UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE...

157
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA TEORIA LITERÁRIA MARCO AURELIO REIS A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO UM OLHAR SOBRE O CARNAVAL DO SUBÚRBIO DO RIO ENTRE 1965 E 2003 Rio de Janeiro 2010

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA

TEORIA LITERÁRIA

MARCO AURELIO REIS

A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO

UM OLHAR SOBRE O CARNAVAL DO SUBÚRBIO DO RIO

ENTRE 1965 E 2003

Rio de Janeiro

2010

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

2

A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO

UM OLHAR SOBRE O CARNAVAL DO SUBÚRBIO DO RIO

ENTRE 1965 E 2003

Marco Aurelio Reis

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Rio de Janeiro Abril de 2010

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

3

FICHA CATALOGRÁFICA

A CRÔNICA DE LÉO MONTENEGRO

UM OLHAR SOBRE O SUBÚRBIO DO RIO ENTRE 1965 E 2003

Reis, Marco Aurélio Reis

A crônica de Léo Montenegro – um olhar sobre o Carnaval do subúrbio do Rio entre 1965 e 2003/ Marco Aurélio Reis - Rio de Janeiro, 2010.

Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

4

A Crônica de Léo Montenegro - Um olhar sobre o Carnaval do subúrbio do Rio entre 1965 e 2003

Marco Aurelio Reis Orientador: Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª Doutora Flora de Paoli Faria Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Alberto Alves Faculdade de Letras / UFRJ Suplentes: _________________________________________________ Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças de Coutinho Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Eucanaã Nazareno Ferraz Faculdade de Letras / UFRJ

Rio de Janeiro Abril de 2010

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

5

Dedico primeiramente este trabalho a minha

companheira Claudia Thomé

Depois a nossos filhos Clara, Felipe e Arthur

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

6

AGRADECIMENTOS

A meus irmãos Sonia Cristina e Luiz Ricardo

A meus pais, gratidão eterna

A Eucimar Oliveira e Alexandre Freeland,

diretores de Redação de O DIA, pela colaboração

durante a pesquisa

A editora O DIA S.A. por ter aberto as portas para

a presente dissertação

Ao departamento de pesquisa da Editora O DIA

S.A. pela ajuda durante a recuperação dos dados a

respeito do Avesso da Vida

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

7

RESUMO

A presente dissertação busca resgatar crônicas escritas pelo jornalista Léo

Montenegro no matutino carioca O DIA entre 1965 e 2003, ano de sua morte. A proposta

foi buscar, nessas crônicas, traços de continuidade com a tradição literária nacional, em

particular com a retratação do malandro, do cronismo sobre o subúrbio da cidade do Rio de

Janeiro e com os textos dos cronistas de Carnaval, os chamados cronistas de Momo. O

primeiro passo foi localizar e recuperar em parte crônicas que estão em sua totalidade

arquivadas em empresa privada, de acesso restrito. Pontuar o estado atual em que se

encontra tal acervo. Depois a proposta foi descobrir sinais claros de continuidade com o

cânone literário, em especial com a obra de Lima Barreto, com a chamada dialética da

malandragem e com o cronismo de Momo. Por fim, resgatou-se todo o conjunto de textos

citados, entre eles o raro texto inaugural do autor no cronismo diário.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

8

ABSTRACT

This work aims to rescue chronicles written by journalist Leo Montenegro in

newspaper O DIA, based in Rio de Janeiro, between 1965 and 2003, the year of his death.

The proposal was to seek, in these chronicles, traces of continuity with the national literary

tradition, particularly with the portrayal of the streetwise, the cronyism on the outskirts of

Rio de Janeiro and the texts of the chroniclers of Carnival, known as chroniclers of Momo .

The first step was to locate and recover in the chronicles that are archived in its entirety in a

private company with restricted access. Score the current state you are in this collection.

After that the proposal was to find clear signs of continuity with the literary canon, in

particular the work of Lima Barreto, called the dialectic of trickery and the cronyism of

Momo. Finally, it rescued the entire set of texts cited, including the rare inaugural text of

the author in cronyism daily.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

9

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................10

2. O AVESSO DA VIDA DE LEO MONTENEGRO .....................................................16

2.1. As crônicas na trajetória do jornal O DIA .............................................................21

2.2. Crônica literária ou coluna jornalística?.................................................................30

2.3. O registro do cotidiano na literatura ......................................................................32

2.4. Conversa com Lima Barreto no subúrbio do Rio ..................................................38

3. CRÔNICA E FOLHETIM – GÊNEROS QUE DIALOGAM NA TRA DIÇÃO LITERÁRIA .....................................................................................................................45

3.1. Diálogo possível entre Manuel Antônio de Almeida e Léo Montenegro .............46

3.2. Dialética da malandragem ....................................................................................50

4. A CRÔNICA DE CARNAVAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDA DE BRASILEIRA .................................................................................................................52

4.1. Os cronistas de Momo..........................................................................................60

4.2. Rei Momo no Avesso da Vida..............................................................................64

CONCLUSÃO................................................................................................................70

REFERÊNCIAS.............................................................................................................73

ANEXOS ........................................................................................................................76

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

10

1. INTRODUÇÃO

Falar em primeira pessoa em trabalho acadêmico é reprovável. Embaralha objeto e

pesquisador. Mas esse estilo nas primeiras linhas desta dissertação é justificável. Editor de

Economia do jornal carioca O DIA, fui abordado há quase um ano por uma repórter de 26

anos de idade, dois de profissão, sobre o que eu pesquisava na academia.

— Crônicas de Léo Montenegro, respondi.

— Quem?, ouvi

O jornal O DIA de hoje, em formato menor, em nada lembra o que Léo Montenegro

trabalhou. Morto em 2003, sete anos atrás, Léo é desconhecido por boa parte da nova

geração de repórteres do matutino carioca. É para esta e futuras gerações de jornalistas que

essa dissertação primeiramente se destina. Para os outros destinatários cabem duas

explicações.

A primeira delas diz respeito à forma como o matutino será citado. Ao longo desta

dissertação o jornal O DIA, editado pelo Grupo de Comunicação Ary Carvalho (ARCA),

será grafado todo em letras maiúsculas, exatamente como o jornal refere-se a si mesmo em

suas páginas nos últimos 10 anos, para destacar o nome da publicação do restante do texto.

Como será necessário usar ao longo da dissertação textos publicados no próprio jornal,

procurou-se uma uniformização estética da grafia do nome da publicação.

A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que o jornal em estudo é

encontrado hoje nas bancas e a forma em que era encontrado durante o período em que o

autor em questão publicava diariamente suas crônicas. Em 15 de março do ano de 2009 o

matutino carioca O DIA chegou às bancas com novo projeto gráfico assinado pelo editor-

executivo de Arte, André Hippertt, em formato tablóide. O jornal resgatou o amarelo em

seu logotipo, retirado na reforma gráfica anterior (de 2007) que, diga-se, não fora feita com

Léo Montenegro em vida. Segundo Milton Coelho da Graça (2009), em artigo publicado no

site Comunique-se, com o novo formato O DIA jogou “o que poderá ser sua última cartada

pela sobrevivência. As dificuldades da empresa vêm se acumulando há mais de um ano

com a crise global, a queda da receita publicitária e também da circulação”.

É nesse cenário atual de queda de circulação não só de O DIA, mas também de

outros jornais impressos de grande porte e de porte regional, que a Internet vem se

destacando como fonte de informação. Usando essa ferramenta, a dissertação deparou

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

11

também com indícios de desconhecimento a respeito de Léo Montenegro e de sua obra em

forma de crônicas diárias. No site Google, atual líder absoluto entre os serviços de buscas

na Internet, Léo aparece em poucos registros. Um deles chama para a missa em sua

memória cinco anos após sua morte, e dá uma pista sobre o risco de esquecimento que paira

sobre a obra do cronista:

Missa pelo jornalista Léo Montenegro será neste sábado Rio - Missa pelos cinco anos da morte do jornalista Léo Montenegro será realizada neste sábado, às 9h, na Igreja da Ressurreição, na Rua Francisco Otaviano 99, Copacabana. Léo assinava desde 1965 ‘O Avesso da Vida’, coluna bem-humorada (sic) que trazia histórias com personagens com nomes inusitados. (http://odia.terra.com.br/rio/htm/missa_pelo_jornalista_leo_montenegro_sera_neste_sabado_183000.asp, acesso em 12 de julho de 2009)

Ora, com todo o respeito ao redator anônimo da nota acima, Léo mais que assinava

um espaço no jornal O DIA. Léo Montenegro Maia de Castro era autor de crônicas com

publicação diária desde 1965 no espaço batizado de Avesso da Vida. Mais que uma coluna

bem humorada com personagens com nomes inusitados, Avesso da Vida se prestava a

retratar situações ambientadas no subúrbio do Rio. Muitas dessas situações eram contatas

ao cronista como verdadeiras por moradores do subúrbio. Outras eram inspiradas em

registros policiais. Ao cronista cabia resumi-las no restrito espaço que lhe estava reservado

no jornal. Para isso, imaginava diálogos e dava a seus textos tom coloquial e com profunda

marca de oralidade – forma usual de contar com menos palavras – na quase totalidade das

vezes usando nomes insólitos no lugar dos relatados pelos moradores do subúrbio ou

escritos nos registros policiais. Assim escapava de complicações com personagens reais ou

com aqueles que por ventura se identificassem com as histórias das crônicas e se sentissem

invadidos em sua privacidade.

A presente dissertação se propõe a colocar um holofote sobre as crônicas de Léo. É

fruto de uma paixão que o pesquisador compartilha com outros profissionais de imprensa,

como o cartunista Ziraldo, o colunista de Carnaval Cláudio Vieira e o professor

universitário e ex-redator de O DIA José Argolo – isso para citar três que tornaram essa

paixão pública em textos.

A título de antecipar um desses textos e acrescentar que Léo também pôde ser lido

após sua morte em breve período de tempo (de maio a setembro de 2005) nas páginas do

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

12

Jornal do Brasil (JB), cabe reproduzir uma resposta de Ziraldo, então editor do Caderno B

do JB, a uma leitora que elogiava a obra de Léo, sem nunca o ter lido em O DIA. Dizia a

leitora Raquel Duque, do Rio, por e-mail, queixando-se de não encontrar mais textos de

Léo no Jornal do Brasil: “Sou fã do Caderno B. As colunas de Léo Montenegro, Silvio

Lach e Aldir Blanc são minhas preferidas. Informem ao Léo que meus finais preferidos são

os que acabam no hospital. Fiquei surpresa ao verificar que nada mais havia de O avesso do

Avesso da Vida, e sem explicação”. A resposta de Ziraldo é gentil e emblemática:

Raquel, a coluna do Léo Montenegro (foto) no JB é resultado de uma paixão minha por suas absurdas e hilariantes histórias da vida carioca. Sempre achei que o Léo era o Nelson Rodrigues deste absurdo, só possível nos subúrbios do Rio: um inventor da sua possibilidade. Léo escreveu durante 37 anos no jornal O Dia e faleceu há três anos, Raquel. Selecionamos algumas de suas mais inventivas crônicas, com os personagens mais criativos e irônicos, para ajudar a manter viva a memória de seu talento. Nestes quatro meses de vida do novo Caderno B esgotamos esta seleção e apresentamos a você, e ao velho leitor do Léo, o segundo adeus de um carioca perfeito. (in http://jbonline.terra.com.br/jb/ papel/cadernob/2005/09/14/jorcab20050914010.html, acesso em 11 de novembro de 2005)

Além da paixão pelas crônicas de Léo, uma outra inquietação motivou a presente

dissertação. Na atual sociedade da informação, em que a televisão é apontada como a mídia

dominante, as crônicas publicadas nos jornais estão cada vez mais escassas. As que

resistem estão defendidas sob a aura de autores conhecidos do grande público e, ainda

publicadas entre fios, se apresentam como verdadeiras trincheiras na imprensa diária. Além

disso, com as novas tecnologias de informação e a exigência de uma produção de notícias

em tempo real, cada vez mais o repórter “flaneur” foi dando lugar ao profissional que hoje

não sai da redação e mantém pouco contato com o dia a dia da cidade, aprisionado a uma

rotina de produção incessante de conteúdo, muitas vezes para mais de uma mídia ou

veículo de comunicação.

Resgatar essas crônicas é, então, um doce desafio: um resgate também do olhar

sobre uma cidade e sobre personagens que correm o risco de serem esquecidos ou nunca

conhecidos por gerações futuras. São textos produzidos dentro da lógica industrial da

imprensa diária, mas que apresentam aquilo que o noticiário deixa de lado, que noticiam

fatos, reais ou fictícios, carregados de humor.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

13

A primeira crônica de Léo foi publicada numa edição que circulou no feriado de 1º

de maio de 1965, um sábado. Neste período os jornais não circulavam em dias seguintes a

feriados, nem às segundas-feiras porque os jornalistas folgavam nos feriados e domingos.

Com isso, a estréia de Léo no Avesso da Vida circulou durante três dias, edições números

4.764, 4.765 e 4.766. Seus dois últimos textos circularam no dia 6 de julho de 2003, edição

seguinte ao seu sepultamento, no Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá. Estes textos

estão no exemplar número 18.651. Entre uma e outra edição, estão 13.885 edições. Os

publicados nos feriados e aos domingos valiam por dois dias até a década de 1990, quando

o jornal passou a circular também nos dias seguintes a feriados e às segundas-feiras, dias

em que, dependendo do espaço, era publicada ou não uma crônica inédita de Léo. Esse

aspecto da rotina de publicações do matutino levou a dissertação a um número de crônicas

entre 11.720 e 11.900. Como ao longo da dissertação não foi possível resgatar todos esses

textos (muitos em microfilmes em poder do departamento de pesquisa de O DIA e a quase

totalidade em encadernações nos arquivos do jornal, uma amostra considerável na

Biblioteca Nacional e os posteriores a 1990 em arquivo pessoal mantido pela viúva do

autor, d. Lídia Montenegro) optou-se por uma ordem de grandeza confiável de 11.700

crônicas.

Apresenta-se como desafiador estudo deslocar os holofotes para essas crônicas da

mídia impressa que resistiram às crônicas de rádio e posteriormente televisivas mesmo

durante o período em que a TV gradualmente foi ocupando o espaço de mídia dominante.

Mais desafiador ainda é focar a análise para crônicas da mídia impressa que tratam

do subúrbio do Rio, enfoque tão escasso na tradição literária nacional, tendo destaque antes

de Léo, só que com peso nacional, Lima Barreto. Peculiar ainda é tratar de uma obra

contemporânea que fala abertamente do Carnaval na mídia impressa fora dos meses de

janeiro e fevereiro, mesmo quando a festa popular, já consolidada como tradição nacional

pelo trabalho dos chamados cronistas carnavalescos (COUTINHO: 2006, p.89), ganhou

espaço nobre na programação televisiva e teve sua presença nas páginas dos jornais

bastante reduzida.

Essa é a proposta da presente dissertação: resgatar e detectar uma obra autoral

inserida no sistema literário nacional entre as quase 12 mil escritas diariamente, entre 1965

e 2003, pelo cronista carioca Léo Montenegro no jornal O DIA do Rio. Cabe aqui pontuar

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

14

que serão usadas as definições propostas pelo crítico literário Antonio Candido

(CANDIDO, 2006, p. 25-27) para o que chama de literatura propriamente dita, ao

considerar obras ligadas por denominadores comuns, e para o que chama de continuidade

literária, ao pontuar a formação de uma tradição quando a atividade de escritores de um

determinado período se integra a um sistema que a liga a atividade de escritores de um

período anterior ou posterior.

Jornalista profissional, Léo Montenegro (nascido em 1938 e tornado cronista em

1965) morreu aos 65 anos de idade, em 5 de julho de 2003, deixando vasta obra, que até

hoje não obteve reconhecimento fora do grupo de leitores dos jornais O DIA e JB. Vale

frisar que foram 37 anos de atividade ininterrupta. Nas férias, antecipava o trabalho e

deixava crônicas para serem editadas em sua ausência.

O objetivo da dissertação é buscar nas crônicas e na trajetória profissional traços

que posicionem a obra de Léo Montenegro na tradição literária nacional, mesmo que em

um primeiro olhar seus textos não encontrem eco no cânone literário. Em especial, a

proposta de dissertação é localizar na obra analisada a brasileiríssima tradição cronista e,

em alguns desses textos, a particular tradição dos chamados Cronistas de Momo, termo

primeiramente usado pelo pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2006) para se referir aos

jornalistas que no fim do século XIX e início do século XX tinham como tema central o

Carnaval e seus personagens para suas crônicas diárias na imprensa do Rio de Janeiro.

Assim, o tema desta dissertação se divide em quatro capítulos e em algumas seções.

Neles não houve a preocupação em separar viés teórico da apresentação do autor e sua

obra, ainda pouco conhecidos fora do grupo formado por jornalistas e leitores de jornal,

particularmente os do Rio de Janeiro. Seguindo a orientação crítica proposta por Candido

(2006: p: 26), no Capítulo 2 da dissertação buscou-se contextualizar as crônicas analisadas

ao longo da dissertação ao período histórico em que foram escritas e publicadas e ao

veículo que as publicou. No Capítulo 3, buscou-se na tradição literária elementos de

continuidade identificáveis na obra do autor. Por fim, o Capítulo 4 e suas seções trazem

características da obra de Léo Montenegro, seu diálogo com os Cronistas de Momo e,

também, algumas crônicas que sinalizam o vínculo do cronista com as temáticas do

Carnaval.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

15

Importante destacar que a presente dissertação não força a caracterização da obra de

Léo Montenegro a orientações críticas e definições pré-estabelecidas. Procurou-se

promover um diálogo da obra estudada com críticos e teóricos da literatura e com autores

consagrados pelo cânone literário ou reconhecidamente importantes para a tradição da

crônica nacional e, em particular, da tradição da crônica de Carnaval. O convite que se faz é

observar como esses diálogos se transformaram em saborosas conversas, bate-papos que,

ousa o pesquisador supor, nunca foram imaginados por Léo Montenegro em seu longo,

rotineiro e despretensioso trabalho de cronista diário.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

16

2. O AVESSO DA VIDA DE LEO MONTENEGRO

Por se tratar de um autor ainda pouco estudado e mais conhecido entre os leitores

dos matutinos O DIA e Jornal do Brasil, cabe uma pausa para apresentação do cronista.

Léo Montenegro produziu crônicas diárias durante 37 anos. Dois anos após sua morte,

como já foi mencionado, chegou a ter alguns de seus textos republicados pelo JB, a partir

de acordo feito entre a viúva do autor e o escritor e cartunista Ziraldo.

É nos arquivos do jornal O DIA, no Centro do Rio, que está guardado todo o seu

acervo – a maior parte em microfilme em cópias de difícil leitura. É no mesmo matutino

popular que se encontra a memória de sua trajetória como cronista, seja textos a seu

respeito por ocasião do aniversário do jornal ou por ocasião da morte do autor, seja nas

entrevistas que concedeu ao próprio veículo.

Durante uma dessas entrevistas ao jornal O DIA, publicada na edição de 14 de

janeiro de 2001, Léo Montenegro contou que sua estréia na crônica ficcional aconteceu por

acaso. Era um feliz repórter policial quando o secretário de redação do jornal em 1965,

Carlos Vinhais, o chamou para cobrir o espaço da coluna Avesso da Vida, cuja

característica era entreter o leitor com um bem humorado texto de ficção sobre a rotina

suburbana carioca.

Vinhais, segundo depoimento dado em 26 de agosto de 2009 pelo jornalista Lúcio

Natalício (35 anos de profissão em 2009, 31 trabalhando como repórter policial em O DIA),

era um homem de voz firme que dava suas ordens aos berros sem levantar de sua cadeira na

chefia de reportagem do matutino carioca. “Todo mundo contava que o Vinhais berrou para

o Léo ir escrevendo o Avesso da Vida porque o cara que escrevia não estava indo para

redação há alguns dias e não havia mais gaveta (sobras) da coluna”, conta Natal. “Léo

escreveu quatro laudas (algo em torno de 120 linhas datilografadas) e entregou. O Vinhais

leu, foi cortando para caber no espaço e gostou. No dia seguinte Léo continuou a escrever e

no outro também, até que o titular voltou, acho que estava doente, e o Vinhais disse que ele

ia retornar só para reportagem e a coluna ia ficar com o Léo”, completa.

“O cara que escrevia a coluna fazia dramalhões que sempre terminavam em morte. Certo dia, ele não enviou a coluna e o Carlos Vinhais me escalou para fazer qualquer bobagem. E foi o que fiz. Algo engraçado e completamente diferente. O pior é que gostaram, e a coluna passou a ser assinada por mim.” (Léo Montenegro em entrevista ao jornal O DIA publicada na edição de 14 de janeiro de 2001)

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

17

O “cara” foi identificado, em depoimento para esta dissertação, por Nylson

Guimarães Peixoto, repórter e redator contemporâneo de Léo, pelo nome de Bouças,

jornalista que não foi lembrado por mais nenhum dos ouvidos na pesquisa. Bouças não teria

enviado seu Avesso da Vida para “emendar” o feriado, faltando alguns dias antes da folga

prevista de três dias. Cabe salientar o caráter boêmio dessa fase do jornalismo, quando era

comum, como diz Nylson Guimarães em seu depoimento, redatores tomarem uns “tragos”

no meio do expediente no botequim em frente à redação ou mesmo durante o trabalho na

mesa de revisão de textos (copy desk).

Essa primeira crônica foi publicada em 2 de maio de 1965. Nela (ANEXO I), em

três parágrafos, Léo narra a prisão de um vigarista, viciado em jogo e caloteiro. O desfecho,

que ficaria como uma marca de suas crônicas, é a prisão do picareta que tentara molestar

moça que batera à sua porta para cobrar prestações atrasadas. Prisão que não ocorre sem

que antes o personagem central sofra uma surra de seus vizinhos. O estilo coloquial,

jornalístico e econômico que se repetira nas aproximadamente 11.700 crônicas seguintes

também já pode ser percebido.

Durante cinco anos Léo dividiu a função de repórter policial com a de cronista. Em

1970 passou a acumular a crônica diária com a função de redator, como recorda o professor

universitário e ex-redator de O DIA José Argolo (1999), em texto sobre o jornalista Ricardo

Galeno, com quem trabalhou no DIA entre 1983 e 1988.

Léo Montenegro, Loren Falcão Armindo, Moysés Meohas, Nylson Guimarães Peixoto, José Luíz Tavares, Arhur Oscar, Paulo Schnoll, Jorge Costa Nascimento (Ricardo Galeno) e - muito modestamente - o jornalista que assina o presente trabalho, compunham a “espinha dorsal” do copy, posteriormente reforçada por Cid de Albuquerque Kling (remanescente da equipe da Última Hora de Samuel Wainer) e Mário Ribeiro (ex-correspondente do Diário Carioca durante a Guerra de Libertação da Argélia). Esses profissionais de imprensa integravam a seleção responsável por um enorme quantitativo de notícias impregnadas de bom humor, mistério e aventuras. (ARGOLO, 2008, p. 1)

Não perdia o humor mesmo quando atuava no copy desk de o DIA, com a árdua

obrigação de rever os textos antes da publicação para observar a sintaxe, ortografia e

mesmo melhorar o estilo. Em O DIA, a mesa dos copy, hoje mais identificados como

redatores, tinha o nome de filtro, termo usado para designar a função deles: depuradores de

impurezas dos textos, como um filtro de água. Nessa tarefa Léo não deixava de lado a

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

18

referência a termos e situações naturalizadas no subúrbio do Rio e que marcariam suas

crônicas no Avesso da Vida. É o que revelam seus contemporâneos no matutino carioca,

como o jornalista João Antônio Barros. Em depoimento para esta dissertação, João Antônio

recorda como Léo “melhorou muito” a cobertura que o jornal estava fazendo das eleições

municipais de 1992. Naquele ano, o então deputado estadual Manoel Rosa, o Neca (PDT)

derrotou Miguel Abrão (PFL), candidato do clã do bicheiro Anísio Abraão David, patrono

da escola de samba Beija-Flor, nas eleições para prefeitura de Nilópolis.

Por si só isso já era notícia. Mas quando cheguei à redação e entreguei o texto, o Léo pediu os números dos candidatos e cravou no título “Deu zebra”!, um animal que não tem no jogo do bicho. Para justificar colocou no pé da matéria (reportagem) todos os números da eleição, com seus bichos correspondentes. O texto ficou bem leve e foi o maior comentário em todo o estado no dia seguinte.

O texto bem humorado merece ser reproduzido:

Para quem gosta de números, eis algumas curiosidades: Neca teve 43.264 votos, dezena que corresponde ao leão, Miguel Abraão ficou nos 14.409, numa infeliz coincidência, a dezena do burro. O mais irônico: a diferença foi de 1.855 votos, a dezena do gato, ou o pulo do gato, como queiram.” (Jornal O DIA, 11 de outubro de 1992, Caderno Grande Rio, página 6)

Com a assinatura de Léo Montenegro, o Avesso da Vida foi ganhando aos poucos

outros temas não policiais, como fatos corriqueiros do dia a dia do subúrbio do Rio,

mantendo, porém, o estilo de ficção inspirada em fatos reais e em relatos de amigos ou na

pura e simples observação do cronista em suas andanças pelos bairros do subúrbio do Rio.

Seu trabalho, recorda o jornalista Lúcio Natalício, começava quase sempre pela leitura de

todo o noticiário. Nessa leitura buscava inspiração para uma crônica. Isso só não acontecia

quando, às vezes, o cronista vinha de casa já com um tema que alguém havia lhe contado

ou que ele próprio havia testemunhado ou conversava com os repórteres e tirava do bate-

papo uma história que ia escrever. “Certa vez olhou da mesa dele para a minha e bolou uma

crônica inspirado na minha cara. O personagem foi batizado com nome inusitado, para

ninguém me ‘sacanear’ (sic) na redação”, recorda Lúcio Natalício em depoimento

concedido para esta dissertação em 26 de agosto de 2009.

A crônica diária permaneceu em O DIA até a morte de Léo. Sobreviveu até mesmo

às reformas gráficas e de conteúdo do jornal iniciadas no fim dos anos 1980 e consolidadas

na década seguinte. O objetivo explícito das mudanças foi qualificar o jornal de modo que

ele pudesse disputar com O Globo os leitores da classe média do Rio. Nesse novo cenário, a

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

19

coluna passou a dar mais espaço às ficções de conteúdo humorístico e ligadas à rotina da

cidade, tendo personagens alegóricos do subúrbio ocupando mais e mais espaço. Situações

pitorescas, engraçadas e o lado curioso e não exclusivamente policial do cotidiano

suburbano do Rio passaram a predominar nos textos a partir da década de 1990 até a morte

do autor, em 2003.

Como ponto comum a toda a obra de Léo Montenegro estão os personagens com

nomes insólitos e ora enganados, ora ludibriando seus pares apesar do verniz de malandro

comum aos dois lados. Em entrevista ao jornal O DIA, publicada na edição de 14 de janeiro

de 2001, Léo Montenegro explica a escolha dos nomes dos personagens:

“Passei a usar nomes estapafúrdios em meus personagens quando alguns leitores chamados Paulo, José, Antônio, enfim, gente de nome comum, passaram a reclamar por acharem ter sido postos em situações vexatórias”, explicou Léo na entrevista de 14 de janeiro de 2001. A estratégia não se mostrou, porém, infalível. Ainda nos anos 70, um personagem batizado com o nome Trinitário iria causar o maior reboliço: um homem também chamado Trinitário invadiu a Redação de O DIA e foi preciso muita conversa para convencê-lo de que era uma coincidência”. (O DIA, 14 de janeiro de 2001)

Finalmente, em 1993 passou a se dedicar exclusivamente às narrativas ficcionais

vividas por personagens identificáveis pelos leitores suburbanos do matutino e que faria do

Avesso da Vida não mais uma seção do jornal carioca, mas um espaço que não poderia mais

ser desassociado ao nome de Léo Montenegro. Ocupando coluna diária em veículo de boa

circulação nos bairros cariocas, foi natural que Léo conquistasse leitores fiéis. Tanto que,

na década de 70, uma leitora escreveria cartas diárias para o jornalista. Essa mesma leitora

de uma hora para outra parou de dar notícias de vida, até que um advogado procurou o

cronista na redação do jornal para informá-lo que fora incluído no testamento dessa

senhora, que falecera exatamente no mesmo período em que suas cartas pararam de chegar

à caixa postal do jornalista, como o próprio autor contou na entrevista de 2001.

Apesar de o foco ser o estudo de suas crônicas e ser pressuposto desta dissertação

que a trajetória pessoal do autor é pouco relevante para crítica de sua obra, cabe sublinhar

um relato a respeito de Léo para destacar a proximidade do cronista com os temas

retratados em seus textos. Narrando um dos aspectos relevantes da vida de Léo e que o

aproxima dos chamados cronistas de Momo pela intimidade que mantinha com os

bastidores do samba, o jornalista Cláudio Vieira revela que um verso de Léo pode ser

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

20

encontrado no samba de enredo do histórico e vitorioso desfile da Escola de Samba Portela

no Carnaval de 1970, sob o título Lendas e Mistérios da Amazônia (ANEXO II).

VIEIRA (2009) conta que os três autores do samba (Sebastião Vitorino Teixeira dos

Santos, o Catoni, Waltenir e Dinckel Martins, o Jabolô, trio vencedor de mais dois

concursos de sambas-enredos na Portela — em 1967, com Tal dia é o batizado; e, em 1977,

com Festa da Aclamação —, após colocarem a mão na sinopse do enredo de autoria de

Clóvis Bornay e Arnaldo Pederneiras, fizeram alguns encontros na casa de Jabolô, que era

taxista, em Irajá. Ainda segundo VIERA, outros encontros ocorreram no bar Salada

Tropical, em frente à estação de Madureira, e outros no Aero Willys táxi com o qual Jabolô

trabalhava na praça.

Catoni morava em Jacarepaguá, era quase vizinho de Léo Montenegro. O cronista,

amigo dos autores do samba, testemunhou diversos encontros deles.

Num desses convescotes, regados a cerveja, é claro, o portelense Léo também teve a oportunidade de dar a sua contribuição. Conta que os autores estavam aflitos com um buraco que havia entre as primeira e segunda estrofes. O intervalo poderia gerar o atravessamento do samba. O jornalista, então, recorreu a um macete de redação, sugerindo que fizessem um encadeamento entre as duas partes, usando a expressão “E dizem mais...” O intervalo foi preenchido sem que a poesia da letra perdesse a fluência. Era o toque que faltava. (in http://sambaonline.blogspot.com/ acessado em 23 de julho de 2009)

Sua atuação no universo do subúrbio do Rio como cronista e sua intimidade com

temas relevantes para a população dessa parte da cidade pode ser comprovada por registros

como esse e até mesmo pela diversidade de situações narradas em sua intensa produção. Na

análise de sua trajetória é possível detectar os primeiros elos de ligação entre seu trabalho e

o dos cronistas de Momo, ligação que se explicitaria em sua obra em diversas crônicas,

algumas delas republicadas até mesmo pelo nada suburbano Jornal do Brasil, entre elas a

intitulada “O bate-bola”, publicada em O DIA na edição do Domingo de Carnaval, 10 de

fevereiro de 2002, que conta a história de um funcionário público que volta ao trabalho

após os dias de folia ainda fantasiado e termina demitido após ficar nu diante do chefe, que

insistia que ele retirasse a fantasia na repartição (ANEXO III).

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

21

2.1- As crônicas na trajetória do jornal O DIA

Antes, porém, de buscar nas crônicas de Léo sua ligação com os chamados cronistas

de Momo — segundo definição do pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2006) ao se

referir aos cronistas carnavalescos conforme já mencionado nesta dissertação —, é preciso

associar sua obra à trajetória do jornal que primeiro e mais publicou seus textos; jornal

recente, se comparado aos seus concorrentes contemporâneos secundários, O Globo e

Jornal do Brasil (JB). Fundado em 5 de junho de 1951 — 60 anos após o JB e 26 anos após

o Globo —, O DIA foi idealizado por Antônio de Pádua Chagas Freitas, que

posteriormente seria nomeado pela Ditadura Militar (1964 – 1985) governador biônico do

Estado da Guanabara (de 1971 a 1975) e do Rio de Janeiro (de 1979 a 1983). Chagas

Freitas fundou o jornal para servir na década de 1950, de palanque no Rio para o então

governador de São Paulo Adhemar de Barros. Chagas Freitas era correligionário de

Adhemar e dirigente de seu partido político, o PSP, no Rio.

