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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa TERRA EM TRÂNSITO: NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DOS SERTÕES NORDESTINOS Mayara Alexandre Costa Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientador: Profª Martha Alkimin de Araújo Vieira Rio de Janeiro Abril de 2014 1

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

TERRA EM TRÂNSITO: NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DOS SERTÕES NORDESTINOS

Mayara Alexandre Costa

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Orientador: Profª Martha Alkimin de Araújo Vieira

Rio de Janeiro Abril de 2014

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TERRA EM TRÂNSITO: NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DOS SERTÕES NORDESTINOS

Mayara Alexandre Costa

Orientadora: Professora Matha Alkimin de Araújo Vieira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Literatura Comparada. Examinada por:

_________________________________________________

Presidente, Profa. Doutora Matha Alkimin de Araújo Viera

_________________________________________________

Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna – UFRJ

_________________________________________________

Profa. Doutor Ary Pimentel – PPG Letras Neolatinas - UFRJ

_________________________________________________

Prof. Doutor Ricardo Pinto de Souza – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Profa. Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñez – UERJ, Suplente

Rio de Janeiro Abril de 2004

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COSTA, Mayara Alexandre

Terra em trânsito: narrativas contemporâneas dos sertões Nordestinos / Mayara Alexandre Costa. – Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014.

Martha Alkimin de Araújo Vieira, orientadora. Dissertação (mestrado) – UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2013.

1.Sertão nordestino 2. espaço; regionalismo; Cinema Novo;

globalização ;Galileia; O céu de Suely; Deserto Feliz. I. VIEIRA, Martha Alkimin de Araújo. II. Faculdade de Letras, UFRJ. III. Título.

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Título Terra em trânsito: narrativas contemporâneas dos sertões nordestinos

Resumo

Este trabalho investiga as imagens do sertão nordestino produzidas por três narrativas contemporâneas: Galileia (2008), romance de Ronaldo Correia de Brito, Deserto Feliz (2007), filme de Paulo Caldas e O céu de Suely (2006), filme de Karin Ainouz. Será observado de que maneira as imagens das referidas narrativas se relacionam com o acervo visual e discursivo produzido ao longo do século XX sobre esse território. O intuito é apontar como as narrativas que voltam ao sertão nordestino, no início do século XXI, redimensionam as questões que o definiram. Para tanto, será discutido o modo como as imagens e temas que caracterizaram essa territorialidade como dotada de uma identidade fixa, um espaço natural, essencial e doador de uma identidade originária, reaparecem nessas obras, entrelaçadas a outros discursos que possibilitam sua ressignificação. As obras aqui analisadas iluminam outras tramas do sertão nordestino, enfatizando os variados trânsitos que o atravessam nas últimas décadas.

Palavras-chave

Sertão nordestino; espaço; regionalismo; Cinema Novo; globalização; identidades culturais; Galileia; Deserto feliz; O céu de Suely;

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Título

Tierra en tránsito: narrativas contemporáneas de los sertones nordestinos

Resumen

Este trabajo estudia las imágenes del sertón nordestino producidas por tres narrativas contemporáneas: la novela Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, y las películas Deserto feliz (2007), de Paulo Caldas, y O céu de Suely (2006), de Karin Ainouz. Será observado de qué manera las imágenes de las referidas narrativas se relacionan con el acervo visual y discursivo producido a lo largo del siglo XX sobre ese territorio. El objetivo es señalar cómo las narrativas que vuelven al sertón nordestino, en el inicio del siglo XXI, replantean las cuestiones que lo definieron. Para ello, será discutido el modo como las imágenes y temas que caracterizaron esa territorialidad como dotada de una identidad fija, un espacio natural, esencial y generador de una identidad originaria, reaparecen en esas obras, entrelazadas con otros discursos que posibilitan su resignificación. Las obras aquí analizadas revelan otras tramas del sertón nordestino y enfatizan los diversos tránsitos que lo atraviesan en las últimas décadas.

Palabras clave

Sertón nordestino; espacio; regionalismo; Cinema Novo; globalización; identidades culturales; Galileia; Deserto feliz; O céu de Suely;

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AGRADECIMENTOS

Às três mulheres que me fizeram entender desde muito pequena que a palavra “mãe” é um repositório de clichês insuficientes para definir um ser humano, os laços de família, os afetos e as relações. Assim que agradeço imensamente à Dona Lulu por ser meu primeiro grande enigma no mundo. A mulher que certamente me fez devorar bibliotecas em busca de sentidos para suas (des)razões, e que me fez perceber que o ser humano foge a qualquer entendimento.

À Vanderlete por ter sido mãe-irmã-amiga, mas, sobretudo, por ter ido embora. Por ter ampliado a minha compreensão humana e geográfica quando criança. Ouço ainda murmúrios incrédulos pelos corredores da casa anunciando seus itinerários: periferia de São Paulo, garimpo nas fronteiras, confins de Goiás. Por ter me deixado como herança genética o desejo de mundo. Minha heroína Hermila-Suely.

À Vanda por todo o afeto e dedicação. Pela doçura com a qual sempre me acolheu e pelas palavras de incentivo e amor nas horas mais difíceis.

Ao meu pai-avô Seu Raimundo pela música e pelo silêncio. Pelos versos, canções, marchinhas e repentes recitados nos almoços de domingo.

Às minhas sobrinhas Natália, Scarlet, Gabriela, Thalyta, Marina, Danielle, Raíssa, Ana Clara e Mila, por preencherem a casa de gritos e sorrisos. Verdadeiros girassóis iluminados.

Aos professores, Gilberto e Kátia, por desencadearem as primeiras intuições e interrogações na minha vida acadêmica. Por insistirem para que eu viesse ao Rio de Janeiro fazer o mestrado e acreditarem na minha capacidade mesmo quando eu mais duvidei dela. Por me darem um canto e me acolherem tão amavelmente. Serei eternamente grata.

À professora Martha Alkimin pela orientação atenta e precisa. Pelas palavras sempre animadoras e, sobretudo, pela paciência, mesmo nos momentos mais desesperadores.

Aos amigos Diana e Renan, por acompanharem toda a minha travessia. Por me incentivarem, me ouvirem e me apoiarem incondicionalmente nos últimos 14 anos.

A Fernando Ralfer, por ter sido um conselheiro virtual delicado e atento em todo o processo de construção dessa dissertação e o de re-construção de mim mesma.

A Leonardo Bermeo, Rodrigo Jorge, Karen Basaure, Dionísio, Henrique Monnerat, Diogo, Érika dedico o meu sincero obrigado pelas sugestões de leitura, pelas reuniões, cafés e partilha de angústias e saberes ao longo desse trabalho.

A Mario meu companheiro inseparável no decorrer da escrita desse trabalho, com quem compartilhei todas as aflições, as dúvidas e as alegrias desse processo. Obrigada por estar sempre por perto.

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À FAPEMA pela bolsa concedida.

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SUMÁRIO

1-INTRODUÇÃO...................................................................................................... 9

2 - A INVENÇÃO DO SERTÃO NORDESTINO COMO TERRITÓRIO OUTRO

DA NAÇÃO..............................................................................................................24

3- ESTE LUGAR É OUTRO ..................................................................................79

4- SOB PÉS FEMININOS: DERIVAS NO SERTÃO PARABÓLICO DE O CÉU

DE SUELY E DESERTO FELIZ................................................................................106

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………….....139

6- REFERÊNCIAS.................................................................................................142

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À Vanderlete, com amor e profunda admiração.

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Eu só vivo no mundo porque não há outro lugar para viver. Porque o mundo, de São Paulo a Recife e aos lugares todos onde se rodam os filmes de cinema, o mundo mesmo dói demais.

(Felinto, As mulheres de tijucopapo)

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1. INTRODUÇÃO

Em uma passagem do livro A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, o

escritor Rodrigo S.M., na tentativa agônica de narrar a vida da nordestina Macabéa,

menciona a seguinte afirmação: “vou contar as fracas aventuras de uma moça numa

cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido

de chita e sem nenhuma datilografia” (p. 15). Neste trecho, o narrador põe em evidencia

algumas questões que este trabalho pretende sublinhar. Ao que parece, existe uma

“cidade-inimiga” que se configura como um espaço voraz, no qual a personagem

Macabéa é um “parafuso dispensável”, movendo-se por um lugar que não foi feito para

comportá-la. Em contrapartida, a afirmação abre um precedente para pensarmos que a

personagem teria um lugar no mundo e que esse seria seu espaço de origem – o Sertão

de Alagoas – onde datilografia é desnecessária e a vestimenta tradicional de chita ainda

lhe cairia bem. Façamos um paralelo tendo em vista essa reflexão, lançando um olhar

para outra obra numa outra configuração narrativa.

Entra em cena o filme O céu de Suely (2006). Hermila personagem principal do

filme é uma espécie de Macabéa que “volta pra casa” após viver dois anos em São

Paulo. Ao tracejar o caminho de volta da personagem, o filme ao invés de evidenciar o

encontro apaziguador e restituidor com o lugar de afeto – Iguatu, cidade do interior do

Ceará – nos coloca frente a conflitos que tensionam o processo de identificação e

desidentificação da personagem com seu lugar de origem, bem como, o seu desejo

impetuoso de ganhar o mundo, de ocupar outros lugares que não aqueles que lhe são

destinados e impostos.

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O filme, vinte e nove anos mais tarde, parece lançar uma pergunta de volta, seria

o sertão que estava presente no imaginário de S.M, uma porca para estes parafusos?

Seria ele o verdadeiro espaço de conformação para Hermila-Macabéa? E este sertão,

ofereceria experiências tão radicalmente contrastantes às vivenciadas na periferia de São

Paulo, lugar do qual Hermila retorna porque: “era bom morar lá, mas era caro”? O que

motiva sua ida, o que a leva de volta?

A Iguatu flagrada pela câmera de Karin Ainouz aponta para uma nova

representação das cidades do interior do nordeste brasileiro. A visão muitas vezes

reiterada do sertão como espaço mítico do paraíso reencontrado ou como o lugar da

escassez e do atraso, agora é substituída por a de um nordeste em que se bem é verdade

que ainda permanecem rastros de suas imagens reconhecidas e consagradas – de

pobreza, “subdesenvolvimento” –, hoje elas convivem com novas discursividades e

visibilidades.

Desse modo, o sertão cearense que surge pela fresta aberta pelo filme de Karin é

povoado por festas eletrônicas que tocam músicas produzidas pela própria indústria

fonográfica nordestina, versões brasileiríssimas de músicas internacionais em ritmo

forró/brega, numa evidente articulação entre local e global. Um sertão que deixa de ter

traços eminentemente rurais para se configurar como urbano e economicamente

movimentado pelo comércio formal e informal. Nele não figuram mais trabalhadores

rurais afetados pela impotência das terras, mas moto-taxistas, frentistas de postos de

gasolina, vendedores de CDs, DVDs piratas e jogos de apostas.

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Muito embora, como aponta Katia Augusta Maciel (2009), “em se tratando da

ideia que a maioria dos brasileiros tem a respeito do interior semiárido do Nordeste,

falar de urbanidade dos sertões soe quase como um oximoro” (p. 21), será neste sertão

atravessado pelos influxos do urbano, sertão-cidade, híbrido, mutável, por isso mesmo,

catalisador de todas as problemáticas que constituem sua condição, que algumas

narrativas contemporâneas irão encenar suas histórias. Obras que tentam fazer com que

este espaço cristalizado “estremeça, rache, mostrando a mobilidade de seu solo, as

forças tectônicas que habitam seu interior, que não permitem que o vejamos como efeito

de sedimentação lenta e permanente de camadas naturais ou culturais”

(ALBUQUERQUE, p. 36, 2011).

O filme de Karin iluminou e lançou um ponto de inflexão em relação à

afirmação mencionada do livro A Hora da estrela. No sertão de Hermila não há moças

de chita, suas roupas curtíssimas, seus cabelos com mechas amarelas (feitas em São

Paulo) evidenciam de algum modo aquilo em que, nos termos de Raymond Willians, se

transformou o sujeito – “um canal sobre o qual os produtos navegam e desaparecem”

(apud. ORTIZ, 2006, p. 147). Este atravessamento por si só, questiona a ideia da

existência de um sertão livre dos influxos da globalização.

Renato Ortiz em Mundialização e cultura (2006) parte da premissa de que os

processos globais transcendem os grupos, as classes sociais e as nações. Milton Santos

afirma que o espaço inteiro se mundializou: “já não existe um único ponto do globo que

se possa considerar como isolado” (2008, p.136). Entretanto, enquanto esse fenômeno é

apontado de variadas formas em diferentes lugares, ainda há um determinado

silenciamento desse processo em paisagens como as do campo, da floresta e dos sertões,

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lugares agenciados para parecerem cristalizados, quase sempre referidos como

territórios isolados e infensos aos influxos temporais.

A questão, por exemplo, aparece num texto de Walnice Nogueira Galvão (2004),

que ao constatar que há uma tendência ampla nas narrativas brasileiras contemporâneas

de retorno às entranhas do país, movimento que não se limita apenas ao espaço do

sertão, mas que também se estende “para outros “interiores” não urbanos, o povoado, a

fazenda, a floresta” (p.376), assevera que:

o enfoque deslocou-se outra vez. Ao situar-se em espaços não metropolitanos, o cinema – e não só aqui, outros emitem sinais similares – parece estar testando em clave imaginária saídas para a crueldade da globalização e da desagregação do trabalho industrial, indagando se valores destoantes permaneceriam em latência, fora das metrópoles (p.376).

Numa estratégia parecida com a de Rodrigo S.M., que cogita o espaço do sertão como o

lugar onde Macabéa deveria permanecer, Walnice Nogueira cogita os espaços

interioranos do país como lugares em que o movimento histórico não se instaura com a

mesma violência ou intensidade da metrópole. Conjectura que, embora suponha um

gesto novo, corrobora um discurso historicamente construído que a partir do início do

século XX inventariou o imaginário dos espaços interiores como lugares pré-modernos

e por esse motivo, espaços da negação do sistema capitalista e da industrialização.

Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista à revista Azougue, pronunciou um

ponto de vista diferente sobre o interior do Brasil. Para o antropólogo, a selva, por

exemplo, não seria um lugar livre dos influxos do capital, pelo contrário. Sobre a

Amazônia, afirma:

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A Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, certamente que é, acho que o Brasil se deslocou pra Amazônia. Isso eu já tinha dito em 1992 (...). Tudo acontece lá, o tráfico de drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá. Para o bem ou para o mal, a Amazônia virou o lugar dos lugares, natural como cultural, aliás; é lá que está sendo cozinhado um gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor ideia do que está se passando. Multidões gigantescas indo a bailes que misturam funk, calipso, samba, música eletrônica, com Djs famosíssimos em Belém do Pará que são caboclos, peões de obra, os peões do Chico Buarque do “Operário em construção” estão lá pilotando prato de toca-disco (2008, p.29)

As obras selecionadas para análise neste trabalho passeiam pelos espaços do

interior do país, isto é, nas referidas “saídas” de que fala Walnice Nogueira. Entretanto,

ao invés de oferecerem retratos alentadores, ou supostos locus amoenus – para onde os

habitantes da pólis poderiam olhar tranquilos e esperançosos ao saber que se tudo der

errado, haverá ainda pontos de fuga – essas narrativas devolvem a indagação: Que

condições há no campo, na floresta ou no sertão para conter os influxos das experiências

globalizantes? Por que motivos esses espaços conservariam “valores destoantes” se o

processo do qual se foge, de um modo particular, já está lá?

Este trabalho, num primeiro momento, aponta alguns caminhos sobre como foi

edificado um imaginário a respeito do sertão nordestino, que o pensa como um lugar

com temporalidades e espacialidades que não se modificam, nem tampouco sofre

atravessamentos. Imaginário que possibilita que algumas narrativas, como as citadas por

Walnice Nogueira, façam o caminho de volta ao sertão com o objetivo de restituir um

sentido perdido na experiência desagregadora da metrópole. Para isso se partiu do

pressuposto de que o referido locus não é um espaço natural, essencial e doador de uma

identidade originária; ele é uma representação interessada, resultado de um inventário

tecido no interior de diversas imagens e discursos, que se repetiram exaustivamente

através de produções artísticas comprometidas com a construção do imaginário

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nacional. O resultado do mapeamento empreendido pelos dispositivos de nacionalidade

encerra um número múltiplo de subjetividades em uma identidade aparentemente

uniforme e determinada pelo território. O objetivo de percorrer esse caminho é pontuar

de que modo as narrativas contemporâneas que retornam ao sertão recuperam ou

rompem as identidades que foram moldadas nos discursos que constituíram esse espaço.

Uma das hipóteses que talvez explique a manutenção dos espaços interiores – no

caso específico trabalhado aqui, o sertão nordestino – a partir de feições que a tradição

lhes deu, diz respeito a um certo abandono dos espaços rurais e não metropolitanos nas

narrativas brasileiras a partir dos anos 70. A invisibilização dos processos pelos quais

passaram essas espacialidades nos últimos anos dificulta sobrepor um novo feixe de

imagens que deem conta do permanente tornar-se e desfazer-se desses territórios. No

caso da literatura, especificamente, num trabalho recente da pesquisadora Regina

Dalcastagnè (2012), que fez um mapeamento do romance brasileiro contemporâneo - no

qual constatou, dentre outras coisas, uma ausência escandalosa de determinados grupos

nas obras nacionais – apontou que o local da narrativa contemporânea por excelência é a

metrópole, nada menos que 82,6% dos romances se passam nas grandes cidades, em

particular, as histórias se concentram no Rio de Janeiro e em São Paulo. O que se por

um lado reflete a realidade do país, que se tornou a partir dos anos 1960

majoritariamente urbano, com um contingente populacional concentrado nestas duas

cidades, por outro, despreza um número expressivo de espaços e suas respectivas

singularidades e multiplicidades.

O escritor angolano José Eduardo Agualusa (2008) destaca essa concentração

espacial na literatura brasileira contemporânea, que segundo ele divorciou-se do mundo

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rural. As obras que se concentram em questões cotidianas, ou mesmo, as que vão às

periferias das cidades, são majoritariamente produzidas a partir de uma referência ao

eixo Rio - São Paulo. Não nos chegam muitas obras que adentrem no cotidiano urbano

ou mesmo periférico de Manaus, por exemplo.

As consequências do processo apontado por Agualusa - a invisibilização do

mundo rural e dos espaços não metropolitanos do país - não configuravam para mim um

problema, até o momento em que tive que enfrentar a sala da aula. Trabalhando num

município de aproximadamente 21 mil habitantes, em Porto Franco, interior do

Maranhão, lecionei em escolas que recebiam desde os filhos de pequenos agricultores,

de funcionários públicos e comerciantes, aos filhos dos políticos e da elite agropecuária

da região.

Ao desenvolver um trabalho interdisciplinar proposto pela escola, envolvendo a

compreensão das noções de campo e cidade (e, por extensão, rural x urbano, sertão x

litoral) através da perspectiva das distintas áreas, pude perceber o estranhamento dos

estudantes com a afirmação de que a zona rural era uma parte expressiva do território

que circunscrevia o município em que viviam. Parecia que um espaço que era

geograficamente contíguo estava na verdade a quilômetros de distância dali, num lugar

longínquo, irreconhecível. Em várias discussões ficou explícito que muitos deles não se

identificavam com os elementos dessa territorialidade e que achavam o próprio termo

“rural” pejorativo. A reação dos estudantes chamou a atenção de todos os professores

envolvidos, gerando uma série de perguntas: O que provocaria essa desidentificação e

até mesmo o “apagamento” dessa territorialidade quando alguns ali inclusive viviam em

chácaras, sítios e fazendas da região?

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A princípio, a primeira conclusão superficial nos levou a acreditar que a reação

dos estudantes era fruto de uma brincadeira ou quem sabe até mera implicância juvenil.

Era completamente contrário a qualquer lógica não reconhecer que o espaço circundante

e o lugar onde os pais de alguns colegas executavam tarefas agrícolas, era parte da zona

rural da região. Depois começamos a supor que os alunos talvez estivessem acometidos

por uma “cegueira branca” provocada pela péssima qualidade do ensino que propagou a

desinformação geográfica e lhes tirou a capacidade de ver a própria paisagem que os

cercava.

Ao ouvir melhor o ponto de vista dos alunos comecei a considerar que ao invés

de uma limitação geográfica ou mesmo recusa cínica, estes estudantes na verdade não

queriam estar associados a uma dada imagem de zona rural; na qual nem se

reconheciam, nem mesmo achavam pertinente ao lugar que habitavam. Uma imagem

que, quer queira, quer não, foi fabricada por uma cultura hegemônica, que inventariou

esse outro não-hegemônico e o inseriu numa relação assimétrica de poder. O que se

podia ver nos próprios textos veiculados no trabalho interdisciplinar – sobretudo nos

textos literários – era a afirmação da ideia de que o espaço rural era um referente

fechado, delimitado pelo território, detentor de características estáveis e fixas, marcado

ora por definições idílicas, lugar da natureza, da inocência, e ora como um mundo

atrasado, passível de existir apenas no passado. Nessas narrativas, campo e cidade se

definiam como espaços antagônicos, oscilando num jogo de opostos entre

atrasado/evoluído, tradicional/moderno, incivilizado/civilizado, no qual – dentro de

uma sociedade que elegeu o moderno como valor a ser assimilado e mimetizado de uma

ponta à outra – os primeiros pólos desses pares estão associados a qualidades negativas

que devem ser superadas e suprimidas para alcançar um dado referente ideal.

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Desse modo, havia na reação dos estudantes, por um lado, uma forte vontade de

estar em consonância com as narrativas hegemônicas, de negar a existência de um

espaço rural ao redor por ele não corresponder às expectativas de um “modelo

moderno”. Ficava nítida a necessidade de não estar vinculado a um lugar no passado e

disputar um lugar no presente, de afirmar e ser reconhecido pelos valores cosmopolitas

– visibilizados e aplaudidos. Por outro lado a recusa perpassava a dissonância profunda

entre o que se dizia próprio do campo e o que permeava a experiência dos jovens que

viviam naquela localidade.

Os alunos que moravam em propriedades rurais alegavam que não faziam parte

deste universo porque ao invés de andar a cavalo, plantar, colher ou ordenhar vacas,

como geralmente se imagina sobre o cotidianas no campo, suas rotinas se dividiam

entre assistir programas da tv à cabo e zapear entre páginas de compartilhamento, jogos

e redes sociais na internet. Espaço virtual através do qual estes jovens se comunicavam,

escreviam, publicavam suas fotos, faziam seus próprios vídeos e entravam em contato

com conteúdos e pessoas de diversos lugares do planeta.

Além do mais, suas rotinas estavam diretamente ligadas às atividades das

cidades circunvizinhas, facilmente acessíveis, na medida em que boa parte possuía

veículos para se locomover. Cidades que, apesar de pequenas, pareciam oferecer o

mundo em miniatura: a pizzaria, o restaurante japonês, a lanchonete árabe, a loja de

produtos made in China. Assim tanto no plano virtual, como no plano concreto estes

jovens não se sentiam restritos ao território imediato de seus endereços residenciais. Na

medida em que estavam constantemente transitando entre elementos e símbolos do

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campo e da cidade, entre local e global, sem se preocuparem em estabelecer divisões ou

fronteiras rígidas ao que era próprio de um lugar ou de outro.

Compreendi, desse modo, que o que esses jovens refutavam não era

propriamente a paisagem rural ao redor, mas sim um imaginário anacrônico de rural,

que sobrevive na memória coletiva pela manutenção desses referentes nos lugares que

legitimam as identidades através das decisões políticas, dos meios de comunicação de

massa e do sistema de educação. Passei então a me interessar por obras contemporâneas

que problematizam esse imaginário e fazem abordagens em que as multiplicidades,

antagonismos e temporalidades contrastantes desse espaço eram destacadas. Narrativas

que enfatizam as características singulares do campo, da pequena cidade, dos espaços

não centrais, sem a pretensão de atribuir uma identidade coesa, totalizadora, e sem

propor um sentido estrito de lugar partilhado por todos. Abordagens que iluminam

outras tramas desses espaços e nos ajudam a reimaginá-los.

Doreen Massey (2008) observa que se quisermos aceitar o desafio proposto pelo

espaço devemos reconhecer suas três características básicas. Primeiro, ele é produto de

inter-relações e se constitui a partir de interações que vão desde “a imensidão do global

até o intimamente pequeno”, por isso ele é anti-essencialista por definição. Segundo,

resulta da multiplicidade, da heterogeneidade que o constitui. Por fim, é um processo

sempre aberto, passível de novas configurações e sentidos. Para Massey o espaço não é

“nem um recipiente para identidades sempre-já constituídas, nem um holismo

completamente fechado” ( 2008, p. 32 ).

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Se por um lado é possível destacar nas narrativas que se remetem ao espaço da

metrópole imagens que ressaltam seu caráter mutante, heterogêneo e resistente às

totalizações, veremos, por outro, uma série de discursos e imagens que tendem a encarar

a pequena cidade, o campo, o sertão, a selva, como lugares inertes, espaços vazios que

necessitam ser ocupados. Quando não, essas territorialidades são encaradas como

sistemas fechados e coerentes de comunidade, fora da história, doadoras de uma

identidade essencial quase sempre manuseada pelos dispositivos de nacionalidade.

Neste trabalho, optei por analisar narrativas ficcionais que atravessaram o sertão

nordestino na última década. Nelas, o sertão nordestino se converte num território de

encontro de diversas temporalidades, histórias e identidades. Narrativas que põem em

evidência o aspecto relacional desse espaço, que se materializa tanto nas referências

culturais plurais do sertão hoje, como também na aparição de “personagens-em-

trânsito”, que intersectam e articulam diversos pontos do mapa, redimensionando as

noções de diferença e pertencimento. Analisaremos desse modo as obras: Galileia

(2008), livro de Ronaldo Correia de Brito, Deserto feliz (2007), filme de Paulo Caldas, e

O céu de Suely (2006), filme de Karin Ainouz,.

A opção por obras que não se fixam exclusivamente no território do sertão se

deu para: a) observar de que modo elas captam a intensidades dos fluxos, trocas e

interconexões – de imagens, informações, pessoas – que ocorrem no interior do sertão

nordestino e para além das suas fronteiras b) analisar como se reconfiguram as

localidades atravessadas pelas personagens, acompanhando: “a dissolução de

determinados mundos – sua perda de sentido como nos deram a conhecê-los – e a

formação de outros, em relação aos quais as imagens vigentes se tornaram obsoletas”

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(ROLNIK, 1989); e c) observar como as categorias sertão x litoral, centro x periferia,

primeiro mundo x terceiro mundo se redimensionam perdendo fronteiras fixas e

estabelecendo intersecções e transversalidades.

As personagens das narrativas aqui selecionadas perambulam tanto por

metrópoles, como também por cidades interioranas, ruralidades, sertões – não somente

do Brasil, mas também do mundo. Os espaços pelos quais as personagens passeiam

estão atravessados por uma série diversa de referentes – dentre os quais o nacional não

parece o mais importante - que tensionam as relações de pertencimento, e reposicionam

as configurações local e global, testemunhando novas modulações dessas categorias.

Além de uma preocupação com a representação do território sertanejo neste contexto,

esse trabalho também tem o objetivo de observar de que forma estas obras pontuam as

transformações subjetivas decorrentes do fluxo de indivíduos em espaços culturais

diversos e as mudanças implicadas nesse processo.

Muitos trabalhos comparatistas que se aventuram no terreno das intersecções

entre literatura e cinema, e seus modos de produção de sentidos, se concentram na

observação de como em um filme se produz a transcodificação de uma obra literária,

insistindo nas especificidades de cada linguagem, o que gera blocos rígidos de

separação entre os dois campos enunciativos.

Este trabalho prioriza as questões contemporâneas que atravessam o campo

literário e o cinematográfico, visando “ultrapassar separações rígidas entre esferas da

cultura que cada vez mais se interseccionam, sinalizando a necessidade de outros

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recortes, transversais às polarizações modernas” (FIGUEIREDO, 2010 p. 11). José

Carlos Avelar em seu livro O chão da palavra aponta:

Para compreender melhor o entrelaçamento entre cinema (em especial o que começamos a fazer na década de 1960) e a literatura (em especial a que começamos a fazer na década de 1920), talvez seja possível imaginar um processo (cujo ponto de partida é difícil imaginar com precisão), em que os filmes buscam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam em filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram buscar nos livros; em que os filmes tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os livros voltam aos filmes numa conversa jamais interrompida (2007, p.8)

É nesse ritmo de conversa ininterrupta, que considero as narrativas impressas e

audiovisuais selecionadas. Essas narrativas, inseridas num dado contexto histórico e

tecnológico, se irradiam, se chocam, transitam entre si, estabelecendo formas de

representação particulares que capturam determinadas temáticas pungentes de sua

época.

No primeiro capítulo, intitulado A invenção do sertão nordestino como território

outro da nação, são pontuadas algumas vias pelas quais foi sendo edificado o

imaginário sobre o sertão nordestino e da gente que o habita como um “outro” nacional.

