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i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA ANTONIA CAITLIN WALFORD Rio de Janeiro. 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA

ANTONIA CAITLIN WALFORD

Rio de Janeiro. 2008

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Antonia Caitlin Walford

Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social do Museu Nacional da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, orientada pelo Prof.

Dr. Eduardo Viveiros de Castro.

Rio de Janeiro. 2008

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Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA

Antonia Caitlin Walford

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.

Aprovada por:

________________________________________

Prof. Eduardo Viveiros de Castro (Orientador)

_______________________________________

Prof. Marcio Goldman

_______________________________________

Profa. Tania Stolze Lima

_______________________________________

Profa. Aparecida Vilaça

_______________________________________

Prof. Guilherme José da Silva e Sá

Rio de Janeiro. 2008

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WALFORD, Antonia Caitlin

Cumplicidade Científica e Etnográfica: Explorando o LBA / Antonia

Caitlin Walford. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2008.

266 pp.; viii pp.

Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, 2008.

1. Ciência 2. Tecnologia 3. Natureza 4. Amazônia. I Viveiros de

Castro, Eduardo. II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu

Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III

Título.

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RESUMO

Esta dissertação trata do Experimento Biosfera-Atmosfera de Grande-Escala na Amazônia

(Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia, LBA), um projeto científico

internacional e multidisciplinar que tem como meta a avaliação do papel da floresta

amazônica no ciclo global de carbono. Descrevendo três situações etnográficas – o LBA

como apresentado no website e como observado em seus escritórios centrais; a modelagem

climática; uma expedição para uma área de pesquisa próxima a São Gabriel da Cachoeira

(Amazonas) – esta dissertação investiga a maneira pela qual o conhecimento é organizado e

as maneiras pelas quais o mundo pode ser "representado". Sugere-se que há uma

"cumplicidade", no sentido de uma colusão para criar algo paradoxal ou impensável, nas

relacões evocadas entre os pesquisadores científicos e seus objetos de estudo, assim como

entre a antropóloga e os objetos dela. "Humor" e "incerteza" são propostos como aspetos

cruciais da análise antropológica, investigando o papel da analogia como um modo de fazer

sentido do material etnográfico e acautelando contra a assimilação fácil do que é

desconhecido ou diferente naquilo que é esperado e similar (o que é tomado como

"exploração"). Sugere-se que é nessas dissonâncias e diferenciações que reside a antropologia.

Palavras-chave: Ciência; Tecnologia; Natureza; Amazônia; Modelagem Climática.

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ABSTRACT

This dissertation is about the Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia

(LBA), an international multi-disciplinary scientific endeavour aimed at assessing the role of

the Amazon forest in the global carbon cycle. Taking three ethnographic situations - the LBA

as presented on the LBA website and as observed in the central LBA offices, climatic

modeling, and an expedition to a research site near São Gabriel de Cachoeira (Amazonas) - it

explores the way in which knowledge is organized, and the ways in which the world can be

‘represented’. It suggests that there is a “complicity”, in the sense of a collusion to create

something paradoxical or unthinkable, to the relations elicited between the scientific

researchers and their object of study, and the anthropologist and theirs. It proposes ‘humour’

and ‘uncertainty’ as crucial aspects of anthropological analysis, and explores the role of

analogy as a way of making sense of ethnographic material, cautioning against the easy

assimilation of what is unknown or different into what is expected and similar (which is taken

as “exploitation”), and suggesting that it is in this dissonance and differentiation that

anthropology resides.

Key-words: Science; Technology; Nature; Amazon; Climatic Modeling

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SUMÁRIO

Agradecimentos viii

Introdução 1

Capítulo 1 – O LBA 7

A História de Tota 7

Organizando Conhecimento: O Website do LBA 13

Organizando o Conhecimento: Os Escritórios do LBA 24

Movimento como Metáfora 44

Capítulo 2 – Modelagem Climática 85

Modelagem Global e Uma Maneira de Driblar o Caos 85

Modelagem Regional e Quanto Real 107

“Here Be Dragons” 132

Capítulo 3 – Projeto Fronteiras, São Gabriel de Cachoeira 157

Área de Pesquisa, São Gabriel de Cachoeira 157

Uma ANT Deslocalizante 161

Os Micrometeorologistas e o Real Real Real 179

Cíclos Biogeoquímicos, Fisiologia das Plantas e Tudo Muda em Campo 202

A Perder de Vista? 232

Bibliografia 261

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Agradecimentos

Eu queria agradecer CNPq, que me deu uma bolsa por 24 meses, a o Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ, pela oportunidade de estudar la.

Agradeço Carla e Isabel na Biblioteca, Tânia e Bete na Secretaria, Carmen e Fabiano no

Xerox, e Roberto e Miguel na restaurante.

Agradeço os professores do PPGAS, Eduardo Viveiros de Castro, Marcio Goldman,

Aparecida Vilaça, Carlos Fausto, Giralda Seyferth, Lygia Sigaud and Federico Neiburg;

também Tania Stolze Lima, na UFF. Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman estão

influências especialmente fortes no meu trababalho, e queria agradecer Eduardo Viveiros de

Castro pela otima orientação que ele me deu.

Agradeço todos os participantes do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e

Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi), organizado por Eduardo Viveiros de Castro e

Marcio Goldman. Agradeço as “Marylinianas”, Luciana França, Ana Carneiro, Paula Siqueira

and Marina Vanzolini, por todas nossas conversas. Também quero agradecer todas minhas

colegas- Beth Albernaz, Bruno Marques, Indira Nahomi, Bianca Arruda, Caco Xavier,

Fernanda Chinelli, Gabriel Banaggia, Isabel Ferreira, Laura Lowenkron, Nina Paiva Almeida

e Eduardo Dullo. Eu especialmente agradeço os meus amigos Julia Sauma, Jack Shepherd,

Indira Nahomi, Bruno Marques, Luciana França, Andrea Lacombe, Salvador Schavelzon,

Virna Plastino, Nicolas Viotti, Bea Matos, Edgar Bolivar, Eduardo Dullo, Leonardo Campoy,

Vitor Grunvald, Anne-Marie Colpron, Laura Lowenkron, Flávio Gordon, Paulo Maia, Gabriel

Banaggia, Fernanda Chinelli e Chico Araujo. Todos eles numa maneira ou outra me ajudaram

e apoiaram durante o meu tempo aqui. Queria agradeçer a minha familia, Anita, Anthony,

Carsten e Francesca. Words fail me.

Eu estou enormamente grata aos todos os membros e pesquisadores do LBA, qu foram

tão abertos e amigáveis comigo. Essa dissertação é testemunho a sua creatividade.

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INTRODUÇÃO

“Não sei bem como formular isso. Mas todos nós temos dúvidas quanto à utilidade de nosso próprio trabalho,

quanto ao público a que ele se dirige; todos nos perguntamos se o que estamos fazendo vale alguma coisa. Na

verdade, acho que a depressão e a dúvida que acompanham qualquer trabalho são realmente criativas, pois

elas nos fazem escutar outras pessoas. Se você é demasiado confiante, se tudo o que você consegue ver é você

mesma, você termina sendo uma barreira, fechada à comunicação. Por isso, ter estado aberta para esse outro

domínio significou que eu estava sempre jogando as certezas antropológicas contra as incertezas feministas ou

viceversa. Isto se tornou realmente importante para mim, porque os dois pólos da teoria antropológica e da

etnografia, estes se consomem mutuamente, eles s eentre-canibalizam. Por isso, um terceiro pólo...” (Marilyn

Strathern, Interview, 1999b)

““Curiouser and curiouser!” cried Alice (she was so much surprised, that for the moment she quite forgot how

to speak good English).” (Lewis Carrol, Alice in Wonderland 1992 [1865])

Em junho, julho e agosto de 2007, passei 9 semanas acompanhando alguns dos

pesquisadores e membros do 'LBA', “The Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in

Amazonia” ou, em português, “O Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na

Amazônia”. Em junho e julho, passei quatro semanas no escritório central do LBA, em

Manaus, e duas semanas em Santarém. Em agosto, fui com a equipe do “Projeto Fronteiras”

do LBA para uma área de pesquisa no Parque Nacional Pico da Neblina, há 67 km de São

Gabriel de Cachoeira.

O LBA é um projeto científico internacional que envolve pesquisadores do mundo

inteiro. Em linhas gerais, foi concebido como um projeto de pesquisa científica internacional

e multidisciplinar para tentar revelar o papel da floresta amazônica no efeito estufa e no ciclo

global de carbono e desenvolver técnicas para a gestão sustentável da região amazônica.

Trata-se de um projeto brasileiro gerido pela INPA1, iniciado em 1998 com o apoio

(financeiro logístico e intelectual) da NASA2 e da Comissão Européia. Em 2005, o contrato

formal entre o LBA e a NASA terminou. Interessei-me pelo LBA quando o meu orientador

me mostrou o website e sugeriu que eu estudasse o LBA para o meu doutorado. Em pesquisa 1 Instituo Nacional de Pesquisas da Amazônia - Brasil 2 National Aeronautics and Space Administration - USA

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preliminar, constatei que o LBA tinha construído torres meteorológicas ao longo de toda a

floresta amazônica para medir o fluxo de moléculas de carbono entre a atmosfera e a

biosfera (a floresta). Nutri certa expectativa com a idéia de subir até a copa das árvores da

floresta amazônica brasileira (que eu nunca tinha visto), atrás dos pesquisadores, enquanto

estes fizessem sua “Big Science” - ciência de alto investimento. Eu tinha visões de bandos de

macacos e papagaios sobrevoando-me. Decidi que eu estudaria o LBA durante o meu

mestrado.

A minha pesquisa é etnográfica. Cheguei no escritório central em Manaus em junho de

2007 e me apresentei ao Dr Flávio Luizão, o representante do INPA no LBA, a quem eu tinha

me apresentado por email anteriormente. Flávio, gentilmente, apresentou-me ao resto dos

pesquisadores e administradores e, depois disso, ele me deixou à vontade. No escritório do

LBA em Santarém, novamente, permitiram-me circular livremente. Todos os dias no

escritório, eu ia para as salas, sentava-me ao lado de um pesquisador ou administrador e

perguntava o que eles estavam fazendo. Gravei digitalmente todas as conversas que pude, fiz

anotações quando eu não podia e tirei uma quantidade enorme de fotografias. Apesar de o

meu tempo com eles ser curto para a realização de um trabalho de campo, enxerguei uma

panóplia de disciplinas científicas, manobras logísticas e processos administrativos. Escalei

cinco torres meteorológicas diferentes carregadas com muitos tipos de equipamento de alta

tecnologia. Com os modeladores climáticos, aprendi sobre a dinâmica de fluidos e o perigo de

ter 'bugs' no seu programa de computador; com os micrometeorologistas, aprendi sobre os

métodos estatísticos de cálculo de fluxo de carbono e sobre o perigo de ter aranhas no seu

equipamento meteorológico. Com o equipe de LBA Sistema de Dados, aprendi sobre a

entropia no armazenamento de dados e fui levada a olhar o supercomputador que, trancado

em uma sala super refrigerada, emitia um zumbido um pouco perturbador. Assisti o

desmantelo de um analisador infra-vermelho de gás e a construção de uma base de dados.

Falei com financiadores, lojistas e secretários, estudantes de mestrado e doutorado, oficiais do

exército e cientistas especialistas. Quando fui com a equipe de pesquisa "Projeto Fronteiras"

para São Gabriel de Cachoeira, acompanhei os pesquisadores no cotidiano do seu trabalho e

dormi numa rede no meio do mato onde fui infestada por carrapatos. Vi apenas três macacos.

Vi o micro do ‘Big Science’.

Isto pode ser chamado de “observação participante”, apesar de eu ter raramente

participado de maneira direta e ser tudo menos uma observadora silenciosa. Minhas

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infindáveis perguntas tornaram-se alvo de piadas entre os pesquisadores. Mas, este ponto é

importante: passei grande parte do tempo confusa quanto à questão de saber se eu

compreendia o que me era pacientemente e repetidamente explicado. Meus métodos

etnográficos, se podem ser chamados assim, eram nada mais do que "seguir os atores", a regra

geral metodológica de Bruno Latour (que, intencionalmente "banal", é muito mais do que

isso). Eu acompanhei os "atores" onde eu pude e procurei entender, insistentemente, o que

estava acontecendo e como acontecia – mas era totalmente consciente da minha falta de

conhecimento na tentativa de fazer isso. Eu percebia que o sentido que eu ia fazer de tudo

aquilo não seria exatamente o mesmo sentido que os pesquisadores fariam, tampouco seria

exatamente o meu sentido próprio. Eu não tinha como me relacionar com os cientistas do

mesmo modo como eles se relacionavam uns com os outros dentro das suas disciplinas - e

esta era a relação fundamental, porque eu estava interessada em compreender sua "cultura da

ciência" (como disse Wagner 1977) não a sua "ciência da cultura". Mas eu comecei a ver que

o próprio fato de eu não estar entendendo talvez pudesse ser o elemento fundamental ou mais

revelador da nossa relação. A minha incerteza é o que abriu o espaço conceitual para eu tentar

entender antropologicamente o que eles estavam fazendo e me dizendo, isto é, para que eu

pudesse imaginar a "cultura" que eles não estavam imaginando para eles mesmos e, ao mesmo

tempo, revelar a "cultura" que sei que eu tenho de maneiras que eu nunca tinha imaginado.

Minha regra geral tornou-se "siga os atores e não pressuponha nada".

Essa regra pode ser complementada pelo fato que, muitas vezes, eu tive que rir de mim

mesma. Eu sempre estava um passo atrás e, mesmo assim, tropecei várias vezes. Isso

também se tornou um leimotif no modo como comecei a pensar meu trabalho de campo.

Tento demonstrar na dissertação que o senso de humor é uma parte crucial da prática

antropológica. Isso não quer dizer que tudo é uma piadae,muito menos, que tudo é uma piada

às custas de uma ou outra pessoa. Humor, em vez de ironia, reside na "perplexidade

compartilhada" (Stengers 2000a [1993]: 66), é uma relação de cumplicidade. Isto é, para

existir uma relação entre pesquisador e seus "nativos" que tenha possibilidade de revelar o

que é importante para eles ou elas, e não apenas aquilo que é importante para si mesmo, há

trabalho a ser completado – para levar o seu nativo a sério, você tem que aprender como levar

você mesmo menos a sério. Senso de humor como um conceito pode ser refratado e usado de

formas diferentes. Exploro na dissertação o uso que Isabelle Stengers propõe para o conceito

de senso de humor em seu trabalho, que está baseado numa distinção Deleuziana. Mas, além

das refrações conceituais, sustento que rir com alguém, e não de alguém, possa ser

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considerado um momento cotidiano, no fundo, totalmente antropológico.

Mencionei a palavra "cumplicidade". Uso a noção de "cumplicidade" no título e no

texto para tentar capturar o senso de uma engrenagem comunicativa mútua que pode produzir

alianças e conceitos estranhos, aparentemente paradoxais ou "impensáveis". Como observa

Viveiros de Castro "(“parafraseando” Rudolf Pannwitz via Benjamin) ... ... uma boa

tradução...é uma que permite que os conceitos alienígenas deformem e subvertam a caixa de

ferramentas conceitual do tradutor de modo que a intenção da língua original possa ser

expressa na língua nova"(2004: 5 tradução minha). Os "monstros" que permeiam o meu texto

- como cyborgs e fractais – são, aqui, a prole desse tipo de tradução antropológica – e eles

também são noções científicas e matemáticas. Um processo de “tradução” nesse sentido nem

sempre produz aberrações evidentes; pensando na maneira que os dados do LBA circulam

incessantemente, eu faço uso dessa idéia como metáfora para propulsar o meu texto. Não é

uma metáfora que os pesquisadores do LBA utilizariam, mas em certo sentido, pertence a

eles, e eu a utilizo para estender a minha compreensão a respeito deles. Tradução, no entanto,

pode facilmente ser utilizada para outros fins - quando "traduzir" significa "reduzir para o

mesmo", eu sugiro que "exploração" e não “cumplicidade” estão ocorrendo. Isso é algo que o

título da minha dissertação procura demarcar. A analogia que eu crio no título - entre

cumplicidade "científica" e "etnográfica" - pode facilmente tornar-se uma exploração, a não

ser que nunca se presuma que qualquer cumplicidade que procuro revelar seja

necessariamente indicativa de semelhança. Esse é o eixo substrato da minha dissertação,

moldado em formas convolutas pelo fato de que eu sou uma antropóloga estudando cientistas.

Eu aprendi a tomar cuidado com os sinônimos óbvios: “Here be Dragons”3.

Para explicar um pouco mais – como deve ser aparente, eu não sou brasileira e estava

morando aqui há somente três anos. Eu sou britânica e a minha formação acadêmica é

genética, estudos em evolução humana e ecologia humana. Antes de chegar no Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional, UFRJ, eu não sabia da existência

da antropologia da ciência. Depois, eu percebi que as dúvidas amorfas que senti quando

estudava genética na formação poderiam ser o começo de alguma coisa interessante. Estudar

antropologia tem sido (e continua ser) uma revelação para mim, em vários sentidos. Se esta

dissertação, às vezes, parece ingênua, ao atribuir novidade a ou ficando entusiasmada com

3 “Here be Dragons” é uma frase usada pelos cartógrafos para indicar áreas não-exploradas ou perigosas.

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idéias que já são antigas para alguns leitores, pode ser por isso. Mas o entusiasmo talvez seja

sempre melhor do que o cinismo justamente porque permite que idéias velhas sejam

repensadas – para prolongar nossa herança de maneiras novas e inventivas, como poderia ter

colocado Stengers.

Esta dissertação é o primeiro resultado desse recomeço. Se é interessante ou não, é

algo a ser conferido. É uma dissertação que poderia ser provavelmente classificada como um

trabalho de STS (estudos de ciência e tecnologia) porque toma como foco um projeto

cientifico. No entanto, explora pouco do cânone de literatura do STS. Tentando pensar o meu

trabalho de campo com o LBA, recorri, principalmente, aos quatro autores que me parecem

oferecer algumas das maneiras mais interessantes e cativantes de pensar sobre o que nós

fazemos como antropólogos que estudam ciência e o que a ciência poderia ser. Estes quatro

autores - Roy Wagner, Bruno Latour, Marilyn Strathern e Isabelle Stengers - foram também

os quatro autores que ocuparam um lugar mais visível nos meus estudos anteriores ao trabalho

de campo. Esta dissertação, portanto, também é uma tentativa de galvanizar o que eu aprendi

usando minha etnografia. Esses quatros não são os únicos que eu uso; notavelmente, ao longo

da dissertação eu dialogo com Martin Holbraad e, especificamente, com um desafio que ele

recentemente colocou ao Latour. Não tenho dúvidas que que não consegui explorar

plenamente a complexidade do trabalho do Holbraad. Tornou-se claro para mim que é fácil

imitar as idéias de alguém, mas muito mais difícil é realmente colocá-las em ação no próprio

trabalho. O modo como fiz isso eu chamaria, novamente, de uma espécie de cumplicidade.

No primeiro capítulo, eu tento explicar o que o LBA "é" como uma totalidade.

Examino a maneira como o LBA parece organizar seu conhecimento da Amazônia e a

maneira que eu, como antropóloga, organizo meu conhecimento do LBA. O LBA como

apresentado no website e o LBA como eu o descrevo e o experencio etnograficamente

parecem em contradição de modo vertiginoso. Como melhor descrevê-lo? O que fazer com

todas essas partes diferentes e como relacioná-las a uma descrição holística? A justaposição

de todos esses pontos de vista revela que as metáforas elas mesmas de “pontos de vista” e

“partes e todos” são dispositivos conceituais insuficientes. Sugiro que uma metáfora melhor

poderia ser localizada na maneira pela qual os dados do LBA está em movimento irreduzível

e constante. Isso também oferece uma maneira para propulsar toda a dissertação.

No segundo capitulo, eu me desloco em direção ao trabalho dos modeladores

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climáticos do LBA, nos seus escritórios em Manaus. O que eles estão fazendo e como? A

dificuldade que eu encontro ao tentar entender o que eles estão fazendo me faz propor que eu

não posso tomar como dado que quando falamos nos mesmos termos estamos falando do

mesmo modo. Essa percepção, uma vez reconhecida, parece banal, mas reconhecê-la é

crucial.A partir disso, eu começo a repensar o problema de o que fazer com uma antropologia

“anti-representacional” quando os seus nativos falam em “representação”.

No terceiro capítulo, eu passo para a expedição Projeto Fronteiras, que eu acompanhei

na área de pesquisa e na torre perto de São Gabriel de Cachoeira. Eu exploro o trabalho e a

pesquisa realizados pelos micrometeorologistas, fisiologistas de plantas e pesquisadores em

ciclos biogeoquímicos. Tento explorar de que maneiras eu posso entender o que os

pesquisadores estão fazendo lá e o que pode significar pensar numa maneira unificada que

retém a diferenciação que as suas praticas traçam. Exploro suas relações com o mundo que

eles estão tentando representar e, ao fazer isso, questiono novamente o que pode significar

“representar” e “o mundo”. Incerteza emerge em lugares inesperados. Em todos os três

capítulos, tento implicitamente e explicitamente sugerir analogias entre o trabalho dos autores

que eu descrevo, a pesquisa dos membros do LBA, e a antropologia na qual estou

trabalhando. São para essas analogias e para a própria noção de analogia mesma como um

movimento de significação que eu me dirijo no capítulo final.

Aprendi muito durante o meu trabalho de campo e lamento não ter sido capaz de

incluí-lo ainda mais na dissertação. Houve muitos pesquisadores e administradores que

sentaram comigo por horas, falando de maneira fascinante sobre o que eles fazem e, se eu

pudesse, gostaria de inclui-los todos. O fato de eu não ter sido capaz é um sinal da minha

própria incapacidade e não um reflexo daqueles que eu não incluí. Portanto, espero que

fiquem claras as razões para minha seleção etnográfica. Não pretendo explicar tanto alguma

coisa como tentar interessar ao leitor tanto quanto os pesquisadores com quem eu passei meu

trabalho de campo interessaram a mim...“curiouser and curiouser”.

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CAPÍTULO 1: O LBA

A história de Tota4

“Aí você vai entender mais ou menos porque que é a... qual é a hipótese, qual é a lógica que a

gente... porque que a gente fez o trabalho.

Então, a principal motivação do trabalho é a seguinte: até um tempo, na década de noventa,

oitenta e noventa, mais ou menos...depois que detectaram a subida de CO2 na atmosfera (...) a

primeira vez que realmente foi reconhecido que as florestas têm um papel importante nesse

aumento de CO2 também. Não somente a queima de combustível fóssil, mas também a

biosfera tem um papel muito importante. E aí uma maneira de você separar o quanto... o

aumento do CO2 atmosférico é você medir na biosfera, né. Quanto a biosfera tá trocando com

a atmosfera. Aí você separa o efeito antropogênico do homem na queima de combustíveis

fósseis e vê o metabolismo dela, como ela troca com a atmosfera.

Quando o ar passa sobre uma área rugosa, como árvores, essa irregularidade da superfície no

topo das árvores provoca turbulência, movimentos circulares de ar, né. Então. Esses

movimentos (...) eles podem entrar, trazer CO2 de dentro da floresta e levar pra cima, e trazer

de cima e levar pra dentro também (...) Então. Primeiro a coisa mecânica, o movimento do ar,

né? As trocas acontecem na atmosfera de forma mecânica, ou seja, provocadas pelo vento né?

(...) Então o quê que acontece? O CO2 baixo lá em cima entra na floresta e o CO2 rico é

jogado pra cima. Então existe uma mistura turbulenta provocada pelo vento.

Só que tem o papel biológico, qual é o papel biológico? Tem a fotossíntese e tem a respiração,

biologicamente falando (...) A fotossíntese atua com a luz, ela acontece durante o dia. Então

durante o dia os estomatozinhos5 das folhas abrem, entra CO2, sai a água, entra a luz e ali ela

produz o alimento e o açúcar dela. Então. Onde ela vai aumentar a grossura da árvore e

acumular CO2. Então biologicamente a função da floresta ela é aumentar de tamanho, ela vai

4 O extrato aqui é tirado duma conversa eu tive com Julio Tota, um pesquísador do LBA. Eu editei a conversa

para evitar repetição, mas fiz todo esforço sempre para manter o senso original. 5 “Estomatas” são pequenos buracos encontrados nas folhas que permitem a entrada de CO2 e a saida de H2O.

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crescer.

Então, esse é o... um padrão típico de... de... comportamento biológico né6. Então. Aqui é a

hora do dia, aqui é a concentração de CO2 nas florestas aqui da Amazônia. Então. Durante a

noite você tem um acúmulo de CO2, e durante o dia cai, abaixa bastante, e depois começa a

aumentar até começar a outra noite. Então. O metabolismo vegetal aqui na Amazônia

funciona assim: durante o dia o papel fundamental da fotossíntese em aproveitar o CO2

disponível no ar e produzir o alimento dela, certo. E depois aumentar a estrutura dela, da

vegetação, aumentar os troncos, os galhos, isso tudo. E à noite ela respira. Não só ela mas

também o solo. Então 70% do que é jogado de concentração de CO2 vem do solo também. Do

metabolismo do solo, microorganismos que decompõem as matérias mortas, essas coisas

todas, folhas.

6 Ver Figura 1

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Figura 1: Grafico que Julio Tota usou para me demonstrar o ciclo diurnal de CO2.

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Mas porque carbono especificamente?

O carbono porque ele é o gás principal no mercado. Apesar de ter quantidades muito

pequenas na atmosfera ele tem um efeito muito grande como um gás de efeito estufa (...) O

CFC tem um efeito direto no ozônio. Então. Ele quebra as moléculas de ozônio. Sem o ozônio

não haveria vida aqui na Terra. O CFC na época... descobriram uns buracos no ozônio né, e

vai tentar explicar porque que causava. E verificaram que era o aumento desse CFC. É

clorofluorcarbono. Mas é pequeníssima quantidade, ele não interage como efeito estufa, ele

interage mais destruindo as moléculas de ozônio, tá...

Então. A primeira coisa foi que foi detectado que depois da revolução industrial, que era

duzentos e oitenta partes por milhões por volume, hoje em dia tem trezentos e oitenta.

Aumentou 50%. Qual é o efeito direto? Se você plotar, se você visualizar, o aumento de

temperatura global está intimamente relacionado com o aumento de CO2 na atmosfera. Pode

ser um efeito disso, e do aquecimento global, que realmente é o aumento da concentração de

CO2. É quase que comprovado isso. Tem evidências muito fortes de que isso está

relacionado.

Então, para CO2 a importância foi que com o aumento de CO2 na atmosfera, o aumento de

temperatura global, o aquecimento global, estão relacionados, por isso que foram feitas

medidas no mundo inteiro, né. Aí a motivação de colocar torres7 no mundo inteiro, nos

principais biomas. É ver como é que esses biomas funcionam com a atmosfera em troca de

CO2, porque o CO2 parece ser o causador principal do aumento de temperatura. As duas

curvas são muito parecidas. Aumento de temperatura global, aquecimento global, e aumento

de CO2 na atmosfera. Pra não botar a culpa na biologia, ou seja, os ecossistemas, você tem

que separar emissão do homem com combustíveis fósseis e trocas da biosfera, pra isso que as

torres funcionam, pra cada bioma você ver como os biomas funcionam com a atmosfera, e

separar os dois termos né.

Bom, a primeira hipótese é a seguinte: (o mundo pode ser separdao em biomas)... no

7 Medidas do fluxo de carbono entre a atmosfera e a biosfera são feitas usando equipamento afixado em torres

meteorológicos montados ao longo da floresta Amazônica

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hemisfério norte (...) as florestas têm uma sazonalidade muito forte. As folhas caem. Então já

sabiam mais ou menos que quando tem folha tem mais fotossíntese, então é... emite mais. E

quando você não tem folha na verdade, é... quando tem mais folha você tem mais fotossíntese,

na verdade. Então. Quando caem as folhas no período sazonal lá no hemisfério norte, as

florestas só tem tronco né, não tem mais folhas. A idéia parece que é de ele é um emissor, lá

no hemisfério norte Nesse bioma dos trópicos não caem as folhas. Todo tempo as folhas tão

aí. Pouquíssima quantidade cai, e se cair repõe, e fica uma coisa mais ou menos em equilíbrio.

Então. O objetivo, a motivação principal do LBA foi ver o papel da Amazônia, porque é a

maior área de floresta tropical. E ver como esse bioma interage com a atmosfera para ou

absorver ou emitir quantidades de carbono.

Então, até um tempo atrás acreditava-se que o ecossistema amazônico estava em equilíbrio,

então as trocas eram zero. Então não aumentavam de tamanho as florestas e tal. Hoje a gente

ta vendo que não é tanto assim né, pode absorver(...) tem vários trabalhos por exemplo aqui

tem um de Malhi e Grace8 (...)foram os primeiros trabalhos aqui na Amazônia (...) E eles

demonstraram que tem uma grande absorção de CO2 aqui. Em 1996 e 1998. eles fizeram

medidas em Rondônia e eles fizeram medidas em Manaus. Eles foram tipo... é... um primeiro

trabalho, a primeira motivação do LBA e mostraram que tem um papel importante. As

florestas tropicais aqui da Amazônia têm um papel muito importante no balanço de carbono...

[Mas] qual que são (...) as discussões em cima do trabalho deles? Porque eles fizeram um

trabalho muito curto o período. Então eles poderiam ter pegado uma fase do clima que fosse

favorável da floresta absorver. Então esse metabolismo vegetal ele tem vários ciclos. Tem o

ciclo diurno, tem o ciclo sazonal, interanual. A floresta ela responde às variações do clima.

Quando você tem por exemplo eventos de escala interanual, como o El Niño, La Niña, a

floresta tem uma resposta a esses eventos. E como o trabalho deles foi muito curto, alguns

dias só, então muitas pessoas falavam: se você medir a longo prazo, certo, e der o mesmo

resultado... Em essência o que eles mostram é que realmente a floresta absorve, é um

absorvedor de CO2 da atmosfera. Só que foi um absorvedor muito grande na década de

noventa. Como absorvedor grande, apesar de desmatamento e tudo isso, a floresta em si é um

absorvedor, mas muito grande. Os valores deles ficavam entre quatro toneladas de carbono

8 Malhi, Y and Grace, J “Tropical Forests and Atmospheric Carbon Dioxide” Trends in Ecology and

Evolution Vol 15, Issue 8 Aug 2000 pp 332-337. Malhi and Grace completaram as medidas em 1996, o publicaram os resultados deles em 1998.

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por ano, por hectare por ano (...) mas biologicamente esse valor não é sustentável. Porque se

você coloca quatro toneladas, cinco toneladas de carbono por hectare por ano, as florestas elas

dobrariam seu tamanho em trinta e cinco anos, algo que biologicamente não acontece, não é

aceitável. Então aí a comunidade internacional fizeram: ah, vamos fazer um experimento de

longo prazo com cooperação internacional, que a gente vai tentar abordar esse problema, se

realmente as florestas atuam como fonte ou absorvedor de carbono. Isso foi o LBA.

Então, o foco do LBA é tentar ver o papel que a floresta Amazônica tem (...) Se vocé tirar

toda essa floresta, vai ter um impacto, não só na clima regional, mas quem sabe,

provavelmente na clima global tambem.

Estou te dando a história em termos de balanço de carbono, né?

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Organizando o conhecimento: O website do LBA

Incumbi-me de realizar, neste capítulo, a tarefa de tentar descrever etnográficamente o

LBA - “The Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia” ou, em português,

“O Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia”. Escolhi começar esta

descrição com a descrição de outra pessoa em primeiro lugar, porque esta é uma maneira

interessante de introduzir o LBA, e secundariamente porque como Starthen mostra,

“conceitualizaçaor é inevitavelmente reconceitualização” (1992b: 75)9. Minha descrição

funda-se necessariamente naquilo que os pesquisadores do LBA me disseram, e no que

observei eles fazerem. Mas isso significa, é claro, lidar com uma lâmina de dois gumes – corta

dos dois lados. Explorarei isto durante o capítulo. Este outro alguém não é apenas qualquer

um. Tota é um pesquisador no LBA. Ele estuda o fluxo horizontal de gás carbônico ao longo

do dossel (copas das árvores) da floresta Amazônica, uma forma relativamente nova de tentar

acessar o balanço total de gás carbônico na Amazônia. O seu projeto é um entre centenas de

outros em curso no LBA, envolvendo muitas disciplinas diferentes e locais de pesquisa

separados geograficamente, com que tive contato há pouco. Assim, minha tarefa parece

impossível. Como contabilizar esta miríade de uma forma coesa, quando apenas vimos uma

parte dela? Onde começar? Onde terminar?

A história de Tota é apenas uma das diversas descrições do LBA com a qual poderia

começar. Assim como ele destaca, a sua história é a do LBA no que tange o equilíbrio de gás

carbônico. É uma história específica. Nela, vemos a lenta acumulação de conhecimento

científico sobre o equilíbrio de gás carbônico na atmosfera, a compreensão – induzida pela

certeza provada do que é e o que não é ‘biologicamente aceitável’ – de que as hipóteses

anteriores sobre o equilíbrio de gás carbônico na Amazônia podem ser falhas, e o subsequente

incentivo para um projeto científico, o LBA, para investigar esta lacuna em nosso

conhecimento. A narrativa é linear, racional e aditiva, cada peça adiciona à próxima, da

mesma forma, talvez, que na concepção do conhecimento científico como algo construído a

partir de si mesmo. Mas da mesma forma que vários (por exemplo, ve Kuhn 1962, Galison

1999 [1997]) demonstraram, a ciência pode ser mostrada como um tipo particularmente

descontínuo de tentativa. Uma história diferente seria contada por alguém na seção

9 “conceptualization is inevitably reconceptualization”

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administrativa do LBA, ou que pesquisa os sistemas hidrográficos da Amazônia. Assim, ao

invés de tentar contabilizar todas as possíveis descrições que podem ser feitas, eu gostaria de

descrever como esta multiplicidade de pontos de vista se apresentaram a mim, e sugerem

como podemos pensar por esta situação etnográfica, a tenacidade dos problemas que cria e a

viabilidade das soluções que permite. Eu estou fabricando uma descrição do LBA na qual

minha visão também tem uma parte, (não menos importante, porque a metáfora muito cara de

visão que uso forma parte de problemas e soluções que negocio). Espero alcançar dois

objetivos ao fazer isto. O primeiro é demonstrar o que considero ser algumas das

características singulares do LBA, em termos de organização do conhecimento, e ao fazer

isto, algumas características singulares da forma como nós antropólogos organizamos nosso

conhecimento sobre o conhecimento dos outros. Em segundo lugar, espero também que

apesar da descrição ser parcial e dirigida neste sentido, eu selecionei material etnográfico

bastante para que uma impressão do LBA emerja para meus leitores, independentemente do

uso que dou ao material analiticamente. Como Strathern escreve, “as etnografias são as

construções analíticas dos pesquisadores; as pessoas que eles estudam não são. É parte do

exercício antropológico reconhecer o tamanho da sua criatividade maior que qualquer análise

particular possa englobar” (1988a:xii)10. Assim, apesar de criar muitas das dificuldades

particulares causadas pela sensação de que havia sempre mais para saber, e que a descrição

nunca seria completa, gostaria também que permaneça claro que isto é mais que um

testamento da capacidade inventiva e da criatividade das pessoas com quem conversei do que

o lamento da imposibilidade da tentativa antropológica. É somente se alguém assume que o

ponto de chegada desejado é a existência de um todo que se mostra disponível para ser

conhecido absolutamente, que descrições parciais parecem faltando.

Uma das visões acerca do LBA com a qual gostaria de começar é aquela apresentada

pela página da internet11. Os pesquisadores com quem conversei usam a página de maneira

intensa, inclusive referindo-se a ela quando os defrontava com algumas das perguntas mais

banais sobre a organização do LBA. Eu consegui conversar com apenas três pesquisadores,

Dr. Flávio Lizão, Laurindo Campos e Dr. Anônio Manzi, que parecem ter uma participação

direta no conteúdo da página, para além da pesquisa científica que está disponível nela em

forma de conjuntos de dados que podem ser acessados eletronicamente uma vez que você se

10 “ethnographies are the analytical constructions of scholars; the peoples they study are not. It is part of the

anthropological exercise to acknowledge how much larger is their creativity than any particular analysis can encompass.”

11 http://lba,cotec.inpe.br/lba/?lg=eng (3 de julho de 2008)

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torna um membro da “comunidade do LBA”, por meio da participação na pesquisa. Eu

gostaria de usar o site em conjunto com outras fontes similares para revelar uma certa imagem

do LBA. Espero revelar alguns contornos interessantes e relevantes para a forma como o LBA

inscreveu-se na internet e em suas publicações voltadas ao seu público; ou seja, a forma como

se torna disponível para o mundo de forma abrangente. Esta é uma visão particular do LBA.

Para a extensão na qual os criadores da página são parte do LBA, e para a extensão na qual a

visão do LBA volta-se para aqueles que não fazem parte dela, também é uma visão que o

LBA, como uma entidade particular, tem de si mesma como uma entidade distinta.

O primeiro ponto é que o LBA foi apresentado como uma totalidade. O que significa

dizer que ela é um projeto auto-compreendido com fronteiras que podem ser apresentadas de

acordo com certas características que definem (defining characteristics). De acordo com a

página na internet:

“O experimento da Bosfera-Atmosfera em Larga escala na Amazônia (LBA) é uma pesquisa

internacional conduzida pelo Brasil. LBA foi concebida para criar o novo conhecimento necessário

para compreender o funcionamento climático, ecológico, biogenético e hidrológico da Amazônia, o

impacto da mudança no uso da terra nestas funções, e as interações entre a Amazônia e o sistema

terrestre.”

Este objetivo pode ser dividido em duas questões, que “serão endereçadas por pesquisas

multidisciplinares, integrando estudos em ciências como a física, química, biologia e ciências

humanas:

- Como a Amazônia costuma funcionar como uma entidade regional?

- Como mudanças no uso do solo e climáticas afetarão as funções biológicas, químicas e

físicas da Amazônia, incluindo a sustentabilidade e desenvolvimento na região e a influência

da Amazônia no clima global?” (página web)

Assim o LBA é uma “iniciativa de pesquisa” cuja investigação baseia-se na

comprensão e integração do novo conhecimento acerca da Amazônia. Esta imagem pode ser

expandida usando outros recursos voltados para o público em geral. De acordo com o LBA

Folha Amazônica (Julho de 2004, ano 6, n. 12) uma newsletter anual impressa em inglês e

português e também disponível on-line, o LBA é o

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“maior programa de pesquisa do meio ambiente tropical de todos os tempos. Com o objetico

de aprofundar nosso entendimento do papel da Amazônia e da mudança no uso da terra no sitema

climático da Terra, e também, da influência das mudanças globais no funcionamento dos ecosistemas

amazônicos, o experimento da Biosfera-Atmosfera em Larga Escala na Amazônia (LBA), formado a

partir de vários grandes projetos científicos colaborativos nacionais e internacionais realizados

previamente, lida com sete grandes temas de pesquisa que são tratados de maneira munti- e

interdisciplinar.”

O LBA aqui pode ser visto como um corpo corporativo. É o resultado emergente de

vários outros projetos de pesquisa, e tem um objetivo compartilhado – criar novo

conhecimento sobre a Amazônia como ditado por uma agenda de pesquisa compartilhada. A

entidade total que ela é pode ser definida assim em relação ao objetivo compartilhado e a uma

idéia do que constitui o ‘conhecimento’. Estas concepções compartilhadas por isso também

pressupõem uma certa forma de olhar para o objeto estudado, a Amazônia, que é o que

permitirá a integração destas multi-disciplinas. Isto implica que há uma forma compartilhada

de entender o ‘objeto’ – uma certa relação entre a Amazônia e o ‘sistema terrestre’ é

postulada, a saber, que as duas são separadas, mas relacionadas de uma maneira particular. O

objeto de estudos, a Amazônia, tem um papel no total do sistema terrestre. É uma parte dele

que contribui para o todo, mas também pode ser definida como algo em si mesma.

É interessante comparar a presença de sete grandes temas de pesquisa (ver figura 2)

com as formas de organização apresentadas pelo LBA (ver figura 3). A forma na qual elas se

prestam a serem esquematizadas implica um sistema subentendido de organizar o

conhecimento. O LBA, como um todo pode ser dividida em suas partes constituintes; a

Amazônia foi dividida em processos naturais constituintes. Os vários projetos em curso no

LBA cabem em cada tema de pesquisa como delineadas. Cada projeto ganha uma abreviação,

e cada projeto é assim classificado pela área de pesquisa que é aplicada – AC-01, AC-02, etc

são os projetos de Atmosfera Química, PC-01, PC-02 são os de Clima Físico e daí em diante.

Estas duas figuras podem também ser comparadas com o mapa de Áreas de Estudo (ver figura

4). As formas nas quais estas três diferentes figuras se organizam sugerem que a informação

pode ser dividida em partes separadas, e depois relacionada, ou integrada, para dar um

resultado holístico. A Amazônia está dividida em processos, e inclui estes processos. o LBA

está dividida em seções administrativas, mas inclui estas seções. O Brasil está dividido em

locais de pesquisa, mas é a acumulação da informação geradas a partir destes locais de

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pesquisa que permitirão o conhecimento sobre o Brasil como um todo.

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Figura 2 – Sete grandes temas de pesquisa do LBA (retirado do website,

http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)

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Figura 3 – Estrutura Organizacional do LBA (retirado do website,

http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)

Commission MCT

National Scientific Committee

Training and Education Committee

Organization and Implementation

Committee

International Scientific Committee

Operation Sub-Committee

Data and Information System Commitee

(LBA/DIS)

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Figura 4 – áreas de estudo do LBA (retirado do website,

http://lba.cptec.inpe.br/lba/?lg=eng Julho de 2008)

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Esta esquematização organizada, então, apresenta o LBA como um projeto de pesquisa

unificado, com uma visão compartilhada do que a Amazônia é, e que pode ser dividida em

partes. Ela também apresenta o que ela estuda da mesma forma. A Amazônia pode ser

dividida em ‘temas de pesquisa’, que correspondem a processos ecológicos e metereológicos.

Que todos estejam ligados, implica que ali eles são todos parte de um todo, que somente

aparece como visível na integração destas partes. Áreas são separadas, para serem integradas

novamente mais tarde. O que é enfatizado, por exemplo, na figura 1 são os sistemas

ecológicos compartilhados; as relações entre eles são representadas por linhas que não são

especificadamente características de qualquer forma – nós não sabemos a partir do diagrama o

que estas relações podem ser, apenas que elas existem e servem para conectar os elementos

distintos.

Este processo de separar as partes de um todo previamente concebido – no qual deve

haver uma concepção de um todo para dividir, em primeiro lugar – parece gerar um paradoxo.

A organização do conhecimento, desta forma, resulta nas relações entre as partes, assumindo

um papel mais importante, e isto, por sua vez, parece gerar uma imagem de que o todo que

difere de maneira essencial do original. É como se uma imagem cortada para depois ser

remontada, ao ser remontada gerasse uma imagem diferente do todo original. O todo de que

estes processos são parte é revelado não como simples e não esquematizado, ou seja, não

divisível desta forma de jeito nenhum. Concentrar nas relações entre as unidades discretas

revela uma imagem diferente da totalidade. Na verdade, justamente não parece revelar uma

imagem de totalidade. Deixe-me explicar.

Um pesquisador publicamente proeminente no LBA, Antônio Nobre, tem um artigo na

Folha Amazônica 2004, entitulado “Unravelling the mysteries of carbon in the Amazon: LBA

moves forward, but stumbles on complexities of ecosystems”. Sua descrição implica que este

processo de separar é quase infinítamente perpétuo: “quanto mais ecossistemas contrastantes e

dispersos por uma região forem estudados, mais riqueza de multiplas escalas e complexidade

destes ecossistems é compreendida, assim maior será a necessidade de aprofundar e alargar a

abordagem” (Nobre, 2004:5). Quanto mais eles são estudados, mais complexo o fenômeno

parece se tornar. Isto implica que cada processo contém mais variação interna do que

anteriormente suposto; e quão menores forem as peças que cada área de pesquisa possa ser

seprada, maior se tornará o total a ser estudado, o que acarreta em uma abordagem mais

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expansiva para contabilizar as múltiplas relações. Nobre faz uma comparação com o corpo

humano: “Em uma comparação útil, considere que por mais que investiguemos os mistérios

do corpo humano, mais descobriremos sobre o microscópico e paradoxalmente

complexidades gigantes deste organismo, uma única espécie. Imagine, na Amazônia, a

magnitude de complexidade que os pesquisadores do LBA e alunos encontram em

ecossistemas com milhões de espécies, milhões de metros quadrados, tudo interconectado

com o meio ambiente em uma miríade de conexões, formando gigantescas redes…” (ibid).

Quanto mais as partes dos ecossistemas proliferarem, mais complexa cada pergunta de

pesquisa se torna, e fica mais difícil manter o mesmo esquema organizacional. Quanto mais

diferenciação começa a emergir com as áreas de pesquisa, mais a investigação tem que

extender-se e proliferar-se. As ‘ligações’ e ‘redes’ vão para o primeiro plano, as

configurações relacionais últimas daquilo que está sendo estudado, a Amazônia. E isto tem

um efeito fundalmentalmente disruptor da configuração da totalidade, deixando-a não bem

definida, mas com as extremidades abertas. O projeto do LBA “apesar do seu enorme impacto

e vastas descobertas, apenas começou a descobrir a ‘ponta do iceberg’ da complexidade

Amazônica” (ibid).

O conhecimento básico produzido é aquele em que o que está sendo estudado é melhor

descrito em termos de fluxos e redes, e isto também se reflete na forma como este

conhecimento em si será integrado pelas redes entre países, e a crescente diferenciação das

formas nas quais este conhecimento será acumulado metodologicamente. Como Flávio Luizão

escreve, na mesma publicação, a fim de contabilizar “uma região tão complexa quanto a

Amazônia”, o LBA deve realizar “estudos em diferentes escalas de tempo e espaço, usando

uma variedade de metodologias e instrumentos: de processos locais de mensuração, passando

por grandes transientes que cruzam uma região, usando uma rede de observações de fluxos de

gases e energia, tomados por sensores carregadors por torres de fluxo de metal, barcos,

balões, várias aeronaves e satélites” (Luizão, 2004:1). Mas as metodologias e experimentos,

ainda enquanto proliferam, devem ser ‘integrados’, ou seja, as relações entre eles devem ser

trazidas para o primeiro plano. O conhecimento produzido não é mais uma questão de sentido

auto-contido em qualquer área de pesquisa, mas assume a forma de fluxos entre esferas, e

mais a frente deve passar entre países e fazer-se presente em políticas públicas. As linhas

‘insignificantes’ entre as áreas de pesquisa devem assumir uma significância maior:

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“o LBA combinará ferramentas analíticas inovadoras recentemente desenvolvidas, multidisciplinares,

desenhos experimentais em um poderosa síntese que criará novo conhecimento para endereçar

problemas e controvérsias de longa duração. o LBA fornecerá uma nova compreensão dos controles de

meio ambiente no fluxo de energia, água, gás carbônico, nutrientes e traços de gases entre a atmosfera,

hidrosfera e biosfera da Amazônia para ajudar a fornecer as bases científicas das políticas para uso

sustentável dos seus recursos naturais. A melhoria nas capacidades de pesquisa e de rede na e entre os

países Amazônicos associados com o LBA ajudarão a educação avançada e pesquisa aplicada em

desenvolvimento sustentável” (página da internet)

Por meio da integração e síntese, o todo da Amazônia se tornará visível – ainda que

com um resíduo. A totalidade procurada nunca parece emergir inteiramente, mesmo quando o

conhecimento entre as áreas de pesquisa é integrado, ou seja, mesmo quando são as relações

entre as áreas de pesquisa que se tornam o foco de concentração. De fato, é focando nestas

relações que a totalidade parece ainda mais evasiva. A descoberta, por exemplo, da

importância de compostos carbônicos voláteis produzidos por plantas para a geração de

partículas de condensação de nuvens atmosféricas combinada com a descoberta da

importância destas partículas na dinâmica de chuvas e formação de nuvens “revolucionará o

que conhecíamos sobre a relação da floresta com a chuva” (Nobre, 2004). Ainda, e ao mesmo

tempo, este aspecto biológico da formação de droplets, ativados pela liberação destas

quantidades minutadas de compostos carbônicos de plantas “em ritmos pouco conhecidos

podem ser relacionados a processos internos das plantas e por isso não facilmente detectáveis

com medições simples” (ibid, grifo meu). E, ainda, a quantidade de chuva em um ecosistema

terá um impacto na quantidade de gás carbônico que pode ‘capturar’. Estas ‘descobertas’

integradas, então, têm o efeito de não somente gerar a sensação de que o que eles sabem sobre

a precipitação de chuvas e a formação de chuvas é mais ‘complexa’, mas também tem um

efeito em como eles olham para o ciclo carbônico, que tem um impacto na definição de cada

área de pesquisa. Este fato induz mudanças na metodologia da ciência em curso. Quanto mais

perto você olha, maior o todo parece se tornar. A relação entre as descobertas revelam mais as

relações entre a floresta e a chuva. Mas também revelam o quanto mais há para se conhecer

sobre esta relação, e quantas outras relações podem ser desenhadas e reconfiguradas. O todo

parece ter sido cortado a partir de somente um “tip”.