Para chegar ao eleitor cobiçado pelos dois políticos populistas, O DIA enveredou

pelo chamado jornalismo sensacionalista, marcado pela predominância do noticiário

policial e por títulos maliciosos, como destaca SANDRONI.

“Com manchetes marcadas pelo impacto extraído do conteúdo dramático da notícia, ressaltando o sensacionalismo dos fatos, com tipos (letras gráficas) enormes, conhecidos com zincos, assim chamados porque recortados em zinco, como se fossem clichês, para compor os títulos que se destacavam na primeira página, anunciando escândalos, crimes e desastres. Mancheteiros especialistas em jornalismo popular, daqueles que muitas vezes inventavam o título e depois iam perguntar ao repórter o que acontecera, empenhavam-se na tarefa de atrair o leitor com o mínimo de palavras, na exploração do duplo sentido, do humor macabro, da metáfora brega ou até de ironia grosseira.” (SANDRONI, 2001, p. 21)

Estreando nas bancas do Rio uma semana antes do jornal Última Hora (UH) – de

Samuel Wainer, correligionário de Getúlio Vargas, à época aliado ocasional de Adhemar –

O DIA já traria fotos e diagramação nos padrões copiados da imprensa norte-americana do

pós-Segunda Grande Guerra. Viria com conteúdo diverso de UH — lançado para fazer

frente ao oposicionista Tribuna da Imprensa, que Carlos Lacerda levara às bancas em 1949.

UH, com mais páginas que a Tribuna da Imprensa, faria frente a Lacerda e a seus

ataques a Vargas. O DIA, com apenas oito páginas, atingiria público formado por grupos

sociais de menor poder aquisitivo , predominantemente moradores dos bairros do subúrbio

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

22

do Rio e cidades da Baixada Fluminense. Um público não alcançado por UH e pela

Tribuna, mas muito cobiçado por Adhemar e seus PSP no Rio. Léo, como dito acima, seria

o repórter policial deste O DIA antes de assinar o Avesso da Vida.

De 1965 a 2003, ano de sua morte, acompanharia as transformações editorais e

gráficas do jornal mantendo o mesmo modelo de inspiração para suas crônicas — baseado

em fatos reais e histórias ouvidas ou vividas por ele — e estilo — textos breves, recheados

de humor, tendo o subúrbio do Rio e seus habitantes como cenário e personagens centrais, e

o Carnaval, os foliões e os blocos carnavalescos como temas frequentes.

Em 1967, Léo ainda repórter e cronista, passaria a ser chefiado por Tássilo Mitke,

que trabalhara como secretário de redação em O DIA de 1958 a 1961 e retornaria naquele

ano para ficar lá por mais exatos 20 anos. É relevante destacar esta longa convivência entre

Léo e Mitke, em função da ideia que o secretário de redação tinha de jornalismo popular e

que, nas duas décadas seguintes, impôs como orientação para sua equipe de repórteres,

redatores, colunistas, cronistas e editores. Tal orientação é resumida por SANDRONI ao

definir jornal popular como O DIA se propunha a ser:

“Tem de trazer informações relevantes que garantam a fidelidade do leitor. Tem que apresentar textos e títulos, principalmente manchetes, que extraíam da realidade aspectos incomuns com a finalidade de conquistar e comover”. (SANDRONI, 2001, p. 37).

Nos dois períodos sob comando de Mitke, o jornal destinou mais espaço para

notícias sobre sindicatos, funcionalismo público e futebol. Criou seções fixas com

orientações e respostas para queixas de inquilinos e consumidores, espaços fixos com

informações sobre horóscopo, palavras cruzadas e registro de santos do dia e colunas sobre

rádio e televisão e a crônica Avesso da Vida, cuja fórmula foi copiada do jornal irmão

Última Hora. Natural, portanto, que Mitke destinasse atenção especial à coluna de crônicas

do subúrbio carioca e determinasse que sua temática e estilo seguissem a orientação

editorial que ele dava para todo O DIA de modo o matutino consolidar e não perder sua

característica de jornal popular.

Analisando este período de O DIA, em particular, e do jornalismo dito policial,

como um todo, SERRA (1986, p. 17 e 18) destaca que neste recorte o jornal se presta como

ampliação dos “órgãos sensórios, perceptivos e experienciais do leitor, o qual, através dele,

alcança uma realidade afastada e por seus próprios meios individuais, inalcançável.” Em

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

23

outras palavras, é apresentar fatos e situações onde o jornal chegou e o leitor, não, apesar de

seu interesse pelo ocorrido. Neste aspecto, a verossimilhança ou mesmo a inspiração em

fatos ocorridos noticiados na imprensa emprestam às crônicas do Avesso da Vida poder de

elo entre o fato e o leitor, importância que fideliza o público, como defendia Mitke.

Cabe inferir que a consolidação do estilo de Léo no Avesso da Vida se deu no que a

presente dissertação classifica, para efeitos teóricos, como primeira fase de sua obra, que

vai de 1965 a 1987, quando Mitke deixa o jornal. A comparação de crônicas desse período

colabora com essa inferência. A título de exemplo cabe observar duas. Uma de 5 de junho

de 1968, no aniversário de 17 anos de O DIA e com Mitke de volta há pouco menos de um

ano, com outra de 5 de junho de 1986, no aniversário de 35 anos do jornal e a um ano da

despedida do referido secretário de redação.

Em ambas, o texto econômico marcado pela oralidade da linguagem serve de

instrumento para descrever situação inusitada e humorística. São dois “causos” com a

localização definida pelo ante-título dado à coluna nesta primeira fase: Aconteceu no

Rio/Avesso da Vida.

Na primeira, intitulada “Os dentes do defunto” (ANEXO IV), um claro diálogo com

a obra de Nelson Rodrigues (que escrevera entre 1951 e 1961 no jornal Última Hora a

coluna “A Vida Como Ela É”, cuja proposta de ficcionar sobre fatos jornalísticos inspirou

as crônicas do Avesso da Vida de O DIA). O personagem central da crônica de 1968, um

bandido morto, é Boca de Ouro, numa clara referência ao bicheiro consagrado na peça de

teatro homônima de Nelson Rodrigues, escrita nove anos antes.

Na histórica crônica de Léo (disponível em O DIA em microfilmagem com

pequenos trechos inelegíveis), Boca Ouro está sendo velado por 800 bandidos. Dois deles

declaradamente cobiçam furtar seus dentes de ouro, chamados uma vez no texto de

brodoegas, numa referência a uma erva da culinária mineira hoje pouco usada. O desfecho

humorístico consiste numa inusitada “falta” de luz em pleno momento entediante do velório

(com a cachaça acabando e nenhum boteco aberto). Na escuridão furtam não só a dentadura

dourada do bandido (não identificado na crônica de Léo por seu tipo de crime), mas

também carteiras, relógio, paletó e até um dos pés de um par de sapatos, não sem antes

alguém ter gritado no meio da confusão: “A cueca, não! A cueca, não!”

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

24

Cabe destacar, neste texto de 1968, a citação ao sambista Almirante (Henrique

Foréis Domingues, 1908-1980), então radialista de sucesso, primeiro biógrafo de Noel

Rosa e colunista do jornal A Notícia. Almirante convivia com os jornalistas de O DIA na

década de 1960 e como conta Nylson Guimarães Peixoto, no depoimento para esta

dissertação, adorava contar pelo cantos histórias de assombrações, algumas publicadas em

sua coluna em A Notícia, outro jornal de Adhemar de Barros no Rio e que funcionava no

mesmo prédio de O DIA, tendo sido fundado em 1950 pelo político paulista também em

parceria com Chagas Freitas (in http://www.alerj.rj.gov.br/memoria/historia/govgb/

cfreitas.html).

Na segunda crônica a ser analisada, 18 anos depois, o texto ainda mais econômico

aparece mais amadurecido, sem perder as características centrais do seu precursor de 1968.

Nela (ANEXO V) um delegado é surpreendido num dia de pouco movimento na delegacia

por seu auxiliar que tenta alertá-lo para o que ia acontecer: três senhoras iam tirar mais de 1

mil cruzados de seu chefe. Na hora do alerta, em se pensando tratar de bandidos, o

delegado puxa a arma. Quando sabe que são três senhoras inicia um diálogo cujo desfecho

é também inusitado: as mulheres iam apresentar para o delegado um livro de ouro (aquele

que arrecada dinheiro mediante assinatura de comerciantes e autoridades em torno de uma

igreja, escola ou entidade afim) que financiaria uma festa no domingo seguinte na paróquia

católica local. Vão logo avisando: “Quem deu menos, deu 1 mil cruzados”. O delegado

assina e depois vai pedir desculpas ao auxiliar afirmando que a visita das senhoras foi “pior

que oitocentas quadrilhas juntas”.

Nos dois textos, a retratação de situações do contexto policial (nos casos analisados

bandidos e delegacia) que marcariam toda a primeira fase da obra de Léo. Em ambos,

ainda, a posição das crônicas no pé da página, a propósito, a mesma quarta página. Cabe

ainda sublinhar que com o Avesso da Vida vinham diagramadas logo acima as seções fixas

criadas por Mitke com horóscopo e palavras cruzadas e comentários sobre a programação

da TV. Na de 1968, o registro de santos do dia e na 1986, o Cantinho das Canções (seção

também idealizada por Mitke) que traria pagodes e sambinhas de compositores admirados

pelos moradores do subúrbio do Rio, tendo no elenco nomes consagrados por este público,

como Oswaldinho da Cuíca, e outros ainda pouco conhecidos fora de seus bairros.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

25

Cabe destacar que em 1986, O DIA já havia mudado de mãos. Três anos antes, o

jornalista Ary Carvalho comprara o jornal de Chagas Freitas. No ano do negócio – assinado

em 14 de outubro e consolidado dois dias depois, Ary também era dono do jornal Última

Hora. Em um primeiro momento o empresário em nada mudaria na linha editorial de O

DIA, como informou ao assumir a presidência do matutino em comunicado publicado na

primeira página de O DIA:

Ary Carvalho na presidência de O DIA: O jornalista Ary Carvalho assume, a partir de hoje, o controle acionário e a presidência de O DIA. O novo proprietário manterá a mesma linha editorial do jornal fundado há 32 anos pelo jornalista (sic) Chagas Freitas. (Primeira página de O DIA, “O jornal de maior circulação no país”, 16 de outubro de 1983).

Importante frisar que, fundado em 1951 por Samuel Wainer, vinte anos depois o

jornal Última Hora foi vendido por Wainer a um grupo que já havia arrendado o jornal

Correio da Manhã e era liderado por Maurício Nunes de Alencar. Dois anos depois, o

jornal passou a ser arrendado pelo jornalista Ary Carvalho (ex-repórter do próprio UH e

então dono da empresa de sociedade anônima Ary Carvalho Editora, ou simplesmente Arca

Editora S.A.). Em 1987, já à frente do jornal O DIA, Ary Carvalho vendeu o UH ao

empresário José Nunes Filho, que o comandaria até o ano de 1991, quando teve a falência

decretada pela Justiça em função de dívidas com fornecedores e ex-funcionários. (In

Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, verbete Última Hora, versão online

http://cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_ultimahora.htm, acessada em 08 de setembro de 2008.)

Ao manter a linha editorial do jornal O DIA, a presença de Ary consequentemente

em nada alteraria, nesta fase do matutino carioca, o estilo das crônicas de Léo Montenegro,

como pode ser notado na crônica de 14 de maio de 1987, três anos e meio após Ary

comprar o DIA e no mesmo momento que o empresário se desligaria do jornal Última Hora

para começar a empreender mudanças no matutino popular que comprara de Chagas

Freitas.

Nesta crônica de 1987 (ANEXO VI), os elementos característicos da primeira fase

da obra de Léo Montenegro: o desfecho com personagens presos no “xadrez”, a referência

a bairros do subúrbio do Rio (Cordovil e Jacarepaguá) e a predominância de diálogos

servem para contar como terminaria em confusão a festa que o personagem de nome

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

26

insólito, Gersonildo, pretendia dar em família após ganhar no (jogo do) bicho e com o

dinheiro comprar um peru. No breve texto, referências ao preço “camarada” do prato,

classificado pelo cronista como acepipe, que o filho de cinco anos nunca havia comido e

que os vizinhos e seus agregados também iriam cobiçar. Com particular fluência, a crônica

insinua diálogo de baixo calão (Então você pega esse seu peru e ...) que resultaria na

confusão entre Gersonildo e sua mulher com os vizinhos e agregados, sendo que alguns

terminariam não comendo o cobiçado peru, mas sim a “canja miserável” de um hospital.

As mudanças que Ary Carvalho empreenderia em O DIA seriam graduais, de modo

a não perder leitores fiéis e a conquistar outros. Esse cuidado garantiria a Léo o espaço do

Avesso da Vida mesmo quando O DIA se transformava, ganhando novos cronistas e

colunistas. Uns de prestígio intelectual e político, como Arthur da Távola (começou a

escrever crônicas de terça-feira a domingo na edição de 16 de dezembro de 1987) e Millôr

Fernandes (escreveu entre 10 de setembro de 1995 e 3 de agosto de 2000) e outros de forte

apelo popular, como a crítica de programação televisiva e shows Maria Helena Dutra (sua

seção estreou em 18 de dezembro de 1987), como a personalidade do mundo do samba

carioca Ruça (sua coluna foi publicada pela primeira vez em 4 de julho de 1988, quando ela

presidia a Escola de Samba Vila Isabel) e como o ator e diretor de teatro e televisão Miguel

Falabella (suas crônicas sobre o Rio começam a ser publicadas em 26 de janeiro de 1991).

Ary também inauguraria seções novas no matutino, como o Caderno Grande Rio,

voltado para noticiário da Baixada Fluminense (foi às bancas pela primeira vez em 2 de

outubro de 1988), a edição dominical do Caderno D (suplemento de cultura que estreou aos

domingos em 20 de maio de 1990), o Caderno de Automóveis (publicado às quintas-feiras

desde 12 de setembro de 1990 e que ganhou o nome Automania em 27 de janeiro de 2000),

o Caderno Esportivo (com forte cobertura dos clubes cariocas de futebol, tendo sido

lançado em 6 de julho de 1992 e mudado para o nome Ataque em 17 de agosto de 1997) e o

Caderno de Empregos (suplemento dominical com oferta de vagas que circula desde 17 de

janeiro de 1993).

Ary também modernizaria a produção do jornal, inaugurando novo parque gráfico

(em 03 de julho de 1992), o que permitiu a publicação de fotos coloridas (estréia em 05 de

julho do mesmo ano) e de cadernos regionais com circulação restrita em algumas regiões

do estado do Rio, como Serrana (estréia em 17 de agosto de 1993), Norte e Noroeste (em

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

27

31 de agosto de 1993), Grande Niterói (a partir de 27 de agosto 1995) e Baixada

Fluminense (em substituição ao Caderno Grande Rio, a partir de 1º de outubro de 1995).

Com essas modificações o jornal O DIA passou a atingir públicos distintos e a

liderar as vendas de exemplares em banca em todo o estado (em 1998 bateu a marca de 1

milhão de exemplares vendidos em banca aos domingos). Não perdeu, porém, seu foco em

grupos de leitores específicos, notadamente aposentados do INSS, servidores públicos da

área meio (atendentes de repartições, agentes administrativos e secretárias) e moradores do

subúrbio do Rio e Baixada Fluminense. Léo Montenegro acompanhou essas mudanças em

suas crônicas, tornando mais gerais as referências aos subúrbios da cidade do Rio e

aumentando as citações indiretas sobre o que o público via na televisão e acompanhava no

noticiário político e cotidiano não-policial. Mostrou uma versatilidade que já exercitara

antes mesmo de Ary assumir o jornal O DIA, quando sua coluna começou a circular no

suplemento dominical Jornal da Televisão e de Mulheres, que passou a ser publicado em 9

de setembro de 1979 e ainda estava na bancas quando da morte de Léo.

Em uma de suas crônicas no Jornal da Televisão e de Mulheres, a de 14 de outubro

de 1984, uma demonstração do que seria o estilo de Léo nessa segunda fase de sua obra

(que para efeitos teóricos nesta dissertação pode ser entendida entre 1987, quando Mitke

deixa o jornal, passa pelas transformações empreendidas por Ary e termina com a morte do

autor em 2003). Nessa crônica (ANEXO VII), inserida em um suplemento voltado para o

público feminino e publicada no alto de página e não no rodapé, o protagonista com seu

nome insólito seria uma mulher, sua temática, a busca por um marido, e a referência a

assuntos econômicos, tão comuns ao longo dos anos 1980 com seus sucessivos programas

de controle da inflação. Tais aspectos, impensáveis nos primórdios do Avesso da Vida,

marcariam a segunda fase da coluna, quando as crônicas passaram a dedicar especial

atenção ao Carnaval de Rua do subúrbio, então mergulhado no ostracismo diante da ampla

cobertura televisiva que ganharia o Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na

Avenida Marques de Sapucaí.

É isso que pode ser percebido na crônica de 27 de fevereiro de 2003 (ANEXO

VIII). Nela, o personagem central é Nescrópio, que procura uma loja para comprar uma

fantasia de Carnaval. A crônica se passa no interior da loja, onde Nescrópio tenta encontrar

uma roupa de mulher árabe semelhante a de Jade, personagem central da novela ‘O Clone’,

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

28

exibida no horário das oito da noite na TV Globo entre os dias 1º de outubro de 2001 e 15

de junho de 2002. Com 221 capítulos, a trama, de autoria de Glória Perez, conta a história

de amor entre Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício), que se conhecem no

Marrocos. (In http://www.jaymemonjardim.com/clone/conteudo.htm, consultado em 10 de

outubro de 2006).

Voltando à crônica de Léo Montenegro, Nescrópio procura uma fantasia semelhante à

roupa de Jade. Diz que vai comprá-la para a esposa e, por isso, quer uma fantasia que

esconda bem o rosto. No fim do texto a revelação: a fantasia seria usada por ele mesmo,

que até então se mostrara um genuíno machão suburbano carioca. Diz o personagem ao sair

da loja: “– Mal posso esperar o momento de arrasaaaaar lá no baile!”.Vale destacar que se

trata de baile de coreto, evento carnavalesco típico de periferia, e não de baile de hotel ou

teatro, evento característico da área central e da Zona Sul do Rio.

Escanildo, da crônica de 1º de março do mesmo ano (ANEXO IX), é o esperto

carioca que tenta driblar toda a família para brincar os dias de folia sozinho no coreto do

bairro, onde a Prefeitura do Rio promoveria um baile popular. Desde os anos 90 a Riotur

promove bailes ao ar livre, de sábado à terça-feira de Carnaval, em pontos espalhados pela

cidade. Na Zona Norte, muitos desses bailes têm as bandas instaladas em coretos. Escanildo

diz querer levar toda a família ao coreto, disfarçando não saber que o filho desejava ver

pela TV o desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Carnaval do Rio, que a sogra

sonhava aproveitar a folia e o sol para se banhar no Piscinão de Ramos e que a mulher

pensava em passar a festa de Momo num retiro espiritual sem coloração religiosa evidente.

Por fim, ele é desmascarado pela esposa, que dá uma surra no personagem. Escanildo passa

o Carnaval sambando deitado na maca no “Hospital Souza Aguiar, que fica bem pertinho

do Sambódromo”.

Interessante observar como Léo Montenegro ambienta suas crônicas, com ganchos na

contemporaneidade. O Piscinão de Ramos foi idealizado pelo Governo do Estado do Rio de

Janeiro, em parceria com a Petrobras, como Projeto de Requalificação Urbana da Praia de

Ramos. Foi inaugurado em dezembro de 2001 e, em abril de 2002, sua denominação foi

alterada para Parque Ambiental da Praia de Ramos. A sua criação teve como objetivo

principal recuperar o espaço urbano local. O lago (piscinão) é abastecido com água da Baía

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

29

de Guanabara, tratada por uma estação de tratamento de água, segundo o site

www.terranova.org.br/proj_piscinao2.htm, consultado em 11 de outubro de 2006.

Antes de debruçar sobre a aproximação da obra de Léo com os chamados cronistas de

Momo, cabe um olhar prévio sobre esse estilo literário no qual as crônicas do Avesso da

Vida se inserem. Cabe, em particular, uma análise sobre o verniz malandro dos personagens

centrais de suas crônicas, um verniz comum ao conjunto de sua obra, presença marcante

nas duas fases apontadas por esta dissertação.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

30

2.2 - Crônica literária ou coluna jornalística?

Jornalista, Léo Montenegro não chamava seu espaço literário no matutino O DIA de

crônica. Chamava-o de coluna, como pode se comprovado na entrevista de 2001 já

mencionada nesta dissertação. Coluna é uma referência mais jornalística que crônica. Diz

respeito à divisão dos jornais, em colunas separadas por pequenos espaços. O titular da

coluna é o colunista, indivíduo inserido na redação, que redige seus textos dentro dela em

meio aos repórteres, redatores, fotojornalistas e editores. Para Léo e seus contemporâneos,

como Nylson Guimarães Peixoto, cronista é alguém que redige seus textos fora da redação

e os encaminha para redatores e editores os colocarem nas páginas do jornal. Avesso da

Vida, para eles, era uma coluna. Os textos de Arthur da Távola, crônicas.

Na classificação de Léo e seus contemporâneos, supõe-se, pesava mais o fato de, em

seus 37 anos de Avesso da Vida, Léo ter redigido suas crônicas dentro da redação durante

27 anos e as ter escrito de casa apenas nos últimos 10 anos, exatamente quando se

aposentou do “jornalismo”. Já em seus últimos anos de vida, com a redação de O DIA já

renovada e Léo em casa, Avesso da Vida passou a ser tratado internamente pela nova

geração de jornalistas como crônica, afinal o texto vinha de fora para ser editado na

redação.

Com a permissão que o distanciamento temporal permite, cabe afirmar que as

colunas de Léo são crônicas e que o conjunto de textos do Avesso da Vida (pelo menos

11.700) é uma obra completa em forma de cronismo diário. Por que? A resposta vem do

professor Jorge de Sá. Ele destaca (SÁ, 2005, p. 7) que o termo crônica é definido

habitualmente como soma de jornalismo e literatura, exatamente como se propunha o

Avesso da Vida e seu autor desde os anos 60 até o seu encerramento em 2003.

Sá pontua que as crônicas derivam do período de influência literária, quando

grandes escritores comandavam as redações, determinando a linguagem e o conteúdo.

Deriva, portanto, dos folhetins, só que com a linguagem mais solta que faz mais lembrar

uma conversa do que um texto literário. Trata-se, porém, de uma conversa entre o narrador

e seu público leitor, que tem as páginas dos jornais — com seus limites editoriais, espaciais

e ideológicos — como ponto de encontro.

“Daí a imagem do narrador-repórter, [que] dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal em que ela [a crônica] é publicada (...), o que significa uma espécie de censura ou, pelo menos, de limitação: a ideologia do veículo

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

31

corresponde ao interesse dos seus consumidores, direcionados pelos proprietários do periódico e/ou pelos editores-chefe de redação. Ocorre ainda o limite de espaço, uma vez que a página comporta várias matérias, o que impõe a cada uma delas um número restrito de laudas, obrigando o redator a explorar da maneira mais econômica possível o pequeno espaço de que dispõe. É dessa economia que nasce sua riqueza estrutural.” (SÁ, 2005. p. 7 e 8)

É nesse direcionamento de seus textos a uma classe que tem preferência pelo

popular O DIA, público-alvo bem definido pelos interesses conjunturais dos dois

proprietários que comandaram a empresa nos 37 anos do cronismo diário de Léo

Montenegro, que se encontra explicação possível para a escolha de personagens do Avesso

da Vida. São moradores suburbanos com nomes insólitos, como já dito aqui, sendo eles e

seus pares tipos humanos identificados nas crônicas por características físicas de forma

politicamente incorreta (careca, gordão, baixinho, caolho etc), por sua ocupação ou fonte de

renda (aposentado, bicheiro, dona de casa, delegado etc) ou por seu grau de parentesco

(sogra, filho, mulher etc).

Outro aspecto comum às crônicas é que seus personagens são integrantes de blocos

carnavalescos de bairros suburbanos. Em nenhum momento integram escolas de samba

conhecidas do Carnaval do Rio. Seus blocos são desorganizados, que promovem ensaios e

desfilam nos dias de Carnaval mas em locais periféricos, como ruas do bairro onde se

localizam. São blocos “da comunidade”, como gostava de caracterizar o autor. Por este

motivo, estão inseridos na vida dessa comunidade, sendo lembrados mesmo em situações

não diretamente relacionadas ao Carnaval, como pode ser conferido na crônica intitulada

“A Diferença”, publicada em 20 de maio de 1994 (ANEXO X). Nela o personagem

secundário identificado como “negão”, interessado na personagem central Eustrázia, cogita

convidá-la para o cargo de madrinha da bateria do bloco da comunidade, uma deferência

para a senhora que na crônica é definida por suas formas nada esbeltas (“A gente nunca

sabe quando a dona Eustrázia tá indo ou vindo!”) e até assustadoras (“Se ela tirar a blusa

aqui na rua, vai assustar criancinhas, nós teremos pesadelos terríveis, os croquetes do bar

vão ficar revoltados, o...”).

Reforçando o que pode ser conferido nas crônicas já citadas acima, cabe sublinhar o

que o professor Jorge Sá (2005) destaca como liberdade dos cronistas que, em seus textos,

tanto podem tratar de um acontecimento jornalístico, quanto fazer um comentário acerca

desse acontecimento. Podem ainda inventar personagens e dar um toque ficcional aos seus

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

32

textos. Com isso, conto e crônica se aproximariam e quase se igualariam caso o ofício do

cronista não fosse menos denso que o do contista. Isso ocorre uma vez que o narrador, na

maioria das vezes, é o próprio cronista. Alguém que produz seu texto sob a imposição da

indústria jornalística quanto à simplicidade da linguagem e quanto ao pouco apego literário.

Ora, em linhas gerais, a crônica só terá a efêmera duração das 24 horas da edição do jornal

que a veicula.

Tendo em vista o que já se falou da obra de Léo até aqui, cabe reforçar a adequação

de seus textos à classificação de estilo proposta por Sá (2005). Em particular, o “pouco

apelo literário”, que distancia as crônicas do Avesso da Vida do cânone consagrado, mas

que, visto com o distanciamento hoje possível, acaba por se tornar uma característica que

valoriza a obra de Léo. Valoriza porque mostra que a obra hoje encerrada pela morte do

cronista tem estilo com marcas autorais e características que a inserem na tradição cronista

e literária nacional apesar de seus limites espaciais (o Avesso da Vida tem no máximo uma

lauda, o que equivale a 30 linhas em folha de papel A4, espaço 1,5), da necessária

adequação vocabular e temática voltada para o público-alvo do jornal popular e dos

direcionamentos editoriais do veículo. Cabe reafirmar ainda que o veículo, o matutino O

DIA, nasceu como suporte político de cunho populista, profissionalizado apenas após Ary

Carvalho assumir o comando e empreender mudanças, na década de 90, o que se refletiu

gradualmente durante 13 dos 37 anos do Avesso da Vida.

Tal simplicidade e falta de perenidade das crônicas como as de Léo não fazem do

gênero algo menor, ainda mais quando se leva em consideração que autores consagrados da

tradição literária nacional, como José de Alencar e Machado de Assis, experimentaram em

crônicas de jornais personagens e temas que posteriormente iriam reaparecer em seus

romances. São eles que consolidam o gênero exatamente nos primórdios da formação da

tradição literária nacional.

2.3 – O registro do cotidiano na literatura

Em biografia recente do escritor José de Alencar, o jornalista Lira Neto (2006) fala

dessas primeiras crônicas veiculadas na imprensa brasileira do Segundo Reinado. Situa

Alencar entre esses primeiros cronistas de meados do Século XIX.

Sem exceção, os periódicos seguiam todos a mesma fórmula já aprovada pelo público leitor. Nos dias úteis, saíam os folhetins literários, ou seja, romances

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

33

escritos em capítulos, em sua grande maioria traduções de romances franceses. Os fins de semana, principalmente os domingos, eram reservados aos folhetins em forma de crônica, a exemplo daqueles que Alencar havia sido contratado para escrever no Diário do Rio de Janeiro. “Não sei se darei conta da tarefa; mas a falar a verdade, pouco abalo se dá isso num tempo em que o cumprimento da promessa é cousa que passou de moda e já não está em voga. Sobre mérito literário não falemos, é outra antigalha, outro prejuízo a que não se dá grande peso”, advertiria aos leitores, com malícia, em seu folhetim de estréia (NETO, 2006, p. 90)

A professora Marlyse Meyer (1996, p. 351), em sua extensa pesquisa acerca dos

folhetins, extrai um texto referencial sobre romance-folhetim francês do início do Século

XX, fazendo paralelo com os folhetins consumidos por leitores operários (especialmente de

origem italiana) do Brasil do mesmo período. No texto, menção ao romance-folhetim sobre

a vida do povo, possível primórdio do cronismo literário sobre o povo da periferia (no caso

moradores do subúrbio do Rio) que caracterizaria o Avesso da Vida.

Esses romances-folhetim sobre a vida [do povo] têm dois aspectos. O primeiro, óbvio: distraem , interessam, fazem passar o tempo. O segundo: discutem as dificuldades da vida, suas armadilhas, suas desgraças, seus riscos, o infortúnio e a miséria dos coitados. E um aspecto não exclui o outro. Por que haveria de excluí-lo [...] E de todas essas misérias cotidianas ficou esta massa de romances-folhetim que delas testemunham [...] “Os Gritos da Miséria humana”, pedra angular da literatura popular. (JEAN LECLERCQ apud MEYER, 2005, p. 351-352)

Neste aspecto, crônicas herdeiras dos romances-folhetim sobre a vida do povo,

como as escritas por Léo Montenegro, evidenciam o poder de registro de época das

crônicas de maneira geral. Ora, para ser registro de época, a crônica não precisa

necessariamente retratar fatos ocorridos ou fazer referência à política ou à economia do

momento em questão. As angústias, as queixas, as situações descritas, os diálogos, mesmo

que fictícios, são traços documentais para o historiador, que pode encontrar no texto, por

exemplo, o que era naturalizado por aquele público naquele momento, o que era motivo de

riso, e o que era considerado desgraça. Como afirma a professora Margarida de Souza

Neves, na coletânea de artigos Cronistas do Rio organizada por Beatriz Resende, “(...) o

historiador encontra na crônica não apenas a personalíssima escrita do cronista, mas o

espírito do tempo, num sentido quase hegeliano.” (RESENDE, 2001, p.23)

Um exemplo dessa “naturalização” na obra de Léo está na crônica publicada no dia

21 de junho de 2003 (ANEXO XI). Nela, o personagem Grindélio passa aperto para

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

34

encontrar os sapatos e enfim participar do ensaio de uma peça de teatro em que trocaria

beijos com três mulheres. A esposa dele, intrigada, quer saber: “Que ensaio? O Carnaval

ainda tá muito longe!”. Tal referência à festa popular se insere no texto mostrando que no

universo cultural dos personagens retratados pelo cronista, o primeiro pensamento que vem

à cabeça diante da palavra ensaio é ensaio de Carnaval, para o desfile nos dias de folia. A

citação não é gratuita, uma vez que está intimamente ligada à rotina dos apaixonados pelo

Carnaval carioca. Afinal, começam timidamente em agosto ou mais tardar em setembro os

ensaios das escolas de samba e blocos carnavalescos para escolha dos sambas enredos e

definição das alas que desfilarão no início do ano seguinte.