Esse imaginário é resultado da articulação de um emaranhado de discursos – artísticos,

históricos, políticos – que, difundidos ao longo do século XX no interior de diversas

narrativas enredadas em tramas de saber e poder, lhe deram forma e sentido. Forma e

sentido que lhe apregoam qualidades fixas, estáticas e absolutas, como se esse território

pudesse ser visto somente a partir de dadas identidades uniformes. Para observar tal

aspecto considero esse espaço como uma “invenção”, tal e como propôs Durval Muniz

de Albuquerque seguindo colocações teóricas de pensadores como Edward Said e

Michel Foucault. Esse espaço é uma “invenção” na medida em que é o resultado de

fabulações narrativas que, ao serem difundidas e repetidas, lhes deram realidade e

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presença. Em síntese, esse capítulo observa como se concretizou um “sertão inventado”,

ponto de partida necessário para compreender os questionamentos que trazem as obras

que tratam do sertão nordestino contemporâneo.

No segundo capítulo, intitulado Este lugar é outro, serão discutidos os conflitos

encenados na obra Galileia (2008) de Ronaldo Correia de Brito, confrontando as

imagens do sertão nordestino presentes na tradição imagística brasileira com a maneira

como esse sertão aparece na respectiva narrativa. Veremos o modo como Galileia exibe

o sertão a partir seu aspecto aberto e móvel, levando em consideração os

redimensionamentos, as rupturas e instabilidades a quem vem sendo submetido esse

espaço na contemporaneidade. A obra revisita os postulados, o repertório mítico e

histórico que alimentam os discursos de origem da família Rego e Castro. As narrativas

da família dialogam com as próprias histórias a partir das quais o sertão é reconhecido,

porém ao invés de retomá-las como verdades originárias absolutas, a obra enfatiza o

caráter contingente, vacilante e impreciso desses relatos. Veremos também o modo

como Galileia pontua as transformações provocadas pelo encurtamento das distâncias,

pelo constante fluxo de imagens, mercadorias e pessoas que atravessam o sertão hoje,

ao mesmo tempo em que aponta as contradições e desagregações advindas desse

processo. Além disso, será analisada a forma como a obra desconstrói a visão

monolítica da imagem do migrante do sertão nordestino, substituindo o mito da triste

partida – narrativa que encarou o desenraizamento sertanejo como mal inevitável,

geralmente provocado pelas intempéries naturais – pela abordagem que prioriza a

discussão das questões socioculturais e das transformações de sujeitos que perpassam

diversos territórios.

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No terceiro capítulo, Sob pés femininos: derivas no sertão parabólico de O céu

de Suely e Deserto feliz, o território do sertão, majoritariamente explorado sob uma

perspectiva masculina, é analisado através de duas obras protagonizadas por

personagens femininas: Jéssica e Hermila. Suas trajetórias estão marcadas por uma

constante oscilação entre mobilidade – na medida em que se deslocam por diversos

lugares por dentro do sertão (e para além dele) ocupando espaços públicos não

autorizados e monopolizados pelo patriarcado – e, imobilidade – quando suas derivas

são barradas pelos discursos misóginos e pelas condições desiguais de gênero e classe.

Será ainda analisada a maneira como essas obras retomam determinados temas que

fizeram parte dos discursos e imagens que inscreveram tradicionalmente o sertão

nordestino como um lugar marcado pelas injunções sociais. O que se verá é o

redimensionando do eixo de problemáticas que atravessa esse lugar, registrado a partir

de uma estética que abandona o realismo social por um realismo afetivo, mergulhando

nos microterritórios ocupados pelas personagens. Em síntese, as obras que compõem

este capítulo introduzem representações que desestabilizam um imaginário que

circunscreve as mulheres nordestinas em determinados papéis sociais tradicionais,

contribuindo para uma discussão mais ampla sobre essas mulheres e sobre os espaços

por elas atravessados.

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A INVENÇÃO DO SERTÃO NORDESTINO COMO TERRITÓRIO OUTRO DA

NAÇÃO

No Brasil, fora Rio e São Paulo, tudo mais é paisagem... Matheus de Albuquerque, O declínio, 1911.

Quando Lord Beaconsfield proferiu a polêmica afirmação de que “no mundo só

há de verdadeiramente interessante Paris e Londres, e todo o resto é paisagem” mal

poderia supor que sua frase serviria de mote para referenciar terras tupiniquins no início

do século XX (é possível a existência de equivalentes a Paris e Londres nas colônias?).

Para o aristocrata inglês, bem como para o cronista português Matheus de Albuquerque,

a paisagem correspondia a tudo aquilo que não se configurasse como centro urbano e

cosmopolita e, consequentemente, tudo o que estivesse afastado dos seus universos de

referência, da técnica e da civilização. Para ambos “o termo paisagem qualifica (ou

desqualifica) espaços geográficos vazios de progresso e de poder, o resto do mundo

visto a partir do centro dinâmico do capitalismo e da política internacional” (MURARI,

p.8). Porém o que havia de próprio e de comum nesses espaços em branco que

compunham o que se denominava “paisagem”?

No início do século XX, quando Matheus de Albuquerque profere o remoque

que abre este capítulo, o Brasil se configurava como um país de grandes proporções

geográficas com uma quantidade significativa de “áreas em branco”, que tentava se

constituir um território nacional unificado, mas encontrava vários obstáculos para

efetuar uma síntese devido à heterogeneidade de seus grupos populacionais e o

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completo desconhecimento existente entre os mesmos1. Essa condição se adensava com

a deficiência dos meios de transporte e comunicação e a quase inexistência de migração

interna entre Sul e Norte. Situação que criava um abismo entre esses grupos que se

olhavam de dentro do próprio país com o mesmo olhar de estranhamento que nos

lançavam os países colonizadores. Foi necessária uma série de estratégias para mapear

esse terreno, sistematizá-lo – dar um nome e características específicas a esses lugares.

Benedict Anderson ao trabalhar a ideia de que as nações são “comunidades

imaginadas”, ou seja, que estas foram inventadas por uma série de narrativas que

concretizaram um imaginário coletivo, observa que ferramentas como “censo, mapas e

museus” foram importantes para moldar a forma de imaginar “a natureza dos seres

humanos (...) a geografia do seu território e a legitimidade do seu passado” (p.227).

Modulações que tangenciaram a própria forma de conceber a nação em certas narrativas

ficcionais. Ao manipular o censo foi possível categorizar as populações, separá-las ou

unifica-las e suprimir as diversas heterogeneidades que as constituíam. O censo podia

sofrer constantes recombinações, misturas e reordenações. Os recenseadores ao lidarem

com categorias incertas ou múltiplas atribuíam a esses casos normalmente uma

categoria indefinível nomeada como “outro”. “A ideia fictícia do censo é de que todos

estão presentes nele, e que todos ocupam um – e apenas um – lugar extremamente claro

sem frações” (ANDERSON, 2008, p. 230). O museu, por sua vez, tem a

responsabilidade de desenterrar, classificar e guardar com a função de “proteger” e reter

1 Vera Lúcia Foullain (2010) afirma que os programas nacionalistas só terão repercussão massiva no país a partir da década de 1930 do século XX (nesse período se registra uma significativa extensão do mercado editorial), muito embora a fabricação dos símbolos que servirão para identificação nacional tenha sido elaborada no Romantismo ainda no século XIX. Cumpre não esquecer que “o espírito que presidiu o romantismo não morreu com ele, nem ficou circunscrito à elite, tendo perdurado ao longo do tempo” (p.183)

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a memória das culturas que, supostamente, não existem mais2. Ele ao mesmo tempo

recupera o passado e mantém-no petrificado no tempo. Essa petrificação é o que garante

a dominação do fluxo histórico, o comando sobre ele.

No caso do mapa ele também foi um importante método usado a princípio pelos

europeus para demarcar seus domínios e exercer controle sobre eles. Os mapas

começaram a facilitar o entendimento sobre os territórios. Os estados imperiais

começaram a colorir as colônias, atribuindo cores diferentes para cada região que fosse

dominada por um país específico, esse trabalho facilitava a visualização de quem tinha

mais domínio. Porém no interior dessas colônias, algumas partes continuavam como

espaços em branco, pois eram consideradas muito distantes, ou seja, distantes do que foi

eleito como seu centro.

No Brasil, no momento em que o país deixa de ser colônia, os intelectuais

assumem a responsabilidade de concretizar a conquista do espaço nacional. Este intento

foi elaborado por homens que pertenciam a uma elite que necessitava de um conjunto de

ideias que justificasse e garantisse sua hegemonia: “O processo de emergência dessa

elite obliterou vozes, seja pela idealização que imprimia à distância do ‘outro’, seja pelo

silenciamento de parcelas expressivas da população ou, ainda, pela intenção de

transformação civilizadora” ( PEREIRA, 2008, p.53)

2 Enfatizo o “supostamente” rememorando o que ocorreu aos povos indígenas no Brasil que tiveram seu percurso histórico inscrito como “passado”, quando eles, todavia, habitavam o país. O plano colonizador fez uma exclusão-includente do indígena, minando suas possibilidades de inserção através de sua sacralização e mitologização, processos arquitetados no interior de obras literárias nacionais. Em artigo de Luis Fernando Beneduzi e Roberto Vecchi (2010) os teóricos observam que “a edenização da natureza e a sucessiva sacralização do índio, expulso da paisagem natural e inscrito e traduzido dentro da história, uma história alheia e deslocada em outros mapas imaginários, foram parte de um processo simbólico por nada ingênuo ou acidental, mas virado para os governos e os viventes” (p.38).

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Assim, ao tentarem instituir a nação nos moldes iluministas, eles se viam diante

do seguinte problema: a parte “moderna”, os centros urbanos do país, não lhes parecia

oferecer elementos distintivos radicais da matriz colonial, que neste momento era

necessário negar para buscar uma identidade própria; ao mesmo tempo, a parte que

marcava a “diferença”, as regiões interioranas, contrariava os ideais modernos que

tangenciavam o ideário nacional. Os espaços interioranos eram, aos olhos desses

intelectuais, pré-modernos, atrasados e violentos. Não à toa, nas narrativas fundacionais

que tentavam revelar as paisagens específicas do país, era recorrente a atribuição de

características indefiníveis, vazias e incivilizadas às terras que se distanciavam do litoral

e dos lugares que pouco a pouco foram tomando centralidade no processo de formação

nacional3.

Rômulo Monte Alto aponta que para essas regiões de fronteira interna – o sertão,

o campo, o deserto, a selva – as obras ficcionais se voltaram repetidas vezes e de

maneiras diversas em busca de respostas à pergunta pela natureza do ser nacional,

erigindo, nesse ínterim, certas paisagens como matrizes fundacionais, sobre as quais se

escreveram alguns dos grandes bildungsroman nacionais4.

Um acervo expressivo de ensaios, poesias, romances e, posteriormente,

fotografias e narrativas cinematográficas, se debruçaram na tentativa de preencher a

“moldura vazia”, as paisagens indistintas da nação. Stuart Hall aponta que as narrativas

3 Gilberto MendonçaTelles em O lu(g)ar dos sertões observa que a palavra “sertão” serviu tanto em Portugal como no Brasil, para designar o “incerto”, o “desconhecido”, o “longínquo”, o “interior”, o “inculto” (terras não cultivadas e de gente grosseira), numa perspectiva de oposição ao ponto de vista do observador, que se vê sempre no “certo”, no “conhecido”, no “próximo”, no “litoral”, no “culto”, isto é, num lugar privilegiado — na “civilização”. 4 A afirmação é do pesquisador Romulo Monte Alto no artigo O sertão brasileiro e os Andes peruanos: territórios vazios, paisagens nacionais. Disponível em www.letras.ufmg.br/ .Última consulta: 20 de Janeiro de 2013

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contadas e recontadas através da literatura nacional, da mídia e da cultura popular

“fornecem uma série de imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e

rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas,

os triunfos e os desastres que dão sentido à nação” (2005, p. 52). Assim, é através dessa

teia de representações, repleta de afetos e efeitos, que nos vinculamos a um sentimento

comum, que partilhamos a ideia de que fazemos parte do povo de uma nação e de que

pertencemos a um lugar nela.

A constituição da literatura brasileira teve o território como base de sua

produção por aproximadamente dois séculos. Criou-se, como afirma Renato Cordeiro

Gomes (2010), uma espécie de “geografia literária” que “limita um dentro e um fora:

um dentro diferencial, que daria identidade em relação a um fora”5. A base espacial

obedece, dessa maneira, a uma territorialização que, por sua estrutura, fornece imagens,

tipos, costumes, linguagem, ou seja, que circunscreve todo um sistema de sentidos e

oferece a identidade cultural do território nacional. Assim, “é assentada numa geometria

de base euclidiana que se fundam os traçados dos campos e das cidades”6. A literatura

enquanto discurso de representação do país busca os traços mais característicos, que

fornecem a substância da expressão.

Acontece, todavia, que no interior desse processo houve diversas disputas de

sentidos e fraturas. A constituição da nação não foi um processo neutro e linear “mas

um processo politicamente orientado, que significou a hegemonia de uns espaços sobre

5 GOMES, Renato Cordeiro. “O NÔMADE E A GEOGRAFIA (Lugar e não-lugar na narrativa urbana contemporânea)”. Acesso em: http://www.letras.pucrio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/10Sem_12.html . Última consulta 05 de agosto de 2013. 6 Ibid.

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outros” (ALBUQUERQUE, 2009, p.54). As narrativas que se preocuparam com a

formação da identidade nacional mostram os rastros dessas disputas.

No texto Nação e região: seus discursos fundadores (2000), Antonio Jorge de

Siqueira elucida o momento em que o país passa do Império à República e as

implicâncias neste processo. As mudanças no sistema politico: final do escravismo,

introdução do trabalho livre, erosão da monarquia e introdução de representações

republicanas de poder, marcaram o momento em que se desenvolveram os processos

que determinarão a forma como percebemos a nação e suas regiões.

A ideia de região nasce com o objetivo de entender a nação como um organismo

composto por diversas partes. Pensava-se que ao destrinchar as diversas particularidades

territoriais do país e diagnosticar seus problemas, seria possível elaborar propostas para

finalmente concretizar uma síntese nacional que viesse sanar as diferenças internas. Isso

na teoria, já que na prática aconteceria outra coisa, pois enquanto “a ideia de “nação”

estará ligada ao centro do poder, naquela altura o Rio de Janeiro [e, posteriormente, São

Paulo], a ideia de “região” vai se relacionar a tudo o que seja o outro em relação a esse

poder central” (ARAÚJO, 2006, p.113). Esse outro “atrasado”, constantemente

apontado como problemático, será repositório da diferença que atravessará diversas

narrativas nacionais sob diversos matizes e perspectivas.

No processo de reconhecimento da nação como um mosaico composto por

várias regiões, emerge o Nordeste como o Outro do país. Durval Muniz de Albuquerque

(2011) afirma que o nordeste é uma invenção recente, até meados de 1910 ele não

existia como um recorte regional. O que havia era um Brasil dividido econômico e

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politicamente entre o Norte – o Brasil verdadeiro, retrógado, rural, lugar em que

aspectos da nossa cultura originária conservariam sua pureza – e o Sul –

“desenvolvido”, industrializado e seguindo a marcha do progresso graças ao seu

cosmopolitismo.7 Seu reconhecimento enquanto região, com aspectos geográficos e

identitários próprios, foi se consolidando no transcurso da elaboração da identidade

nacional durante o século XX; porém, a maneira como ele está naturalizado no nosso

imaginário nos faz pensar que ele existe “desde sempre”.

Edward Said em seu livro Orientalismo alerta que:

Devemos levar a sério a notável observação de Vico segundo a qual os homens fazem sua própria história, e que só podem conhecer o que fizeram, e aplicá-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar das entidades históricas –, os lugares, regiões e setores geográficos tais como Oriente e Ocidente são feitos pelos homens ( 1996, p.16)

Seguindo o percurso já sinalizado por Said, Durval Muniz observa que o

Nordeste antes de ser um espaço dado pela natureza “é uma espacialidade fundada

historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que

lhe deram realidade e presença” (2011, p.79). É a consistência dessa formulação

territorial, dessas “verdades” instituídas e proliferadas através de obras canônicas

poderosas, que se tem uma determinada dificuldade de produzir outras configurações de

“verdades” acerca desse espaço8.

7 A parte Norte do país, já na década de 1880 está em desvantagem em relação ao Sul, devido o deslocamento do eixo econômico, que no momento, passa ser o café. Com mudanças substanciais no Sul no campo econômico e técnico, em contraponto com a crise que se acentua no Norte e as dificuldades que este tem em se modernizar, agravam-se as diferenciações internas. 8 Não que neste trabalho se esteja de fato procurando uma verdade absoluta e essencial para a região, porque esta definitivamente não existe. Nem mesmo é objetivo apontar os “erros” ou “distorções” nessas representações que a inventariaram. Neste trabalho há a clareza de que a “verdade” de uma comunidade não é uma coisa simples e plenamente acessível. O que se tenta apontar é de que modo uma formulação imagética-discursiva se repetiu em narrativas com abordagens distintas ao longo do século XX, e como essas repetições preencheram o “espaço em branco” da região e impuseram-lhe uma verdade. A força

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Nas primeiras décadas do século XX, o processo de reconhecimento passa pela

produção editoral, que começa a surgir de forma incipiente. A imprensa envereda-se no

processo de “descoberta” do país e passa a publicar uma série de reportagens

majoritariamente sobre o mundo “longínquo” do Norte. Os enunciadores partiam do Sul

onde as atividades editoriais estavam mais aquecidas. Inicia-se uma série de relatos de

viagens que visavam caracterizar o Norte, que já indiciam a construção incipiente do

olhar de um território central da nação para o seu respectivo “outro”. Esses relatos,

extremamente influenciados pelo naturalismo, versarão sobre a relação entre os homens

nativos e as condições geográficas da região, atribuindo o que se via como “atraso”

econômico à condições climáticas e raciais, acusando a mestiçagem e o clima quente

pela “estagnação” do país.

No Jornal O Estado de São Paulo logo após a série de relatos intitulados

“Impressões do Nordeste”, com trechos que destacavam a “inferioridade racial” do

nordestino, “os desertos, sua ignorância, sua falta de higiene, sua pobreza, seu

servilismo” (Apud ALBUQUERQUE, 2011, p.55), outra série, iniciada com o nome

“Impressões de São Paulo”, irá tecer uma imagem para São Paulo em nítida

contraposição às descrições elaboradas nos relatos sobre o nordeste. A estratégia era

destacar a superioridade de São Paulo e atribuir essa ascendência à população europeia

que aí vivia. O que chama atenção é o total apagamento de referências a negros e índios

e, em contrapartida, a exaltação com que se fala dos imigrantes europeus: “Eles

chegaram do Atlântico, radicaram-se na terra fértil, fizeram o seu engrandecimento e

muitos, a própria abastança” (p.55.); “foram sempre uma raça exuberantemente fértil em

tipos moral e fisicamente eugênicos” ( p.55).

dessa formulação, fortemente enraizada na cultura nacional, é o que faz com que as obras que se remetem à região predominantemente a retornem seja para negá-la, seja para reafirmá-la.

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Outro aspecto relevante dos relatos de viagens publicados na época é a constante

tensão que se estabelece entre o arquivo de imagens e enunciados pré-dados com o qual

o jornalista chegava à região, e aquilo que ele encontrava, que nem sempre correspondia

com a visão que se tinha da terra. Chiquinha Rodrigues, articulista d’O Estado de São

Paulo, viajando pelo nordeste já na década de 40, escreve as seguintes notas:

Nas regiões do Nordeste, interessante verdade! (veja a admiração!) estão as terras onde há mais chuva no Brasil. O que ocasiona as secas dizem os técnicos e maldizem os leigos, é a má distribuição das chuvas” (Apud. ALBUQUERQUE, 2011,p. 58).

Para logo depois voltar à visão clássica “Oásis que merece tamanha deferência”.

E continua: “Vamos desvendar os mistérios destas plagas singulares, onde um mundo

de luz resplandece ao nosso olhar, onde o clima é ardente e quente ou temperado e

doce” (p. 58). Durval Muniz identifica nestas notas uma verdadeira procura pelas

páginas de Euclides da Cunha nos lugares por onde se passa. Chiquinha procura a

vegetação enfezada, as flores de cor de sangue das palmatórias e dos cactos. E em

determinados momentos há no seu texto frases inteiras de Os sertões:

como senhora em sua crueldade, surge em lugares destacados a Cabeça de Frade que abrolha à flor da caatinga, em pontos esverdeados, em atitudes agressivas. Tudo nela queima fere e penetra em nossas mãos (...) mas às primeiras chuvas, tudo se transforma; são as mil flores, a variedade de pássaros e borboletas (CUNHA, 1997, p. 58)

Essas anotações, que mimetizam uma série de paralelos e contrastes próprios da

escrita euclidiana, deixam claro que não só há um abismo existente entre o visível e o

enunciável, o que a viajante vê na e escreve sobre a paisagem não corresponde

exatamente ao que está lá – as palavras e as coisas são interdependentes – mas também

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explicita a forte mediação existente entre o visível e o dizível. Sobretudo a força da obra

de Euclides da Cunha, Os sertões, para a consolidação de uma dada imagem da região.

A publicação de Os sertões em 1902 contribuirá para um acervo expressivo de

imagens sobre o sertão e os habitantes desse espaço. O livro de Euclides foi um grande

sucesso editorial, pode-se dizer que o escritor “se deitou obscuro e acordou célebre”

(LIMA, 1997, p.15), chegando a vender mais de seis mil cópias, um recorde para a

época. A guerra no Sertão baiano gerou muito interesse da imprensa sulista em geral (o

que aguçou a curiosidade do público também, explicando em parte o sucesso editorial

de Euclides). A República interessada em divulgar o extermínio daqueles que

atrapalhavam seus intentos e, ao mesmo tempo, construir heróis para a pátria, se

beneficiava do tom espetacularizado com que a imprensa tratou o fato. Exemplo disso é

a divulgação da exposição de fotografias em 1897 e 1898 da Campanha de Canudos:

Campanha de Canudos

46 – Rua Gonçalves Dias – 46 Curiosidade! Assombro! Horror! Miséria!

Tudo representado ao vivo em tamanho natural por projeções elétricas hoje.

Cenas de toda a guerra de Canudos tiradas no campo de ação pelo fotógrafo expedicionário Flávio de Barros, por consenso do comandante em chefe das tropas.

Apresenta-se o verdadeiro e fiel retrato do fanático Conselheiro, fotografado por ordem do General Artur Oscar, a prisão do comandante das forças fanáticas na Serra do Cambaio e o bravo 28° de infantaria em cerrado fogo de artilharia contra os inimigos, 400 jagunços

prisioneiros. São apresentados 25 quadros.

As crianças nada pagam. Entrada $1000 (Apud ARAÚJO, 1976,p. 40)

O sertão baiano desse modo já é apresentado a partir de adjetivos como

“curioso”, “assombroso”, “miserável”. Nota-se a necessidade de pontuar a

presentificação, a ênfase na relação direta entre imagem e realidade: “fotos tiradas em

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campo de ação”, “tudo representado ao vivo em tamanho natural”, “verdadeiro e fiel

retrato”.

A obra de Euclides da Cunha, por sua vez, esquadrinhou o território do sertão

nordestino, ofereceu matrizes espaciais que se consolidaram de tal modo que

reverberaram em diversas narrativas ao longo do século XX. Euclides não só organiza a

geografia do lugar, uma forma de imaginá-lo, como também tangencia alguns temas que

serão concernentes a esse espaço ao longo do século.

No percurso de sua narrativa uma série de contradições se destaca nas descrições

e reflexões de Euclides. Essas figuras oximóricas que surgem é um dos elementos que

complexificam seu texto, dificultando uma apreensão ou simplificação unilateral deste.

É nesse sentido que a obra parece suportar uma série de leituras divergentes.

Os sertões é sempre lembrado como uma narrativa que assumiu o ponto de vista

não hegemônico, tomando partido dos vencidos, expondo críticas duras à carnificina

provocada pela República, feito inédito para a época. Sobretudo, porque Euclides estava

convencido de que a República seria o melhor modelo político para o desenvolvimento

progressista da Nação, chegando a escrever entusiasmado ao partir para Belo Monte:

"Em breve pisaremos o solo aonde a República vai dar com segurança o último embate

aos que a perturbam." (Apud SANTIAGO,2000,p.105). Porém ao presenciar a

brutalidade das tropas republicanas, muda de opinião e passa a criticar o modo como se

conduz aquela operação. Ademais, Euclides, “não cai numa armadilha que, na realidade,

é tão perigosa quanto o elogio indiscriminado das ações da República: ele não cai na

armadilha monárquica” (p.105.), ou seja, o escritor escapa dessa dualidade e se a

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República não agiu de forma “moderna” e “civilizada”, como ele esperava, não seria a

monarquia a solução para essa questão.

Entretanto, como afirma Carolina Correia dos Santos (2012), se por um lado, a

obra denuncia a brutalidade do estado republicano e o massacre de mulheres, crianças e

homens em Belo Monte, adotando uma perspectiva “contra-hegemônica”, por outro, a

denúncia executa paralelamente um outro ato violento, que se materializa na

categorização do sertanejo enquanto “Outro”, bem como, sua inserção numa relação

assimétrica de poder. Para Euclides, os sertanejos seriam “mais estrangeiros nesta terra

do que os imigrantes europeus” fariam parte dos “estágios iniciais da evolução

brasileira”, seriam “pré-modernos” e “pré-políticos”, sua cultura estaria retida no tempo

por três séculos. Essa sensação de “atraso” permeará todo seu olhar em relação aos

“tipos” que povoam o sertão nordestino.

A figura do sertanejo aparecerá constituída de forma cambiante, ora como

símbolo de um Brasil original, dotado de uma cultura própria e capaz de resistir à

influência das culturas hegemônicas, “antes de tudo um forte”, ora como condenado à

extinção pela implacável força-motriz da história. Muito embora as qualidades

originárias e a distância da sociedade litorânea desnacionalizada sejam exaltadas no

texto, ao mesmo tempo, Euclides acha que a “civilização” deveria ser levada ao Sertão,

resgatando a cultura e a gente que aí vive, o que implicaria numa consequente

incorporação da lógica eurocêntrica, já que o conceito de “civilização”, nos termos

pensado por Euclides, foi uma invenção colonial.

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No capítulo “O homem” o autor detalha os elementos da mestiçagem que

caracterizaram o sertanejo, o vaqueiro, o jagunço, considerados “sub-tipos”, produto da

mistura das “matrizes” branca, negra e indígena. Estes homens serão descritos como

fracos e degenerados, porém com virtudes que lhe são condições para resistir à

paisagem que surge na narrativa como uma irrupção espinhosa e retorcida. Tudo nessa

terra será considerado violento e áspero, as plantas ferem a terra: “como um cilício

dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos” (p.18). Mas ao

mesmo tempo, capazes de se metamorfosearem em paraíso. Os elementos naturais

suturados com espanto fazem paralelo com o trágico desfecho da história. Os “cabeças-

de-frade, deselegantes e monstruosos” que aparecem sobre a pedra como “cabeças

decepadas e sanguinolentas” anteveem as cabeças decapitadas de militares e jagunços.

Os frutos da terra (assim como os filhos dela) são considerados “anões”, “bravos”,

“bárbaros”, de raízes profundas. Sobre o sertanejo ainda aponta:

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeiramente conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável. (p.48)

As descrições pontuam uma amálgama de admiração, aversão e desprezo, há certo olhar

que pende ao paternalismo e à piedade em relação ao sertanejo.

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A constante circunscrição dos canudenses como tipos retardatários com uma

“religiosidade extravagante”, irracional e desorganizada, impossibilitou, por exemplo,

enxergá-los como sujeitos políticos, que optaram resistir ao modelo imposto pela

República e que, ademais, propunham um outro. Euclides sequer inscreve em sua obra

as vozes dos massacrados - excetuando as falas ocasionais e sem muito peso para a obra

do acólito do Conselheiro, Antônio Beato, o Beatinho. Assim, no mesmo lugar em que

condena severamente a carnificina republicana contra os canudenses, desvocaliza e

invalida a própria ação daqueles que defende.

Em Os sertões, o microcosmo de Canudos será visto como um índice da zona

comum do Norte como um todo: “O sertão de Canudos é um índice sumariando a

fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes

numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum” (p.14). A partir

dessas considerações, sistematizadas na obra de Euclides e, posteriormente, agenciada

por obras subsequentes, o sertão estabelecerá uma relação metonímica com a região

nordeste, isto é, deixará de ser um espaço abstrato que se definia em oposição à

civilização, composto por todo interior do país, e passará a ser a caraterística definidora

do Nordeste: “só nordeste passa a ter sertão e este passa a ser o coração do Nordeste,

terra da seca, do cangaço, do coronel e do profeta” (ALBUQUERQUE, p.134).

