhessem quem iriam batizar. Muitas possibilidades derivam dessa idéia:

senhores que batizam escravos de outros senhores poderiam usar esse laço como forma

80 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”. 81 Novamente chamo a atenção para a relação de solidariedade, nos termos de Gudeman. GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person.

Page 46: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

46

de vínculo entre as famílias dos proprietários (batizando escravos não deixam de batizar

dependentes de alguém).

2.2.3 Africanos, expostos e índios:

Os assentos de africanos, crianças expostas e indígenas foram analisados

separadamente, observadas as especificidades desses batizandos. A principal diferença

para os outros batismos é a não participação da mãe na escolha dos compadres. Os

escravos novos não têm mãe ou família conhecida, ao menos as fontes não permitiram

esse tipo de associação. Alguns eram ainda crianças, mas a maioria já era adulta ao ser

batizada. As crianças expostas são as que foram abandonadas pela mãe em alguma casa

da freguesia e acolhidas por essa família, oficialmente a mãe dessas crianças não é

conhecida. Os indígenas, todos acima de oito anos, aparecem algumas vezes como

expostos ou é referido que foram criados por determinada família branca. Apenas três

deles tiveram o nome da mãe registrado, o que contraria a regra geral da não

participação das mães no compadrio, mas para demarcar a participação indígena nessa

sociedade, esses assentos foram analisados junto aos dos outros índios e não aos de

livres comuns.

Padrinhos e madrinhas de Africanos, expostos e índios, Palmeira (1831-1850): Afilhados

Padrinho Africanos Expostos Índios Total

Livre 42 43 11 96 Escravo 21 - 1 22 Forro 3 - - 3 Ausente - - - - Madrinha Livre 33 40 7 80 Escrava 17 - 1 18 Forra 1 - - 1 ausente 15 3 4 22 Segundo padrinho

8 3 2 13

Total 66 43 12 121 Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Os expostos e índios tiveram quase sempre padrinhos livres. Apenas dois índios tiveram

padrinho ou madrinha escravo, mas com um número tão pequeno é difícil afirmar que

as relações entre indígenas e escravos, ao menos a demonstrada pelo compadrio, fossem

pouco significativas. A ausência de madrinhas foi relevante para esse pequeno número,

e também a sua substituição por um segundo padrinho.

Há ainda mais um detalhe interessante: entre os expostos, em 13 casos os padrinhos

eram os próprios receptores das crianças ou então pertenciam à família e 12 madrinhas

também eram da família receptora. Essas escolhas de padrinhos apontam para um

Page 47: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

47

interesse menor dessas famílias em, por meio do compadrio, fortalecer laços com outros

domicílios por meio dessas crianças. É possível também que as crianças nessa situação

não fossem muito atrativas para se apadrinhar. Os batismos que tiveram padrinhos e

madrinhas receptores dos expostos indicam também, ao menos nesses casos, além da

possível pressa do batismo e a conseqüente dificuldade de encontrar padrinhos, uma

vontade de manter essas relações dentro do domicílio, ligando a criança à família de

modo irreversível.

Quanto aos escravos novos, sua situação é bem diferente. Recém chegados e destinados

ao trabalho escravo, eles ainda não tinham vínculos com essa sociedade, nem com

escravos e menos ainda com livres. A importância de construir novos laços foi também

muito grande para os africanos, pois o compadrio compreende solidariedade entre os

envolvidos. Além disso, ele poderia trazer outros benefícios aos quais os escravos

crioulos tinham maior acesso.82

Foram poucos os batismos de africanos, mostra da pequena participação desses escravos

nos planteis paranaenses. No entanto é um período de maior entrada desses escravos

novos na 5ª Comarca por meio de Paranaguá; em Palmeira, alguns proprietários eram

compradores de africanos, como Domingos Inácio de Araújo. Entre 1831 e 1833 os

batismos desses escravos foram mais numerosos, voltando a acontecer entre 1839 e

1842 em menor quantidade e mesmo em 1850, quando quatro africanos foram batizados

poucos meses antes da aprovação da Lei Euzébio de Queiroz, proibindo definitivamente

o tráfico atlântico que não tinha parado com a criminalização desse comércio em 1830.

Era um ambiente de impunidade e de insistência na escravidão como base do sistema

econômico, dando margem a fraudes e a burla de regras, o que certamente afetou

também o registro dos batismos. Por isso, as fontes devem ser olhadas com alguma

desconfiança, e devemos contar com a inexatidão de dados como idade e origem.83

Os assentos de batismos de africanos são 66. Entre eles, a maioria registrara padrinhos

de condição livre, enquanto menos de um terço apresentou padrinhos escravos. Os

padrinhos com a condição jurídica de forro indicada foram apenas três. Comparados

com a escolha de padrinhos em outros grupos de batizandos, esse levantamento revela

82 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)"; LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004 83 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-1851). Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009

Page 48: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

48

uma pequena, porém significativa diferença. Apesar dos padrinhos e madrinhas livres

de africanos representarem a maioria, os de condição escrava crescem em importância.

Nesse sentido, a tendência de se ter pessoas livres apadrinhando africanos vai à

contramão do observado por Gudeman e Schwartz no Recôncavo baiano, onde os

escravos africanos eram batizados sobretudo por outros escravos. No entanto, havia uma

diferença brusca entre a formação das escravarias baianas e as paranaenses, essa questão

foi levantada pelo próprio Stuart Schwartz num texto que compara o compadrio escravo

em Curitiba e na Bahia. Para o autor, o tamanho das escravarias, muito pequenas no

planalto curitibano, dificultaria a um escravo novo o acesso a padrinhos cativos e a

escolha predominante de livres para esse papel era afetada por essa característica.84

Como já foi esclarecido, os padrinhos, além de parentes espirituais de posição superior

ao afilhado, também compartilham da responsabilidade pela instrução espiritual e moral

da criança e indiretamente pelo seu bom encaminhamento social. Essa relação então

avança sobre o âmbito social e os padrinhos mantêm com seus compadres ou afilhados,

laços de respeito e normalmente uma convivência mais aberta e constante do que seria

sem a existência desse tipo de vínculo.85

Segundo Gudeman e Schwartz, no caso de africanos esses padrinhos poderiam atuar na

ambientação do novo escravo à rotina de trabalho na propriedade e à sociedade na qual

agora estava inserido, agindo como tutores do afilhado, que não tinha pais ou família a

qual recorrer nesse momento. Os autores apresentam uma teoria sobre o batismo de

africanos, aplicável àquele contexto baiano que estudaram, onde os padrinhos de

africanos eram principalmente os escravos do mesmo plantel. Nessa situação, os

proprietários desses africanos poderiam estar interferindo no estabelecimento dessas

relações, indicando ou convidando seus próprios escravos a batizar os novos cativos

africanos. Os padrinhos seriam em partes responsáveis pela "civilização" e adequação

dos africanos tanto ao ritmo de trabalho quanto aos códigos de conduta da sociedade e

ao cativeiro. O batismo teria uma função, nesses casos, destacada por Roberto Góes e

Manolo Florentino em A Paz na Senzala, de justamente manter a ordem e pacificar a

convivência entre os escravos e destes com o senhor.86

84 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”; SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. 85 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person. 86 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”; FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas:

Page 49: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

49

Em Palmeira, como visto, os padrinhos de africanos foram preferencialmente livres.

Entre os 21 padrinhos escravos de africanos, um terço pertencia ao mesmo senhor (7),

entre as 17 madrinhas cativas, cinco delas eram escravas do senhor do afilhado. Isso

mostra que a procura por padrinhos escravos que, pertencendo à mesma escravaria,

ajudassem o africano em sua adaptação pode ter acontecido, mas não foi o que melhor

definiu as relações de compadrio desses africanos. Mesmo que seu senhor estivesse

interferindo na escolha dos padrinhos, eles teriam que vir de fora, dos vizinhos, na

maioria dos casos. Mas isso, como aponta Schwartz, é sinônimo de maior alcance da

sociabilidade escrava que pode ter reflexos no compadrio.87

De qualquer forma, ao observar esses padrinhos escravos de africanos, vemos que a

idade mínima entre eles era de 25 anos e a maioria tinha mais de trinta, isso entre

aqueles que puderam ser encontrados na Lista de Habitantes de Palmeira em 1835. A

exceção é Manoel, que tinha 20 anos em um dos batismos, considerando que a idade

anotada na Lista de Habitantes estivesse correta. Com algumas exceções como Júlio,

que batiza apenas uma vez no período, eles estão no papel de padrinhos por várias

vezes, assim como as madrinhas, com o detalhe de que elas eram mais novas. Então,

independente de serem escravos de mesmo senhor, os africanos tinham como padrinhos

homens mais velhos e com algum respeito dentro do meio escravo por serem padrinhos

também de outros escravos. Robert Slenes, em Na Senzala uma Flor, não deixa de notar

que dentro das escravarias, seguindo padrões africanos, os homens mais velhos,

sobretudo os crioulos, estavam numa posição de poder em relação aos outros. Não

foram encontrados muitos africanos batizando africanos, apenas José, cativo viúvo que

tinha 68 anos ao batizar a africana Joana em 1831, e Antonio Congo, liberto casado com