O espírito do tempo encontrado nas crônicas se revela com importante material não

só para o historiador, mas também para o educador que usa contemporaneamente os meios

de comunicação em sala de aula. Em reportagem publicada em O DIA na edição de 3 de

outubro de 1998 a professora Marise Borges, então lecionando na Escola Municipal

Frederico Eyer, da Cidade de Deus, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, revelava que

fazia naquele ano trabalhos com os alunos usando o jornal, em particular as crônicas do

Avesso da Vida. A escola fazia, então, parte do programa O Dia Na Sala de Aula, que

enviava exemplares do matutino para escolas públicas de modo a formar novos leitores. A

professora aproveitava a cortesia para dramatizar situações descritas nas crônicas do Avesso

da Vida.

“Por ser uma sessão que trata de assuntos do cotidiano as crianças se identificam com algumas histórias e, por isso, gostam de trabalhar com elas", explica a professora. O trabalho que os alunos de Marise fazem em cima da Avesso da Vida é uma dramatização. "Nós conversamos muito para sobre a história antes de dramatizá-la. Falamos sobre os personagens para poder fazer a composição", conta Marise. Ela diz que os próprios estudantes escolhem as crônicas que querem representar e depois discute-se a história. Segundo Marise, nesses debates os alunos têm a oportunidade de discutir os valores que fazem parte da sociedade. "Quando a gente está nessa fase da atividade, as crianças se põem na situação dos personagens e, por isso, consigo falar sobre valores, sobre certo e errado", explica. (Jornal O DIA edição de 03/10/1998, página 99)

Na reportagem, a professora revelou que acabara de virar esquete a crônica “Velório

do Chefe” do Avesso da Vida. Mas ela referia-se à crônica “Ir ou não ir”, publicada em 18

de abril de 1998 (ANEXO XII). Nela, Léo conta a história de um homem simples em

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

35

dúvida se vai ou não ao enterro do chefe que acaba de morrer. Pensa que velório de rico é

cheio de frescura.

A crônica também é o registro daquilo a que não foi dado importância, do que

escapou aos olhos da imprensa ou mesmo do historiador, dos fatos miúdos e corriqueiros,

dos sentimentos, das situações do dia a dia. É um olhar subjetivo sobre fatos selecionados,

assim como tantos outros. Como afirma NEVES, crônica e história são escritas

memorialísticas (RESENDE, 2001, p. 27). Porém, enquanto o historiador “se acostumou a

medir o tempo por séculos” (RESENDE, 2001, p. 24), afirma a pesquisadora, o cronista “se

reconhece como ‘historiador das coisas miúdas”.

A crônica é um registro então dessas “coisas miúdas”, rotineiras, captadas pelo

cronista que anda pelas ruas e, no caso de Léo, pelo subúrbio do Rio. É um texto sem

pretensões de durabilidade nem de eternizar a obra e seu autor, como pontua Antonio

Candido (CANDIDO, 1992, p. 14). E é exatamente esta despretensão, continua Candido,

que humaniza, que aproxima o leitor do que está sendo contado. A crônica, segundo o

crítico, “pega o miúdo e mostra nele sua grandeza”.

“Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em ‘ficar’ (...). Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava”. (CANDIDO, 1992, p. 14-15)

Em vida, Léo publicou um único livro, em 1976, com suas crônicas. Nele reuniu,

como dizia a amigos, suas melhores histórias. Teria vendido mais de 100 mil exemplares

em poucos dias. Brochura para ser vendida em banca, o livro em questão está esgotado.

Tratou-se de coletânea com 60 crônicas que já haviam sido publicadas em O DIA em anos

anteriores. Sua edição serviu para antecipar para o autor que sua obra teria durabilidade

maior que as edições diárias do matutino carioca, que serviram de suporte para o conjunto

de crônicas que hoje se apresenta como volumosa obra apesar de nunca ter sido esse seu

objetivo.

Caso exemplar de cotidiano tornado literatura na obra de cronista está no Avesso da

Vida “Uma lâmpada queimada”, publicado em 16 de março de 2003 (ANEXO XIII). Nele,

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

36

Alternaldo conta com a ajuda de amigos que seguram uma escada pela ele trocar uma

lâmpada. Mulher, sogra e filho começam a alertar para o risco de queda da escada e

Alternaldo se queixa do mau agouro que vem dos alertas feitos pela família e pelos próprios

amigos. “Em vez de ficarem me agourando, façam o favor de segurar a escada! Ela tá

sambando como se ainda fosse Carnaval!”, diz para em seguida, distraído, tocar num fio

desencapado, tomando um choque que também é sentido pelos amigos que seguravam a

escada. Na nada relevante troca de uma lâmpada, referências a costumes suburbanos, como

tomar cerveja num bar e a naturalização de atos nobres de aparente desimportância, como a

doação de sangue.

A despretensão é que aproxima a crônica do leitor, ensina Candido (1992). É ela

que garante o seu sucesso, que agiganta um gênero considerado menor. O que parece estar

por trás dessa diferenciação de enfoques é a função que se pensa para a crônica: ela deve

registrar, noticiar, criticar ou divertir? Não há uma fórmula nem uma receita a seguir. O

tom das crônicas, suas temáticas, a relação com o noticiário são características variáveis ao

longo dos anos e que oscilam dentro da obra de um mesmo autor como Léo Montenegro.

Se a carta de Pero Vaz de Caminha representa “a criação de um cronista no melhor

sentido literário do termo”, como afirma Sá (2005, p. 5), pode-se inferir que o gênero teve

em suas origens uma forte ligação com a notícia, o relato, o registro. Mas não é qualquer

relato: é um texto que detalha o irrelevante, uma narrativa que leva em conta a experiência

vivida. “Estabelecendo essa estratégia, Caminha estabeleceu também o princípio básico da

crônica: registrar o circunstancial” (SÁ, 2005, p. 6). No jornalismo, não foram poucos os

cronistas que assumiram a função de comentar fatos já noticiados, criticar ações do

governo, pontuar o contexto político vivido pela sociedade em cada década. Tanto é assim

que o gênero nem sempre é de fácil percepção, sendo frequente a dificuldade na hora de se

distinguir, por exemplo, o trabalho dos articulistas, que comentam o noticiário, e o dos

cronistas, nas páginas dos jornais.

A forma dura do comentário político, da crítica panfletária, entretanto, não se tornou

dominante. Muitos cronistas adotaram a escrita leve, até com uma pitada de humor, para

comentar e criticar o momento político. Outros assumiram o tom de conversa com o leitor,

que deu à crônica a leveza e a intimidade que a caracterizam como gênero na atualidade.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

37

Do comentário sério à conversa fiada, a crônica assumiu um “ar despreocupado”,

como afirma o crítico literário Antonio Candido (CANDIDO, 1992, p, 17-18), passando

uma ideia falsa de superficialidade. Como pontua o crítico, a crônica “foi largando cada vez

mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar

com a de divertir”, o que não significa que tenha se afastado da crítica social.

“É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que consequentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas. “ (CANDIDO, 1992, p. 19)

Os textos de Léo Montenegro têm ingredientes que garantem a diversão, que

ajudam a amadurecer e debater assuntos graves fazendo rir. É o que constatou o anônimo

repórter que entrevistou em 1998 a professora e os alunos da Escola Municipal Frederico

Eyer, na Cidade de Deus. Após conversar com a docente e com os estudantes sobre a

dramatização da crônica “Ir ou não ir”, do Avesso da Vida, ele reportou:

“Nós adoramos fazer essa dramatização porque colocamos toda a nossa fantasia sobre como achamos que é um velório de gente rica. Ficou engraçado por isso", lembra Tainá Falcão, 11 anos, aluna da 4ª série, que diz estar se preparando, por meio dessa atividade, para ser atriz, seu sonho de futuro. Através dessa crônica Marisa diz que falou sobre diferenças sociais com seus alunos. "Trabalhando com essa crônica ficou mais fácil, por exemplo, discutir com as crianças as diferenças de classes”, observa a professora. (Jornal O DIA edição de 03/10/1998, página 99)

Quando escrevia os textos para o matutino, o autor não tinha ainda uma obra, a ser

vista toda reunida, não era essa sua preocupação. O cronista tem por meta apresentar ao

leitor o olhar irônico ou crítico acerca das coisas miúdas do dia a dia e, particularmente,

daquele dia, para seu público-alvo, o que compra o jornal para o qual escreve. E é esta

despretensão, seguindo Candido, que fisga o leitor, que transforma a literatura em “algo

íntimo com relação à vida de cada um”. Na obra de Léo, este “cada um” é o leitor que mora

no subúrbio do Rio, retratado com tamanho cuidado na tradição literária nacional apenas na

obra de Lima Barreto.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

38

2.4 - Conversa com Lima Barreto no subúrbio do Rio

O termo subúrbio deriva do inglês suburb, cuja tradução literal é sub-cidade. Diz

respeito a áreas que ficam ao redor do aglomerado urbano central. Diferentemente dos

países como Estados Unidos e Canadá, onde os subúrbios são ocupados pela classe média

que mora em casas luxuosas e não apartamentos, no Brasil, como nos demais países da

América Latina, os subúrbios são marcados pelas vilas operárias, pela falta de infra-

estrutura e pelas casas simples e população de menor renda.

Nas metrópoles brasileiras, descreve o professor Flávio Villaça (2001), o subúrbio

decorre de um processo de segregação. Com as classes mais ricas ocupando as melhores

áreas de cidade. No caso do Rio de Janeiro, a orla foi a escolhida pela elite. Como a área

central urbana foi destinada a edifícios comerciais e do governo, teatros, museus e

biblioteca, os grupos de menor renda foram sendo empurrados para áreas de baixo interesse

imobiliário, especificamente os bairros suburbanos e as favelas.

Dado relevante na formação suburbana carioca se dá na reforma empreendida pelo

prefeito Pereira Passos e seus sucessores nos primeiros anos do século XX no centro urbano

do Rio de Janeiro. Conhecida como “Bota-abaixo”, a reforma foi inspirada na feita 50 anos

antes em Paris pelo prefeito barão de Haussmann e alargou ruas, afrancesou novas

imponentes construções, demoliu sobrados e expulsou os pobres dos cortiços centrais para

o subúrbio. Tal movimentação será ingrediente para cronistas do período, como pontua a

professora Beatriz Resende (2001).

(...) Ao cronista de plantão cabe a tutela da coisa pública, a guarda do espaço da cidade. O tom pode ser mais ou menos nostálgico, a defesa mais ou menos apaixonada, nela interferindo ou não o humor, conforme as circunstâncias da demolição, da interferência do poder (público) no cotidiano do cronista, do passante, do habitante. Como a interferência do poder público na própria anatomia do Rio de Janeiro, em sucessivas cirurgias (grifo da autora) é uma constante, tal assunto nunca faltou aos nossos escritores. A derrubada do casario colonial, a construção da Avenida Central, a demolição do morro do Castelo, o violento corte que o centro da cidade sofreu para que a monumental Avenida Presidente Vargas surgisse, à custa da Praça Onze, do Paço Municipal, e de igrejas barrocas, o aterramento da praia do Flamengo, a construção da ciclovia, tudo isso pode ser rememorado, analisando, investigando, a partir dos textos dos cronistas do Rio. (RESENDE, 2001, p. 52-53)

Especificamente preocupado com a movimentação social da reforma urbana está

Lima Barreto e seu emblemático olhar sobre o subúrbio carioca, exposto em crônicas e

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

39

também em romance, como o póstumo Clara dos Anjos. Especificamente a demolição do

morro do Castelo serviu de porta de entrada para Lima Barreto nos jornais de maior

circulação. Foi em 1905, com uma série de reportagens sobre a demolição, que Lima

Barreto fez sua estréia no Correio da Manhã.

Crítico do arbítrio com que se deram as mudanças estruturais no Rio de Janeiro no

Século XX, Lima Barreto pioneiramente pontua, em crônica de 1921, a divisão em duas

partes que se dava na cidade, uma “será a européia e a outra, a indígena”. Barreto vai além,

e se debruça sobre temas densos, como segregação racial na ocupação urbana dos

subúrbios: tratando da divisão da cidade em uma parte rica e outra pobre tocada pela

administração pública.

Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a européia e a outra, a indígena. [...] dia pela manhã, quando vou dar meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana tropeço nos caldeirões da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada há pelo menos cinquenta anos [...] Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana. Por que será que ela não reserva um pouquinho dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! (BARRETO, 1961, p. 116)

Assim, Léo segue uma tradição ao ambientar suas crônicas no subúrbio. Uma

tradição que tem Lima Barreto como expoente, com seu olhar peculiar, sua linguagem

coloquial e seu aguçado censo crítico de cunho social.

Quando há mais de vinte anos fui morar nos subúrbios, o trem me irritava. A presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta. (Barreto, 1961, p. 245)

A professora Beatriz Resende defende, em sua obra sobre as crônicas de Lima

Barreto (1993), que a análise cuidadosa da tradição iniciada pelo autor contemporâneo à

formação do subúrbio carioca revela que as crônicas referentes à vida nessa parte do Rio de

Janeiro são bem próximas do ficcional. Ela pontua que nesses textos os habitantes

anônimos do subúrbio são tratados como personagens.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

40

Léo, portanto, segue a mesma tradição de tornar os habitantes anônimos do subúrbio

personagens. Peculiar em sua obra, porém, sendo o que o distancia de Lima Barreto, é o

olhar lançado sobre este subúrbio, a perspectiva do flaneur que perambula pela cidade em

busca de diversão, o prisma da malandragem carioca a qual ele parece se incluir.

Esse é o caso da crônica publicada no Avesso da Vida em 2 de março de 2000 sob o

título “A carta” (ANEXO XIV). Nela, o personagem Enosprézio revela, ao avistar um

carteiro, ter parentes em, pelo menos, cinco bairros diferentes do subúrbio carioca (Pavuna,

Jacaré, Cascadura, Madureira e Méier). Revela uma situação cotidiana, como a curiosidade

despertada entre vizinhos suburbanos, em geral moradores em casas simples — muitas

compondo vilas, como já dito aqui — quando um carteiro aparece para entregar cartas ou

contas. Os demais personagens são anônimos, designados pela característica física (careca e

gordinho) e definidos apenas pelo grande número (multidão). Por fim, a carta faz rir ao

expor que seu texto, lido em voz alta pelo personagem central de nome insólito, acusava a

esposa dele de cometer traição. Enosprézio acaba tendo que ouvir a multidão gritar em

coro: “Corno! Corno!”.

Léo Montenegro não faz de suas crônicas um alto-falante para reclamar nem

reivindicar nada, de forma panfletária. Ele ambienta seus personagens suburbanos nos

novos cenários que lhes são impostos, como o trem de passageiros, sem fazer deles a razão

central da história contada. Mostra, nas entrelinhas, como aquilo reflete na vida das

pessoas, mas trata a mudança como inevitável, assim como ela se apresenta para a maioria

dos moradores do subúrbio, seus leitores.

Desta forma, o autor cria uma empatia com seu público, partindo do que já existe,

sem se colocar em local privilegiado, de porta-voz, na pretensão de que tem uma missão de

guarda da cidade. Não abdica, porém, de criticar costumes, expor situações inusitadas

estranhamente naturalizadas pelos moradores do subúrbio e retratar tipos humanos

tipicamente cariocas que, caso contrário, se manteriam no ostracismo ou seriam

inevitavelmente esquecidos sem mesmo terem sido conhecidos fora de seus ambientes

suburbanos.

Cabe aqui citar a crônica “Maus Momentos”, publicada em 26 de maio de 1994

(ANEXO XV). Ambientada no interior de um vagão de trem suburbano, retrata a má

conservação do transporte: sujo, com baratas, e com defeito, tendo possibilidade de abrir a

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

41

porta em movimento. Apresenta personagem com linguajar inculto (“...essa barata é

daquelas que avoam”) sem ridicularizá-lo, mas pontuando pelo riso se tratar da fala

incorreta. Naturaliza o fato de haver alguém armado entre os passageiros do trem (“ ... Um

nordestino, largando o ferro: - Faça isso e será um homem morto, porque se a barata sair

das suas costas e voar pra cima de mim não respondo pelo que vou fazer!”)

A história consiste em um dos passageiros do vagão, o personagem central

Florepildes, ter uma barata do tipo voadora nas costas. O dilema reside em um personagem

identificado apenas como Negão matar a barata dando um tapa nas costas de Florepildes ou

este se sacudir forçado a barata a sair de suas costas. Como é isso que o personagem central

faz, ele toma uma surra e a barata se esconde embaixo do banco do vagão, denotando a má

conservação da composição.

Além da naturalização de situações que causariam estranhamento fora do ambiente

suburbano, Léo Montenegro privilegia em suas crônicas também o registro de situações

cotidianas aparentemente banais dos moradores do subúrbio do Rio. Muitas ambientadas

sem fazer descrições (o espaço da crônica na página do jornal não permite), essas crônicas

levam o leitor para dentro das casas e vidas simples dos moradores locais. Esse é o caso da

crônica “O boa-vida”, publicada em 15 de novembro de 2000 (ANEXO XVI). Nela, o

personagem central, Juresvaldo, chega em casa após a aposentadoria. Comemora não ter

mais de pegar o trem suburbano da Central do Brasil e de poder, enfim, descansar do que

deve ter sido uma vida de árduo trabalho. Diante da reação da mulher e do filho, que

planejam tarefas para ele executar, passa a tentar a anulação da aposentadoria.

Os hábitos humildes de Juresvaldo e seus familiares — ele pensa em se divertir

jogando cartas com amigos numa praça próxima e o filho sonha em ser levado por ele mais

vezes ao Maracanã e ao circo — não questionam o cotidiano suburbano. Moram em casa (a

mulher diz que Jurevaldo terá de varrer o quintal), mas não é problema o entorno dessa

casa.

A violência na região, apesar de também naturalizada, não escapa da pena de Léo

Montenegro, que, pelo humor, a ridiculariza. Esse estilo pode ser visto na crônica “A

pendência”, publicada em 7 de fevereiro de 1998 (ANEXO XVII). Naquele ano como em

quase toda a década de 90, assaltos a ônibus estavam amedrontando cariocas de todo o Rio,

inclusive do subúrbio. A crônica retrata um desses assaltos, mas o insere numa confusão

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

42

tipicamente suburbana. Como o deslocamento de ônibus pelos bairros do imenso subúrbio

carioca é demorado, é comum um passageiro se incomodar com outro sentado a seu lado,

que esteja muito perto. Não raro um passageiro reclama com outro o fato de ele estar

encostado apesar de haver espaço no banco do ônibus. É numa dessas confusões que o

assalto acontece e nenhum passageiro dá atenção aos bandidos enquanto a bate-boca (com

insinuações sobre sexualidade) não termina. Como habitual nos textos de Léo Montenegro,

tudo acaba numa imensa briga, que fere até mesmo os assaltantes armados. Todos acabam

em um hospital.

Ao ironicamente pontuar mazelas suburbanas contemporâneas, mesmo que de

forma humorística, Léo Montenegro dá sinais de continuidade literária com as crônicas

sobre o subúrbio do início do Século XX. Continuidade que pode ser identificada até

mesmo com a produção romancista de Lima Barreto, um expoente desses cronistas

históricos como já dito aqui. Em Clara do Anjos — romance editado pela primeira vez em

1948, mas cuja redação data entre 1904 e 1922 — o abandono do subúrbio é apresentado

não pela falta de policiamento ou pela violência (problemas contemporâneos do subúrbio e

cujo agravamento se deu na década de 1990), mas, sim, pela falta de infraestrutura, ainda

presente, mas não nas cores do início do Século XX. Esse abandono pode ser conferido nas

descrições feitas no romance (que tem espaço para tanto), como a em que Lima Barreto

constrói a rua em que morava a família dos Anjos:

A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigatório das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros , autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade. (BARRETO, s/d. p. 17)

Ambientado no subúrbio do Rio de Janeiro, o romance conta a história da mulata

Clara dos Anjos, que se apaixona e é enganada pelo malandro branco Cassi Jones. Morador

na mesma região que a personagem-título, Cassi tem vida financeira um pouco mais

tranquila que a dela. A proteção da mãe garante a ele vida de sedutor: com tão pouca idade

— menos de 30 anos — “contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior

número de senhoras casadas”. (BARRETO, s/d. p. 22). Clara dos Anjos entra no rol de suas

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

43

vítimas. Grávida, a personagem revela sua condição à família quando o malandro já está

bem longe. Expondo divisão de classes, Lima Barreto evidencia no romance latente

preconceito racial. Quando a mãe de Clara dos Anjos entra em contato com a mãe de Cassi,

vê a si própria e a filha tratadas com desdém racial, chamadas de “gente dessa laia” e de

aproveitadoras.

— Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas ... É sempre a mesma cantiga ... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas ... (Barreto, Lima. Clara dos Anjos, s/d. p. 104)

Abandonada e grávida do malandro, Clara dos Anjos sentencia para a mãe na última

página do romance: “— Não somos nada nesta vida” (p. 105).

A retratação de malandros e suas vítimas é outro ponto de continuidade encontrado

entre as crônicas de Léo Montenegro e obras consagradas da tradição literária brasileira. No

rol estão o Leonardo, do Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de

Almeida; o Cassi de Clara dos Anjos, de Lima Barreto e Macunaíma, do romance

homônimo de Mário de Andrade.

Diálogo direto entre Léo Montenegro e essa tradição que remonta o Romantismo

brasileiro está na crônica do Avesso da Vida publicada em 1º de dezembro de 1968

(ANEXO XVIII). Com o título “A Fofoca” ela também relata um caso de sedução como o

presente em Clara dos Anjos. Na crônica, o malandro Alarico tenta despistar da mulher e da

família um caso de adultério com a “guria” Esmeraldina. Sendo do mesmo nível social da

vítima — ambos moram em um morro não localizado com precisão —, acata conselhos de

amigos e tenta se livrar do que estava chamando de “fofoca”, promovendo uma confusão na

casa da vítima. Mostra indignação, mas, diferentemente do destino de Cassi, é

desmascarado por Esmeraldina. Leva uma surra e termina internado em hospital público do

bairro de Marechal Hermes.

Em “A Fofoca”, crônica publicada numa edição de domingo que teria validade,

naquele ano, também para a segunda-feira, dia 2, nota-se a retratação de linguajar pouco

usual para jornais da época, como sinais de oralidade popular. É o caso de “mermo”, do

“fofoqueiras de carteira assinada” e do “fim da picada”, sinais de continuidade com o

malandro de Mário de Andrade e sua empreitada modernista. Texto localizado logo abaixo

da seção de palavras cruzadas, no pé da página — sobre duas cartas, sendo uma pedindo a

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

44

volta do teatro de revistas, com “rebolado” para “a gente ver” — a crônica de Léo

Montenegro de 40 anos atrás conversa pelo seu meio de divulgação com romances

publicados nos jornais do século XIX em forma de folhetins, berços das crônicas ficcionais,

tradição na qual o Avesso da Vida de Léo Montenegro se insere. Entre tais folhetins, um

conjunto de fragmentos em particular, o que resultou no romance Memórias de um sargento

de milícias, se comunica com a tradição literária brasileira de retratar malandros e anti-

heróis, também presente na obra de Léo Montenegro. Sobre esse diálogo em particular cabe

um detalhamento.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

45

3 – CRÔNICA E FOLHETIM – GÊNEROS QUE DIALOGAM NA TR ADIÇÃO LITERÁRIA

Publicadas, como já dito, entre fios, na maioria das vezes nos rodapé e laterais dos

jornais, desde os primórdios as crônicas são associadas aos folhetins.

‘O folhetim é frutinha de nosso tempo’, disse Machado de Assis numa de suas deliciosas crônicas. E volta ao assunto na crônica seguinte. ‘O folhetinista é originário da Franca [...] De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. ‘E Machado tenta “definir a nova entidade literária’, procura esmiuçar ‘a organização do novo animal’. Mas dessa nova entidade só vai circunscrever a variedade que se aproxima do que hoje chamaríamos de crônica. (MEYER, 2005, p.57)

Cabe aqui, ainda baseado na pesquisadora M. Meyer, definir folhetim como o

romance industrial, publicado em capítulos nos jornais, para ser acompanhado dia a dia

pelos leitores. Gênero nascido na França no século XIX, encontraria eco no Brasil do

mesmo período, tendo em vista a centralidade francesa naquele tempo. Aqui teria, como já

dito, José de Alencar e outros autores românticos como seguidores. Nesse rol, está inserido

Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias.

Jovem médico, Manuel Antônio de Almeida passou a escrever e fazer traduções

para jornal como forma de sustentar irmãos menores. Escreveu “Memórias” aos 21 anos de

idade (morreu aos 30) sob o pseudônimo “Um Brasileiro”. (SODRÉ, 1977, p. 218). A obra

despretensiosa e divertida foi publicada no formato de folhetim. Escrita possivelmente na

república estudantil onde o autor morava dividindo a despesa com outros estudantes, a obra

apresenta problemas, sendo exemplar o caso da personagem Chiquinha, identificada ora

como sobrinha (ALMEIDA, 1978, p 47) e ora como filha da comadre (idem p.62).

Narrador onisciente orientando a leitura, leitor incluso e linguagem quase

jornalística, marcadamente coloquial e fora aos padrões românticos vigentes no Segundo

Reinado (1840 a 1889), são outras características do romance, e que encontrariam

continuidade nas crônicas e nos romances de Lima Barreto, nos autores modernos e nas

crônicas do Avesso da Vida. Nada, porém, que comprometa sua importância para formação

da tradição literária nacional.

“...Memórias são um livro agudo como percepção das relações humanas tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida que o autor teve

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

46

maestria suficiente para organizar um certo número de personagens segundo intuições adequadas da realidade social” (CANDIDO, 1970, p. 74)

Exatamente por destoar na linguagem e no estilo vigentes à época de sua publicação

(no formato de folhetim no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853),

Memórias ... reúne ampla fortuna crítica, uma vez que a obra constituiu problema para a

visão tradicional da crítica preocupada em rotular e catalogar os textos a partir das

concepções próprias da periodização por estilos. A crítica pioneira de José Veríssimo

(1894) viu a obra como realismo antecipado. Posteriormente, Mário de Andrade (1941)

apontaria o romance como picaresco, ponto de vista reforçado por Josué Montello. Ambos

identificaram as matrizes do romance em obras como La vida de Lazarillo de Tormes

(1554), tratando-se, portanto, de “continuador atrasado” (CANDIDO, 1970, p. 67 ).

Seria Candido, já na sua obra referencial “Formação da Literatura Brasileira”, o

primeiro a apontar para além das duas visões, classificando o texto como “livro de

costumes urbanos, romance picaresco”, mas antecipando, porém, o que iria desenvolver no

ensaio do ano de 1970 ao lembrar que a narrativa evidencia equivalência do bem e do mal.

“Não há que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nele haver um pícaro mais adjetival que substantival, mormente se a este livro faltam as marcas peculiares do gênero picaresco; nem histórico seria ele, ainda que certa dose de veracidade haja servido à criação de tipos ou à evocação de época; menos ainda realista, quando a leitura mais atenta nos torna flagrante o predomínio do imaginoso e do improvisado sobre a retratação ou a reconstituição histórica”. (CANDIDO, 1970, p. 67).

3.1 – Diálogo possível entre Manuel Antônio de Almeida e Léo Montenegro

Ao retirar de Leonardo, protagonista de Memórias, o adjetivo de pícaro

acrescentado pela fortuna crítica da obra e classificá-lo como o primeiro grande malandro

da “novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais

do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil”

(CANDIDO, 1970, p. 70), Antonio Candido traçaria um fio condutor do personagem de

Manuel Antônio de Almeida com o personagem símbolo do modernismo nacional:

Macunaíma, de Mario de Andrade. Fio que com facilidade pode ser estendido a alguns dos

personagens de Léo Montenegro, que, mesmo no espaço limitado da crônica em jornal

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

47

contemporâneo, buscou ao retratar no subúrbio do Rio a comicidade do malandro nacional,

inserido na tradição literária pelo jovem médico do Segundo Reinado.

Esse é o caso, por exemplo, da crônica de Léo Montenegro intitulada “O enredo

malandro”, publicada no dia 2 de janeiro de 1998. Nela, o personagem Arafobildo inventa

um fato histórico para o dono de um bar ser enredo do bloco carnavalesco do bairro. Tudo

com o objetivo de se alimentar e beber de graça. Consegue seu objetivo, mas fica

impossibilitado de voltar ao bar (ANEXO XIX). Em Arofobildo, a mesma suspensão de

juízo moral presente no teatro de Martins Pena e nas caricaturas de Araújo Porto Alegre,

contemporâneos de Manuel Antônio de Almeida e que possivelmente o influenciaram no

Memórias ...

Suspensão de juízo moral que chegou a ser tratada como tema central da crônica do

Avesso da Vida de 14 de agosto de 2001 (ANEXO XX). Com o título “O vigarista”,

idêntico ao dado à crônica de estréia de 1965, a narrativa, publicada fora de período

eleitoral, conta a história de Pilantrézio, malandro que se faz passar por candidato para

iludir pessoas humildes e almoçar de graça. Por fim comemora a esperteza sem nenhum

traço de culpa moral: “Esse conto do candidato é genial! Até a eleição, não morro de

fome!” Detalhe, a eleição seria apenas no ano seguinte.

No fato de Memórias ser apresentado como documentário restrito ao ignorar as

camadas dirigentes, de um lado, as camadas básicas, de outro (CANDIDO, 1970, p. 72), é

possível apontar outra aproximação É o caso de crônicas de Léo como a intitulada “O golpe

furado”, publicada em 29 de novembro de 1996 (ANEXO XXI). Nela o malandro

Escrovelino tenta obter dinheiro de seus iguais inventando que uma das mulheres do grupo,

com quem bebera em um bar na véspera, tinha como sonho conhecer a Disneylandia, lugar

que ela desconhecia totalmente e nunca desejara visitar. Ela, porém, inicialmente não se

lembra de ter revelado tal desejo e o malandro prossegue tentando arrancar dinheiro dos

amigos para financiar a viagem. Por fim termina desmascarado pelo grupo, formado por

iguais, trabalhadores da mesma classe social e moradores do mesmo bairro provavelmente

suburbano. Nenhum tem autoridade sobre o outro ou é subalterno de outro, revelando-se

documentário também restrito daquele universo social.

Nessa mesma crônica, o desfecho, com golpe do malandro Escrovenildo sendo

desbaratado antes de se realizar e tudo terminando numa briga, evidencia a dialética da

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

48

ordem e da desordem, apontada no ensaio de 1970 como outro traço inaugural na obra de

Manuel Antônio de Almeida.

“Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem (em Memórias) do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas”. (CANDIDO, 1970, 76).

No golpe furado, o malandro tentando ludibriar amigos em cima da inocência de

uma das mulheres do grupo e sendo desmascarado, o equilíbrio da aparente ordem sendo

destruído pela desordem provocada pela revelação do golpe iminente. Por fim, o malandro

é internado em uma enfermaria e retoma a ordem ao tentar outro golpe, desta vez contra os

enfermeiros que o estavam atendendo.

Em outra aproximação possível entre o romance do Segundo Reinado e as crônicas

contemporâneas, a retratação de um mundo sem culpa, como já pode ser conferido na

crônica do falso candidato Pilantrézio, publicada em 14 de agosto de 2001. Em outra

crônica, esta de 24 de março de 2002, um marido esconde broche da mulher no quintal, se

faz de desinteressado quando ela dá falta e até ironiza a bijuteria para no fim, sem nenhum

remorso, trocar a descoberta da “jóia” perdida por noite de sexo com a esposa (ANEXO

XXII). Ora como aponta Candido (1970, p. 79), é em Memórias ... que, diferentemente de

quase todos os romances brasileiros do século XIX, se retrata pela “primeira vez um

universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade”.

No romance os personagens transitam sem repressão, a não ser a que vem do

exterior por meio do Vidigal, figura ficcional que Manuel Antônio de Almeida teria

retratado a partir de um major que de fato teria existido e ganhado fama pelo rigor. É o

elemento guardião da ordem que, ao se apresentar de casaca militar e cuecas em um dos

trechos do romance, personifica a tênue linha da ordem e da desordem apontada por

Candido no ensaio de 1970.