O mapeamento da Amazônia como um todo, sua divisão em processos separados e,

então, sua reintegração, põe a questão da relação entre a totalidade anterior e a totalidade

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'reintegrada' posteriormente. A primeira parece implicar na noção de uma totalidade que pode

ser capturada na soma de suas partes. A segunda implica na totalidade que sempre tem um

resíduo ou 'remainder' que continua desconhecido e parece ser provocado justamente pelo ato

de tentar conhecê-lo. Concentrando nas partes desta primeira totalidade, as relações

precipitadas por esta ação parecem conjurar uma imagem diferente daquela mesma totalidade.

Assim, uma totalidade simples e esquematizada torna-se uma 'totalidade' complexa e

relacional. Apesar disso, a idéia de que esta totalidade original pode ser dividida em partes

que se fixam em certas relações cumulativas e constitutivas para o todo não parece ser

questionada.

***

Organizando o Conhecimento: Os Escritórios do LBA

Agora descreverei algumas de minhas experiências e observações do meu trabalho de campo

realizado nos escritórios do LBA e pesquisa em locais em Manaus, Santarém e São Gabriel da

Cachoeira. Estas experiências diferem da experiência de conhecer o LBA pelos sites na

internet e publicações dirigidas pelo público consumidor porque elas são localizadas e

particulares. Além disso, pessoas argumentam (talk back). Parece que a relação entre o LBA

nas páginas da internet e o LBA como a experienciei em meu trabalho de campo evoca a

mesma sensação confusa da relação entre a Amazônia como uma totalidade concebível em

termos de partes recortadas de todos com relações implícitas, e a Amazônia como uma

entidade relacional e cada vez mais complexa. Apesar de, no site, o LBA ser separado em

níveis e partes distintas, que são de alguma forma refletidas espacialmente na sede do LBA e

em termos de segregação disciplinar, se torna difícil manter a assertiva de que estas se

combinam para gerar uma totalidade quando fazemos pesquisa etnográfica ali. Torna-se muito

difícil segurar este todo como totalidade. Tentar fazer isto me induziu a investigar as relações

entre as partes, mas este tipo de investigação por sua vez gera a sensação de que há sempre

mais para saber, o que está de acordo com a impressão inicial de um todo coerente e

'particionável' ('partible').

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Esta descrição pode ser tomada, então, como minha visão do LBA. Que isto seja uma

descrição necessariamente parcial é claro. Eu não vi nem participei de todas as seções do

LBA. Mas aqui, novamente, a sensação de que havia mais a ver e saber, de que a

complexidade que uma análise inicial implica é potencialmente expansível infinitamente, não

tem nada a ver meramente com as partes que eu não vi, mas com a relação entre as partes que

eu vi. Cada parte parece ser capaz de propor uma diferente visão do LBA, então a integração

como um processo de soma se torna impossível.

O edifício do LBA em Manaus, que é o centro das atividades administrativas da

entidade é no campus da INPA, relativamente longe do centro da cidade. É um edifício

modesto, consistindo de um corredor relativamente ermo, dividido (intencionalmente, talvez)

por um banheiro e cozinha que estão na metade do caminho. Há desesseis salas diferentes,

cada uma dedicada a uma diferente área de pesquisa ou administração. Em um lado da divisão

do banheiro, encontra-se o “Treinamento e Educação”, que lida com ‘material didático e

assistência científica’, a partir de onde Erika envia diariamente as newsletters de ‘treinamento

e educação’ e Caroline pesquisa e cataloga todo o material disponível a respeito do LBA, e no

qual há uma escrivaninha para Tania, a jornalista do LBA, quem eu nunca vi. A sala

“Coordenação LBA/INPA” é o escritório do DR. Flávio Luizão, na qual ele orienta seus

alunos e coordena a pesquisa. À sua frente, está a “Ciclos Biogeoquímicos”, uma área

disciplinar na qual Luizão é especialista, e onde Sandra e Raquel analisam os resultados de

suas pesquisas diferentes no uso da terra e ciclos bioquímicos. Do lado oposto, está a

“Gerência”, o escritório do Dr. Antônio Manzi, de onde ele preside as operações de uma

maneira surpreendentemente ausente. Manzi é o gerente de implementação do LBA e

Coordenador do Escritório Central, e Luizão é o representante no INPA e no Scientific

Steering Committee do LBA. Eles são os dois mais senior membros que conheci no escritório

central de Manaus. Eu não consegui falar com Manzi por mais de 5 minutos no mês em que

estive lá, já que ele sempre parecia estar em trânsito entre reuniões e conferências que

aconteciam em toda parte no Brasil.

O escritório de Manzi está conectado diretamente à “Secretaria”, onde Márcia, a

secretária pessoal de Manzi, e Cherry atendem o telefone e respondem dúvidas. Ao lado, está

o “Auditório”, um grande quarto onde acontecem as apresentações, onde reuniões “inter-sala”

acontecem e defesas são realizadas, e o “Depto. Financeiro” onde Shelley e Joyce gerenciam

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as finanças do LBA, interminavelmente empilhando orçamentos e enviando pedidos

ocasionais ou orçamentos para a instituição onde o financiamento do LBA acontece. Há o

“Depto. de Logística” onde Rubenildo e Ruth e sua equipe organizam a distribuição de

equipamentos, manutenção de veículos e toda manhã realizam uma espécie de leilão peculiar

(não monetário!) para as limitadas vagas nos carros para pesquisadores que desejam ir a

campo e não conseguem reservá-los a tempo, escrevendo seus nomes no quadro branco

dependurado na parede.

Também existe neste fim de corredor a “Informática”, que está sempre trancada e onde

os dois supercomputadores são mantidos em explêndido isolamento, constantemente

processando modelos matemáticos climáticos, e cercados de partes isoladas e do ruído do

poderoso sistema de ar condicionado desenhado para mantê-los em temperatura ótima. Ao

lado está a sala “BioGeo Informática”, onde Laurindo, Luciana e Mário se juntam e

apresentam diferentes tipos de dados científicos, tornando-os disponíveis na internet; e “LBA-

DIS”, que significa ‘LBA – Data and Information System', de onde Rubens, Barbara, Daniel e

outros enviam informação para a base de dados do LBA em São Paulo chamada Beija-Flor,

constróem bases de dados de pesquisadores participantes do LBA e respondem todos os

pedidos de apoio técnico de outros pesquisadores no prédio.

Do outro lado da divisão do banheiro/cozinha, há então “Micrometeorologia”, onde

Jair, Marta, Carlos e Cleberson processam os dados brutos enviados das torres

metereológicas. Esta sala quando eu estava lá estava sempre cheia de malas de equipamento

micrometereológico quebrado ou (menos frequentemente) recentemente consertado, cabos de

longo cumprimento, placas de circuito e ferramentas de todo o tipo, assim como a próxima

porta, a sala “Laboratório de Instrumentação Meteorológica LIM”, na qual Fabrício, Hermes,

Paulo e a temporáriamente Susana (uma estudante Guatelmateca) calibraram e consertaram os

vários tipos de sensores e intrumentos que o LBA usava em seus experimentos. Jair me disse

que se todo o equipamento micrometereológico do LBA fosse reunido no prédio, não haveria

nenhum espaço para se mover. Do outro lado desta metade do corredor, está a “Modelagem

1”, que é um quarto onde os alunos de Mestrado e Doutorado do LBA podem estudar e

utilizar os computadores com acesso a internet; “Modelagem 2”, na qual Wagner, David

Addams, Rosa e Theo sentam-se na frente dos computadores trabalhando com modelos

climáticos; e finalmente “Modelagem 3” na qual Eduardo Leonardo, Paulo e Julio Tota

sentam-se a frente de computadores tambem trabalhando com modelos climáticos. Eu exploro

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a diferença entre esses modelos mais adiante. Cada ‘sala’ tem acesso a computadores, todos

os computadores estão ligados em rede, gerenciadas pela equipe LBA-DIS. Cada ‘sala’

também tem uma atmosfera distinta, que merece comentário somente para notar que quando

você entra nela, eles sentem-se muito separados. Cada uma parece uma diferente unidade.

O prédio do LBA em Manaus é muito marcadamente dividido de acordo com as áreas

disciplinares, como descrevi. Estas áreas correspondem certamente a uma divisão em

partições; o tráfego de pessoas entre estas áreas está limitado a partir do que vi da rotida

cotidiana. A forma na qual o prédio está organizado novamente sugere a forma na qual o

conhecimento existe no mundo – como divisível, mas de uma maneira em que cada parte

possui sua própria dinâmica. Estas ‘salas’ estão separadas no que pode ser imaginado como

esferas muito diferentes de conhecimento, então estas particões foram, de alguma forma, de

mútua exclusão. Aqueles que estudam ‘biogeoquímica’ se sentiriam tentados se sentassem em

um computador e pedissem para simular um cenário climático global, assim como um

modelador de clima global estaria incerto da forma como traçar as complexas reações

bioquímicas que estão levando sua amostra a mostrar uma certa porcentagem de nitrogênio. O

que parece estar contido em cada sala é diferente e separados tipos de informação que não se

misturam mas podem ser integrados. São diferentes 'ciências', e um dos aspectos distintivos

do LBA é o que é chamado na página de sua abordagem “interdisciplinar”. Mas ao fazer o

trabalho de campo me deparei com um experiência intrigante. No mesmo dia, me mostrariam

os programas de computador para modelagem climática e me demonstrariam as dinâmicas

dos flúidos, me explicariam a entropia inerente nos dados armazenados, alguém me

descreveria a logística por trás da dificuldade de se fazer os pesquisadores irem a campo com

apenas um veículo de trabalho disponível. Cada ‘sala’ que fui parecia conter um mundo

diferente, e assim, cada um poderia ser mostrado com uma diferente visão do que é o LBA. O

mais próximo que tentasse olhar, mais diferenciada internamente minha visão do LBA parecia

se tornar. Isto foi composto por formas notáveis nas quais esta rígida categorização por

disciplinas pareciam de um lado se complexificar, e de outro, confundir.

Certas categorizações usadas para distinguir estas ‘salas’ podem ser flúidas – Julio

Tota por exemplo trabalha tanto com ‘observação’ micrometereológica no campo quanto com

modelagem baseada no computador; Eduardo Leonardo trabalha com seu time em muitos

tipos diferentes de modelos em um projeto chamado IMP – Intercomparative Modelling

Project (Projeto de Modelagem Intercomparativa) – e está tentando criar modelos nos quais

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combinar tanto simulações globais quano regionais; David Addams está apenas

temporariamente com o LBA, foi convidado para dar aulas para o novo doutorado em “Clima

e Meio Ambiente” que o LBA iniciou. Os pesquisadores geralmente vêm de históricos

diferentes: alguns são do INPA – Flávio Luizão esteve presente quando a INPA se estabelecu

inicialmente; alguns fizeram pós-graduação com o LBA e continuam seu trabalho com sua

bolsa, como Fabrício; alguns estiveram apenas temporariamente trabalhando com o LBA,

como David e Susana. Alguns fizeram uma pós graduação em outro estado, especialmente

outros estados ‘Amazônicos’ como Pará, Rondônia e Alagoas. Muitas pessoas foram

convocadas por Manzi, direta ou indiretamente. Era comum escutar histórias como a de

Carlos, na qual ele explica que havia acabado de terminar seu mestrado em

micrometeorologia dos mangues, numa universidade em Alagoas, quando seu supervisor

disse que havia uma vaga para técnico em micrometeorologia no LBA, então ele decidiu

ocupá-la. A iniciativa do “Treinamento e Educação” para prover treinamento para

“pesquisadores locais e alunos a fim de garantir a continuação destes estudos por meio de

metodologias estandardizadas” (Folha Amazônica, 2005) era aparente quando perguntei às

pessoas de onde eles vinham. O que estas observações implicam é que o LBA pode ser vista

como um tipo de coalizão não constante de pessoas no espaço e tempo. Algumas destas

pessoas estavam presente no seu nascimento em 1998, como Manzi e Luizão, e alguns só

ficarão por alguns meses, como David Addams. Estes “estudantes locais” habitam o espaço

entre, para assegurar uma continuação de ‘metodologia’ e o estudo dos grandes temas de

pesquisa. Flora, por exemplo, uma ‘técnica da torre’ que vive em São Gabriel e ajuda a

manter a torre que foi construida lá, estava vindo para Manaus para fazer a prova de selação

para o Mestrado em “Clima e Meio-Ambiente”. Isto significaria que ela deveria mudar-se

para Manaus, mas seu trabalho estava já ligado ao desenvolvido na torre de São Gabriel, então

ela provavelmente continuaria trabalhando com esta torre quando se formasse.

A divisão do LBA em diferentes ‘salas’ é também algo mais flúido do que parece a

princípio. Mário e Luciana, na “BioGeo Informática”, de fato “não tem nada a ver” com o

LBA, mas trabalham com o PPBio, um projeto do INPA que gerencia dados de

biodiversidade. Mas enquanto Luciana e Mário não se sentem parte do LBA porque não lidam

com informação do LBA, e Mário me disse que estão na sala somente com o objetivo de tirar

vantagem dos recursos computacionais, Laurindo me explicou que sua presença na verdade

marca uma tentativa de combinar (integrar) dados de biodiversidade com o tipo de dados

biológicos e físico-ambientais que o LBA produz. Eu recentemente recebi a notícia de uma

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“Conferência Científica Internacional – Amazônia em Perspectiva: por uma Ciência

Integrada”, que está programada para acontecer em Novembro de 2008, e que “terá caráter

inovador, reunindo os três grandes programas de pesquisa do Ministério da Ciência e

Tecnologia para a Amazônia: o LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na

Amazônia), GEOMA (Rede Telemática em Modelagem Ambiental da Amazônia) e PPBio

(Programa de Pesquisa em Biodiversidade)”. Esta conferência, “além de tornar públicos os

resultados das pesquisas desenvolvidas pelos três programas…tem como principal foco a

geração, síntese e integração, num contexto interdisciplinar, de dados inéditos sobre a

Biodiversidade, o Clima e o Uso e Cobertura da Terra na Amazônia, bem como avaliar

diferentes cenários de alteração ambiental provocados pelo desmatamento e pelo aquecimento

global” (página do LBA). ‘Integração’, como uma noção que é amplamente presente através

de muitas facetas do LBA, aparece como algo capaz de ter caracterísiticas múltiplas. Neste

caso, parece que você pode ser integrado ao mesmo tempo que se considera separado.

Poderia ser dito que ‘em teoria’ Mario e Luciana são parte do LBA; embora em sua

‘prática’ não sejam. Vamos nos manter nesse conceito, pelo momento. Poderíamos dizer que é

repetido quando consideramos o LBA como apresentada na página da web e o que eu vejo em

termos de organização. O LBA, enquanto uma instituição, se estabelece como uma ‘cadeia de

comando governamental’ que quando eu cheguei pela primeira vez para pesquisar, a página da

internet estava representada como uma pirâmide hierárquica (ver ficura 5). O MCT

(Ministério de Ciencia e Tecnologia) “é o responsavel pela coordenação geral do LBA,

enquanto o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia), responde pela coordenação

cientifica do programa e por sua implementação”. Quando se estabeleceu, em 1998, o LBA

estava também sob a proteção da NASA e da Comissão Européia. Neste período em que

estive lá a NASA estava retirando seu patrocínio financeiro como estipulado no contrato, e o

LBA estava se nacionalizando (como Luizão chamou).Que eu não tenha conhecido qualquer

pesquisador da NASA, então, não foi nada estranho. Mas muitas pessoas simultâneamente

vêem-se como participantes do LBA e do INPA. Eles não parecem separar os dois a todo

momento. Esta separação, então, parece uma forma de estruturar o conhecimento que

conforma uma idéia de mutualidade exclusiva das partes separadas, então o MCT está

separado do INPA e o INPA está separado do LBA. Como um pesquisador visitante me disse

“eles parecem ser muito sensíveis aqui para definir a que instituição você pertence”, mas ao

mesmo tempo, na prática das pessoas, isto não parece ser exatamente exemplificado.

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Figura 5: Diagrama Original da estrutura organizacional do LBA, tirada da página da

web em Setembro 2007.

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A primeira vez que olhei a página da web, ano passado, o diagrama da estrutura

organizacional do LBA era como uma pirâmide de autoridade, com o conselho Diretor no

topo, e os vários escritórios regionais na base (como mostrado na fig. 5) implicando uma

relação hierárquica entre cada nível. Fez uma impressão porque o diagrama parecia

estranhamente não de acordo com minha experiência do LBA. Eu não desejo me aventurar

nesta discussão sobre ‘hierarquia’ como um conceito antropológico, então, deixe-me apenas

definí-lo como o Dicionário de Inglês de Oxford faz, como “um sistema ou organização na

qual as pessoas ou grupos são ranqueadas umas sobre as outras de acordo com seu status ou

autoridade”12 (OED, 1998). Eu não tive a oportunidade de ir ao escritório central do MCT, ou

de ir ao escritório central do INPA (ou os equivalentes), e investigar a extensão na qual este

esquema faz sentido nestes locais. Mas isso se deve em parte ao fato de que eu não tive que

acompanhar ninguém lá – ou seja, apesar de alguns pesquisadores se descreverem tanto como

membros do “INPA” quanto do “LBA”, a prática diária dos pesquisadores com quem estava

no escritório central em Manaus não parecia incluir nenhuma influência direta de ou

interação com estes níveis representados como mais senior. De fato, os membros mais senior

do escritório, Luizão e Manzi, quem podemos presumir que serviriam como uma ligação entre

os ‘níveis de comando’, foram também os mais ausentes. A sensação de que a hierarquia

desempenhava uma pequena parte nas rotinas cotidianas dos pesquisadores era ecoada por

minha experiência com o edifício do LBA em Manaus, na medida que cada ‘sala’ parecia ser

uma parte distinta e análoga, e que não havia nenhuma relação hierárquica em evidência entre

elas. Este diagrama foi atualizado recentemente para parecer organizado mais simetricamente

(ver fig 3), o que pode ser uma resposta ao processo de nacionalização do LBA que me

disseram estava em curso. Dado o conceito que estou empregando, poderíamos dizer que

‘melhor representam’ minhas experiências no LBA.

De toda maneira, quando participei de uma reunião que juntou membros de diferentes

salas separadas, de repente a configuração relacional pareceu mudar. A reunião era uma das

organizadas para planejar a expedição à torre metereológica perto de São Gabriel da

Cachoeira que aconteceria em breve. De repente, relações de autoridade e hierarquia se

tornaram visíveis, somente para aparentemente desaparecer novamente assim que a reunião

12 “ a system or organization in which people or groups are ranked one above the other according to status or

authority”

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terminava e os pesquisadores voltavam para suas salas separadas. Eu extenderei minha análise

desta reunião no terceiro capítulo. Mas a menciono aqui para mostrar que algumas vezes o

LBA parece assumir uma configuração hierárquica. Nesta reunião, certos participantes

apareceram como figuras de autoridade e outros assumiram um papel mais subserviente. Era

uma situação específica na qual, poderia ser dito, a imagem original do LBA como

apresentada na página da internet era evidenciada pela ‘prática’ que vi ‘no campo’. Neste

caso, foi quando fronteiras espaciais horizontais se dissolveram que as fronteiras da hierarquia

vertical apareceram. Quando as fronteiras horizontais foram reinstaladas, as verticais

desapareceram novamente. É claro, eu estou descrevendo isto da forma como observei, mais

do que aquilo que me disseram os sujeitos envolvidos. Mas o efeito foi bastante notável. O

ponto que quero elucidar é o de que não parece suficiente simplesmente postular que a

imagem do LBA na página da internet e que a imagem do LBA como estou apresentando a

partir das experiências do meu campo estivessem em uma relação estática de qualquer tipo.

Na verdade, diferentes visões pareciam ir e vir com surpreendente rapidez, e quanto mais via,

mais difícil se tornava chegar a qualquer tipo de conclusão a respeito de qualquer relação

particular entre o LBA como uma totalidade na forma como é apresentada, por exemplo, na

página da web e o LBA como uma multiplicidade de diferentes partes ‘no campo’. De

qualquer forma, vamos continuar comparando as duas.

O LBA tem uma importante seção conhecida como LBA-ECO, ou LBA-Ecologia. Na

página da internet do LBA-ECO, a entidade está descrita como um componente de pesquisa

do LBA. Mas para pesquisar por qualquer pesquisador do LBA online, você é direcionado

para a página13 do LBA-ECO, onde há listas de todos os projetos do LBA que foram

realizados ou que pediram financiamento futuro. Cada projeto tem um Investigador Principal

Brasileiro e outro Não-Brasileiro, e há mais de 100 projetos. Em 2005, quando a NASA já

estava teóricamente reduzindo seus investimentos no LBA, haviam 125 projetos, 78 dos quais

tiveram parcerias com pesquisadores americanos, 17 com pesquisadores europeus, 22 eram

completamente brasileiros, 4 com pesquisadores de outros países Amazônicos (OAC), 2 eram

com europeus e OAC e 2 com pesquisadores americanos e pesquisadores OAC. Havia 1837

pesquisadores no total trabalhando no LBA, 1099 brasileiros e 738 estrangeiros (Folha

Amazônica, 2005). Em 2007, havia um total de 155 projetos – 102 projetos Brasil-EUA, 16

Brazil-Europa, 26 totalmente brasileiros, 1 Brasil-OAC, 3 Brasil-Europa-OAC, 4 Brasil-EUA-

13 http://www.lbaeco.org/lbaeco/index.html (3 de julho de 2008)

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OAC, e 1 Brasil-Austrália-OAC. E havia 2389 pesquisadores, 1472 brasileiros e 917

estrangeiros (site do LBA). Proporcionalmente, antes e depois da NASA formalmente

suspender seu financiamento à LBA, há alguma difrença – mas não tanta quanto se esperaria.

Eu não encontrei a maioria dos pesquisadores listados na página do LBA-ECO durante

minha estadia em Manaus, Santarém e São Gabriel da Cachoeira. Dos que pude encontrar

listados, eu somente encontrei Flávio Luizão, Antônio Manzi e Julio Tota. A maioria das

pessoas que encontrei e conversei eram administradores, pesosas que coletavam dados para os

pesquisadores listados mas que não eram eles mesmos listados, os ‘técnicos científicos’,

estudantes de mestrado e doutorado. Quase todos, exceto os administradores, também tinham

seus próprios projetos com o escopo de dados que estivessem coletando de outros, e tinham

variados graus de contato com os pesquisadores nomeados. Eu encontrei um pesquisador

holandês em Santarém, e um modelador climático americano e um estudante de mestrado

guatemalteco em Manaus, mas além disso, todas as pessoas com quem falei eram brasileiros.

Cada projeto do LBA de acordo com sua constituição precisava ter um pesquisador

brasileiro e outro estrangeiro como Investigador Principal, e muitas dessas pessoas que

trabalhavam coletando os dados no campo e com quem eu conversei raramente haviam se

encontrado com os dois. As relações entre trabalho individual, dados do LBA e pesquisadores

estrangeiros variavam enormemente em tipo. Por exemplo, apesar de Julio Tota não aparecer

como Investigador Principal (PI) como tal, ele tem e mantém muito contato com o PI

americano da Universidade do , (que está na CD-31, um projeto de ‘Dinâmica Carbônica’,

que era uma continuação da ‘CD-04’), porque seus projetos são ambos baseados em

Santarém, e Tota é financiado pela State University of New York at Albany. Mas em

Santarém, onde há outro escritório do LBA e muitas torres, os dois coletores de dados que

acompanhei para coletar dados da torre para o trabalho de um PI Brasileiro tiveram muito

pouco contato com o PI americano no projeto – que esteve em Santarém muitos anos atrás,

um dos colecionadores me disse. Ele teve dificuldade, de fato, em lembrar quando. E no site

da pesquisa em São Gabriel, Raquel está coletando informação para seu projeto de doutorado

no LBA, que é supervisionado por Flávio Luizão, mas os dados serão coletados, em sua maior

parte, por um bolsista, Michael, da Escola Agrotécnica de São Gabriel. Michael também usará

os dados para seu próprio projeto separado na Escola. Uma visão estável de exatamente como

o LBA é um ‘projeto internacional’ parece movê-los na medida que você move-se para fora

da página na internet em direção ao ‘campo’.

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A partir da página na internet, o LBA certamente assume a forma de um projeto

internacional que integra pesquisadores de todo o mundo. Alguns parceiros do LBA incluem a

Universidade do Arizona, a Universidade da Califórina, a Universidade de Albany, a

Universidade de Harvard a Universidade de Edimburgo, e o centro de pesquisa Woods Hole

em Massachusetts. E o comitê científico em 2005 era composto de pesquisadores do INPE14,

INPA, USP15, EMBRAPA16, UFRJ17, Unversidade de Brasília, Museu Paraense Dep.

Botânico e Dep. Antropologia, Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável, Instituto

Max Planck, NASA, Universidade de Standford, Universidade da Califórnia, Universidade

Duke, Universidade de New Hampshire, Universidade do Arizona, Universidade de

Standford, Universidade de Washington, Universidade de Leeds, Universidade de Lima,

UMSA na Bolívia e Universidades do Equador e Colômbia. Esta integração, no entanto,

parece ser efetivida de muitas maneiras diferentes, e não há aparentemente nenhuma

estandardização nestas relações. Quando cada projeto é examinado de perto em suas relações

entre os projetos em mente, as diferenças nestas relações se tornam aparentes, e dão a cada

projeto uma forma particular. Por exemplo, a relação de Tota com a Universidade de Albany

significou que ele recebe fundos que o permitem continuar seu trabalho, e foi deixado a cargo

de uma “quantia de cerca de um milhão de dólares” em equipamentos para completar seu

projeto em um dos locais de pesquisa de Santarém. Isto não está disponível para todos os

pesquisadores, de maneira alguma.

Apesar de ter escutado repetidamente de diversas pessoas, com graus variados de

ironia, que o LBA tinha a intenção de ser um experimento integrado, um “esforço

multidisciplinar” unindo cientistas de diferentes países e com experiência diversificada, eu vi

muito pouco intercâmbio direto de informação acontecendo entre pessoas, para além do 11o

encontro cinetífico de equipe do LBA-ECO que durou 3 dias em Salvador, em 2007. Este

evento tinha, é claro, explicitamente o objetivo de compartilhar e integrar dados, mas assim

como o LBA existe na maior parte do tempo, fora deste tipo de evento, eu vi pouca integração

neste sentido. Algumas pessoas me disseram que sim, é claro que o LBA era um esforço

integrado, há uma base de dados a qual todos são obrigados a mandar seus dados; e outros

lamentaram o fato de que há apenas uma reunião com todo LBA todos os anos, e que deveria

14 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Brasil 15 Universidade de São Paulo - Brasil 16 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – a empresa de pesquisa agrícola brasileira. 17 Universidade Federal do Rio de Janeiro

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acontecer mais encontros regionais com o objetivo de reunir e discutir conclusões pessoais de

pesquisa.

Quando eu perguntei às pessoas com quem conversei diretamente o que “é” o LBA, eu

recebia diferentes tipos de resposta. Para alguns, ele era somente “uma comunidade virtual”.

Para outros, eles “fazem parte do LBA” porque são ‘bolsistas' do LBA – um botânico

fisiologista do INPA me disse “O LBA está aberto a todos”. Numa conversa eu perguntei

Susana, uma aluna guatemalteca do mestrado em hidrologia, o que ela fazia no LBA. Susana

está fazendo o mestrado em Amsterdam, mas teve que vir ao Brasil por muitos meses a fim de

ajudar Fabrício, um aluno do doutorado no LBA que havia sido um bolsista do LBA desde a

gradução. Ela veio porque Fabrício conhecia seu supervisor em Amsterdam, e havia

perguntado se alguém estava disponível ou interessado em ajudá-lo a coletar dados na

Amazônia. Susana, que havia estudado anteriomente as florestas de nuvens (cloud forests)

Venezelanas, agarrou a chance. Quando Susana me disse que na verdade sua pesquisa não

tinha muito a ver com o LBA, Fabrício interrompeu – “e parte do LBA agregado”, ele disse, e

depois adicionou, rindo “O LBA é uma grande família”. Susana pareceu concordar e me disse

“faço parte do LBA porque eu coleciono dados para o LBA”. Fabrício riu e me disse que “ela

faz parte do LBA porque esse projeto faz parte do LBA”18 Esta troca captura bem as

diferentes formas na qual as pessoas se referem à LBA – como uma fonte de dinheiro, como

fonte de dados e de seu compartilhamento, como uma entidade social de uma forma ou de

outra, como uma oportunidade acadêmica. Como resultado desta proliferação de descrições, o

LBA como uma entidade em si se tornou cada vez mais difícil de 'fixar' (hold still).

A principal questão do LBA, da forma como me disseram vários pesquisadores, é

discobrir se a floresta Amazônica está absorvendo mais gás carbônico do que emitindo, ou

emitindo mais do que absorve; esta é “a grande pergunta do LBA” de acordo com Flávio

Luizão. De maineira interessante, quando interrogados sobre a possibilidade de alcançar uma

resposta definitiva para esta questão, os pesquisadores que perguntei trataram minha questão

como confusão ou com tolerância benevolente. Um deles me disse que não, é claro que não;

toda pergunta respondida cria outras dez a serem perguntadas. Para medir quanto gás

carbônico está sendo solto na atmosfera, você tem que calcular quanto está sendo mantido na

floresta. E para saber quanto está sendo mantido na floresta, você deve ser capaz de

18 “faz parte” aqui faz referência, entre outras coisas, ao financiamento que o LBA fornece para o projeto.

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contabilizar todas as formas que pode escapar da floresta, sem ser solto na atmosfera. Então,

as medições de transporte de gás carbônico pelas folhas em decomposição sendo varridas por

correntes tiveram que ser levadas em conta, o que envolve todo um conjunto diferente de

premissas científicas além daquelas empregadas para extimar a troca de gás na atmosfera.

Cada nova pergunta envolve seu próprio conjunto de problemas e questões, que geram mais

problemas e questões. A tarefa parece sem fim. No 11o encontro científico de equipe do LBA-

ECO, o qual estive presente, um pesquisador explicou-me que, por exemplo, tentar medir a

quanidade total de gás carbônico na floresta a partir da subtração de quanto de gás carbônico

entra e de quanto gás carbônico sai é como tentar medir uma polegada a partir da subtração de

uma milha por uma milha e uma polegada. Uma diferença de uma polegada ou duas, pelas

longas distâncias não farão muita diferença. Mas em termos da medição que você está

tentando alcançar, isso pode resultar insensato.

Uma das maneiras nas quais eu pude tentar definir o LBA, de maneira oposta a

qualquer outro projeto científico, é que ela usa torres metereológicas que foram erguidas por

toda Amamzônia. São estas torres que capturam o tipo de dados que dão o sentido específico

dos objetivos da pesquisa; ou seja, estas torres são construídas de forma a medir a dinâmica de

troca de gás carbônico entre a biosfera e a atmosfera. E ainda assim, quando eu fui tentar

descrever estas torres com uma profundidade etnográfica (como algo oposto a meramente

relatar minhas impressões delas, auto-definidas como ‘não-científico’), se tornou claro que

elas habitam posições multiplas no trabalhos dos pesquisadores, dependendo de com quem eu

estava falando, e de sua especialidade de pesquisa ou área de trabalho. Novamente, eu me

deparava com uma proliferação de pontos de vista. Durante o período que passei com a

equipe LBA de pesqusadores que foram na expedição à torre em São Gabriel, fiquei sabendo

da posição central que a torre sustenta para a equipe, não só a partir das formas nas quais as

conversas das pessoas mostraram na viagem, mas também a partir das explicações que me

davam quando perguntava onde estávamos indo. Estávamos indo à torre. As áreas de pesquisa

onde os dados poderiam ser coletados, que não tinham a ver com dados micrometereológicos

estavam todos localizados em relação a torre, “para comparar com a torre”. Eu presumi,

então, que a torre, desta maneira, fosse talvez um ponto fixo, uma referência, em torno da qual

os persquisadores concentravam seus esforços, quantificando e capturando, e no entorno da

qual eu poderia ser capaz de fazer o mesmo. Mas ao mesmo tempo, cada membro do grupo

com quem eu conversava sobre a torre me explicava isso de uma maneira diferente.

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Conversando sobre a torre com Jair e Marta, micrometereologistas, eles viam as torres

como a soma do equipamento nelas instalado. Este eqipamento não é ‘padronisado’ entre as

torres, mesmo que devessem idealmente – o tipo de equipamento muda, o software do

datalogger19 muda, e Jair me disse que “cada torre é um universo paralelo” e que esta em

particular em São Gabriel “é um monstro”. Quando ele fala da torre comigo, ele fala sobre o

equipamento na torre, e como cada torre é diferente da próxima para o micrometereologista. A

estrutura em si é interessante somente como um veículo para o equipamento, e na forma que

pode afetar os dados – por exemplo, como Luizão me disse, as torres originais em ferro

costumavam reter e liberar muito calor, afetando as medições de radiação; então torres de

metáis misturadas foram construídas. A torre em si realmente deveria ser tão ‘invisível’

quanto possível nos dados e no meio. O mesmo vale para todos os trabalhos de construção

que desempenham a tarefa de persuadir a floresta a apresentar informação para você. A 34 km

de Manaus, no local de pesquisa chamado ZF2 (Zona Franca 2, em referência à área protegida

em que se situa), Luizão mostrou-me um buraco que crava (:) 50 m verticalmente para baixo

no chão logo abaixo da torre, um tipo de torre subterrânea inversa, usada para coletar dados

sobre metano e gás carbônico solto no solo. A terra escavada a partir deste buraco teve que ser

cuidadosamente carregada para uma distância 'segura', longe do local de pesquisa, a fim de

não afetar os dados coletados. Jair admite que estritamente falando, nós deveríamos gravar as

vezes que escalávamos a torre em São Gabriel, na medida que o dióxido de carbôno em cada

expiração afetará as leituras feitas pelo equipamento de fluxo carbônico. A torre e seu

conjunto de equipamentos deveria estar em um ‘estado estável’ a fim de ser confiável nas

medições das mudanças micro-metereológicas que aconteciam a seu redor.

Jaime também estava na expedição em São Gabriel expressamente para lidar com a

torre. Quando Jaime conversa comigo sobre a torre, ele conversa comigo sobre a construção e

a estrutura da torre em si. Sua tarefa é fazer com que as torres sejam o mais similares o

possível, em termos de sua estabilidde estrutural na variação de condições nas quais ele tem

que construî-las. O equipamento não é mencionado. Eu havia perguntado por que algumas

torres são mais difíceis de manter do que outras. Ele me disse “dependo no jeito em que eles

foram montados…em Rondônia, ele foi montado muito rapido…nunca fizeram

manutenção…os cabos estão muitos froxos…muitos galhos, cipos [que haviam caído nos

19 O datalogger é um equipamento eletrônico que armazena todos os dados coletados por vários instrumentos

na torre. Eu entrarei em mais detalhes adiante.

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cabos]”. Ele pega um pedaço de corda e a contorce para mostrar-me como os galhos caem nos

cabos, ou lianas, que crescem então, exercem uma pressão extrema na torre e fazem com que

ela entorte seu formato. Esta torre no local de pesquisa de São Gabriel foi bem construida,

apesar da pressa. A equipe de construção, Jaime e 9 outros conduzidos por Hermes, gastaram

três dias para encontrar o ponto exato para erigí-la, mesmo apesar de Antônio Manzi e Carlos

Nobre terem passado anteriormente duas semanas investigando a área a partir da estrada.

Escolher o ponto certo era crucial – deveria ser plano, um platô grande o bastante para que os

cabos fossem firmemente ancorados. Há oito cabos por nível e 33 níveis. Quanto mais alto o

nível, mais longe o cabo deve ir para garantir a estabilidade de toda a estrutura. Se você olhar

para baixo, a partir do topo, os cabos desaparecem na floresta, para alcançar o chão alguns

100 metros de onde eles estão afixados a torre em si. Depois de encontrar a área certa em uma

missão de reconhecimento, a equipe de construção levou uma semana para cortar um trilha de

2,5 km. Em seguida, levou mais uma semana para transportar todas as diferentes partes da

torre para o local escolhido, e mais dez dias para erigí-la. Os preimeiros níveis são os mais

fáceis – então se torna mais difícil para julgar corretamente para onde os cabos devem ser

esticados. O truque é não apenas calcular e garantir a distância exata, mas manter a tensão

certa entre todos os cabos, porque é a oposição destas forças que mantém a torre vertical.

Jaime estava na expedição de São Gabriel para “esticar” os cabos – esticá-los para mantê-los

assim novamente. Para ancorar os cabos, em primeiro lugar, deve-se medir a distância correta

da base da torre que o cabo, a partir de um nível particular deve alcançar, calculado

previamente de acordo com certas formulas matemáticas disponibilizadas com a torre pelos

fabricantes (que são holandeses, britânicos e americanos, dependendo da torre – só

recentemente um fabricante em São Paulo começou a fazer torres metereológicas – todas as

intruções na torre são escritas em inglês). Alguém fica de pé no chão no ponto medido. Outra

pessoa escala até o nível que foi recentemente construído e (cuidadosamente) tenta jogar uma

corda pesada de maneira a mais precisa possível para a pessoa no chão. Jaime admite que isso

era difícil de fazer nos níveis mais altos; a torre mede 64 m, e está 15 metros acima da copa

das árvores. Não só é impossível ver o chão a partir do topo, mas o que parece ser o chão é na

verdade o próximo extrato de árvores. Uma vez estabelecida um conexão pela corda, o cabo

pode ser levado para baixo relativamente de maneira fácil. Eu perguntei se ele fizera um curso

em contrução de torres – não, ele respondeu, apesar de ter sido treinado em segurança em

Santarém. Ele aprendeu na prática, “da para ver, usar as medidas para os cabos que vem com

a torre, mas na floresta, e diferente…a gente tem que decidir”. Um nível poderia ser

construído em uma hora, e poderia levar o resto do dia para pegar os cabos certo. No fim, a

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equipe dos dez estava correndo contra o relógio, trabalhando dias inteiros, do nascer do sol

ao poente, viajando de volta a cada dia para o local de acampamento, 16 km da torre, a fim de

fazê-la funcionar até Outubro. Por que a pressa? Eu perguntei. “Tenho nenhuma idéia”, disse

Jaime. “Pergunte para Manzi”; e depois, com orgulho “mas nós conseguimos”. O

equipamento e os dados são de pouco interesse para Jaime em seu trabalho, ele me diz. Ele

apenas tem que assegurar que a torre esteja esteavel, reta e forte.

Raquel está na expedição para estudar o ciclo processual de gás carbônico e nutrientes

em matéria orgânica morta ('necromassa'). Eu explicarei o seu trabalho com mais detalhes no

terceiro capítulo, mas em termos de sua relação com a torre, a torre é um ponto de referência,

em torno do qual ela deve localizar suas áreas de amostragem a fim de que a informação que

ela colhe faça o sentido que ela deseja, quando comparada com os dados micrometereológicos

que a torre produz. A informação que o equipamento na torre coleta sobre o fluxo carbônico

será comparada com a informação sobre gás carbônico que ela retira de seus números de

necromassa; a torre provavelmente aparecerá em seu trabalho escrito a fim de localizar onde

sua informação foi coletada, assim como a fonte para cálculos comparativos.

A seguir, um extrato de minhas próprias notas de campo, escritas após a expedição a São

Gabriel:

“Estas torres, para mim, são ícones definidores do LBA: vindas da Holanda, dos EUA, Inglaterra,

construídas por equipe brasileiras, alguns deles enviados para treinamento no Canadá, e fornecendo

dados que serão armazenados em um banco de dados acessível internacionalmente em São Paulo, elas

escalam do nível do chão até pelo menos 15-20 metros acima das árvores mais altas, e estão equipadas

com instrumentação científica da melhor qualidade. Quando vistas a partir do nível do chão escuro da

floresta, elas sobem em direção a luz; aparentemente confiantes em sua habilidade de ligar o

impressionante abismo físico e conceitual que o LBA construiu para que ele mesma o supere – a

dinâmica relacional entre a Biosfera e a Atmosfera. Do topo delas, eles preporcionam uma vista de

tirar o fôlego de um plano de copas de árvores se extendendo no horizonte, encontrando a cúpula do

céu acima de sua cabeça, de alguma forma, fazendo você acreditar subitamente na idéia de que

medições minúsculas de moléculas de gás carbônico, retiradas nos menores intervalos de tempo de dez

vezes por segundo poderiam talvez cobrir a área de 7 milhões de km² da floresta Amazônica”.

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Aqui, eu considero a torre como um lugar de inversão de escala, uma forma de criar um tipo

de sentido metafórico da perplexidade que senti como estrangeira para o estudo de

metereologia. Quando na presença de vastas extensões da floresta deitada embaixo de você,

parece impossível que a relativamente pequena torre pode ser usada para capturar informação

sobre toda a área. Mas notadamente, tanto o efeito físico de estar lá em cima da torre e esta

perplexidade é ausente daquelas que lidam com torres diariamente. Há uma ciência em

micrometereologia que já estabeleceu os parâmetros de coleção de dados para uma torre; não

é algo que seja interessante para questionar mais, ou não de maneira correntemente, de

qualquer forma. E quando escalei uma das torres em Santarém, tornou-se claro que minha

demora na deslumbrante vista possibilitada pelo topo da torre garatia os procedimentos. Os

técnicos da torre escalam a tórre o mais rápido o possível, porque eles têm um trabalho a

fazer. Minha visão poética das torres, neste sentido pode ser mais interessante do que uma

descrição detalhada da instrumentação para um leigo, mas certamente não seria para um

meteorologista, e dado isso, não é suficiente para a tarefa da descrição etnográfica.

Cada uma delas eram imagens da torre, e desta forma, eu poderia tentar encontrar

alguma forma de integrá-las, assim as torres poderiam ser usadas como uma forma de definir

o LBA como um projeto específico contra outros. Mas atribuindo esta especificidade para o

LBA, eu perderia a especificidade das imagens em si. Integrar desta forma parece tornar

mudas as vozes daqueles envolvidos, e como tentei mostrar, cada imagem conta com a

possibilidade de análise aprofundada, abrindo diferentes avenidas que poderiam ser seguidas

para termos muito diferentes.

***

Eu gostaria agora de detonar um dos conceitos que empreguei anteriormente nesta

comparação – aquele das relações entre ‘teoria’ e ‘prática’, entendidos como aqueles que são

representados como acontecendo, e aqueles que acontecem realmente (deixarei a revisão do

outro conceito explícito que usei, aquele das ‘visões’ e ‘pontos de vista’, para mais tarde). É

um mecanismo usado para assignar uma certa relação a uma percepção de um fenômeno.

Seria fácil para mim sugerir com o espaço proporcionado por este tipo de mecanismo que ‘em

teoria’ o LBA é um projeto unificado com objetivos unificados, mas, na verdade, é uma rede

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heterogênea de interesses e pessoas que confundem todas as tentativas de esquematização.

Isto é o que o LBA ‘realmente’ é. A ênfase é colocada na minha experiência vivida, e de fato,

naquela daqueles que eu estudava, na medida em que a maior parte das minhas evidências

para sugerir tal relação vem do que me disseram. De qualquer forma, o problema com este

tipo de conceito representacional é que uma pessoa encara o problema de então associar uma

‘realidade singular unificada’ para algo que parece ser feito de uma pluralidade de pontos de

vista. Como eu já mostrei, há muito mais gente trabalhando no LBA do que reconhecidas pela

página na internet. Isto significa que o LBA aparece como algo maior do que ela se apresenta

no site. Não só os grupos são maiores do que parecem ser, em termos de número de pessoas

envolvidas na produção de dados, mas nas formas às quais estes grupos são constituídos, as

relações entre as pessoas envolvidas e os dados em si, variam de grupo a grupo. Então, o LBA

também parece, a partir da minha experiência dela, ter mais variação interna. E esta variação

interna, por sua vez, muda a escala e a forma do LBA dependendo do ângulo do qual é visto.

Por que a visão do LBA como apresentada na página da internet não deveria ser

colocada lado a lado destas outras perspectivas? Ela foi, apesar de tudo, construída com uma

razão. Ela tem certas tarefas para cumprir: disseminar o LBA como uma entidade para o

mundo com um todo, manter os pesquisadores informados dos eventos que virão, permitir que

os leigos se informem. Foi realizada com a pretensão de transportar certas informações, e,

desta forma, aqueles para quem a informação é dirigida tiveram uma mão em sua construção

também. Mas este não é um processo auto-contido. Ao transmitir a informação pretendida,

outros tipos de informação esta transmitida para aqueles que estão no ‘ângulo’ certo, ou pelo

menos diferente. Um desses, como eu ressaltei, é dar um sentido de ‘visão geral’. Outro é

fazer o LBA aparecer para mim delimitada em formas que não apareceram quando fui fazer

meu trabalho de campo lá. Esta delimitação deu a ela uma certa forma que encontrei e que

nem sempre combina adequadamente com o que eu observei e com o que me contaram. Mas a

forma subsequente que aparece como uma expansão, um crescimento em informação em si é

substituída na medida que pessoas diferentes se engajam, e coisas diferentes são vistas. A

necessidade de escolher um ou o outro como mais real implica um dilema, porque

informação é sempre sentida como perdida. O que é mais real, a página do LBA ou o LBA

que vi no campo? Aquela apresenta uma imagem linear de hierarquia e inclusão, constituições

e normas, partes integrantes, e integradas, em um todo. Esta oferece uma visão muito mais

variada e flúida, na qual as pessoas vêm e vão, fronteiras se expandem e contraem, os níveis

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são confundidos, hierarquia em si é não aparente entre níveis, mas emerge de uma forma

estranha na medida que as situações acontecem, e, como podemos ver, informação circula

constantemente na forma de dados, mudando a forma na media que faz isto.

Frequentemente como uma solução para estes dilemas de relações contrastantes

binárias, uma imagem é escolhida a partir da qual entender todas as outras partes. A página na

internet pode ser vista como uma ‘visão macro’ que inclui as centenas de colecionadores de

dados não nominados, administradores e indivíduos trabalhando com o LBA. Ou minha

experiência no trabalho de campo, como uma prática coletivamente diferenciada, pode incluir

e obscurecer a forma que o LBA é conduzida como uma entidade delimitada e definida por

normas e fronteiras. Apesar desta última forma ser frequentemente vista como mais suficiente

para a tarefa da investigação antropológica, ela gera seus próprios problemas. Deve parecer

banal evidenciar que para um colecionador de dados de 15 anos em São Gabriel, o LBA é um

tipo diferente de entidade do que para um pesquisador norte americano da Universidade de

Albany de meia idade, e ainda mais banal evidenciar então que mesmo assim, eles são ambos

de alguma forma, parte do LBA. Mas isso causa profundos problemas para a descrição. A

forma que o LBA é apresentada na sua página da internet parece muito separada daquela

forma que a experienciei no escritório de Manaus. A forma como experienciei o LBA no

campo em São Gabriel foi muito diferente da forma como a experienciei no escritório em

Manaus. Mas de alguma forma, há em algum lugar também uma sensação de algo unificado.

o LBA é comentada como ‘o LBA’. As pessoas a usam para definir-se, definindo-a no

processo. O LBA habita um espaço definido ao mesmo tempo que parece transgredir as

fronteiras que definem aquele espaço. A questão se torna como compreender estas diferenças

e semelhanças. Se a questão é uma das gerais (a página da internet) versus a particular (os

locais específicos que visitei, as pessoas em particular com quem conversei), quem deveria

levar precedência não se faz imediatamente claro. E se alguém postular a visão geral como

apenas mais uma visão particular, então, qual delas ‘realmente’ representa o que o LBA é?

“Como conceituar a parte que não é parte de um todo?”20 (Strathern, 1992b: 97) E onde eu

tento situar a unificação?

Eu apresentei aqui uma descrição que trabalha por muitos eixos relacionados. Na

primeira seção, eu sugeri que a forma na qual o LBA apresenta seus objetivos unificados e 20 “How to conceptualize the part that is not part of a whole?”

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aspirações implicam uma forma específica de organizar o conhecimento, e uma certa

dinâmica para a forma na qual ela vem a conhecer seu objeto, a floresta amazônica; e eu

sugiro que esta imagem também era aparente na forma em que o LBA se apresenta na página

da internet. Eu, então, peguei a imagem que obtive a partir da página da internet, e a comparei

com a minha imagem do LBA acumulada em meu trabalho de campo. Nos primeiros eixos

Amazônia-LBA, estou sugerindo, então, que existe uma analogia; no segundo, página da

internet-experiência (ou ‘teoria-prática’), estou sugerindo que existe uma relação de

dissonância que engendra problemas de causa e efeito, o que se replica em todos os níveis –

qual dessas visões é o LBA ‘real’? Em ambas, de toda forma, nós chegamos a enfrentar as

mesmas noções de relações entre as partes e todos, que é a relação do particular com o geral.