Entretanto, é no interior do que se convencionou chamar “romance regionalista

de trinta” que a consolidação desses temas e imagens irão se concretizar. A elaboração

dessa unidade territorial não se deu de forma ordenada. Ela se fez dentro de um

processo fragmentário que só se estabeleceu de modo coeso com a colaboração de

várias narrativas – artísticas, políticas, sociológicas - que edificaram as espacialidades

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regionais. Narrativas que mediante a “colagem” de determinados discursos e imagens,

influenciadas pelas circunstâncias históricas e econômicas do país, emprestaram

tradições e traçados ao espaço do sertão, espaço constitutivo da identidade regional,

estabelecido, inclusive, como um dos seus traços mais específicos.

Todo e qualquer território seja ele nacional, regional ou local, é ocupado por

distintas trajetórias que coexistem. São pessoas, experiências, histórias, costumes,

modos de ver e sentir o mundo, que se encontram e se chocam. Espaços atravessados

por forças diversas e modificações permanentes, e que submetidos a um processo de

elaboração identitária pautado na construção de uma unidade e na busca por elementos

essencialistas e passadistas, perde seu caráter múltiplo e cambiante. São recortes

espaciais, primordialmente representativos, que passam a ser entendidos como

fornecedores de fronteiras fixas e confiáveis. O que se impõe nesse processo é um

discurso identitário unificado e estável que assegura o controle e o domínio do espaço

circunscrito.

O medo de não ter lugar numa nova ordem, de perder a memória individual e

coletiva, de ver o mundo ao qual pertence desaparecer, é o que irá impelir artistas e

intelectuais a construir territórios de segurança dotados de identidades que

possibilitassem “costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que

religasse os homens do presente a um passado, que atribuísse um sentido a existência”

(ALBUQUERQUE, 2011, p.91).

Para Bourdieu a construção de territórios regionais, para além de tecer relações

de pertencimento, se configura como uma ação guiada por interesses políticos. O

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“discurso regionalista performativo9, que tem em vista impor como legítima uma nova

definição de fronteiras e dar a conhecer, e fazer reconhecer, a região assim delimitada”

[grifos do autor] (1989, p.116) é uma ação guiada por interesses que objetivam

administrar e controlar grupos e espaços, como indica a própria etimologia da palavra

latina régio, advinda de regere (dirigir/governar). Nesse sentido, ordenar um território

simbolicamente seria:

um acto religioso realizado pela personagem investida da mais alta autoridade, o rex, encarregado de regere sacra, de fixar as regras que trazem à existência aquilo por elas prescrito, de falar com autoridade, de pré-dizer no sentindo de chamar ao ser, por um dizer executório, o que se diz, de fazer sobrevir o porvir enunciado. [grifos do autor] (BOURDIEU, 1989, p. 113-114)

Não à toa, será a elite ligada ao controle das decisões políticas e econômicas da

região Nordeste que irá se empenhar na fabricação dos símbolos de memória e tradição,

pelos quais esse território ficará reconhecido. Inconformados com o quadro econômico

em que se encontravam, os indivíduos pertencentes a esse elite, que outrora gozavam de

grandes privilégios advindos do poderio construído durante séculos pelas suas famílias

latifundiárias, acompanham a ruína desse cenário com a crise econômica que os afeta.

Eles veem seus lugares sociais ameaçados por várias turbulências provocadas pelos

influxos trazidos pela modernidade; primeiro com a mudança do caráter regional da

estrutura econômica, política e social do país, cada vez mais centralizada no outro lado

da nação; segundo com a crise dos códigos culturais do espaço ao qual pertencem,

provocada pelas relações capitalistas que estabelecem maiores fluxos culturais nas

primeiras décadas do século XX.

9 O discurso performativo é considerado um discurso estratégico que se molda a partir dos elementos da própria cultura. A performance seria uma categoria de interpretação e atuação na qual os sujeitos inseridos no espaço negociam com sentidos e significados sociais.

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Esses fatores impulsionaram inúmeras reações que se concretizaram numa

reorganização do território. Uma das várias estratégias empregadas para tal fim foi a

edificação de discursos que objetivavam doar estabilidade ao espaço regional frente às

turbulências enfrentadas. Inicia-se a construção de um quadro de referências

tradicionais da região com o intuito de estabelecer o equilíbrio entre a nova ordem e a

ordem anterior. Esses símbolos da tradição serão encarados como elementos puros e

imaculados, buscados em padrões de sociabilidade e sensibilidade patriarcais, muitas

vezes carregado de heranças escravistas. Busca que desencadeou “uma verdadeira

idealização do popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas sempre

como mais próximas da verdade da terra” (ALBUQUERQUE,2011,p.91).

A Fundação do Centro Regionalista do Nordeste, em 1924, da qual farão parte

não apenas intelectuais ligados às artes e a cultura, mas também, àqueles voltados às

questões políticas locais e nacionais, será um marco crucial na consolidação do

inventário de tradições e memórias da região. Esse órgão se propõe elaborar

deliberadamente uma ordenação simbólica dos elementos da vida e da cultura

nordestinas. As ações ligadas a essa Instituição visavam construir elementos de

identificação regional, para isso, foi necessário acabar com os particularismos

provincianos, ligando os diversos estados que compõem o Nordeste a uma imagem mais

homogênea da região, a fim de produzir um bloco unitário, cultural, estético e político.

Para concretizar e difundir suas ideias o Centro Regional realizou conferências,

excursões, exposições de arte, criou uma biblioteca com a produção dos intelectuais da

região no passado e no presente, chegando a publicar inúmeras revistas10. O Movimento

10 Sobre isso ver O sertão não virou mar. Nordestes, globalização e imagem pública da nova elite cearense, de Liduina Farias Almeida da Costa.

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Regionalista e Tradicionalista de Recife (movimento que visava resgatar e preservar as

tradições nordestinas) tomou corpo, precisamente, no Congresso Regionalista de Recife

realizado pelo Centro Regional, encontro em que suas linhas norteadoras ficaram

expressas no Manifesto Regionalista de 1926, escrito por Gilberto Freyre. Esse evento

– dentre outros aspectos - discutiu estratégias para “salvar” a região da “destruição

lenta” que já se elaborava em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo: a invasão

estrangeira, que, para os regionalistas, descaracterizava e destruía os elementos mais

típicos do espaço nacional.

O movimento regionalista se posicionará de maneira contrária ao Movimento

Modernista (circunscrito ao eixo Rio – São Paulo). Se neste momento da vida

intelectual brasileira, essas duas correntes se encontram, na medida em que propõem

uma revisão da identidade nacional, numa verdadeira disputa pela verdade da mesma,

ambas se distinguem em relação à maneira como encaram o passado e como lidam com

elementos exteriores à cultura interna e seus reflexos no país. Enquanto o modernismo

buscava resgatar os aspectos tribais originários da formação da nação para elaborar

conceitos que dessem sustentação à identidade, a exemplo do conceito de antropofagia –

que assumia a deglutição do elemento estrangeiro, o outro, com o intuito de

reconhecer, e não negar, esse fator cultural também constituinte da identidade nacional

– o regionalismo faz um retorno anacrônico e nostálgico à um tempo em que a vida era

melhor longe das cidades, nas propriedades rurais, sem as intempéries e os valores

trazidos pela modernização, com o desejo de que esse passado pudesse permanecer

cristalizado no presente.

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Inicia-se um forte movimento regional de resistência aos valores culturais

externos, que permeará tanto discursos políticos, sociológicos como também artísticos.

Discursos que circunscreveram a região a partir de suas feições tradicionais, marcada

pelos fragmentos de um passado rural e pré-capitalista. O Nordeste passa a figurar em

várias narrativas como um espaço dobrado sobre si mesmo, um lugar fechado às

mudanças que vêm de fora, que se volta para seu interior a fim de se defender do seu

outro: o espaço industrial e urbano – forte ameaça à estabilidade da sociedade patriarcal.

Surgirá em diversas obras o sertão como forte referente metafórico desse isolamento e

atemporalidade que pontilha o espaço regional.

Ao mesmo tempo em que a volta ao passado se estabelece enquanto resistência e

crítica à expansão moderna e ao crescimento desenfreado do mundo urbano e industrial

(em franco aceleramento no Sudeste do país), os regionalistas tradicionalistas ao se

remeterem ao momento em que prevalecia uma estrutura social herdeira da escravidão e

do patriarcalismo, sem questioná-la, pelo contrário, acreditando que essa fosse uma

forma mais justa de organização social, mostram os rastros das suas raízes reacionárias.

Ou seja, os regionalistas vislumbravam de algum modo uma “utopia da permanência”,

na qual tudo aparentemente poderia se resolver, inclusive, a injustiça social, só que,

dentro de uma estrutura de poder e de produção que não se alteraria, na qual,

obviamente, as lideranças políticas e culturais ainda se manteriam confortavelmente

dentro da “casa-grande”.

O retorno ao passado, muitas vezes rememorado como um tempo idílico se

converte na recuperação de antigas certezas que cerceavam a organização social regida

pelos princípios patriarcais, esse resgate proporciona uma sensação de segurança, de

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restituição de um lugar social. O romance de trinta se converterá numa máquina de

rememoração que irá colher nos fragmentos da história, nas lembranças pessoais, nas

catástrofes experienciadas, os elementos que irão desenhar a memória espacial da

região: “espaço onde nada é provisório, onde tudo parece sólido como a casa-grande de

pedra e os móveis de mogno e jacarandá (...) região da permanência, do ritmo lento, da

sedimentação cultural” (ALBUQUERQUE, 2011, p.96). Como numa épica, essas obras

procuravam garantir a continuidade daquele espaço a partir da sua fixação narrativa.

Será através do trabalho com a memória individual dos escritores ligados à elite

tradicional em decadência que esse mundo tomará forma. Apesar dessas memórias

corresponderem ao ponto de vista desse grupo específico, elas assumiram status de

representação da memória coletiva, passa-se a atribuir a experiência de alguns à

experiência de todo um povo.

Muito embora seja possível destacar elementos que se interligam nos romances

de trinta, alinhando-os a um comprometimento com o projeto de tessitura regional, é

necessário pontuar que essas produções não formam um conjunto coeso e internamente

possuem diferenças que as singularizam. Cada projeto literário matizou e marcou sua

distinção num eixo de questões referidas à região. Além disso, cada autor irá contemplar

espaços e problemáticas específicas. José Lins do Rego e Amando Fontes, por exemplo,

irão se debruçar sobre o Nordeste do litoral e dos engenhos de cana de açúcar. Enquanto

que José Américo, Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos irão escrever sobre o

Nordeste “seco”, do interior. Sobre esses últimos, embora alguns se reportem também

ao litoral, será o sertão o lugar privilegiado para evidenciar a tradição e a originalidade

do recorte regional nordestino.

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Para Antonio Candido, uma das mudanças empreendida pelos romances de trinta

foi a aproximação do homem do interior, que deixa de ser visto como “exótico e

pitoresco”, elementos que estiveram presentes nas obras naturalistas do regionalismo

anterior. O sertanejo passa a ser abordado a partir de suas constituições sociológica e

psicológicas, sendo integrado a um todo social, deixando de ser um estranho. A

natureza também sofre mudanças de perspectivas, se em fases anteriores do

regionalismo ela aparecia como um dos atributos que demarcava a riqueza do país, no

romance de trinta ela passará a ter feições hostis e figurará como uma das causas da

pobreza, sobretudo, nas regiões assoladas pela estiagem.

Candido também aponta que essas narrativas anteciparam a consciência

catastrófica do atraso. Para ele, esse processo só ocorreria quinze anos mais tarde, nos

contextos sociais e políticos depois da Segunda Guerra Mundial, em que há uma

transformação da perspectiva, na medida em que se passa da ideia de “país novo”, que

vai cumprir seu progresso, à noção de subdesenvolvimento que, ao invés da grandeza,

marca a falta e a atrofia presentes (Candido, 2000, pp. 140-163). Escritores como Jorge

Amado e Graciliano Ramos, começam a abordar em suas obras as problemáticas que

envolvem “o povo”, destacando figuras marginalizadas de forma mais complexa do que

no momento anterior do regionalismo.

É possível mapear em parte dos romances de trinta que abordam o sertão, a

predominância de temas que se repetem: cangaço, fome, miséria, religiosidade,

violência, seca e sua inescapável epopeia da retirada. Temas que de uma forma

esporádica já se faziam presentes nas narrativas populares e nos discursos políticos das

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oligarquias, mas que foram apropriados de tal forma nas obras ficcionais, que se

tornaram verdadeiros espectros da “essência territorial”.

Dentre as temáticas que atravessaram a construção espacial do sertão nordestino,

uma das mais recorrentes é a que aponta a região como vítima das inclemências

climáticas. A seca passa a ser tomada como sua principal paisagem. A migração

sertaneja é referida como um fenômeno provocado fundamentalmente por ela. Como

um deja vu, veremos repetidas vezes histórias que narram o deslocamento do sertanejo

que foge do flagelo infernal da seca, rumo ao litoral que se apresenta ora como solução

promissora ora como uma condenação.

A socióloga Liduina Costa (2005) ao revisitar as matrizes discursivas que

incluíram o nordeste como uma região problemática do país destaca o papel das elites

regionalistas na intensificação da ideia de que os problemas sociais e econômicos

enfrentados pela região eram provocados unanimemente pelas secas. Para ela, esse

fenômeno natural foi socialmente construído e seu significado irá se alterar de acordo

com as circunstâncias socioeconômicas e políticas da Região. Desde o início da

colonização as estiagens já existiam, porém, seus efeitos só terão repercussão política

quando os interesses dos grupos dominantes são afetados.

A seca começa a ser publicitada como calamidade social em virtude de outros

processos relacionados com a crise política da região: o rebaixamento dos preços do

açúcar, a venda de escravos para o Sul, o crescimento demográfico e, segundo

Domingos Neto, “a perda dos traços originais da pecuária extensiva que, objetivando

reproduzir-se, introduz a consorciação de gado com produtos de subsistência e algodão,

enquanto estratégia de salvação” (Apud COSTA, 2005, p.87). A consorciação tem

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como consequência desde uma dependência maior dos fatores naturais, esgotando a

capacidade das condições naturais do solo, à alterações de costumes e modos de vidas

das áreas envolvidas.

Segundo Liduina, a estiagem não seria determinante da quebra do processo

produtivo da criação de gado, mas só “a gota d’agua” de uma situação que já estava

caótica. Porém, na maioria dos discursos, artísticos e políticos, em que há remissões a

essa calamidade com o objetivo de denunciá-la e visibilizá-la, o processo político e

administrativo quando não é escamoteado, é sobreposto por uma série de imagens em

que prepondera um verdadeiro “painel do inferno”, paisagem de dor e sofrimento em

que o homem é submetido ao sol inclemente, à terra infértil e à vegetação agressiva.

Estabelecendo, desse modo, uma relação natural entre as circunstâncias climáticas e a

pobreza da região.

O fenômeno climático surge em algumas narrativas como desencadeador de

transformações radicais na vida das pessoas, desorganizando as famílias social e

moralmente, sendo responsabilizada, inclusive, pela existência do beato e do

cangaceiro. A natureza será referenciada quase sempre como elemento mórbido,

misantropo ou impassível, que nega o sustento das populações sertanejas provocando

migrações marcadas pelos símbolos de sofrimento e miséria.

No seu romance de estreia O quinze, de 1930, Raquel de Queiroz – filha da elite

tradicional nordestina - vai falar do drama pessoal e coletivo vivido pelos cearenses com

a seca de 1915. O fenômeno climático figura na obra como o causador da desintegração

das relações tradicionais de produção e de poder. Nela acompanhamos a história da

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família de sertanejos que é forçada à migração depois que a seca matou o gado da

propriedade rural em que o vaqueiro Chico Bento trabalhava.

O vaqueiro e sua mulher Cordulina chegam à cidade após a amarga trajetória de

retirada que lhes fez passar por situações impiedosas e pela perda de dois filhos. O

primeiro morre após ingerir uma raiz envenenada, o segundo desaparece no meio do

percurso. O romance, apesar de esboçar um retrato comovente dessa trajetória, ao deter-

se nos dramas individuais das personagens, acaba por silenciar os processos políticos

que cerceiam a problemática da estiagem, dando maior ênfase às questões ligadas às

circunstâncias naturais que provocam a deriva e a forma como os sertanejos atravessam

os infortúnios provocados pela migração. O Governo sequer é citado como responsável

por elaborar estratégias que reduzam os impactos dos problemas advindos da questão

climática, restando às famílias que chegam à cidade apenas o apoio e o assistencialismo

das pessoas que se sensibilizam com a situação.

Sem possibilidades de trabalho, famintos e deslocados, os sertanejos que chegam

à Fortaleza se veem forçados a pedir esmolas, abrir mão do único filho que permaneceu

com o casal (Duquinha, o filho caçula de Cordulina, ao chegar em Fortaleza prestes a

morrer de fome, é doado para a madrinha Conceição) e viver da caridade dos citadinos.

Não encontrando uma maneira de garantir o sustento, são obrigados a continuar

migrando para lugares mais longínquos. Chico Bento e a mulher Cordulina, decidem ir

para São Paulo. Sobre esse percurso, a narrativa deixa em aberto, mas há um tom

dramático que se estabelece em torno dessa decisão:

Cordulina aproximou-se enxugando os olhos: – Você já sabe, Sinhá Aninha, que nós vamos todos pro São Paulo? Sinhá Aninha pôs as

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mãos, num espanto ansioso: – Meu Deus! E quando? – Quando, Chico? Ele custou a responder. Qualquer coisa lhe travava a garganta, penosamente. (QUEIROZ,)

A migração é vista como uma condenação, quase uma sina, da qual o sertanejo

não pode fugir. Chico Bento é apenas levado pelas circunstâncias, incapaz de esboçar

qualquer reação. A ida para o Sudeste, ao mesmo tempo em que se apresenta como

única possibilidade de sobrevivência parece espantosa, incerta e ameaçadora.

Em paralelo à história da família de Chico Bento, está a história de amor que não

se realiza entre Conceição e Vicente. Conceição é professora, moça da cidade, possui

ideias feministas e socialistas. Já Vicente é filho de um proprietário rural do sertão,

homem bom e paternalista, fortemente ligado à terra e à família. O casamento entre

ambos poderia representar o encontro e a comunhão entre esses espaços, porém, no

decorrer da história, as incompatibilidades existentes entre os mundos de Vicente e

Conceição, ficam mais acentuadas, e por fim, impossibilitam a concretização desse

relacionamento. O desentendimento entre o casal, num outro plano, reforça a ideia de

que há uma polarização incontornável entre cidade e sertão.

Ademais, os antagonismos presentes na construção do casal promissor de O

quinze evidenciam a própria ambivalência dos posicionamentos políticos que circundam

o projeto literário de Raquel de Queiroz. Se, por um lado, Conceição é capaz de elaborar

ideias que questionam certos funcionamentos opressores da sociedade patriarcal;

Vicente, por outro, aparece como um representante da terra, naturalmente bom e

generoso, indiciando a permanência de uma excessiva idealização do espaço sertanejo

em sua obra. Suas personagens são subversivas na medida em que são sensíveis às

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causas sociais e, de algum modo, estão contestando a ordem industrial e capitalista.

Entretanto é patente a presença de uma visão nostálgica do sertão, onde supostamente

existia uma organização social mais justa, e a sustentação da ideia de que os vínculos

sociais patriarcais seriam formas de poder e controle menos nocivas.

Em O quinze, o sertão figura como uma “utopia comunitária”, lugar de vínculos

“mais humanos”, “mais solidários”, em que os ricos protegem os mais pobres e a

relações não foram maculadas pelos valores da sociedade moderna, espaço harmônico

que só será abalado pela ação nefasta da seca. Essas características idealizadas serão

adensadas em obras posteriores da autora, a exemplo de Caminho das pedras (1937),

em que o sertão surge mais explicitamente apontado como uma alternativa à

organização social da cidade, lugar da revolução social e espaço antiburguês por

excelência. Podemos depreender na produção literária de Raquel de Queiroz a oscilação

entre um Nordeste que se estabelece tanto como um espaço da tradição e da saudade,

um espaço-sertão, natural e vinculado ao paraíso perdido ameaçado pelos novos valores

sociais, quanto como um espaço revolucionário e de resistência, um território possível

de revolução social e transformações mais profundas no país. Posição esta última que

foi assumida mais enfaticamente por outros escritores e artistas na construção

imaginária desse território.

Se num primeiro momento das formações discursivas regionais, o espaço

nordestino foi retratado a partir de imagens que rememoravam o passado idílico e a

tradição, o contexto da década de trinta possibilitou também a emergência de uma outra

sensibilidade regional. Esta se diferenciou daquela por evidenciar um outro modo de

encarar a história:

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Um Nordeste que olhava sem saudade para a casa-grande, que sentia o mesmo desconforto com o presente, mas que também virava as costas para o passado, para olhar em direção ao futuro. Um Nordeste construído como espaço das utopias, como lugar do sonho com um novo amanhã, como território da revolta contra a miséria e as injustiças (...). Um espaço conflituoso, atravessado pelas lutas sociais, “pela busca do poder”. Um espaço fragmentado, em busca de uma nova totalização, de um novo encontro com a universalidade. Um Nordeste não mais assentado na tradição e na continuação, mas sim na revolução e na ruptura. Um espaço em busca de uma nova identidade cultural e política, cuja essência só uma “estética revolucionária” seria capaz de expressar. Nordeste, território de um futuro a ser criado não apenas pelas artes da política, mas também pela política das artes (ALBUQUERQUE, 2011, p. 207)

Essa nova visão do espaço nordestino irá se manifestar em obras de artistas

como Graciliano Ramos e Jorge Amado, mas também terá influxos em décadas

seguintes, contendo reflexos na poesia de João Cabral de Melo Neto, na pintura de

cunho social desenvolvida por Candido Portinari e Di Cavalcanti e no Cinema Novo,

tendo na figura de Glauber Rocha seu maior expoente.

Várias obras artísticas e sociológicas visaram denunciar o quadro de injustiças

que abatia as camadas populares. Buscava-se também reatar no plano ficcional as

práticas e discursos que circunscreveram os espaços castigados pela miséria como

territórios de revolta, com o objetivo de acentuar o potencial disruptivo dos lugares

marcados pelas injunções sociais. Essas discursividades e visibilidades, que propuseram

uma ruptura com a imagem tradicional do Nordeste, sofreram enorme influência do

pensamento marxista. O tom messiânico do marxismo, sua verve revolucionária

ofereceu a possibilidade de vislumbrar um espaço utópico em que as forças opressivas

do presente seriam o fermento da revolução que se realizaria no futuro. Como afirma

Albuquerque Jr:

Assim como a negação do presente pode ser feita por uma volta ao passado, como ocorreu com os tradicionalistas, ela pode se dar também por uma busca de antecipar o futuro, de construí-lo, a partir do presente, de fazê-lo viver no

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presente. A reterritorialização revolucionária é uma forma de tentar um novo território no futuro que viesse a substituir o desconforto com a sociedade do presente. Os intelectuais de esquerda, ao tematizar o Nordeste, encontrar-se-ão com os tradicionalistas, exatamente pela negação da modernidade, entendida como sociedade burguesa; pela negação do capitalismo, da sociabilidade e sensibilidade modernas, ao sonhar com a fundação de uma nova “sociedade comunitária" no futuro e com o fim do dilaceramento das identidades e da separação entre homem e natureza. A geração dos anos vinte e seguinte vive suspensa entre duas sociabilidades, acredita numa transformação eminente do mundo, seja em que direção for. É um momento de intenso sentimento de mudanças e da necessidade de se antecipar a elas, tentando dirigi-las num determinado sentido. A angústia de prever um sentido único para a história deixa claro o próprio medo que o seu aceleramento provoca (pp. 208 – 209)

Desse modo, as abordagens que optaram por uma leitura revolucionária do

território nordestino ao mesmo tempo em que redimensionaram esse lugar, dando-lhe

capacidade transformadora, conjecturaram a manutenção de uma identidade espacial,

que se pensava originária e refratária aos atravessamentos históricos coetâneos. Além

disso, idealizou-se uma ruptura para criar um espaço em que se pudesse no futuro

instaurar uma ordem específica. Isto porque o marxismo - que influenciou e alterou a

abordagem textual e imagética da região - propõe um cenário no qual as direções gerais

da história, inclusive o futuro, já são conhecidas. Muito embora fosse necessário

combater desigualdades e sistemas de exploração, havia sempre no horizonte uma

convicção implícita da direção em que a história se movia, visão unívoca e totalizadora,

que suprimia uma multiplicidade de olhares sociais pela síntese dialética da revolução.

A investida revolucionária, ao passo que se distancia da construção do nordeste

tradicional, associando-o à imagens de rebeldia e ruptura, denunciando os conflitos

sociais emergentes nesse espaço, locupleta o discurso tradicional ao mobilizar

enunciados tidos como elementos permanentes do espaço nordestino. O Nordeste

continua, neste discurso, sendo pensado como um todo unificado sem diferenças

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internas, terra de miséria e injustiças, seca e fome, estratégia identitária que acaba por

reproduzir uma imagem fundada pelos grupos dominantes.

Imagens da seca e suas consequências na vida do sertanejo também irão compor

a trama do aclamado Vidas secas (1937), romance de Graciliano Ramos, que foi

adaptado posteriormente para o cinema por Nelson Pereira dos Santos (1963).

Graciliano, assim como Raquel de Queiroz, era filho da elite decadente regional. Seu

trabalho foi influenciado tanto pelas ideias marxistas como pelo movimento regionalista

tradicional (que o fez atentar para a necessidade de pensar e tematizar o Nordeste).

Deste último, porém, Graciliano se distancia ao construir uma reversão da linguagem,

da textualidade e da visão tradicionalista. Ao invés do sertão idealizado, em que as

relações entre os donos de terras e trabalhadores eram cordiais, praticamente familiares

(questão que vemos em O quinze), em Vidas secas as relações sociais e de trabalho, são

conflituosas. A obra desvela o modo como as classes detentoras de saber e poder

exploram e oprimem os trabalhadores. Além disso, sua obra parte para uma

experimentação radical de linguagem. O escritor incorpora um “narrador inculto”, que

manipula elementos da linguagem popular de maneira crítica, sem depreciá-la. Uma

linguagem cortante e irônica, estratégias estas que o fizeram escapar dos perigos de

reproduzir a ideologia dos que estavam no poder.

A secura provocada pelo fenômeno natural parece manifestar-se de todas as

formas em Vidas secas: na perspicácia da linguagem, na supressão dos diálogos, na

dureza dos acontecimentos que abatem Fabiano e sua família. Ainda que parte da

narrativa se desenvolva em tempos prósperos, o que faz com que a obra não possa ser

lida como apenas um romance sobre a seca, as imagens que fazem referência à estiagem

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serão tão intensas, que provocará uma irradiação em toda a narrativa. A paisagem estará

presente desde a ambientação da caatinga com sua vegetação seca, amarela e retorcida,

às personagens que se falam de forma ríspida, grunhida e quase sem palavras. Alfredo

Bosi (1975) observa que a paisagem ocupa um espaço central na obra, sendo ela o fio

condutor a perpassar todo o enredo – “as personagens são figurantes em meio à natureza

que devora suas vidas” (p. 451). Para Antonio Candido “o drama de Vidas secas é

justamente esse entrosamento da dor humana na tortura da paisagem” (2006, p. 66).

O mundo do sertão no romance de Graciliano se transmuta num “mundo de

penas”, a paisagem que oprime a família de nordestinos é cheia de rios mortos e leitos

rachados, torrados pelo sol. Onde se pensava água na verdade era lama. Os animais que

surgem no céu, sempre limpo, “cheio de claridades de mau agouro”, são aves de rapina

que precisam que algum ser vivo morra para que elas possam se alimentar. Quando

Fabiano não está sofrendo com as inclemências naturais, está sendo explorado pelo

patrão ou humilhado pelas autoridades. Não há sequer necessidade de explicar o que

seria o inferno, não apenas porque o parco vocabulário das personagens impossibilita,

mas porque a própria vida naquele espaço já o é: “Sinha Vitoria, distraída, aludiu

vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu

os ombros” (RAMOS, 2006, p.55).

Em Vidas secas, ao contrário do romance O quinze, apesar da dureza da

paisagem, a deriva das personagens não será motivada apenas pelo cenário degradado.

O que impossibilita a permanência no sertão está associado também a um conjunto de

circunstâncias insustentáveis: o patrão que não paga o valor correto, as autoridades que

abusam do poder e a total ausência de perspectiva futura para os filhos. A migração, ao

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mesmo tempo que não garante que Sinhá Vitória, Fabiano e os meninos se livrem dos

problemas vivenciados no sertão, permite que estes vislumbrem outras possibilidades e

sonhem com uma vida diferente:

As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era. Repetia docilmente as palavras de Sinhá Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos. (RAMOS, 2006, p.128)

Porém o que faz a obra de Graciliano se distanciar de uma visão simplificada do

drama dos sertanejos será a maneira como o narrador abordará esse universo. Em Vidas

secas, o narrador utiliza ocasionalmente o discurso indireto-livre com o intuito de se

aproximar do mundo introspectivo das personagens. Conforme Alfredo Bosi (2003)

afirma em Céu, inferno, a narrativa de Graciliano estrutura de um lado uma tática de

aproximação, em que o narrador consegue ter acesso aos pensamentos da personagem, e

por outro, implanta uma dúvida, registrando a parcialidade do narrador e a dificuldade

de aproximação do sertanejo. A parcialidade exposta denota a consciência que

Graciliano tinha de que, se por um lado o silêncio dos sertanejos era resultado de uma

vivência marcada pelo total desamparo social, como ele enfatiza em sua obra, por outro,

esse mesmo silêncio representava o limite enfrentado pelo próprio escritor ao falar em

nome do subalterno.