66 anos ao batizar Francisco. Outro ponto importante é que em 11 casos, o padrinho e a

madrinha eram escravos do mesmo senhor.88

Se essas relações não foram, como as que Gudeman e Schwartz observaram na Bahia,

usadas para dar alguma estabilidade à adaptação do africano às novas condições de vida,

elas talvez estivessem fortalecendo laços entre senhores, por meio do compadrio entre

seus escravos, como João Fragoso verificou no Recôncavo da Guanabara. Mesmo o

apadrinhamento de africanos por pessoas livres poderia evidenciar relações de

Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997. 87 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. 88 SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

Page 50: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

50

clientelismo entre o senhor desse escravo e os padrinhos, já que é difícil acreditar que

em todos esses casos houvesse algum laço preexistente entre esse escravo recém

chegado e uma pessoa livre, mesmo pobre, que motivasse o apadrinhamento.89

O Arcebispado da Bahia também havia definido que um africano deveria ser batizado,

para ter a alma salva deixando de ser pagão, mas que para isso ele precisaria de

educação e instrução nos saberes católicos, ou ainda, tornar-se minimamente

“civilizado”, assim sendo possível a ele compreender o porque do batismo e de ser

cristão. O rito em questão seria uma importante forma de civilizar esse indivíduo. Não

obstante, o africano percebia que o batismo lhe daria um status mais valoroso. Mesmo

entre os próprios africanos, haveria certo desprezo pelos que não foram batizados e

esses indivíduos, que já estavam na pior posição possível nessa sociedade, teriam ainda

menos chances de progredir de alguma forma, de serem aceitos entre os próprios

escravos, caso lhes faltasse o sacramento maior da Igreja Católica.90 Então, não

podemos excluir a possibilidade de que os próprios africanos escolhessem seus

padrinhos e que eles escolheriam padrinhos livres por entender que esse vínculo seria

valioso.

Outra constatação interessante é que quando os padrinhos de africanos foram escravos,

eles batizaram sempre ao lado de madrinhas de condição igual ou forras. O mesmo

acontece com as madrinhas escravas; em apenas um caso é observável a madrinha

escrava ao lado de um padrinho livre. O que vai de encontro ao observado também nos

assentos batismais de outros grupos, para os quais o estatuto legal do padrinho e da

madrinha tende a ser igual. Quinze batizandos africanos não tiveram madrinhas, o que

representa um percentual um tanto elevado, considerando a fração de outros grupos que

também não tiveram madrinha. Mas eles também tiveram um segundo padrinho em oito

dos casos, figura incomum que requer uma análise mais atenta.

2.2.4 Segundo padrinho:

A presença de um segundo padrinho é considerada excepcional no estudo do compadrio

em várias localidades. Como lembram Gudeman e Schwartz, o Concílio de Trento, que

instituiu normas para o compadrio, estabelece que um homem e uma mulher devem

apadrinhar a criança (ou adulto), mas as formações desse núcleo podem variar de acordo

89 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". 90 KOSTER, Henry. Travels in Brazil. 2v. Philadelphia: 1817, 2, p. 198-99. Citado por Schwartz, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes. P. 270.

Page 51: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

51

com região ou período, sendo comum em muitas culturas a deturpação dessa regra

geral.91 Gudeman analisa alguns desses fenômenos, chegando a casos em que foi

comum santas serem escolhidas e registradas como madrinhas, onde havia mais de um

casal como padrinhos, etc. Em um desses panoramas, numa localidade rural no Panamá

do século XX, ele se depara com a configuração de duas madrinhas e um padrinho no

núcleo batismal, porém, o padrinho tinha mais destaque que as madrinhas.92 Seria um

fenômeno próximo em significado da expansiva utilização de dois padrinhos em

Palmeira, que foi amplamente aceita mesmo indo contra o recomendável pela Igreja.

Levantando os assentos onde homens substituem as madrinhas, foram encontrados 132

casos distribuídos por todos os grupos de batizandos anteriormente analisados. O

quadro a seguir mostra qual foi a formação desses núcleos e que tipo de afilhados

tiveram.

Condição jurídica do padrinho e segundo padrinho, conforme tipo de afilhado: Afilhados Padrinhos

escravos 1º livre 2º cativo

1º cativo 2º livre

Padrinhos livres

1º forro 2º escravo

Escravos 6 3 - 8 - Livres 5 3 1 93 - africanos 2 - - 4 2* Expostos e índios

- - - 5 -

13 6 1 110 Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3. *esses dois africanos foram batizados no mesmo dia pelos mesmos padrinhos, e tem também o mesmo senhor.

O que acontece nos assentos batismais de Palmeira é absolutamente incomum, muito

mais freqüente que em outros estudos nos quais se encontram essas formas de

compadrio. Schwartz apontou que ocasionalmente, em Curitiba, constavam nos

registros dois homens como padrinhos, mas ele não indicou que fosse uma quantia

significativa e nem que a ausência de madrinhas fosse relacionada com freqüência a

essa formação. Em Palmeira, mesmo que os batismos que tenham um padrinho a mais

em substituição à figura feminina sejam menos de 7% do total de 1940, essa estimativa

é alta, dada a anormalidade da situação; mais alta, por exemplo, que o percentual de

falta de madrinhas para Curitiba segundo Schwartz.93

91 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”; GUDEMAN, Stephen. Spiritual Relationship and Selecting Godparent. In: Man, New Series vol. 10. (2). Jun. 1975. Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1975. p. 221-237. 92 GUDEMAN, Stephen. The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person. 93 SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes.

Page 52: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

52

A presença do segundo padrinho foi maior nos assentos referentes à população livre, e

esses padrinhos também foram em maioria livres. Em harmonia com o que ocorria entre

padrinho e madrinha, foi muito mais comum que os dois padrinhos compartilhassem a

mesma condição jurídica; quando não, o primeiro padrinho tendeu a ser de condição

superior à do segundo. Também foi identificado o parentesco entre muitos dos

padrinhos, sendo normalmente pais e filhos, mas a maior parte deles não tinha nenhum

parentesco próximo identificável.

Foi representativa a presença de escravos como substitutos das madrinhas em assentos

batismais de cativos. Apesar de a maioria dos padrinhos ainda ser de condição livre,

houve escolha de um batizante livre e outro escravo, ou de dois escravos em nove casos,

que são mais da metade dos que apresentam dois padrinhos. Isso frisa a presença

escrava, mesmo que de maneira secundária. Assim, essas relações poderiam ser

diversificadas, com o padrinho preferencial livre, que poderia trazer todas aquelas

vantagens já discutidas para os afilhados e famílias escravas, e, aliado a isso, um

padrinho escravo que poderia amparar o afilhado em questões não alcançadas

cotidianamente pelo padrinho livre.

Percebe-se também que os afilhados livres que tiveram dois padrinhos escravos (cinco

ao todo), não eram crianças legítimas. Essa questão pode não ter sido decisiva na

escolha dos padrinhos de modo geral, mas certamente diminuía o status da família ou da

criança, além de se referir à população livre mais pobre, que em parte era não branca e

poderia ter vínculos parentais com esses padrinhos. Os assentos de batismos de

africanos, que também tiveram casos de dois padrinhos, foram os únicos a ter um forro

como padrinho principal. Esses dois escravos novos foram batizados no mesmo dia, e

tiveram os mesmos padrinhos, apontando para uma possível intervenção do senhor na

escolha dos batizantes.

A impressão geral que fica desse levantamento é que o papel de segundo padrinho foi

mesmo em substituição à madrinha e, assim como a madrinha, esteve quase sempre em

posição inferior ao padrinho de fato quanto à condição jurídica. Entre os padrinhos de

condição igual, a posição dentro da hierarquia familiar, por exemplo, não foi expressa

na formação do altar, os pais e filhos não necessariamente seguiam a ordem de primeiro

e segundo padrinho. Esse quadro reforça o papel masculino nos batismos, que também é

característico da hierarquia social, assim como a ausência de madrinhas, muito mais

freqüente que de padrinhos. No entanto, o papel da mulher no constante aos batismos,

Page 53: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

53

não foi de maneira alguma menor ao dos homens, sobretudo se observarmos alguns

casos individualmente.

O compadrio teve uma importância bem demarcada nessa sociedade. Sinônimo de

sociabilidade e de estratégias variadas de mobilidade social, mostra e aumento do

prestígio, procura de proteção ou de fortalecimento de relações entre famílias. Foi uma

instituição muito importante para os escravos, que souberam utiliza-la dentro de suas

próprias estratégias de sobrevivência e proteção da família, compreendendo bem seu

significado e seu poder no âmbito social.

O papel do padrinho nunca deixou de ter base espiritual, mas a sua importância social é

visível. As relações de compadrio se estendem a famílias inteiras e demarcam o alcance

da influência ou do prestígio de padrinhos, que acumulam afilhados na medida em que

seu status é maior em determinado grupo. Os padrinhos livres foram os mais

valorizados mesmo entre escravos. A população livre realmente era predominante, mas

isso não impediria os escravos de terem compadres de mesma condição jurídica.

Transparece então, justamente a procura de padrinhos de maneira estratégica, e talvez

de maneira que não se limitava à família escrava, mas servia também de reforço nos

vínculos parentais ou políticos de seus senhores.

Page 54: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

54

3. PADRINHOS E MADRINHAS: HIERARQUIAS DEFININDO

TRAJETÓRIAS.