Ao criar estes eixos, estou pensando em um comentário de Strathern que citei no começo do

capítulo – “conceitualização é inevitavelmente reconceitualização”21 (1992b:77) Quando eu a

citei primeiramente, estava demonstrando que minha conceituação do LBA necessariamente é

baseada na conceituação de outras pessoas. De qualquer forma, como mostrei então, esta

noção é uma lâmina de dois gumes. Para Strathern segue assim: “A sociedade que pensamos

para os ‘Are ‘Are, melanésios das Ilhas Solomon, é uma transformação da sociedade que

pensamos para nós mesmos”22. Ela o faz em referência ('farpada' - barbed) a uma citação de

De Coppet, na qual ele incita os antropólogos a entender cada sociedade como um “todo, e

não como um objeto desmantelado por nossas próprias categorias” (em Strathern

1992b:77)23. Por meio do endereçamento inicial do primeiro ponto do nosso primeiro eixo

relacional, ou seja, como o LBA organiza seu conhecimento da Amazônia, eu espero começar

a abordar a convergência entre este eixo e outro que postulei, aquele entre a informação da

página da internet (o geral) e minha experência no trabalho de campo (o particular). Este eixo

é repetidamente estruturado mesmo que o geral se torne mais um exemplo do particular,

porque então alguém se vê face a tanto um clamor de pontos de vista, ou com a escolha de um

que melhor represente o todo. Unidade e descontinuidade parecem irreconciliáveis.

Este ponto de convergência é talvez a mesma pergunta que Strathern coloca para De

Coppet e ao colcar responder: ela postula que a razão que o permite ter tanta certeza que as

sociedades devem ser abordadas de maneira “holística” como totalidades é porque no

Ocidente nós concebemos as sociedades como todos. Que conceitualização seja

21 “conceptualization is inevitably reconceptualization” 22 “The society that we think up for the ‘Are ‘Are, Melanesians from the Solomon Islands, is a transformation

of the society that we think up for ourselves.” 23 “whole, and not as an object dismantled by our own categories”

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inevitavelmente reconceitualização tem um tipo de efeito de ‘chicoteio’ aqui. A forma como

concebo o LBA é amarrada para refletir a forma na qual organizo e concebo o conhecimento.

É esta (relativamente contemporânea) concepção, no entanto que na análise antropológica

contribui para o sentido que descrevi de sempre estar perdendo algo, da descrição somente ser

parcial. O papel da parcialidade depende da forma na qual as partes são imaginadas. E assim

isto pode ser visto como se meus eixos virassem um círculo completo de fato, assim como é

esta sensação que é precipitada de ambos pontos de partida meus – o entendimento do LBA

da Amazônia – e meu ponto final – meu entendimento etnográfico do LBA. De qualquer

forma, a extensão na qual estas formas de organização do conhecimento verdadeiramente se

encontram ou não é a questão comum que é entrelaçada por toda minha dissertação em vários

disfarces diferentes, e um que eu não serei capaz de começar a responder até muito mais

tarde.

***

Movimento como Metáfora

Parece, então, que para o LBA, a Amazônia é incrívelmente complexa, mas que esta

complexidade se concretiza no ato mesmo de tentar conhecê-la racionalmente, ou seja, de

tentar relacionar as partes nas quais foi separado. Ao tentar entender esta forma de organizar o

conhecimento e o que parece produzir, eu uso a análise de Wagner (1977) das

conceitualizações científicas do inato particularmente ressonante, apesar de muito do que ele

escreve neste artigo poder ser encontrado de forma mais detalhada em seus livros The

Invention of Culture (1975) e Symbols that Stand for Themselves (1986). No entanto, é neste

artigo de 1977 que ele se dedica mais exclusivamente à prática científica específica, e como

forma condensada de sua sofisticada e infernalmente complexa teoria do sentido, ela serve a

minha motivação presente melhor que a extensa discussão que ao usar estas outras

publicações certamente acarretiam.

O paradoxo no coração da ciência, Wagner escreve, é do 'geral' versus o 'particular',

uma refração do que pode ser visto como a relação entre o que é tido como inato, e o que é

tomado como disponível para a ação humana. A análise semiótica de Wagner objetiva não

negociar o paradoxo inerente na construção do sentido, mas revelá-la. Ele também recusa

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conformar as teorias tradicionais de símbolos como representações. ‘Representação’ como

formulado em termos do real e do teorético é, como mostrei, outro problema que implora por

análise antropológica, o que foi potencialmente evocado quando tentei entender meu trabalho

de campo com o LBA. Eu voltarei a isso mais tarde. Suficiente dizer que a premissa a partir

da qual Wagner começa em todo o seu trabalho é que “o fenômeno humano é uma idéia única

e coerente, organizada mentalmente, física e culturalmente, em torno da forma de percepção

que nós chamamos “sentido” (meaning) (Wagner, 1986: ix)24.

Wagner isola duas modalidades de construção simbólica, opostas mas completamente

interdependentes. Uma é ‘construção simbólica literal’, na qual o ‘símbolo’ é visto como uma

representação de, e separada de, seu referente, como noções convencionais do símbolo.

Simbolizações literais objetivam relacionar unidades definidas, mas somente retiram o seu

sentido do contexto referencial no qual elas se separam; elas são “relacionalmente coesas, mas

contextualmente contrastivas e dependentes (Wagner, 1997: 390)25. Wagner dá o exemplo das

leis científias que relacionam diversos fenômenos naturais, mas dependem do contexto

representado para substancialidade e significado.

O contexto referencial é, na verdade, a outra modalidade de simbolização, ‘figurativa’,

concebida convencionalmente como ‘fenômeno puro’, mas na formulação de Wagner

concebida como simbolizações que assimilam o contexto “representados” e os

“representantes”. Eles são ‘símbolos que valem por si próprios’ (symbols that stand for

themselves)– objetos, pessoas individuais e daí por diante. Simbolizações figurativas

diferenciam seu contexto relacional, criando “discretas entidades que assimilam seus

contextos mas servem em representação análoga uma para a outra”26 (ibid: 390), mas elas

requerem aquele contexto para ter sentido. O exemplo que Wagner dá é aquele de especiação

– Homo Sapiens e Homo Erectus são espécies distintas, e neste sentido se colocam em relação

análoga uma com a outra. Ainda que eles precisam dos seus contextos comuns incorporados

por relacionalidade – eles são ambos ‘Homo’, ou seja, eles dependem desta ‘relatividade’ para

significar algo. Simbolizações literais têm contextos figurados, e simbolizações figurativas

têm contextos literais. Mas o ponto que eu gostaria de enfatizar é que eles também criam estes 24 “the human phenomenon is a single, coherent idea, organized mentally, physically and culturally around the

form of perception that we call ‘meaning’” 25 “relationally cohesive, but contextually contrastive and dependent” 26 “discrete entities which assimilate their context but stand in analogous representation to one another”

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contextos – Um contexto “é parte de uma experiência – e também algo que nossa experiência

constrói; é um meio no qual os elementos simbólicos relacionam-se uns com os outros; um

que é formado pelo ato de relacioná-los”27 (Wagner 1975:37)

Não é só que estas diferentes modalidades depedem do oposto para significar, mas que

sua aplicação precipita-se de seu oposto. “[Uma] construção sempre está tanto relacionanda

ao perceptivelmente diferenciado ou diferenciando o perceptivelmente relacional”28

(1977:391). Se alguém vê a sua esfera de ação como ‘relacionar’ , então a ação consiste em

transformar discretas entidades fenomenológicas em um padrão relacional consistente, assim

como nas leis científicas. A transformação reflexiva que resulta tem o efeito de diferenciar

este padrão relacional, e é visto como “inato” – neste caso o modo figurativo, o que no

Ocidente nós vemos como fenômenos naturais que são sui generis. Se por outro lado, um vê a

sua esfera de ação como ‘diferenciar’, então a ação consiste em transformar uma continuidade

relacional em distinções diferenciantes, e a transformação reflexiva aqui, a emergência do

contexto sendo assimilada, é inata. O que é inato é o que serve fora da esfera da ação humana,

sobre a qual nós não temos controle algum, aquilo que é ‘dado’.

Esta formação simbólica do mundo pode ser entendido na forma do paradoxo que

engendra:

“Quanto mais discretamente e específicamente nós definamos e atemos as unidades de nosso estudo,

mais provocativo, necessário e difícil se torna contabilizar as relações entre estas unidades;

inversamente, quanto mais efetivamente nós somos capazes de analisar e somar as relações entre as

unidades, mais provocativo, necessário e difícil se torna definir estas unidades”29 (Wagner

1977:386)

27 “is part of experience – and also something that our experience constructs; it is an environment in which

symbolic elements relate to one another; one that is formed by the act of relating them” 28 “[A] construction is always either relating the perceptibly differentiated or differentiating the perceptibly

relational” 29 “The more discretely and specifically we define and bound the units of our study, the more provocative,

necessary and difficult it becomes to account for the relationships among those units; conversely, the more effectively we are able to analyze and sum up the relationships among a set of units, the more provocative, necessary and difficult it becomes to define those units” (Wagner 1977: 386)

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Este paradoxo então é um daqueles que se auto-perpetua. Ou seja, ele engendra-se, porque a

dinâmica é relativa; cada modo de construção precisa e causa a outra confundindo-as. Quanto

mais unidades definimos, mais pressionadora ela se torna para relacionar estas unidades a fim

de dá-las sentido. Mas quanto mais alguém relaciona estas unidades, mais se perde a visão das

fronteiras que dão sentido às relações. O exemplo que Wagner dá é a relação do ‘ambientado’

(environed) com o ‘ambiente’ (environment). Ambiente é um termo relativo, então é definido

em relação com aquilo que ambienta. Mas ao mesmo tempo, como foi definido pelo o que ele

ambienta, ele também se define.

Como Wagner pontua, este paradoxo é inerente em uma aproximação teorética como a

(mas não duma maneira exclusiva) da ciência ocidental, que emprega conceitos reflexivos e

dialéticos (relativos um a outro) com um enquadramento linear causal. Ou seja, no qual

ambos os modos de simbolização são empregados simultâneamente. Se a ação de relacionar é

relativa para aquela de definir, e estas são ambas dependentes de cada uma, então tentar

imaginar ambas ao mesmo tempo resulta no paradoxo acima. Este paradoxo parece

inescapável, na medida que “como estes efeitos são reflexivos (por exemplo aquele que “é

simbolizado” trabalha seus efeitos, por sua vez, sobre aquele que ele simboliza), todos os

esforços simbólicos são mobilizados em qualquer ato de simbolização”30. (1975: xv). Isto

significa que a atenção deve focar-se em qualquer momento em um destes modelos, deixando

o modo oposto para ser percebido como uma ‘motivação’ ou compulsão; e também que toda

cultura favorecerá um modo como apropriado à ação humana, e a outra como inata ou dada. É

escolhendo uma ou a outra como a esfera de ação de alguém que constitui-se a negociação

deste paradoxo. Na visão científica de mundo ocidental, então, ‘natureza’ como componente

figurativo é tomado como ‘inato’ e é concebido como fluxo de transformação diferenciadora,

mas que é precipitada exatamente por nossos “esforços literais e sistemáticos de atrelá-los e

entendê-los”31 (1977: 394). A ciência provê a “continuidade relacional que junta fenômenos

naturais como entidades palpáveis”32 (ibid: 395). Porque fenômenos naturais como elementos

figurativos assimilam o contexto que a ciência porvê para eles, eles então aparecem como se

as leis científicas fossem parte da ‘cultura’, ou seja, elas são ‘abstrações’ da natureza – elas

devem ser separadas por causa, Wagner sugere, da “visão de mundo semântica de nossa

30 “since these effects are reflexive (ie that which “is symbolized” works its effects, in turn, upon that which it

symbolizes), all symbolic efforts are mobilized in any act of symbolization.” 31 “systematic and literal efforts at harnessing and understanding it” 32 “relational continuity that joins natural phenomena together as a palpable entity”

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civilização maior, racionalista”33 (ibid: 395), que é literal. Nós Ocidentais 'mexem' com

‘cultura’, não com natureza. Mas nossas tentativas de entender a natureza são, por isso, tanto

literalmente como figurativamente relacionadas a ela - ciência é tanto uma replicação análoga

da natureza, e está incluída nela como parte da ‘cultura’ humana. Ela tanto precipita seu

objeto e é incluída por ele. “A parte é posta contra o todo que a contém, um paradoxo que é

sustentado pela percepção de que a natureza que endereçamos incorpora a ordem relacional

pela qual nós a compreendemos, e um paradoxo que é negociado pelo efeito contextualmente

isolante da construção literal”34 (ibid: 395). Assim, “a cultura da ciência”, a fim de negociar

este paradoxo, está continuamente se separando da natureza que a inclui, mas ao fazê-lo, se

inventa.

Isto pode ajudar-nos a entender a forma na qual o LBA organiza o seu conhecimento

da Amazônia que, como mostrei, parace conter a oscilação paradoxal entre os processos

recortados de um todo que devemos, por isso, conhecer, e sua reintegração em uma

complexidade que nós não conhecemos, sempre dando a impressão que que há mais a ser

conhecido.

Tomada como ‘natureza’, a Amazônia é vista como aquilo que vale por si mesma; é o

‘inato’ figurativo comum à construção de sentido científica ocidental. É constituída por um

número de eventos e fenômenos que apenas ‘são’; eles não substituem nada. O LBA se pôs a

tarefa de fazer sentido da Amazônia, e desta forma, isto demanda a relação destes eventos em

padrões e processos, que proporcionam um contexto relacional a partir do qual dar sentido a

estes eventos. De toda maneira, seguindo Wagner, se estes fenômenos naturais são

simbolizações figurativas, elas assimilam este contexto disponibilizado a eles pelo LBA (ou

‘ciência’), de forma que os processos de ‘Química da Atmosférica’, por exemplo, não ‘sirvam

por’ (stand for) este fenômeno na Amamzônia, mas são os fenômenos.

Como Wagner evidencia, no entanto, o ato de relacionar estas partes distintas precipita

a ‘transformação reflexiva’ figurativa, que diferencia estes padrões. Então, o LBA, ao

33 “the semantic world view of our larger, rationalist civilization” 34 “The part is set against the whole that contains it, a paradox that is sustained by the perception that the nature

we address embodies the relational order through which we comprehend it, and a paradox that is negotiated by the contextually isolating effect of literal construction”

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relacionar estes fenômenos em processos e sistemas, na verdade, precipita a modalidade

oposta, o inato – ‘natureza’ em si. Assim, ao tentar relacionar estes eventos e depois

processos, o que se torna pressão é as definições das unidades em si, e isto constitui o domínio

da natureza. ‘Complexidade’ se torna natural. Como havíamos visto, investigação em um

destes processos parece borrar os limites de qualquer processo. Assim, os processos

biogeoquímicos que acontecem nas plantas têm um efeito na ‘atmosfera química’ e ambos

têm um efeito no “armazenamento e ciclo carbônico”, como vimos no exemplo dado acima,

que fala da relação entre a floresta e as chuvas. Cada processo, ao ser relacionado, gera a

necessidade de definir mais o que são as unidades de estudo. A situação é causada pela noção

de que todas estas unidades podem ser relacionadas para dar um todo coeso, e que o que está

sendo relacionado são as unidades separadas; mas isto causa a noção de que este todo é

complexo com unidades pobremente-definidas. Assim, quando concentrando na separação

entre os processos, o que empresta a estes processos sentido e simultaneamente os confunde é

que eles podem ser relacionados; e quando concentram-se nas relações, o que empresta a estas

relações sentido e simultâneamente os confunde é que eles são processos e fenômenos

separados em relação.

Assim, há um processo constante do que Wagner (1975) pode chamar ‘invenção’ e

‘contra-invenção’. É o ato de tentar relacionar estes fenômenos em padrões coesos que

explode em uma miríade de outros processos separados, processos que sempre estiveram lá,

ou seja, são ‘dados’. Em outras palavras, é no processo de tentar relacionar estes processos

que o que é jogado para fora, ('precipitada') é ‘natureza’. A fim de ser relacionado, eles

precisam o contexto literal, que eles então assimilam. Assim também é o ato de tentar

entender a Amazônia que ‘inventa’ a Amazônia que eles estão tentando conhecer. O todo está

constantemente em movimento. Esta relação dialética e reflexiva, então, colocada em uma

enquadramento casual, é o que dá a sensação de haver sempre mais a conhecer, enquanto ao

mesmo tempo, permite aparecer como se existissem duas noções de ‘natureza’ como a

Amazônia, uma esquematizável e simples, a outra complexa e desconhecida. Nossas

simbolizações literais se tornam natureza, mas também explodem natureza de si mesmas. Os

vários processos foram ‘extraídos’ da Amazônia, e por isso devem ser capazes de ser somados

para dar a Amazônia, mas o processo de extraí-los e então relacioná-los produz um resíduo

relacional, então, o que é ‘somado’ aparece como mais do que foi extraído, mas será sempre

assimilado, causando um novo resíduo para ser jogado. A complexidade está sempre

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aumentando, mas sempre esteve lá. Isto, eu sugiro é uma dinâmica constantemente movente e

alternante.

Assim, a Amazônia, como revelada, como uma rede de processos que interagem,

borrando as distinções entre cada processo separado, engendrará um esforço para melhor

definir os processos em estudo. Isto revelará a artificialidade do esforço, e causará uma nova

totalidade para ser revelada. As relações de fato trazem os processos para frente, e os

processos engendram as relações, causando um efeito de figura - fundo na medida que o foco

de atenção se move entre processos relacionados e definidos, que foram cortados de uma

totalidade que estas relações criam e ao fazê-lo transformam. Então a Amazônia está em uma

relação dialética e reflexiva com as noções que inventamos para entendê-la. Ela é inventada

por e investe nessas noções. A parte é colocada contra o todo que a contém. Este paradoxo não

é óbvio para aqueles que trabalham no LBA, na medida que não é comentado nem parece

afetar particularmente seu trabalho diretamente, se coloca no movimento que liga o inato com

o construído, explodindo em um novo ‘inato’ que, à pressão da ligação, sempre foi inato. Não

é que a Amazônia ‘em teoria’ seja esquematizável e conhecível, mas ‘na prática’ não é; ao

contrário é ambas. Não pode nada além de ser. Isto não é, eu não acho, uma acusação de um

realismo inocente, mas uma tentativa de contabilizar a dinâmica de construção de sentido que

é interessante para a antropologia, mas incidental talvez para os cientístas. É claro, estes

cientistas que não acham isto incidental em seu trabalho protestarão e protestam. As ‘Guerras

da Ciência’ são evidência disto35.

Wagner deixa muito claro que este paradoxo está no coração da ciência, e também dos

esforços antropológicos. Como eu mostrei, sua teoria semiótica é uma teoria de inclusão.

Assim nós encontramos o mesmo tipo de paradoxo quando a antropologia tenta separar as

‘culturas’, mas o simples ato de fazê-lo em si precipita um evento de comunicação e

interrelação – entre a culura nativa e a do antropólogo – isso dissolve as fronteiras entre estas

35 Esta forma de perceber a organização do conhecimento científico é talvez outra forma de alcançar o mesmo

ponto a que Latour chega, no qual ele sustenta que fatos podem ser reais e construídos ao mesmo tempo. Desta forma, é vulnerável ao mesmo tipo de crítica que mira as idéias de Latour – que ela está propondo algum tipo de ‘falsa consciência’, ou seja, as ciências pensam que elas estão descobrindo a realidade, quando na verdade estão a construindo. Eu chegarei a isto mais tarde. Uma diferença importante entre Latour e Wagner, no entanto, talvez resida na idéia de que enquanto Latour está tentando superar o paradoxo inerente às oposições binárias convencionais a partir de sua dissolução, Wagner está tentando revelar e trabalhar com o paradoxo. Isto, eu acho tem a ver com a reflexividade aparente na obra de cada autor, que endereçarei mais particularmente nos estágios finais da dissertação.

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culturas específicas. As sociedades que nós construímos para os outros vêm a ser vistas como

transformações das sociedades que fazemos para nós mesmos, como Strathern coloca

(1992b). A resposta de Wagner para esta conclusão é recusar negociar o paradoxo no cerne da

produção de sentido humana, mas revelá-la e até provocá-la. Sua abordagem dailética é

uma”crítica” das visões de mundo, (apesar de ser uma visão de mundo em si), quais objetivos

em revelar estes aspectos que nós esnobamos, revelando o que nós tomamos como inato ser

(uma vital e inescapável) faceta do mesmo processo de construção de tudo o mais a que

atribuímos sentido.

Desviando por agora para as implicações desta análise aparentemente construtivista

para cientistas, e para estes que os estudam (o que eu abordarei a partir de uma direção

diferente no próximo capítulo), nós podemos nos mover para o ponto de convergência que

mencionei que estava tentando elucidar entre o eixo conceitual do LBA-Amazônia, e a página

da internet-trabalho de campo. Podemos ver, então, que a sensação que tive ao tentar produzir

sentido do LBA pode resultar no mesmo tipo de trajetória dialética. Que o LBA se apresente

na página da internet como uma entidade unificada, como apresenta a Amazônia, me faz

correr os mesmos tipos de de problemas conceituais que os cientistas quando eu venho a

examinar as relações entre as partes que fazem esta unidade. A imagem de totalidade que

tinha a partir da página na internet no início abre caminho para a sensação de complexidade

infinitamente crescente e que há sempre algo mais a conhecer. Strathern trata este problema

em Partial Connections (1991), abrindo sua análise com uma (talvez unintencional) paráfrase

da formulação de Wagner, que eu cito longamente porque é um resumo brilhantemente

conciso de todo o complicado livro:

“eu desejava levar o leitor através de várias ‘posições’ que marcaram recentemente abordagens

antropológicas em mudança para a escrita e representação em etnografia, a fim de criar uma posição a

partir da qual reconsiderar a possibilidade de comparação inter-cultural para a Melanésia. Mas parece

impossível dividir o trabalho sem parecer dar peso desproporcional a uma ou outra dimensão. Tanto o

excurso teorético poderia parecer como uma introdução aos problemas comparativos, ou o último

pareceria um mero apêndice para o anterior. Um poderia implicar o todo da disciplina onde o outro se

preocupa somente com uma pequena região do mundo; ao contrário, o foco no instrumento particular

do esforço onde o outro poderia oferecer dados concretos em sua totalidade realística. Ainda assim,

cada um poderia ser igualmente sujeito a argumentação complexa.

Sendo que o problema de proporção também aparece na confrontação antropológica com a

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complexidade de seu material, parece válida a exploração. Mais que uma narrativa está em jogo aqui.

Examinar a cultura das práticas argumentativas nos leva ao argumento comparativo sobre a forma que

a cultura é praticada.”36 (Strathern 1991:xiii)

Strathern endereça estes problemas para confrontar um antropólogo tentando organizar

seu material, quando este material ainda parece organizado pelos atores que estão sendo

descritos. Estes problemas, ela sugere, podem ser vistos como aqueles de ‘escala’ ou mudança

de escala. Por ‘mudança de escala’, Strathern quer dizer “mudança de perspectiva”37

(1991:xiv), ambos em termos de aproximar ou afastar – como indo de uma visão de conjunto

como a página na internet provê para locais mais específicos como os descritos em meu

trabalho de campo – e o que ela chama “dominando” (domaining), movendo-se de uma

perspectiva a outra – como por exemplo entre ‘salas’ no meu caso. Ela aponta que o problema

da complexidade aparece primeiro para ser ‘simples’, ou seja, quanto mais perto se olha, mais

detalhadas as coisas se tornam.- “questões mais complexas produzem respostas mais

complexas”38 (1991:xiii). Mas o problema que isto gera para os antropólogos é que os

fenômenos e variações parecem nunca acabar. Como mostrei com minha descrição do LBA,

quanto mais perto alguém olhar, mais variação interna aparece ali, eclipsando a importância

das fronteiras iniciais desenhadas em torno do fenômeno a fim de organizar o conhecimento

disto.

Strathern mostra que esta sensação vem de um entendimento do mundo como

composto de entidades discretas que podem só providenciar uma perspectiva parcial de todo

fenômeno. Isto, é claro implica uma certa idéia também de fenômeno como algo inteiro e

'particionável' (partible). Mas é a noção mesmo de 'parcionalidade' que dá uma pista na

implausibilidade desta idéia. Se aumento minha visão para incluir mais do que uma ‘visão’ ou

36 “I wished to take the reader through various ‘positions’ that have recently marked changing anthropological approaches to writing and representation in ethnography, in order to create a position from which to reconsider the possibility of cross-cultural comparison for Melanesia. But it seemed impossible to divide the work without appearing to give disproportionate weight to one or the other dimension. Either the theoretical excursus would seem like an introduction to comparative issues, or the latter would seem a mere appendix to the former. The one could implicate the whole of the discipline where the other concerns only a small region of the world; conversely, the on focuses on a particular instrument of endeavour where the other could offer concrete data in their realistic totality. Yet each might be equally subject to complex argument. Since this problem of proportion also appears in the anthropologist’s confrontation with the complexity of his

or her materials, it seems worth exploration. More than narrative is at stake here. Examining the culture of argumentative practice takes us into comparative argument about the way culture is practised.”

37 “switching perspective” 38 “more complex questions produce more complex answers”

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disciplina do LBA, ou a amplio a fim de capturar todos os mínimos detalhes de apenas uma

disciplina, sempre há a sensação de que o fenômeno pode ser infinitamente multiplicado,

exagerada por nossa habilidade para fazer ambas ações descritivas: “complexidade é

culturalmente indicada na ordenação ou composição de elementos que podem também ser

apreendidas a partir da pespectiva de outros outros”39 (1991: xv). O efeito é quase o de um

caleidoscópio, então cada transferência ou mudança de escala, se sabe que irá produzir outro

elemento para levar em conta - e se pode continuar sempre girando. Isto também engendra um

sentido de perda de informação por concentrar em qualquer escala em particular. A idéia de

um ‘todo inteiro’, então, pode ser tomada como um tipo de escala externa. Que sua descrição

parcial está faltando (lacking) é dado pelo fato que ela nunca é suficiente para levar em conta

aquele todo. Strathern decreve duas formas de organizar o conhecimento que conformam em

formas diferentes esta idéia de um todo em escala – “mapa regional” e “genealogia

bifurcada”40 (1991:xvii). A primeira é dada sua ‘escala’ a partir de pontos centrais que

permacem fixos e nos quais alguém pode aproximar-se e distanciar-se do fenômeno, a única

perspectiva que muda é aquela do observador. A segunda implica em um sistema fechado,

como um sistema taxonômico, que possui certos princípios de inclusão e exclusão então

qualquer fenômeno pode ser colocado em relação a outros. No entanto, apesar dos melhores

esforços da antropologia “fenômenos aparecem esquivando a escala”41 (ibid: xviii).

Em qualquer esforço comparativo, então, o que parece central em uma sociedade ou

no meu caso, em qualquer ‘sala’ por exemplo, pode aparecer como algo incidental ou

periférico em outro lugar qualquer. Como descrevi, esta é a sensação que experienciei ao

mover entre as ‘salas’, e movendo entre os ‘níveis’ dentro do LBA, seja aquele entre a página

da internet e meus locais de campo, ou com os locais de campo em si entre diversos níveis de

pesquisadores. O que é uma parte crucial da produção de conhecimento para alguns não o é

para outros; o que é definitivo do LBA para alguém não o é para outro. Strathern também

aponta para a forma na qual distinções que foram construídas para discriminar entre

sociedades vêm a ser repetidas com estas sociedades em si. Isto poderia ser visto em

diferentes (domínios) termos como os pontos nos quais as fronteiras entre as áreas de pesquisa

se dividem em processos de tentar relacioná-los, então, a forma que alguém discrimina com a

39 “complexity is culturally indicated in the ordering or composition elements that can also be apprehended

from the perspective of other orders” 40 “regional map and bifurcating genealogy” 41 “phenomena appear to elude scaling”

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prática científica entre a Química Atmosférica e a Química Física parece tornar-se ruidosa

quando face ao processo que atravessa ambos e implica ambos no ciclo carbônico total; ou a

partir da minha perspectiva antropológica, ao tentar definir o LBA como feita de diferentes

seções, que estas seções em si interagem umas com as outras; ou seja, os fatores de

discriminação entre eles se tornam internalisados, desta forma as pessoas falam de si mesmas

como ambos LBA e INPA, e apesar do LBA-ECO ser um componente do LBA, todos os

pesquisadores parecem ser parte dele, ou uma multidão deles sequer aparecem nas listas do

LBA-ECO. Mantendo alguns pontos fixos e aproximando-se ou afastando-se temos a

impressão de que mudamos os pontos em si; e ao fechar um sistema de acordo com certos

princípios não pode ser contabilizado o fato de que estes princípios discriminatórios parecem

re-ocorrer em lugares que eles, por definição, não deveriam. Nenhum deles parecem ser

formas suficeintes de contabilizar a complexidade na qual nós nos confrontamos ao tentar

organizar nossos materiais.

Contudo, Strather performa algo do mesmo tipo de movimento analítico quando

confrontado com esta complexidade, como Wagner o faz quando ele escolhe revelar os

paradoxos mais do que negociá-los. O que viemos a perceber é que “a característica

interessante sobre a mudança de escala não é que um pode classificar para sempre em grupos

maiores ou menores, mas que a cada nível a complexidade replica-se em escala de detalhe.

A ‘mesma’ ordem de informação é repetida, mostrando conceitualizações equivalentes e

complexas. Enquanto alguém pode pensar que idéias e conceitos crescem de um a outro, cada

idéia pode também ser vista como um universo completo com suas próprias dimensões, tão

enrugado e involuntário como o último”42 (1991:xvi, ênfase minha). Novamente nós lidamos

com “uma imagem auto perpetuante de complexidade”43 (ibid: xvi). O que isto por sua vez

significa é que esta sensação de crescimento da complexidade pode ser percebida mais como

conservação de complexidade. Uma coisa ‘pequena’ pode ser feita dizer tanto quanto uma

coisa ‘grande’, o que significa que a diferença entre ‘grande’ e ‘pequeno’ parece disaparecer.

Isto, por sua vez, torna difícil sustentar a idéia de que há alguma escala inteira externa, um

todo, a partir do qual julgar a complexidade de cada uma de suas ‘partes’ menores e

42 “the interesting feature about switching scale is not that one can forever classify into greater or lesser

groupings but that at every level complexity replicates itself in scale of detail. The ‘same’ order of information is repeated, eliciting equivalently complex conceptualizations. While me might think that ideas and concepts grow from one another, each idea can also be seem a complete universe with its own dimensions, as corrugated and involute as the last”

43 “self-perpetuating image of complexity”

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constitutivas. Que cada parte é sua própria visão então, não implica que a informação foi

perdida ou ganha em relação a alguma entidade total postulada, mas que a complexidade é

conservada em cada nível de análise, dada a “intensidade da percepção de similaridade e

diferença desempenha uma parte igualmente significante na contabilidade do antropólogo não

importa a escala”44 (ibid: xxi). As mesmas coordenadas intelectuais são evocadas não

importa a escala, então as coisas em si se tornam auto-escalares. Alguém pode derivar a

mesma quantidade de informação para não importa o que interesse, o que, por sua vez,

significa que noções de todos a partir dos quais partes foram cortadas se tornam distorcidas –

cada perspectiva, ao contrário, provê sua própria dinâmica relacional interna. Complexidade,

como o paradoxo com Wagner, é levado a uma vertente analítica, não algo para ser contido,

mas para ser explorado metaforicamente e narativamente – “[D]iferenciação não é depois de

tudo, contida – ela transborda as limites”45 (ibid: xxi). Isto, é claro, implica que não há uma

perspectiva totalizante, não há uma escala a partir da qual medir. O que parece haver é

movimento constante. Eu voltarei a este ponto quando eu voltar a repensar um conceito que

empreguei por toda descrição, aquele de ‘visões’. Porque visão é uma metáfora

particularmente poderosa para entender a qual tem suas próprias premissas para como o

conhecimento pode ser organizado. Estas premissas, no entanto, como mostrarei, podem ser

retrabalhadas, de acordo com teorias de como nós vemos o que não implica em estase, mas

em movimento.

Que toda perspectiva pareça parcialmente conectada, nesta forma,então tudo é

discriminado a partir elidido com tudo o mais (novamente, cos da formulação de Wagner são

evidentes aqui), era muito a forma que meu exercício etnográfico evocou, como lutei para

integrar uma imagem de uma totalidade definida – o LBA – enquanto era confrontado com

uma complexidade aparentemente crescente. No meu texto, eu falo de “o LBA” enquanto ao

mesmo tempo lamentando o fato de que não poderia segurar nenhuma estável imagem dela.

Mas Strathern sugere que tentar entender estes dois demanda outra metáfora que não aquela

das 'partes e todos', ou 'mapas e genealogias'. Strathern escolhe aquela do ‘fractal’. O fractal é

um conceito matemático concebido por Mandelbrot (ver por exemplo Mandelbrot, 1982), que

pode contabilizar os processos naturais. É uma figura geométrica não-euclidiana que se

replica e é auto-similar. Strathern escolhe duas imagens fractais em particular, aquela da

44 “intensity of the perception of similarity and difference plays an equally significant part in the

anthropologist’s account whatever the scale” 45 “[D]ifferentiation is not after all contained – it runs riot”

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Poeira de Cantor (Cantor's Dust) e a Curva de Koch (Koch's Curve). Em termos de escala,

porque um fractal é auto-similar, ele tem invariância escalar – ou seja, ele não tem nenhuma

escala natural. Fractais são repetições intermináveis de si mesmos, infinitamente complexos, e

a Poeira de Cantor é usada como forma de entender “irregularidades repetidas”46 (1991:xxi)

– que também podem ser lidas como ‘diferenciação’, na qual o mesmo conjunto de instruções

é repetido a cada nível de informação, gerando lacunas mas sem qualquer perda de

informação. O que é gerado são imagens de “mapas sem centros” e “genealogias sem

gerações”47 (ibid: xx). Estes são conceitos sem sentido só se os mapas e genealogias em

cartaz são lineares e escalares. Se não são, mas são fenômenos em movimento constante,

então para “mapeá-los” é necessária a aplicação de um tipo diferente de cartografia e um

diferente conceito de topologia. A Curva de Koch é uma imagem de uma linha infinita em um

espaço finito; novamente, isto ecoa a forma na qual eu estava me debatendo ao tentar ‘fazer

caber’ uma multidão de imagens heterogêneas ‘dentro’ de um todo unificado. Outra imagem

que Strathern emprega é aquela do contato entre superfícies, ou da ‘geometria fractal’ das

superfícies – o aperto de alguém em uma ferramenta é na verdade nunca ‘completo’ porque,

em uma escala infinitesimal, a alça e a mão nunca tocam-se de verdade. Cada ponto de

contato pode ser visto com feito de uma 'irregularidade' (bumpiness) que pode ser

infinitamente reproduzida. Isto parece novamente uma descrição pronta da minha inabilidade

em ‘compreender’ o LBA como uma totalidade. Nós somos lembrados do paradoxo de Zeno,

no qual a distância entre A e B é infinitamente longa. Eu me demorei nestas imagens porque

elas capturam duas coisas muito bem. A primeira é como ‘imagens’, elas representam em suas

formas paradoxais ‘o LBA’ a partir da minha descriçao; a segunda é que eles também provêm

uma maneira de pensar porque elas o representam.

O que eu estou descrevendo, então, não é meramente o LBA, mas minha tentativa de

entender o LBA. Isto foi caracterizado por uma sensação de desproporção e dissonância –

“quando os centros de atenção não se mantém estáveis”48 (Strathern, 1991:xviii). O

antropólogo se vê face a uma falta de conexão desbalanceada, e há um sentido de

insuficiência, como se a “capacidade para conceituação, alguém poderá dizer, excedesse os

conceitos que produz”49 (ibid:xv). Voltando para o processo de prática analítica em

46 “repeated irregularity” 47 “genealogies without generations” 48 “when the very centres of attention do not hold steady” 49 “capacity for conceptualization, one might say, outruns the concepts it produces”

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antropologia, então, pode ser visto que as ‘lacunas’ que aparecem no conhecimento são

geradas pelo ato mesmo de fazer as perguntas. Da mesma forma, talvez, que sugeri que o

‘inato’ como um fenômeno complexo é constantemente 'jogado fora' (precipitated out) da

maneira em que o LBA concebe da Amazônia e a Natureza, o 'inato' 'jogado fora' (precipitated

out) da análise antropológica é a idéia de que o argumento pode sempre ser repetido, que

responder a pergunta de alguém gera uma outra. Isto é o que deve ser tomado como ‘dado’ na

análise antropológica, a replicação da complexidade – perplexidade. É o ato mesmo de

analisar que gera estas novas questões; em adição a toda padronização que é criada está o

conhecimento de que aquela padronização pode ocorrer novamente. O que é inato, então, aqui

aparece como incerteza, ou novidade (novelty), a compreensão do movimento constante.

Wagner faz uso da imagem de uma holografia, uma forma que nega a escala como estratégia

analítica, como cada parte contém e é capaz de reproduzir a complexidade do todo. Assim,

para o Gimi, “um pênis faz de si um feto para dar lugar a outro feto com um feto crescido”50

(Wagner, 1991:169); imagens da reprodução do Gimi são metonímicamente relacionadas

somente para ser substituídas e diferenciadas. Relacionar é também separar. Como Wagner

escreve “é importante manter no pensamento que o processo árduo de diferenciação faz parte

tanto da holografia …quanto o motivo em si”51 (1991:169). Strathern nota que “a imagem

contém seu próprio efeito de remainder, no ato de imaginação”52 (1991:xxiii) – o remainder

sempre serve para propulsar a próxima questão, que gera um remainder, que propulsiona a

próxima questão. O processo parece sem fim.

Há, por isso, algumas analogias explícitas que devem ser examinadas aqui. Na

proposição de uma geometria fractal, como forma na qual estruturar e entender nosso

conhecimento dos outros, e também para estruturar sua narrativa, Strathern está postulando

uma analogia particularmente antropológica que é inerente por todo o seu trabalho. As

manoplas conceituais que ela delicadamente joga na frente das ‘metáforas de raiz’ (root

metaphors) do pensamento ocidental são tecidas através de processos de retrabalhar a noção

ubíqua de 'todos que englobam suas partes' (por exemplo Strathern, 1992b), que encontrar-se

refratada na noção de propriedade (por exemplo Strathern, 1988a) e posse (por exemplo,

Strathern, 2001), a noção de sociedade e a noção do individual (por exemplo Strathern 1988a,

50 “a penis makes itself a foetus to replace another foetus within an ‘enlarged’ foetus” 51 “it is important to keep in mind that the arduous process of differentiation is as much part of the

holography….as the motif itself” 52 “the image contains its own remaindering effect, in the act of imagination”

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1996), entre outras. E estes desafios têm em sua raiz o trabalho etnográfico da Strathern no

Mt. Hagen, e seu conhecimento da Melanésia. Toda sua prática etnográfica joga com esta

tensão, mas ultimamente é sim capturar a natureza ‘distinta da sociedade Melanésia’53

(Strathern, 1988a) assim como é revelada por e revela a ‘natureza distinta’ de nós mesmos no

Oeste. Suas manoplas são feitas para caber nas mãos ocidentais, mas mãos que foram

moldadas, alongadas, extendidas, lidando com materiais melanésios. Como ela diz em Partial

Connections, ela “deliberadamente tentou encontrar análogos na experiência melanésiana para

a experiência acadêmica, que, ao contrário do que alguns de seus modelos nos dizem, a

complexidade mantém sua própria escala”54 (1991:107). Assim, às vezes, o Ocidente e a

Melanésia são usados como contrapontos, e em outros, eles são trazidos junto, mas sempre

com esta relação distintiva em questão. Isto é o movimento da narrativa, um distanciamento

esclarecedor de dois pontos e em seguida uma justaposição generativa subsequente das

posições transformadas, o que eu acho, estrutura seu possivelmente mais aclamado livro The

Gender of the Gift (1988a). Seu movimento é aquele de figura-fundo reverso que tem tanto as

experiências melanésianas e ocidentais a constituindo, servindo para desestabilizá-la ao

mesmo tempo que a propulsiona, um movimento capturado por imagens que ela usa em

Partial Connections: “A poeira de Cantor sugere uma alegoria entre como os Melanésios

assim lidam com o imaginário e como antropólogos lidam com as manifestações das conexões

parciais por eles presumidas devem existir”55 (1991:114). O pensamento antropológico se

torna nesta imagem um processo interativo replicativo, e ao mesmo tempo necessário para

uma reconceitualização da prática-conhecimento (knowledge-practice) melanésio; o

observador e o observado são assim dissolvidos nesta forma, só para ser reinstalado de uma

forma diferente.

Wagner e Strathern são eles mesmos interdigitados, cada um citando o outro quando

discute a noção de 'fractal'; isto aponta não só meramente para uma tradição intelectual, mas

um fundo etnográfico dividido. Nesta explicação de seu conceito dos Daribi (na Melanésia)

da “pessoa fractal”, Wagner (1991:162) enfatiza a 'não dimensionalidade' dos fractais – que

não podem ser expressados em números inteiros, e nesta condicão opõem-se a noções de

singularidade ou pluralidade através da característica de “aparente diferenciação desenvolvida 53 “distinctive nature of Melanesian sociality” 54 “deliberately tried to find analogs in Melanesian experience to the academic experience that, contrary to

what some of our models tell us, complexity keeps its own scale” 55 “Cantor’s dust suggests an allegory between how Melanesians thus handle imagery and how anthropologists

handle the manifestations of the partial connections they presume must exist”

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sobre a congruência universal e intercambialidade”56 (1991:164). Ele demonstra esta lógica

fractal com nomes Daribi, que são relacionais, não representativos; eles denotam

características relacionais de congruência, são “ abstrações de poai”57 (1991:164) (o

particípio Daribi do verbo poie ‘ser congruente com’). Nomes designam algo que é tanto

menos e mais que a pessoa nomeada através de uma noção radicalmente relacional de

identidade. E para capturar isto em outra forma, Wagner escreve “uma forma holográfica e

auto escalar assim difere de uma ‘organização social’ ou ideologia cultural naquilo que não é

imposto assim como organizar e ordenar, explicar ou interpretar, um conjunto de elementos

disparatados. É uma instalação dos elementos em si”58 (1991:166). Como “modo de

entendimento”, ele insiste que isto é uma repercepção (1991:170) – “alguém poderá dizer que

a holografia indígena é re-interpretaçåõ das idéias do antropólogo, e no processo

reinterpretação da interpretação em si”59 (1991:171). Como Omalyce, a imagem mítica

Daribi de origem, a relação entre o nativo e o antropólogo é envolvida em um processo

infinito de interligação indistinguível, uma fronteira fractal, na qual as relações não são meios

para unir elementeos díspares porque todos não são somas de suas partes. O fractal em si

(outra imagem, desta vez, que Strathern desenhou a partir de Haraway (1991)[1985]) um

“cyborg de um pensamento”60 (Strathern 1991:115), não só porque é uma metáfora mista, um

conceito matemático a serviço da antropologia, mas porque o que ele conduz é uma unidade

contrastada (contrasted unity) a partir da qual as duas forças opostas extendem-se a cada uma,

desajeitadas e desbalanceadas. Mas o sentido de falta de proporção e conectividade parcial

entre estas percepções é o que nos permite imaginar a extensão de ambos. Não oposição

rígida, mas cumplicidade vem a mente como uma forma melhor de descrever esta imaginação

(imagining) particular.

Eu explorarei esta noção de cumplicidade ao longo da minha dissertação. Eu pretendo

que isto capture a criação compartilhada de um ato ‘ilegal’ ou subversivo, uma colusão que

causa confusão. Um cyborg é uma máquina monstruosa, nas palavras de Haraway

56 “apparent differentiation developed upon universal congruence and interchangeability” 57 “instantiations of poai” 58 “a holographic or self-scaling form thus differs from a ‘social organisation’ or a cultural ideology in that it is

not imposed so as to order and organise, explain or interpret, a set of disparate elements. It is an instantiation of the elements themselves”

59 “one might say that the indigenous holography is re-interpreting the anthropologist’s ideas, and in the process re-interpreting interpretation itself”

60 “cyborg of a thought”

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“comprometido com a parcialidade, ironia, intimidade e perversidade”61 (1991 [1985]: 151).

Haraway usa isto como uma ‘blasfêmia’, e apesar do uso de Strathern do termo ser talvez

menos polêmico e retórico, não é menos poderoso, como uma forma na qual tentar entender

algo que é ‘impensável’. De forma semelhante, o fractal na matemática foi visto como

monstruoso – “Estas novas estruturas foram consideradas… como …’patológicas’…como

uma ‘galeria de monstros’, de forma semelhante a que a pintura cubista e a música atonal

estavam desagradando os padrões estabelecidos de gosto na arte por volta da mesma

época”62. Eu gostaria que ‘cumplicidade’ então aqui desempenha o papel de um aviso de dois

gumes assim como uma tentativa de capturar o que eu vejo como um aspecto essencial do que

significa ‘relacionar’. As relações que eu exploro nesta dissertação, entre o antropólogo e a

ciência, com a ciência do LBA e o mundo com que se relaciona – todos estes participam um

no outro, e uma investigação acerca das formas cúmplices nas quais eles o fazem é

intencionada para contabilizar a dinâmica figura-fundo inerente em qualquer coisa que seja

‘normal’ ou ‘monstruosa’, ‘pensável’ ou ‘impensável’. A colusão é para ser abordada com

cuidado, a medida que pode facilmente tornar-se exploração; e exploração é mais e menos do

que pode parecer, como Strathern demonstra (Strathern, 1987).

Por isso o segundo ato analógico para ser explorado é o meu próprio. Eu originalmente

igualei a forma na qual o LBA parece organizarseu conhecimento com a forma na qual a

antropologia o faz para si, na medida que ambas parecem gerar a sensação de um resíduo

relacional e complexidade crescente. No entanto, um aspecto interessant de comparação entre

estes dois modelos é aparente. A partir de uma perspectiva antropológica, a noção de

complexidade sempre crescente pareceu gerar, como Strathern nota (1991), um tipo de

desespero do esforço comparativo, e como demonstrei, certamente quando alguém está frente

a tal proliferação de pontos de vista se parece perder qualquer forma de representá-las como

um todo. É por isso, pessoalmente, que acho a imagem de Strathern do fractal tão poderosa –

poruqe ela permite a alguém pensar através de algo que foi previamente impensável. A

sensação de crescimento da complexidade abre caminho a alguém na qual a complexidade é

repetida, e alguém pode chegar a termos com os seus processos conceituais próprios como

algo produtivo, ao invés de detrativo. Isto serve como um antídoto à paralise pós-moderna

(Strathern, 1988b). No entanto, na prática científica como a descrevi para o LBA, não há este

61 words “committed to partiality, irony, intimacy and perversity” 62 Freeman Dyson, “Caracterizando a irregularidade”, Science, Maio 1978

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tipo de desespero. Como Wagner aponta, isto se deve ao fato de que “o trabalho da ciência é

‘negociar’ seus paradoxos, mais do que jubilosamente expô-los…Ciência [e]stabelecida, com

suas escolas, suas cadeiras e suas literaturas, é um ‘compromisso’ de trabalho altamente

tentador e negociável, adiando as implicações paradoxais de suas idéias (ou até fabricando ou

subescrevendo a teorias que as negam) para que possa continuar com seu trabalho de negociá-

los empirica e experimentalmente.”63 (1977:389) Este processo de constantemente expandir a

complexidade é negociado ao constantemente subsumir o que se cria sobre o que existe, ou

seja, perpetuamente reinventar a visão de mundo de alguém do ‘inato’. Eu sugiro que a forma

de organizção do conhecimento que parece prescindir no LBA como descrevi a partir da

página da internet baseia-se na idéia de partes recortadas a partir de todos e que toda mudança

de escala que confunde aquele todo eventualmente é acomodado para com a noção mesma

que ela inicialmente confunde. O conhecimento científico pode, a partir daí, confortávelmente

ser definido como uma acumulação de fatos, mais do que uma acumulação de complexidade,

mesmo apesar de aparecer como ambos. Apesar de parecer que a ciência é um alvo vulnerável

neste sentido, eu sugiro que a maior parte dos lugares nos quais o paradoxo pode ser

localizado, o que na formulação de Wagner seria em todo o lugar, aqueles envolvidos não

vêem a si mesmos como lidando com paradoxos, de forma alguma. A flecha de Zeno não

pode alcançar a tartaruga – mas o faz. Superfícies não podem tocar – mas elas o fazem.

Mas nos permitindo a imagem destes paradoxos, eu sugiro que ao contrário da

afirmação de Wagner, a antroplogia é em algum sentido, negociá-los. De qualquer forma, este

tipo de negociação é diferente daquela negociação na qual Wagner caracteriza a empresa

ceintífica. Ali, um modo simbólico é escolhido como cabendo, ou disponível para a ação

humana e construção, e a outra como inata ou dada. Isto, como sugeri permite a ciência

continuar ‘crescendo’ em complexidade, enquanto a assimilando ao mesmo tempo. Mas uma

antropologia de ‘mente fractalizada’ não pode escolher nesse sentido – mas é claro, o faz. Ela

gera seus próprios paradoxos, e não pode escapar das metáforas raiz que ela desenha – ao

final, o fractal será, tenho certeza, mostrada como um defunto analiticamente, e outra idéia

tomará o seu lugar. Mas o que fazemos em reunir ou revelar nossos paradoxos na antropologia

talvez seja permitir-nos mais formas variadas de lidar com a complexidade do que a que 63 “the business of science is to “negotiate” its paradoxes, rather than to gleefully expose them...[E]stablished

science, with its schools, its chairs, and its literatures, is a highly tentative and negotiably working “compromise”, postponing the paradoxical implications of its ideas (or even contriving or subscribing to theories that deny them) so that it can get on with its work of empirically and experimentally negotiating them.”