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Luís Bueno pontua que certa vez o escritor disse, sobre seu livro São Bernardo,

que não podia representar a vida do roceiro pobre porque “o caboclo é fechado, se

esquiva à observação, se faz impermeável ao contato” (2006, p.244). Graciliano tinha

consciência da distância que havia entre sua condição de intelectual letrado e a do

caboclo. Em Vidas secas, como observa Bosi, concomitante a denúncia da precariedade

do universo do último, havia também um olhar desencantado ao discurso “civilizado”;

se a voz do caboclo é apontada como fragmentada e lacônica, a voz do intelectual se

caracteriza como “oca”, “inútil”. Ao mesmo tempo em que se via na obrigação moral de

falar dos desvalidos, posto que enxergava uma sociedade deformada, intuía o

contrassenso gerado na tentativa: “as nossas personagens são pedaços de nós mesmos,

só podemos expor o que somos” (BUENO, 2006, p.245)

Sem dúvida alguma, Vidas secas plasma de uma forma mais complexa a

condição de subalternidade, problematizando o próprio limite do escritor ao tentar

representá-la. Graciliano denuncia as mudanças sociais vivenciadas pelos sertanejos que

sofreram as circunstâncias da chegada do processo modernizador, sobretudo, nas

regiões em que ainda se mantinham modos de produção considerados arcaicos. Porém,

muito embora sua obra tenha sido plausível e fundamental para dar visibilidade às

dificuldades produzidas pelas contradições concernentes à sociedade brasileira, não quer

dizer que ela não tenha gerado, por outro lado, um outro problema: a inscrição desse

território numa clave identitária que o associa a um feixe limitado de imagens-síntese

que, na maioria das vezes, ressaltam sua condição de atraso, obliterando uma

multiplicidade de universos e perspectivas aí existentes.

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O próprio Graciliano, em crônica publicada no livro Linhas tortas, problematiza

a repetição e o excesso de imagens apocalípticas associadas ao sertão:

Realmente, os nossos ficcionistas do século passado (...) contaram tantas cenas esquisitas, derramaram no sertão ressequido tantas ossadas, pintaram o sol e o céu nordestino com tintas tão vermelhas, que alguns políticos, sinceramente inquietos, pensaram em transferir da região maldita para zonas amenas os restos da gente flagelada (RAMOS,1962, p.135).

Ainda que Graciliano tenha revisitado essas imagens para escrever Vidas secas,

o escritor se posiciona de forma crítica em relação aos excessos. Na época, os romances

regionalistas de trinta alimentaram várias polêmicas, dividindo opiniões acerca da sua

forma de se aproximar da “realidade” da região. Em A Invenção do Nordeste, Durval

Muniz cita o crítico paulista Sergio Milliet que acusava a produção regionalista de

transmitir um olhar parcial da realidade, trazendo à tona apenas os aspectos miseráveis

da região. Enquanto que para Ademar Vidal e outros críticos nordestinos, o que se

vivenciava no Nordeste era muito mais dramático do que as obras retratavam.

Em Infância, ao falar sobre o sertão que permeia sua memória. Graciliano

Ramos ressaltará algumas camadas inacessíveis desse espaço:

Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em secas posteriores e guardo na memória um açude cheio coberto de aves brancas e de flores. A respeito dos currais há uma estranha omissão, estavam na vizinhança, provavelmente, mas isso é uma conjectura. Talvez até o mínimo necessário para caracterizar a fazenda meio destruída não tenha sido observado depois. Certas coisas existem por derivação e associação: repetem-se, impõem-se – e, em letra de forma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em que os ramos não

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estivessem pretos e as cacimbas vazias. Jogamos com eles, e se desprezamos alguns, o quadro parece incompleto (1980, p. 22) [Grifos meus].

É muito curioso perceber como Graciliano coloca em dúvida as imagens do

sertão que habita sua memória individual, questionando as representações tradicionais

que ele próprio recria na sua narrativa. Sua escrita sobre o espaço sertanejo, em geral,

estaria comprometida com um “hábito”, uma repetição. O sertão da memória – já

submetido a suturas, desvios – confronta o arquivo de imagens construído na tradição,

arquivo que pela repetição “se impôs”, “criou raiz”. Se tornando praticamente

obrigatório tocar nessas visibilidades já consagradas para dar verossimilhança à sua

obra. Isto quer dizer que diante de um número infinito de focos e abordagens que um

espaço suscita, dentre uma série de experiências e abordagens possíveis para o sertão

nordestino, Graciliano – bem como seus contemporâneos e antecessores – optaram por

um único viés. É a tradição literária existente que o coage a dizer apenas aquilo que foi

inventado como crível e verossímil acerca dessa espacialidade. Essa verossimilhança

está comprometida com a denúncia de alguns aspectos sobre a região, o que requer que

muitos outros sejam silenciados.

Muito embora a memória seja uma construção ao mesmo tempo individual e

coletiva, intermitentemente sujeita ao curso da história e suas descontinuidades,

oscilações e retornos, é necessário admitir que ela se atém a certos pontos que se

consolidam como “marcos referenciais”. Esses referentes elaborados na tradição

inscreveram o sertão nordestino ora como espaço idílico, ora como território em crise,

consolidando marcos (temas, imagens, discursos) que foram submetidos a mudanças ao

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longo do tempo, mas que tendem a reaparecer em algumas narrativas como se não

tivessem sofrido grandes alterações.

Em A invenção das tradições, Hobsbawn e Terence (1984) apontam que os

aparatos tradicionais utilizam uma “estratégia de atualização” para continuarem vivos

em novos contextos. A volta a símbolos já reconhecidos pode tanto levar à construção

de novas significações a partir destes, como também cristalizar imagens que, assumidas

como verdades imutáveis podem consolidar determinados estereótipos. Homi Bhabha

observa que “o esteriótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de

uma dada realidade. É uma simplificação por que é uma forma presa, fixa, de

representação” (1998, p. 117). Um exemplo de atualização simplificadora de referentes

tradicionais do espaço sertanejo pode ser visto no filme Caminho das nuvens (2003) de

Vicente Amorim.

O filme narra a história de um casal e cinco filhos que se deslocam de bicicleta

do Nordeste para o Rio de Janeiro em busca do sonho de possuir um salário de mil

reais. Repete-se aqui o estigma do sertanejo que, sem possibilidade de condições dignas

na sua terra, está condenado ao deslocamento. O paradoxo que concentra essa imagem é

que, mesmo após décadas de fluxos contínuos, de gerações que saíram do sertão, o

sertanejo, todavia, ainda é representado como um sujeito de raízes fortes que carrega

sem fraturas suas heranças culturais (e sua pobreza econômica). Além disso, o espaço

do sertão é visto como local que permanece fixo como se após décadas de trânsitos de

toda ordem – migratórios, tecnológicos, econômicos – ele ainda pudesse se manter

isolado.

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Conforme nos avisa a contracapa do filme, as personagens atravessam “cinco

estados brasileiros” até chegar ao Rio de Janeiro. Entretanto no processo de

deslocamento destas personagens há uma estratégia de indiferenciação das localidades

que fazem parte do Nordeste, o sertão é apresentado como um contínuo, que

reconheceremos apenas pelas imagens-clichês que o filme mobiliza: o sertão amplo e

vazio, vegetação retorcida, céu azul, sol estourado, chão vermelho e atividades

econômicas ligadas à produção artesanal. A homogeneidade do espaço atravessado só

será quebrada quando a família ultrapassa o litoral e logo após quando eles se

aproximam da cidade de destino. O filme também negligencia todas as áreas urbanas

existentes no Nordeste brasileiro ao mesmo tempo em que aponta que um trabalho de

mil reais seria algo impossível na região.

Quando a família nordestina de Caminho das nuvens chega ao Rio de Janeiro é

como se não houvesse outra opção para eles que não fosse integrar os dados estatísticos

que indicam o inchaço das periferias dos grandes centros do Sudeste. A narrativa

associa-os diretamente à existência das favelas e aos problemas que dela advém. As

personagens ao adentrarem a favela no fim da viagem se surpreendem negativamente,

como se não acreditassem que essa fosse uma parte expressiva da cidade, o filme sugere

que as personagens até então estavam totalmente alheias às problemáticas urbanas e que

possuíam apenas a imagem “cartão-postal” desatualizada do Rio de Janeiro. Muito

embora o filme se passe no início do século XXI, após várias produções audiovisuais e

difusão massiva da cartografia periférica do Rio, a família oriunda do sertão, todavia é

representada como desinformada em relação à ela, indicando que até então eles viviam

“sem rádio e sem notícia das terras civilizadas”.

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Os escritores regionalistas que retrataram o processo migratório, que reaparece

no filme mencionado, estavam imersos num momento histórico alarmante, em que a

fuga do campo para a cidade era um fenômeno massivo e atingia um contingente

expressivo de pessoas11. A organização dessa experiência nas obras literárias e

artísticas, ao mesmo tempo em que tinha o objetivo de despertar a sensibilidade e a

responsabilidade da nação para a problemática, encerrou os grupos envolvidos em

verdadeiros quadros de horror que suscitaram pena, solidariedade e até revolta, mas

também causaram repulsa, medo, estranhamento e preconceito. A atualização desse

processo, completamente esvaziada do contexto histórico e social, colabora para que

sobreviva um estigma e uma relação mal resolvida com esse grupo. Para Regina

Dalcastagnè, quando a figura do migrante (quase sempre pobre e nordestina) aparece

nas nossas narrativas, geralmente eles surgem sob os mesmos espectros. São

personagens que “são tão exploradas, sofrem tanto nas metrópoles que parecem estar ali

apenas para, em missão didática, esclarecer que esse, definitivamente, não é o seu

lugar” (2011, p. 139).

O processo de migração do Nordeste do país para o Sudeste esteve sempre

associado às dificuldades geográficas da região que minavam a possibilidade de

sobrevivência e provocavam fome e pobreza generalizada. A fome será outra imagem-

força que atravessará o acervo textual e imagético desse território.

É ainda sob a influência do pensamento marxista que surgirá duas obra

sociológicas estratégicas para dar visibilidade à esse aspecto da região: O outro

nordeste, de Djacir Menezes, publicado em 1937 e Geografia da fome, de Josué de

11 Walnice Nogueira Galvão observa que o censo de 1930 assinalou pela primeira vez a reversão da balança que até então alocava aproximadamente 70% da população ao campo e 30% às cidades, reversão que não é alheia ao surgimento do romance de 1930.

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Castro, publicado em 1946. A primeira, sobretudo, irá denunciar não apenas as

diferenças crescentes entre Norte e Sul do país, como também irá detalhar as diferenças

internas da própria região, chamando atenção para o fato de que o Nordeste não seria

apenas a região dos engenhos e da mata, mas que nela também existia o seu “outro”, a

“civilização do couro”, uma parte segregada e abandonada que necessitava de uma série

de intervenções políticas para superar sua condição de extrema pobreza. Já a segunda se

propõe, a partir de uma visão ampla do problema da fome – presente na época tanto no

Oriente como na Europa do pós-guerra – destrinchar o modo como ele se apresentava

em diferentes regiões do país. Josué de Castro problematiza o silenciamento das mortes

por falta de comida, tanto no cenário mundial como no próprio Brasil, que, embora

possuísse focos assombrosos dessa questão, todavia conservava a ideia planteada pelos

discursos nacionalistas de que o país era uma terra vasta e fértil, com diversidade de

solos e climas em que “se plantando tudo dá”.

Geografia da fome esclarece que o problema de fato não era provocado por

limitações naturais, mas sim por aspectos políticos e sociais. A região do Sertão

nordestino será apontada na obra como marcada por uma “fome epidêmica”, ou seja,

que exibe ciclicamente o problema e se caracteriza como uma calamidade coletiva que

leva a população a um completo estado de inanição.

A fome se constituirá numa imagem-força que será recorrente nas visibilidades

artísticas que evocam a região. Ela tomará materialidade pictórica nos traçados da série

Os retirantes, de Portinari, que abandonará as conhecidas formas arredondadas, os

frutos que faziam referência à fertilidade da terra brasileira nos rincões do sul (lugar

onde o artista passou a infância), para dar relevo às figuras fantasmagóricas e

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pontiagudas dos meninos barrigudos e esquálidos do sertão. Estará nas rimas secas e

agudas de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e se instalará com uma

tensão angustiante na atmosfera d’ Os fuzis, de Ruy Guerra.

Este último põe em cena a indigna ação de um grupo de soldados que se instala

em Milagres, cidade do sertão, para proteger um depósito de alimentos da população

que está faminta. Mesclando elementos ficcionais e documentais, o filme trabalha

blocos paralelos em que, a princípio, personagens que representam a população local

estão em primeiro plano. O efeito documental é reforçado pelo depoimento de pessoas

pertencentes ao próprio lugar em que se roda o filme12. Os planos em que os sertanejos

aparecem narrando suas vidas, angústias e desejos são longos e estáticos, adensando a

sensação de que o tempo do sertão seria outro e que aquelas pessoas estariam

condenadas a uma imobilidade remota. Seus depoimentos, que se estendem numa

narrativa longa, enfatizam o cunho oral da cultura sertaneja.

No entanto, o fio condutor principal da trama será a tensão entre os soldados e

um grupo de retirantes que ali chegam. Neste plano os soldados monopolizam a maior

parte das falas, o povo surge majoritariamente como uma entidade homogênea e

anônima, perambulando em grupo pelas ruas, emitindo clamores, novenas e seguindo

um beato que prega a adoração de um boi que fará chover. A atuação dos soldados só

será questionada pela personagem que não pertence ao sertão e vem de um lugar

diametralmente oposto: o forasteiro Gaúcho.

12Eduardo Valente observa que Ruy Guerra, apesar de ter incluído “efeitos documentais” à sua obra, filmando pessoas pertencentes ao sertão baiano, não colheu o conteúdo desses depoimentos espontaneamente, eles foram elaborados pelo próprio diretor juntamente com o roteirista Miguel Torres. In: http://www.contracampo.com.br/27/fuzismatraga.htm acesso em: 09/06/2013

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Apesar de não possuir um discurso ideológico sólido, nem ter atitudes concretas

que visem dar uma solução ao cenário deprimente da cidade, Gaúcho é capaz de esboçar

questionamentos sobre a função moralmente indefensável dos soldados que protegem a

comida enquanto parte das pessoas definham de fome. Sua revolta, porém, parece se

mover mais por uma rixa de ordem pessoal do que por um comprometimento político

com o povo. Ao ver que os soldados estão partindo com toda a comida, Gaúcho insulta

um sertanejo que vai ao bar, em que este se encontra, para pedir uma caixa em que

pudesse enterrar o filho que acabara de morrer. Inconformado com a passividade e

imobilismo geral dos sertanejos diante daquela situação, rouba o rifle de um dos

soldados e atira contra o motorista do carregamento; logo após cometer o delito, Gaúcho

é perseguido e morto.

Em Os fuzis a revolta é desencadeada por alguém que não pertencia ao universo

retratado. Para Jean Claude-Bernardet, em Brasil em tempo de cinema (1967), o

elemento externo que se rebela ou que tem a receita para a mudança, se repetiu em

vários momentos do cinema brasileiro da época. Os cineastas buscavam retratar os

problemas do “povo”, mas as soluções apresentadas vinham quase sempre de elementos

de fora das camadas populares. Caberia à eles revelar o caminho e a verdade, já que

deteriam o saber revolucionário, do qual seriam desprovidas as classes menos

favorecidas. Soluções que demonstravam a dificuldade de dar voz ao “povo” ou mesmo

inseri-lo como agente da própria revolta. Quando a revolta era mobilizada por figuras

pertencentes às camadas populares, ela se apresentava de forma anárquica e irracional.

O indivíduo não tinha consciência de contra o quê se revoltava, nem mesmo se

propunha a mudar coisa alguma. A solução encontrada para essa revolta inconsciente

era sempre a alienação, seja sob a forma de violência caótica, seja no misticismo

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histérico que se apresentavam como vias alternativas para o camponês, sobretudo, para

o sertanejo que se convertia em cangaceiro ou fanático em situações extremas.

O filme do Ruy Guerra surge no contexto do Cinema Novo brasileiro, neste

período, as produções eram realizadas por intelectuais das classes média e alta que

pretendiam assumir a perspectiva da classe operária, colocando-se junto às forças

“progressistas” contra as “reacionárias”, a fim de resgatar o potencial de rebeldia da

cultura popular. A morte de Gaúcho após seu “ato heroico” parece indicar uma certa

antecipação de Ruy Guerra em relação à “batalha” travada pelo próprio cineasta

brasileiro e sua luta quixotesca para ordenar as massas no caminho da revolução.

O Cinema Novo, na década de 1960, incorporou elementos edificados no

romance de trinta, mobilizando uma série de imagens e enunciados com o intuito de

transmitir a realidade social do país, tendo em vista que esses romances se afinavam

com a sua proposta estética e política. Ou seja, algumas produções cinematográficas do

período fizeram uma releitura imagética do Nordeste que já estava esquadrinhado na

literatura. Do ponto de vista estético, o Cinema Novo também se alimentou de vários

referentes artísticos internacionais: o neo-realismo italiano, o cinema revolucionário

russo, o cinema americano e a nouvelle vague francesa, principalmente as produções

dos cineastas Antonioni, Sergei Eisentein, John Ford, Alain Resnais, para citar alguns.

Como aponta Vera Lúcia Foullain de Figueiredo (2010), nesse período, a

narrativa cinematográfica foi, progressivamente, assumindo a função de criadora do

imaginário nacional, função que até então era desempenhada pela narrativa literária. O

projeto de formação nacional ganhou novo fôlego a partir das ideias postuladas pelo

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movimento cinemanovista, que via a possibilidade de construir uma nação ideal pelas

mãos do “povo”. Entretanto, representar o nacional requeria necessariamente fechar os

olhos para as áreas urbano-industriais do país e sobrepujar a sociedade burguesa. Era

necessário alterar a posição da câmera, olhar o país a partir do sertão, através da criação

de um cinema que rompia com a técnica “perfeita”. O movimento cinemanovista

buscou revelar uma cultura na sua relação com a história, alterando os critérios de

produção da imagem no país, ignorando o complexo de inferioridade e o temor desta

cultura em falar de si própria.

As propostas políticas do movimento foram postuladas no texto “Estética da

fome”, escrito por Glauber Rocha, sob a influência das ideias de Frantz Fanon e do livro

Geografia da fome, de Josué de Castro. Sua “estética da fome” sugere o abandono do

olhar de “vitimização” e “denúncia” diante da pobreza, corrente no pensamento

sociológico-político das décadas 1960 (e que nunca deixou de ter adeptos). A ideia era

dar um sentido afirmativo e transformador para os fenômenos ligados à fome, à pobreza

e à miséria latino-americanas, buscando “reverter forças auto-destrutivas máximas’ num

impulso criador, mítico e onírico” (BENTES, 2007, p. 243). Para Ivana Bentes, Glauber

sintetiza o esforço do pensamento e da intervenção política do cinema moderno

brasileiro, atacando com virulência

“o paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo”. Analisava a “linguagem de lágrimas e mudo sofrimento” do humanismo, um discurso, político e uma estética incapaz de expressar a brutalidade da pobreza. Transformando a fome em “folclore” e choro conformado. Um texto corajoso contra certo humanismo piedoso, contra as imagens clichês da miséria que até hoje alimentam o circuito da informação internacional. Glauber coloca uma questão, que a meu ver não foi superada nem resolvida nem pelo cinema brasileiro, nem pela televisão, nem pelo cinema internacional (BENTES,2007, p. 243).

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Para Ivana Bentes, esse intento ético e estético de se aproximar do pobre sem

paternalismos e/ou sem estereotipar seu universo ainda não foi solucionado (nem

mesmo no próprio Cinema Novo); as questões que são mobilizadas no texto de Glauber

ainda geram indagações: “como mostrar o sofrimento, como representar os territórios da

pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore, no paternalismo ou num

humanismo conformista e piegas?” (p. 244). Na ocasião, Glauber apresentou sua

resposta para o desafio lançado. Para ele, só seria possível destruir os clichês sobre a

miséria através de uma estética da violência, segundo a qual seria necessário violentar a

percepção, os sentidos e os pensamentos do espectador. Efeito nem sempre alcançado

nas obras que se reportaram aos territórios de pobreza do país.

Já previamente demarcado como território da falta no imaginário nacional, o

sertão nordestino encarnará a localização periférica por excelência, a partir da qual, a

produção intelectual e artística irá problematizar a condição de subdesenvolvimento.

Filmes como o já citado Os fuzis, de 1962, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e

Vidas secas (1963), adaptado da obra literária de Graciliano Ramos, recolocam questões

já associadas a essa territorialidade: a fome, o êxodo, e as intempéries sociais que

assolavam a região e as questões ligadas ao deslocamento dos retirantes nordestinos.

Ismail Xavier (2000) afirma que há uma tradição crítica literária que pensa o

sertão do buriti e “dos gerais” e o sertão das vidas secas como uma continuidade. Esta

condição permitiria que as obras de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães

Rosa marquem suas diferenças a partir do mesmo eixo de questões do complexo

cultural, social e econômico da “civilização do couro”. O crítico coloca que o cinema

herda esse locus da tradição literária e, a partir do Cinema Novo, estabelecerá um ponto

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de contato intenso que se consolidará na adaptação de Vidas secas e perpassará o

cinema de Glauber Rocha, no qual seriam evidentes os influxos das obras consagradas

de Euclides da Cunha, José Lins do Rêgo e Guimarães Rosa.

Nas obras de Guimarães Rosa, sabe-se que a visão de sertão se redimensiona e

passa a ser “um significante mais abrangente, numa perspectiva multi-identitária, para

dar conta da heterogeneidade cultural, do hibridismo que o constitui, quando olhado

mais de perto13”. Para Ismail Xavier, este universo rosiano, porém, esteve presente nas

telas em percurso rarefeito, na quantidade, e de menor densidade quando comparado

com o cinema dos ciclos da seca e da caatinga. Assim, o cinema recorrerá com maior

ênfase aos desenhos do sertão inventados por Euclides e pelos escritores de trinta, que o

localizam dentro de uma categoria espacial balizada por suas injunções sociais.

Na adaptação cinematográfica de Vidas secas, de Graciliano Ramos, o retirante

surge como um tipo local que migra tentando escapar da seca catastrófica e da fome que

devasta a região. A câmera posicionada na maior parte do filme de forma fixa cria um

efeito de realidade na tela, o que dá ao filme um tom documental. O diretor, Nelson

Pereira dos Santos, declarou que fez a adaptação do livro do Graciliano Ramos com o

propósito de contribuir com o debate da reforma agrária que estava na ordem do dia.

Na versão cinematográfica, elementos como a luz estourada – que em outras

situações pode ser entendida como erro fotográfico – aqui, assume status de linguagem

e reforça a imagem de desolamento e secura que compõe a paisagem local. Esse

procedimento narrativo marcará parte das obras que recorrerão o sertão posteriormente.

13 Lourival Holanda disponível em: http://www.coletiva.org/site/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=70&Itemid=76&idrev=9 . Último acesso 15 de julho de 2012

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A fotografia em preto e branco potencializa o cenário rústico da geografia severa

retratada no filme. A sonoplastia plasma o silêncio que permeia a obra literária

intensificando a monotonia daquele universo. O som foi elaborado com base nos ruídos

do próprio espaço do sertão. Esses ruídos só são rompidos, quando Fabiano vai à sede

da fazenda receber seu dinheiro e ouve o violino tocado pelo professor da filha do

patrão, ou quando surge a banda de pífano nordestino, no passeio à cidade. Além disso,

no momento em que Fabiano é preso, sua dor se intensifica ao toque do bumba-meu-boi

no lado de fora da cadeia. Nesse momento é mais pungente o sofrimento de Fabiano,

posto que enquanto as pessoas se divertem na festa do lado de fora, ele se contorce de

dor dentro da cela, ferido e humilhado. No filme a associação entre o espaço do sertão

do nordeste e o inferno fica mais nítida do que no livro, quando o menino mais velho

olha para a paisagem após ser agredido pela mãe ao perguntar o que significaria aquela

palavra e repete inúmeras vezes: “inferno, inferno!”.

Dentro do espectro de filmes produzidos no sertão nordestino, talvez Deus e o

diabo na terra do sol seja o que mais dialogue com a proposta inscrita pelo sertão

rosiano. Neste filme, diferentes elementos do universo erudito e do popular se

relacionam de modo a provocar uma sobreposição de distintas vozes e a dissolução da

distância que separa esses dois universos. Por exemplo, alguns relatos orais e uma

música de cordel aparecem lado a lado de uma peça sinfônica de Villa Lobos

(XAVIER, 2000, p. 95). Contudo, ainda que o filme tenha realizado uma saída estética

para a convergência entre esses dois mundos é necessário destacar que Glauber não

conseguiu aproximá-los em termos políticos, nem mesmo suas ideias e seu cinema

foram apropriados massivamente como ele desejava.

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Para Angela Prysthon (2008), a figura do sertanejo, que já havia se consolidado

em narrativas anteriores como representante da identidade nacional, foi apropriada

muitas vezes no cinema deste período para simbolizar tanto uma encarnação de um

ideal romântico de pureza e autenticidade, quanto o “povo”, que, diante das

circunstâncias difíceis, inerentes à sua condição, torna-se sujeito dotado da capacidade

de provocar transformações políticas radicais. Isto para ficar apenas em algumas das

muitas chaves em que o “povo” figura nessas narrativas, uma vez que os

posicionamentos da esquerda neste período foram marcados justamente por uma forte

ambiguidade no que se refere à noção abstrata de “povo”. O cangaceiro, por exemplo,

tornar-se-á, ora um testemunho da capacidade de revolta das camadas populares, ora

prova da falta de consciência política dos dominados.

Nos filmes de Glauber Rocha, especificamente, essas tensões e ambivalências,

assumem um papel determinante, na medida em que suas narrativas alegorizam as

questões concernentes à nação, levantando questionamentos sobre as possibilidades de

revolução no país, ao mesmo tempo em que problematizam os empecilhos existentes

para a concretização revolucionária pelas mãos das classes populares.

É bem verdade que em Deus e o diabo há a mobilização de uma série de

imagens-clichês associadas ao sertão, referenciadas logo nas primeiras cenas: “a seca, o

gado morto, o vaqueiro, o beato seguido por homens e mulheres pedindo chuva”

(ALBUQUERQUE, 2006, p.314). Porém, não se pode deixar de observar que na

narrativa esses elementos serão redimensionados. A maneira como Glauber trabalha

tempo e espaço na obra abstrai situações e personagens de uma referência ou concretude

imediatas. A própria cena final que conjuga sertão e mar reforça o caráter imaginativo

do espaço. Como aponta Pedro Paulo Gomes Pereira, “o sertão é geralmente construído

como região separada e distante do litoral, ao aproximá-los, Glauber salienta a

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ambiguidade e indeterminação espacial” (2008, p.64). O sertão no caso, não é

exatamente um espaço específico e referente de uma regionalidade, mas uma

territorialidade que, condensada, reúne as características que definem uma questão

nacional.

Deus e o diabo possui um forte componente alegórico e a partir da condensação

dos elementos espaciais, confere ao espaço e aos sujeitos representados um caráter

totalizador. Como observa Ismail Xavier:

o filme de Glauber radicalizava a ideia de um isolamento do sertão como mundo autônomo, dotado de lógica própria, personagens próprios, força própria. Tal endogenia é condição para que tal mundo possa adquirir a qualidade do que, separado do resto e organizado como um cosmos fechado, se torna um espaço alegórico que representa a nação. Trata-se de um mundo ascético, sem nenhum resíduo de urbanidade, habitado por personagens que vivem em condições mínimas, com o fardamento típico de acampamento cangaceiro ou de vaqueiro pobre (2000, p.114).

Se por um lado foi necessário efetuar a operação de síntese e isolamento do

sertão para discutir a macronarrativa social do país, por outro, esse esforço incorreu

num apagamento de matizes, ambiguidades e particularidades importantes do território

e das pessoas que o habitam.

O interesse cinematográfico por representar o sertão que se deu no Cinema

Novo, voltará a aparecer no final do século XX, no momento que ficou conhecido como

“retomada”. Nesse momento alguns filmes voltam a abordar o sertão, desenhando-o

segundo as características já pontuadas nas páginas anteriores, mesmo após uma série

de modificações na ordem interna do país e, ademais, na configuração global.

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Para Lucia Nagib (2006), no processo de retomada nos anos 1990, surgiram

novamente obras que visavam à manutenção da matriz identitária. Depois de alguns

anos de pouca ou nenhuma produção significativa, por motivos que mencionarei

adiante, os cineastas fizeram um deslocamento para temáticas e espaços ligados ao

passado cinematográfico do país.