Em Léo Montenegro, é impressionante como se pode identificar, em suas crônicas

dos primeiros anos do século XXI, a mesma linha tênue. Em um desses textos, como o que

levou o título “O careca e os otários”, crônica publicada em 12 de outubro de 2001

(ANEXO XXIII), todos os personagens estavam em um bar quando a determinação

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

49

inusitada para o comércio fechar é atribuída a um traficante. O equilíbrio inicial é

interrompido pelo medo, alimentado pela narrativa de situações fantasiosas protagonizadas

pelos bandidos. O grupo tem a ideia de subornar o traficante para manter o comércio, e

principalmente o bar onde estavam, abertos. Recolhem dinheiro e o entregam para o

personagem central, Esnervaldo, convencer o bandido a mudar de ideia em troca do mimo

financeiro. Ele volta radiante e a ordem é restabelecida, com o bar podendo continuar

aberto. Só o leitor fica sabendo, pelo narrador onisciente, que não havia ameaça alguma

nem traficante na região.

Cabe usar o exemplo acima e voltar ao trabalho inicial de Candido em “Formação

da Literatura Brasileira: Momentos decisivos” (CANDIDO, 2006, p. 531 – 535), para traçar

mais linhas de continuidade literária entre Memórias ... e a obra de Léo. Ambos,

empenhados na tarefa de timbrar costumes urbanos colocam seus personagens em

constantes movimentos, atingindo breves momentos da estática felicidade, que logo se

perde em mais e mais movimentos. Quando os acontecimentos por fim se entristecem, ao

cessar o movimento — em Memórias ... , com as mortes de D. Maria e Leonardo Pataca; ou

nas crônicas de Léo Montenegro, com personagens centrais sendo presos, espancados ou

internados em hospitais — coloca-se o ponto final.

Léo dialoga com Almeida também no que diz respeito aos personagens. Tomando

emprestada a caracterização proposta pelo crítico Antonio Candido (CANDIDO, 2006, p.

533) e a estendendo a Léo, cabe pontuar que ambos autores descrevem seus personagens

numa categoria mais social do que psicológica. Os nomes são substituídos pelas posições

que eles têm no grupo: em Almeida, “compadre”, “comadre” e “duas velhas”. Em Léo,

tomando como referencial em particular a crônica acima, que pode ser revista no anexo

XXIII, “magrinha”, “careca” e “gordão”. Uma vez definidos, permanecem, assim, de modo

a escaparem do tempo sugerido nos textos, em que os acontecimentos são mais importantes

que seus participantes e até mesmo que o protagonista.

Cabe recorrer a Candido para uma aproximação a mais, esta no campo dos

propósitos. Analisando Memórias, o crítico literário aponta o ordenamento sociológico da

obra.

Manuel Antônio deseja contar de que maneira se vivia no Rio popularesco de D. João VI: as famílias mal organizadas, os vadios, as procissões, as festas, as danças, a polícia; o mecanismo dos empenhos, influências, compadrios, punições,

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

50

que determinavam um certa forma de convivência e se manifestavam por certos tipos de comportamento. Como é artista, vê, não o fenômeno, mas a sua manifestação, o fato: vê as situações em que aquelas condições se exprimem e apresenta uma coleção de cenas e acontecimentos. (CANDIDO, 2005, p. 534)

Vendo a obra de Léo Montenegro agora fechada, sem novos textos, é possível uma

ilação sobre os propósitos do cronista que se cruzam com os do jovem médico folhetinista

do Século XIX. Léo Montenegro conta a maneira como se viveu no subúrbio do Rio entre

os anos 1960 e 2000. Precário e abandonado pela administração pública, invenção de

prefeitos que afrancesaram o centro da cidade e empurraram os pobres para ele, o subúrbio

de Léo é também o das famílias mal organizadas e numerosas, dos malandros e delegados,

das igrejas e carolas, das festas e entre elas, principalmente o Carnaval; as confusas

relações de parentesco, os amigos de bar e bloco carnavalesco, os golpes e as brigas de fato,

as prisões e as internações em hospitais públicos. Vendo o subúrbio como um

caleidoscópio, congela em suas crônicas uma cena colorida que vai durar apenas o tempo

de umas linhas e poucos parágrafos de jornal. Buscando o riso no cotidiano banal, oferece o

raro que fideliza, ao propor a identificação de quem está lendo com o que está sendo

narrado por sua verossimilhança com o vivido ou conhecido.

Importante sublinhar que o fim moral (o malandro não conseguindo sua intenção)

não é regra nas crônicas de Léo, como pode ser visto em alguns dos exemplos apresentados

nesta dissertação. Neste aspecto, uma derradeira aproximação com Manuel Antônio de

Almeida. O autor de Memórias ... fez do personagem Leonardo um malandro e não um

pícaro, uma vez que nem sempre sai vitorioso nas tramas.

O mesmo fez Léo em crônicas como a publicada em 12 de junho de 1998, só para

citar um exemplo entre inúmeros. Sob o título “A Mágica” (ANEXO XXIV), a crônica

mostra o personagem central, sem nome definido, tentando aplicar um golpe em

passageiros em um vagão de um trem se passando por mágico. Chega a pegar um serrote,

mas não divide ninguém ao meio. Quer é um real de cada passageiro para fazer o valor

dobrar. Tendo sua tentativa de golpe descoberta, leva uma surra e vai parar no hospital.

3.2 - Dialética da malandragem

Ao buscar paralelos da tradição iniciada por Manuel Antônio de Almeida em

Memórias de um Sargento de Milícias na obra de Léo Montenegro o objetivo foi identificar

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

51

na narrativa aparentemente simplória do jornalista contemporâneo elementos que a elevem

ou ao menos a aproximem do romance folhetinesco do século XIX e de Macunaíma de

Mário de Andrade. Para esse fim cabe recorrer à contribuição do crítico Roberto Schwarz

ao comentar o ensaio Dialética da Malandragem.

Declaradamente discípulo de Candido, Schwarz destaca que seu mestre foi para o

campo da ideologia para ver em Memórias a “transformação de um modo de ser de classe

em modo de ser nacional” com a “particularidade, no caso, de não se tratar de generalizar a

ideologia da classe dominante, como é hábito, mas da classe oprimida” (SCHWARZ, 1979,

p 144). Esse parece ser o fio condutor predominante no presente recorte da obra de Léo

Montenegro, em que a ideologia de seus leitores, moradores do subúrbio do Rio, leva o

modo de ser desta classe social periférica para o centro da narrativa.

A peculiar dialética da ordem e da desordem, presente nas crônicas mesmo que de

forma não intencional por parte do jornalista, soa mais direta e às vezes grosseira. Porém,

não restam dúvidas que a mesma dialética presente na obra do Segundo Reinado se

encontra nos textos do século XXI analisados.

Ao inserir Léo Montenegro na tradição da dialética da malandragem, vendo em sua

obra um registro temporão do estilo inaugurado por autor do Segundo Reinado, o presente

trabalho busca, porém, mais que o mero reconhecimento do cronista carioca além do grupo

de leitores do jornal O DIA. A intenção foi inserir autor e obra na tradição literária

nacional. Não que essa porta seja a única de entrada do cronista nesta tradição. Sua obra vai

além da temática.

É possível vê-lo ainda na tradição dos chamados cronistas de Momo, jornalistas que

no fim do século XIX e início do século XX tinham como tema central o Carnaval e seus

personagens para suas crônicas diárias na imprensa do Rio de Janeiro. Tais cronistas

tiveram papel relevante na formação da ideia que se tem hoje do chamado Carnaval

Brasileiro. Sobre mais essa e derradeira aproximação a presente dissertação propõe uma

reflexão: qual aspecto da ideia de Carnaval que o cronista de Momo temporão Léo

Montenegro dará publicidade e perpetuará em seus textos?

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

52

4 - A CRÔNICA DE CARNAVAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTID ADE BRASILEIRA

A atuação de Léo Montenegro como cronista é marcada por sua intensa produção.

São, pelo menos, 11.700 textos como dito no início do trabalho. Neles o Carnaval é tema

recorrente. Também como já dito aqui, nas crônicas de Léo que tratam do Carnaval,

aspecto comum é que seus personagens são integrantes de blocos Carnavalescos, nunca das

festejadas e pomposas escolas de samba cariocas do Grupo Especial do Carnaval do Rio,

identificadas como elemento central da festa carioca desde os anos 70. Seus blocos não são

os grandes e bem organizados, que promovem ensaios regulares e desfilam nos dias de

Carnaval no Centro do Rio de Janeiro e na Zona Sul.

Nas crônicas estão os blocos de subúrbio ou “da comunidade”, um recorte que soa

proposital e que serve, na grande maioria das vezes, de disfarce ideal para levar para os

leitores do jornal informações sobre a realização do Carnaval nos bairros periféricos da

cidade. Meio peculiar de levar para público ampliado a visão dessa região da cidade a

respeito dos elementos centrais da festa popular, sobretudo a organização, a disputa e o

modo de desfile das escolas da elite carioca, as grandes agremiações que se apresentam

domingo e segunda-feira de Carnaval no Sambódromo do Centro da Cidade.

Como parte dessas grandes escolas de samba é do próprio subúrbio — Portela,

Imperatriz Leopoldinense, Mocidade Independente de Padre Miguel e Caprichosos de

Pilares ou da Baixada Fluminense (cidades ligadas ao Rio por trens) — Beija Flor e Grande

Rio – natural que a crítica na forma de humor do principal desfile tivesse grande

repercussão no próprio subúrbio. Cabe destacar que esse objetivo era alcançado sem a

necessidade de os nomes das grandes escolas de samba serem citados nas crônicas.

Nas poucas vezes em que aparecem nas crônicas, as grandes escolas são só citações

periféricas para narrar cenas do cotidiano do subúrbio. Ora surgem com parâmetro para os

blocos, ora para ajudar a retratar costumes suburbanos, como a vontade de brincar os quatro

dias de folia sem parar e sem se preocupar com regras, com família ou patrão. Esse é o caso

da crônica “Um pouco atrasado”, publicada em 26 de fevereiro de 1998, quinta-feira da

semana de Carnaval daquele ano (ANEXO XXV). Nela, o personagem central Braustrézio

chega em casa também na quinta-feira depois do Carnaval dizendo que havia saído de casa

para assistir ao desfile das escolas de samba do Grupo Especial. Chega citando os nomes

das escolas que desfilaram naquele ano, mas não na ordem de pontuação — Mangueira,

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

53

Portela, Mocidade, Viradouro, Salgueiro, Beija-flor, Imperatriz e Vila Isabel — mas sua

desculpa esfarrapada não é aceita pela mulher, Bregonelda Regina, e por quem

acompanhou seu sofrimento com o sumiço do marido. Braustrézio leva uma surra e acaba

internado em um hospital, onde a “família e a comunidade sabem onde ele está”.

Na análise de sua trajetória é possível detectar os primeiros elos de ligação entre seu

trabalho e o dos cronistas de Momo. Afinal como seus antecessores, Léo também

frequentava rodas de samba, tendo franca admiração pela escola de samba Portela, do Rio.

Também como alguns dos cronistas pioneiros de Carnaval, chegou a contribuir com um

verso seu para um samba, como mencionado no início desta dissertação.

Mas quem são esses cronistas de Momo, grupo no qual a presente dissertação

pretende inserir o nome de Léo Montenegro como integrante temporão?

Cronistas de Momo é como o professor Eduardo Granja Coutinho (2006), da Escola

de Comunicação da UFRJ, define o grupo de jornalistas que primeiro escreveram sobre

Carnaval do Brasil na imprensa nacional, sobretudo do Rio de Janeiro. Ambíguos, falavam

em jornais destinados à elite letrada sobre um universo iletrado que costumavam frequentar

como participantes e não apenas como observadores.

Os autores das chamadas crônicas carnavalescas atuaram, nas palavras de Coutinho,

como mediadores (COUTINHO, 2006, p.25). Conciliadores dos interesses disciplinadores

da festa popular de Momo, então brutal, com, pode-se assim dizer, os interesses dos

promotores informais e participantes dessa própria festa. De um lado a elite nacional da

Primeira República, não muito diferente da elite do Segundo Reinado, representada pela

autoridade governamental e pelas empresas jornalísticas. Do outro os foliões (escravos

forros, brancos pobres de origem humilde, mães de santo egressas da Bahia, jovens

compositores populares de ritmos dançantes e demais amantes do Carnaval), representados

pelos cronistas, eles próprios foliões explícitos.

Tal mediação ocorre num momento em que o Estado tentava abolir das reformadas

ruas do Rio de Janeiro mais de uma manifestação carnavalesca popular, negra e muitas

vezes agressiva. No lugar, tentava-se impor padrões estrangeiros, sobretudo europeus.

Dessa mediação decorre a incorporação de elementos dessas manifestações populares à

cultura nacional em formação, moldando a ideia de Carnaval brasileiro que se tem hoje.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

54

Importante ressaltar que os cronistas de Momo cumprem a tarefa de mediação sem

assumirem o papel de engajamento ideológico com o Carnaval popular e sem agirem como

colaboradores com a domesticação dessa festa. Mantendo explícita ambigüidade, ora são

vistos como instrumento da domesticação, ora como divulgadores e aglutinadores das

culturas populares que os jornais para os quais trabalhavam tentavam abolir do cenário

nacional.

Cabe recorrer à professora Margarida de Souza Neves (in RESENDE, 2001, p.23)

que, falando da importância do gênero, destaca as crônicas das décadas de 1920 e 1930,

período áureo dos cronistas de Momo, como fundamentais na busca de uma identidade

nacional num período em que se originavam todas as formas de expressão cultural

brasileira, entre elas o Carnaval brasileiro como concebemos hoje.

A respeito desse cronismo diário, Eduardo Granja Coutinho (COUTINHO, 2006,

p.44) destaca a existência de textos sérios (meramente informativos, opinativos ou

referenciais) e outros literários, no que chama de “poética carnavalesca”. Nos sérios, a

predominância do discurso disciplinador, que soava bem aos ouvidos da elite.

Mesclando informação e opinião, havia textos sérios condenando determinadas práticas populares, invocando medidas policiais, propugnando por uma festa disciplinada e “civilizada” (grifo do autor), tudo isso numa linguagem oficial, nada carnavalesca. Sob essa forma manifestava-se a faceta repressiva das colunas de Momo. Esses textos se assemelhavam mais a editoriais do que a crônicas, no que diz respeito à forma. (COUTINHO, 2006, p.45)

Nas chamadas crônicas literárias, com poética diferenciada, explícito movimento de

aproximação e assimilação. Ao jornal em que eram veiculadas, agregavam novos leitores,

numa imprensa que fazia movimento de massificação. Aos leitores tradicionais da mídia

impressa do início do Século XX, maioria da elite ou simpática a ela, davam conta de um

universo desconhecido em tom simpático, divertido.

Mas a graça da crônica estava naquela categoria de textos que utilizavam uma linguagem carnavalesca — o linguajar dos foliões — , com paródias, trocadilhos, jogos de palavras, gírias, chistes e expressões populares. Diferentemente das matérias opinativas ou meramente informativas, que revelavam distanciamento em relação à festa, tais textos de caráter jornalístico-jocoso, informavam ao mesmo tempo que divertiam e faziam rir, expressando o mais característico do humor carioca. (COUTINHO, 2006, p.45)

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

55

É a este segundo grupo que as crônicas do Avesso da Vida se filiam em processo de

continuidade. Elas tratam de festejos periféricos de Carnaval suburbano adotando o

vocabulário e a ambientação locais. Festejos que, nos 37 anos de cronismo diário de Léo

Montenegro, foram ofuscados na imprensa pelo Carnaval do Centro da Cidade

(sambódromo e blocos de embalo famosos) e da orla (bandas que levam nomes de bairros e

de pontos turísticos da Zona Sul da cidade) que predominava no noticiário informativo.

Momento exemplar dessa divisão pode ser encontrado na edição do jornal O DIA do

Domingo de Carnaval, 13 de fevereiro de 1994. Nessa data, o jornal trazia um caderno

especial sobre o desfile das escolas de samba do Grupo Especial na Marques de Sapucaí.

Na página 6 desse caderno, a Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense do subúrbio de

Ramos, franca favorita ao campeonato daquele ano, tinha seu desfile apresentado em texto

informativo detalhado (ANEXO XXVI). Trata do enredo da escola que seria campeã

daquele Carnaval exatamente por apresentar com mais luxo o mesmo tema que a escola

concorrente Império Serrano levaria para a Avenida, amargando o último lugar. A

reportagem vai à escala do detalhe, para apresentar aos leitores o complexo enredo que

contava a “história da participação de 50 índios brasileiros numa festa promovida em 1550

pela comunidade de Rouen, na França, para homenagear o rei Henrique II e a rainha

Catarina de Médicis”. Sem essa apresentação pela mídia certamente a escola perderia um

pouco da empolgação vista nas arquibancadas da passarela do samba no Carnaval daquele

ano.

Na mesma edição, a crônica do Avesso da Vida trazia crônica sobre um bloco não

identificado. Nela (ANEXO XXVII), Léo Montenegro conta a hilária história da

agremiação com poucos recursos e poucos componentes, com enredo que citava D. Pedro I.

Fala de um universo improvisado, em que o Carnaval é a festa pela festa, motivo para

reunir amigos. Satiriza a briga por pontos protagonizada pelas Escolas de Samba do grupo

especial (“Com mil notas zero, metade do bloco está no bar!”) e com o financiamento do

desfile por meio de benfeitores: nas Escolas de Samba, bicheiros; no bloco, o quitandeiro.

Ironiza também as fantasias luxuosas das escolas e seus componentes apolíneos,

comparando-os com fantasias de um quilo e meio e o folião magricela do bloco, cuja ala

das baianas tem uma só senhora e a bateria cabe em um bar.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

56

Brincando, a crônica de Léo Montenegro traz para o centro a discussão suburbana

sobre o luxo excessivo das escolas de samba do Grupo Especial. Ainda aproveita o espaço

para criticar a conservação das ruas do bairro periférico voltando a apresentar continuidade

com Lima Barreto. Quando o presidente do bloco autoriza que um componente fosse ao bar

buscar os integrantes da bateria da agremiação, diz: “A sua pessoa vai num pé e volta no

outro! E cuidado com a vala! Se a sua pessoa cai naquela porcaria e quebra um pé a gente

fica desfalcado!”

No Domingo de Carnaval 25 de fevereiro de 2001 outro exemplo, esse mais

categórico, sobre a divisão entre a crônica informativa e a crônica com poética carnavalesca

no período em que Léo Montenegro escreve diariamente. Também cronista de Carnaval, o

jornalista Cláudio Vieira apresenta no caderno principal do matutino O DIA o desfile das

escolas de samba do Grupo Especial daquele ano. Destaca o novo favoritismo da Imperatriz

Leopoldinense, que naquele Carnaval obteria o primeiro tricampeonato da Marques de

Sapucaí. Em texto informativo, fala do então novo ranking das agremiações e de casos de

censura à liberdade característica da festa, revelando que àquela altura, já no ano de 2001

(setenta anos após a consolidação da festa popular), o Carnaval do Rio estava totalmente

disciplinado e controlado (ANEXO XXVIII): “A Mocidade não vai mais exibir a fita com a

tragédia do ônibus 174. A Grande Rio também não mostrará cenas de PMs em pancadaria.

Para evitar as farpas da Funai, a Viradouro aboliu a ala dos índios-preguiça.”

Léo Montenegro em seu Avesso da Vida daquele Domingo de Carnaval (ANEXO

XXIX) destila toda a liberdade do cronismo de Momo. Fala do indisciplinado Carnaval dos

blocos do subúrbio. Com poética carnavalesca, usa palavrão (porrada) e sugere cena de

sexo da costureira da agremiação com o marido. Faz rir, mas toca diretamente na ferida do

Carnaval disciplinado daquele ano ao explicitar a violência urbana do Rio que fora proibida

de desfilar na Marques de Sapucaí. Na crônica, tal referência sai da boca do presidente do

bloco: “Quero todo o mundo sambando e cantando o samba dos nossos compositores que,

por coincidência, são do cerol aqui da área!”. Ou seja, fala que os compositores são

bandidos assassinos, usando gíria do subúrbio e do morro. Um personagem caracterizado

pelo tipo físico, magricela, completa: “Concordo! Afinal, eles queimaram as pestanas pra

fazer o samba, ficaram dias e noites sem dormir e ainda tiveram que ameaçar a comissão

julgadora com aqueles fuzis pro samba deles ganhar!”

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

57

Mas que movimento foi esse que 100 anos depois transformou o indisciplinado e

criticado Carnaval carioca do início de século XX numa festa bem comportada e submissa a

censuras? Sem perder o foco da dissertação, é possível buscar uma resposta nas crônicas

carnavalescas dos pioneiros cronistas de Momo. Esse olhar poderia ser estendido até

mesmo aos cronistas que contemporaneamente migraram do jornal impresso para a

Internet, como Cláudio Vieira e Bruno Fillipo, para citar dois que já escreviam crônicas de

Carnaval em O DIA ou no site do jornal na Internet (www.odia.com.br) quando o Avesso

da Vida era publicado diariamente. Mas se limitará a olhar até 2003, ano da morte de Léo

Montenegro.

Como já destacaram os pesquisadores Maria Laura Vieiros de Castro

CAVALCANTI (1999) e Eduardo Granja COUTINHO (2006), o Carnaval que os pioneiros

cronistas de Momo vão tratar é o que vai substituir pelos domesticados ranchos os

agressivos entrudos e os zé-pereiras, festejos populares então condenados pela elite.

Após a ostensiva campanha contrária na própria imprensa da segunda metade do

século XIX, o entrudo e os zé-pereiras começavam a desaparecer na sua forma agressiva.

Mas no lugar deles brotava uma outra forma negativa a ameaçar o Carnaval civilizado: os

cordões, “caótica e explosiva manifestação da patuléia vozeiruda e farrapenta”

(COUTINHO, 2006, p. 60).

Esses cordões de foliões contrastavam com os bailes dos grandes clubes e das

grandes sociedades: eram grupos mascarados (como velhos, palhaços, diabos, baianas e

índios) que brincavam o Carnaval agredindo passantes e brigando com grupos rivais.

É o Carnaval praticado por esses cordões que será condenado pelos primeiros

cronistas de Momo, que apoiarão a repressão policial e a troca dessa manifestação pelos

disciplinados ranchos, cuja existência muitas vezes vai depender de sua aparição nos

jornais em crônicas informativas.. Se até a virada do Século XIX para o XX era a visita à

casa das “tias” baianas (negras imigrantes da Bahia, mães de santo e liderança nos morros

do Rio) que legitimava o Carnaval popular, de 1907 em diante seriam as citações nas

crônicas dos jornais, as notas nas colunas de Momo, que passariam a ter valor de

legitimação da festa popular.

Os ranchos a essa altura eram chamados de pequenas sociedades numa referência às

Grandes Sociedades (grupos da elite que ao longo do Século XIX faziam um Carnaval

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

58

ordeiro, aos moldes europeus, quase sempre dentro de clubes). O que a sociedade

demonstrava esperar desses ranchos por meio das crônicas de Momo? Um Carnaval de

caráter alegre e ordeiro, feito por grupos formados por rapazes de boa família que querem

folgar em honra de Momo (COUTINHO, 2006, p.70), como o retratado na crônica de

Dominó Preto, sobre o Carnaval no subúrbio de Engenho de Dentro:

Pelas ruas centrais, quase intransitáveis, cheias de famílias que se entregavam à loucura da renhida batalha de confete, passavam diversos grupos de cordões, precedidos de atordoadores zé-pereiras. A estação da Estrada de Ferro estava apinhada de povo, que se divertia em uma lacridade comunicativa, sendo para registrar que não houvesse o menor distúrbio, a mais insignificante nota que perturbasse a harmonia festiva dos que se entregavam aos folguedos preparatórios dos grandes combates Carnavalescos. (in COUTINHO, 2006, p. 70)

Para estimular os ranchos ordeiros, os jornais por meio dos cronistas de Momo vão

promover concursos, expor estandartes das agremiações, defender autorizações

governamentais para os desfiles. Em 1904, o Jornal do Brasil expôs 62 estandartes, que só

seriam buscados à meia noite na véspera de Carnaval. Esses concursos valorizam a ordem e

o bom gosto como critérios premiáveis. A aprovação dos jornalistas era buscada pelos

organizadores desses ranchos.

O simples registro de sua ida aos diários era signo de status para a agremiação; uma nota com a composição da diretoria era um grande motivo de orgulho (por isso era “cavada” insistentemente por seus integrantes); a descrição do préstito com reprodução da marcha executada era a glória para a comunidade. (COUTINHO, 2006, p. 73)

Como pontua Coutinho, era como se a existência do grupo dependesse da aparição

dele nas páginas dos jornais. Por isso, nos ranchos os cronistas eram recebidos como

autoridades, com fartas ceias e festejadas citações. Não raro esses mesmos cronistas

procuravam redações de jornais diferentes para os quais trabalhava para obter lá citações a

respeitos dos ranchos e blocos que os tinham recebido bem.

O também professor Felipe Ferreira (2004, p. 229) pontua que a nova configuração

do Carnaval que se dava naquele período (três primeiras décadas do Século XX)

redistribuía a festa pela cidade. Ao mesmo tempo que novos espaços da periferia passavam

a ser ocupados por grupos festivos, dando vez para moradores do lugar desfilarem pelas

ruas em forma de sociedades; o espaço central, notadamente a Rua do Ouvidor, a Avenida

Central e a Praça Onze, passava a ser cobiçado por mais grupos como local privilegiado de

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

59

desfile. Natural que tais grupos cedessem a regulamentações impostas pela elite para obter

o status de desfilar no centro reconfigurado do Rio de Janeiro. Afinal, era a elite que

detinha o controle dos locais importantes e podia autorizar ou não os grupos que poderiam

desfilar lá, limitando as formas de brincadeira.

A nova configuração permitiria, desse modo, que novas formas de brincadeira carnavalescas aparecessem, como os grupo de samba que, pouco depois, seriam conhecidos como escolas de samba. Paralelamente a esse lento processo de enquadramento da folia multifacetada e inclassificável de finais do século XIX em categorias mais definidas, e portanto mais controláveis pelo poder constituído — reelaborava-se a forma de Entrudo. Esse englobaria, como sempre, todo tipo de brincadeira carnavalesca que não se enquadrasse dentro da idéia de Carnaval. (FERREIRA, 2004, p. 230).

O pesquisador pontua que essa nova ideia de Carnaval deixa de ser imposição do

que queria a elite, como defendido por ela por meio dos jornais da virada do Século XIX

para XX em textos informativos e opinativos, para ser derivada de uma negociação que,

como já dito aqui, se deu por meio das crônicas de Momo nesses mesmos jornais

controlados pela elite. Ocorreu uma conciliação de interesses da elite e das camadas

populares sem mediação, em que o poder público assumiu o papel de controlar de que

forma se brincaria nos locais onde era necessária autorização oficial para tanto e os grupos

se condicionavam a aceitar e desfilar ou recusar, e não desfilar.

Quanto mais longe do Centro mais flexíveis se tornavam as regras. Lá, nas regiões

periféricas ao centro, os festejos eram inspecionados pelos próprios participantes da festa,

numa autoregulamentação que mimetizava o que era e não era permitido nas áreas

importantes, só que com certa licenciosidade. Isso se dava sem que seus participantes

deixassem de almejar uma evolução, quase sempre inalcansável, que os levasse para a área

central dos desfiles.

Os blocos sobre os quais Léo Montenegro fala em suas crônicas do Avesso da Vida

são esses da periferia. Derivados da reorganização noticiada pelos primeiros cronistas de

Momo, custaram a ganhar espaço exclusivo nos jornais, que sempre se ocupavam mais com

os grupos organizados e destinavam espaços também periféricos para os grupos festivos

menos organizados. Léo inovou ao dar a esses grupos voz e espaço para veicularem seus

pontos de vista sobre a festa central, espécie de musa inspiradora dos foliões suburbanos

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

60

que em genuíno processo de inversão carnavalesca, não a endeusam e nem se privam de

criticá-la duramente. Léo demonstra isso por meio do humor.

A crônica “O retrato”, publicada no Avesso da Vida no dia 6 de abril de 1994

(ANEXO XXX) é um exemplo da crítica severa, mas divertida. Sobre a formalização dos

componentes das grandes escolas de samba do Rio, com ficha cadastral e até carteirinha

para ter acesso gratuito ou mais barato aos ensaios e poder desfilar, o cronista lança olhar

crítico a partir da divertida história do folião Aubregaldo, que em abril já se preparava para

tirar sua carteirinha do bloco carnavalesco. O personagem caminha pela área Central do Rio

— o Campo de Santana, a poucos passos da Passarela do Samba —, quando lembra de tirar

foto para sua carteirinha. Encontra um negão que o orienta a sorrir. Diz: Lá no meu bloco

quem não ri na foto da carteirinha, não desfila!”. A formalização é mesmo geral e está

naturalizada.

O cronista aproveita, então, no seu pequeno espaço para criticar mais um aspecto do

desfile das grandes escolas de samba, naquele período marcado cada vez mais por

componentes apolíneos em trajes mínimos, em especial a novíssima categoria foliã

conhecida por madrinha da bateria. É uma magrinha que sugere a Aubregaldo que pose nu

para o retrato da carteirinha do bloco: “- Já que é fotografia pra carteirinha de bloco, o

senhor podia posar pelado, que é pra ficar no clima.”. Claro que Aubregaldo fica injuriado.

Seu Carnaval periférico ainda mimetiza regras antigas do desfile central, as novas

tendências não chegam e nunca chegaram à região de imediato: e é ele que responde à

magrinha:”- Fique a senhora sabendo que ninguém desfila pelado no bloco da minha rua!”

Nem a madrinha da bateria, nem ela!”.

Feitas as críticas, a crônica caminha para uma costumeira briga, com Aubregaldo

levando uma surra, sendo internado no hospital Souza Aguiar, bem pertinho do

Sambódromo. Por fim, metacitação da relação histórica do Carnaval brasileiro com a

imprensa: “O retrato dele até saiu no jornal. Como vítima.”

4.1 - Os cronistas de Momo

O pesquisador Eduardo Granja Coutinho relaciona em sua pioneira pesquisa sobre a

imprensa carnavalesca nada menos que setenta e cinco cronistas de Momo (COUTINHO,

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

61

2006, p. 127 e 128). Quase a totalidade escrevia seus textos sob pseudônimos inusitados,

apelidos que surgiam no ambiente carnavalesco.

A identidade entre o cronista e o folião se revelava já em seu próprio nome, ou melhor, em seu cognome, que tanto nas redações dos jornais quanto nos folguedos de Momo era o mesmo. Esses apelidos surgiam no âmbito carnavalesco e, posteriormente, eram incorporados pelos cronistas, o que pode sugerir uma primazia do folião sobre o jornalista. (COUTINHO, 2006, p. 127 e 128)

Observando estes cognomes chistosos — K.K. Reco, K. Peta, Diabo Coxo, Calunga

e Bode Brabo, só para nomear alguns — cabe a sugestão que os nomes inusitados dos

personagens centrais das crônicas do Avesso da Vida fazem referência ao humor folião com

o qual os cronistas de Momo eram reconhecidos.

Aubregaldo, Bregonelda Regina, Braustrézio, Alternaldo e Grindélio, também só

para nomear alguns entre os milhares de personagens do Avesso da Vida, eram usados por

Léo Montenegro, como já dito anteriormente, para evitar confusões com moradores do

subúrbio que se viam e viam sua intimidade associada às hilariantes histórias narradas nas

crônicas. Passaram a ser usados no mesmo ano em que Léo assumiu o Avesso, ainda em

1965, quando na memória dos leitores ainda estavam os divertidos cognomes dos cronistas

de Momo. Natural, portanto, que Léo buscasse aí sua inspiração e a levasse como marca

por quase quatro décadas de cronismo diário.