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enfrentamos. Na verdade, nós temos quantas formas quanto existem; temos quantas opções

quanto as diferentes culturas, subculturas, pessoas e práticas que estudamos têm. Eu venho

lustrando este conceito ‘complexidade’ em meu texto, associando a ele uma posição como o

oposto de ‘simplicidade’ a fim de demonstrar a forma na qual ela vem a figurar como forma

infinitamente proliferante no ato da análise. Este lustrar é talvez mais simplesmente colocado

em oposição entre o que é ‘conhecido’, e o que é ‘desconhecido’. Para o LBA a noção parece

conter esta oscilação. No entanto, ‘complexidade’ pode ser figurada em muitas formas

diferentes.

‘Complexidade’ se tornou algo como uma palavra da moda hoje, e uma grande

quantidade de literatura foi produzida sobre o tema. Mas como Mol e Law apontam, “a

mobilização sem fim desta única tropa, na qual simplifação figura como uma redução de

complexidade, deixa uma grande quantidade para descobrir e articular. Nós precisamos de

outras formas de relacionar a complexidade”64 (Mol e Law, 2002:6). Em um artigo no

mesmo volume, Mol terminar sua parte nos tipos de complexidade que emergem comparando

dois tratamentos para a obstrução vascular ao apontar que “é importante não estar espantado

com, ou em diferença a, complexidade, mas encontrar formas de analisá-las. Para certificar-

se, o reino sócio-copróreo-técnico da medicina carece da mágica da matemática, onde a

imagem complexa do fractal aparece como o produto de uma simples equação de uma linha.

No entanto, desvendando o que a primeira vista parece barroco para agarrar pode permitir

dispô-las em uma séria de estórias lineares”65 (Mol 2002: 248-249). A abordagem de Mol é

uma tentativa de contabilizar a complexidade em um conjunto – medicina – onde lidar com tal

complexidade não é meramente um esforço intelectual, mas uma tarefa prática e urgente. Ela

quer “abrir” as complexidades assim elas podem ser discutidas. Mas a noção de complexidade

‘barroca’ que ela usa é uma referência a outro tipo de análise da complexidade, no mesmo

volume. Neste artigo, Chunglin Kwa traça as trajetórias históricas – de Darwin a Deleuze,

Lord Kelvin a Prigogine – de dois tipos de complexidade, barroca e romântica, que têm

“conceitos muito diferentes da estrutura da realidade”66 (Kwa, 2002: 27), apesar de que

“ambos são discursos na complexidade que estão disponíveis para os cientistas, e os quais os 64 “the endless mobilization of this single trope, in which simplification figures as a reduction of complexity,

leaves a great deal to discover and articulate. We need other ways of relating to complexity” 65 “it is important not to be in awe of, or in deference to, complexity, but find ways of analyzing it. To be sure,

the socio-corporeo-technical realm of medicine lacks the magic of mathematics, where the complex fractal image appears as the product of a simple one-line equation. However, unravelling what at first sight seems to baroque to grasp may allow one to lay it out in a series of linear stories”

66 “quite different conceptions of the structure of reality”

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cientistas empregam”67 (ibid: 46). A complexidade romântica favorece “metáforas

estruturais” e provêm uma “natureza que pode ser conhecida e abordada a partir do ponto de

vista de um conjunto fixo de leis naturais”68 (ibid:46). Há uma unidade subjacente para a

heterogeneidade no mundo, um holismo de ordem maior, que pode ser descoberto. A

complexidade barroca, por outro lado, “observa o rastejar mundano e o enxame da matéria”69

(ibid: 26). Citando Liebniz, Kwa enfatiza o que poderíamos agora ver como a natureza fractal

desta complexidade – “Cada porção de matéria pode ser concebida como um jardim cheio de

plantas ou um poço cheio de peixes. Mas cada galho de uma planta, cada gota de seus fluidos

corporais, é também um jardim, ou tal poço”70. A complexidade barroca usa outro conjunto

de metáforas, evocando imagens ou elementos em um movimento constantemente turbulento.

A noção mesma de qualquer totalidade de ordem maior é chamada a questão, na medida que

não pode ser separada de suas ‘partes’. Seguindo Spinoza, onde a complexidade romântica é

mais como natura naturata – ‘natureza naturalizada’ – a complexidade barroca está mais

perto da natura naturans – ‘natureza naturalizante’. Se, como Kwa sugere, “incerteza no caso

barroco é ontológica, não epistemológica”71 (ibid: 47), então isto apresenta-se como uma

maneira de pensar como em minha análise as formas nas quais a organização do

conhecimento do LBA, e da antropologia, 'jogam fora' (precipitate out) diferentes tipos de

complexidade ‘inata’ – a anterior crescendo somente porque é constantemente re-percebida

em relação a um todo englobante, a posterior conservada porque está constantemente

reinventando aquela imagem mesma de totalidade. A incerteza da antropologia de fato parece

ontológica.

Eu (des)centralizei este capítulo em torno do trabalho de Strathern e Wagner, porque

suas abordagens aparecem para mim como sendo muito fruitíferas para tentar aceitar os

problemas analíticos que estudar uma unidade contrastada (contrasted unity), como o LBA,

parecem explicitar. Contudo, o problema da ‘unificação da ciência’ moldou o estudo do

‘social’ das décadas da ciência (ex. Kuhn 1962, Lakatos, 1970). E isto não foi menos que uma

problemática obrigatória para muitos estudos da ciência contemporânea. Knorr-Cetina

escreveu extensamente sobre a desunidade da ciência como composta por “culturas

67 “both are discourses on complexity that are available to the sciences and on which the sciences draw” 68 “nature that can be known and approached from the point of view of a fixed set of natural laws” 69 “observes the mundane crawling and swarming of matter” 70 “Every bit of matter can be cconceived as a garden full of plants or a pond full of fish. But each branch of

the plant, each drop of its bodily fluids, is also such a garden or such a pond” (tradução do Kwa 2002: 26) 71 “uncertainty in the baroque case is ontological, not epistemological”

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epistêmicas”72 (por exemplo Knorr-Cetina, 1999), ao invés de disciplinas ou especialidades,

a fim de demonstrar os diferentes tipos de “maquinário do conhecimento” (knowledge

machinery), as “diferentes arquiteturas das abordagens empíricas”73 (Knorr-Cetina, 1999:3)

que constróem os cientistas. Seu trabalho enfatiza as divergências ontológicas e

metodológicas nas ciências naturais, levando dois tipos desta cultura epistêmica, física de alta

energia e biologia molecular, e usando uma como um contraste com o qual traçar o

maquinário do conhecimento específico do outro ao longo de eixos conceituais, territoriais e

temporais, e a extensão destas maquinarias em outros domínios sociais.

Galison (1999 [1997]) propõe uma teoria de ‘zonas de troca’ como uma forma de

entender as trocas de idéias muito diferentes, algumas vezes opostas, para o outro lado das

‘subculturas’ teoréticas, instrumentais e experimentais da cultura da física, visando delinear

“uma descrição da física que não seria unificada nem dividida em fragmentos isolados”74

(ibid: 137). Tradições diferentes e finitas de teorização, experimentação, e feitura de

instrumentos (instrument-making) podem encontrar-se sem perder suas identidades separadas.

Galison traça os argumentos dos positivistas lógicos Carnao e Neurath, que procuraram

definir a ciência como construída a partir de um ‘protocolo de linguagem’ básico desenhado a

partir da observação e a partir do qual a fundação invariante de qualquer teoria poderia ser

construída. Esta idéia de observação como a pedra fundamental da unificação da ciência foi

desafiada pelos anti-positivistas (incluindo Kuhn), que negou qualquer forma de separar teoria

da observação, e qualquer forma de ser capaz de postular um ‘protocolo de linguagem’. Eles

ressaltaram a falta de qualquer continuum por trás da ciência, dividindo as disciplinas

científicas separadas em muitas partes diferentes separadas por ‘microevoluções’. Galison

aponta que como inversões de cada uma, posições positivistas e anti-positivistas ambas

subescrevem para uma idéia implícita de conhecimento como feito a partir de “placas

tectônicas” que “passam uma pela outra sem tocar”75 (ibid: 142). Galison, ao contrário,

propõe uma idéia de uma ciência intercalada, na qual as subculturas da teoria, experimento e

instrumentação são colocadas em camadas umas sobre as outras, apesar de que cada possui

“seu próprio ritmo, casa possui seus próprios padrões de demonstração e cada uma é

encaixada diferentemente um uma cultura mais larga de instituições, práticas invenções e

72 “epistemic cultures” 73 “different architectures of empirical approaches” 74 “a description of physics that would neither be unified nor splintered into isolated fragments” 75 “float past each other without linking”

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idéias”76 (ibid: 143). Cada uma é parcialmente autônoma, não há base absoluta contínua na

observação, e as quebras que ocorrem em cada podem ou não ocorrer simultaneamente. Cada

uma delas tem suas próprias ‘verdades’ restritivas, e assim a robustez da ciência reside na

manutenção do comprometimento a estas verdades enquanto permissão para uma

comunicação entre elas. Por esta razão, Galison desenha no estudo ‘antropológico’ de “zonas

de troca”, domínios nos quais duas culturas são postas em contato mesmo quando mantêm

ontologias muito diferentes. Usando exemplos de Cuba, Galison sugere que, da mesma forma

que o dinheiro pode assumir formas muito diferentes para os donos brancos de uma

monocultura em latifúndio e o trabalhador cubano, podendo ser intercambiado entre eles e

servindo como entidade transacional, também as diferentes ‘subculturas’ da física podem

intercambiar e fazer uso de permutações ontológicas muito diferentes destes conceitos básicos

como “energia” e “matéria”. Eles o fazem com zonas de troca “altamente comprimidas”77

(ibid:147), áreas de encontro (meeting grounds) que constituem domínios de intercâmbio e

comunicação (no equivalente científico das línguas ‘pidgin’ e ‘crioulo’, simples e funcional)

sem negar a separabilidade de diferentes disciplinas. Galison insiste que é exatamente esta

“desordem da comunidade científica – o estrato laminado parcialmente independente que dá

sustentação a um outro” e a “desunificação da ciência – a intercalação de diferentes padrões

de argumentação – que é responsável por sua força e coerência”78 (ibid: 157), desenhando na

metáfora de Pierce do cabo com suas fibras numerosas e interconectadas que dividem o peso

igualmente e que por isso provêem a sustentação mais forte. A teoria de Galison é uma

tentativa de conter o problema da disparidade simultânea e unidade que é aparente na ciência,

permitindo uma visão dos vários praticantes destas subculturas com a física como

negociantes, “coordenando partes de sistemas interpretados contra partes de outros”79 (ibid:

149).

Tanto Knorr Cetina quanto Galison oferecem análises intrigantes e insights para a

desunião da ciência, e como nós podemos vir a tentar entendê-las. Contudo, sinto que levaria

muito mais trabalho de campo etnográfico do que o que fiz para que pudesse ser capaz de

afirmar ou recusar a presença de um conjunto de maquinários epistemológicos, ou diferentes 76 “its own rhythm, each has its own standards of demonstration, and each is embedded differently in the wider

culture of institutions, practices, inventions and ideas” 77 “highly constrained” 78 “disorder of the scientific community – the laminated, partially independent strata supporting one another”

and the “disunification of science – the intercalation of different patterns of argument – that is responsible for its strength and coherence”

79 “coordinating parts of interpreted systems against parts of others”

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subculturas, com o LBA. Esta descrição inicial pode somente esperar tentar traçar minhas

próprias observações ao confrontar a desunião e unidade que vi com a especificidade do LBA.

Comparar este tipo de observações com aquelas de outros que estudam diferentes ciências e

empregam diferentes abordagens parece além do escopo de minha dissertação. Mas esta

sensação talvez seja novamente a de uma lâmina de dois gumes. Posso sugerir que unidade e

desunidade, tão ubíquas nos estudos da ciência, que confrontamos quando a estudamos, não é

só um resultado de vir contra a forma na qual a ciência organiza-se, mas é um reflexo das

imagens e formas que nós, antropólogos, assim como ocidentais, empregamos para conceituar

e organizar o mundo. O que posso, deste modo, tentar fazer é evidenciar minha própria forma

cúmplice.

Agrupar as diferentes visões que obtive lado a lado e analogamente tentar olhar para as

conexões comuns poderia ser uma forma de capturar esta miríade de visões com um todo

unificado. Ainda ao tentar encontrar um entidade fixa, uma imagem analógica, com a qual

ligar estas diferentes perspectivas, vê-se face ao problema que esta entidade é “não

independente do uso local”80 (Strathern, 1991:73). Como vimos com minha descrição da

torre, nunca há um torre genérica, somente um “multiplicidade de unidades específicas”81

(ibid: 73). Onde quer que se olhe, a torre é já uma imagem, e não parece ter uma analogia

base com a qual subsidiar tal organização descritiva – “se não podemos abstrair alguns

conjuntos independentes de contextos ou níveis que servirão para todos os casos, então como

controlamos as analogias que percebemos?”82 (ibid: 75). Talvez, Strathern nota, o problema

real é “que os contextos e níveis de análise dos antropólogos são ao mesmo tempo parte e não

parte do fenômeno que ele/ela espera organizar com eles” (ibid: 75). Novamente, nos

confrontamos com a idéia do cyborg na qual a relação entre o observador e o observado é

capturada em uma tensão constante cúmplice e implicada. Como Wagner prediz: “em tal

conceitualização fractal ou que conserva escala, o conceito em si amalgama-se com o espaço

de sua concepção”83 (Wagner, 1991: 171).

É nesta tensão que Wagner explora em sua elucidação da ‘análise obviacional’ 80 “not independent of local usage” 81 “multiplicity of specific ones” 82 “if we cannot abstract some independent set of contexts or levels that will hold across all the cases, then how

do we control the analogies we perceive?” 83 “in such a fractal or scale-retaining conceptualisation the concept itself merges with the space of its

conceiving”

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(obviational analysis) (1986). A 'obviação' (obviation) é “uma série de metáforas substitutivas

que constituem o argumento de um mito (ou a forma de um ritual), em um movimento

dialético que cessa quando retorna a seu ponto inicial”84 (1986:xi). Assim, eu poderia

postular cada visão como uma substituição, um movimento de uma perspectiva a outra, onde

um serve como um ponto a partir do qual entender o próximo sem propôr necessariamente

que o mesmo substrato continue estável a cada mudança. Este tipo de abordagem de

movimento dialético é o que tentei tornar aparente na forma na qual eu movi minha descrição

da organização do LBA de seu conhecimento sobre a Amazônia. Minhas próprias conclusões

aqui são de fato vistas como transformadoras com as quais eu venho a conhecer. Mas a

natureza desta transformação é importante. Como Strathern aponta “[e]stabilidade e

instabilidade coexistindo na mesma relação correlativa, cada uma implicada na outra,

produzem um fenômeno complexo. Efeitos estabilizadores e desestabilizadores(…)aparecem

entre e dentro modos de interpretação em si”85 (202:93). Ela emprega uma metáfora visual,

aquela de figura-fundo, para enquadrar esta relação entre estabilidade e instabilidade. Mas

onde ela coloca ênfase é no movimento entre os dois. Interpretação é vista como um

movimento de parar, e o mundo aparece pleno de coisas paradas e singulares. Mas o efeito de

qualquer interpretação é fazer estas coisas se moverem subsequentemente. Interpretação

antropológica é vista como um tipo de movimento o qual, ao parar, justamente traz entidades

para jogar umas com as outras, então que “ a descrição cria uma sensação de movimento nos

dados, empurrando esta informação um contra a outra. Tal busca por animação fixa qualquer

modo de entendimento que está em questão; nós podemos considerá-la como um ponto de

estabilidade onde todos os exercícios interpretativos têm que acabar”86 (ibid: 94). A descrição

para as coisas, as singulariza, a fim de fazê-las mover novamente. Ao concentrar no

movimento inerente em exercícios interpretativos, alguém pode tentar contabilizar todas as

váias posições e perspectivas que estão entalhadas nesse movimento. E este movimento é

tanto entre interpretações e com eles; ou seja, é um movimento de substituição, e uma mútua

orientação. O antropólogo quando face com o movimento em seus dados deve olhar para

orientar-lo ou a si mesmo de acordo com aqueles dados – “o movimento de uma pessoa provê

84 “ a series of substitutive metaphors that constitute the plot of a myth (or the form of a ritual), in a dialectical

movement that closes when it returns to its beginning point” 85 “[S]tability and instability coexisting in correlative relationship, each implicated in the other, produce

complex phenomenon. Stabilizing and destabilizing effects...appear between and within modes of interpretation themselves”

86 “description creates a sense of movement in the data, pushing this information up against that. Such a search for animation holds whatever mode of understanding is at issue; we may regard it as a point of stability on which all interpretative exercises are bound to come to rest”

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uma medida para o de outro”87 (Strathern, 2002: 108). Assim, não é só a “forma em que os

atropólogos controlam as analogias então, que parecem em questão, mas a forma em que os

atores as controlam ”88 (Strathern, 1991:76).

Eu vim falando acerca da noção de visão por algum tempo. Estou agora em uma

posição para confrontá-la com sua própria nocão 'confundidora' (confounding) – aquela de

‘movimento’. Movimento cria uma visão borrada. A maneira em que Strathern refigurar as

partes e todos e particularmente melanésiana, criada a partir da forma na qual melanésianos

concebem a socialidade e a pessoa, que pode, depois do ato de contra-interpretação, ser usado

para re-propulsar uma quantidade de noções ocidentais – singularidade e englobamento,

individual e sociedade, 'uns' constituintes juntados para formar multiplicidades de 'uns' e a

noção de relações como as linhas que conectam esses 'uns'. ‘Visão’ neste sentido então em

minha descrição será a metáfora pré-figurada desta análise, ela mesma animada pela noção de

movimento. Porque é uma noção de ‘visão’ como 'ponto de vista' que leva á confusão causada

pelos efeitos vertiginosos que estava tentando enfrentar anteriormente na minha descrição.

Pontos de vista singulares brotados a partir de cada ângulo, permitindo somente uma

perspectiva parcial do todo que foi assumido como posto em algum lugar além deles, o objeto

de escrutínio. Este todo foi mostrado, portanto, como uma entidade elusiva e auto-replicativa,

percebida mais como um movimento do que um ponto, implicado nas propriedades de auto-

escala de cada perspectiva e sustentando suas próprias perpetuações no ato de ser descrita. A

extensa literatura sobre os limites inerentes nesta metáfora de visão merece mais tempo e

espaço do que eu tenho a dar a ela nesta dissertação. Latour sugere uma metáfora de ‘trilha’ ao

invés de uma metáfora óptica para descrever a forma na qual entendemos o mundo: “outra

forma de melhor capturar a prática do cientista é considerar preconcepções, bases, teorias,

metodos, a prioris e cultura como estradas que tornam possível ganhar acesso ao animal eles

mesmos”, apesar da metáfora de trilha “não estar isenta de seus defeitos, no entanto, desde

que mantenha a idéia de que visão é conhecimento”89 (Latour, 2000: 371). Eu gostaria de

correr com isto ao explorar, e então extender, apenas uma limitação da metáfora de visao

como conhecimento. Um ‘ponto’ de vista implica uma perspectiva fixa de algo. É esta fixidez

que é parcialmente responsável pela sensação que que há um todo singular no qual todos estes

provêm uma perspectiva, e o que dá a sensação de parcialidade insuficiente e desta forma,

87 “one person’s movement provides a measure for another’s” 88 “way that anthropologists control the analogies then, that seems at issue, but the way the actors do” 89 “is not without its defects, however, since it maintains the idea that vision is knowledge”

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problemática. Alguém está frente a muitos pontos de vista de uma coisa. É sua fixidez e desta

forma exclusivamente que me induziu a perguntar qual ponto de vista era 'o real'. Eu gostaria,

ao invés, de explorar a noção de movimento como conhecimento90.

Eu vou 'fundar' esta noção de movimento nos dados do LBA em si. Os dados que o

LBA produz, assim como vou descrever em seguida, estão circulando constantemente, um

movimento que traz em si mudanças de forma, significado e perspectiva. Nenhuma destas

posições é mais ou menos importantes do que qualquer outra; ao mesmo tempo, todo ponto de

parada permite uma forma diferente com a qual entender. Os dados em si não residem em

qualquer destes pontos, mas somente fazem sentido em seu constante movimento. Se aquele

moviemento para, como nós podemos ver, os dados morrem, e não mais há informação.

Propriedade de um e de tudo, o todo, se existe, reside neste movimento, que pode ser parado

(‘interpretado’), mas somente a fim de ser colocado em movimento de novo. Se

conceitualização é inevitavelmente re-conceitualização, então o movimento que são os dados

do LBA permitem uma intrigante reconceitualização do problema de pontos de vista fixos em

objetos estáticos.

Para traçar, então, o movimento que os dados fazem e que fazem os dados, nós

devemos começar com onde são primeiramentes registrado, nas torres. Elas são um ponto de

partida arbitrário. Como no começo do capítulo, eu poderia começar em qualquer lugar.

90 Houve, é claro, muitas importantes ‘reconceituações’ de ‘visão’. Talvez uma interessante neste caso seja

aquela do cientista JJ Gibson (1986 [1979]). Como gibson aponta em sua investigação pouco convencional, nós não permanecemos parados, da forma como vemos. Estamos em contante moviemnto. Nós movemos enquanto vemos, e vemos porque movemos. Gibson escreve “ olhando em torno e movendo-se por aí não cabem na idéia padrão do que a percepção visual é. Mas note que se um animal tem olhos, ele balança sua cabeça e vai de um lugar a outro. O único, campo congelado de uma visão provê somente uma informação empobrecida sobre o mundo” (1986:2) – este é o aspecto de parcialidade problemático de minha análise. Os fatos conhecidossobre visão em seu tempo de escrita, que são “perfeitamente bons fatos” deveria ser notado, tudo reside em condições laboratoriais sendo observadas, na “vontade do sujeito em manter seu olho fixo como uma câmera” (1986:302). Mas o tipo de visão que ele lida com é ‘ambulatória’. Sua abordagem ecológica para a visão “comeca com o arranjo do fluxo do observador que”, livre das algemas impostos sobre ele em um experimento de laboratório, pode andar “de uma vista a outra, move em torno de um objeto de interesse, e pode abordá-la para escrutinar, assim…vendo as conexões entre superfícies escondidas e não escondidas” (1986: 303). Se visão é vista não como “baseada em uma sequência de instantâneos, mas em extraçnao invariante de um fluxo, alguém não precisa ter idéias sobre o meio a fim de percebê-lo…as crianças jovens não precisam ter idéias de espaço a fim de ver as superfícies em seu entorno…o psicólogo experimental deveria compreender que ele não pode verdadeiramente controlar a percepção de um observador… Percebedores não estão alerta das dimensões da física. Eles estão alerta das dimensões da informação no arranjo de fluxos de estímulo que são relevantes para suas vidas” (1986: 305-306). Talvez da mesma for a que a caracterização de Kwa da complexidade barroca inerente em uma noção do conceito que nunca é tosada a partir daquele que a concebe, visão aqui é imanente ao ato de mover e viver. Gibson imaginou proeminetemente nas palavras de outro antropólogo – veja por exemplo Ingold (2000) – e suas idéias s˜åo comparáveis a aquelas de Bateson (1972) de ‘ecologia da mente’.

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Começando com as torres, no entanto, permite-me descrevê-las um pouco, o que preciso fazer

de qualquer forma, a fim de ser capaz de mover livrementeem direção de meus próximos

capítulos. O LBA tem 15 torres em operação no momento, em Rondônia, Amazonas, Pará,

Mato Grosso e Tocantins. Estas têm um perfil de instrumentação acoplado a elas em

diferentes alturas. A torre com a qual tive o maior contato foi a torre que está a 67 km de São

Gabriel da Cachoeira, no Parque Nacional Pico da Neblina, Amazonas. Em agosto de 2007,

acompanhei uma expedição do LBA a esta torre. Eu já havia mencionado esta torre em seus

‘múltiplos usos locais’, e irei explorar a expedição em si no terceiro capítulo. Por agora, Eu

gostaria somente de concentrar na torre micrometeorológica e nos dados.

A torre em São Gabriel tem 64 metros de altura, e se alonga de forma que seus últimos

15 metros, mais ou menos, emergem do topo da copa da floresta, permitindo uma vista

deslumbrante de toda a floresta. Ela tem um perfil de equipamentos nela que foi montado a

fim de medir as diferentes variáveis que são pensadas para contribuir no fluxo carbônico.

Todos os dados coletados pelo equipamento são mandados eletrônicamente para um tipo de

computador simples, chamado um 'datalogger', que localiza-se em uma caixa e idealmente

deveria ser mantido seco e arejado. Existem dois dataloggers, um (modelo CR23X) que

armazena dados do equipamento no solo, e um (modelo CR10X) que armazena dados do resto

do equipamento, coletivamente chamado o AWS (Automatic Weather System). A figura 6

provê uma descrição deste equipamento.

Aos 2, 12, 22, 34, 50 e 63 metros, existem pequenos tubos com filtros acoplados, o

que suga e filtra o ar e o carrega para ser analisado pelos IRGAs, ( Infra-Red Gas Analysers -

Analisadores de Gás Infra-Vermelhos), os quais esta torre em particular tem dois. Um deles,

chamado o CIRAS (um analisador infra-vermelho de carbono), mede a concentração de CO2

e H2O, mols/m2. (Este na verdade parece somente funcionar na torre em São Gabriel. Quando

instalado em outras torres, ela para de funcionar. Ninguém sabe porque).

O anemômetro sônico é sincronizado com outro tipo de analisador de gás, que é

conhecido por seu nome de marca Licor (modelo LI7000), que vive em uma caixa a 52

metros. O Licor e os anemômetro foram configurados para que o fluxo de CO2 e de H2O

possam ser calculados uma vez a cada 10 segundos. Este cálculo é feito quando os dados são

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baixados do datalogger pelo pesquisador, e então recalculados novamente no escritório em

Manaus.

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Fig 6 – Diagrama da torre em São Gabriel, a partir da apresentação da Marta,

reproduzida com sua permissão.

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Ambos IRGAs trabalham de forma similar, o que eu explicarei em breve aqui. Ambos

analisadores de gás foram calibrados no laboratório, sob condições controladas. Calibragem

envolve passar o nitrogênio pelo IRGA, e ‘dizê-lo’ que isto é ‘zero CO2’ e isto é ‘zero H2O’.

Com este zero como ponto fixo então, o IRGA é capaz de gravar variações em CO2 e H2O. O

ar é sugado para dentro do IRGAs por uma bomba, a partir dos tubos que mencionei que

foram posicionados em diferentes alturas da torre – chamados um ‘perfil de gás’ (gas profile).

O ar sugado pela bomba na torre alimenta uma câmara no IRGA com a qual um laser infra-

vermelho é atirado nele de um lado. Um sensor do outro lado da câmara capta quanto infra-

vermelho não foi refratado por acertar as moléculas de CO2 e H2O na amostra de ar. Isto dá

uma medida de concetração de gás e água. O CIRAS, que não está acoplado a um

anemômetro, então faz uma leitura de concentração de CO2 e H2O, em micromols por m², a

cada altitude. O Licor, configurado com as leituras turbulentas sônicas do anemômetro,

provêm a quantidade de medida de CO2 e H2O que configuradas com as medições

turbulentas darão, ao fim um cálculo do fluxo. Estes dados são armazenados no AWS

datalogger, com o qual os dados de temperatura do ar e humidade, velocidade de vento e

radiação. Todos os dados armazenados devem ser baixados em diferentes intervalos de tempo,

quanto mais frequentemente, melhor, a fim de ser capaz de identificar qualquer anomalia que

sugere que qualquer dos equipamentos não está funcionando.

Para retirar os dados do fluxo carbônico como um exemplo, então. O Licor tem ar

puxado para si, passa os filtros e para a câmara, onde usa um jato divisor dicróico91 e dois

detectores separados para medir absorção infra vermelha pelo CO2 e H2O na mesma corrente

de gás. O Licor tem “quatro conversores digital para analógico (DACs) completamente

configuráveis, que são atualizados a 600 Hz. Os sinais de saída são diretamente proporcionais

a concentração de gás”92. A luz infra-vermelha que passa pelo filtro de divisão do jato acerta

91 “Jatos divisores dicróicos são filtors de passagem longa e curta que são usados em ângulos não normais de

incidência. Eles refletem altamente um espectro específico de uma região, enquanto transmite otimamente para outra…Dicróicos são não absorventes, ent˜åo toda a luz que não é transmitida é especularmente refletida…os compriemntos de onda maiores serão transmitidos através do filtro paralelo para o pátio original, o raio de luz incidente, enquanto os comprimentos de onda mais curtos serão refletidos em uma direção for a de eixo. Por tanto, o termo dicróico – duas cores” – https://www.omegafilters.com/index.php?page=prod_dichroics (retirado de uma página na internet de um fabricante de jatos divisores dicróicos, 4 de Julho, 2008).

92 http://www.licor.com/env/Products/GasAnalyzers/7000/7000_output.jsp

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o sensor, que o transforma em um pulso digital binário. Esta é então convertida pelo DAC em

corrente analógica, que é trasnformada na tela do Licor como representação grafica e

configuração de pixels – números. Esta informação é enviada via cabo para o AWS

datalogger, que tem uma série de canais, um canal diferente para cada sensor na torre. Ele

reside ali, armazenado, até que um pesquisador, normalmente um dos técnicos da torre que

vive em São Gabriel, vir com o laptop e baixar a informação do datalogger para o

computador, usando uma programa especial de computador. Ele ou ela, então, podem fazer os

cálculos iniciais de fluxo. Estes dados são, então, levados de volta para o escritório do LBA na

Escola Agrotécnica em São Gabriel, uma viagem que requere caminhada de mais de uma hora

pela floresta e dirigir 67 km por estradas de lama. Os dados são, então, transferidos do laptop

para o PC que está lá e enviados por email para Marta em Manaus.

Marta recebe os dados em sua tela de computador em longas listas de números. Ela,

então, tem que ‘limpar’ ou ‘cuidar’ dos dados que recebe – “limpando os dados” ou “cuidando

dos dados”. Dados, antes de ser limpos, são chamados “dados crus”. Esta limpeza e processo

de cuidado normalmente se faz usando o programa Matlab, e consiste basicamente de

remover dados que não parecem caber nos padrões micrometeorológicos. Marta escreveu um

‘filtro’ matemático especificamente no programa Matlab que ela usa e que detecta e remove

quaisquer números que são “impossivelmente altos”, e em seu lugar insere ‘NaN’ – Not a

Number (Não é um Número). Além desses filtros, ela também parametrizou o programa,

refinando-o para contabilizar tendências metereológicas específicas para a região. Quando

perguntei a ela como ela sabia o que remover e o que não remover, ela respondeu “a gente usa

conhecimento metereológico”. Um exemplo deste conhecimento meteorológico poderia ser se

os dados do sensor de radiação mostrar que mais radiação é refletida da vegetação do que

chegava, ela sabe que isto é “errado”. Mas ao mesmo tempo:

“dependendo da região… tem que estudar a região, ver como ela é, pra poder dizer se isso é normal ou

não… algumas coisas a gente não vai dizer dai muitas vezes a gente não pode afirmar tem que analisar

pra saber se realmente aquilo e um problema ou não (…) tem que ver o que esta acontecendo pode ser

que seja uma anomalia ou seja real.”

“A gente perde muitos dados” Marta me disse pesarosamente, conversando especificamente

sobre os dados que vêm da torre no local de São Gabriel. Como descreverei no terceiro

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capítulo, a torre de São Gabriel é particularmente problemática, e produz uma grande

quantidade de dados “misteriosos”, que devem ser adestrados. Assim, em um certo grau, os

dados que passam por este processo de limpeza se tornam o que já eram. Sua identidade

enquanto ‘dados’ é confirmada – antes este processo, poderia ser anomalia, mas depois disso,

ele sempre era dado. Como Marta pode saber quando isto é real ou não? Por clima, esto cabe

naquilo que ela já sabe. Se é assim, isto se torna parte daquilo. Se não, não se tornará.

Como Tota me explicou, no entanto, algumas vezesm dados anômalos podem ter outro

efeito. Ele pode induzir uma reavaliação de ambas teoria e prática:

“Anteriormente, se você põe uma torre aqui, você tiraria todo este volume, ok, em um plano

horizontalmente homogêneo. O fluxo que passa pela torre representaria toda esta área. Homogênea.

Lisa. Na medida que o tempo passava, as torres começaram a verificar o que os dados eram, suprindo

o que não cabia, não era fechamento do balanço entre as medições biológicas, e as medições retiradas

do topo da torre, de covariância de vórtices turbulentos. O que eram estas medições biológicas?

Respiração do solo, com câmaras localizadas no topo do solo. Você mede quanto o slo está respirando

dia e noite, você mede o diâmetro dos troncos das árvores; você mede o conteúdo carbônico das folhas

que caem… isto é tudo o que chamamos de ‘biológico’. E todas estas medições biológicas, eles irão

dizer para você a longo prazo quanto [carbono] está ficando e quanta decomposição está acontecendo,

soltando isto na atmosfera, ou emitindo-a. Mas quando você faz a medida biológica, a medida física de

eddy co-variance 93, lá em cima, no topo, eles não fecham – não correspondem. Há um déficit. E

ninguém é capaz de explicar este déficit. Então, voltamos e demos uma olhada na teoria.”

“Dando uma olhada na teoria”, Tota me explica, significou voltar à equação

fundamental de fluxo que denota “todos os fluxos integrados no líquido total em um dado

volume.” O fluxo vertical, que o anemômetro sônico e medida Licor é dado por um termo

particular desta equação.

“Mas o que é isso? É im termo somente…variação vertical velocidade multiplicada pela variação em

concetração de CO2. Se você olha para toda a equação, isto é somente um fluxo vertical, w CO2. Mas

93 “eddy co-variance” é a metodologia estatísitica corrente usada para calcular o fluxo de carbono, mas esta

metodologia implica também o uso de certa instrumentação, como por exemplo o anemômetro sônico, que provê as mediçnoes relevantes.

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se você abre esta equação, nós vemos que existem todos estes pequenos termos (termozinhos).

Pequenos. Durante o dia, estes pequenos termos (“termozinhos”) são realmente pequenos, comparados

com a turbulência, que é grande. Então, nós podemos pegá-los e jogá-los, eles não significam

muito…Mas então…durante a noite, nós compreendemos que estes outros pequenos termos podem ser

importantes.”

O trabalho de Tota é tentar contabilizar estes pequenos “termozinhos”, os processos

não turbulentos que não parecem precisar de velocidade vertical, mas movimento horizontal,

governado pela topologia e irregularidade da terra. O fluxo carbônico se torna

“tridimensional”. E isto significou que

“Nós tivemos que re-avaliar a teoria. E nós colocamos a frente algumas novas. A principal é que para

terra ondulada como onde as torres estão, estas ‘drenagens’ horizontais poderia ter um importante

papel como movimento vertical. Estas ondulações e irregularidades podem provocar importantes

fluxos horizontais, especialmente quando não há turbulência. Então, de repente, apareceram trabalhos

como este: “Incertezas das Medidas e Modelagens de Trocas Líquidas do Ecossistema de uma

Floresta” – isto foi em 2006. estas incertezas começaram a emergir. Este trabalho revisa todas as

pesquisas feitas desde os anos 90 naquela região e em todo o mundo. Ele mostra que nós temos

terrenos complexos e complexas topografias. O equilíbrio não fecha, e não só para o CO2.”

“Então, nosssa hipótese é que a torre colocada em um platô não está capturando todo o volume

representativo da área. Alguma da massa que está dentro desse volume está sendo transportada

horizontalemnte. Como em cima do topo você necessitaria ter um movimento vertical, você está na

verdade perdendo CO2 aqui, horizontalmente.”

“Então você reavalia a teoria, e tenta medir ester pequenos termos. Este é o meu trabalho. Eu pego

estes pequenos termos e os meço. Estou tentando fechar o equilíbrio novamente.”

“Porque você sabe hoje que a teoria não é totalmente medida por instrumentos. Este é o principal

problema que existe hoje, em todo o lugar. Todo mundo quer medir estes pequenos termos. Existem

vários experimentos na Austrália, Europa, USA. E o único experimento aqui no Brazil é o que estou

fazendo no momento.”

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As anomalias nos dados que apareceram aqui não foram descontinuados, mas

induziram uma reavaliação da metodologia instrumental, e a escavação da equação de fluxo

total. Normas e convenções foram questionadas. O que previamente foi desimportante, de

repente tornou-se foco de interesse em todo o mundo. Incertezas emergiram, e novas teorias

postuladas, demandando novos dados a ser coletados. Estes dados anômalos começaram todo

um novo conjunto de movimento de dados.

Uma vez que os dados são “limpados”, devem ser registrado, usando o LBA Metadata

Editor (LME). Metadata é “a informação que descreve as características (ex. Localizações

geográficas, nomes de parâmetros, datas) de vários conjuntos de dados” (LBA-DIS)94.

Pesquisadores não brasileiros devem deixar os ‘dados originais’ com seu parceiro brasileiro,

ou seja, os dados que foram coletados diretamente dos locais de pesquisa, e levar uma cópia

deles com els quando vão embora. Depois de um ano (apesar disto poder ser extendido para

os alunos de doutorado que estão trabalhando em seus dados por um tempo maior que este),

todos os dados coletados por projetos LBA devem ser disponibilizados para acesso por outros

pesquisadores. Isto é feito ao enviá-los ao CPTEC95 por email ou correio, onde são recebidos

por Luiz M Horta que cuida do banco de metadata do LBA e a ferramentas de busca, Beija

Flor. Neste ínterim, entre o registro da metadata dos dados de alguém e sua submissão ao

CPTEC, somente os metadados dos dados estão disponíveis para outros pesquisadores

acessarem, mas esta metadata está sendo atualizada o tempo todo, e ao mesmo tempo os

dados são trabalhados, e mais dados são coletados. Estes metadados são organizados pela

ferramenta de pesquisa Beija-Flor, e podem ser acessados por qualquer membro do público.

Estes metadados devem incluir, depois de um ano, o link da internet para o conjunto de dados

que ele descreve, mas acessar isto é geralmente restrito aos pesquisadores LBA.

“O Sistema de Dados e Informação do LBA é um sistema de gerenciamento de dados que atua como

um repositório para todos os dados do LBA. Os dados são checados em qualidade, renderizados para

um formato comum e tornados disponíveis para a comunidade do LBA o mais rapidamente possível e

transferidos para um arquivo permanente. Para facilitar o uso por pesquisadores que não estão no

LBA, cada conjunto de dados é cuidadosamente documentado e linkados em um quadro de

organização, então ele continua útil depois que o projeto foi completado.” (LBA-DIS)

94 Todas as citações creditadas a ‘(LBA-DIS)’ foram retiradas de documentos interns que Luiz M Horta, o

gerente do LBA-DIS, gentilmente cedeu. 95 ‘Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos’

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Cada noite, o Sistema Beija-Flor “minera metadados e constrói uma base de dados a

partir da informação minerada. Informação minerada é dividida pelos nós que os usuários são

capazes de procurar e revisam metadata ao acessar as interfaces baseadas na internet do Beija-

Flor e da LME em qualquer dos nós com seu programa baseado na internet” (LBA-DIS). O

que isto significa é que todos os conjuntos de dados do LBA são acessíveis a partir da

ferramenta de busca na página da internet do Beija-Flor. Por exemplo, um conjunto de dados é

armazenado no computador de um pesquisador, que está conectado ao ‘nó’ do Beija-Flor.

Toda a noite ele é minerado como metadados pelo Beija-Flor, e se torna parte da informaçnao

do Beija-Flor que pode ser pesquisada por outros usuários.

Laurindo é um dos pesquisadores a cargo do LBA-DIS, a seção do LBA que é

responsável pelos dados do LBA. O LBA tem uma “política” formal de dados e publicação, o

que Laurindo ajudou a criar. Ela foi criada antes mesmo do LBA começar seus experimentos,

porque sem a “política de dados”, nenhum trabalho pode ser feito. Ela diz que os dados serão

compartilhados, mas que tem regras. Dados são um produto e uma propriedade. Qualquer

pesquisador pode tornar seus dados disponíveis a qualquer momento para o público mais

amplo, mas é a responsibilidade de Laurindo certificar-se que todos os dados do LBA estarão

disponíveis depois de um ano. A análise dos dados como esforço comparativo pelos países é

valorisado, mas onde os dados serão usados, em estudos de modelagem ou integração, o

cientista que coleta os dados deve ser citado.

“Então, essa coisa da política de dados é extremamente importante porque o ideal, e é o que tá

acontecendo, é que a política ela tem que tá pronta antes do experimento começar, porque é o que vai

legislar os dados quando você coletar, onde, o que você vai fazer com esse dados, quanto tempo você

pode ficar com eles, quem é o responsável, quais são os seus direitos, quais suas obrigações, quem faz

o quê, quem cobra os dados, quem guarda, quem garante a segurança... Então todas essas perguntas de

interesse dos executores do projeto têm que ser respondidas a nível de política, se não há política o

experimento não pode começar. Você não tem o que fazer, você volta do campo com esses dados e

eles são seus? Porque alguém pagou esse projeto, se é governo americano, europeu, brasileiro ou os

três, então você tem essa...essa forma de legislar. E aí, a gente sempre diz o seguinte, que não é o

Laurindo que tá cobrando os dados, e a politica dos dados...Eu acho que é importante nós termos essa

política porque sem essa política não dá pra nós fazermos nada, não dá pra trabalhar”

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Laurindo também faz parte do PPBio, o departamento de biodiversidade do INPA,

assim como Mario e Luciana, que nós conhecemos anteriormente. Ele explica o que ele faz

em termos de dados de biodiversidade (mas isto também é aplicavel aos dados do LBA),

tentando fazer que todos os dados, mesmo aqueles coletados há 150 anos atrás, sejam

“recentes”.

“O que tem que acontecer é que você tem que ter métodos computacionais, algoritmos, que possam

interpretar usando conhecimento daquela pessoas, daquela descrições daquela criatura que coletou, o

pesquisador em campo, e tentando trazer ele pra uma posição verdadeira no presente. Com isso você

restaura um dado para uma nova classe que é o dado recente”

Trazendo todos os dados para o presente livra da necessidade de coletá-lo novamente,

e permite que sejam compartilhados; os dados são um legado, mas um que deve ser feitos a

ser assim por meios computacionais:

“O compartilhamento desses dados em grande escala, ele é muito econômico porque você não precisa

montar uma expedição... O que se está fazendo hoje é tentando saber quem é quem, quem é que tem

esses dados, como eles estão. Porque tão sendo coletados desde 140, 150 anos atrás, isso

sistematicamente, coleta sistemática. Então, nós estamos querendo fazer é que esse material esteja nas

mãos das instituições da Amazônia, a... As famílias de pesquisadores que tinham e que já falecerem

eles deixaram um legado...A computação é uma ferramenta que pode vir a resolver esse problema,

trazer essa informação aqui presente com uma qualidade real, definida, bem documentada e torná-la

disponíveis pra qualquer um pegar e usar”

Mas para que os dados sofram esta transformação temporal, eles devem ser ‘lapidados’, os

dados devem ser evidenciados como entidades atemporais, transformados de rabiscos em um

caderno, ou números descontinuados. Mas este processo novamente tem ecos explícitos do

que nós havíamos notado previamente, que os dados estão de alguma forma tornando-se o que

eles já eram:

“O dado tá bruto. O dado bruto é como um diamante bruto. Então, Precisa ser lapidado, certo? Mas ele

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foi coletado como um diamante é feito, vai ser avaliado, ver se as medidas tão certas, (...) se aquilo faz

sentido, (...), cumprimento, conteúdo estomacal, sólido, todas as variáveis (...) Da coleta até

publicação do paper, o dado ele é tratado muito bem. Todo dia ele é cuidado”

O movimento é imperativo – os dados devem ser cuidados por e manuseados da

melhor forma possível, então, na medida que mantém suas qualidade, o que significa que os

pesquisadores do LBA-DIS nunca podem parar:

“Até porque não pára, porque a tecnologia, a gente vai dormir, acorda de manhã e tem outra coisa

pronta, interessante, que nós queremos usar e vamos avançar...alguma técnica nova ou nós criamos

alguma coisa que é agradável pra nós e...nós fazemos isso pra...a forma que nós cuidamos de tudo isso,

de todo esse arsenal disponível, é cuidando ao longo do tempo, o projeto do LBA já tá aí desde 94, 14

anos, e nós estamos fazendo isso desde o início, cuidando de tudo.”

Como seus cuidadores, os dados também não podem parar. Se eles param de circular, a

entropia começa, informação é perdida, e eles 'morrem'. Mas não só os dados morrem, mas

toda a cadeia, todo o processo. Assim que os dados são publicados, e colocados em uma

biblioteca em algum lugar sem mais circular, os dados começam a sofrer com a entropia –

informação é perdida, ela deixa de ser dado:

“Publicou, aí ela começa a perder, entra no processo de entropia, ou seja, ele se esvaziou. Aí ele vai

pegar os dados, ou vai ficar com ele, comunica nada. Pega o bicho joga no museu. E aí os dados, ele

[?] coleta. Ele publicou, só que essa publicação, publicação, ela, geralmente ela não é associada àquela

base de dados...O que nós estamos querendo fazer é o seguinte, que na computação com isso nós

podemos primeiro, retardar o...a entropia”

Ter os dados no banco de dados, ou seja, em uso constante, constantemente sendo minerado,

atualizado e acessado, sendo enviado de um pesquisador a outro ao redor do mundo, significa

que mesmo se o pesquisador que coleta os dados morrer, mesmo se café cair em seu

computador, mesmo se ele se esquecer de tudo, perder seu hd externo (todos exemplos que

Laurindo me deu de entropia potencial), os dados são constantemente recentes, estão em

constante movimento e estão em constante uso, e esta entropia inerente nos dados é tirado da

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pauta:

“Quando esse dado aqui participa de um processo de síntese com outras disciplinas, climáticas por

exemplo, seco muito grande, por isso a população de peixes caiu muito naquela região, você usa dados

de clima, tempo e dados de chão. Você faz isso.. Então todos esse dado fica sempre como objeto de

atenção, então ele vai mudando a tendência dele, ele não vai cair como uma pessoa...como acontecia

no passado. Que tem coleções hoje ainda em papel, que não passou pra ninguém...por vinte e cinco

anos aquele conjunto de dados lá...e ninguém nunca mais utilizou. Acontece muito. Aqui não, como

você sabe que seus dados vão agregar valores e vão estar visíveis, agora bem documentados e de um

jeito bem cuidado”

“Isso não é uma visão que os pesquisadores têm. O pesquisador ele não consegue visualizar esse tipo

de coisa....que se ele visualizasse que a entropia dos dados dele é prejudicial pra ciência, eu tenho

certeza que ele não deixaria acontecer, não é verdade? Antes do [?] você deve fazer alguma coisa, no

mínimo documentar bem seus dados pra desenvolver. E como ele é um cientista ele não vai querer

levar pro túmulo dele tudo que ele fez nos vinte e cinco anos de pesquisa, não é verdade? Ele quer

deixar o seu legado pra frente. Então, nós entendemos que a informática nesse contexto, ela pode ser

realmente uma ferramenta valiosíssima. Porque ela mantém isso não só digital como eu propagar isso

no [?], na internet, na rede, nos computadores...”

Mesmo que todo pesquisador tenha um laptop, e há uma nova mentalidade, “hoje corre-se

todos os riscos também, não tô dizendo que comprar um laptop e um rádio desses aqui você tá

a salvo de... Não, não é isso. No entanto, os mecanismos em rede, você replica e você torna o

que você fez visível.” E esta rede, este movimento constante e mudança não só fazem tudo

visível, mas significam que “nós estamos em todas as pontas”; “nós não podemos fazer

um...um trabalho que vai acabar”.

Os dados do LBA existem como uma série de transformações intricadas. A partir do

‘fluxo’ de moléculas no ar, ele é sugado para dentro por um cano que sofre uma série de

transformações em pulsos e correntes e números, deve ser carregado pela mão e enviados por

email, onde são cuidados e ‘lapidados’; eles se tornam o que já são96. Ao mesmo tempo, ele

é transformado em meadata, dados sobre os dados, e colocados em moviemnto em uma banco

96 Uma caracterização pela qual agradeço Márcio Goldman (em imprensa), que a sugeriu indiretamene, e cuja

exploração de'lapidar' eu infelizmene não tive tempo ou espaco para entrar.

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de dados, ou seja, constantemente sendo acessados e atualizados e mineirados. Ele está em

fluxo, e apesar de em qualquer ponto este fluxo poder ser parado e os dados publicaods ou

‘fixados’, se eles não continuarem movendo em seguida, então não fará mais sentido.