Central do Brasil, de Walter Salles, por exemplo, revisita o topos do sertão

nordestino e opta por um caminho inverso do tomado no seu trabalho anterior, Terra

estrangeira – filme este marcado por um sentimento fortemente antiutópico, em que

suas personagens à deriva jamais encontram lugar possível14. Em Central do Brasil,

Salles recupera a utopia do paraíso reencontrado, fazendo uma inversão do movimento

migratório, com personagens que seguem do litoral para o sertão, lugar agenciado para

representar o espaço arcaico acolhedor de uma pátria lisonjeira perdida.

No filme, a ideia de “volta pra casa” funciona como metáfora da restituição da

pátria e se desdobra em vários planos. O primeiro deles se dá no interior da trama

narrativa, a partir da viagem que fará o menino Josué em busca do pai desconhecido.

Em paralelo acompanharemos também, a viagem dupla de Dora, personagem que além

de se deslocar para o interior do país, fará um deslocamento para o interior de si própria;

ela que a princípio nos é apresentada como figura hostil, desonesta e insensível, à

medida que se distancia da cidade, recupera sua densidade ética. No deslocamento de

Dora, veremos reconstruído o sentido moderno de viagem como experiência que oferece

possibilidades de aprendizado moral. Num outro plano, a volta se configurará na

14 Em Terra estrangeira, dois jovens artistas acossados pelas circunstâncias desestabilizadoras do quadro político e econômico do país na era Collor se encontram em Portugal e vivenciam uma experiência dolorosa de exílio que interrompe de maneira brutal seus sonhos e os desejos.

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revisitação dos espaços cinematográficos de força do Cinema Novo. O filme busca

nessa menção ao sertão certa filiação com o passado cinematográfico brasileiro.

No Road movie de Walter Salles o cotidiano insuportável da metrópole será

substituído pelo universo apaziguador dos conflitos que é o sertão. Esse movimento é

possível, porque dialoga com determinadas construções discursivas que alinham o

sertão ao locus amoenus do mundo rural. O sertão inventado enquanto lugar arcaico,

sem resíduos de urbanidade, ou seja, infenso aos valores em liquefação na metrópole,

gera a utopia de que haveria nesse lugar, condições para a restituição dos valores que

foram pulverizados na cidade; seria o interior do país, o verdadeiro centro, novamente o

“Brasil verdadeiro”, um centro não contaminado, original, ingênuo.

É necessário destacar também, que neste e em outros filmes desse período,

houve a idealização da figura do oprimido:

há uma representação condescendente do nordestino, em que o desejo do encontro e a recorrente indagação acerca da existência de uma identidade própria terminavam por evocar uma vez mais a noção de autenticidade com que tantas vezes se nivelou grandes segmentos da população, irredutíveis em suas diferenças (PRYSTHON e RAMALHO, 2008)

Para Lucia Nagib, em Central do Brasil, a maneira como se apresenta o povo

brasileiro – ou melhor, o nordestino já vivendo na cidade grande – ecoa aspectos

daquilo que Marilena Chauí chamou de “mito fundador brasileiro”, que mobiliza dentre

tantos outros esteriótipos a ideia de que o brasileiro/nordestino é pacífico, ordeiro,

generoso, sensual, mesmo quando sofredor, etc.

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É necessário sublinhar que os cineastas envolvidos no momento de retomada,

vinham de uma experiência anterior traumática de transformações provocadas pelo

período da ditadura e da democratização pós-ditadura. Nesses anos, o país assumiu com

ferocidade o modelo neoliberal, caindo por terra as utopias cultivadas pelo furor

revolucionário nos 60. Além disso, houve um grave desmonte das bases financiadoras

do cinema nacional – primeiro com a decadência da Embrafilme seguida do seu

fechamento pelo governo Collor. Muitos profissionais do cinema foram forçados a sair

do país, e quando não, tiveram que migrar para outras áreas. Ou seja, a sensação de

desterritorialização foi vivenciada não apenas no âmbito político, mas também

tangenciou questões pessoais e profissionais dos envolvidos na produção de filmes. Por

isso, talvez, a obsessão reterritorializante dos cineastas envolvidos no momento de

retomada, como se a partir da demarcação dos espaços nacionais e suas peculiaridades,

o cineasta (e o cinema produzido por ele), também restituísse seu lugar.

Ao pesquisar sobre o período pós-ditatorial no Chile, Nelly Richard observou

uma determinada persistência de imperativos de reconstrução dos sentidos fraturados

pela violência do regime. O que Richard pontua é que permaneceu uma necessidade de

reafirmar a crença num continuum histórico, fato que levou inclusive muitos militantes

de esquerda a se empenharem na preservação das noções de que fazia uso o discurso

oficial “mesmo que ambas as formas de discursos, opostas, mobilizassem tais noções

‘com sinais invertidos” (apud, PRYSTHON e RAMALHO, 2008). Desse modo, a

empreitada que se impunha à esquerda tradicional no momento de crise se configurou,

sobretudo, na crença no “desenlace redentor da história” e sua transcendência:

A violência expropriadora do novo regime de força fez com que muitos artistas sentissem o dever de responder ao imperativo moral de ter que reconstituir o sentido feito pedaços (remendando histórias, reconfigurando totalidades), para

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remediar assim os efeitos do dilaceramento da identidade. Por isso, as místicas solidárias de um “nós” reunificador de vivências; a restauração da tradição em imagens do passado que vão forjando laços de pertencimento e enraizamento comunitários; a remitificação do “nacional-popular” como traço essencializador de uma consciência homogênea de classe e nação; o fundamentalismo messiânico das utopias15.

A análise empreendida por Nelly Richard – guardando as devidas diferenças

históricas entre Brasil e Chile – pode nos ajudar a compreender o processo pelo qual

passou o cinema dos 90. Este recorreu ao repertório simbólico do Cinema Novo – cujo

impulso totalizador e messiânico era indissociável de uma proposta política

emancipatória –, porém, em chave mais conservadora. O Cinema Novo era para esses

cineastas o referente seguro em que se podia recobrar um sentido restaurador da nação.

A reciclagem de símbolos nacionais foi também vista como uma alternativa para conter

o processo desagregador e desterritorializante da globalização; como estratégia para

conter os impasses gerados pela sensação de perda da unidade nacional.

Porém é necessário também destacar que alguns filmes sinalizaram uma

incipiente ruptura com a imagem tradicional do sertão. Baile perfumado de Paulo

Caldas e Lírio Ferreira, por exemplo, apostou numa fluidez maior dos espaços

geográficos. A caatinga onde se esconde lampião está verde, as águas dos rios e das

cachoeiras são imagens mais frequentes que as dos lugares secos e áridos.

O filme apresenta fragmentos de um documentário realizado por um libanês nos

anos 30, no qual há imagens do bando de Lampião. Esse filme é sintomático de uma

determinada erosão da representação do sertão como lugar inacessível. Em vez disso,

15 PRYSTHON e RAMALHO, Do sertão às microterritorialidades: transfigurações estéticas e fragmentações políticas. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/033/FABIO_RAMALHO.pdf . Último acesso em 12 de setembro de 2012.

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apresenta um sertão que perde o seu isolamento insular para se interligar ao litoral,

através de circuitos de trocas de produtos, trazendo à cena a figura do cangaceiro que

gosta de música, cinema, uísque e perfume. O filme é fundador de um novo gênero no

cinema brasileiro, o “árido movie”, que propõe várias misturas, não apenas linguísticas:

“trata-se da abordagem do Brasil por meio de um instrumental internacionalizado,

alheio ao purismo do projeto nacional que alimentou o início do Cinema Novo”

(NAGIB, p.53).

Essa abordagem que tende a descolar o sertão nordestino da constelação de

imagens e temáticas nas quais ele tem sido tradicionalmente envolvido se adensará mais

em algumas experiências contemporâneas que ensejam o desejo de inseri-lo em outros

conjuntos de ideias, com o intuito de liberá-lo dos elementos que tão frequentemente o

caracterizam.

Ao longo deste capítulo, acompanhamos através da análise de obras importantes

no processo de constituição da nação/região, o modo como o sertão nordestino foi

inventado. Apesar das mais variadas abordagens estéticas, das distintas motivações e

dos diferentes processos históricos que tangenciaram aquelas produções ficcionais, de

modo geral, elas colaboraram para a elaboração do imaginário sobre o território

sertanejo como o espaço simbólico do “Outro”, oposto à civilização, oposto ao

“progresso”, arcaico, periférico, por vezes “exótico”, “exuberante”. Plasmaram em sua

paisagem imagens de sol, cactos, desertos, secas, delinearam sua fauna, sua flora, o

comportamento de mulheres e homens, geralmente famintos, miseráveis, violentos,

originais, silenciosos, ingênuos. Apontaram suas manifestações religiosas e o universo

ideológico ao qual pertencem. O sertão figurou ora inferno, ora paraíso e por vezes

utopia, possível lugar de fuga onde se pode encontrar o centro do país, a origem

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redentora. Cravado no sertão está este continuum de símbolos e temas pelos quais hoje

ele é reconhecido. Ao retrilhar esse caminho, é possível perceber que foi a partir de uma

repetição mais ou menos regular, que essas imagens puderam se enraizar no imaginário

nacional.

Aqui, como no caso da arqueologia de Michel Foucault, o que é importante não

é estabelecer uma “lista dos santos fundadores”, mas “revelar a regularidade de uma

prática discursiva que é exercida, do mesmo modo, por todos os seus sucessores menos

originais, ou por alguns de seus predecessores”. (p. 161). A retomada de discursos, sua

reaparição, é que cristaliza o objeto, o modela e remodela.

Os discursos não são o resultado ou a descrição detalhada e verdadeira dos

objetos de que tratam, mas eles são os seus construtores, eles os erguem. Cada

enunciado, cada visibilidade e discursividade, elabora ou transforma o seu objeto e é

esse o processo que os institui.

As obras literárias e cinematográficas que tentaram enunciar o sertão nordestino

e a gente que o habita, ao mesmo tempo que cumpriram um papel fundamental para dar

visibilidade a certos problemas que afetam a região, colocando questões cruciais na

pauta nacional, ajudaram a naturalizar certos elementos pelos quais o espaço ficou

reconhecido. Além disso, repetidamente associaram a figura do sertanejo a símbolos de

sujeição e passividade, o que pode ter consequências inesperadas como as apontadas por

Fredric Jameson:

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quanto mais se insiste nessa miséria e impotência tanto mais os que as sofrem passam a ser vistos como vítimas fracas e passivas, facilmente dominadas, conformando-se assim imagens que podem ser tomadas como ofensivas, capazes mesmo de enfraquecer aqueles que retratam.( JAMESON, 2000, p. 6)

Isto não quer dizer, claro, que seria pertinente criar a região fechando os olhos

para os conflitos que nela existem. É necessário complicar a região, tensioná-la,

interrogar esses territórios e suas respectivas identidades e subjetividades atribuídas.

Isto só será possível a partir da construção de variadas perspectivas. Perspectivas que

não contemplem apenas o olhar do intelectual. Um aspecto que permeia todas as obras

analisadas neste capítulo é a precariedade com que inscrevem, quando o fazem, as

próprias vozes dos sujeitos representados. Mesmo Glauber, quando insere os cordéis e

os cantos populares em seus filmes já o faz através de uma estilização dos mesmos. É

necessário exibir a coexistência de diferentes modos de ser, de diferentes estilos de vida,

de mundos múltiplos, de muitas formas de sentir e perceber a pobreza, a violência, e de

responder a ela. É necessário dar a ver a heterogeneidade que caracteriza todo e

qualquer território.

Regina Dalcastagnè observa que no século XIII quando Marco Polo escrevia seu

livro de viagens, o escritor utilizava seu senso crítico para refutar parte de algumas

lendas sobre as quais possuía informações novas, mas era cuidadoso o bastante para não

negar “elementos que a geografia de seu tempo considera bem reais, por exemplo, os

homens com cauda ou com cabeça de cachorro. O fato de não tê-los encontrado, não é

prova suficiente de sua inexistência, sobretudo diante do peso da tradição” (2012, p.

24). Ou seja, apesar do seu senso crítico, em Marco Polo o “outro” aparece com as

feições que a tradição lhe deu – deformado pelos fantasmas, pelo olhar de quem o

representou. De maneira análoga, no nosso tempo, obras que tentam construir críticas a

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certas imagens tradicionais do outro, acabam por reforçar essa imagem “fazendo de

gente que vive a nossa volta, seres tão distantes ou estranhos quanto os mongóis no

tempo de Marco Polo” (2012, p. 24).

Se, como foi observado, no final do século XX algumas narrativas ainda

apontavam uma ânsia para resgatar os ícones “originários” gestados na tradição, com o

desejo de restituir a totalidade nacional, é necessário reconhecer que outras

discursividades e estratégias despontaram, questionando os limites que constituem um

dado lugar geográfico. Esses questionamentos se aprofundarão no começo do século

XXI, em narrativas que abrangem formas de ocupação e vivência do território mais

subjetivas; controvertem o pertencimento, as raízes, o discurso de origem; embaralham

as fronteiras entre diferença, identidade, inclusão, exclusão; e oferecem outras formas

potenciais de imaginar o território sertanejo. É sobre essas obras que iremos nos

debruçar nos próximos capítulos.

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2. ESTE LUGAR É OUTRO

Em A invenção do cotidiano, Michel de Certeau (p.199) relata que na Atenas

contemporânea, o transporte coletivo se chama metaphorai. Os gregos utilizam

“metáforas” para atravessar a cidade e se deslocarem de um ponto ao outro. Certeau

evoca o curioso nome do transporte público na Grécia para recuperar a relação

inextrincável entre narrativa – lugar de produção de metáforas por excelência - e

deslocamento. As narrativas nos movem entre lugares geográficos e discursivos. Haja

vista seu poder de instituir uma geografia imaginativa, as narrativas possuem valor de

sintaxes espaciais, são “práticas de espaço” que, ao nos levar a lugares diversos,

prometem o bilhete de passagem do “eu” ao “outro”.

Assim, nos deslocamos no capítulo anterior por entre diversas narrativas do

século XX que consolidaram uma maneira de abordar o espaço do sertão nordestino.

Erigiu-se um “mapa dominante” que cartografou determinadas linhas e traçados desse

território ora destacando sua potência utópica, ora distópica16. Neste mapa, o sertão foi

encarado concomitantemente como o índice sumarizado da região nordeste, o lugar para

16 Cabe lembrar que para Durval Muniz tanto as abordagens que se referiram à região como território da saudade, como aquelas que a vislumbraram como território revolucionário (entre utopias e distopias), trataram esse espaço como uma matéria dada, ocultando o trabalho de construção histórica elaborado sobre ele. O que implicou no apagamento das diversas temporalidades e espacialidades que ali coexistiam. Os mais variados elementos foram utilizados para controlar as categorias identitárias, tais como: a memória, o discurso essencialista, os elementos culturais e etc., construíram uma redoma em que a região foi envolvida. Essas identidades quando estabilizadas, para além de gerar uma identificação profícua e, em determinados momentos, possibilitar conquistas sociais, políticas (e motivar experiências culturais e estéticas inegavelmente interessantes) podem ocultar mecanismos de dominação e poder, como foi exposto no primeiro capítulo.

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onde se deve ir para recuperar a identidade nacional originária, e de onde se deve fugir

para sobreviver.

Este último aspecto, sobretudo, a fuga para os grandes centros do país,

principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, foi trabalhado em inúmeras narrativas que se

referiram ao sertão. Narrativas que se ocuparam primordialmente em contar a

experiência dos que partiam para a cidade, ora a caminho de um destino incerto, ora no

embate com as dificuldades provocadas pela des/territorialização.

No início do século XXI, uma quantidade significativa de narrativas cumpre um

caminho inusitado de volta ao espaço do sertão nordestino. Filmes como Árido movie

(Lírio Ferreira, 2005), Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) Viajo

porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karin Ainouz, 2009), O céu de

Suely (Karin Ainouz, 2006), e o romance Galileia (Ronaldo Correia de Brito, 2008),

tomam uma trajetória oposta daquela que levou os sertões às cidades. Estas obras

buscam agenciar uma cartografia que desestabiliza o imaginário dominante a respeito

das pequenas cidades sertanejas, bem como, das paisagens, subjetividades e histórias

que habitam esse espaço.

O sentido de cartografia aqui referido aproxima-se daquele proposto por Suely

Rolnik no seu livro Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do

desejo. Para Rolnik, diferentemente do mapa que representa um todo estático, a

cartografia se estabelece como “um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo

que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 1989, p.15). A

cartografia estaria atenta às mutações das sensibilidades coletivas, à dissolução de

determinados mundos e a consequente emergência de outros, encarados como territórios

transitórios e em constante devir. Não por acaso, o movimento é uma das marcas

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presentes nas narrativas que atravessam o sertão na ultima década. Narrativas que, por

meio da viagem, deflagram as tessituras contemporâneas da paisagem sertaneja, ao

mesmo tempo em que interrogam formas essencializadas de pertencimento e identidade.

Metáfora cara às narrativas ocidentais, a viagem é interpretada comumente como

símbolo que pressupõe um enfrentamento do desconhecido, o ato de abandono dos

espaços seguros da vida, movimento de encontro com o Outro. Renato Ortiz (1996) nos

lembra de que nas narrativas de viagem da antiguidade clássica o viajante era impelido

ao movimento sob a sina da vontade divina. Entretanto, na idade moderna,

provavelmente a partir dos românticos, o deslocamento se liberta do sofrimento causado

pela carga obrigatória da imposição divina e se converte idealmente em excitação e

prazer. O autor observa que “o homem moderno tem uma autonomia própria, uma

individualidade distinta dos humores divinos; o movimento é fruto de sua volição

pessoal” (ORTIZ, 1996, p. 30). Para ele, o viajante moderno se destaca porque “coloca

em comunicação lugares que se encontram separados pela distância e pelos hábitos

culturais. Nada os interliga, a não ser o movimento da viagem, realizada por uma

motivação alheia à sua própria lógica” (ORTIZ, 1996, p. 30).

Entretanto, as mudanças contemporâneas provocadas, sobretudo, pela ação

daquilo que Arjun Appadurai definiu como tecnopaisagens, ou seja, as tecnologias,

mecânicas e informacionais, que transpõem em grande velocidade diversos tipos de

fronteiras antes impenetráveis, provocou uma série de alterações no sentido da viagem e

no papel do viajante. Na medida em que lugares antes desconexos vivem processos de

intercâmbios culturais intensos, facilitados pelos avanços tecnológicos, as “distâncias” e

os “hábitos distintos”, a que se refere Ortiz, se redimensionam.

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O movimento de volta ao sertão nesse primeiro decênio do século XXI exibe não

apenas personagens que transitam entre partidas, retornos e passagens, mas também se

atém à circulação dinâmica de produtos, tecnologias e imagens desterritorializadas que

fazem parte do cotidiano sertanejo. Cabe ressaltar que essa conjuntura é bastante

conhecida e experienciada por quem vive no sertão e nas pequenas cidades brasileiras

como um todo, mas ainda muito “estranha” às ficções que se reportam a esses espaços.

Desse modo, a figura do viajante que, como afirma Renato Ortiz, tradicionalmente

desempenhou o papel de ligar pontos totalmente distintos e longínquos –

frequentemente articulando paralelos e diferenças entre o centro e o interior do país -

surge agora entrecortando lugares já intensamente entrelaçados pela globalização como

configurada hoje. O que veremos são imagens que flagram um espaço local em

consonância com a atual (des)ordem mundial, captando o complexo de mutações,

resistências e contaminações sofridas em decorrência dos influxos transnacionais.

Esses acontecimentos se devem em parte ao conjunto de práticas complexas a

que convencionamos chamar de globalização, fenômeno que afeta as instâncias

econômicas, políticas e culturais em escala planetária. Descrito como um sistema de

trocas (físicas e simbólicas) feitas com extrema rapidez e abarcando pontos extremos do

planeta, a globalização provocou uma interdependência entre espaços distintos do

mundo.

Embora aparentemente um fenômeno recente, suas ações já eram perceptíveis no

século XV, quando as experiências de colonização, empreendidas por vários países

europeus, iniciaram um conglomerado de trocas em larga escala, redefinindo as relações

entre distintos espaços nacionais. O resultado do surgimento dessas relações foi a

construção de uma teia que enredou lugares geograficamente e historicamente

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separados, em uma lógica de acumulação de riquezas dependente de um funcionamento

em escala mundial. Lógica responsável pela constituição de um mercado transnacional

de bens e que estimulou o fluxo migratório entre as nações, incluindo aí um intenso

tráfico de escravos que serviam de mão-de-obra nas economias mundiais.

Na segunda metade do século XX, porém, esse processo se intensifica

drasticamente. A convergência de uma série de transformações produtivas, financeiras,

demográficas e tecnológicas provoca uma dependência do mundo não apenas maior,

mas também diferente da que se estabeleceu no período de colonização do Novo

Mundo.

Para o antropólogo indiano Arjun Appadurai, a globalização, como conhecemos

hoje, provocou uma circulação incalculável e permanente de imagens e pessoas. Esta

condição mudou significativamente as noções de identidade, localidade e imaginação,

dando origem ao surgimento de identidades híbridas, de localidades que estão sempre

em mutação e de imaginários que se fundam sem referentes territoriais rígidos. Como

observa também Néstor García Canclini (2008) em vista dos constantes fluxos, a cultura

teria perdido uma relação “natural” com territórios geográficos e sociais específicos.

Nesse sentido os objetos culturais flutuam sem obrigatória relação de fidelidade com os

territórios originários.

Appadurai (2004) observa que o imaginário coletivo contemporâneo e, portanto,

a maneira de pensar os territórios, se vê hoje atravessada por uma arquitetura relacional

composta por: etnopaisagens (constituída por pessoas que habitam o mundo em

deslocamento: turistas, migrantes, refugiados); financiopaisagens (os fluxos do capital

em escala global); tecnopaisagens (tecnologias que transpõem em alta velocidade

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diversos tipos de fronteiras antes impenetráveis); ideopaisagens (concatenação de

imagens de origem política, produzidas pelos instrumentos ideológicos do Estado) e

mediapaisagens (responsáveis pela disseminação eletrônica de vastos e complexos

repertórios de imagens e narrativas para espectadores de todo o mundo). A adoção do

sufixo paisagem funciona como um indicativo de que estas não são relações

objetivamente dadas, idênticas de todos os ângulos de visão, mas que são, pelo contrário

“construções profundamente perspectivadas, inflectidas pela localização histórica e

política de diferentes actores” (p.51).

Estas dimensões paisagísticas produto de trânsitos variados – de pessoas, ideias,

capital e imagens – instigam formas particulares de se trabalhar o imaginário. Nesse

sentido, a subjetividade contemporânea é considerada o resultado da justaposição de um

conjunto de irregularidades específicas superpostas. Mas a subjetividade dos indivíduos

hoje não é só resultado dessas justaposições, pois eles também atuam sobre elas. O

sujeito, cercado de narrativas por todos os lados, transforma “pedaços de paisagens” em

uma série de elementos a partir dos quais é possível inventariar vidas imaginadas,

“narrativas do Outro [...] protonarrativas de vidas possíveis, fantasias que podem tornar-

se prolegómenos ao desejo de aquisição e movimento” (p.54). Isto se deve em parte ao

papel que o imaginário desempenha no mundo pós-eletrônico se transformando numa

prática social que se desprendeu do espaço exclusivo da arte do mito e do ritual, e

passou a fazer parte do trabalho mental cotidiano da gente comum.

Para o antropólogo indiano, todas essas transformações das formas de contato

com o Outro e de trocas simbólicas, permitiram que chegássemos ao paroxismo das

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formas sociais e coletivas da imaginação, desse modo, podemos considerar que hoje

transitamos por uma pluralidade infinita de mundos imaginados.

Entretanto, se por um lado é notável a existência de esferas como a internet, por

exemplo, que possibilita um intercâmbio de produções simbólicas provocando uma

ampliação das diversidades, por outro, é necessário ressaltar que os atores sociais

envolvidos na construção da imaginação pública não compartilham das mesmas

condições de interferência e poder de expressão. Não podemos apagar o fato de que

existem assimetrias globais, que provocam, por exemplo, a predominância no mercado

global de produtos, subjetividades, estilos de vida, que passam a ser cultuados,

desejados e frequentemente mimetizados de uma ponta à outra.

Para Karl Eric Shollammer (2007), a ação dos mercados internacionalizados

provocou um afrouxamento das diferenças culturais. Um viajante contemporâneo que

queira sair em fuga da sua identidade ocidental irá se deparar com um mundo devorado

pela sua cultura, quando não, terá que se contentar em consumir a diferença como

mercadoria. O crítico nomeia ainda o exótico como “experiência impossível”. Para ele

“não há nada hoje que possa ser considerado completamente desconhecido ou

inesperado, ou talvez a alteridade se tenha metamorfoseado em formas mais complexas”

(2007, p. 174). O autor ainda argumenta que “a alteridade não aparece mais numa

periferia apontável, ou mesmo no interior de uma selva inexplorada, ela se apresenta na

superfície do cotidiano do mundo plenamente conquistado pela civilização” (p.175).

Elena Palmero González (2010) resume uma ideia de James Clifford em

Dilemas de la cultura da seguinte forma: “a ‘diferença’ cultural não se apresenta mais

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como uma estável exótica alteridade, as relações eu/outro se revelam, mais do que

nunca, nas relações de poder, de retórica, não de essência” (GONZÁLEZ, 2010, p.111).

O que se pode observar é que em um contexto transnacional como o que vivemos, a

diferença cultural não está mais geograficamente localizada a quilômetros de distância

sertão adentro, ela não é mais necessariamente desconhecida e convive

permanentemente próxima. Está logo ali na casa vizinha, sutilmente espalhada pelas

cidades e escancarada nos embates acalorados das disputas simbólicas nas redes sociais.

E embora sua morada esteja ao lado, ela ainda gera graves tensões na nossa

contemporaneidade.

Mediante todas as transformações geopolíticas vivenciadas pelo mundo e sua

dinâmica cada vez mais intercultural, de que modo, neste contexto, a ficção

contemporânea se reporta às pequenas cidades? Que discursos são elaborados sobre as

novas formas de viver, de pensar, sobre as novas modalidades de trabalho, sociabilidade

e também de sujeição vivenciadas nesses espaços que, tradicionalmente, quando não

foram apagados das produções ficcionais, foram apresentados como territórios fixos,

estáveis e impermeáveis às produções simbólicas de outros lugares?

Nestór García Canclini (2008) observa que num mundo marcado por fluxos de

toda ordem “o local costuma estar em outro lugar” (p. 60). Para Denilson Lopes (2012)

“a autonomia do local é cada vez mais redimensionada pelo consumo de mercadorias

provenientes dos mais diversos lugares, pelas imagens televisivas, pelo que se ouve no

rádio e pelos trânsitos entre as culturas” (p. 145). Assim, ao pensarmos as pequenas

cidades e os lugares “longe demais das capitais”, não podemos, como

convencionalmente acontece, concebê-los como algo fora da partilha de imagens e

informações midiáticas e dos deslocamentos.

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Cabe lembrar, que estes deslocamentos não se restringem a pessoas pertencentes

às elites culturais e econômicas, uma quantidade numerosa de trabalhadores legais ou

clandestinos se desloca pelo mundo em busca de melhores condições de vida. Neste

contexto, é necessário insistir em que os trânsitos globais que envolveram um

movimento que afetou todas as classes sociais, mesmo que de forma desigual, também

modificaram sobremaneira não apenas as configurações dos grandes centros, mas

também das pequenas cidades:

ainda que em menor escala do que as metrópoles e as cidades globais, as pequenas cidades estão conectadas às paisagens transculturais e se transformam em ‘translocalidades’ pelos fluxos midiáticos que redimensionam o próximo e o distante (LOPES, 2012, p.145).

Os relatos que tradicionalmente moldaram a imaginário acerca das pequenas

cidades foram na maioria das vezes convocados a ressaltar os aspectos que marcavam a

diferença local em contraste permanente entre o cá e o lá, o aqui e o alhures,

construindo polarizações entre centro e periferia a partir da ideia de que estes espaços

seriam dotados de características físicas e simbólicas bem definidas e isoladas.

A marcha à ré ficcional que nos levou de volta ao sertão na última década,

entretanto, propõe um exercício que vai num sentido inverso: o ficcionista não ressalta

apenas o que salta aos olhos como diferença radical, mas concentra-se na esfera do

comum entre o próximo e o longínquo, lançando um olhar atento às zonas de contato e

relações existentes entre espaços separados por inúmeras fronteiras (geográficas,

culturais, simbólicas). Este movimento é feito não para atestar que o mundo virou uma

coisa só, assolado por eventos que devoraram e homogeneizaram cada canto do planeta,

mas sim para mostrar o funcionamento dessas dinâmicas globais em espaços concebidos

como infensos a elas.