Outra aproximação entre os cronistas de Momo e Léo Montenegro está fora das

linhas do Avesso e das crônicas da Primeira República. Os primeiros jornalistas de

Carnaval, exatamente como Léo Montenegro, frequentavam o chamado mundo do samba.

Alguns eram compositores populares, outra aproximação com o cronista contemporâneo

que, como conta sua viúva, dona Lídia Montenegro, em depoimento para esta dissertação,

participava de serestas e, como já mencionado aqui, foi o autor do verso simples e salvador

que evitou que o samba vitorioso da Escola de Samba Portela de 1970 atravessasse durante

o desfile de Carnaval daquele ano.

A par de sua atividade jornalística, os cronistas, como ficou dito, promoviam e incentivavam realizações animadoras do Carnaval. Mas suas atividades “foliônicas” iam além da promoção de eventos carnavalescos: eles próprios se divertiam nas sociedades, fundavam blocos, participação das batalhas, desfilavam, ensaiavam os ranchos. Alguns eram músicos ou letristas. O negro K.

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

62

Peta era um que compunha sambas e marchas-rancho para pequenas sociedades. (COUTINHO, 2006, p. 129)

Essa aproximação participativa com o mundo do samba Léo Montenegro levava

também para suas crônicas por intermédio de seus personagens. Esse é o caso, por

exemplo, da crônica “O Samba”, de 25 de janeiro de 1994 (Anexo XXXI). Nela, durante

um enterro, o compositor de samba enredo de um bloco, Onestonério, vê no defunto fonte

inspiradora para mais uma composição. Logo compõe os primeiros versos (“O Come

Quieto deslumbrante/vem cheio de galhardia/pra desfilar na avenida/com seu jeito

exuberante...”). Em seguida, surgem parceiros para o samba e saem os outros versos, para

irritação dos parentes do morto. Um desses familiares começa um briga com os

compositores e com outros parentes. Ele termina por dar uma boa surra Onestonério e seus

parceiros, que vão parar na enfermaria.

A composição de sambas enredo é, a propósito, outro tema recorrente dos textos de

Léo Montenegro. Na hilariante história “Escolha de samba-enredo”, publicada no dia 7 de

fevereiro de 2003, três semanas antes do Carnaval (ANEXO XXXII), o presidente do bloco

tem de ir ao bar em frente ao local de ensaio da agremiação carnavalesca para buscar os

componentes que insistiam em tomar cerveja apesar de a comissão julgadora do samba

enredo já estar aguardando a todos. Lá, dá bronca nos foliões e lembra do fiasco do

Carnaval passado, sem, no entanto, abalar seus irreverentes subordinados. O próprio

presidente, no entanto, não resiste quando o dono do bar anuncia que ficara pronto o

mocotó, prato classificado como “acepipe” pelo autor. É o próprio presidente que, diante da

iguaria, esquece da escolha do samba e até mesmo dos jurados (um deles vereador) para

pedir uma cerveja para saborear o prato.

É possível ver ainda outros traços de continuidade entre os cronistas mais

conhecidos e Léo Montenegro. Primeiro a ser reconhecido como cronista de Momo,

Francisco Guimarães, o Vagalume (1877-1947), era negro, filho de pais pobres. Foi o

idealizador do Dia dos Ranchos no Jornal do Brasil, data em que os estandartes das

agremiações seriam expostos na portaria do jornal. Como Léo Montenegro, esse primeiro

cronista também foi repórter policial e dividia seu tempo entre as crônicas de Carnaval e o

noticiário. Ao deixar o JB, Vagalume vai para o jornal A Tribuna onde escreverá, na coluna

Ecos Noturnos, reportagens sobre acontecimentos da madrugada no Rio (como o também

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

63

cronista João do Rio), já marcada pela malandragem e por fatos policiais. Em seus textos

sobre Carnaval na mesma A Tribuna, a proposta de legitimar a cultura popular, tratando de

moldá-la para ser aceita pela elite:

Começamos a madrugada de domingo para segunda-feira pelo maxixe do Moisés e do Ventura [...] Notavam-se os principais desordeiros e valentões desta cidade, que bastava para se prever um turumbamba de mil demônios no final da festa ... Não queremos dizer que sejamos contra tais bailes. Não senhores; eles representam uma necessidade, mas sendo frequentados por um pessoal ordeiro, ou que os desordeiros respeitem ao menos os donos da casa, o que justamente não acontece no maxixe da rua Espírito Santo, porque os donos não têm força moral. Acabe-se com aquilo de uma vez. (in COUTINHO, 2006, p 96 )

Com o Carnaval já consolidado como festa popular nacional, Léo Montenegro exibe

o mesmo tom crítico em suas crônicas. Altera, porém, a temática, preferindo, aos moldes de

Lima Barreto, expor os problemas do subúrbio e o destinatário da crítica, disparando

preferencialmente farpas humorísticas contra governos e administradores municipais e

contra a elite do Carnaval representada pelas grandes escolas de samba. Esse é o caso da

crônica “Os Buracos”, publicada em 15 de fevereiro de 1996, sexta-feira antes do Carnaval.

Nela (ANEXO XXXIII), o presidente de um bloco não nomeado evidencia a pouca

preocupação da gestão municipal de então com o Carnaval do subúrbio. A despeito de fazer

obras na cidade, as ruas por onde passaria a agremiação carnavalesca estavam cheias de

buracos abertos simultaneamente sem aparente planejamento viário ou momesco. Em

momento raro, o destinatário da crítica, o prefeito do Rio, é nomeado pelo seu nome de

batismo. Primeiro por atrapalhar o transporte coletivo no bairro (“... a rua onde passa o

ônibus tá assim de buracos abertos pelo Cesar Maia!”). Depois por atrapalhar o próprio

Carnaval: “— Esse ano a pessoa do bloco não sai, por causa dos buracos do Cesar Maia! E

não vai sair mesmo.”

Para restringir a citação dos cronistas à proposta da dissertação, cabe ainda destacar

o papel do até hoje tido como o último dos cronistas de Momo: João Ferreira Gomes, o Jota

Efegê (1902- 1987). O mais longevo do grupo, que começou a escrever nas primeiras

décadas do século XX, foi o único que ficou para contar histórias dos cronistas, atestando

que eles, como Jamanta (José Luiz Cordeiro), cronista do Correio da Manhã, eram tão

foliões quanto jornalistas, exatamente como Léo Montenegro.

Efegê escreveu suas crônicas de Carnaval até as décadas de 60 e 70, quando o

gênero estava totalmente diferente daquele que consagrara os cronistas de Momo seus

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

64

contemporâneos. Seu objeto, pontua Coutinho (2006, p. 124), não era o Carnaval de então,

planejado, luxuoso e televisivo, e que “ele julgava sem espírito, crítica e irreverência”.

Publicados em vários jornais, seus textos se tornaram memorialistas no mesmo momento

em que Léo Montenegro começava a inserir e a consolidar na tradição dos cronistas de

Momo o ponto de vista dos suburbanos sobre o Carnaval midiático, que Jota Efegê fazia

questão de ignorar. De quebra, falava da organização do Carnaval do subúrbio que nunca

antes havia tido o privilégio de ser tema preferencial de um cronista de Momo.

Último representante, portanto, da primeira geração de cronistas de Momo, é Jota

Efegê que vai deixar para gerações futuras histórias como a do Carnaval em que Heitor

Melo, secretário de redação do cronista Jamanta no nada Carnavalesco Correio da Manhã,

o enviou para Santa Cruz, bairro bem distante do Centro, onde ocorria o desfile dos

ranchos. Jamanta não obedeceu o chefe e desfilou escondido em um carro alegórico em

forma de garrafa. Só que teve que enfrentar o chefe quando o carro quebrou na Rua do

Ouvidor, no Centro.

“Lá pelas tantas, não podendo mais suportar o calor de seu esconderijo, o Carnavalesco saiu da garrafa, quase nu, sujo e aclamando pelos companheiros, diante do olhar incrédulo do secretário. Ao olhar para cima e deparar com o temível Heitor Melo, o folião sorriu com ternura, atirou-lhe um beijo para, em seguida, berrar com todas as forças dos pulmões: ‘Viva o Correio da Manhã, Viva o Clube dos Democráticos’ ”. (COUTINHO, 2006, p. 132)

Cabe notar no relato o bom humor da história, de cunho bem popular e no clima da

festa de Momo. Aliás, é esse mesmo bom humor e esse mesmo clima que vão se tornar uma

regra nas crônicas de Léo Montenegro na coluna Avesso da Vida de O DIA.

4.2 - Rei Momo no Avesso da Vida

O tema Carnaval sempre foi recorrente na obra do cronista Léo Montenegro e

ganhou destaque ainda maior após o jornal carioca passar para o controle do jornalista Ary

Carvalho, no fim dos anos 80, e gradativamente ir abandonando o perfil policial que o

marcara nas duas décadas anteriores. Nos anos 90 e nos primeiros anos do século seguinte,

o assunto Carnaval passou a ser lido com mais frequência mesmo em datas de pequena

mobilização popular para a festa, como os meses de inverno, colocando-o por força das

circunstâncias e da própria ligação pessoal com o tema entre os cronistas de Momo.

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

65

Era previsível, portanto, que períodos que antecediam a festa popular e nos logo

posteriores a ela seus textos com citações e personagens envolvidos com o Carnaval

aumentassem consideravelmente em número, levando a conclusão possível de que o autor

buscava traduzir o subúrbio com os assuntos que são mais lembrados na região da cidade

do Rio no período temporal em que eles estavam mais em evidência.

Nas crônicas desse período há a presença de todas as características que marcariam

a obra de Léo Montenegro: personagens com nomes insólitos muitas vezes enganados por

seus pares apesar do verniz de malandro, texto com marcas de oralidade e vocabulário

popular e o humor simples com desfecho apresentando personagens presos, internados em

hospitais ou simplesmente envolvidos em brigas ou confusões.

Uma dessas histórias que terminam com o personagem internado em hospital marca

a hilariante crônica “O figurinista fresco”, publicada em 28 de abril de 1996 (ANEXO

XXXIV). Nela, o figurinista do bloco insiste em confeccionar uma roupa nova para o corpo

de um ex-benemérito da agremiação, “seu Ramalhagem”, que estava sendo velado. O

finado, diz, está vestido com roupas que não combinam. Quer confeccionar um terno lilás

com lenço no pescoço para o falecido usar no próprio enterro. Provoca revolta no velório e

termina internado no Hospital Estadual Carlos Chagas, no subúrbio de Marechal Hermes,

“onde está insistindo com os médicos para botarem cortinas rosas nas janelas da

enfermaria”.

Nos textos do cronista, o Carnaval também é citado como referência para situações

não relacionadas diretamente à festa popular. É notório o uso nas crônicas de expressões

populares associadas ao Carnaval. Esse é o caso, por exemplo, da expressão “botar o bloco

na rua” para tratar da morte ou enterro de alguém. A expressão com este sentido foi usada

no Avesso da Vida publicado em 7 de julho de 1996 sob o título “As vítimas da bomba”

(ANEXO XXXV). A crônica narra a confusão que a explosão de uma bomba de Festa

Junina causa em um bar lotado. Pitoresco é que no grupo estava até uma personagem

identificada apenas como velhinha. Logo após ter levado um tombo com a explosão da

bomba ela, já em pé e refeita, usa a expressão popular: “— Quase botei o bloco na rua, por

causa do susto, caramba”. A história termina com todos os frequentadores saindo do bar

para tomar satisfação com o homem “deste tamanho” que havia soltado a bomba. “Uns

oito” acabam levando uma surra e indo parar no hospital. No registro policial da causa dos

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

66

ferimentos surge a imprecisão, foram “vítimas de bomba junina”, numa referência às

vítimas de bala perdida que começavam a ser mais freqüentes nos anos 90 no noticiário

informativo do jornal.

Carnaval para os personagens de Léo Montenegro não é só festa popular. É também

papel social, como deixaram transparecer os primeiros cronistas de Momo em seus textos

do início do século XX. Na crônica do dia 12 de abril de 2002 (ANEXO XXXVI), a festa é

sinal de status. O camelô que vendia uma garrafada cita o Carnaval para atestar a eficiência

do produto. Isso ocorre quando ele trava um interessante diálogo com um cliente. “Esse

creme pra fazer nascer cabelo é jóia, ou o senhor tá só jogando pra platéia?”, pergunta o

cliente careca. “O que é isso, meu camarada? Sou um cientista de valor! Fique sabendo que

no Carnaval vou ser enredo do bloco da rua!”, responde o camelô para um careca muito

impressionado, que confessa: “É que meus cabelos estão caindo loucamente! Pra falar a

verdade, estão se atirando da minha cabeça!” A eficiência do produto é testada por uma

personagem identificada como magrinha, possivelmente comparsa do camelô. Por fim o

camelô acaba preso. O tal careca era delegado de polícia.

Os personagens do Carnaval carioca, diante de autoridades, como um delegado de

polícia, têm status para denunciar e colocar na cadeia quem tenta enganá-los, mesmo

apresentando biótipo inapropriado para as funções no desfile. Esse é o caso da crônica “A

vergonha”, publicada no dia 5 de fevereiro de 1994 (ANEXO XXXVII). Nela, um baixinho

vai para o xadrez após não entregar fantasias da rainha da bateria e do mestre-sala e dos

demais componentes do bloco Carnavalesco. Bastou a queixa dos foliões para o delegado

colocar o encarregado das fantasias na prisão. Não funcionou nem mesmo o argumento do

baixinho, destacando com ironia que o bloco (com componentes acima do peso e muito

confusos) tinha mesmo que ser enganado. O diálogo entre o delegado e o baixinho é

divertido. “Eu não tinha que aproveitar, doutor?”, diz o baixinho, numa referência à

confusão dos reclamantes. “O delegado não achava:”, pontua o narrador para acrescentar a

picardia. “Calado! E já pro xadrez!”, diz o delegado para, depois, chamar a atenção dos

queixosos: “Se vocês desfilarem, não digam que são da minha jurisdição! Ia pegar mal pra

minha delegacia pra caramba!”.

Referências a tipos humanos, típicos do subúrbio e do Carnaval cariocas, também

são outra marca dos textos de Léo Montenegro. Na crônica de 16 de janeiro de 1997, por

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

67

exemplo, um “negão”, termo politicamente incorreto mesmo para aquele ano, é eleito

presidente do bloco, tendo disputado o cargo com um gay e um comerciante emergente. A

localização geográfica dos personagens desse Avesso da Vida sob o título “A grande

eleição” (ANEXO XXXVIII) não é precisa, mas dá outra pista do público que o cronista

tenta retratar. Tendo em vista que os principais desfiles do Carnaval carioca se dão no

Centro do Rio ou em áreas centrais dos bairros, a indicação que “ninguém mais vai precisar

pegar trem pra desfilar naquele fim de mundo, porque vai tudo na minha Kombi” mostra

que a periferia é onde o autor vai buscar os elementos para a sua narrativa.

Na crônica, quatro personagens tentam a presidência do bloco. Identificados por

suas características físicas ou papel na comunidade local – negão, gay, quitandeiro e gordão

– disputam a eleição que seria ganha pelo primeiro deles. Pitoresco, porém, é o surgimento

de um novo personagem suburbano que já começava a frequentar as páginas informativas

do matutino, o gordão emergente, que oferece a Kombi e simboliza no texto os novos ricos

da periferia.

Reunir num só texto elementos díspares, vivendo situações imprevistas, também se

tornou uma marca do cronista. No texto publicado em 27 de janeiro de 2001 (ANEXO

XXXIX), aposentada do INSS tentando ser madrinha de bateria de bloco Carnavalesco

parece ser a situação menos verossímil possível, quanto mais sua aprovação pelo

financiador do desfile da agremiação no Carnaval carioca. A verossimilhança virá no

malicioso desfecho, que insinua uma ligação amorosa entre a aposentada (sogra do

característico personagem com nome inusitado Gorovenildo) e o financiador (classificado

pelo autor como “benemérito português da quitanda”).

Outros textos demonstrariam laços mais evidentes de continuidade temática e

literária do Avesso da Vida com os primeiros cronistas de Momo. Um conjunto deles se

dedica a explicitação das ligações do Carnaval e do samba com os candomblés africanos.

Apesar de numa primeira visão tanto cronista quanto seus personagens suburbanos se

apresentarem como católicos, a narrativa aponta para direção dos terreiros. Era assim, por

exemplo, com o cronista Vagalume (1877-1947), como pontua o pesquisador Eduardo

Granja Coutinho.

Entre padres e babalorixás, o cronista demonstrava maior reverência por estes últimos. Frequentava os candomblés do pai-de-santo João de Alabá, em cujo terreiro Tia Ciata era Ya-kekerê (mãe-pequena), e os de Cipriano de Abedé, em sua época “o maior babalô do Brasil (...) Esses candomblés, usualmente,

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

68

terminavam ou eram precedidos por sambas que “tiveram fama e deixaram nome na história”. Segundo Vagalume, foi a gente da roda de samba e do candomblé quem, de forma respeitosa e disciplinada, institui o rancho, essas pequenas sociedades que fazem o “Carnaval das Famílias”, o “Carnaval do futuro” (grifos do autor). (COUTINHO, 2006, p. 107)

O longevo Jota Efegê não se diferenciava de Vagalume. Estava atento, segundo

Coutinho, a tudo que acontecia nas rodas de samba, fandangos e candomblés. Mais que

atenção, o cronista pertencia a esse universo sociocultural, “embora nele se destaque pela

sua condição de moço inteligente que escreve pros jornais e faz discursos com palavras

difíceis e pernósticas”(COUTINHO, 2006, p. 121).

Léo Montenegro, com suas crônicas que faziam rir no matutino O DIA, vai também

explicitar sua aproximação e a dos moradores do subúrbio com os candomblés, os

chamados barracões de santo do subúrbio carioca, ambientes que congregam praticantes e

simpatizantes. É das reuniões que precediam os rituais ou ocorriam logo após eles que

vieram o ritmo, os instrumentos e as primeiras letras dos primeiros sambas cariocas.

Tal aproximação está em crônicas do Avesso da Vida, como a publicada em 22 de

outubro de 2000, sob o título “A macumba para espantar os ladrões” (ANEXO XXXX).

Nele, os moradores de toda uma rua, congregados pelo personagem Elisfrênio, se preparam

para fazer um trabalho ritual orientado por pai de santo para espantar ladrões. Era o ano de

2000, e os assaltos a residência, cada vez mais constantes do Rio, eram assunto do subúrbio

e da cidade inteira. Todos acabam sendo assaltados. A explicação: para economizar, em vez

da galinha, Elisfrênio comprara para o despacho um pacote de caldo de galinha.

Na crônica “O despacho”, publicada no feriado de 7 de setembro de 2001 (ANEXO

XXXXI), uma evidência do relacionamento “envergonhado” dos moradores do subúrbio

com o candomblé. Auristênio, personagem central, está em um dia difícil. Nada dá certo.

Ao encontrar amigos, um sugere banho de arruda com sal grosso. Ele já tinha tido essa

ideia, mas estava sem dinheiro para comprar o sal. Arruda ele já tinha no quintal? O

cronista não responde, mas sugere.

Interessante mesmo é quando um amigo de Auristênio, identificado apenas como

baixinho, se apresenta como “vizinho do primo de uma senhora que namora um carteiro

que entrega cartas numa rua onde mora um pai-de-santo” e assume a autoridade de receitar

um trabalho para o personagem central escapar da maré de má sorte. A receita é

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

69

especializada, evidenciando a intimidade do grupo com as casas de santo: “uma garrafa de

cachaça, um alguidar dos grandes, farinha, óleo de dendê, cinco pacotes de velas e uma

galinha preta”. A situação tem, como esperado, desfecho divertido, expressando o típico

humor carioca. Baixinho sugere que o despacho seja colocado em frente ao prédio do

Ministério da Guerra naquele momento, 9 horas da manhã, do feriado 7 de setembro. Como

é em frente ao prédio que acontece a parada militar, Auristênio se dá conta da

impossibilidade, dá uma surra no baixinho e vai preso.

Outros exemplos poderiam ser citados. São inúmeros os que dão uma demonstração

da importância da temática da ideia de Carnaval (seus personagens, costumes e práticas)

nas crônicas de Léo Montenegro. Escreve divertidos textos sobre o Carnaval do subúrbio

nas quase quatro últimas décadas do Século XX, mas não deixa de registrar, por meio do

humor, as discussões sobre o Carnaval da área central, herdeiro da modelagem registrada

pelos cronistas pioneiros de Momo. O conjunto de sua obra o faz entrar, mesmo sem que

essa tenha sido sua intenção premeditada, pela porta da frente no grupo dos cronistas de

Momo.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

70

CONCLUSÃO

Ao inserir Léo Montenegro no rol dos cronistas de Momo, vendo em sua obra um

registro temporão do estilo inaugurado por jornalistas na Primeira República, a presente

dissertação tenta buscar, porém, mais que o mero reconhecimento do cronista carioca além

do grupo de leitores do jornal matutino O DIA. A intenção foi identificar na obra indícios

de continuidade com a tradição literária nacional.

Não que essa porta seja a única de entrada do cronista nesta tradição. Como

apresentado aqui, sua vasta obra vai além da temática Carnavalesca. Afinal, Léo

Montenegro falou em suas crônicas do subúrbio do Rio e seus personagens, como fez Lima

Barreto. Com estilo totalmente diferente, mas com olhares bem semelhantes. Escreveu em

um jornal popular sobre casos inspirados no noticiário policial, como Nelson Rodrigues em

sua atividade como titular das crônicas publicadas na coluna “A vida como ela é”, do jornal

Última Hora. Registrou em seus textos personagens malandros, que nem sempre se dão

bem em suas trapaças, evidenciando continuidade literária com tradição iniciada por

Manuel Antonio de Almeida.

A escolha de sua entrada na tradição pelo cronismo de Momo vai além da temática e

do estilo. Está também ligada à trajetória pessoal do autor. Como seus antecessores, Léo

Montenegro estreou no jornalismo pelo noticiário policial. Atuou a vida inteira em redação

de jornal, sob a imposição dessa indústria e efemeridade de seus produtos. Como eles usou

pseudônimo para escrever crônicas para o jornal A Notícia e manteve o anonimato nas

crônicas que escreveu para o programa de rádio do comunicador Haroldo de Andrade,

aspectos de sua carreira que não foram abordados neste trabalho por serem secundários na

extensa produção do cronista para o jornal O DIA.

O olhar sobre essa produção principal do cronista carioca evidenciou, durante a

pesquisa, o risco de os textos se perderem. Os escritos até o fim da década de 70 estão em

microfilmes. Alguns ilegíveis. A coleção inteira está nos arquivos do jornal. Como a

qualidade do papel não é de livro, esse material não fica disponível para pesquisadores. Só

o microfilme. O restante está na forma digital, no banco de dados da empresa.

Como firma privada, a editora O DIA franqueou o acesso aos arquivos sem maiores

dificuldades em função da ligação deste pesquisador com a empresa. Trabalhei lá de 1997 a

2000 e de 2001 até os dias atuais. Deparei com arquivo organizado por profissionais, mas

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

71

com limite de investimento. Microfilmes com falhas de leitura, danificados. Material que

corre risco de se perder por falta de investimento em sua preservação ou mesmo se o jornal

mudar de donos para grupo que dê pouca importância para material associado à fase

sensacionalista e policial do matutino.

Na empresa, profissionais mais velhos, hoje em cargos de chefia, se recordam de

Léo Montenegro. Alguns abertamente não gostavam de suas crônicas. As associam ao

jornal O DIA policial, anterior a Ary Carvalho. Outros dão importância a eles. Hilka Telles,

chefe de reportagem da manhã, criada no subúrbio, diz que ganhou gosto pela leitura

ouvindo o pai ler para ela, hoje aos 50 anos de idade, as crônicas do Avesso da Vida. Um

único, Cláudio Vieira, ele mesmo cronista de Carnaval, vê em Léo importância para o

cronismo de Momo.

Por que Léo Montenegro está no rol dos cronistas de Momo? Ele não escreveu

exclusivamente sobre a festa de Momo, diferente de seus antecessores, porque essa mesma

indústria exigiu isso dos primeiros cronistas e não de Léo Montenegro. Ainda pensando em

sua trajetória, é necessário destacar que escreveu sobre Carnaval sendo assíduo

frequentador de ensaios de blocos e escolas de samba, exatamente como os cronistas

pioneiros de Momo. Como foi dito, chegou a ajudar na composição de um samba de

sucesso. Por meio do humor, criticou a midiatização do Carnaval central do Rio, a censura

e o gigantismo das escolas de samba, sempre comparadas em seus textos aos improvisos

dos blocos de embalo suburbanos.

A inserção de Léo Montenegro na lista dos cronistas de Momo também passa pela

temática de seus textos sobre Carnaval, mesmo que num primeiro olhar seja mais fácil ver

diferenças que semelhanças entre seu trabalho e o dos pioneiros. Esse primeiro olhar é, sem

dúvida, embaçado.

Os primeiros cronistas tratavam do Carnaval que estava sendo formatado nos

moldes que conhecemos hoje. Falavam da substituição dos violentos entrudos pelos

organizados ranchos. Falavam do dia a dia dos ranchos, de suas festas e embates para

conquistar o direito de desfilar. Usavam linguagem jornalística datada, longe da

objetividade que se buscaria no jornalismo após os anos 50.

Léo Montenegro escreve quando o Carnaval já está consolidado como festa popular

nacional e carioca em particular, portanto não havia como tratar da formatação. Mas segue

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

72

essa tradição ao escolher falar apenas de blocos de subúrbio e não das consagradas escolas

de samba, de certa forma propõe um ajuste na festa, que ao longo dos anos 70, 80 e 90 teria

o desfile das escolas como peça principal, relegando aos blocos da Zona Sul e Centro um

segundo plano e o esquecimento aos blocos de subúrbio.

Léo Montenegro escreve após os anos 50. Portanto, após a padronização da

linguagem jornalística em torno da pretensa objetividade e clareza. Escolhe, porém, colocar

nomes inusitados e pomposos em seus personagens, de certa forma uma referência aos

inusitados nomes de ranchos e de cronistas da Primeira República. Usa a ficção, mas não

perde a ligação com situações, vistas por ele ou contadas por seus interlocutores, comuns

aos blocos de subúrbio. Por fim, escolhe o humor para encerrar suas narrativas, imbuído do

mesmo espírito de Momo que embalava seus antecessores no cronismo sobre Carnaval.

Se essas credenciais ainda não são suficientes para inserir Léo Montenegro no rol

dos cronistas de Momo, uma última característica apresentada na presente dissertação há de

resolver o problema: a representação dos foliões dos blocos do subúrbio, seus amigos,

desafetos, parentes ou conhecidos em personagens que dão notícia de um cotidiano vivido

por quem mora no subúrbio. Estereótipos e alegorias à parte, os leitores do subúrbio podem

ou não se identificar com tais personagens, mas é certo que tinham no Avesso da Vida uma

vitrine de seu cotidiano, um olhar bem-humorado de seu dia a dia, em ganchos de

identificação com sua rotina, no ônibus, no trem e no bar. Não parece ousado demais dizer

que muitos liam as crônicas à procura de tais identificações.

Ora, não era atrás de seus pares e suas histórias que os foliões dos primeiros anos do

século XX liam as crônicas sobre Carnaval nos jornais da Primeira República? Não era esse

público leitor que garantia aos cronistas de Momo seu emprego e espaço nesses jornais?

Também não foi a fidelidade do leitor do subúrbio que garantiu tão duradouro espaço para

a ficção de Léo Montenegro? Não foi esse leitor que manteve Léo Montenegro em O DIA

durante todas as transformações que o jornal passou nos anos 80 e 90?

Por essas características, Léo Montenegro foi o filho temporão do cronismo de Momo,

mesmo quando se acreditava que o cronismo de Momo já havia desaparecido.

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

73

REFERÊNCIAS

ABREU, Alzira Alves. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2002.

ALBIN, Ricardo Cravo, KAZ, Leonel; MÁXIMO, João; SOUZA, Tárik de; HORTA, Luís

Paulo. Brasil Rito e Ritmo. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2003/ 2004.

_________________. Vai passar nessa avenida um samba popular. In: KAZ, Leonel e

LODDI, Nigge (org.). Meu Carnaval Brasil. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2008.

ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um Sargento de Milícias. Rio de Janeiro:

Ediouro, 1978.

ARGOLO, José. Ricardo Galeno: Um Poeta no Cotidiano de Chumbo. In: Lumina -

Facom/UFJF - v.2, n.1, p.41-57, jan/jun. 1999 – www.facom.ufjf.br, acesso em 2 de junho

de 2008.

BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro,s/d, Col. Prestígio.

_________________. Feiras e Mafuás. In: BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Obras

de Lima Barreto. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1961.

CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um

sargento de milícias) In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, número 8. São Paulo:

USP, 1970.

_________________. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 10ª ed. Rio

de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

_________________ (et al.) A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no

Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui

Barbosa, 1992.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

74

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca dos Bastidores ao

Desfile. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 3ª ed. 2006.

CAVALCANTI ____________. O Rito e o Tempo: ensaios sobre o Carnaval. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

COELI, Humberto de Lemos Medina. O Novo Jornalismo Popular. A Reforma do Jornal O

Dia e suas consequências. Dissertação de Mestrado em Comunicação Social. Brasília:

Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, 2003.

COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto em Nossa Literatura. In:

Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. BH: Oficina de Livros, 1990,

pp. 69-115.

COUTINHO, Eduardo Granja. Os Cronistas de Momo: Imprensa e Carnaval na Primeira

República. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.

DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro, Última Hora, versão online

http://cpdoc.fgv.br/dhbb/htm/dhbb_ultimahora.htm, acessada em 08 de setembro de 2008.

DINIZ, André. Almanaque do Carnaval: a história do Carnaval, o que ouvir, o que ler, onde

curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.

FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

________________. Terra de samba e pandeiro. In: KAZ, Leonel e LODDI, Nigge (org.).

Meu Carnaval Brasil. Rio de Janeiro: Aprazível Edições, 2008.

FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Lima Barreto e o fim do sonho republicano.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

75

GÓES, Fred (org). Revista Terceira Margem – Pensando o Carnaval na Academia. In:

Revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, ano X, nº 14, Rio de

Janeiro: Fundação Universitária José Bonifácio, 2006.

____________. Brasil, mostra a sua máscara. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.

GRAÇA, Milton Coelho da. Mais um vira tablóide: O DIA, In http://www.comunique-

se.com.br/conteudo/newsshow.asp?menu=JI&idnot=51010&editoria=301. Acessado em 12

de outubro de 2009.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

RESENDE, Beatriz (org). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2001.

____________________. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. RJ: Ed. UFRJ;

Campinas: Ed. UNICAMP, 1993.

RIBEIRO, Ana Paulo Goulart. Imprensa e História do Rio de Janeiro dos anos 50. Tese de

Doutorado em Comunicação Social. Rio de Janeiro, Escola de Comunicação da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Editora Ática, 6ª ed., 2005.

SANDRONI, Cícero. 5D Melhor Todo Dia. 50 anos de O Dia na história do Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Editora O Dia, 2001.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. São

Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.

SERRA, Antônio A. O desvio nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.

SODRÉ, Nélson Werneck. História da Imprensa no Brasil.Rio de Janeiro: Graal, 1977.

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

76

VIEIRA, Cláudio. Lendas e mistérios de um clássico. In: http://sambaonline.blogspot. com

/2009/05/ lendas-e-misterios-de-um-classico.html, acesso em 1º de junho de 2009

VILLAÇA, Flavio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2001.

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

77

ANEXOS

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

78

ANEXO I

Avesso da Vida

Título: O vigarista

Jornal O DIA, página 5; edição dos dias 2 e 3 de maio de 1965

Clodoaldo não tinha mais jeito. Era jogador inveterado. Não interessava que o ambiente

fôsse o de um cassino luxuoso ou de uma esquina de malandros. Onde houvesse um dado,

baralhos ou lá o que fosse, onde pudesse arriscar o salário, lá estava o Clodoaldo. Chegava

ao cúmulo de parar na rua, com outro viciado, e jogar ‘par ou impar’ na chapas de

automóvel que passava. E foi assim que conseguiu acumular uma ‘fortuna’ de dívidas. Era

tal a sua situação, que não parava mais em casa, para evitar a visita indesejada, mas

constante, do cobrador. Não pagava e nem podia pagar a nenhum.