Qualquer ‘ponto de vista’, qualquer momento de parada, não está de forma alguma mais

importante do que qualquer outro – o ‘dado cru’ é tão vital quanto o diamante que é produzido

a partir dele, e a relação entre eles não é dada pela sua igualdade em relação algum realidade

‘fora’, ou objeto; o fora está já ‘dentro’ dos dados, em todas suas formas – e estas diferentes

formas não são perspectivas muito diferentes acerca da mesma coisa, mas a mesma

perspectiva vista diferentemente. Qualquer ponto de parada é efetivado a fim de compelir

movimento novamente. Os dados são ambos propriedades de um pesquisador, e devem tornar-

se propriedade de todos. Marta é respnsável pela torre em São Gabriel, e quando pergunto em

tom de piada se isto significa que ela era “a dona da torre”, ela respondeu muito seriamente

“Não… es estou responsávelm pelos dados”. Os ‘dados’ não são uma responsabilidade a ser

levada levemente. Pessoas de áreas muito diferentes do mundo, do USA a guatemala, e de

áreas muito diferentes da comunidade científica, da hidrologia à botânica, estariam usando

ela. A partir deste único ponto perto de São Gabriel, Latitude 0o 12,740o N, longitude 66 o

884’ S, os dados potencialmente viajariam grandes distâncias até laboratórios nos Estados

Unidos ou no Reino Unido, e a partir daí aparecer em trabalhos, ser esculpidos em gráficos,

ou aparecer em tabelas, ser debatidos novamente do outro lado do oceano. Eles seriam feitos

para significar coisas diferentes ao serem comparados com os dados de outras torres e outras

áreas de pesquisa, ou seriam juntados com este to de dados para dar ‘biomedias’ e médias, o

limite do que expande ou contrata o foco de estudo, a partir desta exata localização na

Amazônia, para a amazônia em si, para todo o globo. Este uso, estas publicações, afetarão as

formas nas quais ele é coletado, ultrapassando a fronteira entre ‘mundo’ e ‘signo’ como tal –

ele reside em ambos. “Cada elemento tem sua própria trajetória complexa”97 (Strathern,

2000:65), e quaisquer binários definitivos são difíceis de manter estáveis. Os dados são um

produto múltiplo e se de qualqeur forma podem ser vistos como uma totalidade, isto deve ser

como um movimento, o que nega a idéia de totalidade que está de alguma forma em um

objeto estático a compreensåõ de alguém. Ambos ‘vistos’ e aqueles vendo estão

constantemente mudando.

Eu gostaria, então, de usar os dados do LBA como metáfora com a qual entender

97 “Each element has its own complex trajectory”

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minha própria informação que coletei no campo. Nenhuma ‘imagem’ é mais ‘real’ do que

qualquer outro, é somente em todo o movimento que qualquer um deles faz sentido. E este

movimento deve ser provocado e mantido. A informação inerente em cada momento separado

de transformação, e no movimento como um todo indefinível. Todas as imagens constróem

um movimento que pode ser fixado, mas fixá-lo é só um momento de interpretação; existem

vários outros, e é exatamente porque existem esses outras que informação não está perdida. O

LBA como uma entidade unificada pode somente residir no movimento que eu rovoco e sou

provocado por, as imagens que eu extraio que transformam e são transformadas por outras

imagens. Estas imagens são moldadas pelas formas de todas as outras imagens. E estas

imagens são minhas, mas somente na medida em que elas pertencem a ‘todos’. O todo pode

somente residir no movimento que vem constantemente depois do ponto de parada. Para parar

– como movimento de interpretação – é extrair um sentido, mas este sentido deve ser movido

posteriormente, ou se torna ‘invisível’. Movendo-o em torno de algo é uma forma de fazê-lo

visível, revelando-o em uma forma particular, mas que no mesmo ato borra o ponto de vista.

E as múltiplas formas nas quais estes dados se movem necessariamente afetarão a forma que o

todo circula, criando eles mesmo um efeito naquela informação em si.

A complexidade inerente no confronto de meus materiais etnográficos me provocaram

a procurar encontrar outra forma de pensar sobre isso; o movimento que observo nos dados do

LBA é transformado em uma dinâmica com a qual propelir toda minha dissertação. Minha

‘visão’ do LBA neste sentido deveria ser tomada como uma série de movimentos, que podem

ser paradas a qualquer momento mas de forma nenhuma refletem uma totalidade fixa e

estática. Claro, esta não é a forma na qual os pesquisadores do LBA possivelmente

escolheriam para ver seus dados. Nos dois capítulos seguintes levarei duas situações, e

tentarei demonstrar as formas na quais cheguei a entender a prática científica que vi gerarem

novas questões para aquele entendimento mesmo, concentrando no movimento inerente - ou

seja, como eu estava provocado para pensar – 'mover' meu conhecimento – ao tentar

descrever e pensar pelos pesquisadores e cientistas, objetos e instrumentação que encontrei,

que eu fui ‘empurrada contra’ (pushed up against). Estas duas situações não são totalmente

arbitrariamente escolhidas, no entanto; eu espero por que se torna claro. O resultado pode

frequentemente ser bagunçado ou impróprio, mas é uma bagunça 'cumplicita' – nós chegamos

a isto juntos. Os cientistas com quem falei e com quem passei um tempo serviram para prover

formas para que questionasse e explorasse a literatura mesma que eu uso para entendê-las em

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primeiro lugar. Mas isto é uma dinâmica produtiva, se instável e incerta. Estas duas situações

não ‘representam o LBA’; mas isto é porque ao estudar o LBA, não tenho certeza em que

sentido eu posso visivelmente determinar o que é um 'todo', ou como alguém pode

‘representá-lo’. Minha descrição procura recusar ser perspectívica (perspectival), neste

sentido do termo. Ela busca explorar exatamente o que ‘representar’ pode significar. As duas

situações não são mais nem menos importantes que qualquer outra, e servem como pontos de

parada momentâneos a fim de fazer o movimento continuar. Que esta abordagem, ao ser

confrontada por formas de pensar que se baseiam em noções de todos englobantes e pessoas

que falam em termos de ‘representação’, geram questões inesperadas e interessantes é

testamento eu acho de sua fecundidade, não da sua aridez. Colando-a ao lado, e não ‘em

torno’ ou ‘no topo', de tais formas aparentemente contraditórias do pensamento fazer que essa

abordagem ela mesma faz parte do mesmo moviemnto incessante, e talvez revelará algo sobre

ambos. Que a análise antropológica da complexidade é uma questão aberta, e deve assim

permanecer, é ao seu crédito. Como Strathern aponta “[D]esconstrução, se funciona bem, é

móvel, ou seja, ela não se mantém colocada. É um processo temporal, você abre as coisas e

então elas fecham de novo, e você as abre e elas fecham de novo e assim por diante”

(Strathern, 1999)98. Assim, os capítulos seguintes são baseados exatamente nos momentos de

incerteza, quando meu conhecimento parece flúido, não fixo e com as pontas abertas. Minha

dissertação poderia talvez, então ser vista como uma série de movimentos, mais que um ponto

de vista estático de uma totalidade – os movimentos que eu tive que fazer a fim de levar em

conta os movimentos de outros.

98 “[D]econstruction, if it works well, is mobile; that is, it doesn't stay put. It's a temporal process, you

open things up and then they close again, and you open them up, and they close again, so on and so forth”

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CAPÍTULO 2 – MODELAGEM CLIMÁTICA

Modelagem Global e Uma Maneira de Driblar o Caos

O primeiro ponto a partir do qual espero me mover rumo ao que interessa são as ‘salas

de Modelagem’ no edifício da LBA de Manaus. Há dois escritórios de modelagem neste

edifício, cada uma geralmente voltada a dois tipos diferentes de modelagem: regional

(“micro”) e global (“macro”). Esta diferenciação é feita de acordo com a escala criada para e

pelo modelo – a idéia básica sendo que modelos micro simulam o comportamento climático

de áreas regionais durante períodos de tempo mais curtos, e os modelos macro simulam o

comportamento climático de todo o mundo durante mais tempo. A separação e integração

entre ambos, no entanto, emergiu como uma das mais problemáticas questões para os

modeladores com os quais conversei, e mesmo para mim. A despeito da separação espacial no

edifício da LBA – como pude explicar, estar trabalhando com qualquer tipo de modelo não

impede que se trabalhe com o outro – o ‘chefe’ da ‘sala’ de modelagem regional, Eduardo

Leonardo e sua equipe trabalham com diferentes modelos, tanto os regionais quanto os

globais, visando “acoplá-los” (para o que devo retornar por volta do fim deste capítulo). Há

diferentes tipos de modelos micro e macro, assim como diferentes tipos de relação entre

modelos micro e macro. Um modelo ‘bom’ é ‘útil’, mas os usos aos quais é submetido são

vários. Isto implica que modelos têm diferentes relações com o que modelam, o que em

retorno clama pela questão sobre o que exatamente está sendo modelado.

As incertezas que experimentei tentando negociar a relação entre meu entendimento

desse problema e o entendimento necessariamente diferente dos modeladores parece sugerir

que talvez os problemas sejam igualmente diferentes, conclusão que penso poder ser notada

ao fazer trabalho de campo com ‘nativos’ que falam sua língua aparentemente da mesma

forma que você. A despeito das similaridades aparentes, corre-se o risco de se envolver em

“um inevitável compromisso – o entendimento que cada um tem do outro é comprometido

pelo entendimento que cada um imagina para o outro, mas não pode saber. Eis uma oscilação

de fato quotidiana”99 (Strathern 2002:109).

***

99 “an inevitable compromise – the understanding each has of the other is compromised by the understanding

each imagines for the other but cannot know. Here is a quotidian oscillation indeed”

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Um modelo climático é a simulação do comportamento do clima. É um programa de

computador matematicamente específico escrito normalmente para prever mudanças

climáticas, mesmo que às vezes só as “acompanhando”, utilizando equações dinâmicas fluidas

e dados de observação que tenham sido coletadas em campo. A variação climática é vista

como processo em si relacionado a outros processos e forças e que ocorre tanto na atmosfera

quanto na biosfera (a superfície da Terra, incluindo a vegetação). Como Eduardo Leonardo

me disse, é uma forma de “representar os sistemas do macro real, o mundo real, por via de

modelos meteorológicos que aplicam equações – buscamos por princípios e os produzimos

em um programa de computador ... então visamos representar todos esses processos com

intuito de simulá-los.” “Simular” esses processos lhe dá uma ‘predição’ ou previsão.

O modelo existe neste sentido, como ‘representação’ no computador – está ‘rodando’

no computador e o trabalho dos modeladores é o que lhes requer que sentem diante dos

computadores. Geralmente os modeladores não vão coletar dados que vêm a utilizar em seus

modelos (mesmo que haja exceções), mas baixâ-los de bancos de dados como o Beija-Flor, o

banco de dados da LBA. David Addams, um modelador global e professor norte-americano

convidado para dar aulas com a instalação do curso de PhD da LBA sobre ‘Clima e Meio-

Ambiente’ me mostrou o modelo no qual vinha trabalhando, não sem antes me avisar que

“não é particularmente atrativo, não é divertido de ler ou qualquer coisa”. É composto por

algo em torno de 35000 linhas de código de computador que codifica as tais equações de

dinâmica fluida que, no caso em questão “as equações básicas de atmosfera... essas são as que

chamamos equações momentum, equações de conservação de massa, equação de energia

termodinâmica... o modelo tenta reproduzir essas equações” (ver Fig 7).

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subroutine rayleigh_damping(ug, vg, p_half, p_full, dt_ug, dt_vg, tg,

ug_n, vg_n, &

diss)

real, intent(in), dimension (:,:,:) :: ug, vg, p_full, p_half, tg,

ug_n, vg_n

real, dimension(size(ug,1),size(ug,2),size(ug,3)) :: ug_temp,

vg_temp,p_full_temp, &

tg_temp, magwind

real, dimension(size(ug,1),size(ug,2),size(ug,3)+1) :: p_half_temp

real, intent(inout), dimension(:,:,:) :: dt_ug, dt_vg

real, intent(out), dimension(:,:,:) :: diss

real, dimension(size(ug,1),size(ug,2)) :: sigma, sigma_norm, sigma_max

num_levels = size(ug,3)

do k = 1, num_levels

sigma(:,:) = p_full(:,:,k)/p_half(:,:,num_levels+1)

sigma_norm(:,:) = (sigma(:,:) - sigma_b)/ (1.0 - sigma_b)

sigma_max(:,:) = amax1(sigma_norm(:,:), 0.0)

dt_ug(:,:,k) = dt_ug(:,:,k) - kf*sigma_max(:,:)*ug(:,:,k)

dt_vg(:,:,k) = dt_vg(:,:,k) - kf*sigma_max(:,:)*vg(:,:,k)

! Variables used in calculating dissipation integrals

(rayleigh_integral)

magwind(:,:,k)=sqrt(ug(:,:,k)**2 + vg(:,:,k)**2)

! diss(:,:,k)=-kf*sigma_max(:,:)*magwind(:,:,k)**2

diss(:,:,k)=-(kf*sigma_max(:,:)*ug(:,:,k)*ug(:,:,k))-

(kf*sigma_max(:,:)*vg(:,:,k)* &

vg(:,:,k))

end do

FIG 7 – Um exemplo do FORTRAN (abreviação de ‘formula translation’) código de

programa de computador retirado do modelo de David.

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David trabalha com modelos globais os quais descreve como “muito idealisados”.

Como me disse “meus…os modelos com os quais trabalho são apenas considerados comos s

fossem a superfície inteira da Terra, o que não é nada realista, absolutamente nada a ver com

o plante que conhecemos. É muito mais um trabalho teórico.”, e marca então uma distinção

entre o que faz e o que um modelador regional pode fazer quanto aos possíveis objetivos: “se

você está olhando para este cenário de mudança climática atual... o que quer que signifiquem

termos de serem ou não reais... quando você quer fazer um experimento com algo similar à

superfície da terra realisticamente, o clima da terra, coisas como essas, você precisa de um

modelo muito mais completo”. Ele provê um “cerne dinâmico simples” ao qual os que

trabalham na modelagem regional adicionarão “bells and whistels” (guizos e apitos). Isso é

típico das discussões que tive com todos os modeladores de clima que, depois de separarem

claramente “teoria” do “planeta real (actual) no qual vivemos”. David segue então notando o

quão obscura é esta separação, um tanto fora-de-mão e da qual está tão incomodado quanto

incerto, a respeito de quão real é a realidade (actuality).

Assim, há uma distinção feita aqui. David fala de modelos com os quais modeladores

regionais (ou micro) como Eduardo Leonardo, Paulo e Rosa trabalham (“os caras

preocupados com, você sabe, os detalhes sobre se ficará quente ou úmido no verão ou algo

parecido”) como sendo construídos a partir do modelo básico que ele provê, complexificando

e especificando-o. Há nesse sentido um aspecto cooperativo e acumulativo para o trabalho

que fazem. Um modelo é imaginado como sendo ‘camadas’ de complexidade que podem ser

adicionadas ou retiradas. Quanto mais camadas se adicionam, mais complexo é o resultado e

mais próximo se fica de como o planeta ‘realmente’ (actualy) é – mas não como ‘realmente’

é100. O mundo aqui, como entidade singular, é concebido como somatória de processos

simples.

O modelo, em relação às suas partes, não existe somente como um programa de

computador. Pode ser conceituado como um ‘planeta’ também. As equações correspondem a

uma imagem. David explica com o que seu ‘simples’ modelo se parece:

“O primeiro original com o qual eu trabalhei é o que chama modelo seco. Então, você tem

basicamente só uma esfera no espaço que é cercada por gás, e está em rotação e então você adiciona

100 Esta aparente contradição será elucidada quando vier a explorar, em maiores detalhes, as vias pelas

quais a ‘realidade’ é negociada pelos modeladores.

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algum tipo de força para dirigir a circulação. É uma força muito, muito simples. Então você tem

alguma coisa que aquece o planeta e causa a movimentação do ar, e então você tem algo que deixa o ar

mais lento, o que chamam fricção ou dispersão (down-beat.) É tudo o que eu tinha, tudo muito, muito

simples. Agora eu estou adicionando água ao modelo, água-vapor, ao modelo. E isso vai adicionar

todo um outro nível de complexidade.”101

O modelo é simulação em dois sentidos. Em si mesmo é escrito para se ‘assemelhar’

(resemble) com o que modela, o que faz. No ato de modelagem é produzida outra simulação

de senão um mundo futuro, ao menos um mundo diferente. Cada modelador possui uma

forma sutilmente diferente de caracterizar um modelo quando falam comigo. David me

mostrou seu programa de computador quando lhe pedi. Aquela longa linha de números

piscando em uma tela. Paulo, por sua vez, me disse o que um professor lhe dissera durante

seus estudos na graduação e que carrega consigo desde então:

“Pra você medir a temperatura que tá aqui na sala, eu te falo a umidade dentro da sala. Então, o

modelo é isso. Que nem uma equação do primeiro grau… porque é pra isso que serve o modelo, pra

que você não precise ter todas as medidas, e ao mesmo tempo através dele você consiga elas.”

A descrição de Paulo enfatiza a forma que um modelo preenche lacunas de

conhecimento porque conhece as ‘relações’ entre os termos; trabalha-se na modalidade

‘se...portanto’, padrão comum à programação do computador – se você mediu a umidade, o

modelo pode pegar a informação e te informar a temperatura subseqüentemente. Esta imagem

de um modelo como calculador de tipos foi reiterado pelo Professor Prakki, do INPE de São

José dos Campos, que chegara recentemente para lecionar em seu novo curso de PhD:

“Uma vez que você tem um modelo, sim, aí você entra com dados iniciais observáveis, que

você observa e dá esses dados para um modelo “input” aí depois esse modelo utiliza esses

dados, as leis matemáticas e físicas, extrapola par ao futuro, aí dá o “output”, certo?”

Mais uma vez, Prakki evidencia a habilidade de um modelo ‘trabalhar’ em algo que

101 “the original model that I worked with is what they call a dry model, so basically you just have a sphere in space, and that’s surrounded by a gas, and it rotates, and then you add some type of force to drive circulation, it’s a very, very simple force. Then you have something that heats up the planet, and causes the air to move, and then you have something that slows the air down, what they call a down-beat or friction. That’s all I had, it was very simple, very, very simple. Now I’m adding water to the model, water, water-vapour, to the model. And that’s gonna add a whole other level of complexity.”

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você tem para lhe dar algo que não tem. Neste caso, o futuro. Faz-se “observações –

temperatura, precipitação, vento, umidade” – e é isso que dá a “sensação, o conhecimento do

que está acontecendo em um certo momento”. Utilizando esse conhecimento como “condição

inicial” ou input, pode-se extrapolar rumo ao futuro (e também, como veremos, “retornar ao

passado”). Ele explicou que “essa extrapolação para o futuro não e tirado de cabeça de

ninguém, é com utilização de leis da física e matemática. Por exemplo, temos a lei de

Newton... lei de Newton, que relaciona a aceleração com a força, e da mesma forma temos a

lei de Boyle, que é, relaciona a pressão com o volume de um gás, quero dizer a atmosfera é

um gás”. Os modeladores estudam o comportamento destas ‘leis’ (isto é, suas variáveis) em

diferentes condições climáticas, como as ‘frentes frias’ ou ‘ventanias’, e os “esquematiza”

visando executar a extrapolação – este ‘esquema’ é o modelo. “Então todas as leis você pode

escrever simbolicamente em termos matemáticos e esse conjunto de equações forma a base

para previsão de tempo, para a extrapolação das condições daquele gás, que é a atmosfera.

Uma vez que você tem um modelo, sim, aí você entra com dados iniciais observáveis, que

você observa e dá esses dados para um modelo “input” aí depois esse modelo utiliza esses

dados, as leis matemáticas e físicas, extrapola par ao futuro, aí dá o “output”, certo?”

O modelo segundo a formulação de Prakki tem semelhanças notáveis com a descrição

latouriana de uma “caixa-preta”:

“PÔR NA CAIXA-PRETA: Uma expressão oriunda da sociologia da ciência que se refere

para a forma que o trabalho tecno-científico torna visível seu próprio sucesso. Quando uma máquina

roda eficientemente, quando uma questão de fato se estabelece, é necessário então apenas se focar nos

inputs e outputs, e não em sua complexidade interna. Assim, paradoxalmente, quanto mais a ciência e

a tecnologia sucedem, mais opaca e obscura se torna.” (Latour 1999a: 304).102

Bateson também se utiliza da idéia de caixas-pretas em um de seus Metalogues, (ao

discutir o que é “instinto”):

“F: Uma “caixa-preta” é um acordo convencional entre cientistas visando para de explicar

coisas a partir de um certo ponto. Imagino ser um acordo temporário.

D: Mais isso não soa à caixa-preta. 102 “BLACKBOXING: An expression from the sociology of science that refers to the way scientific and

technical work is made invisible by its own success. When a machine runs efficiently, when a matter of fact is settled, one need focus only on its inputs and outputs, and not on its internal complexity. Thus, paradoxically, the more science and technology succeed, the more opaque and obscure they become.”

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F: Não, mas é como é chamado. As coisas não costuma soar como seus nomes.

D: Não.

F: É uma palavra que vem dos engenheiros. Quando desenham um diagrama de uma máquina

complicada eles recorrem a um esboço, um resumo. Ao invés de desnhar todos os detalhes, colocam

uma caixa que substitui um aglomerado inteiro de partes e rotulam a caixa com aquilo que o

aglomerado supostamente faz.

D: Então, uma “caixa-preta” é um rótulo para aquilo que um aglomerado de coisas

supostamente faz...

F: Isso. Mas ao mesmo tempo não é uma explicação de como o aglomerado funciona.”

(Bateson 1972: 40)103

O que é especialmente digno de nota acerca destas duas explicações sobre a ‘caixa-

preta’ são as diferentes ênfases. Mesmo que ambos ressaltem se tratar de uma forma de passar

grosso modo pela complexidade interna, o que Latour enfatiza é a perspectiva do sociólogo da

ciência. Bateson enfatiza os cientistas (ou engenheiros). No primeiro a condição de caixa-

preta obscurece enquanto que no último a condição também facilita – é uma “abreviação”

temporária.

Assim um modelo, segundo o discurso do Professor Prakki, pode ser encarado como

uma caixa-preta que é, por sua vez, construído com outras caixas-pretas – as ‘leis básicas’ que

não são mais questionadas e tornaram-se fixas. Fixas como são, todavia, servem de base na

qual o modelo roda. É interessante que Latour cite ‘máquinas’ e ‘fatos’ como caixas-pretas

por excelência. Como eu havia apontado, os modeladores tendem a falar sobre seus modelos

por rumos que sugerem paralelos com uma máquina de calcular e se referem a eles como

‘instrumentos’. As equações básicas poderiam ser vistas como fatos, assim como trabalhar

103 F: A “black box” is a conventional agreement between scientists to stop trying to explain

things at a certain point. I guess it’s usually a temporary agreement.

D: But that doesn’t sound like a black box.

F: No, but that’s what it’s called. Things don’t often sound like their names.

D: No

F: It’s a word that comes from the engineers. When they draw a diagram of a complicated

machine, they use a sort of shorthand. Instead of drawing all the details, they put a box to stand for a

whole bunch of parts and label the box with what that bunch of parts is supposed to do.

D: So a “black box” is a label for what a bunch of things are supposed to do…

F: That’s right. But it’s not an explanation of how the bunch works.”

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como tal caso sejam imaginadas como máquinas, reproduzindo relações e manufaturando

valores climáticos; depois de escrito o modelo e de fixada a equação, não há porque explorar

exatamente como. Ao menos idealmente. Como tais, o modelo e as equações, podem ser

encaradas como reificações do conhecimento (Latour & Woolgar, 1986 [1979]:283) e a

condensação do passado, nos termos de Latour, que obscurece a cristalização da

complexidade interna; e nas palavras de Prakki, não são “retiradas da cabeça de alguém”, mas

existem independentemente e justificadamente como ‘coisas’ (res) em seu pleno direito. Mas

o modelo está rodando constantemente, as equações estão se ‘reproduzindo’ incessantemente

e em uma enorme escala de forma a gerar output de previsão de eventos climáticos futuros

que serão testados no confronto com dados observados. Modelo e equação devem ‘trabalhar’

em ambos os sentidos – são máquinas bem-sucedidas, mas desempenham o trabalho de sê-

lo.E, importante, o que produzem em seu trabalho é uma “previsão”; seu output inclui

necessariamente mais que seu input. Se um modelo é bem sucedido, seu output incluirá mais

informações sobre o mundo, incluído o que ainda não aconteceu.

As equações também têm ‘nomes’ que marcam o processo de reificação – ‘lei de

Newton’, ‘lei de Boyle’ – mas para alguém interessado esses nomes também apontam para

diversos lugares, tempos e pessoas que são, em algum sentido, trazidas ou evocadas em

conjunto pelos modeladores em cada aplicação das equações – como Prakki explica, eles

“vêm da antguidade…Pascal descobriu o barômetro, Charney, Boyle, Pascal, Lavoisier, tem

vários, franceses, ingleses, naquela época os cientistas eram os franceses, ingleses, italianos,

Torricelli, então, são, eram, os cientistas”. Se alguém seguir todos esses nomes e traçar a

história de cada equação pode terminar envolto numa rede surpreendente larga de elementos

heterogêneos (Latour, 2005), e descobrir o montante de trabalho, as múltiplas entidades

diferentes de dentro e fora dos laboratórios, que são trazidos juntos de forma que se estabilize

essa equação como simplesmente um ‘nome’, um “matter of fact” (Latour 1987, 1999ª).

Os modelos com os quais a LBA trabalha são em sua grande parte escritas em uma

linguagem de programação de computadores chamada FORTRAN (abreviação para ‘tradução

de fórmula’, ver Fig. 7) que tem 40 ou 50 anos, linguagem esta bem conhecida e “confiável”.

David me diz que a maioria dos modelos globais contemporâneos é escrita em FORTRAN

ainda que tenham uma coleção de comentários escritos em inglês, geralmente, mas isso

depende do país. Esses comentários são um aspecto importante do modelo, tanto que o

Professor Prakki me diz que “os russos também devem ter [modelos], mas ninguém liga para

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os modelos deles”. Quando os modeladores mudam ou revisam os modelos, anotam as razões

para tal o que permanece no programa como um tipo de história idiossincrática. Vi um

modelo cujo comentário começava assim: “I am flying somewhere over the Caribbean...”,

signed “Steve”. Diante de nomes como “Newton” e “Boyle” outros menos conhecidos são

adicionados silenciosa, mas crucialmente. Modelos são passados pela “comunidade científica”

(como David chama) para serem testados e verificados, refinados e aprimorados – na verdade,

grande parte do que é feito na LBA, coisa que pretendo descrever depois, não se trata de

escrever novos modelos, mas refinar e ajustar modelos já existentes para que possam então

fazer o registro de processos climáticos específicos na Amazônia. Ainda que Paulo me diga

que se possa sempre salvar a versão do modelo recebida de forma que se possa checá-la em

confronto com as alterações incluídas, os modelos são sempre espacialmente e

estruturalmente móveis e as versões retém o registro de sua própria história.

Com vistas em sua modelagem os modeladores dividem o mundo, ou o “quebram” de

diferentes formas. Uma delas está em reparti-lo em “caixinhas” cujo número dá a escala do

modelo, tal como Eduardo Leonardo me informou: “essa simulação do clima vai depender

do número, digamos, de espaços, que a gente quebra, quebra a determinada área, o mundo

inteiro ou uma determinada área”. Cada “caixinha” é representada por um ponto, ou

número, que é o acúmulo de todos os processos que estão ocorrendo no ‘espaço’ – “toda

essa área é representada aqui por esse ponto” (Prof. Prakki). Como o mesmo Professor

Prakki me diz, o código FORTRAN é o que “transfere um valor ou dado para uma

caixa…Aí para essa caixa você soma, põe um outro valor, soma ou subtrai, dependendo da

operação. E depois você leva isso aí e coloca numa outra caixa. E assim vai, dentro do

computador, da memória do computador, as transferências de dados, de um lugar para

outro, de um espaço para outro de uma matriz para outras matrizes”. Este é o “modelo

rodando”, “marchando pelo tempo”, como diz David em seu caso do “modelo dos 1000

dias” em marcha – e expandindo o comentário anterior de David, podemos dizer então que

o modelo ‘reproduz’ equações, mas as equações produzem mudanças.

Um modelo, enquanto roda como no caso de David, é dependente de uma “cadeia de

comando” – o “programa principal” ‘chama’ o “sub-programa”, que pode então chamar

outros “sub-programas” ou a “função” e “a coisa vai numa cadeia, uma árvore”. David me

oferece “um modelo de cadeia de como isso efetivamente funciona, caso queira ver” –

proferindo uma outra forma na qual se vê um modelo. O processamento de dados é

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conceituado aqui linear e hierarquicamente, e é algo que pode ser facilmente representado

no papel. Mas me conduzindo na forma pela qual o modelo rodaria, David fala de valor

não como ‘dado’ mas como ‘vento’ que alcança uma idéia, para a qual devo retornar mais

adiante, de que as ‘caixinhas’ estão no computador e no mundo simultaneamente, e que o

mundo tanto está no modelo como o modelo está nele:

“right here here’s your du and dt 104, written in kind of a funny way, but that’s what it is, at a

certain space, point, and it’s affected by this thing right here, which is friction – so what it’s saying

is that the time rate of change of wind is affected by, um, some friction. So it has the wind from the

previous time step, plugs it in there, and then you get the new result, marches onto the next time

step, comes back to this routine, puts in the new wind, gets a new change, goes to the next time

step, marches through, that’s all it does” 105

O que está envolvido na ‘quebra’ do mundo e sua modelagem? Onde o mundo é

partido em ‘caixinhas’ de 50km por 50km, dados os 40 mil quilômetros de circunferência

dá por volta de

400x800 ‘caixinhas’ ou pontos.

Mas a atmosfera também é quebrada em 60 ou 62 camadas. Esta divisão vem sendo um

processo em ocorrência – a primeira simulação de clima bem sucedida, por Charney (e Von

Neumann) nos anos 1950 dividiu a atmosfera em 2 camadas. Como Professor Prakki me

diz, a divisão sucessiva em mais e mais camadas é uma tentativa de registrar a “variação

contínua” da atmosfera. Isso nos dá:

400x800x60 ‘caixinhas’ ou pontos.

O ar mesmo é também conceituado como sendo discreto, incluindo “bolsas” ou “parcelas”,

o estado essencial o qual é governado por 6 parâmetros: temperatura, umidade, vento em

três dimensões, e pressão, tal como ditado pelas leis básicas as quais “vêm da antigüidade”.

Isso significa que para cada ‘caixinha’, que contém uma ‘bolsa de ar’, o modelo deve

calcular 6 variáveis 104 ‘du’ é mudança horizontal na direção do vento ‘dt’ é mudança no tempo. 105 “Logo aqui estão seus du e dt, escritos de uma forma meio engraçada, mas é o que é, em um certo

espaço, um ponto,e é afetado pelas coisas exatamente aqui, o que é a fricção – assim, o que está sendo dito é que a taxa temporal de mudança do clima é afetada por, hum... fricção. Então há o vento de um passo atrás no tempo, conectado nele, e então você tem um novo resultado, marcha em direção a um novo passo, volta à sua rotina, o põe em seu novo vento, tem uma nova mudança, segue ao próximo passo temporal, marcha, e é tudo o que faz.”

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400x800x60x6

E estas variáveis variam através do tempo, que também é dividido de uma forma particular.

Simulação do clima deve ser feita em intervalos de tempo muito curtos. O Professor Prakki

explica para mim que esta é a razão matemática de algo chamado critério CFL106, um

limite matemático para o poder de extrapolação e interpolação107 que ditam a mudança no

tempo usado tem que ser menor que a distância (50 km, o tamanho da caixinha’) sobre

perturbação (C). ‘Perturbação’, Prakki me diz, “não é nada que você observa” e é

relacionada com a onda de propagação gravitacional. A perturbação gravitacional é

importante para modelagem climática, e como as ondas de gravidade viajam rapidamente

(mais rápido que ondas sonoras, dizem – e de qualquer forma, “ondas sonoras não fazem

chuva ou nuvens, fazem?”), significa que, ao menos que haja um enorme intervalo de

tempo, não há meio de saber o que sua variável fará a seguir. ‘Perturbação’ é a constante

inconstante que é, todavia, negociável matematicamente. Se uma perturbação se propaga a

100 m/s, então se atenta à precaução de que os ‘passos’ através do tempo tenham menos de

500 segundos cada, de forma que seja possível confiar na simulação uma vez que um

intervalo maior viria a aumentar enormemente o potencial de erro108. O modelo então

extrapola “gradualmente” usando intervalos de 2 minutos e meio porque “extrapolação é

complicadíssimo”:

“Você tem que fazer, interpolar nesse pequeno intervalo, baseado nesse valor, você tem que

novamente fazer uma outra interpolação, baseada nessa outra interpolação e assim você tem que seguir

gradualmente.”

106 “Three mathematicians named Courant, Friedrichs, and Lewy created a criterion that, if violated, would lead to the "blowing up" of a finite-difference weather prediction model. This CFL criterion is: ‘The speed of fastest winds in model must be less than or equal to grid spacing divided by the time step’ Because of the CFL criterion, a modeler cannot arbitrarily choose a horizontal grid spacing without also taking into account the time step of the model. If you want fine horizontal resolution to see small-scale weather, you must have fine time resolution too. Otherwise, the model "blows up" What does it look like when a model "blows up"? Troughs and ridges turn disintegrate when the horizontal grid spacing and time step don't satisfy the CFL criterion” (http://profhorn.meteor.wisc.edu/wxwise/kinematics/barotropic.html) 26/04/08 107 A diferença entre interpolação e extrapolação, como me explicou Professor Prakki, é a seguinte: “É, quando você tem dois, duas observações e (…) entre as duas observações você quer obter esse valor, a gente chama interpolação. Aí nós temos duas observações mas você quer achar uma observação, um valor além desse intervalo, é extrapolação. É extrapolar.” Extrapolação é o posicionamento além dos pontos estabelecidos. Interpolação é a obtenção da relação entre pontos em um conjunto (set) numérico. 108 ‘Perturbação’ pode ser vista para nossos propósitos de então como parte do ‘efeito borboleta’ no qual

‘pequenas perturbações podem ter um grande efeito em um sistema”.

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Isso aumenta o número de cálculos. Assim, para uma hora de predição há de se calcular

passos 30 vezes e então multiplicar o resultado por 24 por dia e então por 7 para uma

predição de uma semana:

400x800x60x6x30x24x7 cálculos.

E com vistas no cálculo da própria extrapolação são requeridos mais mil cálculos. E

pergunto porque. “Equações. Um grupo de equações. Você tem que calcular cada um

desses elementos, somar, dividir... ok? Só equações, ok?”, me diz Prakki me castigando

gentilmente por minha curiosidade, me dizendo que é impossível explicar uma vez que é

“o aprendizado de uma vida inteira”. Quando minha curiosidade teve o melhor de mim, e

eu perguntei novamente sobre essas equações precisarem efetivamente desempenhar

extrapolações da seis variáveis, ele riu e disse:

“Aah, vem de tudo, aquela equação de.. de Newton que eu falei, tá certo? Como é,

modelagem…? Quando você abre isso aqui, você enlouquece. Então é bom nem ver….Isso aqui é uma

equação, certo, quando tem uma igualdade no meio é uma equação, tá? Essa aqui é uma equação essa

aqui é uma outra equação, enfim, então... aí depois na vertical, assim, as camadas, não da pra mostrar,

60 ele mostra alguns, certo? e aqui pro exemplo, eles tem que fazer isso aqui tudo. Então são gênios,

não são pessoas... cara é louco, não tem remédio, só vive disso. Entendeu como que é? Quem escreve

um livro desse, tá certo, ele é um cara louco, imagina aí. Ele dedicou a vida inteira para fazer.”

Todos esses fatores nos dão então um total de:

400x800x60x6x30x24x7x1000 cálculos

o que dá 10¹³ cálculos. 10¹² é um trilhão. 10¹³ são dez trilhões de operações matemáticas.

Para fazer uma predição climática para uma semana requer um programa que codifique e

um computador que calcule dez trilhões de operações em duas horas, porque “eu não vou

esperar por uma semana para pegar uma predição para daqui uma semana”.

A quantidade de trabalho envolvida e que perdura na escrita e na rodagem dos

programas de computador parece, para alguém de fora, de proporções surpreendentes.

Modelo e modelador devem, ambos, trabalhar muito e em conjunto. Quando conversei

com David sobre o critério CFL ele me explicou que havia algumas razões matemáticas

para manter uma certa grade de espaço como distância – da distância entre os pontos entre

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si – porque isso afeta a estabilidade numérica do modelo: “existe um critério chamado CFL

e o que faz é basicamente limitar o quão perto os pontos da grade podem chegar, que é o

que limita a resolução do modelo. Assim, o quanto se consegue de um modelo é limitado

pelo seu constrangimento matemático, esse constrangimento matemático computacional”.

Ele me conta a história da primeira tentativa de predição climática numérica feita por

Richardson em 1922, “antes de terem computadores...e os resultados foram péssimos,

absolutamente horríveis... ao que atribuíram às lacunas dos dados dizendo - não sabemos

muitos dados para as condições iniciais, não sabemos muitas informações – mas não era

isso, pois poderiam ter condições iniciais perfeitas e poderiam saber tudo – havia limitação

no que tange as grades. Não percebeu que havia instabilidade construída lá dentro. Viemos

a aprender mais tarde que era o critério CFL”. Mesmo que se ‘saiba tudo’ não será o

suficiente, ao que parece, porque sabem que a instabilidade é ‘construída por dentro’.

E o trabalho aumenta. Essa contenção matemática, o critério CFL, também demanda

que não somente que cada ‘passo’ tenha uma certa periodicidade, mas também que cada

um dos modeladores receba o modelo para transformar o ‘espaço em grade’ do modelo em

‘espaço espectral’. Espaço espectral, ao invés de ser o espaço cartesiano em forma de

grade, é o espaço baseado “em energia, em energia e freqüência, como ondas. Você pode

olhar para ondas e espaço espectral e ver apenas para seu padrão, sua amplitude. É uma

outra forma de descrever qualquer tipo de variável física”. Esta transformação é chamada

“transformação espectral”: “então há um padrão no espaço, no espaço espectral – veja, tem

uma amplitude, como uma onda, com longitude e latitude – se pega uma posição e a

transforma em uma grade – uma grade cartesiana e então você faz o que precisa fazer para

então transformar tudo isso de volta em espaço espectral de forma a marchar rumo ao

próximo passo (...) a única razão pela qual você transforma de volta em espaço espectral é

estar às voltas com o critério CFL”. Isso tem que acontecer com cada uma das variáveis,

para cada andar no tempo (que, como o Professor Prakki nos disse, é também determinado

matematicamente pela perturbação induzida pelo critério CFL) porque se, se tentou fazer

de tudo no espaço espectral seria muito caro computacionalmente, e se, se faz tudo em

espaço em grade, “você tem o critério CFL – o que torna tudo mais difícil”. O critério CFL

também engendra o problema de se ficar tentando encaixar a grade em uma esfera – ou

seja, tentando encaixar suas ‘caixinhas’ no mundo. Quanto mais próximo se chega de um

pólo, as linhas da grade se aproximam ao mesmo tempo – “todas as linhas convergem o

que é o problema se você fixou a grade, digo, pense bem porque em uma grade fixa, por

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definição, há um espaço constante entre os pontos da grade, mas quando se move rumo à

latitude, as linhas convergem e então o espaço muda (...) e então você tem a diferença no

espaço entre os pontos da grade e terá problema”. O que numa esfera precisa atingir um

ponto, numa grade é potencialmente o infinito.

A lacuna incomensurável entre ambos, o ponto e o infinito, é um dos vários pelos

quais os modeladores devem atravessar, como que por via de uma ponte, construída

devagar e comedidamente, com trabalho constante e pesado, de forma que o modelo e o

mundo se ‘encaixem’ por via de quebras, transformações e ‘equações’. Assim como cada

interpolação serve como passo para uma próxima interpolação e assim sucessivamente, o

modelo também progride à sua forma cuidadoso e verificando que tudo ‘funciona’. Em

termos de quantidade de trabalho desempenhado, as conexões em forja entre ‘mundo’ e

‘modelo’, somos lembrados da via utilizada por Latour para discutir essas “cadeias de

transformações” (1999ª:70) que constituem a prática científica ligando ‘mundo’ e

‘modelo’. Nesse ponto o modelo pode ser visto não somente como uma “representação”

passiva do mundo nem tampouco somente uma ‘caixa-preta’, mas um “momento de

substituição” (ibid:49) entre “sinal do futuro” (ibid:49) (a predição) e o “mundo real”.

Gradualmente, os modeladores seguem construindo associações matemáticas trazendo o

mundo ‘lá de fora’ dentro do modelo e dentro do mundo não menos real dos periódicos

científicos e bases de dados na Internet por via de uma “série regulada de transformações,

transmutações e traduções” (ibid:58).

No capítulo anterior esbocei no movimento radicalmente constitutivo dos dados como

metáfora para a forma pela qual viria a descrever e entender a LBA. Aqui a contribuição

particular de Latour acerca da forma pela qual os dados científicos são produzidos em

séries de pequenas associações serve para um outro movimento, o de entendimento da

relação entre os cientistas da LBA e aquilo que fazem. Vou explorar no próximo capítulo

como o tipo de trabalho feito pelos modeladores é diferente daquele feito pelos

pesquisadores de campo da LBA, que medem os processos físicos e coletam dados que

serão mais adiante “jogados” dentro do modelo como sua condição inicial. Por enquanto,

gostaria de pôr em relevo as conexões pelas quais o modelador e o pesquisador de campo

estão igual e cooperativamente construindo e efetivando a “transmutação da terra local em

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um código universal” (1999ª:60)109. Como Latour diria, fenomenos, que são coisas como a

temperatura do ar e a umidade do solo que os pesquisadores de campo e seus sensores se

ocupam em medir, ou “transformar” em números (“código universal”) na floresta,

“circulam por toda a cadeia de transformações reversíveis a cada passo perdendo

propriedades e ganhando outras” (ibid:71)110, chegando aos modeladores que os pegam e

os introduzem nos modelos, fazendo sua parte na continuação da construção.

É importante notar que, neste ponto no qual Latour chama a cadeia de “reversível”, ou

seja, “sinal de futuro” (“future sign”) pode e deve ser capaz de ser seguido inversamente,

de volta para a “terra local” (“local earth” ); e a cadeia “cresce a partir do meio rumo aos

fins, estes sempre levados mais adiante” (1999ª:72)111. Que “o mundo tenha que se mover e

se transformar muito mais do que palavras” (ibid:49)112 é uma faceta crucial da posição de

Latour; como devo explorar em maiores detalhes mais adiante, o mundo não permanece

imutável, mas muda assim que as séries de transformações é efetuada (ibid: 151), e nesse

caos fazer com que modelo e mundo se ‘encaixem’ dessa forma requer que o mundo a ser

trabalhado seja transformado também. Todavia, aqui me concentro no trabalho feito pelo

modelo e pelo modelador, dado que isso sugere um insight interessante do contexto no qual

os modeladores figuram em seus contextos. Seguindo Strathern, estou interessada no

“contexto geral” (“general context”) ou “estética” (“aesthetic”) (Strathern 1988ª: 10) do

que é ser um modelador.

***

“O que que é o problema da previsão de tempo? O problema da previsão de tempo é, você faz

observações... temperatura, precipitação, ah, vento, umidade, tudo isso, na superfície e em outros

níveis aí de altitude, faz observações. Isso é que te dá a sensação, o conhecimento do que está

acontecendo naquele momento. Então utilizando essa informação inicial - a gente chama isso de

condição inicial - extrapolar para o futuro.”

A aparente simplicidade do discurso do Professor Prakki parece perder definição quanto 109 “transmutation of local earth into universal code”

110 “circulate all along the reversible chain of transformations, at each step losing some properties to gain others” 111 “grows from the middle towards the ends, which are continually pushed further away” 112 “the world has to stir and transform itself much more than words”

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mais aprendo sobre os problemas da previsão do tempo e de modelação climática, que só

fazem multiplicar. David lamenta que “existe todo tipo de problemas com esses modelos

básicos, estes cernes, dinâmicos. Há problemas numéricos e de codificação de como você

faz em termos de programação... e então a física não é realmente completa, por causa das

várias coisas que você está falando. Você sabe que está deixando algumas de fora, mas tem

que. Tem que””113. Ao lado da necessidade de deixar lapsos em seu modelo, os problemas

de codificação aparecem como ‘bugs’ no modelo – “que te dá um resultado que você não

quer, um erro. Um bug é um erro... digo, você pode sempre encontrar bugs em modelos –

mas usualmente, quando há um bug no modelo, ele te dá resultados malucos, e então você

sabe que algo está errado”114. O perigo então é que “você pode estar cometendo um erro e

não perceber. Um bug pode te dar um resultado razoável e você não percebe que é um bug.

Isso é um perigo. Geralmente não acontece, que é como coisas aleatórias levam a

resultados aleatórios”115. Mas se isso acontece, e um bug te dá um resultado razoável, “ é

ruim... porque não é um resultado real. Não é a física do modelo. Você tá olhando para algo

que algum cara escreveu, se ele cometeu um erro. Você tá pensando que os resultados são

reais, mas não são.”116

Gostaria de me voltar para as implicações daquilo que David está dizendo mais tarde

(da necessidade de deixar as coisas de fora e da possibilidade de ser enganado pelo

modelo). Por agora devo apensa apontar para a tarefa de escrever e rodar o modelo,

atividade cercada de toda sorte de armadilhas e pode se transformar numa “verdadeira

bagunça muito rapidamente”:

“ Tirar os bugs (debugging) é o pior – às vezes você comete erros estúpidos como nas vezes em que

usa ‘o’ maiúsculo ao invés de ‘0’ e não se dá conta porque é difícil de ver, o que leva dias para

procurar depois, especialmente em modelos muito complicados. Nem posso dizer quantas vezes

isso aconteceu comigo... esses são, na verdade, erros bastante simples porque não são erros de

113 “there’s all kind of problems with these basic models, these cores, these dynamical cores, there’s

numerical problems, and coding problems, how you do it in terms of the programming…and then the physics aren’t complete really, because of the very things that you’re talking about, you know you’re leaving things out, you have to, you have to.”

114 “it gives you a result you don’t want, an error. A bug is an error…I mean, you can always find bugs in models – but usually when there’s a bug in a model it’ll give you crazy results, so you know there’s something wrong”

115 “you could be making an error and not realising it. A bug can give you a reasonable result and you don’t realise it’s a bug, it’s a danger. Generally it doesn’t happen, as random things lead to random results.”

116 “it’s bad…because it’s not the real result. It’s not the physics of the model. You’re looking at what some guy wrote, if he made a mistake. You’re thinking the results are real, and they’re not.”

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lógica – quando você comete erros de lógica, aí é que fica difícil de verdade... às vezes você faz

declarações do tipo ‘se’ muito complexos – ‘se isso então aquilo, se não isso então’ – e isso fica

muito bagunçado rapidamente, você joga uns dois esclarecimentos juntos e isso pode ficar muito

feio.” 117

O Professor Prakki me diz que “a maior parte dos problemas que se tem em um

programa, num código de computador, especialmente em termos de problemas

matemáticos, são as divisões por zero. Você sabe o que é uma divisão por zero? (...) É o

infinito. Mas isso não é determinável, isso não existe”. E se o zero se enfia dentro do

código, “Então precisa, em todos os pontos, por ponto, num ponto aqui, em algum lugar,

algum cálculo aí, mil cálculos aí, um calculo aí, de repente entrou um zero lá em baixo,

ha!, aí você errou tudo. Aí fode tudo! Aí tudo explode. Aí explode, o computador não sabe

o que fazer, ele xinga, ah, ah o cara, coitado, não entende, o cientista, que é muito dedicado

aí, aonde está virando t zero, porque? Aí você tem que ver todo o código aí aaah, ah você

descobre e corrige (...) eu dei um exemplo muito banal, mas não é só isso”.

Não somente bugs e zeros podem entrar inesperadamente, mas a extrapolação é algo

“complicadíssimo” dependendo da derivação matemática118 procedente passo a passo,

trabalhando lentamente de fora para dentro. Isto se dá porque o problema do ‘problema da

predição’ é o que é não-linear, ou seja, a simulação “tende para o caos”. Toda equação tem

variáveis independentes e dependentes. As independentes – tempo, t, e o espaço em três

dimensões, x, y e z – não são negociáveis – “x é x, y é y e z é z, e é isso. Ok?”. Todavia,

variáveis dependentes como u, v e w – temperatura, umidade e pressão – são totalmente

mais escorregadias. Umidade varia com o tempo e espaço assim como temperatura e

pressão. Tempo e espaço são variáveis ‘fixadas’então – variam, mas a maneira pela qual o

fazem não varia; é sua inescapável e previsível variação que determina as outras variações.

Em si são “lineares”. Os produtos matemáticos de variáveis dependentes (u³, por exemplo),

todavia, causam problemas não-lineares porque não há variáveis dependentes fixadas de

forma a ancorá-los matematicamente. “Esses problemas não-lineares são muito complexos,

117 “Debugging is the worst – sometimes you make very stupid mistakes, like sometimes you use a capital

‘o’ instead of a ‘0’, and not realise because it’s hard to see, and it can take days to find, especially in a very complicated model. I can’t tell you how many times that’s happened to me…those are actually quite nice mistakes because they’re not mistakes of logic – when you make mistakes of logic, that’s when it’s really difficult…sometimes you make very complex ‘if’ statements – ‘if this then if this then, if not this then’ – it can get real messy real quickly, throw a couple of statements together and it can get very ugly.”

118 O Professor Prakki explicou ‘derivação’ para mim em detalhes. O ponto central para meus propósitos é que se trata de uma operação matemática que deriva um valor de uma outra.