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É o que podemos perceber em vários momentos do romance Galileia (2006), de

Ronaldo Correia de Brito. Ao som de “paranoid android”, (música da banda inglesa

Radiohead) os primos Adonias, Ismael e Davi, vindos de pontos diferentes do mundo,

cortam o asfalto quente do sertão numa camioneta importada rumo à fazenda Galileia

para o aniversário de Raimundo Caetano, patriarca da família, que agoniza entre a vida

e a morte. A viagem de volta ao espaço de “origem”, ao invés de reestabelecer o

encontro apaziguador com a casa primeira, provoca uma série de estranhamentos, bem

como a abertura dos porões da memória e a consequente revisitação às feridas

familiares, inconciliáveis.

Ao optar por uma narrativa que se faz em trânsito, Galileia registra uma série de

paisagens fragmentadas que indiciam os aspectos transculturais que flutuam no

território sertanejo. Em um ritmo que se aproxima ao do cinematográfico,

acompanhamos uma trajetória para fora e para dentro dos espaços e personagens,

construídos sob o ponto de vista de Adonias, médico oriundo do sertão de Inhamuns,

que vive em Recife e já percorreu várias partes do mundo. Sua narrativa se erige através

de reticências, flashes, cortes, supressões e impressões, articulando cenas do cotidiano

contemporâneo e cacos da memória sertaneja, que vão se confundindo com a própria

memória da família Rego Castro.

Em Galileia, a ideia de um sertão isolado, fechado em si mesmo e constituído

por referências estáveis, vê-se abalada por uma série de modificações significativas que

indiciam um espaço sócio-cultural que assumiu novos arranjos. A paisagem geográfica

e social é invadida por lan houses, parabólicas e aparelhos celulares. A banda de forró,

tradicionalmente formada por um trio pé-de-serra, que toca sanfona, zabumba e

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triângulo, aparece apropriando-se de instrumentos como guitarra, teclado, baixo e

bateria. O vocalista, ao contrário das roupas tradicionais associadas aos cantores de

música popular, mais parece um híbrido roqueiro-forrozeiro com “um piercing no nariz

e roupa preta brilhosa” (BRITO, 2008, p. 34). Assumem-se também novas atividades

econômicas concernentes às exigências do mercado. Neste sentido tio Salomão “planta

mamona, de olho nos biocombustíveis” (BRITO, 2008, p. 114). No lugar da lavoura de

algodão surge o cultivo de maconha, e em meio a todas essas alterações uma mulher

tange o gado em cima de uma motocicleta.

A força do romance, porém, não está na forma como ele expõe um cenário em

que símbolos da tradição aparecem transformados ou em choque com símbolos da “pós-

modernidade”, mas no modo como estes aspectos são problematizados na obra.

Questão que pode ser observada, por exemplo, na narrativa do dono de um bar na beira

da estrada, lugar em que os primos param para comer no meio da viagem. Podemos

perceber através do relato deste senhor, que conta as motivações que levaram seu filho à

prisão, incidências dos discursos midiáticos na (trans)formação dos sujeitos

contemporâneos:

Mas ele quis um celular! Desejou não sei pra quê. Não tem nenhuma utilidade aqui. Nem pegar pega [...]Ele viu na televisão e achou bonito. Agora, os rapazes acham feio vestir roupa de couro, botar chapéu na cabeça. Estão no direito deles. Pra que serve vestir roupa de couro, botar chapéu na cabeça, se não tem boi pra correr atrás? Roupa de couro perdeu o valor porque não tem utilidade. Serve apenas pra dançar xaxado, folclore, o senhor conhece. Telefone celular tem utilidade pro senhor, pro seu trabalho. Pra mim não porque aqui não pega. O rapazinho meu filho roubou o aparelho por vaidade, por luxo. E foi preso porque arrombou a loja. (2008, p. 38-39)

O paralelo entre o celular e a roupa de couro mostra que ambos são artigos sem

utilidade no sertão e mobiliza duas questões – primeira que as tradições vinculadas à

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utilização da roupa de couro não tem o mínimo sentido dada a modificação dos modos

de sobrevivência no sertão, e as próprias mudanças nas práticas rurais; sendo sua

permanência mantida apenas pelo folclore, dispositivo que se presta à manutenção e à

cristalização dos costumes. Segunda, que o desejo de possuir o celular mesmo que o

aparelho não funcione, indicia a forma como os sujeitos contemporâneos se relacionam

com as mercadorias.

Para Appadurai, a mercadoria não está atrelada necessariamente a um “valor de

uso” como entendia Marx. O valor de uso não é um dado natural agregado ao objeto,

mas sim, uma construção orientada por um esquema cultural, determinado por relações

assimétricas de poder e reciprocidade, que provocam inclusões ou exclusões no interior

desse esquema. As mercadorias, portanto, antes de servirem para cumprir uma função

útil, possuem uma função cultural e simbólica, funções politicamente construídas.

Além disso, como observa Canclini em Consumidores e cidadãos (2005) num

cenário em que o Estado e os mecanismos representativos tradicionais desaparecem ou

são assumidos por corporações privadas, e a participação social é organizada mais

através do consumo do que mediante o exercício da cidadania, as mercadorias

funcionam antes como elementos estruturantes das identidades, elas determinam os

papéis sociais e tornam legíveis as comunidades às quais o sujeito pertence.

Para ele o consumo “é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela

desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade através da

distribuição e apropriação de bens” (p.54). Assim, possuir um produto não é apenas um

ato de satisfação de uma necessidade utilitária, mas também uma disputa pela distinção

simbólica. Entretanto, a diferenciação social através do consumo de mercadorias só é

possível porque o mesmo sistema que distribui as promessas desses produtos para todos,

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torna-os acessíveis para poucos. Desse modo, ao roubar um aparelho que na prática não

serviria para o que foi destinado, o rapaz não está apenas cometendo um “ato

irracional”, ou mesmo objetivamente interessado em usufruir a sua utilidade “natural”,

ou seja, o seu valor de uso, mas antes seu ato revela o desejo de apreender o universo

simbólico prometido pelo objeto roubado, de pertencer à sociedade do consumo e

disputar seus produtos, bem como, os meios de usá-los.

O relato do roubo no livro é narrado concomitante a outros acontecimentos:

televisão ligada em volume altíssimo, uma banda se preparando para ensaiar, e as

próprias divagações interiores de Adonias se interpondo aos acontecimentos exteriores.

A fala do senhor surge entrecortada, marcada por frases soltas, sendo interrompida,

retalhada, abrindo espaços em branco na página. Estes elementos narrativos assinalam a

fragmentação que corrompe os próprios relatos orais, mesmo em lugares reconhecidos

por nutrirem uma forte oralidade.

Recurso de grande força da cultura nordestina, a narração oral se caracteriza pela

concatenação de acontecimentos cadenciados, numa montagem profundamente

ordenada. Em entrevista, Ronaldo Correia de Brito pontua como os choques culturais e

a introdução de determinados elementos de forma abrupta ou mesmo virulenta dentro de

certas culturas, provocam uma “desordem no discurso”, uma desestruturação que

começa na impossibilidade de narrar: “as pessoas perdem as suas formas de narrar, a

sua maneira de falar e se desordenam. A fala se desordena, o discurso se desordena e a

oralidade entra em pane” (2008, p. 225).

No trecho em que o dono de bar relata a prisão de seu filho, não é somente sua

narrativa que entra em curto-circuito, mas a própria escuta de Adonias, convulsionada

por inúmeras informações. Oriundo do sertão cearense, Ronaldo Correia de Brito, relata

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o modo como a chegada do radio e da televisão e, posteriormente, a internet,

desorganizaram as narrativas orais:

as pessoas mais velhas, que tinham o hábito de falar e um público que as escutava ou se interessasse por suas falas, hoje já não possuem esse auditório. [...] Nas casas que eu frequentava há alguns anos, há 30 anos, cujas visitas consistiam em encontrar todas as pessoas sentadas na sala e se conversar horas e horas, hoje você chega e a televisão está ligada, a conversa entremeia um intervalo de comercial e outro. Isso é comum quase em todas as casas, é um fato que se alterou. (BRITO, 2008, p. 255)

A interferência dos ruídos provocados pelos aparelhos que levam sons e imagens

de um mundo externo também invadem a sala de estar da família Castro. No mesmo

momento em que tio Natan conta histórias “a claque da televisão ri, vozes se agitam,

gritam, choram. As vibrações sonoras disputam o espaço.” (BRITO, 2008, p. 205).

Atordoado pelo coro dissonante estabelecido pela superposição de falas, Adonias

pontua:

Natan fala com pausas ensaiadas. Os ruídos de um comercial preenchem o silêncio de cada pausa. Quem fala mais alto? Natan cala. Avó Raquel aumenta o som da televisão. Natan se levanta. Salomão e Josafá se levantam em seguida. Tento abstrair a televisão. Escuto os teclados dos computadores... (BRITO, 2008, p. 205).

Correia de Brito, numa montagem de cena que parece obedecer a um roteiro

cinematográfico, põe em conflito sons que pertencem a universos antagônicos ainda que

estão no mesmo espaço, no qual parece não haver mais lugar para a tradição – o orador

se cala, mediante a indiferença dos demais, e triunfa o controle remoto que, por fim,

expulsa o orador da sala.

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Apesar de a obra mostrar o processo de deterioração de determinados traços da

identidade cultural sertaneja, ela não preconiza a morte de todos os seus elementos.

Tudo está por um fio, como a vida de Raimundo Caetano e as ruínas da fazenda

Galileia. O patriarca que se encontra entre a vida e a morte parece personificar a própria

cultura sertaneja, ser o reduto de sua memória. Sua morte indiciaria o ultimato dos

signos tradicionais que doam sentido ao sertão. Entretanto, o patriarca contrariando

todas as expectativas não morre: “O mundo reluz após vinte e um dias de chuva, tempo

em que me encolhi indeciso, esperando que o avô morresse, mas ele não quis morrer.

Preferiu continuar vivo, empestando o mundo com seu cheiro podre” (BRITO, 2008, p.

225). Adonias comenta a permanência do avô quando está trilhando um caminho

desesperado de volta pra casa, caminho redirecionado pela sensação de perda desse

referente, desencadeada pelo (des)encontro com o sertão. O cheiro do avô nesse

percurso, todavia o acompanha, permanece em sua memória, revelando uma incipiente

sobrevivência desse referente ainda que rarefeita e inapreensível.

Se por um lado, o patriarca não morreu, por outro, também não foi curado. Se o

passado é alegorizado no corpo moribundo de Raimundo Caetano, o presente

representado na figura do neto médico, que fez uma apropriação do conhecimento

científico e se especializou no exterior, também não sinaliza para uma solução

suficiente para sarar as feridas do avô, para restaurar a Galileia. Da mesma forma que

toda a tecnologia, todos os aspectos citadinos apropriados pelo sertão tampouco foram

suficientes para resolver seus problemas.

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No livro o passado não figura de forma estanque nem como algo que

simplesmente deixou de existir, mas como um elemento que também sofreu

metamorfoses e recombinações. O passado também não é aludido como um tempo

marcado pela gloria ou pela escassez, Correia de Brito não entretece em sua obra o tom

nostálgico que acompanhou diversas narrativas regionalistas, que, como já citado,

geralmente faziam denúncias dos problemas sociais reivindicando um retorno às velhas

sociabilidades patriarcais. O abandono do tom nostálgico, porém, não significa uma

acrítica celebração do novo, mas sim uma contextualização do sertão concernente com

as demandas requeridas pela contemporaneidade. O “novo” tampouco se configura

como solução ou resposta para o sertão. Pelo contrário, a existência de um “novo” antes

redirecionou tanto seus problemas como também sua condição de possibilidade.

A tradição dos contadores de história sertanejos é trabalhada na obra a partir dos

personagens Tio Salomão e seu irmão Natan. Ambos são uma espécie de guardiões da

memória da família. O primeiro, dono de uma vasta biblioteca, se aprofunda num

discurso genealógico que busca reconstituir as origens dos Rego Castro. Salomão é um

herdeiro da tradição regionalista, um defensor dos símbolos, das histórias e

manifestações culturais que “caracterizam” o povo sertanejo. Seu regionalismo soa um

derivado da cartilha de Gilberto Freyre. Sua defesa apaixonada pela região é olhada com

desconfiança pelo sobrinho: “Tio Salomão é um regionalista. Existe coisa mais fora de

moda que um regionalista?” (BRITO, 2008, p.163). O sobrinho aponta ainda a

ambivalência da posição e das ideias defendidas pelo tio: “Julga-se um intérprete da

cultura brasileira, porta voz dos pobres e desvalidos, sem abrir mão das regalias de um

nobre.” (BRITO, 2008, p. 161).

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Adonias descreve Tio Salomão como um sujeito celibatário que, sem filhos, não

terá para quem transmitir e perpetuar seus saberes, estabelecendo aí um interdito, um

obstáculo para a manutenção de uma memória que depende da difusão através da

oralidade para garantir sua permanência. Muitas vezes, o próprio narrador se sente

coagido a propagar o acervo de histórias inventariadas pela família, mas se sente

impossibilitado, pela incapacidade de preencher os espaços vagos que marcam sua

própria formação:

O relato do homem lembra os livros da biblioteca do avô Caetano, todos parcialmente comidos pelas traças e cupins. Difícil encontrar algum que não tivesse buracos no miolo das folhas, em que não faltassem páginas inteiras, obrigando-me a imaginar o que não conseguia ler, a tornar-me parceiro de autores famosos. [...] No melhor das histórias, os insetos vorazes comiam páginas inteiras, provocando um hiato na minha formação intelectual. Meu saber fragmentou-se como um vaso de argila sumério. O justo seria tornar-me um arqueólogo à procura de cacos de ânfora, tentando recompô-la como a memória da família de que me dizem herdeiro e guardião. Mas recuei do projeto, temeroso dos riscos. Respondo às propostas de tornar-me cronista como o escrivão Bartleby de Melville, repetindo: “Acho melhor não.” (BRITO, 2008, p. 37)

Adonias se sente incapaz de produzir narrativas que possam dar continuidade e

coerência a uma memória que teria como finalidade doar sentido e representar uma

comunidade sem fraturas. Mas, tanto ele, como o território a que pertence, se encontram

numa condição fragmentada; tal como é o sujeito pós-moderno descrito por Stuart Hall,

“composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias

ou não-resolvidas” (HALL, 1999, p.14), o que o impossibilita de elaborar uma

narrativa homogênea, unitária e essencializante, como a transmitida pelos seus tios. A

memória da família, os “cacos de ânfora” (relatos entremeados de narrativas maiores

sobre a formação do sertanejo e do brasileiro) são suturados à narrativa do romance,

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porém, não sem um questionamento sobre o caráter perspectivado e, por vezes,

incoerente destes postulados.

Dentre as histórias sustentadas pela família, se destaca a que conta os primórdios

originários dos Rego Castro, que inicia-se em Portugal com a diáspora de Francisco

Álvares de Castro, um criptojudaista que, fugindo da Inquisição, vira judeu errante pela

Europa até vir dar com os costados no sertão nordestino do Ceará, acrescentando à sua

cultura judaica as culturas indígenas e africanas do Novo Mundo. Concomitante a essa

história existe o mito de que o primeiro ascendente da família Castro, teria sido Isaac

Oróbio de Castro, afeito às lutas e à literatura. Salomão, através de suas pesquisas,

descobriu que Oróbio jamais esteve no Brasil. Adonias ao narrar as dúvidas de Salomão

sobre como as historias de Francisco e Oróbio se cruzaram com a história da família,

assevera:

Todos sabíamos a resposta. Inconformados com a crônica medíocre da nossa trajetória para o Brasil, sem heróis nem bravatas no além-mar, nós romanceamos as vidas comuns da família, inventamos personagens e remendamos neles pedaços de narrativas, dramas e farsas da tradição oral e dos livros clássicos [...]. Sempre fomos uma família de mentirosos e fabuladores. Como os arqueólogos que emprestam a imaginação para recompor uma ânfora etrusca a partir de cinco cacos de cerâmica, nos apropriamos dos bens de cultura ao nosso alcance, enxertamos aventuras na vida insignificante dos antepassados, na louca esperança de nos engrandecermos. ( 2008, p. 26-17)

Adonias explicita o caráter fabulatório das histórias que dão sustentação as

origens. Nesse sentido, ao aproximar fatos históricos da formação nacional da fábula

familiar, a narrativa revela a própria face ficcional e inventiva das narrativas históricas,

que se debruçam sobre a recriação de um dado fato “real”. A fabulação é comparada ao

ofício arqueológico, como algo que compartilha da mesma dificuldade de reconstruir

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um momento a partir de pequenos vestígios, sendo facultado ao exercício de imaginação

e montagem, o trabalho de preencher as lacunas, os vazios. Adonias é consciente do

inventário que cerceia todo o imaginário de origem, identidade e tradição que conforma

o espaço sertanejo, mostrando na obra os rastros desse processo. Sua intenção não é

exatamente explicitar a verdade ou a mentira dessa construção, mas deixar claro que os

enunciados que edificam essas histórias são inventariados, abarrotados de partes mal

contadas, lacunares e espaços vazios.

É partindo dos discursos genealógicos de Salomão que a obra irá retomar a

imagem do sujeito migrante, que marcou as representações dos sertanejos nas narrativas

nacionais. Para ele, os Castro são:

um povo inacabado, em permanente mobilidade, adaptando-se aos lugares distantes e às culturas exóticas. A errância e o nomadismo, o gosto pelo comércio e as viagens alimentam o nosso imaginário, o sentimento de que pertencemos a todos os recantos e a nenhum” (BRITO, 2008, p. 23).

Apesar de atribuir um caráter originário à errância que marca a trajetória dos

homens da família. Salomão ressalta o aspecto inacabado e móvel desses “homens do

sertão”, colocando sob terrenos movediços a própria formação identitária sertaneja,

marcada por um permanente movimento de construção e desconstrução, no caso,

provocado pela viagem; em outro plano, salienta o próprio fluxo de narrativas que

atravessam um indivíduo, superpondo imaginários e desestabilizando a sensação de

pertencimento.

A obra ainda amplia o sentido de migração na medida em que expõe as inúmeras

motivações envolvidas no processo de deslocamento, se distanciando aqui da ideia de

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que apenas os fatores climáticos e econômicos são condicionantes das derivas de

personagens oriundos do sertão. Nela se observa que a “a sobrevivência econômica está

sempre subordinada a um drama existencial, mesmo íntimo, particular, socialmente

inserido, situando os personagens num quadro mais amplo em que cada vez é mais e

difícil viver e morrer onde se nasceu” (BUTLER Apud LOPES, p.63).

Além disso, a narrativa também se atém às transformações subjetivas pelas

quais perpassam os indivíduos que atravessam territórios diversos, ressaltando aspectos

singulares implícitos nesse processo. Os três personagens que embarcam na viagem de

volta ao seio familiar, tiveram motivações e experiências distintas de migração. Adonias

migra para se especializar em medicina em Londres, fazendo posteriormente carreira em

Recife, Davi percorre vários países, tocando piano em bares e Ismael tentou a vida na

Noruega, experiência que culminou na sua extradição. Além disso, ao retornarem, as

relações com o espaço de origem é marcada por graus diferenciados de pertencimento.

Adonias oscila num processo de identificação e não identificação, de atração e rechaço

por esse universo: “Sinto fascínio e repulsa por esse mundo sertanejo. Acho que o traio,

quando faço novas escolhas” (2008, p.16). Ao mesmo tempo em que sente que já não

pertence a lugar nenhum:

Vago numa terra de ninguém, um espaço mal definido entre campo e cidade. Possuo referências do sertão, mas não sobreviveria muito tempo por aqui. Criei-me na cidade, mas também não aprendi nem a ginga nem o sotaque urbanos. Aqui ou lá me sinto estrangeiro (BRITO, 2008, p.160).

O personagem tem sua noção de pertencimento abalada pelos trânsitos, pelos

choques culturais vivenciados em seus deslocamentos, que lhe facultam uma sensação

de estranheza onde quer que esteja. Porém, independentemente da sensação profunda de

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desenraizamento vivenciada, as referências do território primeiro não foram

completamente apagadas assim como as do novo território não foram inteiramente

assimiladas. Adonias se caracteriza como um sujeito intersticial, constituído por uma

subjetividade que não se encaixa em noções dicotômicas de pertencimento.

Hommi Bhabha em O local da cultura procura pensar como se elabora a

identidade num tempo-espaço contemporâneo, cuja marca é a não-fixidez e o

movimento constante, daquilo que antes foi concebido como estático, como “pouso-

seguro”. Essas instabilidades provocam zonas intersticiais, vistas como um lugar de

passagem, caracterizado por um movimento de transformação e transposição, onde uma

coisa não é mais nem ela mesma, nem totalmente outra. A ideia de interstício, de uma

identidade que se articula no entre-lugar, proposto por Bhabha, parece adequada para

pensar a relação de Adonias com as múltiplas territorialidades que lhe atravessam. Para

Bhabha, é interessante observar como na contemporaneidade se pode:

passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação das diferenças. Esses “entre-lugares” fornecem terrenos para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade. É na emergência dos interstícios – a sobreposição de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados. De que modo se forma sujeitos nos “entre-lugares”, nos excedentes da soma das “partes” da diferença (geralmente expressas como raça/classe/gênero, etc.)? (BHABHA, 1998, p.19-20)

No processo de articulação de diferenças evidenciado por Adonias, nem o

sujeito, nem os territórios são constituídos de partes absolutas e coerentes. O próprio

sertão vira um “espaço mal definido entre campo e cidade”, lugar de articulações e

combinações que se relacionam com a ideia de “campo” e de “cidade”, ou seja, o sertão

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aparece atravessado por elementos que fazem parte desses universos, sem jamais se

constituir plenamente como um ou como outro.

A superposição de subjetividades provocada pelo deslocamento por diversos

territórios culturais, também marca a trajetória do primo Ismael. Certamente é ele quem

mais parece se identificar com o lugar em que fora criado, mesmo que este não tenha

sido seu lugar de origem. Fruto de um envolvimento de Natan, filho de Raimundo

Caetano, com uma índia Kanela, etnia que habita a região de Barra do Corda-MA,

Ismael fora renegado pelo pai, mas acolhido pelo avô que o registrou como seu filho e o

levou para viver na Galileia quando ainda pequeno.

Diferentemente de Adonias, que deseja retornar para Recife e deixar a Galileia e

os seus fantasmas no passado, Ismael se pudesse restituiria sua vida nos arredores da

casa do avô. Entretanto, por causa da relação controversa com a família, sua presença

provoca tensões desestabilizadoras. Em consequência disso o personagem vivencia a

dolorosa impossibilidade de se religar ao território ao qual está afetivamente enraizado:

Não sei para onde vou. Na verdade, eu continuo sem lugar. Não tenho o que fazer no Maranhão, no meio dos kanela. Saí de lá pequeno, e só voltei porque me expulsaram daqui. Afora os vínculos de sangue e as marcas no corpo nada me liga a eles. – Eu gosto mesmo é daqui. Se fosse possível ficar, eu ficava. Botava o orgulho entre as pernas e começava uma vida nova (BRITO, 2008, p. 132)

É a relação familiar problemática que faz com que o personagem se disperse a

procura de um lugar no mundo. Os traços étnicos e os laços consanguíneos não o fazem

automaticamente se sentir identificado ao grupo de origem e etnia. Mesmo assim, sua

relação com os kanela, diferentemente como o personagem relata, não se restringe às

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marcas do corpo. Há, todavia, aspectos latentes dessa relação entremeados à sua

subjetividade, como a canção que Ismael canta na língua indígena para acalentar o

primo Adonias, que chora após abrir alguns baús da casa. A música funciona como uma

espécie de porto afetivo ao qual o personagem recorre, lembrando que alguns resíduos

culturais persistem.

Ismael é acometido por um sentimento ambivalente de pertencimento e não

pertencimento. Essa condição se adensa na medida em que passa por diversas

disjunturas na sua constituição identitária, fruto dos trânsitos entre garimpos na fronteira

do Brasil com a Colômbia, entre idas e vindas à Barra do Corda e à Galileia. Numa das

fases em que permaneceu entre os kanela, Ismael foi levado por um casal de

noruegueses para viver com eles. A presença de Ismael, que nasce de um encontro

híbrido entre um homem do sertão de Inhamuns e uma índia kanela, bem como, a

passagem de missionários estrangeiros pela tribo indígena, expõe a forma como a

própria comunidade étnica, normalmente vista como um lugar homogêneo e de

identidade estável, sofre diversos atravessamentos, desterritorializações e reconversão

de saberes e costumes. O livro não cai na armadilha de referenciar a tribo indígena

como um espaço original, livre de influências e contatos, caracterizado pela fixidez

(como tantas vezes esse espaço e os grupos a que a ele pertence tem sido associado).

Na Noruega, o personagem passa por situações de constrangimento motivadas

pelo preconceito racial:

Vivi como imigrante, porque não tinha futuro pra mim em nenhum outro lugar. Você sabe o que é ser imigrante, um brasileiro com cara de índio, as orelhas furadas e a pele do rosto marcada? Sabe não, porque você não viveu assim e nunca conheceu o desprezo das pessoas, nunca viu certos olhares, nem passou por humilhações degradantes. Você era um doutor, morava numa casinha confortável, ao lado da esposa, falava bem o inglês. Eu só falava português, um

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idioma que ninguém conhece. Aprendi outra língua na marra. (BRITO, 2008, p. 136)

Se, por um lado, os traços físicos não são atributos o suficiente para fazer Ismael

se sentir pertencente à comunidade indígena, por outro, no país estrangeiro ele será

reconhecido e enquadrado à uma determinada identidade em virtude deles. Sua

identidade em outro país sofrerá uma série de permutações, sendo o personagem

reconhecido como brasileiro, latino-americano, terceiro-mundista, indígena. Esta última

é ressaltada pelas marcas corporais que trazem ao plano visível sua origem. Traços que

suscitam preconceitos e discriminação por parte dos noruegueses. Esse olhar do outro

apregoa uma identidade cultural que está irremediavelmente aprisionada ao corpo.

Para Stuart Hall (2003) o termo raça se constitui como um mapeamento

grosseiro que uniformiza as comunidades, pautado em discutíveis semelhanças físicas.

Para ele, a “raça” seria uma construção política e social: “categoria discursiva em torno

da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão —

ou seja, o racismo. Contudo, como pratica discursiva, o racismo possui uma lógica

própria” (HALL, 2003, p. 69). Sua lógica estaria comprometida com a tentativa de

justificar as diferenças culturais e sociais que legitimam a exclusão racial em termos de

distinções genéticas e biológicas. Do mesmo modo que as distinções raciais funcionam

como mecanismos de naturalização e homogeneização das diferenças, a nacionalidade

também visa comprimir uma série de experiências: culturais, étnicas, religiosas.

Discursos que ensejam conflitos violentos de exclusão, principalmente em condições

em que os imigrantes oriundos de países periféricos, vivem em países centrais. Questão

que pode ser observada na fala de Adonias, que rebate a ideia de Ismael sobre sua

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possível facilidade em se adaptar ao estrangeiro porque estava na condição de estudante

de medicina:

Na Inglaterra eu tinha amigos paquistaneses, indianos e chineses. Você acha que um inglês faz amizade com um brasileiro só porque ele é médico? Não faz. Conversei com imigrantes de antigas colônias [...]. Os imigrantes são a subclasse da Europa. Mas ninguém fala nisso diante de um microfone, ninguém assume a exploração e a desvantagem em que vivem os turcos na Alemanha e os africanos na França. Existe um preconceito ocidental em relação ao resto do mundo. A Europa faz questão de ignorar a cultura do Oriente e da América do Sul. Nós somos vistos como os pobres que tiram emprego, ou pior, como aquela mão-de-obra que aceita fazer o que eles não aceitam. Comigo também era assim, mesmo sendo apenas um estudante de passagem. (BRITO, 2008, p. 137)

É possível que Adonias de fato tenha vivenciado uma situação distinta daquela

vivida por Ismael pelas condições mais estáveis fora do país. Porém, seu relato

demostra o modo como as diferenças nacionais, étnicas e raciais, principalmente entre

países centrais e periféricos, em determinados momentos se sobrepõem às questões de

classe. Sobretudo na condição de imigrante pertencente a países marcados por

condições econômicas desfavorecidas. O indivíduo é visto automaticamente como

“subclasse”, como um cidadão de terceiro categoria, independente de formação

acadêmica ou posição social ocupada por ele no seu país de origem.