Certa tarde, quando não fora ao serviço porque nem o da condução arranjara, eis que houve

uma batida sinistra na porta. Só podia ser mais um ‘miserável de um cobrador’ – pensou lá

com seus botões.E qual não foi a sua surpresa, quando, olhando pela fechadura, verificou

que era uma mulher, e por sinal jovem, bonita. Abriu ràpidamente e, ao perguntar, todo

solícito, a que devia tão agradável visita, a mocinha respondeu: “Sou da Loreiro Antunes e

Cia: o Sr. deve cinco prestações atrasadas, referentes a compra de um ventilador.

— Pois não, entre. Estive viajando e só agora estou recompondo meus negócios. Pagarei

agora mesmo – disse o jogador. A jovem acreditou e logo que transpôs a porta foi agarrada.

Vendo que seria desrespeitada, pois a boca no mundo: os vizinhos a libertaram enquanto

dava tremenda surra no Clodoaldo que ainda foi parar no xadrez.

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

79

ANEXO II

Lendas e Mistérios da Amazônia

Samba enredo da Portela de 1970

Autores: Sebastião Vitorino Teixeira dos Santos, o Catoni; Waltenir e Dinckel Martins, o

Jabolô

“Nesta avenida colorida

A Portela faz carnaval

Lendas e mistérios da Amazônia

Cantamos neste samba original

Dizem que os astros se amaram

E não puderam se casar

A lua apaixonada chorou tanto

Que do seu pranto nasceu o Rio-Mar

E dizem mais (sic)

Jaçanã

Bela como uma flor

Certa manhã viu ser proibido o seu amor

Pois um valente guerreiro

Por ela se apaixonou

Foi sacrificado pela ira do Pajé

E na Vitória-Régia

Ela se transformou

Quando chegava a primavera

A estação das flores

Havia uma festa de amores

Era a tradição das amazonas

Mulheres guerreiras

Aquele ambiente de alegria

Terminava ao raiar do dia

Ô esquindô lá lá

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

80

Ô esquindô lê lê

Olha só quem vem lá

É o Saci Pererê”

http://sambaonline.blogspot.com/ em 23 de julho de 2009

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

81

ANEXO III

Avesso da Vida

Título: O bate-bola

Jornal O DIA, página 7, edição do dia 10 de fevereiro de 2002

Jornal do Brasil, Caderno B, página 4, edição do dia 1º de fevereiro de 2005

Bestenaldo entrou na repartição fantasiado de bate-bola:

– Quem foi que disse que eu não vinha?

Um careca levantou os braços, tremendo de medo, e se rendeu:

– A gente entrega tudo! Mas não nos faça mal!

Bestenaldo tirou a máscara e se revelou:

– O que que é isso, cara? Sou eu!

Foi aquela surpresa:

– O que é que você tá fazendo aqui fantasiado desse jeito, colega?

O doido contou:

– Quem manda botar plantão em dia de Carnaval? Eu sai agora do maior baile e nem tive

tempo de ir em casa trocar de roupa!

Um gordão torceu o nariz pro Bestenaldo:

– Que mau gosto! Podia, pelo menos botar uma fantasia mais fresquinha, poxa!

Bestenaldo tinha lá os seus motivos:

– Negativo, porque, de máscara, a gente faz um monte de besteiras e aí, ninguém fica

sabendo quem foi que fez!

Um baixinho teve um momento de lucidez:

– Acho melhor você ir tirando essa droga, porque o nosso chefe...

Foi interrompido pela chegada do chefe, que arregalou os olhos quando viu o Bestenaldo

vestido daquele jeito:

– Tá pensando que isto aqui é coreto? Só falta começar a rebolar!

O careca explicou pelo Bestenaldo:

– É que ele tava num baile de Carnaval, chefe! E fazendo tudo aquilo que nós, que

dormimos bem cedo, não fizemos!

O chefe explodiu:

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

82

– Não interessa! Não admito palhaçadas aqui na repartição!

Falou e espetou o dedo na cara do Bestenaldo:

– Tira essa porcaria imediatamente, ou tá despedido agora!

O homem enviesou o olhar para o delegado:

– Não acho uma boa idéia, chefe! Tá cheio de contribuintes aqui!

O chefe deu um soco na parede e gritou:

– É por isso mesmo, né, sua besta!

E carbonizou o Bestenaldo com o olhar:

– Vou contar até três pra você tirar essa coisa ridícula, senão, vai ser demitido

sumariamente, sem dó nem piedade! Ouviu bem??? Hein??? É um, é dois...

Bestenaldo, célere:

– Eu tiro, pronto!

Como não tinha nada por baixo da fantasia de bate-bola, ficou pelado na frente de todo

mundo. Foi despedido do mesmo jeito, coitado.

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

83

ANEXO IV

Aconteceu no Rio - Avesso da Vida

Título: Os dentes do defunto

Jornal O DIA, página 4, edição do dia 5 de junho de 1968

Era um velório de bandido.

E conto o negócio que aconteceu num velório porque, sei lá como hoje me sinto, assim

meio como o Almirante: “Tô” vendo enforcado e alma penada pra tudo que é lado.

Mas, voltando ao velório, o defunto chorado era o do “Boca de Ouro”, respeitável

assaltante morto, ninguém sabe de que maneira. E o apelido dele era “Boca de Ouro” por

uma razão muito simples: tinha uma pá (sic) de dente de ouro na boca.

Quando visto, cada sorriso do marginal era de uma iluminação tão forte (...) o Denner visse

ficava desluminado. E foi sorrindo num sorriso de 500 réis que o cara fechou, ou melhor,

foi fechado, talvez (suspeitamos que sim) por coleguinha de crime. No velório do bandido,

como não podia deixar de ser, só tinha bandido. Um deles, por sinal, gozando excelente má

reputação, não tirava os olhos dos dentes de ouro do extinto. Catucou um outro coleguinha

seu:

– Espia só que beleza de brodoegas. Aqueles dentes no “prego” iam dar uma nota violenta

pra caramba.

– É mesmo, cara! Pensou se a gente “montamos” naquela dentadura?

Um outro marginal mais responsável sentiu o drama:

– Já tô adivinhando o que vocês estão pensando aí, pombas! Nós “tem” que “arrespeitar” o

Boca de Ouro, o que que há?

Veio a defesa:

– Não, a gente tava só admirando o perfil do Boca, rapaz! Não tem nada disso aí que você

falou não!

– É sim! A gente nem tinha pensado em nada disso.

O defensor da dentadura do defunto meteu o dedo na cara dos dois:

– É bom mesmo que vocês não façam nada no santo defunto.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

84

E a conversa morreu ali. Acontece porém que o velório tinha bandido que Deus me livre,

tudo de olho na dentadura de ouro do falecido marginal que, se vivo fosse, fechava a boca e

se mandava porque ser olhado com olhar de peixe morto é meio esquisito.

Lá pelas tantas quando o velório entra naquele período chato (a cachaça ia acabando e não

tinha boteco aberto àquela hora), com a turma querendo forçar o sono, houve um corre-

corre dos diabos, intercalado por gritos.

– Tira a mão daí droga!

Outros iam além:

– A cueca não, a cueca não!

A luz tinha apagado. E sabem lá o que é apagar a luz de uma sala com mais de oitocentos

bandidos misturados? Não se sabe se foi por defeito ou se alguém desligou o troço. O

negócio é que a luz apagou, tudo escureceu e foi um tal de meter a mão no bolso do outro

que puxa vida!

Quando restabeleceram a luz, foi iniciado o balanço. Dois estavam sem a carteira e o

relógio, um sem o paletó e um pé de sapato e outro sem o cordão de ouro com a medalha de

São Jorge.

Ah, sim, o defunto estava com a boca murcha às pampas.

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

85

ANEXO V

Aconteceu no Rio - Avesso da Vida

Título: O ataque

Jornal O DIA, Página 4, edição do dia 5 de junho de 1986

Tava o delegado muito tranquilo, respirando o ar puro da delegacia, quando o auxiliar

chegou, botando os bofes pela boca:

– Tranquem as portas e janelas! Peguem as armas, chamem reforços! Ai,meu Deus, vai sair

o maior tiroteio aqui nesta porcaria.

O delegado viu tudo rodar, recuperou-se, pegou o revolvão e deu um salto da cadeira!

– Quantos são? Puxa, logo hoje? O pagamento sai amanhã!

O auxiliar:

– Três! São três velhinhas!

O doutor já ia abrir a janela pra começar a atirar, mas parou em tempo:

– Três velhinhas? E quase que eu fuzilo as três coitadinhas! Você ficou maluco?

O auxiliar ia responder, mas não deu, as três senhoras simpáticas entraram sorridentes:

– Bom dia, doutor delegado!

O delegado tratou de esconder o revolvão:

– Bom dia! O que é que três simpáticas senhoras vieram fazer aqui na minha modesta

delegacia?

O auxiliar, escondido atrás da cadeira do delegado:

– Cuidado, doutor, é fria! Se elas abrirem a bolsa tome cuidado!

O delegado espanou o auxiliar:

– Fora da minha sala, pombas!

Mandou as velhinhas sentarem:

– Mas, voltando ao assunto, o que as senhoras desejam?

Uma delas:

– Nós somos da paróquia local!

O doutor:

– Até que enfim! Não costumo receber visita de enviados do padre! Aliás, parece que ele

não gosta da minha delegacia!

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

86

Uma velhinha:

– Não diga isso, doutor.Ele até mandou um abraço pro senhor!

Uma outra:

– E também mandou convidar o senhor pra nossa festinha de domingo!

O delegado ficou como o diabo gosta, de tão satisfeito:

– É claro que irei!

Jogaram um livro na frente dele:

– O comércio e as autoridades estão assinando!Quem deu menos deu 1 mil cruzados!

O delegado sentiu vontade de assinar com revólver, mas usou mesmo a caneta.Depois foi

pedir desculpas ao auxiliar:

– Pior que oitocentas quadrilhas juntas!

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

87

ANEXO VI

Aconteceu no Rio - Avesso da Vida

Título: O Peru

Jornal O DIA, página 4, edição do dia 14 de maio de 1987

Gersonildo comprou um peru, levou para casa, mostrou o embrulho pra mulher dele e pediu

que ela adivinhasse:

– Se acertar ganha um beijo na boca!

A mulher, que tava carente para dedéu, cruzou os dedos e arriscou:

– Um penico novo pro Tonico!

Gersonildo jogou um balde de água fria na mulher:

Penico pe a sua cara! Eu ia deixar você apertar, pra tentar acertar, mas agora não vou mais!

Aí ela voltou a ficar acesa:

– Deixa eu apertar, pombas! Mereço mais uma chance!

Ele deixou e ela apertou. E no que apertou arriscou:

– Suéter pro inverno que se aproxima!

Gersonildo perdeu a paciência:

– Que é suéter? Você acaba de apertar um peru deste tamanho!

A mulher ficou vermelhona, sem graça, tonta, surda e cega, mas Gersonildo abriu o

embrulho e mostrou:

– Não é uma beleza? Tava lá no balcão do supermercado, com um precinho pra lá de

camarada em cima! Não resisti e comprei! Afinal, eu dei uma prorradinha no bicho e a

gente precisa comemorar!

Pergunto pelo filho:

Cadê o Tonico? Ele vai ficar doido quando souber que vai comer peru!

O garotinho, de cinco anos, se chegou e o Gersonildo deu um tratamento de choque no

coitado:

Hoje vamos comer peru aqui em casa!

O menino, assustado:

– De quem?

Gersonildo disse que tinha comprado no supermercado e mostrou:

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

88

– Não é uma beleza? Você nunca comeu isto na sua vida!

O Garoto saiu, Gersonildo deu o peru para mulher preparar e já ia entrando no banheiro

para aquele banho comemorativo, quando a casa foi invadida:

Seu amável filhote foi lá em casa e disse que hoje vai ter peru aqui! Trouxe a patroa, as

crianças e a minha cunhada lá de Cordovil, que tava la em casa com os oito filhos dela!

Um gordão:

– Vim só eu e a patroa, mas já mandei recado pro Zoca e sua rapaziada botafoguense lá de

Jacarepaguá! Não demora muito e eles chegam!

Gersonildo:

E quem mandou convidar vocês? A comemoração é só em família!

O gordão:

Ah, é assim? Então você pega esse seu peru e ...

Não deu pra completar, porque o pau comeu firme na sala e a mulher do Gersonildo, sem

ter o que usar, desandou a bater com o peru em todo mundo. Alguns estão no xadrez e

outros no hospital, tomando aquela canja miserável.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

89

ANEXO VII

Aconteceu no Rio - Avesso da Vida

Título: Os homens que mudam

Jornal O DIA, suplemento dominical Jornal da Televisão e das Mulheres, página 6, edição

do dia 14 de outubro de 1984

ARQUITETRONILDA (sic) era bonitinha as pampas naquele retrato que seus pais tiraram

quando ela tinha uns oito meses, por aí. Mas, aos 26, tava como tinha que ser, ou seja, feia,

chata, solteira e doidona pra arranjar marido:

– Tem que aparecer alguém, pombas! E toda macumba que eu fiz, não vale nada?

– Dormia de janela aberta, porta encostada, enfim, tudo na maior facilidade, mas não

pintava nada naquele escuro, razão pela qual a donzela já tava pensando besteira:

Acho que vou sair por aí atacando!

Mas não encontrava coragem na hora e ficava na dela, esperando o seu príncipe encantado,

certa que ele pintaria no pedaço, braços abertos e cheio de conversa:

Minha princesa, enfim nos encontramos!

Qual nada. De tanto esperar a Arquitetronilda resolveu armar a maior festa em sua casa,

convidando todos os homens da rua, os casados, os solteiros, os vivos e os mortos, não

livrando nem a cara do mendigo da esquina:

Tenho certeza que na festa uma dessas bestas vai acabar se declarando! Aí, quando acordar

do porre, já era! Vou exigir casamento e outros bichos!

E desandou a convidar todo o mundo, alegando que era para festejar seu aniversário:

Vai ter chope, salgadinhos e, ao contrário das outras festas, ninguém precisa me me dar

presente! Eu é que vou dar!

Aquilo deixou meio mundo escabriado, inclusive o Gerôncio, famoso porque não livrava a

cara de mulher nenhuma:

– Aí tem coisa!

Mas não se recusou e juntou-se ao resto da patota:

– Vai ver, coitada, ela se sente muito solitária!

Um gordinho:

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

90

– Se eu estiver comendo um croquete e ela passar, cuspo tudo fora! É impossível comer

alguma coisa olhando a cara dela!

A bronca:

– Faz uma esforço, pombas! Cadê o seu sentimento cristão?

Dia de festa, a casa cheia de homem.

A única mulher era a Arquitetronilda:

Estou me sentindo uma sultona no meio dessa homada toda!

Enchia-se de gentilezas. Era croquete pra cá, croquete pra lá, chope jorrando, música,

enfim, aquela festa. Um cara:

– Se ela não estivesse presente,seria bem melhor!

Lá pelas tantas, depois de piscar muito os olhos, fazer mil caras e bocas, Arquitetronilda

resolveu apelar para a ignorância:

– Tenho uma novidade para contar!

Todos os homens recuaram até a parede, temendo o avanço. Mas ela continuou:

Com esses 11 e pouco por cento de setembro, minha poupança chegou a vinte e cinco

milhas!

Tá até agora escolhendo um naquela fila enorme que se formou em seguida à sua

declaração de bens.

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

91

ANEXO VIII

Avesso da Vida

Título: Fantasia de Carnaval

Jornal O DIA, página 8, edição do dia 27 de fevereiro de 1987

Nescrópio entrou na loja de fantasias e foi à balconista:

– Quanto custa aquela fantasia da Jade da novela?

A balconista, uma magrinha:

– Cinco reais, por causa de que tá em liquidação! Vai experimentar aqui mesmo?

Nescrópio ficou irado:

– Tenho cara de quem se fantasia de Jade? É pra minha patroa!

Um careca:

– Essa fantasia é quente, colega! Mas, se você tá a fim de matar sua senhora

de calor, compra logo uma Dama Antiga, que é de tafetá e tem o maior chapelão!

A magrinha:

– Tem que se meter? O freguês compra a fantasia que ele quiser, por causa de que a mulher

é dele e ninguém tem nada com isso!

Nescrópio, para a magrinha:

– Obrigado! Me dá aquela preta, com aquele véu que só dá pra gente ver os olhos da

criatura!

A magrinha:

– É mesmo pra sua senhora brincar o Carnaval, ou o senhor tá comprando essa fantasia pra

fazer saliências com ela?

Nescrópio, furioso:

– Mais respeito! Fique sabendo que não sou nenhum tarado! Quero o véu tapando tudo,

porque quanto mais a minha mulher ficar escondida, melhor!

Sabe como é, em baile de coreto, ninguém é de ninguém!

Um gordinho comentou:

– Desperdício! O que é bonito é pra se mostrar! O que é um pedacinho de bunda de fora?

O pessoal da loja teve que segurar o Nescrópio, que queria estrangular o gordinho:

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

92

– Insano mental! Minha primeira-dama é uma senhora de respeito, até canta no coro da

igreja!

A balconista magrinha:

– Toma logo, moço! Paga os cinco reais e se manda!

Nescrópio pegou a fantasia, pagou e perguntou à magrinha:

– A senhora garante que minha senhora vai poder botar essa fantasia e rebolar sem ser

reconhecida por ninguém?

A balconista garantiu, e o Nescrópio saiu da loja com o coração aos pulos:

– Mal posso esperar o momento de arrasaaaaar lá no baile!

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

93

ANEXO IX

Avesso da Vida

Título: Programa de Carnaval

Jornal O DIA, página 10, edição de 1º de março de 2003

Escanildo fazia planos com a família para os dias de carnaval:

– De tarde, a gente vai levar o Júnior ao baile infantil e, de noite, a gente vai se acabar lá no

coreto! Alguma sugestão?

A sogra era do contra:

– Carnaval é perdição! Prefiro passar esses três dias no Piscinão de Ramos!

Até já pedi aquela bóia emprestada ao Seu Fimóseo!

O garotinho também tinha outros planos:

– Não gosto de sambar! Prefiro ver o desfile das escolas de samba na TV!

Tomou um cascudo do pai na mesma hora:

– A essa hora você tem que estar na cama, seu tarado! Além do mais, nunca que eu vou

deixar você ver mulher nua na TV!

O menininho ponderou:

– Mas eu preciso saber como é que é quando a mulher cresce, pra ver se a minha namorada,

a filha da Dona Piranhelda, vai ficar igual quando for mulher!

A mulher do Escanildo interrompeu a discussão para encostar o marido na parede. Em

seguida, deu sua opinião sobre o carnaval:

– Eu quero ir pra um retiro espiritual nesse carnaval! Preciso rezar muito pra pagar todos os

pecados que cometi antes de me casar!

Escanildo abriu os braços, insatisfeito:

– Mas e o coreto? A prefeitura gastou uma nota pra botar baile lá e vocês ficam falando em

outros programas! Que ingratidão!

A sogra bateu o pé:

– Eu vou pro Piscinão, nem que tenha que ir sozinha! Vai fazer o maior sol!

O garoto não ficou para trás e reivindicou:

– Eu quero ver mulher pelada nos desfiles!

A mulher do Escanildo emendou:

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

94

– Eu quero fazer retiro espiritual! E você tem que me acompanhar! Família que reza unida,

jamais será vencida! Entendeu bem?

Escanildo riu:

– É ruim! Ficou maluca? Esqueceu que meu nome tá em tudo que é lista negra de retiro

espiritual?

A mulher lembrou:

– É mesmo! Também, nunca vi ninguém ir pra retiro espiritual fantasiado de pirata e com a

garrafa térmica cheia de conhaque!

Escanildo tentou com a mulher dele:

– Tive uma idéia genial! O Júnior fica vendo os desfiles, a minha sogra passa os três dias

no Piscinão, você vai pro diabo do retiro espiritual e eu brinco os três dias no coreto! Que

tal?

Mulher e sogra engrossaram o coro:

– Você vai brincar o Carnaval em outro lugar, seu cretino! Vem aqui agora!

Escanildo, depois da surra que levou, escolheu o Hospital Souza Aguiar, que fica bem

pertinho do Sambódromo. Está sambando deitado na maca.

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

95

ANEXO X

Avesso da Vida

Título: A diferença

Jornal O DIA, página 9, edição de 20 de maio de 1994

Corbélio estava no bar, bebendo e pensando na Vera Fischer, quando a dona Eustrázia

passou pela calçada e o cara não se conteve:

– Putz! Salve a diferença!

Dona Eustrázia entendeu aquilo à maneira dela:

– Não tem vergonha, seu maníaco? Imagine, me cantado a essa hora e nas barbas de

oitocentas testemunhas! Sabia que eu tenho marido?

Corbélio largou o copo:

– Mas isso nem me passou pela cabeça!

Um baixinho se meteu:

– Desculpe, mas eu ouvi bem e posso garantir que você elogiou a diferença dela!

Corbélio tratou de explicar:

– Eu me referi à diferença entre a senhora e a Vera Fischer!

O baixinho entrou em pânico:

– Com mil reais, o Corbélio tá achando a dona Eustrázia mais bonita que a Vera Fischer! O

homem pirou!

Corbélio, quase voou no pescoço do baixinho:

– É o contrário, sua besta! Dona Eustrázia não gostou:

– E o que é que ela tem, que eu não tenho?

Corbélio não se fez de rogado:

– É o que é que a Vera Fischer não tem, que a senhora tem.

O baixinho, curioso:

– E o que é?

Corbélio mandou ver:

– E você ainda pergunta?

A gente nunca sabe quando a dona Eustrázia tá indo ou vindo!

Um negão que andava de olho na dona Eustrázia não gostou:

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

96

– Também não precisa humilhar a pessoa dela! Inclusive, eu até ia oferecer o cargo de

madrinha da bateria do nosso bloco pra ela!

Dona Eustrázia agradeceu:

– Obrigada pela lembrança! E fique todo mundo sabendo que eu tenho tudo no lugar!

O negão acendeu os olhos:

– Que a sua pessoa prove!

Corbélio:

– Mas nem que a vaca tussa! Se ela tirar a blusa aqui na rua, vai assustar criancinhas, nós

teremos pesadelos terríveis, os croquetes do bar vão ficar revoltados, o...

O negão:

– Pensando bem...

A santa senhora não gostou:

– Vou fazer uma coisa que a Vera Fischer não faz!

Disse isso e caiu dentro da galera, arriando uns dois, entre eles o Corbélio, que está no

Getúlio Vargas, aos cuidados de uma enfermeira muito parecida com a dona Eustrázia.

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

97

ANEXO XI

Avesso da Vida

Título: O astro

Jornal O DIA, página 6, edição do dia 21 de junho de 2003

Grindélio, liderando uma multidão de vizinhos, chegou em casa aos berros:

– Meus sapatos! Onde estão os meus sapatos?

A mulher dele chegou da cozinha, assustada:

– Mas o que é que tá acontecendo, afinal de contas? Tomei o maior susto! Na hora, eu tava

temperando o feijão e mexendo a sopa! Agora, não sei mais o que eu fiz!

Grindélio repetiu:

– Quero meus sapatos agora! Vou ensaiar, e os sapatos são essenciais!

Ela continuou sem entender o que acontecia:

– Que ensaio? O Carnaval ainda tá muito longe!

Grindélio fez pose:

– Eu agora sou artista! Imagine que o pessoal lá da firma vai fazer uma peça e me escolheu

pra ser o mocinho!

Um careca, do meio do bolo de vizinhos:

– Pena que ele morre no fim! Mas, até isso acontecer, ele já comeu a mocinha, uma vizinha

e a secretária do chefe!

A dona da casa, ainda de olhos arregalados:

– E o que é que vocês estão fazendo aqui?

Um magricela sorriu exibindo os três dentes da frente:

– A gente tamos acompanhando o artista aqui da comunidade! A senhora sabia que ele até

já me deu um ortógrafo hoje de manhã?

Grindélio, aos berros de novo, começou a dar ordens:

– Seguranças! Tirem esse fã da minha frente! Agora eu vou ensaiar! E ensaio exige muita

concentração!

A mulher do Grindélio, já começando a entender a confusão, resolveu perguntar:

– Essa peça tem mesmo essas sacanagens todas que o Seu Alionério disse?

Grindélio, solene:

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

98

– Tem, mas é tudo muito profissional! Os beijos são técnicos, não vai ter aquele negócio de

língua e outros bichos, não!

A madame era uma oferecida e foi logo sugerindo:

– Tô pronta pra ensaiar com você! Mas sem platéia!

Grindélio desiludiu a mulher:

– Perdão, meu amor, mas já prometi ensaiar com outra pessoa! E a platéia é necessária,

para que eu sinta a mesma emoção que sentirei quando estiver no palco!

A mulher começou a encrencar imediatamente:

– E eu posso saber com quem você vai ensaiar?

Ele não devia, mas disse:

– Com a Dona Piranhelda Regina! E o ensaio é lá na casa dela! Portanto, trate de me dar os

meus sapatos, porque não pega bem eu...

Parou ali, ao receber a sapatada na cabeça. Desmaiou em grande estilo, enquanto a

multidão de vizinhos chegava ao delírio:

– Bravo!!! Bis!!! Bis!!!

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

99

ANEXO XII

Avesso da Vida

Título: Ir ou não ir

Jornal O DIA, página 11, edição do dia 18 de abril de 1998

Parafernaldo estava perto da capela, quando parou:

— Acho que não vou! Velório de rico é cheio de coisa! Tem que tomar uisque usando

guardanapo, pegar salgadinho com delicadeza, enfim, essas frescuras!

Quando notou, tinha uma multidão em volta:

— Pode continuar falando sozinho! Aliás, meu avô não faz outra coisa na vida!

Um garotinho, ao lado da mãe, uma magrinha:

— A mãe também! Sempre que o pai tá trabalhando ela se tranca no quarto e fica

falando sozinha!

Parafernaldo ficou tiririca da vida:

— Não falo sozinho! Eu apenas dizia a mim mesmo que não quero ir ao velório do meu

chefe!

Um gordão arregalou os olhos:

— Tem que ir! Tá na lei que nós temos que ir ao velório do nosso chefe!

Um baixinho muito do covarde:

— Quando o meu botar o bloco na rua eu vou! Só assim vou poder chamar ele de tudo que

é nome sem ser despedido!

Parafernaldo, célere:

— Jamais faria isso com o meu chefe! Lá na repartição ele me deu uma porrada de

gratificações, auxílio-isso, auxílio-aquilo e outros bichos! Não tô querendo ir por causa de

que odeio velório de rico!

Um magricela concordou:

— Também acho! Velório de rico não tem aquele coisa linda que é a

primeira-dama do evento gritando que quer ir junto, não tem cerveja, não tem

tira-gosto e nem tem Zeca Pagodinho na vitrola!

Parefernaldo, mais do que depressa:

— A viúva desse velório é uma deusa! E lá tem uisque, cascata de camarão e garçom!

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

100

Todo mundo se agarrou ao Parafernaldo:

— Você vai e nós também!

Um cara de bigodinho:

— Diz que eu, o gordão e o baixinho somos seus irmãos e que a magrinha é sua cunhada e

o filho dela seu sobrinho! Garanto que vai colar!

Parafernaldo se sacudiu todo:

— Rapa fora todo mundo! Não vou e se fosse jamais levaria um bando de famintos

comigo!

O pessoal não gostou e caiu em cima do Parafernálio, que teve que ser levado para o

hospital, onde até que está aliviado:

— Escapei daquele velório chato!

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

101

ANEXO XIII

Avesso da Vida

Título: Uma lâmpada queimada

Jornal O DIA, página 19, edição do dia 16 de março de 2003

Alternaldo, irritadíssimo, discutia com a família:

– É claro que eu sei trocar uma lâmpada queimada! Querem ver meu diploma, por acaso?

A mulher dele era a mais preocupada com aquilo:

– Não é a lâmpada, criatura! Nosso medo é que você caia dessa escada! Vai fraturar todos

os seus ossinhos!

O filho do Alternaldo, um garotinho, resolveu se pronunciar:

– Vou logo avisando que se o pai cair e quebrar uma perna eu não vou ficar empurrando a

cadeira de rodas dele, pra lá e pra cá!

Alternaldo, trepado na escada, isolou no teto:

– Vira essa boca pra lá, pivete! Já não bastam as pragas que a sua mãe roga?

A sogra rebateu:

– Meu neto tem razão! E se você acha que o que ele disse é praga, faço minhas as palavras

dele!

Os vizinhos chegaram, tendo à frente um careca:

– O que é que você tá fazendo em cima dessa escada, homem de Deus? Esqueceu que

temos que abrir os trabalhos no bar?

Alternaldo explicou:

– Agora não dá, meus amigos! Tenho que trocar a lâmpada da sala, que queimou!

Um magricela notou a escada:

– Não tem medo de despencar de cima dessa escada? E, se despencar, lembre-se de que nós

estamos aqui embaixo!

Um velhinho lembrou:

– Eu não subo mais em escada de jeito nenhum! Já chega cair aqui embaixo mesmo! Só

este mês já levei três tombos!

Alternaldo pediu:

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

102

– Em vez de ficarem me agourando, façam o favor de segurar a escada! Ela tá sambando

como se ainda fosse carnaval!

Um baixinho ficou preocupado:

– Segurar, assim, a seco? E se você cair em cima da gente?

Alternaldo se sacudiu todo lá em cima:

– Não vou cair, não, pombas! Eu garanto a vocês que não vou cair daqui de cima! Por isso,

tratem de segurar a escada!

O careca, meio vacilão:

– Você garante que não cai em cima da gente? Não posso me machucar hoje, por causa de

que amanhã tenho que tirar sangue lá no posto de saúde!

Alternaldo garantiu, e os vizinhos, mais a família, seguraram a escada com

toda a força:

– Pronto, manda brasa, mas cuidado pra não cair!

Alternaldo garantiu que era seguro, meteu a mão num fio e veio aquele choque que passou

pela escada e pegou todo mundo em cheio lá embaixo:

– Desgraçado! Isso foi pior do que cair em cima da gente!

Alternaldo continua trepado na escada, com o pessoal embaixo, esperando...

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

103

ANEXO XIV

Avesso da Vida

Título: A carta

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 02 de março de 2000

Estava todo mundo na esquina, quando o carteiro apareceu lá longe e um careca deu o

alarme:

– Espiem só, é o carteiro!

Foi aquela correria, tendo à frente o Enosprézio:

– Devo ter um monte de cartas! Afinal, tenho parentes na Pavuna, no Jacaré, em Cascadura,

em Madureira, no Méier, em...

Parou ali, porque foi agarrado por um gordinho:

– Quem mandou correr na nossa frente? Vai ver, o carteiro só tem conta para o senhor

pagar!

O careca berrou de novo:

– Mais rápido, colegas! O carteiro saiu desembestado quando viu a gente correndo na

direção dele!

Enosprézio era teimoso:

– É porque ele só tem uma carta pra entregar e é pra mim! Ele tá pensando que vocês vão

pegar a minha carta e ler!

Como o carteiro era gordo, o pessoal chegou junto num instante, e o pobre homem

capitulou:

– Eu me rendo! Mas não avancem na mala!

Enosprézio não era fácil:

– Comece logo a fazer a chamada, conforme juramento que prestou quando se formou em

carteiro!

O carteiro, preocupado com a multidão:

– Só tem uma carta pra entregar! E ela é pro seu Enosprézio Fagundes da Silva, morador na

casa 39! A besta do remetente esqueceu de botar o nome dele!

Enosprézio:

– Que besta? E se foi a minha pobre mãe que me escreveu, seu biltre?

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

104

Um gordinho:

– A letra que tá no envelope não é de mãe! Sei disso, por causa de que letra de mãe é

diferente!