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muito matematicamente difíceis de resolver a solução. É numericamente você tem que

partir para a solução numérica, quando você parte para a solução numérica essa solução

pode se tornar caótica”.

Isso significa que pequenas diferenças se transformam em enormes ‘erros’. Isso está

além do escopo desta descrição e meu conhecimento acerca do assunto, isto é, me

aventurar pelos intrincados matemáticos da teoria do caos. Contudo, posso descrever o que

me foi dito – isto é, como os modeladores explicaram seus efeitos para mim. Caos significa

que sua habilidade de predição declina drasticamente com o passar do tempo. O que fora

‘solução’ se torna ‘caótico’. Por causa disso, “você tem que levar em conta esse problema

de caos. Foi isso que por essa razão que a previsão não pôde ser entendida de uma forma

determinística para quantos dias quiser. Não, o limite máximo é 10 dias. Eu não tenho

como fazer previsão, agora como fazer previsão de um mês, de dois meses”. O caos pode

ser mantido à parte por aproximadamente 10 dias. Isso significa que ele se torna

efetivamente um problema (invade mais abrangentemente) em predições climáticas do que

em predições de tempo (weather)119. E uma predição de 50 anos? Prakki ri e reforça

jocosamente que qualquer predição de 50 anos no tempo vai prever o fim do mundo.

“Num fluído, cada fluído sendo bastante... cada pequena parcela é independente das

outras, cada uma tem uma vida diferente. Uma parcela aqui está se deslocando assim, outra

assim, assim assado, então aí não. O fluído inteiro não é uma parcela, uma partícula,

entendeu? Então é complicado... fluídos dinâmicos” As pessoas que pensam que a

meteorologia é constituída por pronunciamentos como “em Manaus a temperatura é de 30

graus às 2 da tarde e de 22 graus de manhã cedo” não apreende o ponto levantado pelo

Professor Prakki – que isso é “meteorologia para geógrafos e agrônomos. Meteorologia

para meteorologistas é isto”, ele me diz apontando para a série de gráficos que desenhou

para mim tentando me explicar o que ‘ficando caótico’ significa.

Mas eu pergunto se nesses 10 ou 20 dias há algum caos. Não, não há, replica Prakki.

Fico confusa. Mas todo o fluido dinâmico corresponde a não-lineares? Sim. Então o caos

‘acontece’ somente depois de 10 dias? O ponto é o seguinte, me diz o Professor Prakki, que

119 A diferença entre predição ‘climática’ e de ‘tempo’ (weather), similar à diferença espacial entre

modelos globais e regionais (incluindo alguma forma pela qual a diferença não é necessariamente fixada). Uma predição de tempo diz respeito a algo em torno de 2 meses. Uma predição climática implica em qualquer margem além deste limite de tempo.

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a qualidade da predição, por sua própria natureza diminui com o tempo. O que eu não

estava entendendo é que ‘caos’ é algo que emerge quando o modelo não prevê o mundo.

‘Ficando caótico’ significa, nesse caso, ficando imprevisível, isto é, quando sua solução

não é mais uma solução. Os modeladores nunca ‘vêem’ caos; o que vêem é o ‘acerto’ em

declínio. Um dos gráficos que o Professor Prakki desenhou em explicação continha duas

linhas de trajetória que divergiam radicalmente – uma predita e outra ‘observada’. É o

espaço entre ambas que é caótico, a diferença entre ambas. Com vistas em saber se sua

predição é caótica ou não, há de se comparar com o que ‘acontece de verdade’. Nesse

sentido, ambas possuem tanto uma propriedade de desencaixe “por natureza” quanto um

atributo relacional – ambas embutem e des-embutem (built in/built out).

É embutido (built in) porque os modeladores sabem o que está para acontecer, mas não

sabem como. Caos, nesse sentido, é a derradeira caixa-preta; vê-se onde ele começa (sua

condição inicial) e onde termina (sua predição), mas como o espaço entre ambos chegou lá

não pode ser sabido, ou ao menos é muito mais complexo do que o conhecimento corrente

pode dar conta (isto é, segundo o que está escrito no modelo). “Predição é um problema do

tempo”; seu “acerto degenera com o tempo”. Assim, para que a predição possa ser útil, isto

é, provendo informações, “você precisa de pelo menos 60% de correlação, o que é melhor

do que somente a cabeça e o rabo, não é?”. Caos, aqui, não é tanto uma ‘coisa’ quanto é

uma lacuna na correlação. Ambos os mundos, o observado e predito, mostram o caos como

a diferença entre si a ser apresentada. Nesse sentido, provém uma perspectiva comum para

um e para o outro. O que fora ‘embutido’ (built in) no modelo como tal é uma instabilidade

emergente, uma lacuna de limites, uma não-linearidade. E a idéia de que o mundo provê

uma ‘medida’ ou uma perspectiva no modelo e suas simulações, em retorno, implicam

numa idéia de escala a qual trato com mais cuidado na próxima seção.

Caos é des-embutido (built out) em dois sentidos. No primeiro sua existência é

inferida relacionalmente. Não reside no modelo ou no mundo até que ambos sejam

comparados, e aí está a diferença – é o que ocorre quando algo mais não ocorre. O segundo

é o que pode ser prevenido a partir de um certo ponto, como vimos – nas palavras do

Professor Prakki, isso pode ser ‘driblado’ (mas não removido – então o ato de

desembutimento (built out) é dependente do fato de estar ‘embutido’, num certo sentido.

As derivações matemáticas e a interpolação lentamente montam a predição a qual se

espera, através do uso do trabalho cuidadoso de construção realizado, não ser caótica; as

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demandas dos critérios CFL são preenchidas, o próprio ‘espaço’ do modelo é transformado

metodicamente vez após vez. Há diversas formas de “driblar por aí”, um deles sendo, por

exemplo, a “assembléia técnica” na qual predições de diferentes modelos com as mesmas

condições iniciais são tomadas e averiguadas: “então você pega uma média e faz a

previsão. É uma maneira de driblar, certo, o caos.”.

Eu tinha deixado o critério CFL e a teoria matemática do caos como tipos de caixas-

pretas não somente por causa de meu conhecimento limitado dos mesmos (tenho que

controlar o movimento, às vezes), mas também porque é como os modeladores haviam

falado a respeito até que pudesse inquirir melhor. Isto é, para que viessem a se tornar uma

caixa-preta tanto quanto as equações de Newton. Mas imagino se é esta a melhor forma de

descrevê-los. Simplesmente postular que o ‘caos’ é uma caixa-preta como o são as leis de

Newton, é perder o que é essencial a respeito do caos, a saber, que é desconhecido. Não

são do mesmo tipo de caixa-preta. ‘Contenções’ aqui não são limites no sentido de linhas e

fronteiras, mas uma intrusão de uma não-linearidade relacional e imprevisibilidade, uma

variação contínua que excede nossa habilidade de concebê-los, como o zero entrando no

código do Professor Prakki trazendo o que ‘não pode existir’. Os ‘limites’ do modelo são,

nesse sentido, governados pela confusão da linearidade, e quando a não-linearidade de fato

se introduz, é preciso que seja posta de lado com cuidado e gradualmente, reforçando a

mesma linearidade com cimento matemático suficiente de forma a assegurar que a coisa

toda continue funcionando. Todo o edifício que é a modelagem climática é sôfrega e

cuidadosamente construída nesta forma, um tanto improvisado. A ‘contenção’ ou

encaixotamento dos modelos pode ser visto ‘negativamente’ como se deu – não é somente

uma questão de desenhar uma linha onde seu modelo pára, mas limitando toda a

vizinhança onde o ‘caos’ pode vir a começar; não é como alguém manter algo lá dentro

escondido, mas mantendo algo fora o maior tempo possível.

Mas, seguindo Strathern em sua meia-volta (half-turn), “e se esse problema fosse um

fato também?” (1992b:92)120. Eu sugeriria que o a priori prontamente sustentado pelos

modeladores climáticos é que, ao contrário da forma pela qual a ciência é percebida e

entendida de fora, o fundo no qual se figura toda a atividade é exatamente não linear, não

inteligível e não previsível. É de variação contínua e de vulnerabilidade temporal. É a

120 “suppose this problem were also a fact?”

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razão pela qual muito trabalho precisa suprir tanto entendimento quanto possível. A

diferença é tomada como algo contrário à similaridade – equação – a qual precisa ser

escrita. Não é porque o mundo é inerentemente conhecível que precisamos promover labor

para conhecê-lo. Pelo contrário, é porque não é121. Eu mesma tentei etnograficamente, e

de propósito, trabalhar na demonstração da quantidade de trabalho requerida para, ao

menos, começar minha aproximação da tarefa que vieram a estabelecer para si mesmos.

Uma caixa-preta então pode assumir uma forma diferente, ou ao menos pode ter mais

do que uma forma do que a usualmente assinalada pelos ‘sociólogos da ciência’, como

Latour os chama (o que não significa que o próprio Latour sugira uma visão singular do

termo). Usualmente pensado para expressar uma idéia de cancelamento e contenção, o

modelo se conforma sim a esta idéia de caixa-preta nas vezes que escondem a quantidade

de trabalho desempenhado em sua construção. As equações básicas das quais veio a se

constituir têm “historicidade” (Latour 199ª:152-153), como os humanos. São elas mesmas

assembléias de várias entidades combinadas, de cientistas italianos às técnicas

rudimentares de coleta de dados. Chamando-as de “lei de Torricelli” ou “lei do gás de

Boyle” é, todavia, uma forma de cancelar essas conexões heterogêneas e negando o status

fluido e construído (logo, no sentido latouriano, “real”) que merecem. Todavia, ao mesmo

tempo, é somente ao se esgueirar por baixo disso que o modelo pode começar a fazer

novas conexões e adicionar novas entidades à sua existência, adicionar predições do

mundo para o mundo, ser ‘útil’ aos modeladores. Esta tipo de caixa-preta, em si contendo

mais caixas-pretas, não é do tipo ponto-final, mas resumos e abreviações em algo que

continua a ser escrito. Um modelo, assim como aquilo que modela, está em constante

movimento, se desenvolvendo e reproduzindo, predizendo e calculando, sendo refinado e

refinando, e o faz dentro dos limites do que é ‘embutido’ (built in) e ‘desembutido’ (built

out). É exatamente esta complexidade interna que os modeladores perseguem. A caixa

aparece como caixa-preta para aqueles que não fazem a modelagem, e é deixada como tal

pelos modeladores nas vezes que não querem ‘ficar loucos’. Como Latour se esforça em

esclarecer, e é também desapercebido (algo que é notável em si mesmo), o obscurantismo

121 Latour apresenta algo similar a respeito: “A maior parte dos artigos (papers) nunca são lidos, e os

poucos que o são servem de pouco, e o 1 ou 2 por cento remanescentes são transformados e mal representados por aqueles que os usam. Mas esta perda mais parece paradoxal se aceitamos a hipótese de que ordem é um exceção e a desordem, uma regra.” (Latour 1986:252); a questão sendo, este é um paradoxo para quem, exatamente?

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da ciência é, talvez, apenas a visão daqueles que não sujam as mãos em todos esses

materiais de construção.

Das conexões que um modelo faz que asseguram sua existência como um modelo

‘útil’, o mais importantes para os modeladores é que maneje para se estabelecer com ‘o

mundo’ o qual os modeladores e pesquisadores de campo, igualmente, trabalham tão

intensamente ao construir. 100% de ‘acerto’, e modelo e mundo se tornam uma só linha. E

a linha entre eles fica difícil de traçar. O modelo é determinado nesses termos não por seus

próprios limites, mas pelos limites daquilo que lastra necessariamente e é lastrado por sua

vez, isto é, caos. Em retorno, “caos” pode ser posto na caixa-preta tendo em vista a

tentativa de contê-lo (critério CFL), mas ainda assim emerge como um intruso ameaçador e

atributo relacional (logo imprevisível) que cumpre papel no processo fastidioso da

construção de um modelo. A “possibilidade recursiva” nesse tipo de formulação é

explorada por Strathern (2002:91). Na breve revisão que faz da literatura acerca de

conceitos como ‘espaço’ e ‘lugar’, Strathern aponta que se “ ‘espaço e tempo são contidos

em lugares ao invés dos lugares neles’ como Casey (1996:44) o diria, um espaço em

particular (lugar) não pode ser agarrado ‘em primeiro lugar’ sem coordenadas (espaço)”

(2002:92)122.

Ecoando o ponto de parada em meu primeiro capítulo, “estabilidade e instabilidade

coexistindo em relação correlativa, cada um implicada na outra, produz um fenômeno

complexo” (2002:93)123. O modelo é lastrado em caos, assim como o caos no modelo,

estando o caos no movimento potencial do modelo, o lapso entre as duas linhas. Visto da

perspectiva da reversão figura-fundo infinita potencial, o ‘paradoxo’ inerente o qual os

modeladores parecem estar dizendo e fazendo se torna, talvez, não mais que um “oscilação

cotidiana” (ibid:109) entre o que se sabe e o que se sabe que não se sabe. Isto pode ser

aplicado tanto naquilo que os modeladores estão fazendo, como quando tentam dar um

“drible” no caos, o que é inerente ao que estão fazendo, como para um antropólogo

tentando interpretar o que as pessoas ‘querem dizer’ por via do que fazem e dizem.

122 “ “space and time are contained in places rather than places in them”” as Casey (1996: 44) would have

it, “the particular (place) cannot have been grasped “in the first place” without coordinates (space)” (2002: 92).

123 “stability and instability co-existing in correlative relationship, each implicated in the other, produce complex phenomenon” (2002: 93)

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***

Modelagem Regional e Quanto Real

Tendo descrito como modelos simples podem não ser tão simplesmente constituídos,

como quanto podemos ser levados a pensar inadvertidamente, eu gostaria de dar a meia-

volta em direção ao ‘mundo’ e a modelagem regional feito pela LBA; como David nota,

uma das diferenças entre o que faz e o que modeladores regionais fazem é que estes

“começam com dados do mundo real”. O mundo ‘real’ surgiu constantemente em minhas

conversas com os modeladores. Surgiu também de forma polarizada como um dos termos

que Latour procura desestabilizar ou situá-lo contíguo ao seu oposto polar, o “construído”

ou “fabricado”. Logo é um ponto onde potencialmente posso imaginar que soube o que os

modeladores estavam falando; o que eu falhei consistentemente em fazer será o propulsor

desta metade do capítulo.

Minha exploração então será implícita e explicitamente guiada por alguns dos

pensamentos de Latour sobre o problema. Assim, farei um breve resumo do que lhe é o

principal. Latour aponta para a “alternativa absurda: Escolha! Ou o fato é real ou é

fabricado!” (2005:91)124 como algo irreconciliável na prática científica. Eu já toquei no

assunto brevemente, em sua insistência de que “mundo” deve se transformar tanto quanto

um texto a respeito o faz, e como estão envolvidos numa sorte de processo de construção

em cumplicidade. Latour avança nesse sentido quando descreve a via pela qual Pasteur e o

fermento de ácido lático que ele ‘descobriu’ conspiram e trabalham juntos de forma a

trazer consigo a existência (transformada) de ambos – como “trocam e aprimoram

mutualmente suas propriedades” (1994a:124)125. A descoberta científica não é a revelação

de algo dado por que ‘o mundo’ não é o mesmo de antes, logo mais – “todos os elementos

vêm sendo parcialmente transformados” (ibid:125); são mais um ‘evento’, permitindo à

‘articulação’ de ‘proposições’ que são ‘ocasiões dadas a diferentes entidades para entrarem

em contato. Essas ocasiões de interação permitem às entidades modificarem suas

definições no curso de um evento” (ibid:141)126 – mas através dessas articulações de

124 “Choose! Either a fact is real or it’s fabricated!”

125 “mutually exchange and enhance their properties”

126 “occasions given to different entities to enter into contact. These occasions for interaction allow the entities to modify their definitions over the course of an event”

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novela – “ao invés de um enorme lapso vertical entre coisas e linguagem temos muitas

diferenças entre trilhas horizontais de referência”. É assim que o ácido lático não é

inventado por Pasteur, “mas pelo fermento” (ibid:124). Fatos para Latour não são

simplesmente feitos e reais, mas reais exatamente porque são ‘inventados’ ou ‘articulados’

– “o fermento do ácido lático existe agora como uma entidade discreta porque é articulado

entre outras tantas, em outros tantos conjuntos ativos e artificiais” (ibid:124)127. Os

argumentos que correm nas ciências sociais por via do construtivismo e do realismo

sempre culminam num déficit, exatamente porque o que está acontecendo no processo do

evento ‘científico’ é que o mundo está sendo adicionado – ‘descoberta’ não é um jogo de

soma-zero. À prática científica é integrada numa posição mutante ocupada pelo mundo,

que não é mais somente uma entidade ontológica ‘a-histórica’ e estática esperando por ser

descoberta – “o leque de associações, e a estabilidade das conexões através das várias

substituições e alternâncias de pontos de vista prestam grande serviço para o que

pretendemos dizer com existência e realidade” (ibid:164)128.

É crucial neste momento ter em mente a questão de Latour: “É Pasteur que não é ciente

da dificuldade ou somos nós os incapazes de reconciliar construtivismo com empiricismo tão

prontamente como ele o faz? De quem é a contradição – de Pasteur ou nossa?”, do que segue

“enquanto não entendermos porque o que nos aparece como contradição não o é para Pasteur,

falhamos em aprender com aqueles que estudamos – nos simplesmente impomos nossas

categorias filosóficas emetáforas conceituais em seu trabalho” (1999:129)129. Essa realização

é inerente também a todos os trabalhos de Strathern, nos quais ela utiliza em aplicações

interessantes em sua análise e que, mesmo que um tanto rudemente, caracteriza a

“antropologia reversa” de Wagner. Explorei esta abordagem no último capítulo como um

movimento dialético de posicionamento mútuo, me fazendo olhar para a os dados da LBA

como uma metáfora por via da qual organizo meus próprios dados. A potência do ‘fractal’

como instanciação da LBA e como espaço conceitual pelo qual o suporte desse entendimento

se tornou claro. Mesmo que a refiguração da escala e a problematização da ‘representação’ no

127 “the lactic acid ferment now exists as a discrete entity because it is articulated between so many others, in so many active and artificial settings” 128 “the length of associations, and the stability of the connections through various substitutions and shifts

in points of view make for a great deal of what we mean by existence and reality” (ibid: 164) 129 “Is Pasteur unaware of the difficulty, or are we unable to reconcile constructivism with empiricism as

readily as he does? Whose contradiction is this – Pasteur’s or ours?” (…) “as long as we do not understand why what appears to us as a contradiction is not one for Pasteur, we fail to learn from those we study – we simply impose our philosophical categories and conceptual metaphors on their work” (1999: 129)

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primeiro capítulo provoquem questões confusas – os modeladores têm uma noção potente de

escala; eles também usam palavras como ‘representação’ e ‘escala’. Quão abrangente então é

o entendimento que tenho deles enquanto comprometidos com a diferença entre os usos, meu

e deles, destas noções? Até onde esse 'fato' é um problema?

Ainda que tenha tentado rastrear a enorme quantidade de trabalho que ambos, o

modelador e o modelo, devem fazer com vistas na predição do tempo ou do clima, eu vinha

negligenciando o suficiente para que pudesse realmente adentrar em como o ‘mundo’ advém

de tudo isso, aparte das “condições iniciais” as quais são postas no modelo para iniciá-lo,

como o fora. Na próxima seção, na qual irei me concentrar mais no trabalho dos modeladores

regionais, Eduardo Leonardo, Rosa e Paulo, ‘o mundo’ como ‘realidade’ e o modelo como

‘metáfora’ começam a assumir formas estranhas. O modelo é ‘carregado’ (loaded) pelo

mundo (Latour 1999a) que, para fazê-lo, deve ser escalonado para encaixar o modelo. Já

vimos a ação de escalonamento na forma pela qual o mundo é ‘partido’ na primeira seção.

“Escala” é um conceito crucial aqui no sentido em que é o meio pelo qual os modeladores

manejam o encontro entre mundo e modelo. É a forma de deixar as coisas dentro ou fora,

mais precisamente. Todavia, tratar ou o modelo ou o mundo como entidades singulares

empenhadas em relações singulares entre si, e especialmente tratando o modelo como

‘meramente’ uma metáfora do ‘mundo real’, é inteiramente inadequado para captar a

negociação característica da ciência dos modeladores, e causa a dissonância entre a teoria

recebida e a prática encenada que deveria ser explorada.

Tive muitas conversas com os modeladores e acumulava uma enorme massa de

informações as quais não estarei apta para discutir em detalhes. Selecionei abaixo o que penso

serem os elementos-chave dessas conversas visando capturar o que é que os modeladores

regionais fazem, mas ao mesmo tempo recriando a sensação de vertigem que tive ao tentar

reuni-las com minha própria (e variada) armadura conceitual como antropóloga, como é o que

fazem por si. Há momentos de incerteza. Como resultado, reconheço que o texto é algo

fragmentado, e tentei incluir o máximo possível do que os modeladores me disseram de forma

que o efeito de afastar essas partes de seu contexto não nos dê a sensação de algum tipo de

trapaça. Esta é uma via a qual pretendo explorar, ao invés de abusar (exploit). A sensação de

falta de sentido advém por que eu esperava entender mais do que de fato entendi. Ocorreu

uma diferença bem definida entre meus ‘predicados’ e meus ‘observados’. Mas como

Strathern alerta (1992b), ressonâncias podem ser levadas longe demais; contextos devem ser

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contrastados, não combinados (conflated) (1988ª:11). Assim, sigamos para o que os

modeladores regionais me disseram.

Expliquei como cada ‘caixinha’ é representada por um ponto ou número se está

escrevendo um modelo, e que esses números advém de dados ‘observados’. Outra forma de

figurar esta relação, como Eduardo Leonardo o fez, é dizer que cada caixinha representa “um

pedacinho do globo (…) representa todo esse volume da atmosfera e embaixo a superfície, a

topografia, cobertura vegetal, tudo isso que cientificamente precisa ser incluída no modelo,

tá?”. Essa ‘caixinha’ é como o modelo “enxerga as características” do mundo. A ‘caixinha’ é

o que dá ao modelo acesso ao mundo e assim, o número de ‘caixinhas’ pelo qual o mundo é

‘partido’, ou área em estudo, é o que dá ao seu modelo sua “resolução, essa, digamos assim,

essa... essa... capacidade de enxergar, nessa qualidade da imagem no clima que o modelo vai

gerar”. Eduardo Leonardo usa a metáfora visual para explicar esta idéia para mim: “quanto

maior a quantidade de pixels, maior a definição da imagem, mas a resolução da imagem, você

tem uma imagem mais precisa, né, você tem muito mais detalhes da imagem”. Quanto maior

o número ‘caixinhas’ utilizado para partir o mundo, em maior número de detalhes o modelo

pode ‘enxergar’. O modelo está então produzindo uma imagem do mundo que é dependente

em quanto lhe é permitido enxergar. É simulando o mundo que se vem a enxergar.

Eduardo Leonardo explica que cada caixa tem que “representar” o número de

“processos físicos” como “a troca de movimento…velocidade ou transferência de

momento, de movimento, a transferência é o escoamento vai perdendo, a medida que vai

encontrando…efeito do atrito, também a quantidade de calor que é trocada sobre o oceano

e o continente também a quantidade de água” . A ‘caixinha’ é então uma porta entre essa

dinâmica de processos do mundo ‘observada’ e o modelo ‘construído’. As equações que

fazem o modelo são feitos para ‘capturar’ tais movimentos físicos e transferências. Esses

processos são, assim, o que a LBA mede em seus experimentos, ou transformando (sensu

Latour) em ‘dados’ usando as torres, e os dados providos por elas são o que é utilizado para

fornecer as ‘condições iniciais’ que acionam esses modelos regionais quando começam a

rodar. Cada torre tem uma “pegada” própria, uma parcela do ‘mundo’ que pode capturar, o

que é matematicamente definido como cem vezes a altura da torre.

Visando medir esses processos físicos, o “pedacinho do globo” é delimitado,

isto é, a ‘superfície ativa’ é definida como a biosfera abaixo de 30 m e a ‘atmosfera’, por

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exemplo, a partir de 10m acima da biosfera (nesse caso, sobre a copa das árvores). Os dados

utilizados são os dados coletados dentro dessa área tão definida. “A gente representa a

biosfera, tá? Então a biosfera a gente considera como a camada de solo, então a gente

considera o processo de água no solo de infiltração, de escoamento da água, tudo isso é

representado…que vai até alguns metros de profundidade, 20, 30 metros de profundidade… a

gente configura o modelo de acordo com o que a gente deseja e pretende observar….. todos

os processos que acontecem na natureza”. Semelhantemente é como o mundo é sugerido mais

especificamente. Assim como a atmosfera é uma ‘variação contínua’ que veio a ser separada

em 62 camadas, também a biosfera (a superfície) veio a se definir de forma que o modelo

possa enxergá-la. Parece que o mundo é também configurado de acordo com o que “a gente

deseja e pretende observar” com o modelo.

“A gente sabe que tudo é muito complexo, e tudo muito interligado”, mas uma forma que

adquirir acesso a esse mundo complexo é medindo-o – “a gente está mapeando, está

acompanhando o desenvolvimento de todo o contínuo, solo, planta, atmosfera, está

medindo, então, e essas medidas é que a gente vai estar aplicando no que a gente chama de

modelo de superfície, que é o que a gente chama de modelo de biosfera”. O ato de medição

ou transformação é então o primeiro passo no estabelecimento do ‘mundo observado’.

Transforma um continuum em números que podem ser postos num modelo ou podem ser

usados para verificar se o modelo está ‘trabalhando bem’ ou não. A imagem que o modelo

provê do mundo, e a imagem que o modelo é do mundo, pode ser ‘verificada’ com o que

‘realmente (actually) existe lá fora’. Todavia, o que ‘realmente existe lá fora’ é “muito

complexo e muito interligado”, além de existir de maneira medida, isto é, transformada.

“Então, a gente está medindo (...) fluxo, evaporação, água, calor, dióxido de carbono, e

também o que está sendo acumulado no solo, tá? E o que esta saindo nesse tipo de sistema pelo

solo, também indo para os igarapés, né? (...) de escoamento, e o que está sendo pedido, digamos

assim, e o que está ficando, na verdade, entra uma coisa, e sai outra, mas sempre tem um conteúdo

aqui, tá certo? Então tudo isso estaá sendo monitorado, e tudo isso esta sendo calculado também

pelos modelos, tudo isso no caso pelos modelos da biosfera, tá?”

Assim, trata-se de uma imagem nada estática. O modelo ‘modela’ assim como o mundo

‘mundifica’ – ou ao menos o mundo que tem sido tão ‘medido’ ou ‘transformado’ pelos

modeladores. Este ato em si é de escalação – “a gente chega à conclusão que em

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determinada escala os principais elementos, os principais fatores, que determinam a minha

dinâmica dos fluidos, a minha dinâmica do ar, podem ser... é... registros por esses

conjuntos de termos [equations] que aqui a gente considerou. Aqueles outros a gente pode

desprezar”.

Mesmo que haja mais processos, sempre mais processos, os modeladores decidem

quais deles são importantes numa determinada escala. Devo retornar às decisões mais

tarde. Aqui eu gostaria de apontar para algo diferente, para o papel desempenhado pelos

‘dados observados’. Eduardo Leonardo me diz que o único momento em que os modelos

de predição poderiam ‘usar’ os dados seriam como ‘condição inicial’, quando são ‘jogados’

dentro do modelo: “O tempo zero, é o que a gente considera em tempo inicial e o que a

gente considera como estado observado da atmosfera. Em qualquer tipo de simulação

precisamos de uma condição inicial. Tá? Então é o único momento que a gente usa a

observação para esse tipo de estudo”. ‘Tempo zero’ aqui não é bem uma ausência quanto é

uma presença gradual – é o ponto a partir do qual toda mudança será medida. É quase a

delimitação do conhecimento, o primeiro e o último ponto onde modelo e mundo de

encontram ‘definitivamente’. Isso, contudo, certamente contém sua própria incerteza,

como veremos.

Como o Professor Prakki me explicou, também é possível testar o modelo com dados

já observados ao fazer um “retrospecto”. Isso envolve ver se isso ‘prediz’ precisamente

voltando para o passado tal como verificado com os dados então coletados, isto é, o mundo

que ‘já aconteceu’. Isso se compromete, como me disse Tota, com as capacidades

instrumentais da meteorologia no passado. “Hoje temos anemômetros sônicos

tridimensionais que antes não tínhamos. Como medíamos o vento? Com papel, atirávamos

papel no ar! Mas por isso jogamos os dados fora? Você diz que eles não servem para mais

nada? Não, pois são referência, mas não realidade”. Não é somente a realidade que possui

poder de referência.

Dados ‘observados’ coletados em campo podem ser usados para comparar com o

modelo assim como ser diretamente ‘carregado’ nele até o ‘tempo zero’. Mas é também

envolvido na escritura do próprio modelo. O modelo é ‘limitado’, no sentido em que é

especificado, por via de um processo de parametrização. Tais limites para o modelo

também vêm dos ‘dados observados’ – mais uma vez vemos aqui como os ‘dados

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observados’ são mobilizados para a construção do modelo, embora não nos termos que o

fazem rodar, mas no que diz respeito ao seu ‘fechamento’ e parada. Especificação é a

cessão da sorte, da variação ilimitada:

“Isso... na verdade... tem os dados que são os parâmetros que construíram os modelos, não os dados,

mas os parâmetros derivados daqueles dados, por exemplo, hipoteticamente a presença de certas

condições de nuvens com variação da temperatura e da umidade. Você vai obter uma equação de

regressão... toda a parametrização, todo modelo quando se trabalha com a parametrização tem um

limite, e um limite que é associado a como ele foi concebido, em termos de equações”.

Rosa também trabalha com essa idéia de ‘fechamento’ e limite:

“Chega um certo ponto de um limite, um limite computacional; se não você vai criar uma... um

looping que não vai ter fim. E você não vai ter um resultado nunca. Entendeu? Então você tem que

fechar ela em alguma coisa, em alguma parte. E…esses fechamentos são feitos…são chamadas

técnicas do fechamento, né? Que são parametrizações. Tem gente que estuda só isso, só aquela

equação e aquelas parametrizações…pra esse fechamento, pra ver o que é que dá, qual o parâmetro de

fechamento que dá o melhor resultado, (...). Tem gente que só estuda isso.”

Parâmetros são estabelecidos aqui visando o ‘melhor resultado’. Os dados fornecidos ao

modelo e a forma que o modelo roda deve ser “formatada” (como o professor Prakki me

disse) para seu encaixe.

Logo, o que governa o que o modelo vê do mundo é uma ‘determinada escala’. A

escala do modelo é tal que o que ele não precisa ver é excluído. Como se determina uma

escala? É algo imputado pelo modelo ao mundo? Ou é a forma pela qual o modelo assume

a partir do mundo? Ambos, ao que me parece. Ou ao menos a diferença não é relevante.

Eduardo Leonardo me diz: “Em termos de modelagem, não só em termos de modelagem,

mas o mundo real, ele funciona, em, digamos assim, em escalas de espaço e tempos

distintos, tá? E essas escalas são inerentes a processos específicos tanto quanto processos

de solo, quanto na vegetação, como também na atmosfera”. A ‘escala’ como propriedade é

então inerente ao mundo e ao modelo. Deste ponto de vista, o mundo ocorre de acordo com

certas escalas, tal como a modelagem. Ao especificar uma certa ‘escala’ em ambos, uma

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certa imagem de ambos emerge.

A escala que se escolhe para um modelo depende do “processo investigado”, isto é, do

que você pretende ‘ver’. Ao mesmo tempo, isso depende da “ciência a qual o modelo

serve” – a macro para um pedólogo seria micro para um modelador, me diz Eduardo

Leonardo. O mesmo ‘processo’ pode ser visto segundo diferentes ‘escalas’. Eduardo

Leonardo me explica como viria a decidir uma escala para seu modelo enfatizando que,

devido às restrições computacionais que Rosa menciona na citação abaixo: “na verdade,

você tem sempre que planejar como você irá fazer suas simulações, como quer aplicar seu

modelo e, fundamentalmente, o que quer entender ao aplicas seu modelo, certo?”. Ele

concebe que “tudo isso aqui é limitado? É.” No que segue ao qualificar limite:

“Mas quem vai definir mesmo que tipo de estrutura de máquinas que você precisa vai ser o

domínio que você quer estudar... Então potencialmente você pode aplicar um modelinho, e você

não precisa fazer um domínio inteiro, se você quer só analisar aquele evento, aquele tipo de

sistema, você tem um domínio relativamente amplo, que dê para você utilizar o sistema do modelo,

utiliza um sistema de alta resolução, né? Com bastante detalhes e você simula, se são eventos que

tem uma ordem de magnitude, por exemplo sistemas convectivos de média escala…eles surgem na

costa da Amazônia, na região lá de Belém, e tal, e vem se deslocando para cá, por exemplo, isso

naturalmente, isso acontece no final da tarde lá em Belém, tá? Entre 15 e 18 hs, 12 horas depois

esse sistema está aqui na região de Manaus, porque ele vem se deslocando... quando tem dia de

chuva você vai ver aqui, na banda de nebulosidade vindo pra cá, vindo pra cá, vindo pra cá, vindo

pra cá.... mas se você quiser estudar esse mecanismo, então você vai ter que ter um domínio que

abrange, de Belém a Manaus, e você vai ter que ter pelo menos a simulação de pelo menos um dia,

para você poder comparar a evolução do sistema, de onde deu origem , até a chegada em Manaus,

certo? E qualquer tamanho tipo desse tipo de configuração... estamos falando de alguns

quilômetros, de tamanho do sistema, então, qual, com quantos pontinhos de grade eu tenho que

estudar esse caso? Então 20 km é suficiente? Então eu pego uma caixinha de 20 por 20, tá... o

pessoal diz que é melhor 10, então você coloca 10”.

Mas quem é esse pessoal? Eu pergunto. Eduardo Leonardo ri.

“O pessoal que trabalha em simulações que existem no tamanho escala de 10 km no

sentido que você consegue capturar”, ele diz.

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Você tem que ir até a literatura e aos periódicos e certificar ‘fisicamente’ o que estes

pesquisadores de clima “definem” – (“o que esses caras definiriam”) – quanto tempo o

sistema que se quer estudar perdura, qual área cobre e quão freqüentemente ocorre – que é

o que “vai te dar sua resolução”, a escala para a qual você olha. A escala para a qual o

evento acontece e para a qual seu modelo deve estar olhando; e para determinar essa escala

pode-se precisar listar e prontificar outra pesquisa feita em outro momento e em outros

lugares.

Portanto, Paulo, um modelador que trabalha com Eduardo Leonardo, também me diz

“O que vai te dizer o que é macro e o que é micro é o seu ponto de referencia. Essa sala

aqui pode ser micro considerando INPA. Mas considerando a sala aqui, a que a gente tava

aí, aqui a gente tá é macro, então depende do seu ponto de referência”. Modelos

‘macro’são, em algumas situações, sinônimo de ‘globais’, mas a maneira pela qual os

modeladores usam uma escala é também relativa e tem uma relação mútua e constitutiva

com o ‘mundo’. Seu ‘macro’ lhe dará seu micro e vice-versa. Macro deve ser ‘macro’ para

alguém ou algo.

Paulo segue: “define então as escalas: macro porque é o globo todo; mas eu posso te dar

um macro e te dar um continente. E aí não é mais o globo todo. Eu posso te dar macro e tá

te dando um... um país. Também pode ser macro. Depende do que eu vou estudar”. As

escalas inerentes com as quais o mundo trabalha ‘dentro’ não são absolutas; isso pode ser

feito em diferentes ‘escalas’. A escala aqui tem a habilidade de mudar.

Marta (mulher de Paulo), da micrometeorologia, discorda – “mas a gente não tem muitas

variações dentro dos conceitos”, porque, e Paulo concede, são definições recebidas dentro

da meteorologia: “isso é micro: tantantantan! Isso é macro: tantantantan!” Mas o “micro’

(e aqui ele está se referindo tanto à dimensão espacial quanto a temporal) é, “talvez, mais

complexa que a macro”. Há várias operações que acontecem por lá em um segundo”; “No

macro também!” - Marta interrompe. Não somente o conceito é de tipo relativo, como

parece haver uma liberdade particular para tecer argumentos. ‘Macro’ e ‘micro’ existem

como conceitos absolutos em manuais de meteorologia, mas como entes relativos

aparecem na prática. Um mesmo processo pode ser visto segundo diferentes escalas

fazendo desta uma imagem de uma certa forma de ver o mundo. Mas ao mesmo tempo, há

de se escolher a escala cuidadosamente dependendo do que se pretende estudar, como

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Eduardo Leonardo nos diz. Escalas diferentes mostraram coisas diferentes, não são

somente diferentes visões de uma mesma coisa, mas diferentes visões de coisas diferentes

que, como tal faz da escala um ente com habilidade de evocar argumentos ou discussões.

Modelo e mundo têm que trabalhar na mesma escala, que é a propriedade móvel que

estrutura a ambos.

Eventos como desflorestamento têm um efeito que expande para além-fronteiras em

termos de escala: “desflorestamento ocorre, primeiramente, numa pequena escala e então

acaba crescendo (...) com o tempo”. Eduardo Leonardo me explica que desflorestamento

“primeiro, vai ter efeito local, e depois pode ser regional e dependendo da extensão de

desmatamento, quanto da área que foi desmatada, pode também ter um efeito no clima

global, tendo em vista que a Amazônia conecta vários sistemas, vários mecanismos de

transporte de energia e umidade com outras regiões do mundo”. Um processo em âmbito

‘regional’ pode afetar o clima ‘global’ por que o globo parece ser composto por processos

interconectados. A escala é então algo que tem a habilidade de mudar fora dos limites que

estabelece, mudanças estas que são interconectadas.

Para os estudos sobre desflorestamento os modelos regionais são preferidos uma vez

que se pode ‘partir’ uma área ou um estado. Caso alguém tenha feito ‘caixinhas’ muito

grandes, o ponto que representam não conseguirá capturar a dinâmica sob investigação.

Por exemplo, se todo o estado de Rondônia for uma só ‘caixinha’, aparecerá como

inteiramente desflorestado. O estado de Rondônia seria reduzido a um ponto, e “o que isso

vi me representar no cálculo do todo no meu sistema de clima? Nada”. Todavia, em alguns

modelos macro que põem as vistas no globo inteiro a Amazônia aparece como

completamente desflorestada exatamente por esta razão; “justamente, é a possibilidade que

esses modelos permitem”. É o que caracterizam como “resultados teóricos”, que “traduzem

a realidade” exatamente, mas te dá uma idéia de como o mundo seria com a Amazônia

desflorestada.

O mundo que você vê é então determinado de uma forma particular pelo que o seu

modelo lhe permite ver. Mas seria isso uma indicação de um mundo imutável subjacente

àquilo que o modelo vê? Às vezes parece que sim. Mas há momentos emque esta parece

uma posição difícil de sustentar. Um bom modelo é aquilo que manipula para ver bem o

que é isso que você pretende enxergar. O que este ‘isso’ é varia, desde o globo inteiro até

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uma frente climática. Esta é a razão pela qual a escala é tão importante, e essa escolha

envolve uma sorte de ‘colusão’ escalar entre modelo e mundo. O modelo e o mundo

trabalham juntos para dar uma imagem que capture melhor o que é que você quer ver. Que

isso seja ‘o mundo’ está fora de questão. Mas isso também implica que haja muitas

realidades diferentes que são modeladas.

Tudo depende, me diz Eduardo Leonardo, em “quanto real eu quero fazer meu

estudo”. Logo, poderia ser dito que uma outra distinção entre os modelos não é quanto eles

representam o real como entidade distinta, ‘lá fora, no mundo’, mas a quantidade de real

que o modelador decidiu pôr no modelo. ‘Real’ não é um critério exclusivo e binário, mas

inclusivo e gradual. O modelo não é ‘real’ ou ‘irreal’, mas pode ser feito para ser mais ou

menos real, porque ‘real’ é um status potencialmente múltiplo.

Lembramos que David me disse que seus modelos não portam qualquer semelhança

com o “mundo real (actual)”. Ainda assim, quando perguntei se neste caso os dados usados

como ‘condição inicial’ poderiam ser completamente arbitrários, ele replicou prontamente

que “não, o modelo explodiria. Iria colidir, ficaria instável”130. A ‘rotina inicial’ (um sub-

programa) fornecerá os dados de iniciação que são “arbitrários... bem, não completamente

arbitrários, mas são escolhidos de tal forma que o modelo pode passar por eles sem

explodir”131. Quando perguntei como esses valores iniciais são então conectados aos dados

que foram ‘observados’, ele me disse “bem, veja, você está tentando fazê-lo como que

realista porque não faria qualquer sentido se você simplesmente sabe, ligasse qualquer

coisa, e conseguisse qualquer número, isso não te dá nenhuma informação – tem que ser

algo que ao menos represente alguma coisa que é ao menos teoricamente possível no

planeta, no nosso planeta, em algum outro planeta... Se você liga esses números e você

consegue apenas um blábláblá, eu não sei o que você aprenderia com isso”132. O ponto de

partida dos dados, ou “tempo zero”, então nos modelos de David habitam um espaço

liminar entre o arbitrário e o observado. É “algo realista”. Então o que exatamente estão

‘modelando’? 130 “no, the model will blow up. It’ll crash, it’ll become unstable” 131 “arbitrary, well not completely arbitrary, but they’re chosen in such a way that the model can step

through in time without blowing up” 132 “well, look, you’re trying to make it somewhat realistic because wouldn’t make any sense if you just,

you know, plug in anything, and you get any number, you’re not getting any information out of that – it has to be something that at least represents something which is at least theoretically possible in the planet, in our planet, in some other planet…if you plug in these numbers and you just get gobbledygook, I don’t know what you learn from that”

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Na modelagem global, “você está fazendo todo tipo de assunção, certo, todo tipo”133,

David me disse. “É claro que você não pode fazer assunções que não são físicas”134, mas

pode imaginar, por exemplo, que toda a superfície do mundo é uma superfície de água:

“ok, é uma superfície achatada... Não absorve energia, mas em certa temperatura evapora...

é o suficiente para o que precisamos agora”135. Se isso não é a modelagem do ‘real’, como

podemos dizer se é um bom modelo ou não? É um modelo de quê? De um mundo possível.

É o que é uma predição. O modelo é a modelagem de um ‘mundo real’ ao mesmo tempo

em que é a modelagem de sua predição, que não é ainda ‘real’ mas é mais ou menos isso.

David me diz que “os resultados que você consegue são sempre ditados pelas

assunções que faz; seus resultados serão sempre dispostos através de assunções, você só

pode almejar ser tão realista... Seus resultados serão sempre escravos de suas

assunções”136. Tais assunções “meio que levam em conta de forma muito abstrata alguns

efeitos da água e coisas do tipo que, sem incluir a água por que ela é, de qualquer forma,

mais complicada”137. “Então, a água é reduzida a uma parte do efeito geral da água?”,

perguntei. “Certo, exatamente, exatamente “, David diz, “os efeitos da água... você está

pegando a ciência básica – por que chove? Qual é a resposta para isso? O que a chuva está

fazendo? Porque temos tempestades? Qual é a razão física por trás das tempestades – digo,

você sabe?”. Não estou certa, admito. “Ok, tudo que faz isso transfere energia da superfície

para a atmosfera. Você pode ser romântica e escrever poesia sobre isso, mas é tudo o que

isso faz, pega energia da superfície e coloca na atmosfera”138. Então, isso é o que todas as

tempestades ‘realmente’ fazem. Mas então, como as tempestades em seu modelo são

comparadas com tempestades num modelo regional?

“Bem, essas pessoas estão realmente interessadas em como são os efeitos em termos de mundo

133 “you’re making all kinds of assumptions, right, all kinds” 134 “Of course, you can’t make unphysical assumptions” 135 ““ok, it’s a flat surface…it doesn’t absorb energy but at certain temperature, it evaporates…that’s good

enough for what I need to know” 136 “the results that you get will always be dictated by the assumptions that you make; your results will

always be displayed through your assumptions, you can only expect to be so realistic…your results will always be slaves to your assumptions.”

137 “kind of take into account in a very abstract way effects of water and stuff like that without including water, because water makes it all kind of more complicated”

138 “the effects of water…..you’re taking science 101 – why does it rain? What is the answer to that? What is rain doing? Why do we have storms? What is the physical reason behind storms- I mean do you know?”...“Ok, all that does is it transfers energy from the surface to the atmosphere, you can be romantic and write poetry about it, but that’s all it does, it takes energy from the surface and puts it in the atmosphere.”

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real – qualquer um sabe que a função da chuva é aquecer a atmosfera, é tudo o que faz, a transferência

de energia. Mas isso não te diz muito, somente que a energia está sendo conservada... Essas pessoas

querem saber especificamente, dadas as condições da Amazônia, como nossa floresta afeta o clima em

larga escala e como o clima de larga escala retroalimenta nossa florestas, você sabe, coisas como

esta.””139

‘O mundo real’ para os modeladores regionais é a ‘Amazônia’, que é o que querem ‘saber’.

Seus resultados são ‘escravos’ de suas assunções, e são ‘dispostos’por eles. A tautologia é

aceita. “Real” é o que é ‘novo’, algo adicionado, ou algo revelado. E se os modelos macro

de David são teoricamente opostos ao ‘real’, como se reconcilia isso com a idéia de que

esses processos que ele modela são tão reais quanto? Isto é, tudo mundo sabe que todas as

tempestades transferem energia e ponto. A tautologia é também algo produtiva. Quanto

mais você aprende sobre algo, mais real esse algo é.

Ao mesmo tempo, lembremos que David havia ressaltado que os bugs são perigosos

em um modelo “porque não é o resultado real. Não são a física do modelo. Você está

olhando para algo que um cara escreveu, caso tenha errado. Você está pensando que os

resultados são reais, mas não são”140. Mas em um certo sentido, todos os modelos são “o

que um cara escreveu”; de alguma forma, como as equações que o Professor Parkki me

disse serem “não somente tirado da cabeça de alguém”, elas mudam ao serem algo que

alguém escreveu, de sua mente, para outra posição. Sendo assim, um de seus resultados, a

própria predição, é considerado seu próprio tipo de ‘realidade’.

Eduardo Leonardo em uma outra ocasião me diz que “o mundo real” é baseado na

pequena escala, o micro:

“(...) então, o mundo real, mundo real em termos de…porque tudo que é conhecimento, que é gerado,

a gente tem por base o mundo real, e tudo é base da pequena escala, tá certo? Os processos de

dinâmicas da água do solo, de processos a nível meteorológico tudo, toda a base cientifica, teórica,

surgiram da pequena escala. Então, os processos que acontecem, eles digamos assim, já são

139 “well, these guys are really interested in how the effects are in terms of the real world – everyone

knows the function of rain is to heat the atmosphere, that’s all it does, the transfer of energy, but that doesn’t tell you much, just that energy is being conserved….these guys want to know specifically, given the conditions of the Amazon, how does our forest affect the large scale climate and how does the large-scale climate feed back into our forest, you know, stuff like that.”

140 “because it’s not the real result. It’s not the physics of the model. You’re looking at what some guy wrote, if he made a mistake. You’re thinking the results are real, and they’re not.”

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conhecidos, a teoria já é conhecida, a gente só vai aplicando esses modelos para as escalas de alguns

desses processos, que são relevantes, mas em geral a teoria já é conhecida, e a gente tem que, a partir

dos nossos conhecimentos, das nossas idéias, do funcionamento básico de mundo real, né?”

O ‘mundo real’, para os modeladores regionais ao menos, é então um lugar micro

particular. É de pequena escala. Mas ao mesmo tempo, o conhecimento a partir do qual você

constrói seu modelo é baseado em teoria que é universalmente aplicável, o funcionamento do

‘mundo real’. E tais funcionamentos são conhecidos e, estranhamente, não conhecidos. Rosa

me explica:

“Tem uma coisa: a gente considera que o que é real é o que é vivido. Porque é a única coisa que a

gente pesa, você tem que partir de algum ponto. Então o que é considerado real é o que a gente tá

vivendo. É um dado observado aqui nesse tempo. Então quanto mais detalhada for essa medição,

essa observação, mais precisa vai ser, ou mais apurada, melhor vai ser a minha forma de

modelagem. Mas aí, vou precisar de muito, vou precisar de um computador muito robusto pra fazer

isso, por causa... quanto maior o nível de detalhamento de qualquer coisa relacionada à modelagem

ou modelação, é... maior a quantidade, maior a... o custo computacional dessa coisa. Então é ciclo

vicioso, não tem jeito.”

Há duas maneiras pelas quais eu entendo o comentário de Rosa sobre o ‘real’ sendo o

‘vivido’. O primeiro fora indiretamente na forma pela qual quase todos os modeladores que

entrevistei evocarem experiências acerca do clima, não somente em termos abstratos, mas

as sensações e experiências no presente, no momento da conversação:

EL – O quê que a nuvem faz? A nuvem só faz chover? O que a nuvem faz além de chover? No seu

bate-papo com o pessoal aí, o que é que você aprendeu que a nuvem faz? O que acontece quando o céu

tá nublado sem chover? Fala...sem chuva, olha pra cima o que é que você sente?

A – Mais frio?