Os registros de batismos se mostraram muito versáteis em sua utilização como fonte de

pesquisa. Foi possível extrair dados gerais que forneceram indicações do modo como o

compadrio se desenvolveu na freguesia de Palmeira em formação. Utilizou-se uma

análise quantitativa como forma de salientar algumas características importantes no

entendimento geral da sociabilidade dessa população, que está intrinsecamente ligada às

práticas espirituais e comportamentais. Do mesmo modo, a análise qualitativa que se

seguiu permitiu resgatar trajetórias de famílias, acompanhar o crescimento

populacional, aspectos diretos da religiosidade e da aceitação ou imposição do

catolicismo. Além da compreensão do modo como se estabeleceram relações de

compadrio entre os habitantes de Palmeira, buscou-se focar principalmente aquelas que

tinham famílias escravas em uma das pontas, alguns indivíduos e sua participação nessa

cadeia de laços como padrinhos e madrinhas.

A freguesia nova de Palmeira tinha um pequeno número de habitantes (1474)94, um dos

motivos para que muitos indivíduos tivessem contínua participação nos batismos da

região. Não foi incomum que esses habitantes tivessem cinco ou dez afilhados, e isso

significava laços de compadrio com muitas famílias, às vezes de diferentes estatutos

sociais ou jurídicos.

O compadrio não apenas tinha utilidade política e social, mas como defendem Gudeman

e Schwartz, tinha significados aos quais sempre estaria vinculado. Entre tudo que o

sacramento e a instituição do batismo significam, sobre os quais já foi feita uma

discussão, há valores agregados no compadrio que são essenciais para o entendimento

deste como parte de um complexo sistema de interação social. Há, no estabelecimento

do compadrio, um implícito sentido de respeito entre os envolvidos, iniciando dos pais

para com os padrinhos. É de entendimento geral na historiografia que os pais chamam

para padrinhos pessoas de condição superior à sua, principalmente o padrinho; o

compadrio com pessoas de estatuto inferior é considerado uma exceção. A questão do

respeito está envolvida nessa escolha, assim como a do prestígio do padrinho, o que

94 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835.

Page 55: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

55

pode ocasionar a escolha de alguém de nível jurídico ou social inferior para batizar os

filhos, pois essa posição é compensada pelas atribuições citadas. 95

Porém, na compreensão de Martha Hameister, o compadrio não é meramente um

reconhecimento de respeito pelos padrinhos, é também e principalmente uma relação de

troca entre desiguais. Para a autora, a questão do dom, da dádiva, muito explorada pela

antropologia, é plenamente aplicável ao estabelecimento do compadrio. Para visualizar

essas trocas e como o compadrio também é um meio de acrescer prestígio a um

indivíduo ou família, foram construídos quadros onde constam os nomes recorrentes

nos assentos batismais como padrinho e madrinha. 96

95 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 35. HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher na família e na sociedade coloniais. In.; Simpósio temático Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidade, Deslocamentos. Florianópolis: UFSC, 2010. 96 HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher na família e na sociedade coloniais.

Page 56: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

56

3.1 COMPADRES E COMADRES PREFERIDOS DE PALMEIRA.

Padrinhos, seus títulos ou condição jurídica e a quantidade de afilhados:Manoel escravo de

Capitão

31

Joaquim Ribeiro da Siva 28

Serafim de Oliveira Ribas 24

Domingos Inácio de Araújo Capitão 21

Manoel da Cruz Carneiro Major 21

Roberto José de Deus 19

Manoel Ferreira dos Santos 19

Prudente Barbosa de Brito 16

Antônio Joaquim de Camargo 16

Francisco escravo de dona

16

Manoel Teixeira de Freitas 15

Manoel Batista dos Santos 14

Manoel (Soares) do Santos 13

Luciano José de Andrade 13

Teodoro Ferreira Maciel 12

João de Paula Teixeira Tenente 12

Francisco de Paula Pereira 12

Manoel Inácio de Andrade 12

Pedro Ribeiro de Souza 11

Veríssimo Inácio Marcondes 11

José Caetano de Oliveira Alferes 11

Antônio Alexandre Vieira 11

Candido José de Almeida 10

Antônio Teixeira de Freitas 10

Manoel de Paula Teixeira Tenente 10

Ricardo Rodrigues Seixas 9

José Elizeo 9

José Cardoso 9

João Aires de Araújo 9

Francisco de Paula Farias Capitão 9

Joaquim Mateus Branco e Silva Alferes 8

João Mendes de Araújo 8

Henrique escravo de Alferes

8

Generoso Alexandre Vieira Vigário 8

Francisco Xavier Cintra 8

Benedito Gonçalves 8

Bento escravo de tenente

8

Ponciano José de Araújo Vigário 7

José Manoel Teixeira 7

Inocêncio Cardoso 7

José Prudêncio Marcondes 7

João Franco 7

Antônio José de Lima 7

Manoel José Moreira 7

Manoel Mendes de Sampaio 7

Joaquim José de Andrade 7

Antônio Cornélio 6

Serafim Gonçalves 6

Ricardo Rodrigues Franca 6

Manoel Martins de Araújo Capitão 6

Manoel José Dias da Costa 6

Malaquias escravo 6

Lucas dos Santos Cordeiro 6

Bento escravo de capitão

6

José Joaquim de Almeida Júnior

6

José Francisco de Siqueira 6

José Antônio de Camargo e Araújo

Padre 6

Joaquim Batista dos Santos 6

João Antônio Coelho 6

Gabriel Narciso Bello 6

Francisco Antônio das Chagas 6

Francisco Antônio Cardoso 6

Francisco Alves da Rocha 6

Venâncio José Ribeiro 6

Prudente José dos Santos 6

Joaquim escravo de alferes

6

Policarpo Antunes Ferreira 5

Patrício Teixeira de Oliveira Cardoso

5

Patrício escravo de tenente

5

Oliverio José da Silva 5

Lucas Antônio 5

José Ferreira dos Santos 5

Joaquim dos Santos Belém 5

João Nepomuceno Carneiro 5

João Leite Penteado 5

João José Teixeira 5

Francisco de Paula Guimarães Capitão 5

Francisco das Chagas 5

Antônio Manoel dos Santos 5

Page 57: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Foram listados os homens que tiveram cinco ou mais registros nos assentos batismais. A

maioria deles apadrinhou cinco ou seis crianças, mas vemos um grupo menor que reúne

muitos afilhados. Esses padrinhos têm condição jurídica e social diversas e alguns

escravos também tiveram um papel importante como padrinhos, mas os homens livres

representaram não só a maioria entre os padrinhos, mas também tiveram mais afilhados.

Esses homens também não costumaram servir de substitutos das madrinhas. Poucos

deles tiveram essa participação como segundo padrinho.

Entre os nomes incluídos estão os de pequenos proprietários, pobres e escravos, mas

principalmente os formadores da elite palmeirense e seus familiares. Muitos deles

ostentam títulos e patentes militares, indicações importantes da proeminência social e

política; além dos titulados estão seus filhos, pais, irmãos. Só com esse primeiro olhar

sobre o grupo dos maiores padrinhos, já é claramente perceptível a presença de

familiares entre esses homens. Acrescentando a essa constatação um quadro semelhante

voltado para as madrinhas, o parentesco próximo entre os batizantes bem sucedidos fica

ainda mais evidente.

Madrinhas por ordem de vezes em que compareceram a pia batismal:

Nome Marido ou parentesco Nº Esmeria Manoel escravo Escrava 26 Clara Madalena dos Santos Viúva de Cândido José dos Santos Dona 24 Balbina Maria / Francisca de Siqueira Manoel (Antônio) Ferreira dos Santos Dona 22 Josefa Joaquina (Maria pinheira) de França (Marcondes)

Domingos Inácio de Araújo Dona 21

Cândida Joaquina de França (Marcondes de Sá) Filha de Domingos (casou com José Vieira Neves)

Dona 20

Mariana de Siqueira Moraes Serafim de Oliveira Ribas Dona 19 Ana Maria do Rosário Joaquim Ribeiro da Silva 16 Joaquina Soares Viúva, mãe de Manoel Soares 13 Rosa Maria de Jesus Teodoro Ferreira Maciel Dona 12 Querubina Rosa Marcondes de Sá José Caetano de Oliveira Dona 11 Ana Joaquina da Trindade (também é Ana Luciana)

Joaquim dos Santos Leal (e filha de Luciano José de Andrade)

11

Inácia Dias de Olivera Prudente Barbosa de Brito 11 Matildes Umbelina da Gloria Antônio Joaquim de Camargo Dona 11 Ludovina Maria (Narcisa) dos Santos Manoel Inácio de Andrade 10 Francisca Caetana de Oliveira Manoel da Cruz Carneiro Dona 10 Inácia dos Santos (Belém) Francisco das Chagas 9 Zeferina (Maria) Nuncia de Almeida Irmã de Cândido José dos Santos e

Almeida Dona 9

Maria Matildes de Souza Lucas dos Santos Cordeiro 9 Ana Placidina dos Passos (dos Santos) Francisco Gonçalves de Castro 8 Barbara Serena de Siqueira Pedro Ribeiro de Souza 8 Emereciana Maria da Conceição Roberto José de Deus 8 Isabel Caetana (Marcondes) de Franca Antonio Joaquim de Oliveira Dona 8 Isabel da Costa Buena José Elizeo de Jesus 8