O coro da multidão:

– Leia, leia!!!

Enosprézio:

– Jamais farei isso em público! Esta carta será lida no recesso do meu lar e sem

testemunhas!

Mas, como o pessoal insistiu, o Enosprézio abriu e começou a ler:

– A carta começa dizendo que a minha patroa anda pulando a cerca e...

A gargalhada e o coro o interromperam:

– Corno! Corno!

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

105

ANEXO XV

Avesso da Vida

Título: Maus momentos

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 26 de maio de 1994

O trem, cheio como sempre, corria tranquilo, derrubando uns e outros nas curvas, quando

uma velhinha deu o maior berro;

– Céus! Uma barata voadora!

Florepildes, segurando o ferro, se torceu todo para perguntar:

Aonde? Aonde?

Um baixinho respondeu pela velhinha:

– Bem nas suas costas, caramba!

Um negão, para o Florepildes:

– E a sua pessoa fica quietinha aí, sem se mexer, por causa de que essa barata é daquelas

que avoam!

Florepildes, suando frio:

– Mas nem pensar! Pensam que as minhas costas são aeroporto de barata? Vou é me

sacudir todo!

Um nordestino, largando o ferro:

– Faça isso e será um homem morto, porque se a barata sair das suas costas e voar pra cima

de mim não respondo pelo que vou fazer!

A velhinha:

– Sugiro que o negão, que tem uma mão enorme, dê uma porrada na barata!

Florepildes, célere:

– Como ela pousada nas minhas costas? Mas nem pensar, minha senhora! Se o cara fizer

isso, a barata morre e eu vou ter que ser internado!

O baixinho:

– Então, deixa que eu dou o tapa, por causa de que tenho mão pequena.

O negão:

– Negativo! O máximo que a sua pessoa vai conseguir é fazer a barata voar por aí! Minha

mão é que vai acabar com ela!

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

106

Florepildes, sem se mexer:

– Nem ouse! E não precisa ficar preocupado, porque eu vou até a porta e lá me sacudo todo

pra ela sair e cair na linha férrea!

Os pingentes, em coro:

– Não se aproxime da porta com esse monstro nas suas costas! Vai causar uma tragédia!

A velhinha cismou de dar bronca no Florepildes:

– Viu no que dá sair de casa com uma barata de estimação nas costa?

Florepildes:

– Mas eu nunca vi essa barata mas gorda!

O negão:

– Pra cima da gente? A pessoa da barata parece sua amiguinha desde que era pequenininha!

Foi nessa que o Florepildes se invocou:

– Pra mim chega! Vou me sacudir todo!

E se sacudiu mesmo, fazendo a barata voar em todas as direções. O pessoal

preferiu esquecer a barata e deu o maior piau no Florepildes, que teve que ser socorrido na

primeira estação. A barata se escondeu debaixo de um banco, com medo da briga.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

107

ANEXO XVI

Avesso da Vida

Título: O boa-vida

Jornal O DIA, página 12, edição do dia 15 de novembro de 2000

Juresvaldo chegou em casa com os olhos parecendo faróis de neblina:

– Adivinhem o que aconteceu!

A mulher dele, célere:

– Pela sua cara, tomou todas! Não tem vergonha?

Ele, sacando uma papelada da pasta:

– Veja lá como fala com um aposentado! Sabia que isso pode dar cadeia?

A mulher arregalou os olhos:

– Aposentado? Deus é pai! Eu sabia que um dia você ia conseguir!

Juresvaldo beijou a papelada:

– Eu não agüentava mais! Se não me aposentasse hoje, nem sei o que faria! Fechou os

olhos:

– Meu primeiro dia em casa, sem ser domingo, feriado, nem nada!

A sogra entrou na prosa:

– Que bom! Agora tenho um coleguinha em casa!

Juresvaldo:

– Exatamente! E como somos colegas agora, me poupe daquelas sacanagens!

O filho menor do Juresvaldo adorou:

– Agora o senhor pode me levar ao Maracanã, ao circo e mais uma pá de lugar!

Juresvaldo, todo alegrinho:

– Isso, na hora em que eu não estiver dando milho pra pombo, jogando sueca com os

colegas lá na pracinha, dormindo ou vendo televisão! E continuou, feito vitrola:

– Adeus trem da Central! Adeus patrão! Adeus trabalho!

A mulher dele:

– Vai ter tempo pra dedéu a partir de hoje, né, amor?

Ele sacou o lance:

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

108

– Pode ir tirando o cavalinho da chuva, minha senhora! Quando me aposentei, me aposentei

mesmo! Saliências, nunca mais!

A sogra se voltou contra o coleguinha:

– Vai deixar minha filha a ver navios, seu desnaturado?

Juresvaldo, no ato:

– Ué, a senhora não parou também depois que o falecido botou o bloco na rua?

E acendeu o olhar em cima da poltrona:

– Vou sentar e ficar vendo televisão até a hora que me der vontade de dormir!

A mulher dele era vingativa:

– Nem pensar! Agora que tá aposentado, vai varrer o quintal todo dia, limpar a fossa, fazer

compras no supermercado, encerar a casa, consertar o telhado...

Juresvaldo está tentando anular a aposentadoria.

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

109

ANEXO XVII

Avesso da Vida

Título: A pendência

Jornal O DIA, página 15, edição do dia 7 de fevereiro de 1998

Flaustrézio, no ônibus, quase suplicou a um gordão ao lado dele:

– Dá pra desencostar? É que podem pensar que o senhor é o outro na minha vida!

O gordão arrepiou em cima do Flaustrézio:

– Se tá incomodado, salta e pega um táxi!

Naquele justo momento, três camaradas armados se revelaram:

– Vamos parar de presepadas aí, que é um assalto!

Um careca se colocou entre os assaltantes e os demais passageiros:

– Mas nem que a vaca tussa! Primeiro, vamos ver como termina o impasse criado pelo

gordão ali, que estava se encostado no cavalheiro aqui!

O gordão quase voa na carótida do careca:

– Ninguém tava se encostando em ninguém, seu invertebrado! Mas que mania, essa de ficar

acusando sem prova!

Uma magrinha se colocou ao lado do careca:

– Eu tô de prova, por causa de que tava vendo tudo, mas não disse nada, porque pensei que

o senhor e o moço aí fossem namorados!

Flaustrézio meteu o dedo na cara do gordão:

– Viu o que arrumou com esse negócio de ficar se encostando em mim?

O chefe do bando sacudiu o 38:

– Parem com essa frescura! Isto é um assalto!

Uma velhinha, para o bandido:

– Dá um tempo! Eu quero ver como vai terminar essa pendência toda aí!

Uma baixinha pediu licença pra falar:

– Uma vez eu tava no trem e fui me encostando! O meu marido, que na época não era nada

meu, foi deixando e quando abriu os olhos a gente tava diante do padre! Tô casada até hoje!

Um assaltante mirou na baixinha:

– Mais uma gracinha dessa e vai levar um pombo sem asa na testa, sua anã!

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

110

Flaustrézio estava injuriado:

– Ninguém manda pombo em ninguém, enquanto esse verme não me pedir desculpas!

O gordão fez jogo duro, disse que não ir pedir desculpa nenhuma e o Flaustrézio ignorou o

assalto por completo:

– Ah, é?

E iniciou o maior conflito no ônibus, que terminou com ele, o gordão e os três assaltantes

em estado precário. No hospital, para se garantir, Flaustrézio pediu para que a maca onde

estava estendido ficasse bem longe da do gordão.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

111

ANEXO XVIII

Avesso da Vida

Título: A Fofoca

Jornal O DIA, página 4, edição dos dias 1 e 2 de dezembro de 1968

No boteco chorava suas mágoas.

– É o caos, o caos! Foram espalhar que eu andava com a guria e deu um rolo desgraçado!

Alguém cheio de inspiração agarrou-o pelo braço:

– Antes que a bomba estoure por completo vá lá, junta a turma e boca a boca no mundo!

Impressiona às pampas!

Alarico deu um salto na cadeira:

– É isso "mermo" , rapaz, é isso "mermo" (sic)

Ato contínuo subiu o morro. Pegou a mulher, os filhos, a sogra, os primos, as cunhadas e

rumou para casa da guria.

Lá juntou a mãe, a guria, o pai, os irmãos, vizinhos e inúmeros penetras, e iniciou a coisa:

– Vamos parar de fofocas! Andam dizendo que andei com a Esmeraldina aí, mas é mentira!

E antes que alguém pudesse dizer alguma coisa:

Não admito, não admito, entendem? Não posso permitir que meu nome seja usado

assim,sem mais nem menos, num troço que nada tem a ver comigo!

Alguém ia dizer qualquer coisa, mas Alarico não deixou:

– Eu processo, eu processo! Meto na cadeia quem anda falando coisas pela aí! (sic)

Tomou fôlego e reiniciou:

– Sou homem casado e não posso andar metido nessas coisas. Amo minha espôsa e meus

filhos! Por isso não posso admitir fofocas envolvendo meu nome! De jeito nenhum, de jeito

nenhum! Cuspiu de banda, limpou a boca na manga da camisa e prosseguiu:

– E tem mais, quero saber quem começou essa palhaçada!

Alarico falava com tanta grossura que ninguém animou dizer nada, do que ele se aproveitou

para continuar sua bronca.

– É o fim da picada, pombas!

Qualquer coisinha vão logo inventando as coisas mais incríveis! Tá a Esmeraldina aí que

não me deixa mentir!

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

112

Todo mundo olhou para Esmeraldina, pivô de todo o caso, mas quando a moça tentou abrir

a boca para dizer a sya (sic), o Alarico não a deixou:

– Claro que ela vai responder que não houve nada! O que houve foi um mal-entendido e

muita maldade por parte dos fofoqueiros aqui do morro!

A Esmeraldina tentou dizer qualquer coisa, mas o Alarico não deixou:

– Não admito!!! Torno a repetir que não admito que meu nome seja maculado por

fofoqueiras profissionais e de carteira assinada, que não fazem nada mais na vida, senão

arruinar vidas!

Vivo muito bem com a minha espôsa e não posso permitir que minha felicidade seja

destruída por línguas ferinas!

Num esfôrço supremo a Esmeraldina conseguiu dizer:

– É, mas não foi isso que você falou! Prometeu tudo, tudo!

Alarico recebe visitas às quintas-feiras, no hospital Carlos Chagas, onde se encontra

internado com fratura exposta.

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

113

ANEXO XIX

Avesso da Vida

Título: O enredo malandro

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 2 de janeiro de 1998

Arafobildo chegou no bar sem um centavo no bolso e a cabeça cheia de más Intenções:

– Depois de meses e meses encontrei um enredo sensacional pro nosso bloco!

O presidente, um gordão:

– Até que enfim uma alma caridosa se lembrou que o nosso bloco existe!

Arafobildo sacou um papel do bolso:

– Saquem só a preciosidade: Pereironildo Silva, uma rua cheia de encanto e fantasia !

Um baixinho, pasmo:

– Céus, essa é a nossa rua! Mas que diabo de encanto é esse numa rua que não é calçada, só

conhece o Fusca do seu Almironeldo e tem uma vala desgraçada onde todo mundo vive

caindo quando sai do bar?

Arafobildo enfeitou o pavão:

– Fui na biblioteca e fiquei sabendo que quem descobriu a nossa rua foi um português que é

tataravô do patrício aqui do bar!

O português riu:

– É ruim! A rua não tem nem 20 anos! Como é que meu tataravô descobriu ela?

Arafobildo estava com tudo decorado:

– E antes de ser rua, hein? Saiba que o seu tataravô, Pereironildo Silva, aportou aqui

quando o mar batia ali na esquina e foi recebido por uma porrada de índias, tudo de bunda

de fora!

O português acendeu os olhos:

– E depois? E depois?

Arafobildo entrou com a segunda parte do plano:

– Perdão, mas enredo tem que ser guardado a sete chaves!

Um negão não sacou a sacanagem:

– Claro! Sempre tem a pessoa de um co-irmão querendo roubar a idéia!

Uma magrinha não perdeu tempo:

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

114

– Quero sair de índia! E pelada feito as que receberam esse navegante aí!

O português se emocionou:

– Puxa, quanta honraria! Pois o artista que bolou o enredo não paga nada hoje aqui no

estabelecimento!

Arafobildo guardou o papel no bolso:

– Obrigado! Inicialmente, uma bem gelada e umas rodelas de lingüiça!

O safado caiu de boca nas geladas e nos quitutes, mas vai ter que ficar uns dez carnavais

sem aparecer naquele bar, por motivos óbvios.

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

115

ANEXO XX

Avesso da Vida

Título:O vigarista

Jornal O DIA, página 9, edição do dia 14 de agosto de 2001

Pilantrézio se meteu na rua mais pobre do lugar e pegou um monte de gente do local

batendo papo:

– São eleitores? – perguntou, intrigando um gordinho:

– Quem quer saber?

Uma velhinha arriscou:

– Já sei! O senhor é do Ibope! Acertei?

Pilantrézio riu:

– Quase! Sou é candidato e, segundo o Ibope, já estou em 785º lugar entre os preferidos

pelo eleitoraldo!

Uma magrinha histérica:

– Ai, meu pai! Um candidato veio à nossa rua! E eu hoje ainda nem penteei os cabelos e

botei desodorante!

Pilantrézio, malandro:

– Nem deve! Povo tem que ser povo, cheirar a povo e falar como povo!

A velhinha, preocupada:

– Se o senhor for eleito, jura que acaba com a dengue?

O safado:

– A senhora quer?

A velhinha confirmou, e o Pilantrézio bateu o martelo:

– Acabou a dengue! – decretou e impressionou um careca:

– Puxa, eu não sabia que era tão fácil assim! E assalto?

Pilantrézio jurou:

– Esse caso, só depois de tomar posse! Agora mesmo, quando sair daqui, vou visitar 80

comunidades carentes que sofreram assalto nas últimas 24 horas!

Vou falar com os delegados e botar os bandidos a pão e água!

Respirou fundo e jogou o verde para os eleitores:

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

116

– Embora ainda não tenha almoçado e esteja com a barriga vazia, como vocês do povo

costumam dizer!

Um gordão, célere:

– Não seja por isso, doutor! Vamos ao bar ali em frente, que é por nossa conta!

No bar, o Pilantrézio, justiça seja feita, fez uma verdadeira devastação. Foram dois pratos

feitos, cinco cervejas e goiabada de sobremesa:

– Comi como um rei e juro que, em troca, calçarei esta rua, botarei luz, água, esgoto,

ônibus, caminhões, guardas de trânsito e um Cristo Redentor maior do que o verdadeiro!

Depois, chegou a ser comovente, a cena: os moradores, acenando com lenços brancos, e o

Pilantrézio se mandando e rindo:

– Esse conto do candidato é genial! Até a eleição, não morro de fome!

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

117

ANEXO XXI

Avesso da Vida

Título: O golpe furado

Jornal O DIA, página 14, edição do dia 29 de novembro de 1996

Escrovelino, malandro como ele só, achou de ganhar uma grana nas costas da magrinha e

subiu num caixotinho para se dirigir ao pessoal:

– A dona Piranhelda aqui precisa de ajuda, por causa de que disse que não morre sem

visitar a Disney!

A dona Piranhelda ia tirar o dela da reta, mas uma baixinha alienada perguntou:

– Disney? Quem é essa piranha?

Escrovelino ia descer do caixotinho para encestar a baixinha, mas não podia pagar mico:

– Disneylândia, sua burra! Aquele lugar onde tem o Pateta, o Pluto, o Pato Donald...

A magrinha conseguiu falar:

– Mas eu nunca na minha vida disse que queria ir a esse lugar, seu Escrovelino!

Escrovelino tinha um certo domínio sobre a magrinha:

– Como não disse, dona Piranhelda? Esqueceu de ontem lá no bar?

A magrinha, célere:

– Então eu tava de porre, deve ser isso! Mas se o senhor tá falando...

Um negão, coçando o queixo:

– Afinal, a sua pessoa quer viajar para o Estados Unidos mesmo ou é sacanagem da pessoa

do Escrovelino?

Um careca, autoritário:

– Isso, interroguemos a suspeita! E sem essa dela dizer que só fala diante do juiz!

Levou um cascudo do negão:

– A sua pessoa parece que bebe, pombas! Pára de dar ordens, caramba!

A magrinha, se lembrou de que não tinha dito nada:

– Posso até jurar que nunca disse que queria viajar pra porcaria de lugar nenhum! Pra ir

daqui de Marechal até Cordovil eu me engasgo toda! Imagine ir assim tão longe! Eu não ia

agüentar tanto tempo no ônibus!

Escrovelino não desistia:

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

118

– De avião, dona Piranhelda!

Um baixinho, bem alto:

– Esse negócio tá muito estranho! Pra mim tem sacanagem nesse troço!

O negão, para o Escrovelino:

– Que a sua pessoa desça do caixotinho e explique tudo direitinho!

Escrovelino sacou a reta, tentou engatar uma terceira e sair a mil, mas foi seguro pelo

braço:

– E ainda por cima usando a Dona Piranhelda Regina, seu filho das unhas! Quer grana, né?

E deram a maior surra no cara, que está no hospital, bastante avariado, mas tentando

enganar os coleguinhas de enfermaria.

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

119

ANEXO XXII

Avesso da Vida

Título: O broche

Jornal O DIA, página 26, edição do dia 24 de março de 2002

A mulher do Breucrildo chegou em pânico à sala da casa:

– Ai, meu pai, perdi meu broche!

Breucrildo, sentado na poltrona, sem tirar os olhos do jornal:

– Qual deles? Você tem broche que não acaba mais, pomba!

Ela, chorosa:

– Aquele do gnomo! – o maridão exultou:

– Até que enfim, você perdeu aquela imoralidade! Eu morria de vergonha quando você

botava aquele troço no peito! Cruz credo!

A mulher, injuriada:

– Ele não é imoral! Aquele negócio que ele tem é uma verruga no lugar errado! Além do

mais, o broche me protegia de assalto e de bala perdida! E agora?

A sogra do Breucrildo entrou na prosa:

– Todo mundo procurando o broche! Não quero que minha filha ande por aí sem o seu

talismã de estimação!

Breucrildo não gostou:

– Onde já se viu um talismã com um...um apêndice daqueles, minha senhora?

Chegava até a me dar aquele complexo de inferioridade, caramba!

A velha, com o dedo em riste pro genro:

– Fique sabendo que os gnomos só usavam calça apertada! Não reparou nos livros,

indecente?

Mas o Breucrildo tinha boa memória e respondeu na bucha:

– Até pode ser! Mas me explica por causa de que sempre que a sua filha

botava aquele broche no peito, as colegas carentes dela ficavam alisando a peça? Hein?

A mulher do Breucrildo arrumou uma desculpa:

– Porque o broche era bonito, ora essa!

Breucrildo voltou rapidamente às páginas do jornal que lia:

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

120

– Sinto muito, mas tô lendo meu horóscopo! Dêem licença!

A sogra dele:

– Olha só: se a minha filha levar uma bala perdida na idéia quando sair à rua, a culpa será

sua! Aquele broche protegia ela de todos os perigos, seu salafrário!

Breucrildo, rindo:

– Mas é claro, ora! Até o pior dos bandidos se rendia às coisas daquele gnomo depravado!

A mulher do cara resolveu apelar:

– Mas eu tô acostumada com o broche! De tanto usar, espia só a marquinha que ficou aqui

no meu peito!

Breucrildo chegou perto da mulher, esticou o pescoço e teve até vertigem com a visão:

– Que panorama! Eu vou achar, fica fria! Mas, depois, quero uma recompensa, hein!

E o malandro do Breucrildo, que estava doido por uma noite de saliências com a patroa,

achou o broche rapidinho. Ele havia escondido a peça bem escondidinha num buraco no

quintal.

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

121

ANEXO XXIII

Avesso da Vida

Título: O careca e os otários

Jornal O DIA, página 9, edição do dia 13 de outubro de 2001

A notícia correu célere e pegou o pessoal na esquina em cheio:

– O traficante aqui da área mandou o comércio da rua fechar hoje! – era um careca dando a

notícia. Falou e continuou:

– É em sinal de luto pela morte da vizinha de uma das amantes dele!

O Esnervaldo, maior malandro, estÁ presente e se revoltou:

– Quem esse camarada pensa que é, pra botar essa banca toda?

Uma magrinha se empolgou:

– Isso! Vai lá e diz isso na cara dele! Imagina se a gente vai ficar calada!

O careca lembrou:

– Cuidado, que ele anda armado até os dentes! Dizem, inclusive, que ele rifou a mãezinha

dele, quando era criancinha, só pra comprar uma cocada!

A magrinha voltou atrás:

– Coitado! Alguém aqui devia ir lá pra dar as condolências ao infeliz! Não é mole perder,

assim de repente, a vizinha de uma das amantes!

Só que o Esnervaldo não se assustou:

– Sabiam que botequim é comércio? – fez o pessoal cair na real:

– Fechar o bar, não!

Um velhinho, preocupado:

– Moro aqui há 50 anos e essa é a primeira vez que o comércio fecha por causa de um

negócio como esse! Gostaria de saber quem é o rapaz que resolveu trilhar o caminho do

mal, para uma conversinha ao pé do ouvido com ele!

Um gordão precavido:

– Nunca vi esse traficante! Mas o que eu quero mesmo é distância dele!

Esnervaldo enfeitou o pavão:

– É forte pra caramba, costuma almoçar chumbo derretido e jantar salada de comigo-

ninguém-pode ao molho de cicuta e antes de dormir sempre mastiga umas balas!

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

122

A magrinha se animou:

– Bala? Então é um maricas! Vai lá e enfia a porrada nele, Seu Esnervaldo!

Esnervaldo, aos gritos:

– Balas de pistola 45, sua mosquita anêmica!

O careca sugeriu:

– E se a gente subornasse o meliante? Sugiro que todo mundo caia com um real na mão do

colega Esnervaldo! Aí, é só ir até o sujeito e negociar uma saída política!

Como essa prática anda muito em voga, a galera concordou e choveu grana na mão do

Esnervaldo, que se foi e voltou logo em seguida:

– Tudo em cima! O homem voltou atrás e o comércio vai abrir!

E foi para o bar, gastar a grana dos otários com o cúmplice dele, o careca.

A rua nunca teve traficante.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

123

ANEXO XXIV

Avesso da Vida

Título: A mágica

Jornal O DIA, página 15, edição do dia 12 de junho de 1998

O trem estava assim de gente quando o sujeito magrinho botou o turbante e pediu:

– Por favor, afastem-se para que eu possa apresentar o meu número!

Foi aquele espanto:

– Um mágico no trem!

Uma baixinha entrou em pânico:

– Ai, se ele usa turbante deve ter cobra na parada! E eu tenho pavor de cobra, meu São

Bregonildes!

O cara, que não era mágico, coisa nenhuma, ficou tiririca da vida:

– E eu lá trabalho com cobra? Saiba que minhas mágicas são científicas! Falou e pegou um

serrote:

– Uma dama, por gentileza!

Uma magrinha foi empurrada pela multidão:

– Ela!

A magrinha se sacudiu toda nos braços do malandro:

– Me larga, seu coisa! Nunca que eu vou deixar o senhor me serrar ao meio!

Um careca, para a magrinha:

– Fica fria, minha filha! Eu conheço esse cara do Largo da Carioca e sei que ele é bom

nesse troço! Uma vez ele errou, mas lá no hospital colararam direitinho a moça!

Ai mesmo é que a baixinha deu uma queda de asa e saiu em direção à porta:

– Quero saltar!

O safado teve que apelar:

– Quem quer dobrar a grana que tem no bolso? Se alguém me der um real eu transformo em

dois reais!

Um sujeito de bigodinho enviesou o olhar:

– É ruim! Pensa que alguém aqui é otário?

Um baixinho ingênuo:

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

124

– E se for verdade? Puxa, eu ia tomar uma latinha lá na estação, mas se ele dobrar a minha

grana eu vou poder tomar duas!

Aquele negócio de cerveja mexeu com todo mundo, mas um negão achou por bem tomar as

devidas precauções:

– Cerquem a pessoa dele na hora da mágica! Assim, as nossas pessoas garantem a grana de

volta!

O cara era um artista:

– Recuso-me a trabalhar sob pressão!

O cerco se apertou:

– Ah, é?

A única mágica que o sujeito conseguiu foi a de ser atendido na hora quando chegou ao

hospital, todo arrebentado por causa da surra.

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

125

ANEXO XXV

Avesso da Vida

Título: Um pouco atrasado

Jornal O DIA, página 8, edição do dia 26 de fevereiro de 1998

Braustrézio chegou em casa com a bermuda imunda e os cabelos em pé:

– Mangueira! Portela! Mocidade! Viradouro! Salgueiro! Beija-flor! Imperatriz! Vila Isabel!

A mulher dele, a sogra e todos os vizinhos estavam na casa:

– Hoje é quinta-feira! Vai tratando de dizer onde se meteu, seu cretino!

Um baixinho, indignado:

– Antes do seu relatório, fique sabendo que fomos a hospitais e necrotérios à sua procura!

Como a gente tava no meu Fusquinha e parou em tudo que era bar que tinha pela frente,

levei cinco multas, fui reprovado no teste do bafômetro e perdi até a carteira!

Braustrézio, tropeçando na própria língua:

– Pô, eu só fui ver as escolas e depois vim pra casa!

A mulher dele pagou geral:

– Mentira! As escolas desfilaram há três dias!

Braustrézio ficou com os olhos deste tamanho:

– Putz, bem que eu achei que o motorista tava dirigindo o ônibus muito devagar! Acho que

ele tava de porre!

Um negão, tiririca da vida:

– Com todo respeito, mas quem está de porre é a sua pessoa!

O papa-defuntos do bairro estava presente:

– Não tinha nada que aparecer! Perdi quase três dias de sono por nada!

Uma magrinha arrepiou em cima do Braustrézio:

– Isso se faz? Eu a sua patroa pensamos em já usar luto, por causa de que...

Uma velhinha interrompeu a magrinha:

– Que horror! E se o Juizado de Menores pega você dormindo na rua?

Braustrézio desandou a dar pulinhos:

– Tenho quarenta anos, minha senhora, quarenta!

Um gordão disse o que não devia:

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

126

– Fique sabendo que passamos esse tempo todo consolando a sua senhora,

pensando que você já fosse um ex! Com aquela, Braustrézio teve um momento de lucidez:

– Como é que é? Na certa abraçaram a Bregonelda Regina, passaram a mão e coisas piores,

só porque eu fui até ali e demorei um pouquinho pra voltar!

Foi dizer aquilo para os vizinhos, injuriados, cairem dentro do infeliz, que foi parar no

hospital. Só que, agora, a família e a comunidade sabem onde ele está.

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

127

ANEXO XXVI

Reportagem

Título: Indios caçam às margens do Sena

Texto sem assinatura

Jornal O DIA, página 6, Caderno Especial de Carnaval, edição do dia 13 de fevereiro de

1994 (Domingo de Carnaval)

O enredo que a carnavalesca Rosa Magalhães criou para a Imperatriz, contando a

história da participação de 50 índios brasileiros numa festa promovida em 1550 pela

comunidade de Rouen, na França, para homenagear o rei Henrique II e a rainha Catarina de

Médicis, tem tudo para gerar a grande polêmica do Carnaval de 1994. Ele é exatamente

igual ao tema do enredo que o Império Serrano mostrará no Sambódromo. A tentativa da

população de Rouen era, segundo o histórico oficial do enredo, ofuscar a festa que a cidade

de Lyon oferecera aos reis um ano antes, numa época em que era costume receber a família

real com grandiosas festas.

A festa de Rouen foi um delírio carnavalesco. Os franceses montaram às margens

do Sena um cenário destes que os autores de samba-de-enredo chamam de deslumbrante.

Até as árvores foram fantasiadas, para ficarem parecidas com as espécies tropicais

existentes no Brasil. Muitas ganharam frutos imitando os naturais. Foram erguidas cabanas,

entre galhos de árvores que abrigavam macados, marmotas e sagüis, levados do Brasil. Para

completar a alegoria, 50 índios brasileiros foram levados de navio para a França. A eles

misturaram-se 250 marinheiros locais, nus e pintados como os nossos ingênuos tupinambás

e tabajaras, que simularam o cotidiano de uma aldeia indígena.

O sucesso foi tão grande que os reis pediram bis. A representação foi repetida no

dia seguinte. Entre alas com fantasias de índios, nobres franceses, marinheiros, a Imperatriz

vai mostrar carros que prometem: “Rei Henrique II e seus acompanhantes”, “As musas no

séquito da Rainha Catarina de Médicis”', “As alegorias marinhas nas águas do rio Sena”,

entre outros. Difícil é imaginar como será o carro alegórico “Montaigne escreve seus

ensaios e a floresta invade sua imaginação”, provavelmente uma referência aos textos em

que o filósofo escreveu sobre o Brasil.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

128

ANEXO XXVII

Avesso da Vida

Título: O bloco

Jornal O DIA, página 8, edição do dia 13 de fevereiro de 1994 (Domingo de Carnaval)

O presidente do bloco estava quase tendo um filho:

– Caramba, a gente desfila daqui a três horas e a pessoa dos componentes da bateria não

apareceu ainda!

A madrinha da bateria:

– Sem bateria eu não desfilo nem por um decreto! Não vou ficar me

sacudindo toda sem ter uma bateria atrás de mim!

O presidente estava uma arara:

– É claro, sua besta! Onde já se viu desfile sem a pessoa da bateria?

Uma senhora, única componente da ala das baianas:

– Já procurou no bar? A nossa bateria é tão pequena que cabe todo mundo lá!

Um passista se ofereceu:

– É isso aí, chefia! Vai ver, o pessoal foi tomar um goró pra não fazer feio no desfile aqui

da rua! Posso ir lá e chamar a rapaziada?

O presidente:

– A sua pessoa vai num pé e volta no outro! E cuidado com a vala! Se a

sua pessoa cai naquela porcaria e quebra um pé a gente fica desfalcado!

O cara foi e cinco minutos depois o presidente já estava preocupado:

– Já era tempo da pessoa dele voltar!

Um magricela que ia desfilar como destaque, fantasiado de Pedro I:

– Mesmo com esta fantasia de um quilo e meio eu vou até lá pra convocar a rapaziada!

O presidente repetiu aquela coisa de ir num pé e voltar no outro e o destaque foi. Dez

minutos depois, nada do cara voltar:

– Com mil notas zero, metade do bloco está no bar!

O cara de uma ala de três:

– Deixa comigo, chefia, porque vou trazer a galera no peito e na raça!

– Olha a pessoa da vala! Essa fantasia de índio custou uma nota!

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

129

O quitandeiro, benemérito do bloco fez o maior discurso, por causa da demora do destaque:

– É por isso que o nosso bloco não vai pra frente! Como benemérito, vou ao bar e trazer

todo mundo na base da porrada!

O benemérito foi e nada de voltar. O presidente se encrespou:

– Vou fazer valer a autoridade da minha pessoa! Agora quem vai lá sou eu!

Foi, chegou e encontrou todo mundo lá, enchendo a cara. Olhou as cervejas, o tira-gosto e

capitulou:

– E ficou também. O bloco, é claro, não saiu.

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

130

ANEXO XXVIII

Reportagem

Título: Imperatriz: rival de todas

Legenda: DE NOVO. Enredo da campeã lembrou Cabral, o descobridor do Brasil

Liga das Escolas faz o seu ranking

Jornal O DIA, página 3, edição de 25 de fevereiro de 2001

CLÁUDIO VIEIRA

Escolas sonham em impedir o terceiro título consecutivo da verde-e-branco e tentam

vencer o primeiro Carnaval do milênio O desfile do Grupo Especial deste ano anuncia uma

disputa das mais interessantes. Enquanto 11 escolas tentarão o título de primeira campeã do

milênio, a Imperatriz Leopoldinense lutará por um tricampeonato milenar, pois faturou os

dois últimos do milênio que passou. Se conseguir, feito igual só daqui a mil carnavais. No

mínimo. A façanha teria um sabor ainda mais especial por se tratar do primeiro

tricampeonato da história do Sambódromo.