EL – Você sente mais frio, tudo bem..mas e de imediato?

A – Uhhh, sem luz ?

EL – E se você não tem luz o que é que a nuvem está fazendo?

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A - Ahhh, está sombreando?

EL- Tá sombreando, e o que está deixando de chegar até nós? O que está deixando de chegar na sua

cabecinha?

A – Radiação! (orgulhosa)

EL – E radiação vem de onde? Vem de onde? Vem do sol, né?

A – uh uh…

EL – Então a nuvem também interfere na quantidade de radiação que chega, porque ela devolve

também parte dessa radiação de volta para o espaço, então, tudo isso a gente vai brincando com

processos físicos extremamente interligados, e complexos.

Por esta via, o ‘mundo real’ se faz presente como um tipo fenomenológico, um conhecimento

muito tangível de que tudo é muito complexo e interligado.

A segunda forma pela qual entendo o comentário de Rosa reitera o sentido de que o

real é o que fora medido e o que ocorre no presente, para os modeladores que lidam com

simulações que podem ‘repetir’ o passado e ir ao futuro; é neste sentido que o que ocorre no

presente é algo com o que não lidam. Observação, como Rosa segue me dizendo, “não é a

verdade absoluta, né?…Mas é o único dado, é a única informação que a gente tem, então a

gente parte do princípio que o que a gente começou tá certo, que a informação que é a

observação é o que realmente tá acontecendo. Mas não necessariamente, é bem especulativo”

. Parece ocupar a posição que é ambos, o ‘conhecido’ e o ‘conhecido a ser desconhecido’.

Esta precaução que serve de limite faz eco nas palavras de Tota quando ele está

falando a respeito de seu trabalho com fluxo de carbono. Tota é um dos pesquisadores que

tentam se envolver com o maior número de aspectos de seu trabalho o possível – ele mesmo

monta seu equipamento no campo, coleta seus próprios dados e ainda trabalha com

modelagem. Ele me diz: “Eu trabalho em pequena escala e estou tentando simular um

processo realmente pequeno. O que vemos é que o muito, muito pequeno é realmente

importante para tudo”. Então um “novo paper aparece no qual se diz – ei, as folhas não são

todas verdes, são meio amarelas e meio verdes. Isso é pequena escala, micro escala de

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verdade. Mas quando você inclui essa diferença em seu modelo, já está fazendo melhor.

Assim, eles têm que seguir de mãos dadas. Modelagem está lado a lado [com a observação]”.

Mas então Tota segue: “agora, eu sei, você vai ficar sentada aqui pensando ‘Pô, Júlio, você tá

me dizendo que a observação é a alma de tudo’, e eu não quero dizer isso realmente. Por que

não? Ok, se dermos uma olhada aqui, você concordará comigo. Ok, então, eu estou medindo,

faço um instrumento que mede somente um termo de uma equação inteira. E Eduardo

Leonardo, ele está usando um modelo onde estão todos os termos. E o que é uma falha, para

todos serve para comparar o modelo com a observação. Então, você está pra me dizer – “ok, o

modelo está me dando um fluxo de CO2. Pô, o modelo é realmente diferente de minha

observação”, mesmo que minhas medidas sigam incertas. O modelo está me dizendo algo

diferente porque isso inclui todos os termos na equação. Então muitas vezes não é o modelo

que está errado mas a observação que não está completa. Vê? Então há um feedback entre

observação e modelagem. Isso significa que é realmente importante que a modelagem esteja

acontecendo tão bem quanto, tem que se desenvolver constantemente; modelagem está em

constante desenvolvimento, nunca pára”. Como resultado, “a ciência deve tomar muito

cuidado com ambos os lados – não crucificar nem a modelagem, nem a observação”.

T: Observação é realidade, mas nem sempre.

A: Nem sempre...

T: Nem sempre.

Isso por sua vez o leva a fazer as mesmas questões acerca da ‘realidade observada’ que os

modeladores reclamam para seus ‘modelos construídos’ – “o que você está representando

com seus dados, é realmente realidade?”. A dialética é repetida em cada lado – o modelo tem

seu próprio’real’ e o real tem seu próprio ‘modelo’. Modelos poderiam ser vistos, ‘realmente’,

sempre como modelos modelando. ‘Realidade’, como observação, é especulativa.

Outras entidades entram em jogo para ‘limitar’ a extensão do que pode incluir nos

‘pequenos processos’, ou mundo ‘vivido’, como Rosa apontou. Quantos detalhes, quanto de

‘real’ você pode conseguir para o seu modelo tem limites tecnológicos também. Enquanto os

limites de um modelo macro parecem ser ‘o globo’, como Rosa apontara, quais os limites de

quão micro você pode conseguir é também (cujo entorno deve ser limitado matematicamente)

uma questão do processamento de tempo e habilidade tecnológica do computador. Quanto

mais processos são simulados, mais termos na equação, mais vezes você roda o modelo.

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Como diz Eduardo Leonardo, “você precisa ter repetições, a gente chama de experimentos ou

repetições, você precisa repetir, repetir, repetir, é... nesse tipo de caso, estudo de nuvens, não

só para aquele caso, mas para vários casos, por exemplo, um evento de chuva”. Para o período

em estudo você tem que rodar o modelo para cada ‘evento’ – quanto mais repetições, mais

consistência estatística seus resultados terão, e mais confiança você tem em seu modelo –

mais ‘real’ ele é.

Num modelo de clima global, você pode fazer simulações para o globo-inteiro para os

próximos 200 ou 300 anos facilmente, no máximo em um mês de processamento. Três

anos levarão 5 horas de tempo de processamento do computador, de ‘maceração-

numérica’. Eduardo Leonardo explica que se ele começasse agora, estaria pronto no fim da

tarde. Mas esse não é o caso para modelos regionais. Para modelar uma semana dois dias

são necessários. Para me explicar Eduardo Leonardo usa da metáfora de uma imagem mais

uma vez: “Você já tentou abrir uma imagem no seu computador, uma imagem enorme, e

uma imagem pequena? Então isso tem a ver com a quantidade de números que você tem e

com a velocidade do seu processamento, com a capacidade do seu computador, tá certo?”.

Mas nessa formulação, o ‘modelo micro’ te daria uma imagem enorme; quanto menor,

mais há o que se ver.

Há também o problema de espaço de estocagem (memória); a quantidade

relativamente pequena dos números atuais nos modelos globais significa que não é

necessário que o computador tenha muito espaço de estocagem (memória). A vasta

quantidade de números produzidos ao rodar um modelo regional significa que será preciso

estocá-los em outro lugar que não o computador no qual os modelos estão sendo

produzidos. Mais uma vez, isso implica que, neste sentido, “os modelos regionais são

maiores porque você tem que ter uma matriz de dados muito maior”. O pequeno poder se

grande. Ver ‘mais’ é ver ‘menor’.

É então que ‘sumarizar’ é similar a ‘escalonar’, isto é, nos termos de seu aspecto

numérico de modelagem é uma premissa básica pela qual a ‘caixinha’ é representada por

um ponto, uma média de todo o processo ocorrendo ‘dentro’ dela. As mensurações feitas

por algum outro pesquisador na área de fato subindo em um avião e pondo um sensor em

uma nuvem requere um ‘modelo’ de formação de nuvem. Mas essas “centenas de

processos, centenas de pequenas nuvenzinhas dessas lá, funcionando” tiveram que ser

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reduzidas e transformadas em uma média que ‘encaixe’ dentro da ‘caixinha’, e então os

modeladores estão “empiricamente representando o efeito da nuvem em um grupo de

nuvens, mas não a nuvem individual”. Mas como Paulo aponta:

“A média é uma maneira generalizada de você escrever alguma coisa; você tem lá, alterações,

flutuações, nessas medidas… No espaço, tem flutuações disso, se a gente vê a média vira uma reta, a

gente não representa a realidade, mas tá próxima da realidade.”

Então, o que está sendo representado não é a ‘realidade’, mas algo que lhe é ‘próxima’.

Enquanto se sumariza você perde alguma informação. Mas também ganha, pois o que

perde em detalhe, ganha em área. De qualquer maneira, ‘realidade’ está sempre um tanto

fora de alcance.

Quando você estabelece uma escala, você estabelece para o quê o seu modelo está

olhando. Assim, “os fenômenos que pensávamos não ter importância se tornam mais

importantes”. Essa mudança está tanto no modelo, quanto no mundo. Eduardo Leonardo pede

que eu me imagine andando ao longo da floresta em ZF2 e pense em como o terreno é

variável. Dependendo do tamanho das suas ‘caixinhas’, se uma área é inclinada ou não vai

emergir como o fator governante na dinâmica. Em um modelo global, a drenagem horizontal

da água causada por um terreno elevado não será um ‘problema’, na medida em que “os

fluxos horizontais acabam não aparecendo no meu sistema já que a escala é muito grande”.

Mas, conforme você reduz a escala, a ‘posição’ inclinada diferenciada das caixinhas, ou seja,

a posição na qual elas estão no mundo, faz com que, para uma caixinha inclinada, a drenagem

horizontal se torne mais importante do que a vertical. É nesses termos que "essas

considerações, no seu modelo, e como você vai capturar o seu ambiente, significam que você

tem que aumentar o número de termos nas equações - não vou mais trabalhar com um modelo

unidimensional, vou ter que considerar um modelo que leve em conta processos verticais e

horizontais, portanto é nesse contexto que aparecem os limites do modelo e novas

considerações teóricas e físicas”. Na medida em que você reduz a escala, você muda a forma

do mundo que está observando. Aspectos que não eram importantes se tornam importantes.

Novas entidades entram em jogo, tanto na teoria como em termos de ‘considerações físicas’.

Os limites do seu modelo são revelados.

Para modelar a formação de uma única nuvem, por exemplo, “Eu vou precisar

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conhecer a concentração de gotas, o núcleo de concentrações na atmosfera, eu vou precisar de

padrões típicos de velocidade do vento para aquela área, portanto você precisa de informações

locais diversas para descrever esse processo”. Mas, “em uma escala mais ampla não, em uma

escala mais ampla você elimina ou reduz a importância desses termos menores e considera,

pelo menos em modelagem, os fatores principais que determinam esses processos, por

exemplo, no caso de modelagem em uma escala mais ampla, global, como você representa

essa nuvem? Nós não representamos a nuvem, não incluímos o detalhe da nuvem, não

afirmamos seu tamanho, mas o que o meu modelo precisa ver nesse caso? Ele precisa ver o

que é o grupo que é a presença de todas essas nuvens”.

Essa ação de escalonamento ascendente e descendente, no entanto, mais uma vez não

é uma característica do modelo por si só; quer dizer, não é um artifício imposto sobre o

mundo pelo modelo. Se você quiser simular o processo de precipitação pluvial durante um

ano, aumentando sua escala em termos de tempo, não precisa levar em conta os eventos

pluviais a cada hora, que é como acontece a maioria das precipitações pluviais na Amazônia.

Em vez disso, “você tem que se preocupar em medir apenas os pontos onde eles se

aglomeram, que unem, agregam as informações em todas as escalas”. “E quais são esses

pontos?”, pergunto eu. Eduardo Leonardo responde “bem, em termos de hidrologia, é fácil, é

onde os grandes rios, os locais físicos onde os grandes rios se juntam, ok? Então, é aquela

coisa de ordem de igarapé, primeira, segunda, até a sexta ordem, portanto é onde as coisas se

juntam, quanto maior o número de rios que você vê se juntando, maior a sua escala em termos

de tempo e espaço”.

Assim, essa ‘aproximação’ por definição não “representar a realidade” parece

estranho, pois tal concentração e expansão de informações também é aparente na maneira pela

qual o mundo funciona. Nuvens isoladas se juntam para formar ‘conjuntos’, rios se juntam

para formar aglomerados. O estudo dos processos de formação de nuvens em escala menor,

por aqueles que sobem em aviões, por exemplo, é chamado ‘micro-física’ – registrar e medir

“o tipo de nuvem, o tempo de início e de fim [da formação], a concentração de gotas de gelo,

a velocidade do ar dentro e fora da nuvem, há muito mais detalhes”. Mas a física que governa

os sistemas maiores é conhecida como “convecção”. Eu pergunto como as duas estão

relacionadas e, então – seria necessária uma média de todos esses processos “micro-físicos”?

Eduardo Leonardo responde “Isso. Exatamente. A convecção, na verdade, seria isso”. Como

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um rio, é tanto um sistema em si mesmo, como o ‘produto’ de muitos sistemas menores. Essa

descrição também pode se aplicar a um modelo. Para estudar um ‘conjunto' de nuvens, você

precisaria de um modelo diferente do usado para estudar a formação de uma única nuvem.

Mas ao mesmo tempo, como Eduardo Leonardo me indica, o que ele está falando são apenas

“modelos dentro de outros modelos”.

Portanto, dependendo da escala, ‘liga-se’ ou ‘desliga-se’ certos tipos de

parametrização, que, como vimos, é uma forma de 'fechar' o modelo. A modelagem

contemporânea dá a você a opção de trabalhar ou com esses processos integrados de escala

mais ampla, chamados por Eduardo Leonardo de ‘modelos de convecção’, ou de refinar a

‘convecção’ com a ‘microfísica’. “Parametrização da convecção” e “parametrização da

microfísica” são operações matemáticas diferentes – em escala ampla você liga isso e desliga

aquilo, em uma escala intermediária você deixa isso ligado e desliga aquilo, em escalas

pequenas você desliga isso e deixa aquilo ligado... Por exemplo, abaixo de 5km, só há

‘microfísica’. Mais uma vez, a ‘microfísica’, nesse sentido, ao mesmo tempo em que está

‘contida dentro’ do processo integrado de ‘convecção’, tem uma existência em separado.

Eduardo Leonardo traça para mim um diagrama de como a mudança de escala é

efetuada em termos visuais, através da contração ou expansão do tamanho da ‘caixinha’

usada. Dentro de qualquer ‘caixinha’, sempre pode haver outras; e, dentro de qualquer sistema

climático, sistemas menores estão sempre em funcionamento. Em qualquer banco de nuvens,

há nuvens isoladas sendo formadas e dissipadas. E tudo isso precisa de modelos diferentes. Se

escala é o que determina o quanto algo é ‘real’, então diferentes escalas parecem subentender,

senão ‘mundos’ diferentes, ao menos ‘realidades’ diferentes dentro de ‘realidades’ diferentes;

o ‘mundo’, como tal, de certa forma parece estar espalhado sobre tudo isso. À medida que

você ‘sobe na escala’ ou ‘desce na escala’, perde algumas coisas e ganha outras, desde tempo

de processamento de computador até gotas de gelo. Não apenas há ‘pedacinhos do globo’,

‘caixinhas’ dentro de modelos, equações dentro de ‘caixinhas’ e o ‘mundo real’ dentro de

equações, mas há ‘caixinhas’ dentro de ‘caixinhas’ e modelos dentro de modelos: “na verdade,

tudo que estou dizendo a você é só sobre modelos dentro de modelos, certo?”.

Essas ‘diferentes realidades’, no entanto, não têm uma relação simples com o

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‘mundo’, porque o ‘mundo’ não é um lugar simples ou estático. O que quero dizer é que

simplesmente afirmar que essas realidades são meros pontos de vista relativos do mesmo

mundo imutável é inadeqüado para dar conta de como os modeladores fazem o que fazem.

Escala quer dizer que você sempre tem que deixar algo do lado de fora – sua visão é

parte de algo maior ou mais complexo. Ela é sempre parcial. Mesmo que alguém possa checar

se a ‘realidade’ produzida pelo modelo é ‘realmente real’, o objeto da ‘checagem’ é, em si

mesmo, um modelo; é a realidade que você quer ‘conhecer’, a realidade que você está

especificando. O ‘mundo’ escapa constantemente – como diz Tota, “observação é realidade.

Mas nem sempre”. Isso requer um tipo de visão fluida. Pois não só a observação não é sempre

real, mas o que é real é potencialmente mutável. Quando Paulo fala sobre parametrização, ele

me diz que:

“É por isso que, quando trabalhamos com modelos, seja um modelo grande como os que

temos aqui, ou um modelo que explica a relação entre temperatura e umidade, por exemplo,

nós precisamos parametrizar o modelo, que significa ajustar esse modelo. Essa equação tem

coeficientes e você tem que ajustá-los para se encaixarem na sua realidade. Assim, é possível

tomar uma pesquisa que foi feita no Japão, pegar a mesma equação e tentar aplicar aqui,

apenas alterando os coeficientes de acordo com a sua realidade”.

Os parâmetros são o que permite a você encaixar o seu modelo na ‘sua realidade’, refinar o

seu modelo. E esse é o melhor resultado para um modelo – se encaixar na sua realidade.

Como Marta me fala, potencialmente você tem uma “equação gigante, quase infinita”, que

“nem você conhece, nem ninguém, nem mesmo o computador”. Isso é também a ‘realidade’

da situação. Mas o mundo que o modelador modela é um mundo no qual o modelador

selecionou cuidadosamente termos e processos físicos, aqueles que são “importantes”.

Conforme você muda a escala do modelo, a imagem do seu mundo se transforma, uma nuvem

se torna parte de um grupo de nuvens, governadas por leis separadas; ou uma nuvem

pequenininha em um banco de nuvens cresce até preencher toda a imagem. Ao mesmo tempo

em que são capazes de desmontar e reunir o mundo de várias formas, eles sabem que “em

tudo isso nós estamos jogando com processos físicos extremamente interligados e

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complexos”. A escala surge então como uma perspectiva móvel sobre o mundo e uma

perspectiva sobre um mundo móvel e complexo: “Eu estou tentando explicar a você como

uma escala, como a hipótese de uma escala migra, uma escala de tempo e uma escala espacial

migram de uma situação para outra”.

Como já insinuei, os modelos são vistos como uma “ferramenta” não só para predizer

o clima futuro, mas também para “voltar no tempo”, de modo que os modeladores possam

“avaliar o impacto e as alterações de algumas propriedades da superfície terrestre”, por

exemplo. Se alguém deseja estudar o impacto do desflorestamento, isso não vai envolver

“fazer um clima no sentido de um clima futuro”, mas combinar imagens de satélite com um

clima que “já aconteceu”. As imagens de satélite de áreas altamente desflorestadas, como

Rondônia, mostram uma progressão, uma “evolução” do desflorestamento através do tempo.

Os modeladores podem pegar essas imagens e “traduzi-las em uma imagem que possa ser lida

pelo modelo”, através da quantificação da intensidade de pixel de acordo com a classificação

da vegetação - ‘1’ vai significar ‘floresta’, ‘2’ vai significar ‘ausência de floresta’, para dar um

exemplo básico. Então, é uma questão de “fazer o modelo para representar o clima,

acompanhando essas mudanças na vegetação, esses aspectos do desflorestamento”, de forma

que você estará usando “um clima, a partir de hoje, que já aconteceu, será algo que já se

passou, mas o modelo nos permite voltar no tempo, repetir o clima, só que, agora,

considerando a evolução lenta do desflorestamento”. Dessa forma, a relação entre mudança

climática e desflorestamento no mundo real pode ser ‘acompanhada’ no modelo. O que isso

significa para os modeladores é que:

“Então é assim que nós podemos... digamos, podemos brincar de ser deus a respeito do clima”.

Não creio que Eduardo Leonardo esteja invocando aqui algum tipo de privilégio onipotente

alcançado pelo “olhar científico”, ou uma perspectiva totalizante. Sua perspectiva é

fragmentada. A palavra operativa que sugiro aqui não é ‘Deus’, mas ‘brincar’ – ‘brincar’ de

ser deus se refere aqui mais à “brincadeira” envolvida em fazer o que eles fazem, a habilidade

de quebrar certas dimensões tradicionalmente consideradas imutáveis, nesse caso a dimensão

temporal, para revelar relações que antes eram obscuras. A forma em que o mundo funciona é

o que se revela através do modelo. Mas como ilustra a minha discussão subseqüente com

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Paulo e Rosa, essa forma de se “brincar” é permitida e limitada por uma realização

marcadamente mortal -

Paulo: Na ciência, para formular certas coisas, você precisa de um experimento, e um

experimento é uma brincadeira do tipo que o Eduardo Leonardo estava dizendo. Você monta

um experimento e vê o que acontece. Você tenta descrever aquilo, ver que aquilo é real e de

que forma acontece. Você está brincando, mas…

Rosa: E dizer o que aconteceu de dentro do que você conhece, porque... é sempre dentro do

conhecimento que temos hoje. Pois no futuro talvez esse conhecimento vá mudar. Mas (...)

nós fazemos isso tão automaticamente que nem nos damos conta do que estamos realmente

fazendo...”

O modelo pode revelar coisas sobre “o mundo” e ao fazer isso dar a ele uma forma que não

tinha antes. Mas o conhecimento de que há sempre algo mais a se conhecer é o que de fato

limita e estende o escopo desse ‘brincar’. O quadro de referência fornecido por esse

conhecimento sobre o seu conhecimento é aparente - você só diz o que faz ‘dentro’ do que

você sabe.

Como Eduardo Leonardo me diz, “cada vez em que enxergamos melhor, tirando a

miopia dos modelos, precisamos de mais informações sobre o espaço, estamos detalhando

também o espaço... vamos então editar uma matriz saindo de 5 x 5, por 20, que é o número de

níveis na vertical da camada da atmosfera, 20, para uma matriz que vai, por exemplo, de 15 x

15, ou seja, tripliquei isso - o número de pontos mais meu número de camadas também foi

multiplicado por 60, imagina o número de informações que preciso simular agora... e esse é o

número de informações para um único tempo, esse é o número de informações por

segundo...”. O mundo é feito de um número de informações que cresce constantemente; é

infinitamente complexificável. Isso é um efeito de escala, mas significa que, ao mesmo

tempo, ele tem uma qualidade amorfa, pois até mesmo os modos que temos para acessá-lo,

temos que reconhecer, são, em si mesmos, apenas ‘próximos’ a ele. Ao mesmo tempo, um

‘bom’ modelo é aquele que enxerga sua realidade bem ou com clareza. Ele tem um trabalho a

fazer, uma imagem a produzir, uma previsão a fazer, e a maneira de se verificar se esse

trabalho está sendo bem feito é com ‘dados observacionais’. Quando essa ‘realidade

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observada’ e a ‘realidade modelada’ se encontram estamos um passo mais próximos de um

horizonte.

De fato, combinação (conflation) é um dos principais alvos da equipe de modelagem

da LBA. Um dos projetos nos em que Eduardo Leonardo e sua equipe estão se concentrando

mais é o Projeto de Modelo Intercomparativo, que tem como objetivo a ‘junção’ de modelos.

O Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC, Intergovernmental Panel for

Climate Change)141 fornece uma coleção de modelos de simulação de clima disponíveis na

Internet. A equipe de Eduardo Leonardo está usando uma “série desses modelos, que

representam a biosfera, a floresta, os vários prédios do LBA” e estão “configurando” cada um

desses estudos para os vários modelos, para ver o quanto são ‘úteis’: "a idéia é justamente

comparar com os dados do LBA que nos dão essa visão dos processos da bioesfera, aplicar os

modelos e verificar o que cada um deles está fazendo e representando... fluxo de carbono,

fluxo de calor específico, calor latente, temperatura, umidade, umidade do solo, temperatura

do solo, tudo isso, a gente está chegando num ponto interessante, em que teremos uma base

das ciências e modelos que estão sendo usados nesse tipo de experimentos... e começa uma

abordagem para a Amazônia especificamente”. A idéia é ‘mesclar’ o conhecimento nos

modelos com o conhecimento fornecido pelos dados, para trabalhar na direção de um corpo

de conhecimentos especificamente Amazoniano; uma ‘realidade’ especificamente

Amazoniana.

Um projeto relacionado a esse é o de “escalas telescópicas”: “a gente está usando as

medidas do LBA, das torres, e usando modelos que nos permitem sair de uma escala ampla

para uma escala pequena numa mesma simulação, então a gente está brincando com escalas

telescópicas”. Isso significa que “em uma única estrutura numérica, em uma única

representação física, agora eu posso brincar, estudar mais as conexões entre escalas”. Mas o

que permite a eles fazer isso é o fato de estarem usando dados e modelos que se “combinam”

com exatidão - o trabalho que normalmente se leva para fazer isso, o ‘somatório’ foi

contornado; eles inicialmente estavam “verdadeiramente comparando a mesma escala das

141 “O IPCC é um corpo científico intergovernamental estabelecido pela Organização Metereológica Mundial (WMO) e pelo Programa de Meio-Ambiente dos Estados Unidos (UNEP), com o objetivo de fornecer aos “tomadores de decisões e outros interessados na mudança climática uma fonte objetiva de informações sobre a mudança climática. O IPCC não conduz nenhuma pesquisa, nem monitora dados ou parâmetros relacionados ao clima”. Ele recebeu recentemente o Prêmio Nobel da Paz pelos “seus esforços para construir e disseminar maior conhecimento sobre a mudança climática e por lançar as fundações para as medidas necessárias para reagir a essa transformação” http://www.ipcc.ch/about/index.htm 29/04/08

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medidas com a escala simulada pelo modelo. O que estou medindo que é uma representação

da ordem de 5km das torres, vai ser exatamente a mesma escala que o modelo vai estar

simulando, aí, com isso, eu vou sair daquela coisa de comparar a medida de uma grande

escala com um valor pontual, tá certo? Então, é isso..e também vai me ajudar a entender como

é a passagem dessas informações entre as escalas”. Ao passo que, antes, um modelo

enxergaria duas escalas como duas realidades diferentes - em uma escala ampla, um sistema

pluvial surge como “dois núcleos”; em uma escala menor, “ele me diz que é um sistema

contínuo e até maior”. Mas espera-se que as ‘escalas telescópicas’ vão permitir o encontro

dessas duas realidades. Ambas precisam ser incluídas para tentar dar conta da natureza de

mundo que está acontecendo na Amazônia.

Mas esse mundo está em contínua expansão. O potencial para sempre mais

informações tanto cria as condições para o conhecimento, como nega aos modeladores a

complacência de imaginarem que têm uma realidade única que corresponde a um mundo

único. O que eles têm é mais confiança nas realidades que estão elicitando. Eduardo Leonardo

me diz que “certeza a gente nunca vai ter, a gente não vai ter certeza, a gente nos próximos

anos vai ter maior confiança, mas não certeza, por exemplo, a confiança grande de que a

Amazônia vai sofrer com certeza um aquecimento de 3 graus nas próximas 3 décadas. Isso é

um resultado em que temos grande confiança nos resultados dos modelos… e porque essa

confiança é grande? Porque mesmos os modelos que mostram caminhos diferentes de

mudança… é um cenário que todos os modelos tendem, mostram na mesma tendência, então

essa seria uma forma de a gente indicar confiança num produto de modelos... mais confiança,

sim, mas certeza nunca teremos, pelo contrário, temos que investir mesmo é em reduzir as

incertezas”.

O que as predições permitem não é certeza, mas uma redução da incerteza. Isso é

reiterado por Tota quando pergunto sobre o problema da instrumentação, da ‘natureza

especulativa’ de dados observados. Ele me diz que “o nível de incerteza das medições está

diminuindo muito”. Mas não há um medo de que “esse seja um processo infinito, de modo

que nunca se atinge um ponto de certeza?”, eu pergunto. Ele responde, “nunca será perfeito,

não. Mas abaixou muito, muito. Nós sabemos muito, nós estamos estudando meteorologia,

nós estamos estudando a história da instrumentação meteorológica. Hoje o nível de

calibragem, dos testes de laboratório, o túnel de vento, tudo é muito preciso. Nós temos

instrumentos altamente sensíveis que não tínhamos antes – então nós damos muita

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importância aos dados sendo medidos hoje, pois o nível de incerteza diminuiu. Mas a

espacialização ainda é, bem, ainda é uma falha”.

***

“ Here Be Dragons”

Eu selecionei as partes acima de minhas conversas com os modeladores com um

consciente desejo particular em mente, que é tentar aprender o que eles têm como pressuposto

quando produzem simulações climáticas. Como isso é exatamente o que eles tomam como

pressuposto, o interesse para eles seria mínimo como modeladores, e não pelas mesmas

razões; isto é, o interesse que um antropólogo encontra no que eles fazem não é o mesmo

interesse que eles encontram. Essa é uma das maneiras pelas quais nós participamos de

‘esferas’ diferentes de conhecimento e o que me permite estudá-los antropologicamente.

Entretanto, é inevitável que, ao estudá-los, haja aproximações entre nossas práticas-de-

conhecimento, pelo simples ato da interpretação. Como vimos, “conceitualização é,

inevitavelmente, reconceitualização” (Strathern 1992b: 75)142; e as “metáforas participam

umas das outras” (1988a: 188)143. Essas aproximações tomam uma forma mais específica

ainda por eu pertencer ostensivamente à mesma ‘cultura’ daqueles que estou estudando e, não

só isso, mas por aquilo que eles estudam ter o objetivo de ter um impacto em mim e no

mundo todo. A maneira pela qual um autor conscientemente lida com essas distâncias e

aproximações é o que vai dar forma ao texto que ele/ela produzem – “é preciso ser tão

cuidadoso quanto criativo com as ressonâncias” (Strathern 1992b: 76)144 entre táticas

analíticas específicas e o que a análise descobriu sobre aqueles que se está estudando. O modo

pelo qual alguém move sua própria descrição é vital.

Para continuar pensando sobre o que os modeladores me disseram, será necessário

elaborar um pouco mais sobre a posição que estou assumindo nessa análise. É um artefato do

empenho antropológico talvez inevitavelmente revelar algo sobre aqueles que estão fazendo o

142 “conceptualization is inevitably reconceptualization” 143 “metaphors participate in one another” 144 “one should be as careful as one is creative with the resonances”

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estudo; mas, como Strathern indica, isso deve ser “fabricado” (contrived). Estou consciente de

que a discussão etnográfica acima pode parecer manifestar uma das suposições de que fala

Strathern em relação a fazer “auto-antropologia”, de que “[isso] torna complexo o lugar

comum, suas sistematizações não revelando nada além do que o que todos já sabem e

somando um conjunto de mistificações desnecessárias” (1987: 17)145.

Eu certamente trabalhei para mudar a mistificação que encontrei em não ser capaz de

recorrer à minha própria linguagem (e não me refiro ao fato de ser britânica e eles serem

brasileiros) quando, aparentemente, os modeladores e eu usamos as mesmas palavras; e é uma

mistificação que os modeladores provavelmente não compartilhariam, pois seus problemas

não são os meus. Mas “quando o antropólogo volta para casa, a fabricação… deve tomar um

lugar diferente... o que vem à tona é um relato de fabricação” (Strathern 1987: 28)146. O que

parece ter acontecido por eu ter enfocado o que eles diziam foi uma mudança na relação entre

as minhas técnicas de organizar o conhecimento e como os modeladores organizam o

conhecimento sobre si mesmos. Aquilo de que talvez os modeladores e eu participemos é a

idéia de que conhecimento é organização. Mas se o que é um mistério para mim é um

pressuposto para eles, então há uma oportunidade para se aprender algo novo sobre ambos -

para sermos movidos por essa relação.

Tentarei montar a cena um pouco melhor. Latour foi acusado de se concentrar

exclusivamente no que os cientistas ‘fazem’, sua prática, mais do que no que eles ‘dizem’.

Seus acusadores dizem que isso lhe deu rédeas livres para ‘interpretar’ a ciência como bem

entender. O ponto feito por Latour ao fazer essa escolha específica é que os cientistas

raramente nos dizem o que estão fazendo; “os cientistas passam apenas uma fração do seu

tempo purificando suas ciências” (1999a: 19)147, deixando isso para os filósofos da ciência,

que são de fato o alvo das críticas de Latour. O fato de que esse é o caso se tornou

emaranhado e obscurecido pelas Guerras da Ciência (Science Wars), pois Latour com certeza

parecia estar brigando com cientistas (embora eu pense que Latour, ele mesmo, fez sua parte

nessa divergência). No entanto, pode-se argumentar que esses cientistas, pelo ato mesmo de

se enredarem nessa disputa, trocaram de posições e se tornaram ‘filósofos da ciência’. Quer

145 ““[I]t makes the commonplace complex, its systematizations not revealing anything more than everyone

knew anyway and amounting to a set of unnecessary mystifications.” 146 “when the anthropologist turns to home, contrivance...must take a different place...what comes over is

an account of contrivance.” 147 “scientists spend only a fraction of their time purifying their sciences”

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dizer, eles não estavam mais fazendo ciência, eles estavam fazendo ciência social. As formas

pelas quais Latour negocia as relações entre esses dois pólos em toda a sua prolífica escrita

são, no entanto, flagrantemente fluidas e retornarei a elas mais tarde; é suficiente, por hora,

dizer que um de seus princípios fundamentais é sempre entendido como a compreensão de

que a ‘ciência’ não é diferente de nenhuma outra prática social, incluindo a dos cientistas

sociais. É àqueles que a vêem como diferente que se deve provar o contrário (os ‘guerreiros

da ciência’ - science warriors).

É relevante aqui o fato de que não apenas não encontrei absolutamente nenhuma

suspeita sobre a natureza de meu trabalho ou de minhas intenções ao conduzir minhas

entrevistas (“de derrubar o reino”!), mas também e ainda mais importante, fui tratada

freqüentemente com benevolência, como ignorante – tal como sou. Quer dizer, os

modeladores e a maioria dos cientistas do LBA não se importavam com o que eu estava

fazendo, presumivelmente porque não teria nenhum impacto direto sobre o que eles estavam

fazendo. Eles me ajudariam de todas as formas que pudessem, mas realmente o que eu tinha a

dizer era de pouco interesse, embora minhas questões às vezes fizessem com que eles

parassem para pensar. Aceito que talvez esse não tivesse sido o caso se eu fosse alguém de

maior estatura na comunidade antropológica ou acadêmica. Mas suspeito que, em geral, não

teria feito diferença. As Guerras da Ciência não estão sendo travadas, se é que estão sendo

travadas, nos laboratórios ou nos locais de pesquisa de campo. Deve-se levar em conta

também que estou estudando em uma época diferente; cerca de 30 anos de inúmeros debates e

discursos se passaram desde que Latour se aventurou pela primeira vez em um laboratório. As

mudanças que se supõem terem acontecido durante esse período não devem ser atribuídas

exclusivamente a um lado ou ao outro. O fato de os cientistas com quem lidei serem mais

amenos às minhas idéias como antropóloga tem que estar relacionado ao fato de minhas idéias

antropológicas serem mais amenas à sua ciência. A idéia de que essa é uma mudança comum

está baseada na idéia de que estamos participando de uma cultura comum, que em si mesma é,

como já sugeri, algo a ser investigado. Mas não algo a ser explorado (exploited).

***

É necessário aqui delimitar parcialmente meu próprio ponto de partida para discutir os

tipos de movimentos provocados pelos modeladores. Strathern (1988a: 10) cita Runciman:

“os conceitos nos quais se baseiam as descrições provavelmente não são os mesmos usados

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135

pelos agentes cujo comportamento está sendo descrito” (Runciman 1983:228)148. Mas ela vai

além para acrescentar que “esse conhecimento da dessemelhança deve ser ele mesmo

fabricado para poder ser transmitido. A compreensão terciária inclui seu próprio senso de

diferença de seus objetos. Se meus objetivos são os objetivos sintéticos de uma descrição

adequada, a minha análise deve dispor de ficções deliberadas para esse fim” (1988a: 10)149.

Como Strathern, eu espero trabalhar para mostrar como os modeladores podem negociar os

significados das palavras que temos em comum de maneiras que não nos são comuns. E eu

argumentaria que não é apenas possível, mas talvez até mesmo necessário usar estratégias

analíticas diferentes para fazer isso, pois, como Strathern, “Eu estou interessada… não em

elucidar contextos locais específicos para eventos e comportamentos, mas em elucidar um

contexto geral para esses próprios contextos” (ibid: 10)150. Esse contexto geral é a “natureza

distintiva” (distinctive nature) da modelagem climática, o pressuposto deles e que, portanto,

apenas interessa a “nós”; mas isso emerge apenas na comparação, ou seja, no contraste entre

uma prática de conhecimento e outra (a forma que ela tomaria, quer dizer, se fosse

comparável). Desse modo, minha própria confusão – “mistificação” – desempenhou e

desempenha um papel central nessa descrição. Ir ‘além disso’, como indica Strathern, seria

revelar nossas próprias formas de nos organizarmos, precipitar um movimento incerto e

desestabilizador.

***

A primeira idéia a emergir das minhas conversações com os modeladores é que os

modelos globais em certo sentido são o ‘original’, o mais básico cerne teórico do qual os

modelos regionais, mais complexos, ‘de mundo real’ tomarão forma, implicando em uma

concepção de um mundo singular, ainda que em camadas e passível de divisão. Mas Marta,

quando falei com ela e Paulo sobre os modelos de David, observou que “ele começa com

outra realidade, né?”. Embora Marta oficialmente seja uma meteorologista e não uma

modeladora, o seu trabalho pede que ela seja bem-versada em técnicas de modelagem. O

comentário de Marta permite uma abertura para a principal, ainda que fragmentada, tensão

que apareceu como um filão (seam) correndo ao longo de todas as minhas discussões com os

148 “the concepts in which desciptions are grounded are unlikely to be those used by the agents whose

behaviour is being described” 149 “that knowledge of unlikeliness has itself to be contrived in order to be conveyed. Tertiary

understanding includes its own sense of difference from its objects. If my aims are the synthetic aims of an adequate description, my analysis must deploy deliberate descriptions to that end”

150 “I am concerned...not to elucidate specific local contexts for events and behaviour, but to elucidate a general context for those contexts themselves”

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modeladores, algo que tentarei escavar aqui. Convencionalmente, qualquer ‘modelo’ é visto

como um tipo de metáfora do mundo – é uma representação ‘construída’ de algo que é

literalmente ‘real’ e, como tal, não é em si mesma ‘real’ da mesma forma que aquilo que

significa. Nessa formulação, como assinala Latour (1999a), a divisão entre “palavra”

(modelo) e “mundo” é um abismo vertical e insuperável. Ao mesmo tempo, é banal observar

que um modelo é tanto “construído” como “real”, da mesma forma que uma xícara ou um

carro o são 'manufaturados', mas ‘literalmente’ existentes. Mas em todas as minhas

discussões, como assinalei, havia um senso de acumulação de ‘realidade’ (ou ‘como as coisas

realmente são’) à medida que o modelo se tornava mais complexo, era feito em uma escala

menor e tinha maior resolução (que são às vezes descrições-sinônimos para os modeladores

com quem falei). Isso implica um continuum entre modelos de micro-escala (complexos) e o

‘modelo ideal’ (simples), em relação a um mundo concebido singularmente. Quanto mais

você do mundo real você ‘carrega’ em seu modelo inicialmente, na forma de dados coletados

em campo, mais ele se torna ‘real’, isto é, mais a imagem que ele produz do mundo se

aproxima do mundo ‘como ele realmente é’. Isso, no entanto, deixa em suspenso a questão

sobre o que um modelo ‘ideal’, como o de David, está modelando, se não for ‘o mundo real’.

À medida que você ‘acrescenta’ processos, você se distancia do “teórico” e se

aproxima da forma como o mundo ‘realmente’ é. É uma questão de escala. Em uma escala

mais ampla, você está mais distante do mundo. Em uma escala menor, você está mais

próximo. Isso é análogo ao ato de “totalizar” e tirar a média. Você representa uma ‘caixinha’

com a média de todos os processos que aconteceram naquele “pedacinho do globo”, mas uma

‘média’ é menos real do que os micro dados dos quais ela foi obtida. Essa totalização

(summing up) não é só algo que os modelos fazem, mas algo que é visto no mundo, no modo

como rios ou bancos de nuvens são formados por igarapés e nuvens individuais. Embora com

certeza, ao mesmo tempo, um banco de nuvens não seja menos real do que uma nuvem

individual, da mesma forma que o funcionamento básico das tempestades não é menos real do

que uma tempestade de verdade na Amazônia. Mas, quando você toma um banco de nuvens

como seu ponto de referência, a nuvem individual se perde. Revelando o banco de nuvens,

você perde a nuvem individual. Modelar um processo macro sempre dará a você a sensação

multiplicada ao infinito de que você está deixando de fora o micro. “Você tem que”, como diz

David. As escalas mudam, mas o fazem duplamente. A relação entre macro e micro é

constante, mas o que ‘realmente’ é macro e micro não é constante. É um quadro de referência,

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de forma que o seu ponto de referência muda com ele; mas ele pode ser colocado em

funcionamento em diferentes processos. Isso é ‘escolher a sua escala’. É escolher onde focar

essa relação macro-micro no continuum que vai do modelo macro ideal ao processo físico

micro real, e parece que os extremos desse continuum estão constantemente mudando. A

‘realidade’, como aquilo que reside na escala micro, que por sua vez só aparece em relação ao

seu macro, está, assim, sempre além do seu alcance. Essa sensação é intensificada pelo fato de

que a ‘totalidade’ da qual você tenta dar conta é ‘inconhecível’, pois a equação é “quase

infinita” e não existe um computador suficientemente poderoso para ‘fechá-la’. Da mesma

forma, quando você imagina a sua nuvem individual em contraste com um banco de nuvens

do qual você sabe que ela faz parte, você perde a visão do ‘todo interconectado’ que é o

mundo. O ponto na direção do qual todo mundo está trabalhando, Tota me diz, é ter modelos

macro feitos com uma resolução micro. É provocar o colapso de toda essa relação macro-

micro, ter o todo macro como um micro, de forma que "as informações passem livremente

entre eles".

O ato de escolher uma escala pode também ser visto como uma construção ativa. Para

estudar uma frente climática, você escolhe que termos e que processos são importantes. Você

faz isso estendendo seu conhecimento – você tem que procurar jornais científicos, falar com

especialistas em ‘microfísica’, tem que engajá-los na sua escolha. E mudar essa escala

significa que essa importância muda. Isso está claro no imaginário visual empregado por

Eduardo Leonardo. O modelo é um tipo de lente através da qual o mundo é observado. Ser

importante é tornar-se maior. Conforme você aproxima ou afasta o foco, sua nuvem individual

se torna maior ou menor; isto é, mais ou menos importante. O mundo não muda apenas com a

escala, pois contém suas próprias oscilações, que são exatamente o que a sua escala é feita

para capturar. Ao mesmo tempo, as mudanças de escala do mundo e as mudanças de escala do

modelo devem estar em seqüência. A oposição contrastada entre o modelo e o ‘mundo real’

evocada por essa formulação foi justaposta, no entanto, com descrições que fundiram o

modelo e o ‘mundo real’ em formas diferentes (o real como ‘vivido’ (verdadeiro), o modelo

‘modelando’ conforme o mundo ‘mundifica’, carregando o modelo com dados e definindo o

mundo de forma que o modelo possa vê-lo). Eles se tornaram metonimicamente relacionados,

de forma contígua, em vez de metaforicamente relacionados, portanto, para uma antropóloga

confusa, se tornou difícil às vezes separar onde um terminava e o outro começava; e isso é

visível às vezes na forma pela qual os modeladores falam sobre os ‘processos reais’ estarem

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‘dentro’ do modelo. Na verdade, onde um começa e o outro termina é exatamente a distância

que os modeladores estão tentando diminuir. Como vimos antes, o “acerto” é 100% quando as

linhas do gráfico se tornam uma só.

Além do mais, o ‘real’ como dados observados é meramente o que se precisa tomar

como ponto de partida. É “bem especulativo” e deve-se ter certeza de não se atribuir realidade

demais ao modelo ou aos dados observados. A relação entre ‘modelo’ e ‘mundo’ se repete no

interior de ambos. Um modelo pode ser mais ou menos real, e um mundo pode ser mais ou

menos real. Mas o que o pesquisador de campo deu como real a você, o modelador, você toma

como sendo real. Que esses modelos possam ‘começar a partir de diferentes realidades’, como

Marta sugere, e que os modelos são parametrizados para dar conta da ‘sua realidade’, como

Paulo observou, também implica no fato de que aquilo com que os modeladores trabalham

pode na verdade ser vários continuums, cada modelo tendo seu próprio ‘modelado’ em vez de

cada modelo modelando o mesmo mundo. Eles não estão na mesma escala, mas em escalas

diferentes. Isso então implica na possibilidade de existirem várias ‘realidades’ que emergem

desses continuums. Nesse caso, é razoável dizer que todos os modelos poderiam

potencialmente ser igualmente teóricos, ou reais, pois não são mensurados em relação a um

mundo qualquer, mas contém suas próprias escalas.

No entanto, como observamos, David pareceu assinalar enfaticamente que esse não é

o caso. Seus modelos tem “um quê de realistas”; os modelos regionais são “mais reais” do que

os seus, isto é, seus modelos nunca alcançariam a ‘realidade’ dos modelos de modeladores

regionais. Ainda assim, o modelador regional trabalha no entendimento de que o que ele está

modelando pode não ser, de fato, ‘real’. A ‘realidade’ parece ser um ponto fugidio. Nunca se

espera a certeza e observação é realidade, mas nem sempre. Quase como o pobre Tântalo,

para os modeladores, a certeza é um ponto fugidio; mas, diferentemente de Tântalo, a

tentativa não é infrutífera.

“Mas e se esse problema fosse também um fato?”. O ‘real’ é tanto um ponto fixo,

como uma propriedade relativa. Tanto é a ponta retrocedente de uma escala universal singular,

como é inerente a cada ponto ao longo da escala. Aqui lembramos a insistência de Latour no

fato de que as cadeias de referências ao longo das quais circulam os fenômenos começam no

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meio e se desenvolvem para fora, na direção das extremidades, que deslocam infinitamente o

processo e se movem constantemente. Para citar Latour, a realidade é constantemente

“secretada” (1986 [1979]: 243).

Para pegar emprestado um pouco do vocabulário de Prakki, a realidade poderia,

talvez, ser considerada uma variável tanto independente, como dependente. Ela é múltipla,

mais do que contraditória, pois é disposta como tal. Não é um ponto fixo, mas, como na noção

de escala, a relação ‘real-modelo’ pode surgir em vários lugares. Os dados observados podem

ser reais comparados a dados ideais, e não quando comparados aos dados que sabemos não

possuir ainda. A idéia é inerente à relação entre modelo e mundo - o modelo e o mundo estão

em uma relação de representação, mas, ao mesmo tempo, ambos trabalham na mesma escala e

o modelo pode ser mais ou menos real dependendo do que você deseja estudar. O ‘mundo’ e o

‘modelo’ podem oferecer perspectivas mutuamente constitutivas um sobre o outro, na forma

de ‘verificação’ e ‘previsão’, respectivamente. O modelo é ‘carregado com’ o mundo, mas se

torna, ele mesmo, o ‘carregador’ da previsão que faz. Assim, a ‘realidade’ como todo singular

fixado totalmente está constantemente sendo deslocada pelo ato mesmo de modelar. Você tem

que deixar coisas dentro ou tirar coisas para fora; a equação inteira nunca está presente. Mas

isso não significa que o que habita o pólo da ‘realidade’ no interior da relação não é ‘real’.

Isso significa apenas que não é todo o ‘real’ que existe; ou que esse termo é um resultado

temporário do lugar onde se coloca a relação “modelo-real” dentro do conhecimento que se

tem hoje, mas, que se sabe, pode mudar no futuro.

Latour sustenta, como expliquei brevemente, que a ‘descoberta’ não é um ponto a ser

deliberado, pois o ato de ‘descobrir’ é, na verdade, uma adição de algo novo ao mundo; a

ciência não é um “jogo de zero-soma”. A modelagem climática não é considerada sob

nenhuma perspectiva uma "descoberta" da mesma forma que é considerada a descoberta dos

micróbios, por exemplo. Ela é, na verdade, uma ‘simulação’ do mundo e distinta como tal

(como veremos no próximo capítulo). Entretanto, eu sugiro que em todas as minhas conversas

com os modeladores um fator fundamental determinando se um modelo era considerado ‘útil’

ou não era, de fato, se ele acrescentava algo novo ao conhecimento dos modeladores sobre o

mundo – ou, melhor dizendo, se ele produzia uma simulação de um mundo novo ou diferente

na qual se poderia confiar. Mas, como vimos, para obter novas informações, deve-se ser capaz

de sustentar algo ‘constante’. Para que o modelo ‘funcione’, as equações devem ser fixadas.

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Para criar novas informações, o ‘caos’ deve ser colado em uma caixa preta. Isso é realmente

uma noção extrema de escala. Mas talvez a escala tenha e não tenha importância (Strathern

2000). Não só por ser claramente importante para os modeladores, mas porque a maneira pela

qual eles pensam a escala não é necessariamente a maneira pela qual nós antropólogos o

fazemos; a especificidade de nossas técnicas é o que é crucial. É essa diferença que permite o

movimento entre interpretações e esse movimento, como vimos, são os ‘dados’. O que estou

tentando dizer não é que uma noção antropológica de escala como ‘fractal’ seja de forma

alguma mais ‘real’ do que a dos modeladores; mas, sim, que ‘o que é real’ para um

antropólogo está em constante estado de movimento, assim como para o modelador. Só que o

que esse movimento significa difere para os dois.