Page 58: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

58

Maria Cipriana de Souza Francisco Antônio das Chagas 8 Maria do Carmo José Antônio de Góes 8 Rita Maria das Neves viúva Dona 8 Umbelina de Paula (Teixeira) Cardoso José Cardoso Pais Dona 8 Ursula Maria Benedito Gonçalves 8 Maria (supondo que é sempre a mesma Maria) Bento escrava 7 Maria Aurea de Araújo Filha de Lourenço Justiniano 7 Maria Ferreira Ricardo Rodrigues Seixas 7 Maria Joaquina dos Santos José Gonçalves de Almeida 7 Maria Roberta do Espírito Santo Filha de Roberto José de Deus 7 Rita Maria do Nascimento Sogra de Domingos Inácio de Araújo Dona 7 Rosa Carmela da Candelária José Manoel Teixeira 7 Francisca Clara da Conceição Luciano José de Andrade 7 Maria Possidonia (Carneira) Teixeira João de Paula Teixeira 7 Rufina Antônia de Sá Prudente José dos Santos 7 Maria Pires (solteira) Filha de Manoel Gaspar 6 Ana Maria de Almeida (da conceição) Filha de Antônio Joaquim de Camargo Dona 6 Francisca Batista dos Santos Filha de Manoel Jose Teixeira 6 Jesuína Maria (Carolina) de Andrade Filha de Antônio Pereira de Andrade 6 Joana Maria Francisco Alves (da Rocha) 6 Joana Maria dos Santos Manoel Manso de Araújo 6 Joaquina Maria da Silva Venâncio José Ribeiro 6 Maria da Cruz solteira 6 Mara da Luz Filha de Joaquim Ribeiro da Silva 6 Maria Pires Filha de Manoel Gaspar 6 Ana Maria do Carmo Manoel Gaspar da Cruz 6 Rosa Maria Rodrigues 6 Alexandrina Maria de Oliveira João Antônio Coelho 5 Antonina Rita Maria (de Oliveira) Patrício Teixeira de Oliveira (Cardoso) 5 Apolinária da Rocha Irmã de José Elizeo de Jesus 5 Berbiana Maria da Silva 5 Maria escrava 5 Maria das Dores (Branca e Silva) Joaquim Mateus Branco e Silva 5 Maria Polucena de Araújo Filha de João Mendes de Araújo 5 Senhorinha Luiza da Silva solteira 5 Senhorinha Maria de Araújo Antônio José de Lima 5 Ursula Maria de Jesus Manoel José Moreira 5 Zeferina Marcondes de Oliveira Antônio de Sá Carneiro 5 Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Essas mulheres, assim como no quadro de padrinhos, tiveram ao menos cinco afilhados.

Para facilitar a associação delas à família, foram indicados seus maridos ou seus pais e

irmãos além do único título que as mulheres tinham que demonstrava o poder de sua

família, o de dona.

A grande quantidade de homônimos afetou muito mais a identificação das madrinhas

que dos padrinhos, além dos muitos nomes iguais ou parecidos, sobre os quais não é

possível ter certeza quanto a quem pertencem, há muita variação de nomes para algumas

mulheres. Ana Pinheira, por exemplo, foi um nome muito comum, que por isso ficou de

fora da listagem. Se fosse referente a uma pessoa apenas, a tal Ana Pinheira estaria entre

as principais madrinhas da freguesia, entretanto, várias mulheres atenderam por esse

nome em algum momento. O caso de nomes que se modificam com o passar do tempo

mas identificam um só pessoa também atrapalhariam a precisão da avaliação. Dona

Page 59: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

59

Josefa Joaquina de França é uma dessas mulheres. Teve uma variedade de nomes, mas

por estar sempre vinculada ao nome do marido foi possível identificar todas as

variações sem risco. Por vezes apareceu como Maria Joaquina, foi acrescentado ao seu

sobrenome o Marcondes e o Sá, e até o nome Maria Pinheira é usado em um dos

assentos pela dona. Alguns dos nomes que mais se repetem são Cândida, Maria, Ana,

Joaquina e sem uma indicação de parentesco, seja o sobrenome, seja o apontamento do

marido ou do pai, é impossível saber de quem se trata.

Por essas complicações que ocorreram principalmente na identificação das madrinhas, e

sabendo que o interesse maior desse levantamento é a identificação de parentesco entre

padrinhos e madrinhas, no caso de dúvida foram incluídas na contabilização apenas os

registros em que havia a indicação do cônjuge ou de algum familiar. Desse modo, é

possível que a quantidade de batismos de cada um desses homens, e principalmente de

cada mulher que serviu de madrinha, seja maior que o apurado.

Analisando conjuntamente as duas listas, a presença de famílias é uma impressão forte.

Olhando principalmente para as famílias nucleares, vemos casais, irmãos, pais e filhos

que batizaram muito em conjunto, além disso, numa visão mais distanciada sabemos

que muitos desses núcleos familiares têm parentesco entre si. Por isso, em vez do

acompanhamento de trajetórias parciais dos indivíduos que mais se destacaram,

veremos a atuação de suas famílias, tendo em vista que, como defendem Hameister e

Fragoso, o compadrio une famílias ou casas, não se restringe aos indivíduos. 97

Os padrinhos mais atuantes do período em Palmeira foram Manoel e Esmeria, escravos

casados de Domingos Inácio de Araújo, mas esse é um caso que terá atenção especial

posteriormente. Logo em seguida aparece dona Clara Madalena dos Santos, viúva e

proprietária de muitos escravos. Ela é comadre tanto de casais de boa situação

econômica e social, quanto de escravas e agregadas, além de mães solteiras. No entanto

não batiza os filhos de suas escravas corroborando a observação feita por Gudeman e

Schwartz. A viúva parece ser uma boa opção de madrinha entre diversos tipos de

famílias. Outra viúva que teve muitos afilhados foi dona Joaquina Soares. Era ainda

jovem e não contava com escravos, apenas com os três filhos, junto aos quais

97 Ibdem; FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

Page 60: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

60

desenvolvia a atividade de lavra e a pequena produção agrícola. Batizou dois escravos,

uma criança exposta e livres legítimos.98

Já entre os senhores de escravos e suas famílias, vários deles aparecem recorrentemente

nos assentos batismais, como pais dos batizandos e principalmente como padrinhos.

Serafim de Oliveira Ribas teve 24 afilhados, contando o assento em que ele foi

registrado como o segundo padrinho. Era casado com Dona Mariana de Siqueira e

Morais que foi madrinha de 19 pessoas. Entre os filhos, Joaquim Mariano de Sá Ribas

também chega a participar de batismos, mas provavelmente por sua pouca idade não

esteve entre os mais bem colocados. A família era muito importante na região,

normalmente o casal nuclear participou junto dos batizados e eles eram tanto de filhos

da elite quanto pessoas pobres e escravos. Alguns dos compadres eram de outras

regiões, como Vacaria e Sorocaba. Em um dos assentos, o padre declara ignorar o nome

da madrinha. Essa demonstração de indiferença quanto à madrinha, apesar de ter

acontecido apenas uma vez, é também uma mostra da importância do padrinho.99

Manoel Ferreira dos Santos e Balbina de Siqueira formavam um jovem casal no início

desse período. Em 1835 ele tinha 36 anos, e ela 28. Mesmo assim já tinham cinco

escravos, uma criação de animais em Guarapuava e uma renda considerável. Não

tinham filhos. Era uma família de pequeno porte, mas não tão incomum, já que a

própria freguesia ainda estava crescendo e se consolidando. Além disso, já se

apresentava próspera e certamente buscava aumentar o status social além do fator

econômico, o compadrio era uma boa maneira. O casal não batizou os filhos de grandes

fazendeiros, mas pessoas de famílias menos importantes provavelmente de situação

econômica parecida com a sua. Além desses, apadrinharam um escravo africano

pertencente a José Siqueira Cortes, da família de Balbina, uma criança exposta em uma

casa da vizinhança e dois filhos de mulheres solteiras. O casal claramente buscava nos

laços com pessoas de posição inferior o aumento de seu prestígio na comunidade.100

Roberto José de Deus, também era um proprietário de terra com três escravos, apenas

Esperança e seus dois filhos. Os familiares não participaram muito dos batismos, apenas

a esposa Emerenciana e a filha mais velha, mesmo assim elas não apadrinharam muitas

pessoas. No entanto, o chefe da casa é muito presente nos assentos de batismo. A renda

que declarou na lista de habitantes é média, mas ele tinha uma criação e plantio

98 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. 99 Ibdem. 100 Ibdem.

Page 61: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

61

diversificado. Como negociante de tropas de animais, criador e agricultor, contava com

uma produção variada naquele momento101. Seus filhos ainda eram novos (11 filhos, a

mais velha tinha 17 anos), mas certamente representavam a força de trabalho necessária

à continuidade de seus negócios, mesmo que não fossem um símbolo de poder como

por vezes eram os escravos. Não batizou membros da elite, apesar de ter muitos

afilhados de famílias em boa situação. Por outro lado batizou um escravo de Teodoro

Ferreira Maciel, outro indivíduo de destaque que inclusive foi um dos poucos que

batizou o próprio escravo.102

A família de Domingos Inácio de Araújo foi uma das mais participativas nos assentos

batismais. Por ser reconhecida com facilidade, assumiu maior importância para essa

pesquisa, logo saltando aos olhos, mas com um exame mais atento ela continuou a se

destacar entre a teia de compadrios de Palmeira. As famílias do capitão e de sua esposa

dona Josefa Joaquina de França estiveram entre as fundadoras da freguesia e

proprietárias iniciais daquelas terras. Domingos desenvolveu suas atividades

econômicas tanto investindo em terras e criações quanto no tráfico ilegal de africanos,

do qual era um dos principais participantes. 103

Não só o próprio chefe do domicílio, mas sua esposa e as suas filhas Cândida e Isabel,

além dos filhos Veríssimo, José Prudêncio, Antônio Cornélio e Francisco, foram

padrinhos e madrinhas de muitos palmeirenses. A formação do conjunto padrinho-

madrinha, e por vezes padrinho-padrinho, normalmente reunia integrantes dessa família.