Durante os 17 anos em que desfila na Avenida, a verde-e-branco de Ramos foi a

agremiação que mais títulos conquistou: cinco ao todo, sendo dois bicampeonatos; depois,

vêm a Mangueira e a Mocidade Independente, ambas com quatro vitórias. Vila Isabel,

Estácio de Sá (ambas no Grupo A, atualmente), Salgueiro, Viradouro e Beija-Flor

completam a galeria. Outra curiosidade: a Portela, que tem o maior número de vitórias em

todos os tempos – 21 ao todo –, nunca foi campeã no Sambódromo.

Ameaças de censura alteram desfile de escolas

O Carnaval da Paz sofreu turbulências durante a semana por ameaças de censura.

Escolas que programavam levar vídeos e performances criticando os estragos que a

violência faz à sociedade tiveram que alterar seus planos. A Mocidade não vai mais exibir a

fita com a tragédia do ônibus 174. A Grande Rio também não mostrará cenas de PMs em

pancadaria. Para evitar as farpas da Funai, a Viradouro aboliu a ala dos índios-preguiça.

Sobraram a Era de Aquarius e a esperança que ela traz .

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

131

Mas essa paz não vai muito além do enredo. Na disputa, todo o cuidado é pouco.

Basta meio pontinho para decidir o título ou jogar uma escola nas profundezas do Grupo A.

O escorregão representa um prejuízo superior a R$ 1 milhão.

A Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) criou o ranking das agremiações

do Grupo Especial, levando em conta sempre os cinco últimos carnavais. Das 14, apenas as

10 primeiras colocadas recebem a pontuação.

A Imperatriz está no topo com 73 pontos, seguida da Beija-Flor, com 72 pontos, e

da Mocidade, com 61. As últimas são União da Ilha e Império Serrano, ambas com 6.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

132

ANEXO XXIX

Avesso da Vida

Título: O mandão

Jornal O DIA, página 11, edição do dia 25 de fevereiro de 2001 (Domingo de Carnaval)

Ostremeldo, como presidente do bloco, dava ordens em todas as direções:

– É no pé e na boca! Meto a porrada em quem desfilar com cara de velório!

A porta-bandeira:

– Então, tô fora, porque minha dentadura tá no conserto e não posso rir!

Ostremeldo tinha solução:

– Sem problema! Vai até a dona Clotidonelda, da ala das baianas, e

pede a dentadura dela emprestada! Baiana não precisa rir!

O português do boteco:

– Como patrono, exijo uma explicação!

Ostremeldo respeitava o financiador do bloco:

– Pois não, excelência!

O português, injuriado:

– Por que o fado que eu fiz foi desclassificado? Ia ser uma novidade o bloco cantar fado em

vez de samba!

Ostremeldo:

– Patrono tem mais é que beijar a bandeira, passar a mão na madrinha da bateria e ser o

primeiro a assinar o livro de ouro! Não basta? Um garotinho chegou, a mil:

– Seu Ostremeldo, a mãe disse que a fantasia do destaque não vai ficar pronta na hora, por

causa de que o pai chegou agora com fome e ela se trancou com ele no quarto pra ele

comer!

Ostremeldo quase arranca os cabelos:

– Filhos da mãe! Isso é hora disso? A gente vai desfilar daqui a pouco!

Quero todo o mundo sambando e cantando o samba dos nossos compositores que, por

coincidência, são do cerol aqui da área!

Um magricela, célere:

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

133

– Concordo! Afinal, eles queimaram as pestanas pra fazer o samba, ficaram dias e noites

sem dormir e ainda tiveram que ameaçar a comissão julgadora com aqueles fuzis pro samba

deles ganhar!

Lá pelas tantas, quando os preparativos terminaram, Ostremeldo avisou:

– Vou até em casa um instantinho e volto rapidinho!

Chegou em casa e deu com a mulher dele, de cara amarrada:

– Já era tempo! Varre o quintal, encera a sala, ajeita a antena da televisão e vem comigo ao

supermercado, que a gente não come brisa!

O bloco vai desfilar atrasado, porque, em casa, o Ostremeldo não manda nada.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

134

ANEXO XXX

Avesso da Vida

Título: O retrato

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 6 de abril de 1994

Aubregaldo caminhava pelo Campo de Santana, quando sacou um lambe-lambe:

– Que sorte! Tenho mesmo que tirar um retrato pra minha carteirinha de sócio do bloco!

Foi ao retratista:

– Capricha que eu quero meia dúzia! Um eu vou dar pra minha patroa, só para fazer a

carne-seca com abóbora que eu tanto adoro!

Foi sentando na cadeira. E no que se sentou, um baixinho se chegou e opiniou:

– Sem sorrir. O Ministério do Trabalho não aceita retrato de gente rindo feito hiena.

Aubregaldo, para o baixinho:

– Que Ministério do Trabalho? Vou tirar retrato pra minha carteirinha do bloco!

Um negão ouviu e entrou no papo:

– Então a sua pessoa tem que sorrir pra dizer o samba na boca. Lá no meu bloco quem não

ri na foto da carteirinha, não desfila!

O retratista:

– Pô, vocês estão atrapalhando o trabalho de um profissional! Rapa todo mundo fora!

Um careca entrou no bolo, pagando geral em cima do retratista:

– O senhor é o último a falar!

A lei garante que a gente prepare o seu modelo para que a foto saia perfeita!

Uma magrinha sugeriu ao Aubregaldo:

– Já que é fotografia pra carteirinha de bloco, o senhor podia posar pelado, que é pra ficar

no clima.

Aubregaldo ficou injuriado com a magrinha:

– Fique a senhora sabendo que ninguém desfila pelado no bloco da minha rua! Nem a

madrinha da bateria, nem ela!

O negão:

– A sua pessoa pode ficar fria, por causa de que o caso da magrinha aí é outro!

O retratista, já arrancando os cabelos:

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

135

– E eu nunca que ia tirar retrato de ninguém pelado!

Minha máquina é pura e imaculada e até já tirou retrato de padre!

Aubregaldo, para a multidão em torno dele:

– Arreda todo mundo que eu tô com pressa pra tirar o retrato!

O negão:

– A sua pessoa devia agradecer a nossa colaboração! Retrato é uma coisa que dura pra toda

vida, pombas!

Aubregaldo se levantou da cadeira:

– Vão encher o saquinho da mãe!

Ah, pra que ele disse aquilo?

Apanhou tanto que teve que ir pro Souza Aguiar. O retrato dele até saiu no jornal. Como

vítima.

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

136

ANEXO XXXI

Avesso da Vida

Título: O samba

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 25 de janeiro de 1994

O velório do Antenor, corria tranquilo, quando o Onestonério começou a batucar na parede:

– “O Come Quieto deslubrante/vem cheio de galhardia/pra desfilar na avenida/com seu

jeito exuberante...”

A fila se desfez, um velhinho caiu sentado, a viúva dispensou os abraços e um parente do

Antenor foi ao Onestonério:

– Endoideceu? Daqui a pouco a sua pessoa vai querer mestre-sala e porta-bandeira,

oitocentas alas e uma bateria desfilando aqui na capela!

Onestonério, célebre:

– É que sou da ala dos compositores do glorioso bloco aqui da comunidade e olhando o

extinto nasceu a inspiração pro samba-enredo.

O parente:

– E desde quando defunto serve de inspiração? Se a sua pessoa quiser fazer samba, que seja

lá fora, pombas!

Um baixinho tomou as dores do Onestonério e meteu o dedo na cara do parente do falecido:

– Não respeita mais o poeta? Inclusive, eu tô me oferecendo pra entrar na parceria e

olhando o defunto me inspirei pra fazer o outro verso!

Onestonério gostou:

– Parceria aceita! Manda ver!

O baixinho, batucando no caixão:

“E não tem pra ninguém mais/porque vamos arrebentar/mas também queremos

paz...”

Onestonério botou defeito:

– Mais com paz rima, chefia? Acho meio forçado!

Um gordão, que também queria entrar na parceria:

– Não só rima, como combina com o verso que eu fiz, inspirado na visão do Antenor inerte

aí feito um babaca. Escutem só!

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

137

Mas o tal parente do extinto não deixou:

– Escutem só o escambau! Ninguém mais vai batucar porcaria nenhuma aqui dentro

inspirado no saudoso Antenor, que não tem cara de muso inspirador!

O gordão, para o Onestonério:

– Ih, ó o cara querendo atrapalhar nosso esforço para que o bloco desfile com um samba à

altura de suas tradições!

O parente encheu a mão:

– Vocês querem samba? Pois vão sambar agora mesmo!

Daí em diante o que se viu no velório foi a maior briga, com o parente do

extinto levando nítida vantagem e mandando os três para o hospital. Eles agora

estão é enchendo o saco dos outros pacientes na enfermaria.

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

138

Anexo XXXII

Avesso da Vida

Título: Escolha de samba-enredo

Jornal O DIA, página 10, edição do dia 7 de fevereiro de 2003

O presidente do bloco não pensou duas vezes quando notou a falta de um monte de

componentes da agremiação:

– O boteco! Aposto que todo mundo tá enchendo a cara naquela espelunca ali da esquina!

Mas que vício filho da mãe, caramba!

Chegou ao bar e não deu outra. Todos estavam lá:

– Cachaceiros do inferno! O ensaio vai começar daqui a pouco! Inclusive, os jurados que

vão escolher o samba-enredo já chegaram!

O mestre-sala já estava em órbita:

– Calma, que dá tempo! Se não der, o senhor paga hora-extra a eles!

O presidente era um negão invocado:

– Tá de porre? Tem até vereador na comissão! E a pessoa de um vereador, como vocês

sabem, trabalha 24 horas por dia em benefício da cidade! Cadê o Florinaldo, nosso diretor

de bateria?

Um gordinho da Ala do Arrastão informou ao presidente, na maior calma:

– Tava quase subindo pelas paredes e se mandou lá pra zona! Ele disse que era rapidinho,

rapidinho!

O presidente ficou alarmado com a informação:

– Que rapidinho? Ele tem 70 anos! O colóquio da pessoa do Seu Florinaldo vai demorar

pelos menos um dia inteiro pra conseguir!

Um magricela, da Ala dos Compositores, tentando alegrar o presidente:

– O meu samba ficou pronto, chefe! Custou, mas, depois de três noites sem dormir,

encontrei uma rima perfeita pra palavra amor!

O cara falou e deu de batucar no balcão:

– Escuta só a primeira parte: “A sereia, deusa do amor, morreu afogada no mar e não sentiu

nenhuma dor”. Poesia pura, gostou?

O mestre-sala, para o português dono do boteco:

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

139

– Manda mais meia dúzia, que o presidente vai tomar um copo com a gente!

O negão deu o maior soco no balcão e gritou:

– Nem meia dúzia, nem uma dúzia! Vocês vão parar de beber agora mesmo! Já chega o

vexame do ano passado lá na quadra!!!

O mestre-sala se defendeu:

– Pô, vamos passar uma borracha nisso! Eu já disse que só esqueci a nossa porta-bandeira e

comecei a fazer presepadas na frente daquela velhinha porque não enxergo bem! Mas este

ano vou ensaiar de óculos!

O português nem deixou o negão explodir, pois veio com a boa notícia:

– Aí, galera, o mocotó tá saindo quentinho!

O negão balançou:

– Mocotó? Acho que a pessoa da comissão julgadora pode esperar! Manda também uma

bem gelada pra acompanhar esse acepipe!

O bloco, pelo jeito, vai desfilar sem samba este ano.

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

140

ANEXO XXXIII

Avesso da Vida

Título: Os buracos

Jornal O DIA, página 16, edição do dia 15 de fevereiro de 1996

Na esquina, o presidente do bloco estava apreensivo:

– Nossas pessoas precisam encontrar uma solução, senão o bloco não desfila!

O mestre-salas sugeriu:

– E se a gente só desfilasse aqui na rua?

O presidente quase encaçapa o mestre-sala:

– A sua pessoa pirou? Parece até que a minha pessoa tá vendo as baianas caindo na vala,

porque elas ficam tontas sempre que dão aquelas rodadinhas!

Uma velhinha:

– Mas não tem outro jeito, por causa de que a rua onde passa o ônibus tá assim de buracos

abertos pelo Cesar Maia!

O presidente era teimoso:

– Custa alguma coisa driblar os buracos?

O diretor de bateria:

– Não dá, chefia! A bateria vem no meio e não vê por onde está pisando! E se cair num

buraco? A bateria é tão pequena, que cabe todo mundo lá dentro!

Um careca, célere:

– E se a gente desfilasse até a esquina, dobrasse pra outra rua e fizesse o retorno pelo

mesmo caminho?

O presidente do bloco:

– Aqui, ó! A outra rua também está cheia de buracos!

Uma magrinha, a rainha da bateria:

– Eu capitulo e não quero mais ser a rainha da bateria, porque, se cair dentro de um buraco,

qualquer gato que estiver passando no momento vai jogar terrinha em cima de mim!

Um careca não perdeu tempo:

– E o gato vai ter toda razão! Afinal, a senhora parece, com todo respeito, titica de gato!

O presidente do bloco, injuriado:

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

141

– Um de cada vez, pombas! E vamos parar com essa baixaria! A rainha da bateria merece

todo respeito!

O careca pediu desculpas à magrinha e lembrou:

– Vamos voltar a discutir o itinerário do bloco!

O presidente, enumerando nos dedos:

– Na pessoa da rua onde passa o ônibus não dá, na outra rua paralela a esta também não,

naquela outra que tem o nosso bar também não dá, por causa de que a prefeitura abriu uma

porrada de buracos lá!

E decidiu, autoritário:

– Esse ano a pessoa do bloco não sai, por causa dos buracos do Cesar Maia!

E não vai sair mesmo.

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

142

ANEXO XXXIV

Avesso da Vida

Título: O figurinista fresco

Jornal O DIA, página 27, edição do dia 28 de abril de 1996

O figurinista do bloco, tão logo chegou ao velório do seu Ramalhagem, foi ao caixão, deu

uma olhada e teve a maior crise de frescura:

– Cruzes, que horror!

A viúva, de olhos arregalados:

– O que foi? Ele se mexeu, por acaso?

O figurinista, com a mão no peito:

– Antes fosse, poderosa!

Um negão, presidente do bloco e irritado pra dedéu:

– Então, que a sua pessoa diga logo do que se trata, pombas!

O figurinista do bloco, apontando o extinto:

– A gravata! Não combina com o terno, não combina, não combina!

Um careca, realista:

– Ora, e daí? Nunca vi defunto ter que se embonecar todo para ser plantado!

O figurinista do bloco, soltando a mão:

– Ah, é? Pois fiquem sabendo que ele deve estar morrendo de vergonha por estar tão mal

vestido assim!

O coro:

– Mas ele já está morto!

O figurinista, sacando uma fita métrica do bolso:

– Mero detalhe. Vou tirar as medidas dele e confeccionar uma roupa decente, para que ele

chegue lá em cima sem pagar mico!

Um parente do defunto:

– Acho bom que não! Se se meter a besta de fantasiar o Ramalhagem de Conde, como se

ele fosse desfilar em alguma passarela, eu não respondo por mim!

O figurinista:

– Conde nada, meu bem! Eu pensei num v, um...

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

143

Uma velhinha, em pânico:

– Minha Nossa Senhora da Penha! O figurinista do nosso bloco quer que o seu

Ramalhagem seja enterrado com uma roupa de bicha!

A viúva, para o figurinista:

– Pode ir tirando o cavalinho da chuva, porque o meu ex-marido vai vestido como está!

O negão, para o figurinista:

– E como presidente do bloco, declaro que a sua pessoa está demitida do cargo, por causa

de que está tumultuando o velório de um ex-benemérito!

O figurinista pegou pesado:

– Que se dane! Pobre é uma m...

Não completou porque o pessoal caiu dentro dele e o infeliz foi parar no Carlos Chagas,

onde está insistindo com os médicos para botarem cortinas rosas nas janelas da enfermaria.

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

144

ANEXO XXXV

Avesso da Vida

Título: As vítimas da bomba

Jornal O DIA, página 24, edição do dia 7 de julho de 1996

O bar estava assim de gente maltratando o fígado, tudo de copo na mão e falando besteira,

quando uma cabeça-de-negro explodiu na rua, bem na porta do estabelecimento. Foi um

deus-nos-acuda. Uma velhinha caiu sentada com o susto, um gordão jogou o copo pro alto,

um baixinho se engasgou com a cerveja, um magricela se agarrou ao balcão para não cair e

uma magrinha, lívida como um cadáver, confessou, de olhos arregalados:

– Me borrei toda! O desgraçado que soltou essa bomba não tem mãe!

Um negão saiu do mictório e mostrou as calças molhadas:

– Justo na hora que a minha pessoa estava com o chafariz ligado! Na hora tremi todo e

vejam só o estado que a minha pessoa ficou!

A velhinha, já em pé e refeita do susto, estava injuriada:

– Quase botei o bloco na rua, por causa do susto, caramba!

O português, desolado com o prejuízo:

– Estava com uma bandeja com cinco copos e todos se quebraram na hora do susto, porque

eu joguei tudo pro alto!

O gordão, se sacudindo todo:

– Chega de abobrinhas, pombas! O que nós temos que fazer é procurar o irresponsável que

soltou esse troço!

A velhinha se lembrou:

– E se foi coisa de traficante? Traficante é que tem essa mania de estourar bomba!

O negão, lamentando as calças molhadas:

– Minha pessoa nem taí pra quem foi! A pessoa do cara que soltou essa cabeça-de-negro

merece mesmo umas porradas!

Um velhinho, cauteloso:

– Eu tô fora! Meu coração agüentou esse tranco, mas não sei se está com quilometragem

pra encarar uma briga!

O baixinho que tinha se engasgado com a cerveja:

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

145

– Não interessa! Vamos dar um corretivo nesse filho da mãe!

E saiu todo mundo do bar à procura do autor da gracinha. Deram com um cara deste

tamanho, já preparando outra bomba, mas encararam:

– Por que não vai soltar bomba na casa da sua mãe?

O sujeito não gostou e encarou todo mundo, arriando uns oito, que foram parar no hospital.

No boletim de ocorrências, o registro: vítimas de bomba junina.

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

146

Anexo XXXVI

Avesso da Vida

Título: Olha a contra-indicação!

Jornal O DIA, página 7, edição do dia 12 de abril de 2002

O camelô, um magricela, gritava que tinha remédio pra tudo:

– Garrafada pra acabar com a impotência! Garrafada pra abaixar o colesterol!

Creme pra fazer nascer cabelo! Pomada pra calo! Pó pra...

Foi interrompido por um careca, alto e mal-encarado:

– Esse creme pra fazer nascer cabelo é jóia, ou o senhor tá só jogando pra platéia?

– O que é isso, meu camarada? Sou um cientista de valor! Fique sabendo que

no Carnaval vou ser enredo do bloco da rua!

O careca ficou muito impressionado:

– É que meus cabelos estão caindo loucamente! Pra falar a verdade, estão se atirando da

minha cabeça!

O ambulante era um baita artista:

– Pois fique sabendo que com o meu creme seus cabelos vão parar de cair! E os que caíram

vão retornar à sua cabeça amargamente arrependidos!

Um gordão já ficou logo interessado:

– Esse seu creme faz nascer cabelo só na cabeça ou atua em outras áreas?

Uma magrinha respondeu pelo camelô:

– O creme dele faz nascer cabelo em tudo que é lugar! Nas axilas, no peito e mais num

monte de lugares! Perguntou por quê?

O gordão abriu a camisa:

– É que meu peito é lisinho e eu fico morrendo de vergonha quando tiro a camisa! Minha

patroa sempre reclama e diz que eu vim com defeito de fábrica!

O tal careca enorme deu um soco na bancada do magricela:

– O freguês da vez sou eu, pombas!

O ambulante se apavorou e não perdeu tempo:

– Perdão por eu estar perdendo tempo com esses muquiranas, excelência! Já se decidiu, ou

quer mais detalhes?

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

147

O homem queria saber muito mais:

– Como esse troço atua? Leva muito tempo? É que não agüento mais ser careca!

Quero recuperar meus cabelos e voltar a fazer jus ao meu apelido de Cabeleira.

O magricela exagerou:

– Em dois dias seus cabelos chegarão aos pés! É tão poderoso, que o senhor terá que ir ao

barbeiro três vezes por semana! Quantos potes vai levar?

O homem deu a carteirada:

– Dois! E vou levar você também, porque sou o delegado de polícia daqui da área! Você só

vai sair do xadrez quando meus cabelos nascerem!

Pelo visto, o camelô pegou prisão perpétua.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

148

Anexo XXXVII

Avesso da Vida

Título: A Vergonha

Jornal O DIA, página 6, edição do dia 5 de fevereiro de 1994

O delegado estava posto em sossego, quando uma multidão invadiu a sala dele, aos berros:

- Urge que sejam tomadas sérias providências, para que tais fatos não se repitam!

O doutor jogou tudo pro alto por causa do susto, deu um soco na mesa e berrou:

- um de cada vez, pombas! E que negócio é esse de invadirem a minha sala assim sem mais

nem menos?

Um gordão levantou o dedo:

- Mil perdões, meretríssimo! É que aconteceu uma coisa muita chata e que só uma

autoridade como o senhor pode resolver!

O delegado, que e não era meritíssimo - e muito menos meretríssimo - deu outro soco na

mesa:

- Mais uma dessa e boto todo mundo no xadrez!

Um negão:

- Perdoe a pessoa do gordão aqui, doutor, mas se alguém tem que ir pro xadrez, esse

alguém é a pessoa do baixinho aqui!

O delegado quis saber:

- E por que?

Uma magrinha:

- Por causa de que ele disse que era costureiro, pegou nossos figurinos, levou grana

adiantada e até agora não entregou as fantasias!

O delegado, para o acusado:

- Mas o senhor, hein?

Desse tamaninho e já fazendo sacanagem com os outros!

O baixinho:

- Eu precisava levantar uma grana, doutor! Sabe como é, o Carnaval está aí mesmo e a

gente tem que se forrar!

A magrinha:

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

149

– E a minha fantasia até que não ia dar trabalho, por causa de que era só um biquinizinho de

nada!

O delegado não se conteve:

- Se a senhora saísse sem nada ninguém ia notar, pombas!

O negão:

- Pô, doutor, respeita a pessoa da madrinha da nossa bateria nota dez!

O gordão:

- A minha ia dar mais trabalho porque eu sou o mestre-sala e...

O delegado arregalou os olhos:

Mestre sala gordo desse jeito? Mas que diabo de bloco é esse?

O baixinho não perdeu tempo:

- Eu não tinha que aproveitar, doutor?

O delegado não achava:

- Calado! E já pro xadrez!

Depois, chamou os queixosos:

- Se vocês desfilarem, não digam que são da minha jurisdição! Ia pegar mal pra minha

delegacia pra caramba!

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

150

Anexo XXXVIII

Avesso da Vida

Título: A grande eleição

Jornal O DIA, página 17, edição do dia 16 de janeiro de 1997

A esquina pegava fogo por causa da eleição para presidente do bloco. Um negão, trepado

num caixotinho, prometia:

– Se a minha pessoa for eleita o bloco sai do grupo 65 e vai pro 19 em menos de vinte anos!

Uma magrinha comentou com uma baixinha:

– O seu Nicaronézio tá falando sozinho, por causa de que vou votar no Apolonério Regino,

que tem uma plataforma que é uma gracinha!

A baixinha arregalou os olhos:

– Cruzes! Se ele for eleito vai querer ser presidente, madrinha da bateria, baiana e porta-

bandeira!

Uma velhinha ouviu:

– Sem falar que vai passar a mão em tudo que é homem na hora do desfile, desfalecer se

alguém atravessar o samba e outros bichos!

A magrinha abriu os braços:

– Mas ele prometeu mudar as cores do bloco de preto e branco pra rosa e azul!

Um baixinho meteu o dedo na cara da magrinha:

– Comporte-se, minha senhora! Estamos vivendo um momento cívico e não podemos

pensar em sacanagem! Votemos no seu Cabrubraldo, dono da quitanda, que já garantiu o

lugar de madrinha da bateria pra uma criatura da minha mais alta estima!

O negão desceu do caixotinho injuriado:

– Se as suas pessoas pensam que a minha pessoa vai ficar falando sozinha podem ir tirando

o cavalinho da chuva! Que cochicho é esse na hora do meu improviso?

O pessoal ia capitular e prometer o voto ao negão, mas um gordão chegou e se meteu no

rolo:

– Com todo respeito, seu Nicaronézio, a minha candidatura faz mais sentido, porque na

minha gestão ninguém mais vai precisar de pegar trem pra desfilar naquele fim de mundo,

porque vai tudo na minha Kombi!

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

151

O negão se encrespou:

– A pessoa de um quitandeiro, a pessoa de um viado e agora a pessoa de um emergente?

Não vou mais responder pela minha pessoa!

E nem precisou, porque foi eleito por unânimidade, numa votação vap-vup.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

152

ANEXO XXXIX

Avesso da Vida

Título: A eleita

Jornal O DIA, página 8, edição do dia 27 de janeiro de 2001

A sogra do Gorovenildo pediu a palavra na reunião do bloco:

– Este ano não quero sair na ala das baianas!

O genro emendou:

– Bela decisão, minha cara senhora! Tem hora em que a idade pesa!

A velha:

– Velha é sua mãe! Eu falei que não quero mais sair na ala das baianas porque vou ser

candidata a madrinha da bateria!

O presidente do bloco, um magricela:

– Mas a senhora, com todo respeito, tem idade pra ser madrinha da madrinha!

A mulher do Gorovenildo:

– Minha mãe ainda é novinha! E ainda tá com tudo no lugar!

Gorovenildo riu:

– Claro! O remédio pro reumatismo tá no armário, o xarope tá na bolsa e o cartão do INSS

tá na gaveta! Tudo nos devidos lugares!

O mestre-sala tentou:

– A senhora não prefere ser porta-bandeira ? É só fazer tudo o que eu mandar!

Ela não topou:

– É ruim! O senhor faz um monte de presepadas e eu odeio passar vergonha em público!

Quero dizer no pé, mas na frente da bateria, com os peitos de fora!

Gorovenildo quase caiu:

– Pirou? Periga o Juizado de Menores prender a senhora no desfile!

A velha adorou:

– Por quê? Tenho cara de menor?

Gorovenildo, injuriado:

– A senhora pode ser presa por atentado ao pudor e por assustar as criancinhas que vão ver

o desfile!

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

153

O presidente do bloco:

– Pensa que é assim, madame? Esqueceu que quem escolhe a madrinha da bateria é sempre

o nosso benemérito, o português da quitanda?

O luso estava presente, com seu bigodão e tudo:

– Até que enfim se lembraram da minha modesta presença! Não conhecem a Constituição?

Gorovenildo, todo preocupado, perguntou:

– O que o senhor quer dizer com isso?

O homem surpreendeu:

– A cachopa tá aprovada e não se fala mais nisso!

O presidente também bateu o martelo e o Gorovenildo se convenceu de que a sogra dele

sabe fazer campanha como ninguém.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

154

ANEXO XXXX

Avesso da Vida

Título: A macumba para espantar os ladrões

Jornal O DIA, página 25, edição do dia 22 de outubro de 2000

Elisfrênio reuniu os vizinhos:

– Vou arriar um despacho da maior responsabilidade e preciso da ajuda de vocês!

Uma magrinha foi a primeira a aderir:

– Posso pegar carona nessa macumba e pedir um homem pra mim?

Um careca ignorou a magrinha:

– Tá com a receita do pai-de-santo?

Elisfrênio, célere:

– Com certeza! Fica frio que eu já comprei tudo e só tô esperando dar meia-noite pra gente

ir até a encruzilhada e mandar ver!

Um velhinho, desconfiado:

– É pra quebrar as perninhas de alguém? Se é, tô fora!

Elisfrênio teve que se explicar:

– É que dá muito assalto aqui na rua e só macumba resolve! Experimenta ligar pra polícia

pra ver só o tempão que ela vai demorar!

E o pessoal se mandou para a esquina, tendo o Elisfrênio à frente:

– Todo mundo pensando em mãe, em padre, essas coisas! Nada de safadezas na cabeça,

senão o feitiço vira contra o feiticeiro!

Elisfrênio nomeou a magrinha:

– A senhora foi escolhida pra ser a instrumentadora! Eu vou pedindo e a senhora vai me

passando as coisas, assim feito, operação!

E começou:

– As velas!

A magrinha entregou:

– Pronto, doutor!

Lá pelas tantas, diante de todos os vizinhos, Elisfrênio pediu:

– Agora, dona Piranhelda, passa a galinha!

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

155

A magrinha toda enrolada:

– É ruim! Não tô achando porcaria nenhuma de galinha aqui na bolsa! Só tem um pacotinho

de caldo de galinha!

Elisfrênio, concentrado:

– E a senhora pensa que meu dinheiro é capim pra eu comprar uma galinha inteira? É só o

caldo mesmo!

Um magricela ficou injuriado:

– O santo vai ficar tiririca da vida e jogar a maior praga em cima da gente por causa dessa

sua mão de vaca!

Naquele momento, chegaram os cinco assaltantes:

– Que bom encontrar a comunidade reunida! Vão passando a grana!

Depois do assalto, os vizinhos quase lincharam o Elisfrênio porque acharam que o assalto

foi por culpa daquele negócio de ele querer engabelar o santo.

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

156

ANEXO XXXXI

Avesso da Vida

Título: O despacho

Jornal O DIA, página 9, edição do dia 7 de setembro de 2001

Auristênio chegou cabisbaixo ao bar e chamou a atenção de um careca:

– O que foi, rapaz? Algum problema?

Auristênio exagerou:

– Um milhão de problemas! Briguei com a patroa e a minha sogra assim que acordei e fui

tomar café!

Um gordinho riu:

– E isso é problema? Faz parte do cotidiano, homem! Se eu fosse me preocupar com uma

coisinha dessas, não sairia da fila do posto de saúde!

Auristênio deu de enumerar os problemas:

– Mas e pisar em cocô de cachorro? E vir aquela bicicleta e tirar um fino de você? E

descobrir que o mês ainda tá começando e o dinheiro tá no fim? E...

O coro do pessoal:

– Pára! – o grito assustou o Auristênio:

– Mas isso tudo aí aconteceu comigo hoje! E olhem que ainda são 9 horas da manhã!

Um baixinho não teve dúvidas e mandou a real:

– Urucubaca! Já experimentou tomar um banho de arruda-macho com sal grosso? Diz a

lenda que é um ótimo descarrego!

Auristênio, desolado:

– Fui comprar o sal grosso e quase me prenderam no supermercado, porque esqueci de

levar o dinheiro para pagar no caixa!

Uma magrinha isolou,batendo três vezes no balcão:

– Credo! E eu, preocupada porque fui atropelada na outra esquina, perdi o emprego e

troquei de mal com a minha madrinha!

O baixinho gozador pediu a palavra:

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE …posciencialit-letras-ufrj-br.umbler.net/images/Posciencialit/td/... · A segunda diz respeito à diferença entre a forma em que

157

– Realmente, o caso do colega é muito mais grave! E eu, como vizinho do primo de uma

senhora que namora um carteiro que entrega cartas numa rua onde mora um pai-de-santo,

vou resolver o problema!

Só faltou o Auristênio pedir a bênção ao baixinho:

– Jura? Fala, meu pai!

O baixinho, cheio de moral, aconselhou:

– Anota aí: uma garrafa de cachaça, um alguidar dos grandes, farinha, óleo de dendê, cinco

pacotes de velas e uma galinha preta! Mas tem que arriar tudo agora de manhã! E, como

seu caso parece mais uma guerra, você vai ter que fazer o despacho em frente ao antigo

Ministério da Guerra, ali na Avenida Presidente Vargas, haja o que houver!

Depois de anotar tudo num papel é que o Auristênio caiu na real:

– Opa! Pera lá! Agora? Na Presidente Vargas? Na hora da parada militar, seu filho da mãe?

Para piorar as coisas, o Auristênio está no xadrez da delegacia pela surra que deu no

baixinho.