Apesar das tensões provocadas pela sua condição de imigrante Ismael casou-se e

teve uma filha com uma norueguesa. Sua experiência desse modo não foi apenas de

constrangimento e humilhações, mas também esteve enredado numa teia de partilhas

simbólicas e afetos. O fato de ter vivido num lugar oposto em muitos sentidos ao seu

país, possibilitou que o mesmo fizesse uma série de constelações inusitadas entre o

mundo sertanejo e o mundo norueguês, observando o que nesses universos perpassam

um compartilhamento comum. Sobre a Noruega em comparação com o sertão aponta:

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A Noruega é um sertão a menos trinta graus. As pessoas de lá também são silenciosas, hospitaleiras e falam manso. Habituaram-se aos desertos de gelo, como nós à caatinga. A comparação parece sem sentido, mas eles também olham as extensões geladas, como olhamos as pedras. A nossa pele é marcada pelo sol extremo, a deles pelo frio. (BRITO, 2008, p.73)

A comparação mostra que mesmo em condições opostas há uma partilha

sensível que os aproxima. A comparação não equaliza as diferenças existentes entre

esses lugares, mas os retira de uma condição de oposição radical e desfaz alguns

discursos clichês que pintam países europeus bem desenvolvidos como o paraíso em

oposição aos espaços críticos e infernais do terceiro mundo, avizinhando suas

experiências. Para Ismael ainda, o que faz as pessoas deixarem os lugares não está

vinculado ao fato de que ele é bonito ou feio, frio ou quente, mas sim, as condições de

sobrevivência que ele oferece:

Mas ninguém procura os lugares porque são bonitos ou feios. As pessoas saem atrás da sobrevivência. Muita gente deixou a Noruega, anos atrás, por conta da crise econômica. Iam para os Estados Unidos. Quando a economia do país melhorou, ninguém mais saiu de lá. O problema agora são os imigrantes, os que querem entrar no país (BRITO, 2008, p. 73).

Embora a condição de imigrante de Ismael esteja tangenciada por vários fatores,

a questão econômica é um fio importante entretecido à sua deriva. Dos três primos

certamente Ismael é o que possui maior carência financeira, ocupando uma posição

subalterna na família, pela sua própria condição de filho renegado. Mas cabe lembrar

que os personagens que estão ligados à Galileia, alguns mais estáveis economicamente,

outros menos, são de qualquer maneira herdeiros da casa-grande. Apesar de Galileia

ampliar o espectro que envolve a migração de pessoas oriundas do sertão, sobrepondo

uma série de experiências perspectivadas, não-totalizáveis e singulares acerca desse

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tema, os deslocamentos narrados são em geral efetuados por uma elite. Ademais, como

nas narrativas clássicas: realizados exclusivamente por homens.

Galileia é um livro em vários sentidos masculino. As mulheres tem uma

posição secundária, ainda que apareçam ocupando funções antes executadas apenas

pelos homens, figurando cada vez mais autonomizadas do poder patriarcal que lhes

tolhiam. Mas ainda estão lá, a maioria confinadas ao espaço doméstico tecendo seus

rendados, orando seus rosários. No próximo capítulo veremos duas jovens migrantes do

sertão que sem dinheiro, sem préstimo, sem donos e sem cabrestos sociais, transitam

pelo território sertanejo.

.

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3. SOB PÉS FEMININOS: DERIVAS NO SERTÃO PARABÓLICO DE O

CÉU DE SUELY E DESERTO FELIZ

Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. (Michel de Certeau)

Não quero ser puta. Não quero ser porra nenhuma.

(personagem Hermila, em O céu de Suely)

Duas jovens ocupam de corpo inteiro a tela do cinema em dois filmes que

percorrem o sertão brasileiro contemporâneo: O céu de Suely e Deserto feliz. O “corpo

inteiro” referido se remete à maneira literal como seus corpos são trazidos a primeiro

plano nestas obras, como se os diretores quisessem que respirássemos o mundo com os

pulmões de suas protagonistas. Corpos conflituosos, cheios de afetos e desejos, em

busca de outros lugares, outras formas de ser e estar no mundo, de percorrer o mundo

para tentar resistir ao intolerável dele.

Hermila e Jéssica são jovens pobres que tentam se livrar dos sistemas de

submissão que lhes são impostos, procurando reinventar a própria vida. Enquanto

rompem com os papéis de gênero tradicionais e subvertem as expectativas sociais que

pesam sob o corpo feminino (a maternidade, a casa, o amor romântico, a dependência

econômica de uma figura masculina), se enredam em outras teias inesperadas.

Apesar de apresentar personagens fortemente tangenciadas por forças

opressivas, essas obras tomam o cuidado de não asfixiá-las num espaço de imobilismo

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determinado pela dureza de suas vidas. Sim, elas são mulheres vivendo sob condições

sócio-históricas e culturais precárias, mas elas também “resistem por uma espessura que

não fornecem sentidos óbvios associados à exclusão ou à pobreza” (LOPES, 2012,

p.147). Suas trajetórias estão marcadas por um cambiante movimento de mobilidade e

imobilidade. Ao incorporarem o movimento, como algo latente na trajetória das

personagens e no espaço percorrido por elas, essas narrativas interrogam discursos

cristalizados sob os quais estão envoltos determinados territórios geográficos, políticos

e subjetivos. É caminhando, projetando seus corpos para um devir, que encontraremos

Hermila e Jéssica, que delineiam diversas trajetórias dentro do sertão e para além dele.

Para Michel de Certeau: “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem lugares”

(1998, p.172), território pisado e repisado por coronéis, vaqueiros, cangaceiros e

sertanejos – homens que mesmo quando não ocupam espaços de poder possuem direito

de ir e vir, de se deslocar sem dar satisfações –, o sertão nordestino foi

predominantemente moldado sob uma cartografia masculina.

Regina Dalcastagné (2012) observa que nas narrativas brasileiras

contemporâneas as mulheres são apagadas majoritariamente dos espaços públicos como

se não tivessem nada a dizer da vida nesses lugares. Para ela, não temos a menor ideia

de como as mulheres veem o espaço da cidade. Até mesmo em narrativas de autoria

feminina “as mulheres costumam estar circunscritas ao espaço da casa, aonde irão se

desenrolar seus dramas e, quando possível, suas alegrias” (p. 124). No caso da mulher

sertaneja a imagem se distingue em muitos aspectos da mulher burguesa que pertence à

cidade, porém, no que concerne sua circunscrição ao espaço da casa e das raízes,

veremos o mesmo.

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Em capítulo intitulado "A fala dos passos perdidos", de A invenção do cotidiano,

Michel de Certeau vai propor uma forma de observar as singularidades da cidade ao rés

do chão. Os jogos dos passos seriam os movimentos responsáveis pela modulação dos

espaços, pela tessitura dos lugares, uma espécie de fala, enunciação. Uma tessitura que

por estar em constante movimento, nunca se fecha ou se completa, marcada pela

motricidade dos pedestres que provoca erosões na visão panóptica do espaço. É através

do jogo dos passos que elementos "multiformes, resistentes, teimosos" escapam à

disciplina que o espaço impõe.

Hermila e Jéssica caminham pelo sertão. Este ação opera tanto na

reconfiguração identitária do território sertanejo, na medida em que a trajetória

empreendida pelas personagens possibilita a apreensão de diversas perspectivas,

fragmentadas e não totalizáveis deste espaço, como também possibilita o rearranjo

subjetivo das personagens. Na medida em que o gesto de se deslocar:

favorece a reflexão, a tomada de consciência de si mesmo e de suas relações com o Outro. Deslocar-se é descolar-se dos parapeitos das certezas identitárias, é ousar sair dos lugares pré-estabelecidos e previsíveis” (PORTO, p.74).

A escolha por deflagrar um espaço rente ao chão recusa o que Certeau nomeia

como “olhar de deus” posição privilegiada à distância, que possibilita uma “visão de

conjunto”, um olhar “divino” que exibe o espaço em sua totalidade. O sertão passa a ser

um lugar específico, fragmentado na trajetória individual, e não mais um espaço

alegórico e coletivo, territorialidade que reúne características que definem uma situação

nacional/regional. Os espaços apresentados no encalço das personagens são espaço-

passagens, atravessados por um curto-circuito de significados. Este lugar, assim como

as subjetividades dessas personagens, aparece em intensa mutação.

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Em Deserto feliz, o sertão figurará como um espaço híbrido em que elementos

rurais e urbanos, globais e locais, se vinculam mostrando os rastros das tensões e

conflitos implícitos nesses movimentos. Jéssica vive com a mãe e o padrasto, nos

arredores de Petrolina - PE, na zona da uva do vale do Rio São Francisco. Apesar de

morarem na zona rural, suas atividades estão predominantemente vinculadas à zona

urbana de Petrolina. Jéssica precisa deslocar-se todos os dias para a escola localizada na

cidade, onde sua mãe trabalha como vendedora. Seu padrasto exerce três atividades

profissionais diferenciadas que se relacionam tanto com o campo quanto com a cidade:

operário da fábrica de vinhos, criador de animais em seu sítio e traficante de animais

silvestres, atividade esta que o insere numa rota transnacional.

O filme exibe imagens do modo como o sertão se transformou numa célula na

rede das conexões globais, que é possibilitada por estruturas de interligação: pontes,

balsas, estradas, etc. A zona rural é mostrada como um espaço que está em intensa

junção com a zona urbana, sendo impossível conceber esse espaço sem levar em conta

seu aspecto relacional com a cidade. Aqui é nítido o caráter indefinido ao qual se

reportava o personagem Adonias em Galileia quando ao percorrer o sertão lhe descrevia

como “um espaço mal definido entre campo e cidade”.

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Figura 1 : Imagens de deslocamento e mobilidade entre campo e cidade

Assim, o sertão urbano e rural situado na objetiva de Deserto feliz não seria uma

reserva utópica resistente ao mundo globalizado, espaço caracterizado pela clausura e

pela distância de outras comunidades, envolto em práticas específicas isoladas, mas sim

um lugar completamente enredado na lógica dos fluxos internacionais capitalistas; com

uma rede comercial intensa, uma trama de transportes urbanos que garantem mais

mobilidade e comunidades que se abrem ao consumo ao adaptar demandas do mercado

às suas condições locais.

Será neste espaço que

acompanharemos a caminhada de

Jéssica. Seu deslocamento inicialmente

tem um sentido objetivo, a menina

caminha para ir à escola. Logo depois

veremos que a sua mobilidade

incorpora uma trajetória errática com

a finalidade de abandonar de vez as condições abjetas do espaço familiar.

Figura 2: Jéssica caminha pelas ruas da cidade

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Em O céu de Suely veremos um movimento que revela a intrusão da personagem

em espaços socialmente não autorizados. Hermila ao chegar à cidade de Iguatu começa

a trabalhar de maneira informal vendendo rifas de whisky importado pelas ruas. Para

oferecer o produto a personagem entra sem pedir licença e sem maiores

constrangimentos em espaços majoritariamente frequentados por homens: bares, postos

de gasolina, pontos de jogos. O filme mostra que as reconfigurações sociais que

tornaram possível um número maior de mulheres em postos de trabalho, estão presentes

no sertão nordestino. A avó de Hermila, por exemplo, trabalha na cozinha de um

restaurante, enquanto sua tia Maria assume o posto de moto-táxi, trabalho quase sempre

associado a uma função masculina. Entretanto, mesmo mediante um cenário em que as

mulheres conquistaram determinados lugares, a dicotomia espacial que prescreve os

espaços domésticos como reservados para as mulheres, enquanto os homens podem

livremente monopolizar a maioria dos espaços públicos, ainda prevalece. Hermila ao

invadir estes espaços ultrapassa a fronteira invisível que divide os lugares em próprios

ou impróprios para um determinado gênero, exigindo a reconfiguração dessas divisões.

Figura 3: Hermila vende rifas nos bares

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É na trajetória da personagem, que caminha pela cidade não apenas em

atividades laborais, mais também em momentos de lazer e reflexão, que nos

transportamos para um sertão entre-lugar, espaço-passagem por excelência, tanto pela

quantidade de símbolos que suscitam a ideia de deslocamento (trens, estradas, motos,

bicicletas, os postos de gasolina que a personagem frequenta) como também pela

quantidade de objetos que flutuam pelo espaço sertanejo: camelôs que tomam as ruas

com produtos made in China, caça-níqueis e karaokês que animam as festas onde se

ouve forró elétrico.

Figura 4 Trem atravessa a cidade de Iguatu

O diretor Karin Ainouz, no making off do filme O céu de Suely, esboça as

motivações que o levaram a filmar na cidade de Iguatu, interior do Ceará. Para ele, os

espaços desérticos tendem a ser imaginados, por quem não vive neles, como uma

espécie de “tábula rasa”, sob a qual é possível imaginar “espíritos, dragões da maldade e

santos guerreiros”. Seu filme, porém, mostra o sertão por outro ângulo, tendendo a se

aproximar das marcas contemporâneas que imprimem feições específicas a esse espaço.

O intuito era trazer à tona:

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um espaço não habitado por alienígenas, mas por gente de carne osso, entendeu? Gente de carne e osso faz amor, chora, gosta de comprar, gosta de morar de determinada maneira. Tinha um desejo muito grande de olhar pro Nordeste enquanto um espaço real, onde as pessoas vivem, mas um espaço muito específico, não é também qualquer lugar.

Na fala do diretor percebe-se a necessidade de adentrar o sertão sem retomar a

imagem mítica que alimentou as obras cinematográficas que se remeteram a esse

espaço. A escolha por filmar na cidade de Iguatu se deu por seu caráter fortemente

relacional. Lugar em que segundo Ainouz:

Existe um curto circuito de significados. Ao lado de uma feira que vende farinha de mandioca, tapioca e carne de bode, está uma loja de R$ 1,99 com flores de plástico e vários objetos que não são daquele lugar, e que provavelmente foram fabricados na China17.

O sertão captado pela câmera de Karin Ainouz além de estar atravessado por

mercadorias que justapõem num único lugar referentes de vários espaços aparentemente

incompatíveis, também é marcado por derivas midiáticas que explicitam o intenso

processo de negociação simbólica no interior dessa territorialidade. Este aspecto pode

ser observado nas paisagens sonoras introduzidas no filme. Para Denilson Lopes, uma

paisagem transcultural também se materializa nos trânsitos e nas trocas sonoras, nas

audiotopias que se configuram como instantes específicos de heterotopias18:

espaços sônicos de desejos utópicos efetivos onde vários lugares normalmente incompatíveis são reunidos não somente no espaço de uma peça particular de música, mas na produção de espaço social e mapeamento de espaço geográfico que a música faz possível (LOPES, 2012, p.40).

17 Entrevista disponível em: htttp://www.oceudesuely.com.br/pingpongdiretor . Último acesso em 12 de abril de 2013. 18 A heterotopia é um termo usado por Michel Foucault para descrever espaços “outros” que tem várias camadas de significação e reúne elementos diversos, que seriam inconciliáveis em espaços normativos.

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A trilha sonora do filme funciona como um veículo abstrato que nos aproxima

dos sentimentos e das subjetividades que atravessam e configuram a personagem.

Músicas que criam um espaço sônico em que convergem elementos dos ritmos brega-

forró-eletrônico, combinados a versões de músicas pop americanas. Sons

desterritorializados, que introduzidos em determinados contextos são livremente

apropriados, sampleados, transformados. A música de abertura, “Tudo o que eu tenho”,

da cantora Diana é uma famosa versão de “Everything I Own”, conhecida na gravação

de Boy George. Assim como a música “Blablablá”, versão tecno-brega da banda Aviões

do Forró da música “Thorn”, de Nathalie Imbruglia, provoca uma convergência

inesperada entre mundos distintos, mundos que se cruzam a partir do sertão recortado

pelo filme. Músicas que funcionam como transporte para a própria personagem, que

dança freneticamente no afã de exorcizar o amor que se foi, e pelo desejo de estar num

lugar para além de Iguatu.

Em Deserto feliz, a música também terá o papel de ligar a personagem a outros

mundos, ela também transporta a personagem para um lugar incerto, imaginário, como

veremos logo mais. Nas primeiras cenas do filme de Paulo Caldas, as imagens captam o

cotidiano familiar da personagem. A primeira sequência de imagens descarta as

abordagens tradicionais do dia-a-dia de uma família pobre nordestina. Assim, a caça de

um tatu é mais um hobbie que uma ação imprescindível para a sobrevivência. Não falta

comida na mesa e a água é usada em abundância pelas personagens.

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Em O céu de Suely podemos

também observar uma série

de planos que exibem

enfaticamente a presença da

água, indiciando uma

mudança de perspectiva em relação aos problemas que atravessam o território sertanejo.

Num plano conjunto específico a personagem Hermila está ao orelhão. No fundo vemos

uma caixa-d’água que parece grande o suficiente para abastecer boa parte da

comunidade. As imagens da caixa-d’água em O céu de Suely, assim como as de Jéssica

tomando banho ou lavando roupas com sua mãe e usando água para refeições e demais

atividades em casa, parecem querer desvincular o imaginário excessivamente reiterado

do sertão castigado pela falta d’agua, questão vista como obstáculo inexorável para seu

desenvolvimento.

Figura 6: Hermila e a caixa d’agua

Figura 5: O Banho de Jéssica

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A afirmação intrínseca nessas imagens é a de que, nesses lugares específicos, o

aparato técnico deu conta da distribuição da água, o que nos faz pensar que a discussão

sobre a seca no sertão de forma generalizada e nos termos de outrora não faz mais

sentido. Além disso, a apresentação desse dado desvincula de antemão a leitura que

poderia associar a deriva de suas personagens com fatores naturais que desencadeariam

a busca pela sobrevivência imediata. Cabe salientar que tanto em O céu de Suely como

em Deserto feliz, as imagens que apontam a possível superação dos problemas

historicamente associados ao sertão, não tem o objetivo de apresentá-lo simplesmente

como um lugar novo, livre das mazelas do passado; mas antes buscam abordá-lo a partir

dos dilemas socioculturais e políticos que atravessam esse espaço hoje.

Voltando ao cotidiano de Jéssica, veremos na figura 5 que a câmera em

primeiríssimo plano (PP) filma o rosto da jovem através de uma fresta, como se ela

estivesse sendo observada. Podemos entrever nesta cena o eixo do conflito que circunda

a personagem: há uma força vigilante e possivelmente dominadora sob seu corpo. Além

disso, essa cena intensifica a presença de uma luz pouco intensa e de cores que oscilam

entre o cinza e o azul (como pode ser visto também nas figuras 1 e 2 ). Estes elementos

estarão presentes em toda a narrativa.

De antemão, a escolha da luz e das cores refutam um diálogo com a luz

estourada do Cinema Novo, de certa maneira deixando clara a intenção de apresentar o

sertão sob outros matizes, quebrando qualquer expectativa de continuidade entre este

sertão e o sertão do movimento cinemanovista. Além disso, estes recursos estabelecem

um contraponto às imagens de um sertão “modernizado”, introduzindo no cinza uma

atmosfera pessimista quanto ao que se tornou o sertão em vista desse processo. Se o

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olhar não é otimista, tampouco é nostálgico, na medida em que não há alusões a certo

passado de grandezas ou de misérias.

No que se refere ao espaço íntimo de Jéssica, a luz e as cores escolhidas inserem

um clima melancólico, triste, adensando o sentimento de desolação da personagem. Se,

por um lado, a imposição dessas cores do começo ao fim da narrativa colabora para

encerrá-la num espaço em que não há perspectivas de mudanças para sua vida, por

outro, os gestos e as idiossincrasias de Jéssica subvertem constantemente estas

determinações. Ademais, a introdução de cores construídas culturalmente como

simbólicas de um universo masculino indiciam a dificuldade da personagem de se

libertar desse poder dominante em sua trajetória. Os aspectos cromáticos também

acompanharão as derivas da personagem entre sertões e cidades, entre Petrolina, Recife

e, posteriormente a Alemanha, intensificando a atmosfera ambígua de mobilidade e

imobilidade na qual a personagem está inserida.

Jéssica se prepara para jantar com a família. Na mesa um silêncio excruciante.

A mãe sentada entre a filha e o marido tenta mediar o conflito que apenas na ausência

de interação conseguimos entrever. Sua mãe pergunta qual o problema em “comer

cuscuz com bode”, a menina apenas olha o prato e, posteriormente, responde: “não

aguento mais não, mainha”. A recusa da comida não é provocada pelo fastio com o

cardápio. Mas nela está implícita a própria recusa do padrasto que colocou a comida na

mesa e da mãe que a preparou, ambos agentes e cúmplices da violência física e

simbólica que sofre.

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O filme se infiltra inicialmente no espaço da casa, geralmente idealizado como

espaço de proteção, segurança em oposição ao espaço da rua, concebido como violento,

perigoso. Deserto feliz revela o cerne do espaço familiar como “o lugar do paradoxo.

Centro de afeição, refúgio contra a adversidade, e também o espaço privilegiado da

violência [...] violência, real e simbólica, que reina na família de maneira mais forte e

mais autorizada, do que em qualquer outro lugar ou campos sociais” (LINS, 1999,

p.122). A casa para Jéssica se constituirá como um lugar ambíguo, no qual ao mesmo

tempo que é possível se descobrir, sonhar, passar momentos de lazer e afeto ao lado da

mãe, é o espaço em que a adolescente é estuprada cotidianamente pelo padrasto, sob

total abstenção da mãe, veladamente cúmplice da violência cometida contra a filha.

A mãe aparece como uma mulher de certa maneira autonomizada

economicamente, na medida em que trabalha fora de casa, e que está possivelmente

numa segunda união. Além disso, a mesma mantem uma ligação afetuosa com a filha,

não havendo espaço para supormos que ela estaria se abstendo por ser uma espécie de

algoz de Jéssica ou para puni-la de algum modo. Seu silêncio está comprometido com

camadas mais profundas de sujeição.

Para Bourdieu (2002) a dominação masculina exerce uma “dominação

simbólica” sobre todo o tecido social, corpos e mentes, discursos, práticas sociais e

institucionais. Além disso, ela des-historiza diferenças e naturaliza desigualdades entre

homens e mulheres, estruturando a percepção e a organização concreta e simbólica de

toda a vida social. As relações desiguais de poder comportam certa aceitação dos grupos

dominados, não sendo necessariamente uma aceitação consciente e deliberada, mas

principalmente de submissão pré-reflexiva. Sabemos que a dominação masculina não

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pode ser vista como algo fixo, que se reproduz da mesma forma em todas as situações.

Há várias modificações na forma como o poder patriarcal se institui e se legitima em

diferentes contextos. No caso da mãe de Jéssica, apesar da personagem possuir um

trabalho remunerado, o que poderia aumentar sua margem de poder dentro da casa, a

mesma não consegue se impor confrontando o marido, nem mesmo se separar. Isto se

deve tanto pela dependência afetiva quanto pela dificuldade de assumir o problema, por

vergonha ou culpa.

A abordagem da questão do abuso sofrido no ambiente familiar serve para

ilustrar como as relações que entrecortam o sertão, se por um viés o especificam a partir

de problemas diferentes de outrora, por outro, o aproximam da realidade de outros

espaços urbanos e rurais pelo território nacional e fora dele, na medida em que esse

problema não conhece fronteiras, estão sujeitos a ele mulheres e crianças, oriundas de

todas as classes sociais e de qualquer lugar que esteja submetido à dominação

masculina.

Cansada da situação, Jéssica decide se prostituir no restaurante de beira-de-

estrada da cidade. Sua mãe ao receber a notícia desaba e agride fisicamente o marido.

Num corte brusco que não especifica o tempo e a ordem do acontecimento, veremos

Jéssica na estrada seguindo para Recife, cumprindo seu desejo de seguir uma trajetória à

deriva. Desejo explícito na canção que Jéssica ouve e escreve num caderno enquanto

está sozinha. Canção que surge também numa pequena reunião em casa em que Jéssica

dança com a mãe:

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Nós dois estamos perdidos Em um barco sem destino

Náufragos de um amor proibido Atracados pelos mares da paixão

Perdidos

Em um barco a deriva Almas gêmeas de uma vida

Esperando de uma vez a nossa terra Prometida

A música, um forró eletrônico da banda Aviões do Forró, é estruturante do

pequeno projeto íntimo que circunstancia o deslocamento da personagem. É nos

momentos de delicadeza, em que a câmera permite que a personagem registre seus

desejos, que ela sonhe, dance, ria –mesmo na lama– e se desloque em busca de si e de

um outro, que o filme salva a personagem da miséria humana total e insuperável.

Em Recife, a personagem irá dividir moradia com outras prostitutas, Pâmela e

Daiane. A primeira é uma prostituta mais experiente que já realizou a trajetória que

mobiliza os desejos das meninas com quem vive: conhecer um gringo que lhes salve e

que as leve para viver no exterior. Ao conversarem sobre suas expectativas de vida,

Daiane, prostituta adolescente assim como Jéssica, faz o seguinte relato: “casar com um

gringo, branquinho, branquelo. Levar mó vida de madame. Olha, mana, eu amo o

Brasil, gosto muito daqui, mas eu não quero morrer como brasileira, não. Na moral, não

quero mesmo! Deus me livre!” (00:37:56).

Na fala da personagem percebemos que a chance de se unir ao “branco”,

“estrangeiro”, pode ser a única possibilidade de adquirir o passaporte para uma “vida de

madame”. Uma vida que no seu imaginário só existe para além das fronteiras nacionais.

A sensação de pertencimento explícita na expressão “amo o Brasil, gosto muito aqui” e

ao mesmo tempo de rejeição, evidenciada na maneira como a personagem refuta a ideia

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de “morrer brasileira”, exibem a relação contraditória com o estado-nacional. Esta

ambiguidade é produto da própria relação ambígua que o estado-nacional, ao fazer uma

inclusão exclusiva, mantém com a personagem. Na medida em que a concede um

território, uma língua, um repertório cultural para se identificar e até documentos que

legitimam sua brasilidade, mas ao mesmo tempo a mantém à margem sem oferecer

menor possibilidade de mudança ou melhoria para sua vida.

Pâmela, a prostituta mais experiente, possui uma visão pessimista quanto à ida

ao exterior como tábula de salvação para suas vidas. Apesar de não falar explicitamente

o que passou com ela enquanto esteve na Alemanha, suas frases jogam um ácido nas

expectativas das outras garotas: “Neve quando derrete vira lama”, “o sol na Alemanha é

que nem geladeira: ilumina mas não esquenta, não”. Ao ser indagada pelo seu sonho,

diz que quer ganhar na “loteria de Pernambuco”. A personagem suspeita que a

autonomia só se concretiza se a emancipação econômica não ocorre acompanhada da

dependência de uma figura masculina. Emancipação, que veremos relativamente

realizada na figura de Hermila em O céu de Suely.

Jéssica, por sua vez, realiza a viagem à “Terra Prometida” ao conhecer Mark,

um alemão que aporta no Brasil atrás de drogas e turismo sexual. Ao chegar ao lugar

que durante muito tempo alimentou seu imaginário como sonho, Jéssica se depara com

um cotidiano que não corresponde às suas expectativas. Se na casa familiar a jovem era

submetida à violência do padrasto e em Recife estava mergulhada numa experiência

desviante e marginal, na Alemanha a personagem dará continuidade a sua posição

periférica ao viver como migrante em Berlim. Jéssica, apesar de não ter assumido

nenhum trabalho em condições degradantes, não consegue se encontrar no exterior. A

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sensação de que ela se deslocou geograficamente, mas que não conseguiu sair do lugar é

intensificada pela uniformização das cores que atravessa Sertão, Recife e Berlim e cenas

que aproximam essas distintas localidades:

Figura 6: Recife Figura 7: Berlim

Figura 8: Sertão Figura 9: Berlim

A rotina de Jéssica na Alemanha se divide entre assistir programas de tv no qual

não entende muita coisa e dar comida aos animais, ato que sinaliza a necessidade de

Jéssica de se mover num território que reconhece. A personagem tenta na sua

experiência migrante reconstituir um vago sentido de casa perdido. Expresso também

nos encontros com brasileiros, coisa que Mark a proíbe de fazer, ao perceber que ela

está se fechando em guetos e não está aprendendo o idioma.

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John Tomlinson afirma que o processo de desterritorialização supõe um

abandono de referentes que comprometem o enraizamento afetivo e simbólico dos

sujeitos em seus locais. Assim, a “crise da morada” só é recompensada através da

constituição de um novo processo de reterritorialização. Este processo seria perceptível,

por exemplo, nos diferentes modos pelos quais “as comunidades diaspóricas tentam

reconstruir uma ‘casa’ cultural. Esta casa cultural torna-se, portanto, um símbolo

pessoal e coletivo que funda uma ‘pátria imaginária’, sobre os fragmentos da ‘pátria

perdida’” (Apud BRASILEIRO, 2010, p.32). Apesar de não viver propriamente uma

experiência diaspórica, podemos ver em Jéssica uma tentativa de se reterritorializar e

reunir os pedaços de sua identidade para se recompor num novo lugar. Entretanto, a

personagem se perde, indiferente, solitária, incomunicável.

Seu colapso identitário põe em crise o relacionamento que a havia levado até ali.

Crise que culmina no que parece o fim da sua relação com Mark. A última cena do

filme volta ao plano que foi usado no início e no meio dele. Uma imagem que se repete

e que sintetiza o imobilismo da personagem, que só será alterado no final. Plano

simples, luz retirada, a câmera fixa e enquadra o rosto de Jéssica que transparece tanto

uma sensação de angústia, indefinição, como também um olhar que sugere uma mirada

para um tempo e um espaço além dali.

A personagem está

sentada na beira da cama,

atrás o dorso nu do Alemão,

que posteriormente, arruma

as malas e vai embora.

Jéssica fica ainda algum

Figura 6: Jéssica e Mark

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tempo na mesma posição. A imagem embaça, a personagem se retira. O diretor cria uma

zona de escape, uma porta por onde se pode sair, deixando em aberto, indefinido e

nebuloso a possível reconfiguração da trajetória da personagem após a desconstrução de

dois mitos: o do amor romântico e o da terra prometida.