Domingos e dona Joaquina sempre apareceram mais que os outros, mas Veríssimo e

Cândida também batizaram juntos muitas vezes. Além desse núcleo, os genros e a

sogra, também participam dessas configurações. Chega-se logo a Joaquim Mateus

Branco e Silva e a Antônio Joaquim de Camargo, um genro do Capitão Domingos de

Oliveira e outro bem próximo à família. Além dele, Manoel da Cruz Carneiro, irmão de

dona Joaquina, foi um dos padrinhos que mais batizou membros da elite, sempre ao

lado de madrinhas de “boas famílias”.

Antônio Joaquim de Camargo, natural de Sorocaba, era proprietário de muitos escravos

africanos, mulheres crioulas e crianças. Apesar de não declarar nenhuma renda ou

ocupação, tinha uma criação de animais de porte respeitável para os padrões dos campos

101 Na lista de habitantes de 1835, aparece como negociante de tropa solta, criador e lavrador, além de declarar ter rebanho de carneiros, suínos, além de 8 vacas e 15 cavalares. Também plantou feijão, milho e congonha (erva mate). Ibdem. 102 Ibdem. 103 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-1851). Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009.

Page 62: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

62

Gerais. Não ostentava nenhuma patente militar, mas era respeitado e um dos principais

chefes de família da região. Ele e a esposa dona Matildes Umbelina da Glória batizaram

muitos filhos de pessoas da elite palmeirense, como de Teodoro Ferreira Maciel,

Francisco de Paula Teixeira, Domingos Inácio de Araújo, Felisberto de Oliveira Ribas.

Além disso, batizou Cândido, um “bugre de Guarapuava” e Rufina, filha de Manoel e

Esmeria, os maiores padrinhos da freguesia.104

Essas pessoas alcançaram todos os tipos de batizandos, mas foram alguns dos poucos

que serviram de padrinhos para as crianças nascidas nas tradicionais famílias da elite.

Mas não foram apenas as famílias poderosas que tiveram destaque como padrinhos.

Alguns indivíduos e famílias se dedicaram a apadrinhar pessoas pobres ou de poucas

posses, escravos e pardos livres.

Um dos casos mais interessantes é o de Joaquim Ribeiro da Silva e Ana Maria do

Rosário. O casal de pardos livres teve uma participação nos assentos mais expressiva

que as famílias citadas acima, e por vezes uma filha do casal também foi madrinha. A

ocupação que Joaquim declarou na lista de habitantes foi de mestre de música de seus

filhos. Aparentemente a família não tinha muitos recursos em terras ou escravos, mas

Joaquim e o filho mais velho, José, sabiam ler e escrever. Podia ser uma família com

renda pequena, mas eles tinham alguma instrução e um domicílio próprio; posição

bastante confortável para pardos livres. Apesar de batizarem alguns escravos, inclusive

africanos, Joaquim e Ana Maria batizaram muitas pessoas livres possivelmente de

situação econômica igual ou inferior a sua. Prudente Barbosa de Brito, marido de Inácia

Dias de Oliveira também foram padrinhos mais ligados à base da população.105

Alguns padres também tomam lugar de padrinhos. No caso de José Antônio de

Camargo e Araújo e Ponciano José de Araújo, os registros dão a entender que os

batismos nos quais serviram de padrinhos foram ministrados por vigários

encomendados de outras regiões. Mas o padre Generoso Alexandre Vieira chegou a

fazer o registro dos batismos nos quais foi padrinho, escrevendo a frase “eu mesmo” no

lugar reservado ao batizante. Este foi o padre da freguesia por um longo período e

batizou oito pessoas. O Concílio de Trento e as constituições primeiras do arcebispado

da Bahia determinavam que padres e eclesiásticos em geral não poderiam ser padrinhos,

mesmo assim vemos essas ocorrências se repetirem em Palmeira. Além disso, um

104 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. 105 Ibdem.

Page 63: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

63

agregado do padre, que inclusive ganhou seu nome, Alexandre Vieira, batizou onze

pessoas.106 Ele poderia ser um representante do padre, carregando uma “herança social”

tal qual as famílias de fazendeiros.

Percebemos entre muitas dessas famílias o parentesco pelo casamento, e esse vínculo é

acrescido do compadrio entre dependentes, mesmo os escravos. A elite tentava manter o

patrimônio intacto, preservar as propriedades e perpetuá-las através dos filhos, passando

pelo casamento partes que acabariam entre famílias já aparentadas por ancestrais

comuns, ou que adentraram nessa elite pelo enriquecimento. 107 Os escravos não eram

sempre batizados pelo topo da pirâmide, mas muitas vezes por seus dependentes já que

manter esse tipo de laço, direta ou indiretamente, era importante também para a elite.108

Entre os escravos ela trazia suas vantagens, mas o vínculo horizontal tinha a força da

solidariedade e do cotidiano. Por isso, alguns os padrinhos e madrinhas mais ativos

eram escravos ou pardos livres.

João Fragoso detectou algumas relações parecidas, assim como as disputas entre

famílias da elite. Esses fidalgos, como chama Fragoso tratando de um contexto colonial,

tinham suas diferenças principalmente na disputa do poder político, mas também tinham

seus aliados nesse sentido. Por isso, manter vínculos tanto horizontais quanto verticais

era importante, fazia parte do processo de manter apoio, preservar a casa. O autor

entende o compadrio, ao menos nos casos analisados, como relações entre o que define

como casas, ou seja, famílias, com seus agregados e escravos, que representam a

família principal mesmo que indiretamente.109

Martha Hameister também utiliza o conceito de casas para analisar as relações de

compadrio, e compreende ainda que entre os compadres existia uma noção de troca, de

dádiva. Os pais oferecem aos padrinhos um parentesco espiritual, não só com o

afilhado, mas com a família, a casa e tudo o que ela representa. Os padrinhos têm que

retribuir, mas, considerando que normalmente são de condição jurídica e social superior

aos compadres, não será da mesma forma. Portanto, há uma dívida eterna entre os

106 Ibdem. 107 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-1851). Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009; LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004. 108 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". 109 Ibdem.

Page 64: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

64

padrinhos e os pais. 110 Obviamente também há vantagens em ser padrinho que valem a

adoção dessa troca desigual. Esse laço é um reconhecimento do respeito dos compadres

e uma vantagem para o status social.

Além disso, a autora ressalta em sua pesquisa do compadrio na vila do Rio Grande no

século XVIII, a importância das mulheres, não só no compadrio, mas como

administradoras das propriedades em alguns casos. Isso vai contra a perspectiva

freyreana que entende a mulher do período colonial meramente como reprodutora. Esse

pensamento também é aplicável ao tema do compadrio em Palmeira, já que, apesar de

não ultrapassarem os homens no número de batismos como aconteceu em Rio Grande,

elas tiveram destaque como representantes das casas e acompanharam em números a

trajetória de compadrio dos homens. 111

Alguns escravos também se destacaram no papel de padrinhos e madrinhas apesar de

não serem muitos. Francisco, escravo de dona Maria dos Passos, teve 16 afilhados. Em

maioria eram escravos, muitos africanos e poucos filhos de pais casados. Cinco eram

filhos de mulheres livres. Francisco batizou sempre escravos de senhores proeminentes

da região, até mesmo de sua senhora. Uma de suas afilhadas foi Catarina, filha de

Esmeria, que é a madrinha com mais afilhados de Palmeira. Novamente chegamos ao

casal de escravos que mais apareceu nos registros batismais que motivaram os

questionamentos quanto ao compadrio em Palmeira.

3.2 MANOEL E ESMERIA, COMPADRES E ESCRAVOS:

A trajetória dos escravos de Domingos Inácio de Araújo, Manoel e Esmeria, é a mais

impressionante entre todas as histórias que se cruzam nos registros batismais da

pequena freguesia. Juntos eles batizaram 23 pessoas, mas Manoel ainda ultrapassa a

esposa, chegando a 31 batismos, oito em companhia de outras madrinhas. O seguinte

quadro mostra os afilhados do casal, e também os casos em que eles batizaram

separados.

110 HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher na família e na sociedade coloniais. 111 Ibdem.

Page 65: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

65

Afilhados de Manoel:

Nome Ano de batismo Mãe Senhor Madrinha Brás 1832(ano de

batismo de vários africanos)

Africano Domingos Inácio de Araújo Joaquina (de Clara Madalena)

Esmeria 1832 Africana José Caetano Esmeria Claudiana 1834 Floriana Antônio Joaquim de Camargo Maria (de Domingos

Inácio de Araújo) Vicência 1834 Floriana Antônio Joaquim de Camargo Maria (de Domingos

Inácio de Araújo) Ricarda 1834 Ana Manoel da Cruz Carneiro Maria (de Rita do

Nascimento) Marcolino 1836 Catarina Francisca Rodrigues, viúva Joana Maria Felicidade 1836 Maria Francisco de Paula Marques Genoveva Maria Barbara 1837 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Luiza (de Domingos

Inácio de Araújo) Rufina 1838 Maria José Caetano Esmeria Amaro 1838 Maria

Rodrigues Livre Esmeria

Tereza 1839 Africana Domingos Inácio de Araújo Esmeria Tobias 1841 Luzia Tenente Antônio de Andrade ilegível Sebastião 1842 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Efigênia 1842 Maria José Caetano Esmeria Eulália 1843 Maria José Caetano Esmeria Inácio 1844 Gertrudes José Marcelino Carneiro Esmeria Brígida 1844 Emiliana Livre Esmeria Luiza 1845 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Firmina 1845 Severina Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria João 1845 Maria José Caetano Esmeria Martinho 1845 Eufrásia José Caetano Esmeria Joaquim 1845 Ana

Vicência Livre Esmeria

Gabriela 1846 Escolástica Antônio Joaquim de Camargo Esmeria Marcolina 1846 Maria Domingos Inácio de Araújo Esmeria Iria 1846 Gertrudes José Marcelino Carneiro Esmeria Leopoldina 1846 Ana Veríssimo Inácio Marcondes Esmeria Dulcia 1847 Adriana Joaquim Mateus Branco e Silva Esmeria Posidônio 1847 Maria Jose Caetano - Alferes Esmeria Luiza 1847 Eufrásia José Caetano de Oliveira Esmeria Ana 1849 Josefa Maria Livre Esmeria

Afilhados de Esmeria sem Manoel:

Nome Ano de Bat. Mãe Senhor Padrinho Benedita 1840 Benedita Livre Joaquim dos Santos Martinho 1848 Maria Domingos Inácio de Araújo Henrique (José Caetano de

Oliveira) Generosa 1848 Rosa Lucas Antonio de Araújo Henrique (José Caetano) Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

O escravo Manoel casou-se com Esmeria entre 1835 e 1837. Antes disso já havia

batizado uma africana como par da futura esposa, a afilhada ganhou o nome da

madrinha, Esmeria. Após o casamento, a esposa passou a ser madrinha ao seu lado em

praticamente todos os batismos. Ele batizou africanos, filhos de escravas solteiras,

Page 66: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

66

filhos de escravas casadas, e até mesmo de mulheres livres. Esmeria, anos depois

também apadrinhou crianças sem seu marido.

Os dois eram jovens ao começar a servir de padrinhos, ele tinha 21 anos, segundo

consta na lista de habitantes de 1835, na qual a idade registrada foi 24 anos. Ela tinha 26

em seu primeiro batizado. Não eram novos demais para batizar, mas curiosamente até

aquele momento alguns dos escravos mais velhos da escravaria, Bento, Inácio e Maria

apadrinhavam mais pessoas e depois que Manoel e Esmeria começaram a ser padrinhos,

os outros escravos pouco apareceram nos assentos.112

Manoel também era sapateiro, o que era uma valorização não só de seu preço como

escravo, mas também de seu status frente aos companheiros de escravaria. Além disso,

o fato de serem os dois escravos casados é importante na preferência dos compadres.

Mas o que certamente contribuiu para o bom desempenho do casal foi o fato de terem

como senhor o capitão Domingos Inácio de Araujo, cuja família já tinha o costume de

estabelecer muitos laços de compadrio.

Entretanto, não foi a escravaria de Domingos o principal “mercado” de afilhados de

Esmeria e Manoel. Eles foram padrinhos de escravos de alguns dos proprietários mais

importantes em Palmeira com quem a família Araújo tinha vínculos muito fortes. Os

principais foram o alferes Joaquim Mateus Branco e Silva, genro do capitão, o alferes

José Caetano de Oliveira, seu cunhado113, e seu filho Veríssimo Inácio Marcondes. Além

deles, há escravos de Antônio Joaquim de Camargo e Manoel da Cruz Carneiro, que

assim com os anteriores figuram entre os padrinhos mais requisitados da freguesia.

Manoel e Esmeria com o tempo ultrapassaram os outros padrinhos escravos de seu

senhor e chegaram a um patamar que reunia os maiores proprietários da região. Se

pensarmos nessa trajetória conforme o entendimento de Fragoso, em que indivíduos

representavam casas nas relações de compadrio, então temos dois escravos que

representam a casa do capitão Domingos de Araújo. Não é difícil entender esse vínculo

como maior motivador da boa atuação do casal de escravos como batizantes, ainda mais

entendendo que toda a família senhorial atuava dessa forma. 114

A atuação do casal como compadres acompanhava a da família Araújo e era parte da

estratégia da casa em manter e fortalecer os vínculos com casas de aparentados,

112 Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. 113 FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: reminiscências e tradições. Curitiba: A.M. Cavalcante, 1977. 114 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)".

Page 67: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

67

conforme a teoria de João Fragoso. Porém a importância desses escravos nas relações de

compadrio da casa era diferente da participação dos familiares do capitão. Os laços de

compadrio de Manoel e Esmeria alcançavam uma parte da população que o compadrio

da elite pouco contemplava, chegava às pardas livres e às famílias escravas com uma

amplitude talvez irrealizável pelas famílias proprietárias.

Isso não significa que o casal não tivesse o mérito de tal trajetória, eles certamente eram

valorizados na escravaria, o que levou ao acúmulo de afilhados na comunidade escrava

em geral. Pode ser também que eles tenham sido uma referência de liderança em sua

escavaria, já que mantinham uma relação mais estrita com o senhor. Além do mais, os

dois poderiam interceder por seus afilhados por meio do senhor Domingos de Araújo, já

que ele era próximo dos proprietários desses batizandos.

Essa proximidade com a família do senhor pode ser identificada examinando os

batismos dos filhos de Esmeria e Manoel. O casal teve quatro filhos enquanto casados, e

mais duas que não tiveram o pai registrado em seus assentos de batismo, anteriores ao

casamento. Apenas a primeira filha, Catarina, batizada em 1833, teve padrinhos

escravos. A partir da segunda os compadres de Manoel e Esmeria foram todos senhores,

normalmente da família de Domingos Inácio de Araújo.

Page 68: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

68

Relações de compadrio de Esmeria e Manoel por meio de seus filhos:

Ligação entre padrinhos e afilhado Ligação entre padrinho e madrinha Ligação por casamento

* Abaixo estão os filhos de Manoel e Esmeria, de acordo com seu ano de batismo e, acima, seus padrinhos. Aqueles ligados ao Capitão Domingos Inácio de Araújo, senhor dos batizandos, são seus filhos.

** Maria é escrava do Capitão Domingos, Francisco é escravo de Maria dos Passos. Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

Filhos

Filhos

Page 69: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

69

O casal, como aconteceu com a maioria dos pais cativos dessa localidade, deu

preferência a compadres livres e nesse caso muito bem colocados na sociedade. Essas

escolhas podem ter diversas motivações, uma delas que entre os cativos não existisse

ninguém que se equiparasse em prestígio a Manoel e Esmeria, o que deixaria as relações

de compadrio muito desequilibradas. Outro bom motivo para a eleição dos padrinhos

seria a aproximação à casa senhorial, visando melhorar a relação entre essa família e os

senhores, o que consequentemente traria melhores condições de vida e mais

estabilidade.

Independente dos possíveis benefícios de tais laços, esse casal soube aproveitar uma das

poucas formas de conseguir prestígio tanto entre escravos quanto entre livres. Sua

grande quantidade de afilhados, escravos de senhores que eram ligados à casa do

capitão Araújo ou pardos livres, deu a eles um vasto campo de circulação no qual eram

respeitados e influentes. Não conseguiram modificar a condição jurídica da família, mas

com toda a certeza não eram anônimos em uma massa de escravos e tinham laços de

solidariedade que ampliavam seus horizontes para além dos limites da escravaria.

O fato de batizarem filhos de mulheres livres, o que também aconteceu com alguns

outros padrinhos escravos, é mais uma demonstração de como o mundo dos libertos e

livres de cor era ainda muito próximo ao mundo do cativeiro. O parentesco e outros

laços ligavam essas pessoas. A hierarquia social interna à escravaria não se subverteu

quando alguns elementos passaram à condição de libertos, tanto que Esmeria e Manoel

batizam alguns filhos de mulheres livres, mas, para batizantes de seus filhos, preferiram

outras pessoas. O fator da dádiva, do qual fala Hameister, é importante nesse ponto. Os

compadres de casal eram de condição tanto jurídica quanto social muito superior à

deles. Isso significa não só que o essa família é muito respeitada, mas que ela pode,

numa relação de reciprocidade como essa, obter muitas vantagens desses laços em seu

cotidiano.115

Essa trajetória é um bom exemplo de como as relações de compadrio, quando bem

selecionadas, podem produziu um efeito de crescimento do status de famílias, para isso

o casamento e a estabilidade familiar contribuem substancialmente. A primeira vista o

caso de Manoel e Esmeria causa estranhamento, mas após a análise dos dados gerais e

de outras trajetórias de padrinhos, vemos que ele se alinha perfeitamente a forma como

o compadrio ocorreu em Palmeira. As tendências e o comportamento demonstrados pela

115 HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher na família e na sociedade coloniais.

Page 70: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

70

população em relação a esse laço espiritual, unindo-o a estratégias de sociabilidade

permitiram que um casal de escravos fosse tão procurado para apadrinhar os filhos de

outros cativos e de pardos livres. Vários fatores se somaram a favor disso e Manoel e

Esmeria se tornaram uma referência importante como padrinhos para a base da

população, assim como outros indivíduos ou famílias tiveram esse papel em seus

círculos.