Numa rota oposta à de Jéssica (ou num caminho que Jéssica terá que percorrer),

encontramos a personagem Hermila, no filme O céu de Suely. Duas personagens que

estão em deslocamento constante e que perfazem trajetórias que se encontram e se

chocam em diferentes perspectivas.

Hermila volta à Iguatu – interior do Ceará – após ter fugido com o namorado

para São Paulo. A personagem volta porque a ida para São Paulo não foi como

esperado. Indagada pela tia sobre como era a vida na metrópole, responde: “Era boa,

mas lá é tudo caro, não dava pra ficar lá mais não”. O relato cortante e conciso suspende

qualquer tom melodramático, trágico ou épico do processo de deslocamento vivenciado

pela personagem. A experiência de migração se não foi exitosa o suficiente para garantir

a sua permanência por lá, também não foi devastadora ao ponto de soterrar todas as

esferas do seu cotidiano. O relato, contudo, não mascara a questão econômica como

fator determinante do seu retorno. Dessa forma o filme constrói um discurso alternativo

àquele que figurou no realismo social, entremeado de narrativas de migração centradas

na experiência hegemônica de perda, dor e sofrimento. Perspectivas que asfixiavam

qualquer possibilidade dos sujeitos subalternos mostrarem resistência à experiência

“devoradora” da metrópole.

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Diferentemente do realismo tradicional, que permeou boa parte das narrativas no

século XX e, em especial, as que se remeteram ao espaço do sertão como símbolo da

miséria e das desigualdades, e que buscava ora correspondências diretas com o real, ora

convergências com um projeto político específico, o realismo que tangencia as

narrativas aqui analisadas:

conjuga as ambições de ser “referencial”, sem necessariamente ser representativo, e ser, “engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa político ou pretender transmitir de forma coercitiva conteúdos ideológicos prévios (SCHOLLHAMMER, 2009, p.54)

Ao discutir o realismo na ficção contemporânea, Karl Eric Schollhammer fala da

aparição de uma “estética afetiva” que se contrapõe à estética do efeito19, referência nas

artes a partir do final do século XX. A estética afetiva está comprometida com

“singularidades afirmativas e criativas de subjetividades e intersubjetividades afetivas”

(2012, p. 138). Nela, a obra se revela “com a potência de um evento que envolve o

sujeito sensivelmente no desdobramento de sua realização no mundo” (p. 138). Esse

“realismo afetivo” ao dissolver a fronteira entre a realidade exposta e a realidade

esteticamente envolvida “traria a ação do sujeito para dentro do evento da obra” (p.

138). Para o crítico, o realismo contemporâneo elabora estratégias de representação

que, ao mesmo tempo que apontam para os seus próprios limites, tentam levar para a

obra algo que está além desses limites, como experiência ou como ato documental20.

19 A “estética do efeito” ou “realismo traumático” (como nomeia Hall Foster no livro O retorno do real) se caracteriza por um tipo de realismo que emerge como trauma, como choque. Manifesta-se numa irrupção tão violenta que provoca efeitos de ruptura que desestabiliza as certezas representativas e questiona qualquer tipo de referencialidade. 20 O crítico literário aponta como exemplo dessa estratégia, um recurso usado pelo diretor Karin Ainouz em O céu de Suely. A atriz Hermila Guedes chora após uma das cenas em que a personagem sai de casa depois de uma briga com a avó. Ainouz busca a atriz fora do set e, sem que ela soubesse, continua filmando sua emoção. O diretor resolve usar a imagem na montagem do filme. O que seria algo “fora da representação” é usado como elemento para causar um efeito de proximidade, dentro da obra.

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O contraponto que o realismo afetivo oferece em relação aos outros tipos de

realismos, é que a obra de arte aproxima-se do real, de um além da realidade, não a

partir de um efeito chocante, que cria uma repulsa, mas através de um efeito de apego

tão efetivo que se recria a situação “pela diluição entre a distância que se tem quando se

depara com uma obra de arte, seja ela qual gênero for, e sua emoção poética, estética aí

envolvida” (SCHOLLHAMER, 2007, p.02).

O realismo que tangencia tanto Deserto feliz quanto O céu de Suely se aproxima

de uma estética afetiva, na medida em que estas obras parecem querer mais do que

expor a dura face da “realidade” em que as personagens estão inseridas, convocar o

espectador para um compartilhamento da experiência. O corpo do espectador vive uma

experiência de proximidade e encontro com o corpo da imagem. Encontro que se dá

através do uso abundante de primeiríssimos planos e planos detalhes. Imagens em que

predominam gestos e silêncios, transbordamentos e intensidades, e que despertam um

afeto:

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Figura 7: corpos, afetos e intensidades.

Nestas imagens podemos perceber a necessidade de provocar afetos e

intensidades múltiplas, com câmeras que quase tocam o corpo das personagens. O

intuito de trazer à tona experiências mais próximas do cotidiano das personagens não é

o de apagar as forças macropolíticas que incidem sobre suas trajetórias, mas de

“performatizar a tensão de vida pelo corpo daquela experiência macropolítica”

(ROLNIK, 2010). Ruy Gardinier (2006), ao analisar o cinema de Karin Ainouz, ressalta

que a política de seus filmes se faz no mergulho no cotidiano e no aspecto comum dos

personagens:

Assistindo a Rifa-me, Paixão Nacional ou Madame Satã, temos a impressão de que estamos diante de momentos na vida dos personagens e nada mais. Rifa-me filma momentos prosaicos na vida de uma mulher de Quixeramobim que decidiu, para conseguir dinheiro e sair da cidade, rifar a si mesma por uma noite no motel. Poderíamos imaginar essa história filmada de várias maneiras: o retrato miserabilista da mulher que encarna todas as contradições de seu sexo (entre o sujeito e o objeto) e de sua sociedade (a prostituição é o comércio por

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excelência e o expurgo social) (façon Cacá Diegues, Alex Viany) ou a tragicomédia simpática explorando uma situação social limite à Guel Arraes ou Andrucha Waddington. Aïnouz pega o desvio, e decide filmar sua história como um "caso" social, o caso Rifa-me: câmera distanciada, fixa, planos gerais, o filme escapa do sentimentalismo subjetivo como da comédia de costumes, foge tanto do discurso decorado do realismo socialista (cada personagem deve representar e estar subsumido a sua classe) como da atribuição fácil da culpa (não vem nenhuma voz over falar da fome, da miséria...). Se existe algum gênero no qual os filmes de Aïnouz podem ser inseridos, ninguém vai acreditar que seja no de "cinema político". Entretanto, existe um componente político muito forte em cada filme de Karim Aïnouz, mas nunca se está muito certo de onde ele surge. Certamente não é no tema: é pelo olhar e pela relação com aquilo que filma que Aïnouz faz nascer o político de suas histórias – que, aliás, são tão políticas quanto quaisquer outras. (GARDINIER, 2006)

Gardinier observa o modo como Karin Aïnouz se desvia de determinadas formas

de contar uma história, adotando uma postura que recusa o pré-dado, o clichê. O cinema

de Karin estaria menos comprometido com uma explícita conscientização para a ação

política e mais empenhado em elaborar uma exposição do funcionamento do mundo.

Estratégia que não anula a presença da força política de suas obras, na medida em que é

na superfície cotidiana que emergem as mais diversas forças de dominação.

Hermila espera em Iguatu a volta do pai de seu filho, Mateus, que ficou para trás

para concluir algum negócio e organizar o material necessário para reprodução de cds,

dvds e jogos eletrônicos piratas que pretendem vender na feira livre de Iguatu.

Entretanto, a espera por Mateus se prolonga mais do que o tempo previsto, deixando a

cada ligação telefônica não atendida, a cada ônibus que aporta na cidade sem pistas de

Mateus, a certeza de que ele não voltará. Hermila, enquanto vive a angústia da falta de

notícias e a lenta desintegração do seu pequeno projeto familiar, também sente pouco a

pouco que Iguatu não é mais sua “casa”.

Muitas narrativas alimentam a utopia de que a volta pra casa possa restituir

determinada harmonia perdida. Referido miticamente como símbolo da segurança,

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profundidade e permanência, o espaço originário geralmente foi caracterizado como

lugar estável, onde há um passado fixo que se mantém. As narrativas que tratam do

processo de retorno são povoadas por personagens que carregam na bagagem um desejo

de restituir a identidade na revisitação às casas da infância. Mesmo que estes lugares

estejam desfeitos, mesmo que os personagens estejam condenados a não encontrarem

um repouso em canto algum, é a partir do choque entre aquilo que existe enraizado na

memória, e o que se apresenta no momento atual, que moverá as tensões das narrativas

que tratam a temática do retorno.

Mas o que se espera e o que se encontra no momento em que tracejamos um

caminho de volta? Voltar é possível? Em Da diáspora – Identidade e mediações

culturais, Stuart Hall (2003), aborda a dificuldade sentida por muitos que retornaram a

seus espaços de origem após a experiência de migração. Ao contrário das expectativas

criadas em relação ao reencontro com o lugar originário, a sensação de volta foi

cerceada por uma forte impressão de perda e estranhamento: “Muitos sentem que a terra

tornou-se irreconhecível. Em contrapartida, são vistos como se os elos naturais e

espontâneos que antes possuíam tivessem sido interrompidos por suas experiências

diaspóricas” (p. 27). Para Hall, esta sensação tem relação direta com o processo de

deslocamento moderno, no qual – parece cada vez mais – não precisamos

necessariamente viajar para muito longe para experimentá-la. Ian Chambers, citado por

Hall, atesta:

Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidades”, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unicidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória e o inconsciente, através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da floresta de signos (Baudelaire) nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias

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("relíquias secularizadas", como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos. (2003, pp. 27-28)

O entremeio colocado por Chambers diz respeito aos atravessamentos que

impedem que o sujeito diaspórico estabeleça um contato essencialista, autêntico e

natural com o lugar de origem. Mesmo a memória, o lugar onde habitam as imagens que

guardamos de experiências primeiras, é profundamente matizada pelas marcas do

tempo, quando não apagada. Se o sujeito migrante é atravessado por elementos que o

modificam nos seus trânsitos, do mesmo modo, o espaço de partida sofre alterações,

muito embora acostumamo-nos a pensá-lo como um referente fixo.

No filme O céu de Suely, o processo de identificação e desidentificação ocorre

tanto com Hermila – a princípio pela perda do projeto que a levava de volta à cidade de

origem – como também com o espectador que, ao voltar ao sertão através do recorte

transmutado pelo filme, encontra tessituras inusitadas desse território que assim como a

própria personagem que o atravessa, também está “em trânsito”.

Abandonada por Mateus, os vínculos com a tia e a avó já não são suficientes

para convencer Hermila a permanecer na cidade. O dilaceramento da ideia de “casa” se

intensifica, na medida em que a personagem segue perambulando esquiza pelas ruas de

Iguatu. Embora Hermila encontre um antigo namorado ainda apaixonado e esteja

rodeada de referências que deveriam religar seu sentimento de pertencimento ao local –

as músicas que dança com a amiga Georgina, as festas, o sotaque, a família – o

desapego ao lugar e a necessidade de sair, de encontrar um pouso onde a vida possa ser

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reinventada, são maiores que a vontade de reatar um sentido de familiaridade perdido.

Sentimento que faz com que sua trajetória siga em espiral: o que seria uma viagem de

retorno se transforma no início de uma nova partida.

O espaço da casa nos processos de deslocamento costuma ser entendido como

um lugar que articula um ponto de partida e um ponto de chegada. Ela é aquilo que

imaginariamente melhor representa o sentido de fixidez e segurança. Boaventura de

Sousa Santos (1996), ao rememorar a viagem clássica na cultura ocidental, lembra que o

motivo da viagem é falocêntrico. A casa é definida como oikos, que significa “lugar

destinado à mulher”. A versão arquetípica é a Odisseia na qual a doméstica Penélope

espera Ulisses por anos: “sua espera é a metáfora da solidez do ponto de partida e de

chegada e o que garante a possibilidade da viagem de Ulisses” (p.13).

Ao pôr a protagonista em trânsito como um corpo feminino insubordinado que

resiste a ocupar um espaço que lhe é destinado, o filme ataca frontalmente o

falocentrismo da viagem. Hermila recusa nesse entremeio não apenas um lugar imposto

como também a maternidade e a promessa de um novo amor, ou seja, todos os

referentes que poderiam enraizá-la de algum modo ao lugar.

A maternidade, preconizada como uma dádiva natural da mulher, cujo ofício é

visto como algo que desperta um amor incondicional e, por conseguinte, a abnegação

das escolhas pessoais, aparece matizada pela personagem, que se opõe à determinação

que pesa sob seu corpo feminino. Hermila tampouco é uma mãe rude ou desamorosa

com o filho, mas o filme não mascara os percalços provocados pela maternidade

precoce e expõe as dificuldades de assumir sozinha a criação do filho após o pai da

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criança desaparecer. Numa sociedade ainda excessivamente patriarcal que naturalizou a

ideia de que as mulheres devem cuidar da prole enquanto os homens podem partir livres

– como fica exposto na fala da mãe de Mateus, que libera o filho moralmente para

seguir livre da teia familiar – tem sido incomum a aparição de personagens que quebrem

esse padrão21.

Desiludida da ideia de que um relacionamento amoroso seria solução para sua

vida, bem como, do itinerário-clichê que recolocaria São Paulo e Rio de Janeiro como

único trajeto possível para uma nordestina, Hermila desvia dos mapas e caminhos

óbvios já perquiridos e resolve traçar uma outra trajetória para sua vida. Decide,

portanto, que quer ir pro lugar mais longe que fosse possível pagar. Apresenta-se como

rota Porto Alegre. A escolha pela cidade localizada no sul do país provoca uma

descentralização no roteiro já traçado anteriormente pelo migrante nordestino (e pela

própria Hermila). Aqui o horizonte já não é mais São Paulo ou Rio de Janeiro, mas um

lugar além desses territórios (o que reforça a ideia de que a própria Hermila é movida

por desejos que transcendem a mera sobrevivência).

Entretanto, se o céu que cobre o horizonte de Hermila parece ilusoriamente

próximo e acessível a qualquer pessoa, o voo que a personagem insiste em alçar esbarra

constantemente na estrutura que a rodeia. Assim como as pipas, enquadradas

21 Karin conta que a ideia do filme é inspirada nas mulheres de sua família. Criado no nordeste brasileiro o diretor viu os homens da casa emigrarem enquanto as mulheres permaneciam assumindo todas as responsabilidades do lar (situação vivenciada por várias famílias entre as camadas populares do país). Essa questão foi abordada no seu primeiro documentário, Seams, um relato familiar sensível em que ele entrevista sua avó – cujo marido foi embora, quando ela ainda tinha 23 anos, e nunca mais voltou – e cinco tias, e elas falam sobre suas visões de amor, família e casamento. O documentário exibe um funcionamento muito específico do feminismo naquele universo. É interessante pensar O céu de Suely como a continuação de um diálogo aberto em Seams. Karin parte de uma indagação sobre como seria se houvesse uma ruptura daquelas mulheres fixadas à teia familiar, se elas decidissem ir embora ao invés de ficar, mote provocador da construção da personagem Hermila.

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frequentemente pela câmara, deveriam voar ao longe, mas se enroscam nos fios

elétricos que volteiam no alto, o deslocamento, o voo “livre” da personagem, está

sempre obstaculizado pelos fios externos que impõem limites a sua deriva.

Figura 8: Pipas enroscadas nos fios elétricos

São as injunções dominantes que tentam conformá-la aos espaços determinados,

que leva Hermila à situação-limite de rifar o próprio corpo para comprar a passagem

para o lugar mais longe dali. O filme exibe a trajetória oscilante da personagem que se

debate entre a sujeição às esferas mais opressivas do poder que a cerceiam e as

estratégias de enfrentamento a ele. A ideia inicial em torno do dinheiro acumulado na

rifa era comprar uma casa para ela e o filho, mas a “casa” novamente representa a

imobilidade da qual Hermila tenta compulsoriamente fugir. Do mesmo modo que a

personagem se desvia dos símbolos imóveis e das conformações identitárias fixas,

tentando projetar seu corpo para um novo, um devir, Karin Aïnouz em O céu de Suely

foge da “terra”, da paisagem dura e ressequida, na tentativa de inverter os símbolos que

animam o sertão, mirando no seu lugar o céu como paisagem que suscita movimento e

transformação.

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Sabemos ao longo do filme que o que motivou Hermila a fugir com namorado

rumo à metrópole foi a necessidade de se aventurar por amor. Muito embora sua deriva

não esteja primordialmente atrelada a questões econômicas, como estiveram várias

narrativas que se debruçaram sobre o fluxo migratório do Nordeste ao Sudeste do país,

são as forças do capital – o custo altíssimo de vida em São Paulo, o emprego precário –

que a empurram de volta ao sertão. Serão estas mesmas forças que vão agir sobre o

corpo de Hermila e dificultar a continuação de sua deriva. Neste ponto o filme indica

uma imobilidade à qual está sujeita a personagem. Subentende-se que em São Paulo a

personagem vivia na periferia da cidade e trabalhava informalmente na venda de

produtos piratas. Em Iguatu, Hermila tenta fazer dinheiro vendendo rifas de whisky e

lavando carros nos postos de gasolina, vivendo na periferia da pequena cidade, ou seja,

ainda que a personagem consiga ir e vir entre espaços distintos, há forças que insistem

em encerrá-la nas margens, em espaços periféricos restritos. As condições do trabalho e

da moradia encontradas em São Paulo se estendem à Iguatu (ou vice-versa), formando

um território-rede, interligado pela reprodução de modos de vida precários.

Para o geógrafo Rogério Haesbaert (2004) os sujeitos não estão inseridos no

processo de mobilidade da mesma maneira. Os trânsitos irão adquirir um significado

diferente para indivíduos que estão em contextos históricos e econômicos diversos. A

globalização permitirá que uma gama heterogênea de indivíduos – turistas,

trabalhadores, refugiados, migrantes – transite pelo mundo, passando-nos a impressão

de que as fronteiras estão cada vez mais desguarnecidas e que todos os sujeitos estão

incluídos nas esferas de movimento da mesma forma. Entretanto, “nem tudo circula da

mesma maneira por toda parte e nem todos extraem dessa circulação os mesmos

benefícios” (PELBART, p.2), e até mesmo a mobilidade dos indivíduos pertencentes às

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elites planetárias (turistas, homens de negócio, intelectuais globetrotters) encontra a

todo momento restrições territoriais, na medida em que nem todos os espaços estão

livres para circulação.

Sujeitos que supostamente teriam acesso a qualquer lugar estão submetidos a

roteiros turísticos previamente determinados que sugerem quais as “zonas de segurança”

por onde se pode transitar e quais os espaços não recomendáveis; a zonas vedadas à

penetração por fenômenos associados à violência urbana, ao narcotráfico internacional e

à ascensão de movimentos terroristas que se estendem por todo um mapa de conflitos.

Assim que, o simples fato do sujeito possuir capital o suficiente para se movimentar ao

redor do globo, não garante que ele esteja sofrendo verdadeiros processos de

deslocamento (ou desterritorialização). Para Deleuze e Guattari a desterritorialização

implica “um movimento de “abandono” do território, uma operação de “linhas de fuga”

(Apud HAESBAERT, p.127). Se o deslocamento por espaços diferenciados supõe, em

muitas circunstâncias, abandono dos territórios reconhecidos, transformações

subjetivas, identitárias e culturais decorrentes do processo de inserção dos indivíduos

em espaços culturais diferenciados, o que se observa atualmente é uma espécie de

imobilidade incrustada no próprio movimento, ou como prefere nomear Haesbaert uma

“reterritorialização através da mobilidade” (2004, p.253), ou seja, embora o indivíduo

esteja em constante trânsito, não se percebe mudanças significativas nos seus espaços de

referência:

Não lhes interessa ter acesso a qualquer espaço porque seus circuitos de locomoção são claramente delimitados em torno daqueles espaços diante dos quais eles se sentem seguros e/ou identificados – as mesmas empresas, os mesmo hotéis cinco estrelas, os mesmos restaurantes internacionais, as mesmas redes de lojas, as mesmas áreas de lazer exclusivas, as mesmas salas “vip” dos aeroportos, o mesmo setor de

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primeira classe ou executiva dos aviões, os mesmos centros de convenções, todos assepticamente “preparados” para acolhê-los” (HAESBAERT, 2004, p.253)

Este trânsito por espaços seletos que reproduzem o mesmo de uma ponta a outra,

promove uma relativização da experiência de deslocamento, sendo indiferente estar em

Cingapura, Tokio, Paris ou Pequim. O processo de deslocamento nesse caso confunde-

se com mera mobilidade física, ao passo que se cortam espaços que põem “o indivíduo

em contato com uma outra imagem de si mesmo” (AUGÉ, 1994, p.75).

Se o movimento das elites se restringe aos espaços estandardizados – o que, não

se pode negar, compreende uma gama enorme de lugares acessíveis e privilegiados –,

para uma parcela significativa das classes expropriadas restam os espaços de segregação

– as favelas, as periferias, os bairros decadentes, os prédios em ruínas. Mesmo quando

se movem de um país ao outro, de uma cidade à outra é possível que, todavia,

continuem confinados às zonas periféricas, afinal:

não há espaço, numa sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais sob uma forma (mais ou menos) deformada e sobretudo mascarada pelo efeito de naturalização, que proporciona a inscrição das realidades sociais no mundo natural: as diferenças produzidas pela lógica histórica podem assim parecer surgidas da natureza das coisas ( BOURDIEU, apud DALCASTAGNÈ, 2012, pp. 120 -121)

No filme O céu de Suely, a trajetória desenhada pela personagem entre

periferias, de São Paulo à Iguatu, mostra os rastros desses muros invisíveis que

determinam quais lugares podem ser transitáveis e habitáveis, quais parecem possuir

uma placa de “não entre”. Se “as imposições mudas dos espaços arquitetônicos se

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dirigem diretamente ao corpo” (2012, p.121), será com o próprio corpo que Hermila irá

enfrentar as forças opressoras que tentam sufocá-la nos territórios de exclusão e das

conformações que a obrigam à paralisia – identitária, territorial, social e econômica.

Hermila ao voltar para Iguatu possui uma mecha loira no cabelo que exibe

visivelmente sua transformação na experiência com o outro, essa diferença faz com que

ela destoe do resto dos moradores da cidade, revelando uma inadequação, um

desencaixe com o espaço que a cerca. Sua experiência radical de enfrentamento ao

poder se dá quando inventa Suely e promete uma noite no paraíso para seus

compradores. Fato que faz com que a cidade-panóptica reaja de forma violenta:

Hermila/Suely será enxotada do mercado, agredida por uma vendedora de roupas e será

expulsa de casa pela avó. A rifa do próprio corpo, que vende aos homens da cidade, é a

última alternativa que lhe resta num sistema que insiste imobilizá-la. Ao fazê-la a

personagem modifica sua condição de oprimida e vira as forças que incidem sobre ela,

apropriando-se do direito de agir sobre seu próprio corpo.

O filme se encerra quando o ônibus que leva a personagem embora corta a placa

fixada na saída da cidade onde Hermila por um dia foi Suely: Aqui começa a saudade

de Iguatu, diz a placa. Saudade porque uma vez atravessada o viajante que queira

retornar jamais encontrará a mesma cidade, da mesma foram que Hermila/Suely longe

dali se tornará Outras. Uma moto persegue o ônibus, sabemos que é João, antigo amor

ainda apaixonado. Eles somem na linha do horizonte, no céu. Durante 40 segundos

miramos a estrada vazia, estamos ali, naquela estrada, vivendo o tempo do plano

diretamente sem cortes. João volta sozinho. Hermila segue seu caminho sem as amarras

que lhe atavam, sem filho, marido ou namorado, ganhando a estrada e ocupando o

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espaço público da vida. Se em Deserto feliz, Jéssica tinha uma porta para sair de cena,

em Céu de Suely, Hermila atravessou um portal gigante, ganhou um céu, para aventurar-

se e construir-se como sujeito da sua própria história.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho pudemos observar que uma teia de discursos políticos, históricos,

sociológicos e artísticos moldou e conferiu sentidos ao território sertanejo ao longo do

século XX. Foram selecionados alguns momentos decisivos que colaboraram na

construção dos elementos pelos quais este território ficou reconhecido, destacando-se os

chamados “romances regionalistas de 30” e o Cinema Novo da década de 60. Ambos

movimentos tiveram um papel determinante na fixação e difusão de temas e questões

concernentes à região.

Constatou-se nesse percurso que uma série de imagens foram repetidas de

maneira recorrente na ficção que se remeteu a essa território – a miséria, o cangaço, a

seca, a migração. Esta última, quase sempre esteve associada às questões climáticas,

vistas como provocadoras das grandes tragédias. O sertão foi comumente encarado

como um lugar de natureza inóspita, castigante, que seria a responsável pela estagnação

econômica da região e por provocar migrações marcadas pelos símbolos de sofrimento e

miséria.

O sertão foi fabricado por uma elite política e intelectual em crise, que atuou na

seleção de um determinado conjunto de imagens que se arraigou no imaginário nacional

e passou a representar esse território e as pessoas que nele vivem. Seleção que

inevitavelmente provocou uma exclusão de várias perspectivas, gerando o apagamento

de uma multiplicidade de narrativas possíveis.

Neste trabalho não há a intenção de acusar nenhuma obra como culpada pelo

estabelecimento de uma imagem fixa e uníssona do sertão nordestino. O que se quis

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mostrar foi que a repetição de determinados enunciados mobilizados por essas

narrativas – que pertencem ao cânone artístico nacional – acabou por naturalizar a ideia

de que o sertão nordestino possui uma identidade una e coesa. Um sertão apresentando

como um continuum, uma totalidade unificada.

. O que motivou a escolha das obras analisadas no segundo e terceiro capítulo

desta dissertação foi o modo como elas apresentaram uma série de entradas e saídas do

sertão, evidenciando as múltiplas vozes e temporalidades existentes nesse território. Ao

invés de exibir o sertão nordestino como um local fora da história, dotado de

características estáveis e coerentes, as narrativas analisadas mostraram a sua estrutura

vazada, contingencial, bem como sua condição relacional, de espaço atravessado por

referentes culturais que não se limitam ao território físico imediato. Um sertão

mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo, lugar que se interconecta

ao panorama global e convive com as problemáticas e reconfigurações advindas desse

processo.

O deslocamento empreendido pelas personagens em Galileia, Deserto Feliz e O

céu de Suely apresenta aspectos mobilizadores de desterritorializações de sujeitos

oriundos do sertão nordestino. Se nas narrativas hegemônicas as questões naturais eram

diretamente responsabilizadas pela fuga dos sertanejos para os grandes centros, nestas

obras veremos experiências perspectivadas por diversos motivos nos quais as

circunstâncias íntimas, sociais e econômicas se entrelaçam. Além disso, vemos um

deslocamento no eixo de discussões que a experiência de migração nordestina suscita:

passa-se da problematização exclusivamente centrada nas questões sociais e

econômicas, à discussão das negociações identitárias de sujeitos marcados pelo trânsito

por diversas culturas.

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Além disso, a inserção de corpos femininos protagonistas capturam outros eixos

de relações de poder (além da classe), que estrutura esse espaço. A dinâmica de

mobilidade empreendida nas obras O céu de Suely e Deserto feliz não interessa como

movimento em si mesmo, mas sim como gesto fundamental que possibilita quebrar

determinações, como a monopolização do imaginário de mobilidade, entendido como

um ato realizado primordialmente por homens. Estes filmes exibem personagens que

ocupam papéis não normativos de gênero e que afrontam diretamente as expectativas

sociais que pesam sob seus corpos, evidenciando suas estratégias para escapar das duras

estruturas de dominação, dos enraizamentos que teimam em encerrar as mulheres na

clausura dos espaços domésticos e das conformações tradicionais de gênero.

Por fim, gostaria de aludir a uma imagem-chave do romance Galielia que, de

certo modo, sintetiza o caminho empreendido neste trabalho. No final da narrativa ao

afastar-se da fazenda onde passou a infância, o narrador, Adonias, consegue ouvir aos

chamados e apelos das vozes sertanejas que ainda lhe acompanham. Sua atitude é seguir

“igualzinho fez Ló quando fugiu de Sodoma”, sem jamais virar-se. O sertão transmite

um apelo, que Adonias se recusa a escutar: “Tapo os ouvidos com cera de carnaúba e

fico surdo aos chamados. Se ouvires as vozes sertanejas, já não escutarás outras vozes.

Melhor esquecer, seguir em frente”. Ao contrário de Ulisses que se imobiliza ao mastro

pra tentar ouvir o canto das Sereias, sem sucumbir a ele, Adonias recusa escutá-lo para

não paralisar-se. Não exatamente porque essas vozes são falsas e não merecem ser

ouvidas, mas sim, porque é necessária uma estratégia para ouvi-las sem que nos

petrifiquem. Assim que, neste trabalho, há um esforço em “escutar outras vozes” não

necessariamente silenciando as já existentes, mas perseguindo outras maneiras de ouvi-

las.

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