O fato de serem dependentes de um senhor que também tinha o compadrio como

estratégia importante de domínio e poder político, como interpreta Carlos Lima, é um

dos maiores colaboradores para tamanha expressão. Há uma troca entre a família

escrava e a família senhorial, elas colaboram e também se tornam cada vez mais

interdependentes. A forma dessa interdependência é certamente ambígua e desigual, na

medida em que uns são escravos de outros. Certamente há violência, coação e

desconfiança definindo essa relação, mas ela não deixa de ser vantajosa a ambos os

lados. Se para os senhores ela garante uma forte ligação com os dependentes, num

momento em que a força desses laços começava a ser ameaçada pela decadência da

escravidão, para os escravos ela representa uma oportunidade de conseguir respeito e

melhores condições no cativeiro para a família, quem sabe até aumentar suas chances de

liberdade. 116

Todas essas trajetórias revelam um campo de atuação dos padrinhos bem amplo. E essa

atuação por vezes se dividiu em pólos: aqueles que batizavam os filhos da elite, aqueles

que batizavam os filhos de pequenos proprietários, os padrinhos de pessoas pobres e dos

pardos livres, os padrinhos de escravos. Isso não significou que os padrinhos do

primeiro grupo não fizessem parte de outros grupos, mas a relação era sempre vertical.

Então, mesmo que um senhor de escravos batizasse um pardo livre, o maior padrinho

entre os pardos livres nunca batizaria um filho de senhor de escravos. A exceção foram

os padrinhos escravos que muitas vezes chegara a batizar filhos de mulheres libertas ou

livres apesar de sua condição jurídica ser inferior.

No entanto, como defende João Fragoso, não devemos pensar apenas nos indivíduos.

Esses escravos representavam casas, portanto a relação de compadrio com eles seria

símbolo de um laço com a família senhorial, mesmo que indiretamente. É possível

116 LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-1851).

Page 71: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

71

também que, como identificaram Bruna Sirtori e Thiago Luís Gil para as redes de

sociabilidade entre escravos de Vacaria, houvesse uma hierarquia entre as escravarias.117

A hierarquização é um traço característico dessa sociedade e evidenciado pelos assentos

de batismo. Tanto entre livres quanto entre escravos, notamos essa característica

influindo nas teias de parentesco ou compadrio e também ligada ao poder político. O

status social definia o lugar nessa hierarquia, portanto, na medida em que ter agregados

é ter mais dependentes e que o casamento une famílias, o parentesco espiritual

compreendido no compadrio era uma forma de estender ainda mais essas teias que

sustentavam o poder e o prestígio. Manoel e Esmeria, ao tecerem sua própria rede,

contribuíram para o fortalecimento da rede de confiança e solidariedade de seu senhor,

garantindo a ele sustentação suficiente para disputar o poder político da freguesia nova.

117 GIL, Thiago L. & SIRTORI, Bruna. Bom dia, padrinho: Espaço e parentesco na formação de redes entre cativos nos campos de Vacaria, 1778-1810. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10, nº 1 e 2, Jan. – Dez., 2009.

Page 72: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

72

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações de compadrio em Palmeira, um local de população pequena e que ainda

criava seus laços definidores das posições sociais e da organização política, foram parte

importante na interação social daquela população. Se tratando da elite, os laços de

compadrio, assim como parentescos sociais fundados pelo casamento, poderiam ser (e

de fato eram) usados para agregar apoiadores, clientes.

Foi evidente também a importância dos dependentes nessas teias formadas pelo

compadrio. Para os grandes proprietários, ter dependentes era poder sobre um grupo

maior de pessoas que sua família. Assim como percebeu Cacilda Machado quanto aos

casais mistos, muitas vezes o senhor conquistava agregados quando seus escravos

casavam com pessoas de outra condição. Quanto maior o número de dependentes, mais

prestígio teria a família e mais cresceria seu circulo de reciprocidade.118

Como observou Horácio Gutiérrez quanto aos proprietários de terra no Paraná, “para os

padrões locais de propriedade e riqueza, e frente aos que nada tinham, esses modestos

fazendeiros encarnavam modelos de opulência e fartura, eram os senhores do mundo e,

claro, os donos dos meios de produção e de subsistência.”119 Para a população mais

pobre, para os libertos e os pequenos proprietários, o vínculo com essas pessoas era

símbolo sobretudo de proteção e ter compadres tão respeitados gerava um impacto em

seu status social. Já para os fazendeiros, essas relações também eram essenciais,

legitimando seu poder e aumentando seu prestígio.

A grande questão que se coloca ao se deparar com todas essas relações de compadrio, é

a da reciprocidade. É o que garante a manutenção e renovação desses laços e o que

define as escolhas. Entre escravos a reciprocidade também é um fator crucial na escolha

dos padrinhos, pois é uma das formas de se ligar a pessoas livres, conseguir proteção e

benefícios no cativeiro. Como observaram Gudeman e Schwartz, mesmo que houvesse

a esperança de que um padrinho comprasse a alforria do afilhado, isso dificilmente

acontecia.120 Mas se diretamente os padrinhos não influenciassem na libertação dos

afilhados, eles poderiam ajudar a família a ganhar um status diferenciado por sua 118 MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004. 119 GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004. P. 110. 120 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Page 73: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

73

ligação com pessoas livres e em algum momento, membros dessa família poderiam ter

acesso à alforria.

As crianças que foram filhas de pessoas livres com escravos tiveram padrinhos que

demonstram bem essa situação. Algumas nasceram livres, outras escravas e estar no

cativeiro exigiu estratégias diferentes de sociabilização, que aproximassem a família, e

principalmente o batizando do mundo dos livres. Já quando essas crianças tinham a

condição jurídica de livre, era mais importante manter os laços de solidariedade com

aqueles que estavam mais próximos, na convivência diária.

Os “pardos livres” tinham essa preocupação, batizando escravos e dando seus filhos

para eles batizarem. A aproximação muito maior dessa parcela da população com a

comunidade cativa era sintoma de que a ascensão social era muito difícil além desse

ponto. Kátia Mattoso ao estudar a população livre de cor, identificou essa dificuldade na

Província de São Paulo. A ascensão social dessa população era demarcada pela cor, que

não era definida pela herança étnica ou racial e sim pela posição social e ascendência

escrava. Então, para ascender socialmente era necessário “embranquecer”. Para isso o

casamento, o compadrio e todo tipo de relação com pessoas brancas era de grande

ajuda.121

A freqüente burla das regras estabelecidas pelo Arcebispado da Bahia para guiar os

batismos também foi uma característica bem acentuada nessa sociedade. Três padres

serviram como padrinhos mais de cinco vezes, um deles foi o mesmo que ministrou o

batismo. Foi comum também o casal de padrinhos convencional, homem e mulher,

fosse substituído por uma dupla de padrinhos, o que não era permitido segundo as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Além disso, uns poucos batizados em

que o senhor apadrinhava seu próprio escravo foram encontrados. Essas características

também evidenciaram o papel masculino nessa sociedade, que eram chefes de famílias,

proprietários de terras, força política e os definidores da ordem hierárquica, o que é bem

exemplificado pela constante associação dos padrinhos principais de Palmeira a suas

patentes militares.

Em geral, os resultados corroboram os padrões encontrados por Gudeman e Schwartz,

também por Cacilda Machado, para outras regiões.122 Mas o que realmente se destacou

121 MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 122 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII

Page 74: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

74

nesse estudo foi a importância da formação familiar, não só aumentando as chances de

as pessoas serem escolhidas para compadres, mas também na cooperação dos membros

da família em estabelecer essas teias de sociabilização e comprometimento entre as

casas, conforme teoriza Fragoso.123 Os escravos serviram a esses modelos, aqueles que

se destacaram na função de padrinhos e madrinhas tinham senhores que também foram

importantes nesse papel ou tiveram seu prestígio demonstrado de outras formas. Mas a

participação escrava nas relações de compadrio não foi de maneira alguma submissa ou

imposta. Os padrinhos e madrinhas cativos também utilizaram essa brecha na limitação

de seu alcance social e espacial como parte importante de estratégias motivadas pela

proteção de suas famílias, pela facilitação das constantes negociações que envolviam as

condições de cativeiro e pela esperança de conseguir liberdade, mesmo que para seus

descendentes. Era parte do processo de “pacificação” das senzalas segundo Góes e

Florentino, tornando possível a convivência entre senhores e escravos e entre os

próprios escravos, tão marcada pela violência do cativeiro. Mas também era um sinal

dos empreendimentos de cada indivíduo escravo em favor da libertação de sua

família.124

para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004. 123 FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 124 FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997.

Page 75: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

75

FONTES

Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros

2 e 3.

Arquivo do Estado de São Paulo. Listas de habitantes da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Palmeira, 1835. Fonte Secundária:

COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985.

Page 76: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

76

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, A. A. Pais, padrinhos e o Espírito Santo: um reestudo do compadrio. In.: (Vários) Colcha de Retalhos. Estudo da família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.

BALHANA, A. P.; WESTPHALEN, C.; MACHADO, B. P. História do Paraná. V. 1. Curitiba: Grafipar, 1969. FRANCO NETTO, Fernando. Famílias escravas nos campos gerais do Paraná In.: Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba. 2009.

BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina, Vol. III. São Paulo: Edusp, 2001.

BRÜGGER, Silvia M. J. & KJERFVE, Tânia M. G. Compadrio: Relação social e libertação espiritual em sociedades escravistas. (Campos, 1754-1766). In: Estudos Afro-Asiáticos. (20):223-238, julho de 1991.

COSTA, Iraci del Nero da; GUTIÉRREZ, Horacio. Paraná: mapas de habitantes, 1798-1830. São Paulo: IPE, 1985.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. Edusp: São Paulo, 10ª edição, 1930.

FERREIRA, J. C. V. Municípios paranaenses: origens e significados de seus nomes. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2006.

FLORENTINO, Manolo, GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1997.

FRAGOSO, João. "Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)". In: FRAGOSO, João, SAMPAIO, Antônio C. J. de & ANASTASIA, Carla M. J. Conquistadores e Negociantes: história de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FRANCO NETTO, Fernando. População, escravidão e família em Guarapuava, século XIX. Guarapuava: Ed. da UNICENTRO, 2007.

Page 77: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

77

FREITAS, Astrogildo de. Palmeira: reminiscências e tradições. Curitiba: A.M. Cavalcante, 1977.

GIL, Thiago L. & SIRTORI, Bruna. Bom dia, padrinho: Espaço e parentesco na formação de redes entre cativos nos campos de Vacaria, 1778-1810. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10, nº 1 e 2, Jan. – Dez., 2009.

GUDEMAN, Stephen. Spiritual Relationship and Selecting Godparent. In: Man, New Series vol. 10. (2). Jun. 1975. Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1975. p. 221-237.

GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

GUTIÉRREZ, Horacio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, n. 9, 2004.

GUTIÉRREZ, H. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas primeiras décadas do século XIX. Revista História, São Paulo, v. 25, n.1, pp. 100-122, 2006.

HAMEISTER, Martha Daisson. Registros Batismais: Documentos para reavaliar o papel da mulher na família e na sociedade coloniais. In.; Simpósio temático Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidade, Deslocamentos. Florianópolis: UFSC, 2010.

LIMA, Adriano B. M. Trajetórias de Crioulos: Um estudo das relações comunitárias de escravos e forros no Termo da Vila de Curitiba (c. 1760 – c. 1830). Dissertação de Mestrado, UFPR, Curitiba, 2001.

LIMA, Carlos A. M. Tráfico Ilegal para a Fronteira Agrária: Domingos Inácio de Araújo (1830-1851). Anais do 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009.

LIMA, Carlos A. M. ; MELLO, K. A. V. A distante voz do dono: a família escrava em fazendas de absenteístas de Curitiba (1797) e Castro (1835). Afro-Asia (UFBA). Salvador, v. 31, p. 127-162, 2004.

LOVEJOY, Paul. A Escravidão na África: Uma história de suas transformações. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2002.

Page 78: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

78

MACHADO, Cacilda. "Casamento & Compadrio: estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR)". In: XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2004.

MARCONDES, Renato Leite. Formação da rede regional de abastecimento do Rio de Janeiro: a presença dos negociantes de gado (1801-1811). In.: Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, PP. 41-47.

MARTINS, Romário. História do Paraná. Travessa dos Editores, Curitiba, 1995.

MATTOSO, Kátia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

SCHWARTZ, Stuart. B. “Abrindo a roda da família: Compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia”. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984.

SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

WESTPHALEN, Cecília M. A Introdução de escravos Novos no Litoral Paranaense. In: Revista de História. Vol. XLIV, ano XXIII, n. 89. Curitiba: Jan-mar/1972.

Page 79: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

79

ANEXOS

1 . Batizandos filhos de mães escravas com pais livres e conhecidos: Nome Mãe Pai Senhor da mãe Padrinho Madrinha Rita Benta Prozencio de

Almeida Tenente Domingos Machado

Américo Pinheiro Francisca Maria

Mateus Brígida Felipe dos Santos (forro)

Felisberto dos Santos

Manoel Teixeira Gertrudes Andrade

Calixto Brígida Felipe dos Santos (forro)

Felisberto dos Santos

Francisco (Maria dos Passos)*

Ana Pinheira (parda livre)

Euzébio Brígida Felipe dos Santos (forro)

Felisberto dos Santos

Joaquim de Andrade

Jesuína Andrade

Inocêncio Brígida Felipe dos Santos (forro)

Felisberto dos Santos

Justiniano (Maria dos Passos)*

Ana Maria

Teresa Brígida Felipe dos Santos (forro)

Felisberto dos Santos

Antonio (Antônio de Andrade)*

Luiza (Antônio de Andrade)*

Maria Mariana Joaquim Fernandes (forro)

Francisco das Chagas

Antonio Rodrigues

Emilia (Clara dos Santos)*

Joaquina Joana Joaquim Fernandes (forro)

Francisco das chagas

João Antonio Rufina Maria

Joaquina Rita José da Silva (forro)

Inácia Martins José Matias Freitas

Gertrudes Andrade (mulher)

Pedro Rita José da Silva (forro)

Inácia Martins Francisco Teixeira Freitas

----

Benedita Vitória Inácio (forro) Joaquim Batista Lourenço Justiniano

Maria de Araújo

Maria Rita José da Silva (forro)

Joaquim Pinto José de Andrade Maria Balbina

Gertrudes Rita José da Silva (forro)

Joaquim Pinto Manoel dos Santos

Maria Narcisa Bela

Maria Rita José da Silva (forro)

Joaquim Pinto Manoel Inácio Ludovina dos Santos

Cesário Maria Francisco Batista

Manoel Moreira Ricardo Franca Dona Clara dos Santos

Lucio Antonia Francisco de Paula (forro)

Maria Tavares Domiciano Pinto Maria Develancia

Ana Antonia Francisco de Paula (forro)

Maria Tavares José Inácio de Freitas

Gertrudes Maria

José Antonia Francisco de Paula (forro)

Maria Tavares Inácio dos Santos Laura da Rocha

Calorina Antonia Francisco de Paula (forro)

Maria Miranda Isaias José dos Santos

Rosa Maria

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

* Entre Parênteses estão os senhores desses escravos.

Page 80: universidade federal do paraná monique alessandra seidel o ...

80

2. Batizandos livres, filhos de pais escravos com mães livres: Nome Mãe Pai Senhor do pai Padrinho Madrinha Fidencio Ana Maria Antonio Manoel de Paula

Teixeira João Teixeira Maria Possidonia

(esposa) Maria Constancia Antonio Manoel de Paula

Teixeira Malaquias (Cândido de Paula)*

Angélica (José Cardoso)*

Bento Constancia Maria

Antonio Manoel de Paula Teixeira

Bento (João de Paula Teixeira)*

Maria Carneira

Generosa Constantina Maria

Antonio Manoel de Paula Teixeira

Ananias (José Teixeira)*

Lauriana Rita – Forra

Maria Constantina Maria

Antonio Manoel de Paula Teixeira

Inácio Jose Domingos

Sebastião Constantina Maria

Antonio Manoel de Paula Teixeira

Telesforo (Francisco de Paula)*

Rosa Maria – Forra

Joana Constantina Maria Pontes

Antonio Manoel de Paula Teixeira

Francisco de Almeida

Claudiane Antunes

Pedro Angélica Maria Joaquim Manuela Monteiro

Pedro Prestes Rosa Maria (esposa)

José Benedita Maria Anastácio Manoel Mendes Manoel Teixeira Emergildes Torres Benedito Ana Vicência Teodoro Salvador

Machado José Cardoso Rita Maria Barbosa

(esposa) Escolástica Francisca Maria Teodoro Salvador

Machado José Francisco Godoi

Francisca Maria (irmã)

---- Juliana Julio Maria da Conceição

Benedito (Maria dos Passos)*

Lucinda (Maria dos Passos)*

Paula Juliana Francisca

Julio herdeiros de Maria da Conceição

Bento Romualdo Maria Almeida

Fortunato Leodora Francisco Rita do Nascimento

Lourenço (Rita do Nascimento)*

Marta (Rita do Nascimento)*

Benedito Luzia da Rosa José Vigário Generoso Vieira

Vigário Generoso Maria Rosa

Maria Maria Francisca Antonio Maria Rita José Antonio Benedita Maria Irineu Maria Francisca

Xavier Antonio Maria Rita Jose Manoel Ana Joaquina

Redomina Maria Francisca Xavier

Antonio Maria Rita Prudente Barbosa Maria da Luz

Felisbino Maria Xavier Antonio Benedito Aires Manuel Jordão Maria do Nascimento

Firmina Maria Xavier Antonio Benedito Aires Francisco Xavier Ana Placidina Rosa Maria Talegrafo Francisco

Teixeira José (Milequina dos Santos)*

Dorotea (Milequina dos Santos)*

Francisco Tomasia Francisco Nossa Senhora das Neves

José da Silva Joana Gonçalves (esposa)

Fonte: Assentos de batismos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Palmeira. Livros 2 e 3.

* Entre Parênteses estão os senhores desses escravos.