Essa exploração, que pode parecer ‘desproporcional’ em relação à tarefa à mão, é feita

na esperança de demonstrar com que habilidade os modeladores com quem eu falei tem para

negociar e colocar em uso a relação ‘real-modelo’ - uma relação que se torna, em algumas

instâncias, uma bandeira epistemológica fixa nas ciências sociais. Mas estou ciente que se

deve ter cuidado nesse processo. As metáforas às quais a antropologia recorre “constroem

contextos globais para a interconexão de eventos e relações”, mas há sempre o perigo de que

os “fenômenos venham a aparecer contidos ou englobados pela sistêmica e, assim, sendo eles

mesmos sistêmicos. Dessa forma nos enredamos em estruturas profundas e sistemas de

mundo e nos preocupamos com o ‘nível’ em que eles existiam nos próprios fenômenos"

(Strathern 1988a: 7)151. Com certeza, a ‘fluidez’ que transparecia para mim na maneira que os

modeladores usam esses conceitos causou uma certa dissonância que não seria, de forma

alguma, reflexo da maneira na qual eles vêem sua própria prática. Como assinala Wagner, os

seus mal-entendidos em relação a mim são muito diferentes dos meus mal-entendidos em

relação a eles (1975: 20)152. E por essa razão é necessário sustentar uma discussão contínua

com as premissas dessa dissonância, ao mesmo tempo nunca imaginando que seja possível

"extrairmo-nos" dela. O processo de análise, como a modelagem, "nunca pára" de se mover.

Novas premissas estão sempre no horizonte. Mas é possível tentar revelar a forma pela qual

elas funcionam.

151 “construct global contexts for the interconnection of events and relations...phenomena come to appear

contained or encompassed by the systemics, and thus themselves systemic. So we get entangled in world systems and deep structures and worry about the ‘level’ at which they exist in the phenomena themselves”

152 their misunderstandings of me are very different from my misunderstandings of them

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141

***

Nós podemos agora “trocar de marcha” no nosso veículo analítico. De diversas

maneiras, tenho abordado uma problemática, a do que fazer quando seus 'nativos' parecem

usar os mesmos termos que você usa e de formas diferentes. A decisão de Latour de “seguir

os atores” (follow the actors) (Latour 2005) revela que, na verdade, a ciência em ação é muito

diferente daquilo que nós, de ‘fora’ da ciência, fomos levados a crer. Daí sua surpresa ao ser

acusado de ser um ‘inimigo’ da ciência – “quem primeiro nos ofereceu essa arca do

conhecimento? Os próprios cientistas!” (1999a: 19)153. Enquanto “nós tomamos a ciência por

pintura realista, imaginando que ela fazia uma cópia exata da realidade”, os cientistas “fazem

algo completamente diferente… através de etapas sucessivas eles nos conectam a um mundo

alinhado, transformado, construído” e, caso a menção de construtivismo cole na garganta,

“não é essa ‘deambulatória’ filosofia da ciência mais realista e certamente mais realística do

que a velha instalação?” (ibid: 78-79)154

Mas, como Holbraad, entre outros, sugere, Latour parece ter decidido enfocar quase

exclusivamente o que os cientistas fazem e não o que eles dizem entre outros motivos porque,

do contrário, ele teria uma luta em suas mãos:

“Nenhum antropólogo deve sonhar em ‘corrigir’ seus informantes. Pode parecer que Latour está dando

a si mesmo essa licença, talvez porque seus informantes se assemelhem menos a nativos e mais a

colegas. – aqui cientistas e os reputadamente devotos. Em relação ao argumento sobre a ciência, eu

não ficaria surpreso se a resistência que ele encontra entre os praticantes (‘você acredita na

realidade?’, como ele conta em Pandora’s Hope) se devesse não apenas à natureza radical do seu

argumento, mas também ao fato dele lançar suspeitas sobre a veracidade da própria visão de senso

comum dos cientistas sobre o que é que eles fazem. Mais do que desafios analíticos, os argumentos de

Latour levam a acusações de falsa consciência”. (Holbraad 2004) 155

153 “who first offered us this trove of knowledge? The scientists themselves!” 154 “we have taken science for realist painting, imagining that it made an exact copy of the world”, the

sciences “do something else entirely…through successive stages they link us to an aligned, transformed, constructed world” and, in case the mention of constructivism sticks in the throat, “is this ‘deambulatory’ philosophy of science not more realist, and certainly more realistic, than the old settlement?”

155 “No anthropologist should dream of 'correcting' his informants. It seems that Latour is giving himself this licence, maybe because his informants are less like natives and more like colleagues - here scientists and the putatively pious. With regard to the argument on science, I wouldn't be surprised if the resistance he encounters among practitioners ('do you believe in science?', as he reports in Pandora's Hope) is due not just to the radical nature of his argument, but also to the fact that it gives the lie to scientists' own common sense

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É como se, caso Latour ouvisse o que os cientistas dizem que estão fazendo em vez

dele mesmo explicar o que eles estão fazendo, ele tivesse que admitir que o que ele estava

fazendo era na verdade tão ‘representacionista’ quanto o que fazem os que são alvo de sua

crítica. Ele está, nesse sentido, authoring e os explorando por remover sua conexão com o que

quer que seja que eles estão fazendo. Como assinala Holbraad, o “anti-representacionismo

cáustico” de Latour está baseado na premissa de que "não existe descontinuidade ontológica

entre palavra e mundo”; ao se falar com cientistas, no entanto, fica evidente que isso só existe

– cientistas de laboratório se esforçam exatamente para produzir representações acuradas do

mundo. Dizer algo diferente disso seria o equivalente a sugerir que existiria uma outra

realidade à qual ele tem acesso e não os próprios cientistas.

Isso oferece uma abertura para a primeira observação que eu gostaria de fazer, em

defesa de minhas próprias escolhas etnográficas. Eu me concentrei nesta segunda seção sobre

exatamente o que os modeladores me disseram que fazem, não o que eu os observei fazendo.

Isso foi tanto um artifício de minha situação etnográfica particular, como uma decisão

consciente de minha parte. Ganha um peso extra pelo fato de o que eles 'fazem' ser falar sobre

'realidade' e 'representação' para mim, e é disso que estamos falando aqui. Ou não é? Parece-

me que essa aproximação aparente é exatamente o que me causou tanta confusão ao tentar

entender o que eles me diziam. Quando um modelador me fala sobre ‘representação’, o que

me faz pensar que estamos falando sobre a mesma coisa? E como posso assumir que, se eles

falam sobre ‘representação’, isso os faz, ou isso faz com que eu possa tratá-los como

‘representacionistas’? O fato é que somos todos, como diz Strathern citando Giddens,

“teóricos sociais” (social theorists). Mas, como Strathern prossegue para nos mostrar, essa

“frase é vazia se as técnicas de teorização têm pouco chão comum… [Eu] enfatizo a

especificidade das técnicas, no que diz respeito ao conhecimento” (1987: 30)156

Essa especificidade é importante. A suposição de que a conclusão do argumento de

Latour é que a ciência é uma prática social como outra qualquer, tem uma outra suposição

subjacente, envolvendo a relação entre essas duas noções, ‘ciência’ e ‘prática social’. Como

view of what it is they do. More than analytical challenges, Latour's arguments amount to indictments of false consciousness”(Holbraad 2004) http://abaete.wikia.com/wiki/Response_to_Bruno_Latour%27s_%22Thou_shall_not_freeze-frame%22_%28Martin_Holbraad%29 02/05/08

156 “phrase is an empty one if techniques of theorizing have little common ground…[I] stress the specificity of techniques, as far as knowledge is concerned.”

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mostra Pinch (Pinch and Pinch 1988: 181), supõe-se que dizer que a ciência é socialmente

construída é equivalente a desconstruí-la. Mas e se disséssemos que a ciência é uma prática

social distinta de qualquer outra? A ‘simetria’ buscada por Latour foi criticada por insistir em

um ‘achatamento’ (termo empregado por Latour), tornando tudo igual e conseqüentemente

fazendo com que todas as informações sejam perdidas. Tudo é distorcido pelo miasma da

similaridade. Essa simetria, no entanto, é meramente o ponto a partir do qual os cientistas

sociais podem começar suas análises. Ou seja, como diz o próprio Latour em We Have Never

Been Modern, “o princípio de simetria não tem como objetivo estabelecer igualdade – que é

apenas a maneira de zerar a balança – mas registrar diferenças – isto é, na análise final,

assimetrias – e entender os meios práticos que permitem a algumas coletividades dominar

outras. Mesmo que elas sejam similares no princípio de sua co-produção, as coletividades

podem diferir em tamanho” (Latour 1993 [1991]: 107-108)157.

Aqui, como um aparte, eu gostaria de assinalar que a ênfase de Latour no tamanho

como fator diferencial – “existem de fato diferenças, mas elas são diferenças de tamanho”

(ibid. 109) – é uma questão, por exemplo, para Strathern (1996) e algo a que eu retornarei no

capítulo de conclusão da dissertação. Latour faria talvez sobre a ciência a mesma afirmação,

contrária à afirmativa de Holbraad, que fez sobre a modernidade: “a modernidade não é falsa

consciência”158. E insistiria no fato de que o que ele tem tentado fazer é revelar a relação entre

“purificação” e “mediação”, ou neste contexto, ‘ciência’ e ‘prática social’, que não é “aquela

entre consciente e inconsciente, formal e informal, linguagem e prática, ilusão e realidade… a

única coisa que acrescento é a relação entre esses dois conjuntos de práticas” (1993 [1991]:

40)159. As duas não são opostas, mas trabalham juntas; e é essa relação que deve ser explorada

pelo sociólogo da ciência. A mediação requer purificação para funcionar e, quanto mais a

ciência se purifica, mais se torna intimamente entremeada com o tecido do social. Dizer que a

ciência é uma prática social é apenas o começo da análise, não o final. O ‘coletivo’ está em

“permanente renovação que é organizada em torno de coisas em permanente renovação” e

“nunca parou de evoluir” (1993 [1991])160. Voltarei a isso, novamente, no capítulo final, pois

157 ““the principle of symmetry aims not only at establishing equality – which is only the way to set the

scale at zero – but at registering differences – that is, in the final analysis, asymmetries – and at understanding the practical means that allow some collectives to dominate others. Even though they might be similar in the principle of their co-production, collectives may differ in size”

158 “modernity is not false consciousness” 159 “that of conscious and unconscious, formal and informal, language and practice, illusion and

reality…the only thing I add is the relation between these two sets of practices” 160 “permanent renewal that is organized around things in permanent renewal” and has “never stopped

evolving”

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144

há aqui uma contradição aparente a ser explorada.

A maneira pela qual estou tentando repensar o ‘representacionismo’ usando os

modeladores, nos leva de volta ao ensaio de Holbraad sobre o ‘anti-representacionismo

cáustico’ de Latour. Holbraad oferece nesse artigo uma maneira de ‘elaborar’ conceitos

Latourianos, um objetivo antropológico que tem meu forte apoio. Assim, não só símpatizo

com essa perspectiva, mas, também, o argumento de Holbraad dá espaço para o surgimento de

um diálogo muito mais fértil do que a mera repetição das réplicas Latourianas às críticas

humanistas ou realistadas endereçadas a ele. Em termos de crítica, um ponto interessante

sobre o texto de Holbraad é que o seu ‘objeto’ parece se evidenciar da mesma forma que,

penso eu, o de Latour. Isto é, para construir seu criticismo sobre Latour (na minha opinião em

última instância realmente apoiado sobre uma crítica, compartilhada por mim e a que voltarei

mais tarde, à ‘auto-purificação’ de Latour), Holbraad precisa efetuar uma purificação similar.

Dessa forma, o que os nativos ‘dizem’ veste a capa do ‘representacionismo’ no argumento de

Holbraad; os cientistas são representacionistas, o que podemos fazer em relação a isso? E para

escapar a isso, Holbraad postula algo que ‘já está lá’, como veremos – um estado de ‘ainda

não’. Isso é uma faca de dois gumes. Como reforça Latour, suas idéias também ‘já estão lá’;

elas vêm dos próprios cientistas (“quem primeiro nos ofereceu essa arca do conhecimento? Os

próprios cientistas!” (Latour 1999a: 19).

A interseção que eu gostaria de explorar aqui é a maneira pela qual Holbraad trata

Latour, e a maneira pela qual Latour trata os fatos científicos. Como um fato, Latour se torna

‘purificado’. Isso é outro motivo pelo qual eu vou me concentrar no argumento de Holbraad.

A forma pela qual Holbraad usa Latour, quero argumentar, é em certo sentido inevitável, pois,

como vimos, o próprio Latour descreve estabilização e purificação em termos de um acúmulo

de conexões e associações. Latour se torna estabilizado como um ‘fato’, como evidenciado na

maneira pela qual Holbraad o posiciona no seu argumento161.

Holbraadd escreve “O problema é característico das revoluções que alcançam a

maturidade, como o anti-representacionismo o fez, na medida em que Latour, Strathern,

Viveiros de Castor, etc. agora constituem uma ortodoxia para vários dos antropólogos mais

161 Minha discussão aqui deve muito aos comentários de Marcio Goldman sobre o artigo de Holbraad:

http://abaete.wikia.com/wiki/Discuss%C3%A3o:Response_to_Bruno_Latour%27s_%22Thou_shall_not_freeze-frame%22_%28Martin_Holbraad%29 12/06/08

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criativos da minha própria geração. O que fazer com os governantes - representacionismo

burguês! – uma vez vencidos?”162. Holbraad se questiona:

“Por que ser tão assimétrico em relação à assimetria? Parece-me que uma estratégia mais

consistente seria continuar a fazer novas perguntas. Se, do ponto de vista Latouriano, o senso comum

moderno parece exótico e ingênuo, então vamos levar a sério os nativos, exatamente como faríamos

(ou temos que fazer) ao estudarmos o ‘fetichismo’, ou seja lá o que for. A questão, então, seria esta:

tomando o sofisticado quadro analítico desenvolvido por Latour e outros não-representacionistas como

base conceitual – uma espécie de ‘novo senso comum’ – que trabalho conceitual para além disso é

necessário para que as suposições representacionistas façam sentido?” (Holbraad 2004).163

‘Ir além’ no trabalho é necessário, pois aparentemente, o representacionismo não

consegue escapar à “falsidade ingênua – a ruína da retórica imbatível de Latour”164 (ibid).

Holbraad sugere que a “coisa simétrica a fazer é ver o até que ponto o não-representacionismo

precisa ser revisado à luz do representacionismo de senso comum” (ibid)165.

Embora eu concorde com Holbraad de que às vezes Latour parece ser totalmente

intolerante com (have no truck with) o representacionismo, aqui há dois pontos principais a

fazer. O primeiro é que Latour pode responder à acusação de ‘ignorar’ seus nativos e atribuir

a eles uma falsa consciência afirmando que a ‘simetria’ é uma abordagem, não um estado de

existência em si mesma, como uma ‘rede’. Como tal, ela nunca procura excluir nada, mas

oferece as condições para incluir cada topografia social que possa ser encontrada em campo

ao se abordar os nativos a partir de um ponto de partida 'de nível'. Como ele escreve em um

artigo de 1997, ANT (Actor-Network Theory, Teoria de Ator-Rede):

“é um método para descrever a produção de associações, como a semiótica é um método para

162 “The problem is characteristic of revolutions that reach maturity, as anti-representationism has, insofar

as Latour, Strathern, Viveiros de Castro etc. now constitute orthodoxy for many of the more creative anthropologists of my own generation. What to do with the rulers - bourgeois representationism! - once they've been defeated?”

163 “Why be so asymmetrical about asymmetry? It seems to me that a more consistent strategy would be to keep asking new questions. If, from a Latourian point of view, modern common sense seems exotic and naïve, then let's take the natives seriously, just like we would (or ought to) when studying 'fetishism' or whatever. The question, then, would be this: taking the sophisticated analytical frame developed by Latour and other non-representationists as the conceptual baseline - as a kind of new 'common sense'- what further conceptual work is required in order to make sense of representationist assumptions?” (Holbraad 2004)

164 “naïve falsehood - the bane of Latour’s relentless rhetoric” 165 “the symmetrical thing to do now is to see how far non-representationism needs to be revised in light of

commonsense representationism”

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descrever o caminho gerador de qualquer narração. Não diz nada sobre a forma das entidades e ações,

mas apenas sobre o que deve ser o dispositivo de registro para permitir que as entidades sejam

descritas em todos os seus detalhes. A ANT coloca o peso da teoria sobre o registro, não sobre a forma

específica que está sendo registrada. Quando diz que os atores podem ser humanos ou inumanos, que

eles são infinitamente desdobráveis, heterogêneos, que são livre-associacionistas, sem conhecer

nenhuma diferença de escala, que não há inércia, ordem, que eles constroem sua própria

temporalidade, isso não qualifica nenhum ator real observado, mas é a condição necessária para que

a observação e o registro dos atores seja possível”. (Latour 1997, trecho em negrito destacado por

mim)166

Esse método é o que “simplesmente abre, contra todas as reduções a priori, a

possibilidade de se descrever irreduções” (ibid), de modo que qualquer forma possa ser

gravada, em vez de se predizer como um ator vai se comportar. As acusações de dogmatismo,

de se atribuir uma ‘falsa consciência’ a atores que não sabem que são “realmente”

infinitamente desdobráveis, são conseqüência do compromisso da ANT com uma certa

metodologia, um compromisso que precisa ser sustentado à força, afirma Latour (ibid).

Para permitir que o ‘representacionismo comum’ reveja ou afete o ‘anti-

representacionismo’ da maneira que Holbraad parece estar sugerindo no início do seu artigo

de 2004, eles devem ser pensados como “coisas” separadas e que podem ser opostas, quando

Latour, aqui pelo menos, está claramente afirmando algo muito mais interessante - que seu

trabalho é sobre o método, que é exatamente sobre a “possibilidade de se descrever

irreduções” que antes eram impensáveis. Isso não quer dizer que ele não possa descrever

‘reduções’, se for necessário. É o mesmo tipo de assimetria que vemos na sua caracterização

de 'purificação' e de 'mediação', que ele torna especialmente explícita em We Have Never

Been Modern, onde em um nível mediação inclui purificação, em vez de se opor a ela, e

purificação é o que permite de fato a ‘proliferação de híbridos’. Voltarei a isso no último

capítulo. Eduardo Leonardo em mais de uma ocasião se referiu à mudança de escala como um

“zoom”. Quando Latour fala sobre a noção dos quadros de referência abrangentes que são

inerentes ao ato de se fazer um ‘zoom’, ele o faz claramente como um alerta sobre isso. Mas 166 “is a method to describe the deployment of associations like semiotics is a method to describe the

generative path of any narration. It does not say anything about the shape of entities and actions, but only what the recording device should be that would allow entities to be described in all their details. ANT places the burden of theory on the recording not on the specific shape that is recorded. When it says that actors may be human or unhuman, that they are infinitely pliable, heterogeneous, that they are free associationists, know no differences of scale, that there is no inertia, no order, that they build their own temporality, this does not qualify any real observed actor, but is the necessary condition for the observation and the recording of actors to be possible.” (Latour 1997)

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isso não deve engendrar em mim a obrigação de “contradizer” meus informantes:

“Eu também concordo que enquadrar as coisas em algum contexto é o que os atores fazem

constantemente. Eu simplesmente estou argumentando que é essa atividade mesma de enquadrar, essa

atividade mesma de contextualizar que deve ser trazida para o primeiro plano e isso não pode ser feito

enquanto o efeito de zoom não é questionado. Definir escalas de antemão seria apegar-se a uma

medida e a um quadro de referência absoluto quando o que estamos buscando é apenas medir, quando

viajar de um quadro ao quadro seguinte é o que queremos alcançar” (Latour 2005: 187)167.

O que quero alcançar e o que Eduardo Leonardo faz neste caso não são de forma

alguma a mesma ‘coisa’. A “simetria” é uma abordagem; uma rede é uma forma de pensar,

não uma coisa que é pensada – “a ANT é antes de tudo um princípio de projeção abstrata para

se produzir qualquer forma, não uma decisão arbitrária concreta sobre que forma deve estar

no mapa” (Latour 2005: 45)168.

Meu segundo ponto é que essa defesa é de certa forma ingênua, pois, como ataca

Holbraad, a retórica de Latour é muito conscientemente combativa; e Holbraad baseia sua re-

análise em um artigo (Latour 2004b) no qual Latour aparece particularmente dessa forma. É

às vezes difícil não imaginar o ‘representacionismo’ como uma espécie de força maligna que

os ‘bons sociólogos ANT da ciência’ devem afugentar. Holbraad sugere que, usando o

representacionismo “bizarro” de nosso nativo, podemos começar a imaginar “como, em outras

palavras, pode a própria Rede ser estendida (transformada, redefinida) de modo a incluir seu

próprio reputado oposto?” (Holbraad 2004)169. O que é aparente, no entanto, após meu

trabalho com os modeladores, é que, quando falam em ‘representação’, eles não estão falando

sobre o oposto reputado de ‘não-representacionismo’. Como tentei demonstrar, o que parece

emergir das minhas primeiras tentativas de analisar o que eles me diziam, embora

admitidamente de um ponto de partida simpatizante com as idéias de Latour, é que o que é

representacionismo não é sempre o oposto do que nós denotamos como sendo não-

167 “I also agree that framing things into some context is what actors constantly do. I am simply arguing

that it is this very framing activity, this very activity of contextualising, that should be brought into the foreground and that cannot be done as long as the zoom effect is taken for granted. To settle scale in advance would be sticking to one measure and one absolute frame of reference only when it is measuring that we are after; when it is travelling from one frame to the next that we want to achieve” (Latour 2005: 187).

168 “ANT is first of all an abstract projection principle for deploying any shape, not some concrete arbitrary decision about which shape should be on the map.”

169 “how, in other words, might the Network itself be extended (transformed, redefined) so as to include its own putative opposite?”

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representacionismo. Nesse caso, há uma propriedade relacional fluida que, como tal, parece

tirar seu significado de onde quer que os modeladores estejam enfocando sua atenção. A

habilidade para criativamente clivar a idéia de ‘realidade’ do seu ‘referente do mundo real’ é o

que permite a fluidez na forma com que os modeladores concebem o que eles estão fazendo e

lhes dá a liberdade para me lembrarem de forma desarmante que “tudo depende da quantidade

de real”, que a “observação é realidade, mas nem sempre”, e que você tem que fazer seu

modelo se encaixar na sua realidade, sabendo ao mesmo tempo que se trata de um

‘enquadramento-que-congela’ - de modo que, ao perguntar a eles se existe tal coisa como o

‘real’, eles, é claro, responderiam afirmativamente. Representar nesse caso não pressupõe

necessariamente um mundo ideacional no qual a realidade é um valor absoluto, ou que não há

um continuum no lugar de uma escolha (absurda), ou isto ou aquilo. Da mesma forma, as

metáforas visuais empregadas por Eduardo Leonardo para tentar explicar como o modelo

‘enxerga’ o mundo dão pistas tanto de um mundo estático que existe ‘lá fora' para ser

conhecido, como do fato de que esse mundo está constantemente em expansão ou contração e

qualquer 'totalidade' está sempre fora do alcance. A questão persiste, de quem é essa

contradição?

A sugestão de Holbraad, de que devemos “transformar” tanto o representacionismo,

como o não-representacionismo em um esforço para “redefini-los de uma forma

‘extraordinária’ que ultrapassaria a antinomia – criar novos conceitos, como define

Deleuze”170 já está, portanto, sugiro eu, nas formas de trabalhar dos modeladores e, mais

além, no que Latour escreve – isto é, se alguém foca (‘pára’) sua atenção sobre o que é fluido

no seu trabalho e não sobre o que está estabilizado. Há infinitas-1 formas de ser assimétrico,

mas apenas 1 forma de ser simétrico. Uma forma pela qual o aparato conceitual antropológico

poderia ser redefinido, sugere Holbraad, é através da idéia de movimento, transformação ou

‘vir a ser’ – “a Rede não é apenas um campo relacional, mas um campo relacional motile”171

(Holbraad 2004). Aqui, como expliquei no último capítulo e vou expandir no próximo, estou

de acordo. Mas, da mesma forma, a ANT sempre foi enfática e explicitamente sobre

movimento, associação, "viajar" e rastrear. O argumento de Holbraad, como entendido por

mim, é que para dar conta da diferença e identidade relacional sem recorrer a um critério

ou/ou representacionista (aquele que não tem lugar em um universo "puramente" positivo,

170 “redefine them in an 'extraordinary' way that would overcome the antinomy - to create new concepts, as

Deleuze has it” 171 “the Network is not only a relational field, but a motile one”

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onde “o único conectivo disponível é “e” - o conectivo relacional como discutido por Viveiros

de Castro (Viveiros de Castro 2003)” (ibid)172), se poderia postular uma terceira posição para

a dialética – quebrar o binário com uma relação emergente. Quer dizer, a diferença é

desgastada não através de uma negativa retrospectiva, mas de uma espécie de ‘ainda não’

futuro positivo – a representação não é anti-representação, mas sim um ‘ainda não’ que

emerge da relação representação/anti-representação. “De certa forma profunda, então, o ato da

distinção é em si mesmo uma transformação: distinguir coisas é mudar cada uma delas

reunindo-as” (ibid)173, sugere Holbraad ao final de seu artigo. Como ele mostra, esse é

essencialmente o movimento Wagneriano de invenção e obviação, que explorei no primeiro

capítulo. Mas isso também é muito semelhante aos comentários de Latour sobre a formação

do “coletivo” que está em “perpétua renovação organizada em torno de coisas em perpétua

renovação” e “nunca parou de evoluir” – ‘apenas’ outro círculo na espiral infinita; e o fato de

que somos sempre “levemente ultrapassados por aquilo que construimos” (Latour 2002

[1996]: 43). De fato, a insistência de Latour, se se quer buscá-la, em combinar os dois pólos

‘Natureza’ e ‘Cultura’ em cada ‘imbróglio’ e a necessidade subseqüente de se postular

culturas-natureza como pontos de partida internos de um processo sem idade, que enxerga

Natureza e Cultura como termini incessantemente em deslocamento (e aqui lembramos das

cadeias de Latour que “[crescem] a partir do meio na direção das extremidades, que são

continuamente empurradas para além” (1999a: 72), isso parece ter ressonância com a tese de

Holbraad, mesmo se Holbraad vê na formulação de Latour apenas o postulado de

“conveniências políticas” (Holbraad 2004) 174.

Mas como nós podemos evitar que esse ‘vir a ser’ assuma o papel de ser apenas mais

um ponto no movimento, que nos catapulte de volta ao mesmo tipo de raciocínio ou/ou

(either/or) de que estamos aparentemente tentando escapar? A purificação parece nos cercar

por todos os lados. Pois o primeiro movimento no argumento de Holbraad é considerar as

transformações, ou relações ontológicas; entretanto, ao fazer isso, elas tendem a se tornar

‘coisas’ – a relação entre 'termos’ e ‘relações’, em si mesma, não deveria escapar ao tipo de

análise motile que está sendo sugerido por Holbraad, mas talvez não se possa escapar ao fato

172 “the only available connective is “and” – the relational connective as Viveiros de Castro has discussed

(Viveiros de Castro 2003)” (ibid)” 173 “Somewhat profoundly, then, the act of distinction is itself a transformation: to distinguish things is to

change each of them by bringing them together” 174 Mas não tenho dúvidas de que, comparando as duas, eu mesma trabalhei certa forma de estabilização

na teoria de Holbraad que servirá como uma espécie de ponto de partida para algum outro movimento.

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de que ela não consegue fazer isso175. Mas, além disso, a combinação das relações, isto é,

representação ‘e’ não-representação, resulta na coisa (relação) que nenhuma das duas é, por

enquanto; mas isso pára aqui? Existe uma quarta relação necessária para continuar o

movimento ‘positivo’? A assimetria da relação entre ‘distinções’ e ‘transformações’ significa

que, embora a ‘terceira' transformação combinada – a 'distinção’ – inclua as primeiras duas

transformações, o contrário não é verdade. Isso significa que os processos transformacionais

são direcionados; existe implícita uma noção de ‘somatório’ de “potencialidades

relativamente simples a atualidades relativamente complexas” (Holbraad 2004). A oposição

entre o ‘potencial’ e o ‘de fato’ se espelha na idéia de que esse ‘ainda-não’ é ‘autodiferença

interna intensiva, projetada a um passo como uma potencial transformação” (ibid), em

oposição a uma autodiferença externa extensiva. Holbraad distingue o ‘ainda-não-é’, a

concretização potencial de um potencial, o que parece revelar um mero privilegiar de um lado

da relação que se está tentando ultrapassar. Em outro artigo (Holbraad 2007), Holbraad talvez

esclareça levemente sua posição em relação a esse problema, indo mais longe para explicar a

base etnográfica dessa noção de ‘lógica motile’. Não há espaço aqui para dar a esse texto a

atenção que merece. Nele, a divisão ou/ou é enquadrada em termos de conceito/coisa. O

termo do Ifá cubano ‘aché’ (definido como ‘força vital’, embora a questão levantada por

Holbraad seja exatamente a dificuldade de definir esse termo) parece ser paradoxalmente

tanto pó (coisa), quanto poder (conceito). É revelador que Holbraad possa concluir que “se a

mobilidade de pó dissolve o problema da transcendência e imanência" para os seus nativos,

"então, a mobilidade também dissolve o problema do conceito versus coisa para nós

...[Assim], da mesma forma que, em um universo de lógica motile, pó pode ser poder,

deidades podem ser marcas no quadro do divino e assim por diante, então conceitos e coisas

também podem ser um o outro. Basta parar de pensar em conceitos e coisas como entidades

auto-idênticas e começar a imaginá-las como movimentos auto-diferenciais” (Holbraad 2007:

218-219)176. O único motivo pelo qual Holbraad pode fazer tal afirmação – na verdade, por

quê ele o faz – é porque seus nativos falam com ele de formas que confundem noções

Ocidentais axiomáticas. Novamente, nós confrontamos a questão, que neste caso Holbraad ele

mesmo está perguntando: de quem é esse paradoxo? Meu desconforto com o desafio de 175 Ver Wagner: “se, como postulei, as atividades de relacionar e definir são verdadeiramente

interdependentes e relativas uma à outra, então, qualquer empresa que tente perseguir ambas essas modalidades para uma espécie de conclusão unificada, absoluta e determinista está fadada a chegar a um impasse relativista” (1977: 393)

176 “then motility also dissolves the problem of concept versus thing for us...[T]hus, just like in a motile logical universe powder can be power, deities can be marks on the divining board, and so forth, so concepts and things can also be each other. All it takes is to stop thinking of concepts and things as self-identical entities, and start imagining them as self-differential motions”

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Holbraad a Latour, então, é desviado para uma consideração ressabiada da facilidade com que

nós podemos ‘estabilizar’ o conhecimento ‘ocidental’ ou científico para ser ‘encaixado’ em

um argumento sobre representacionismo vs. não-representacionismo.

O problema aqui seja talvez a idéia de que algo deva ser ‘ultrapassado’, que Holbraad

reconhece, mas é flagrantemente, senão auto-ironicamente, forçado a enquadrar com sua

teoria. ‘Ainda não ser’ algo é um conceito muito mais multiplícito do que ‘ser’ algo. Essa é a

relação assimétrica que propulsa a lógica motile de Holbraad; mas se poderia notar que Latour

insiste na necessidade de se abordar ambos os lados da Constituição Moderna, purificação

tanto quanto mediação (apesar de controvertidamente com menos força). É só que, ao que

parece, a purificação já recebeu atenção suficiente. Sua própria purificação, como denotei, é,

em certo sentido, evidência disso. Holbraad enquadra como uma de suas questões o problema

do “que fazer com os governantes – representacionismo burguês! – uma vez vencidos”

(2004). É interessante como é exatamente essa espécie de 'meta-purificação’, que ele

astutamente reconhece e confronta em Latour, que parece dominar as premissas das suas

questões iniciais. Eu penso que há um terreno muito mais forte, ou mais interessante, para se

criticar Latour, envolvendo sua noção de reflexibilidade. Pois acredito que o próprio Latour

fez tanto quanto qualquer outra pessoa para criar uma relação de oposição entre ‘o que é dito

sobre a ciência’ e ‘o que ele diz sobre a ciência’. Embora Latour sustente que sua luta não é

com a ciência, o problema é que, às vezes, ele combina o que faz com ciência, em outros

momentos ele separa fortemente o que os cientistas fazem do que os filósofos da ciência

fazem, e em outros ainda ele separa fortemente o que ele faz do que a ciência faz. Eu gostaria

de deixar a discussão sobre as diversas maneiras pelas quais Latour ‘reflete’ sobre o que é que

ele está fazendo para um pouco mais tarde. Mas vou assinalar aqui que a idéia de que o ‘não-

representacionismo’ de alguma forma venceu o ‘representacionismo’ não é a questão, como

nos chama a atenção Viveiros de Castro. O representacionismo deve ser recusado “não porque

esse jogo produz resultados objetivamente falsos, isto é, representa erradamente a natureza do

nativo; o conceito de verdade objetiva (como os conceitos de representação e de natureza) é

parte das regras desse jogo particular, não do que eu estou propondo aqui” (2002: 116). O fato

de os modeladores falarem mesmo em termos de ‘representação’ pode apenas precipitar o tipo

de crise epistemológica que Holbraad está envisionando, caso purificarmos, ou colocarmos

em ‘caixa preta’ prematuramente isso de que eles estão falando.

Por toda sua fala sobre a recusa de se recorrer a uma análise purificatória, Latour

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certamente redigiu muito de sua obra em termos belicosos, e ela é certamente um chamado às

armas de todos os tipos. O que Holbraad crucialmente tocou aqui é a aparente relutância de

Latour em escrever sobre como seu próprio trabalho se tornou ‘purificado’; como as várias

conexões acumuladas por ele lhe deram o status de ‘fato’ inevitavelmente, pois é assim que,

como ele nos diz, os fatos são construídos ou estabilizados - através do acúmulo de conexões

e de várias associações heterogêneas. Mas os seus pensamentos sobre a reflexibilidade em

1979 – dizendo que nós “devemos aceitar a aplicabilidade universal da falibilidade e

encontrar formas de aceitá-la” (1986 [1979]: 283)177 – parecem estranhamente ausentes desse

generalizado (e generalizante) manifesto sobre a totalidade a filosofia ocidental em 1999, por

exemplo. Latour pode aqui estar sendo duplamente reflexivo – se o que a ciência faz é

purificar, então, certamente, é de se esperar uma trajetória de purificação do próprio Latour, já

que ele mesmo disse que tudo que faz é ‘rastrear as associações’ (2005) feitas pelos seus

atores. Mas ao mesmo tempo, se nós nunca fomos modernos e a ciência sempre foi uma série

heterogênea, fluida de transformações e mediações, então, talvez, a força da sua

reflexibilidade esteja na sua recusa a manter uma escala coerente para o seu pensamento,

preferindo saltar de detalhados exames das minúcias da pedologia a visões vastas e

panorâmicas do pensamento ocidental. Entretanto, se esse é o caso, como é possível que "o

pior resultado seja nos livrarmos de nós mesmos imitando as ciências e tentando oferecer

explicações fortes de seu desenvolvimento” (Latour 1988: 176)178?

Conceitos analíticos como os que são inerentes a conceitualizações representacionais e

suas refrações não devem ser tratados como “adversários analíticos esperando ser derrubados”

(Holbraad 2004). Nem se deve tratar Latour assim. Pois, em ambos os casos, as diferenças e

formas específicas oferecidas por cada um à medida que são movidos pelo ato de comparação

etnográfica ou analítica é, talvez, o que a antropologia deveria estar tentando apoiar. Como

Strathern sugere, “[M]etáforas participam umas das outras. A maneira pela qual essa

participação se dá deve ser rastreada como um ato de fé nos detalhes das imagens que

fornecem os pensamentos de ligação – sendo as ligações a matéria-sujeito do antropólogo”

(1988a: 188)179.

177 “we should accept the universal applicability of fallibility and find ways of coming to terms with it” 178 “the worst outcome be to get rid of ourselves by imitating the sciences and attempting to offer stronger

explanations of their development” 179 ““[M]etaphors participate in one another. The manner in which they do so participate must be traced

through as an act of faith in the details of the images that provide the linking thoughts – the linkages being the anthropologist’s subject matter”

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A teoria da ‘lógica motile' de Holbraad certamente, penso eu, prioriza um dinamismo

no ato da análise etnográfica. Minha ênfase nesta dissertação também está no movimento,

como mostrei no capítulo anterior. Penso e espero que esse fato, é claro, se deva aos cientistas

que estudo, às metáforas que eles me fornecem e aos problemas encontrados por essa tarefa

etnográfica específica. Mas, como Strathern assinala, interpretar é parar. E concentrar-se no

movimento pode às vezes acontecer para pará-lo. É o ato de comparação que determina

similaridade ou diferença (ver Strathern 1991); e nós podemos, portanto, tentar pensar mais

cuidadosamente sobre o que são as 'naturezas' das relações com as quais estamos lidando. Na

formulação de Holbraad, “A se transforma em B, mas como uma transformação de A, B não

só está relacionado a A (viz. 'A - B'), mas também é o seu produto” (Holbraad 2004)180.

Podemos fazer elaborações sobre isso. Um ‘lógica motile’ predominante pode esconder isso;

ou ela pode revelar isso. Até ser colocado em prática em uma análise etnográfica, nós não

saberemos. Sugiro especificamente que as relações (“transformações ontológicas” ou não) que

vi em campo eram e não eram ‘direcionadas’ da forma que Holbraad sugere. Mas, é claro, é a

comparação que faz surgir suas identidades, como tais, em relevo. ‘Irreduzir’ através de um

processo comparativo que parece inevitavelmente fazer o contrário é a tarefa em nossas mãos.

Talvez uma risada (laughter) cúmplice, mais do que o criticismo oposicional, seja o que nos

vai permitir tentar isso.

Menciono aqui risada (laughter), pois tenho a forte crença de os antropólogos têm, em

certo sentido, que parar de levar tão a sério a si mesmos. Como Wagner mostra (1975: 86), há

uma lição valiosa a ser aprendida de Beethoven, Rembrandt, Vermeer e o modo como essas

‘personalidades criativas’ parecem debochar de si mesmas brincando e, ao fazerem isso,

debocham das convenções. Para se levar a sério os outros, outras convenções e outras 'visões-

mundo', é necessário levar menos a sério a si mesmo e à sua própria 'visão-mundo'. Mas há

mais nisso do que trivialidade conceitual. A risada, como uma alegoria, foi também

mobilizada por Isabelle Stengers. Ela estende a noção de Latour de ‘irredução’ (ver também

Latour 1988a [1984] II), postulando que a irredução implica a impossibilidade concomitante

de falar sobre o que nós fazemos em termos de ‘vencedores e perdedores’:

“o princípio de irredução prescreve um retiro desse clamor para conhecer e julgar….[O] que

são essas “palavras” – objetividade, realidade, racionalidade, verdade, progresso – se não forem

180 “A transforms into B, but as a transformation of A, B is not just related to A (viz. 'A - B') but is also the

product of it”

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tomadas como simulações dissimulando uma empresa humana “como qualquer outra”, nem como

garantias de uma diferença essencial?…Em outras palavras – e aqui novamente eu recorro à demanda

feita por Latour em We Have Never Been Modern – é uma questão de se aprender a usar palavras que

não dão, como se fosse sua vocação, o poder para desvelar (a verdade por trás das aparências) ou para

denunciar (as aparências que escondem a verdade)” (Stengers 2000 [1993]: 17)181.

Ela “gostaria de fazer possível a risada de humor, que compreende e aprecia sem esperar por

salvação e pode recusar sem se deixar aterrorizar. Eu gostaria de tornar possível a risada que

não existe às custas dos cientistas, mas que poderia, idealmente, ser compartilhada com eles”

(ibid: 18)182.

As condições relacionais para a possibilidade dessa risada são compartilhadas; mas como e

por quem é a minha próxima questão. Pois Stengers também escreve sobre as próprias

ciências modernas–

“Esse é o significado mesmo do evento que constitui a invenção experimental: a invenção do poder de

conferir às coisas o poder de conferir ao experimentador o poder de falar em seu nome” (ibid: 89)183.

Aqui é o momento de parar para começar a entrar no meu próximo capítulo. Mas

ofereço também aqui outra analogia, outra cumplicidade possível a ser explorada. Gostaria de

sugerir uma analogia entre o trabalho de Stengers e de Strathern. Talvez tal compromisso com

a 'irredução' também seja inerente ao método de Strathern para escrever sua 'ficção', O Gênero

da Dádiva:

“Daí eu ter me referido de forma mais geral às idéias ‘Ocidentais’ e 'Melanésias’. E essa generalização

teve um intuito específico. Tudo o que fiz foi tornar explícitas comparações culturais implícitas tais

como as que estão implicadas nas justaposições incidentais de se dispor de uma linguagem como o

181 “the principle of irreduction prescribes a retreat from this claim to know and to judge….[W]hat are

these “words” – objectivity, reality, rationality, truth, progress – if they are not taken as shams dissimulating one human enterprise “like any other”, nor as guarantees of an essential difference?…In other words – and here again I am appealing to the demand posed by Latour in We Have Never Been Modern – it is a matter of learning to use words that do not bestow, as if it were their vocation, the power to unveil (the truth behind appearances) or to denounce (the appearances that veil the truth).” (Stengers 2000 [1993]: 17)

182 “like to make possible the laughter of humour, which comprehends and appreciates without waiting for salvation, and can refuse without letting itself terrorize. I would like to make possible the laughter that does not exist at the expense of the scientists, but one that could, ideally, be shared with them.” (ibid: 18)

183 “This is the very meaning of the event that constitutes experimental invention: the invention of the power to confer on things the power of conferring on the experimenter the power to speak in their name.”(ibid: 89)

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meio através do qual se revela a forma que outra possa tomar, onde a comparação for possível"

(Strathern 1988a: 343)184.

Poderia se dizer que a relação entre ‘inventor' e ‘o mundo’, e entre ‘o Ocidente’ e

‘Melanésia’ em ambas essas formulações é similarmente recursiva (um tipo talvez de

‘agencement' recursif – ver Callon 2004), distribuindo o poder inerente na explicação sem

recorrer a ‘causa e efeito’ não-lineares ou relações de ‘real e representado'. Mas a natureza

exata dessa transformação relacional é incerta. As transformações que estão ocorrendo são em

ambas as direções, ou talvez em todas. Colocando essa analogia em ação, eu espero

desmaranhar as analogias e repercussões implícitas que ela contém. Se tal aproximação

comparativa é justificada resta a ser examinado e, de fato, só pode ser examinado se

começarmos a nos mover de novo.

A risada, como uma alegoria, necessita não de ironia – o riso de julgamento e de quem

tudo sabe – mas de uma simetria de abordagem que, mesmo assim, mantenha as assimetrias o

suficiente para “recusar sem se deixar aterrorizar”. Embora, novamente, as “técnicas

específicas” dos autores sejam o que deve nos interessar e é a elas que voltarei no último

capítulo, abordando a valência da aproximação entre antropologia e ciência que coloquei em

relevo através da justaposição de Stengers e Strathern. O fato de a ‘previsibilidade’ ser sempre

algo questionado pelos modeladores, por sua vez, permite uma mirada interessante na posição

a partir da qual a antropologia poderia, talvez, fazer a sua própria modelagem. É exatamente a

imprevisibilidade ‘embutida’ dos nativos que devemos estar prontos a tolerar, como se, como

sugere Jensen, fosse exatamente o “atuar a relação entre o constante e o variável”185 que

caracterizasse as “relações atuadas”. As relações não são ‘dadas’, mas ‘atuadas’ e, como tais,

contêm sua própria ‘instabilidade embutida’. Como a relação entre o que o antropólogo atua e

o que ele/ela ‘congela’ para escrever sobre isso.

A idéia de novas questões e novas conexões está ligada em minha mente à idéia de

'risco'. Os tipos de novas conexões que nós, como antropólogos, devíamos estar fazendo não

deveria ser meramente estabilizar ('fixando') aquilo que estamos propondo, mas levar a sério a

184 “Hence I have referred in a most general way to both ‘Western’ and ‘Melanesian’ ideas. And that

generality has been with specific intent. All I have done is make explicit such implicit cultural comparisons as are entailed in the incidental juxtapositions of deploying one language as the medium in which to reveal the form that another, were it comparable, might take.” (Strathern 1988a: 343)

185 “playing out of the relationship between constant and variable”

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imprevisibilidade (‘fluidez’) daqueles que estamos estudando. A nova etapa simétrica e bem-

humorada (humourous ) seria permitir a nós mesmos nos estendermos como fazem aquele que

estudamos, em vez de meramente pressupor que precisamos de alguma forma ultrapassar

algum tipo de inclinação latente para a ‘estabilização’ da parte deles. Isso é, talvez, o que

acontecerá se nos levarmos menos a sério. É sobre a ênfase da importância dessas novas

conexões, ou da “qualidade das relações” (ver Strathern 1996: 518) que eu, felizmente, virei a

repousar em meu capítulo final. Como a sugestão feita por Strathern, particularmente

pertinente no caso da antropologia da ciência ocidental:

“Ao antropologizar algumas dessas questões, no entanto, eu não faço apelos a outras

realidades culturais simplesmente por desejar destituir o poder dos conceitos Euro-

Americanos (...) A questão é, muito mais, estendê-los com imaginação social. Isso inclui

observar como eles são colocados em ação no seu contexto autóctone e também como

eles poderiam trabalhar em um contexto exógeno” (Strathern 1996: 521)186.

Da mesma forma, eu não busco destituir o “poder” dos cientistas que observei e com

os quais falei, mas estendê-lo, como um cyborg. Ainda assim, a natureza dessa extensão pode

fazer, no entanto, que alguns parem para refletir. É na natureza desse "poder" que entrarei no

próximo capítulo. Assim, gostaria de ir em frente novamente e me voltar para a expedição do

LBA que acompanhei a São Gabriel de Cachoeira.

186 “In anthropologizing some of these issues, however, I do not make appeals to other cultural realities

simply because I wish to dismiss the power of the Euro-American concepts (…). The point is, rather, to extend them with social imagination. That includes seeing how they are put to work in their indigenous context, as well as how they might work in an exogenous one” (Strathern 1996: 521).

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157

CAPÍTULO 3 – PROJETO FRONTEIRAS, SÃO GABRIEL DE

CACHOEIRA

Área de Pesquisa, São Gabriel de Cachoeira

Os dois caminhões de exército, de repente, diminuem a velocidade e param em

umponto da estrada de terra que não me parece diferente de nenhum outro. Estamos no

Parque Nacional Pico da Neblina, onde fica o pico mais alto do Brasil, com 3.014 metros de

altitude. O Parque faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, possui aldeias indígenas e é

considerado um “hot-spot” da conservação. É preciso mostrar uma série de documentos no

portão junto ao posto militar para conseguir entrar. Viajávamos em uma estrada cercada de

ambos os lados por uma densa vegetação mas paramos em um ponto onde havia uma pequena

clareira. É o começo da trilha de dois quilômetros e meio que adentra a selva até perder de

vista. Esse caminho nos levará, juntamente com todo o equipamento, à torre e ao

acampamento no qual Raquel e sua equipe estão esperando e onde passaremos a próxima

semana. Descarregamos o equipamento e o carregamos para dentro da área mais escura e

fresca na qual a floresta volta a avançar sobre a estrada. Já é fim de tarde e precisamos nos

apressar se quisermos chegar ao acampamento antes do anoitecer. Porém, não conseguimos.

Anoitece muito mais rápido aqui, devido à proximidade com o equador e à densa cobertura

formada pela copa das árvores que filtra a luminosidade do dia.. O caminho não é mais que

uma trilha aberta na floresta em meio enormes raízes entrelaçadas e troncos de árvores

gotejantes. Lembrei-me dos comentários de Latour sobre perspectivas teóricas serem como

muitos caminhos que permitem acessar um sujeito/assunto (subject)Pergunto a mim mesma se

os caminhos que ele tinha em mente eram tão precários como este. Esta trilha vai nos separar

durante uma semana de qualquer um que não seja parte da nossa equipe; esse é de fato o

propósito: a torre da Estação de Pesquisa de São Gabriel destina-se a colher dados da floresta

primária, o mais próximo que se tem de floresta “intocada”. Isso é importante por que serve

como ponto de comparação para os dados coletados em pastos e em áreas de floresta onde há

corte seletivo de árvores.

Embrenhamo-nos em uma mata que parecia homogênea e impenetrável.No entanto,

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conforme se vai caminhando,os olhos começam a perceber centenas de pequenos movimentos

anônimos que se destacam em relação à vegetação do fundo. Cada umcarrega sua bagagem

pessoal, que, no meu caso, inclui uma barraca, uma rede, toda a quantidade de repelente de

mosquito que coube na minha mochila, meu laptop, minha câmera, roupas, coisas à prova

d’água e dois pacotes de tangerinas, pois teríamos pouca comida fresca.Temos também que

carregar comida, equipamento elétrico pesado e delicado, como os IRGAS, equipamento para

a manutenção da torre ainda mais pesados, baterias, combustível para o gerador, redes de

coleta para liteira fina – as folhas que caiem dos arvores -, vários laptops, bem como

ferramentas e dispositivos elétricos menores. Cada pessoa carrega o máximo que consegue e,

mesmo assim, somos forçados a deixar algumas coisas para trás para resgatar de manhã.

Nossa carga é pesada e difícil de manejar. O terreno aqui é acidentado e, como a torre teve de

ser construída sobre um platô, temos que escalar algumas colinas íngremes. Dizem-me que

isso é assim porque dados de “platô” são necessários, para contrapor-se aos dados de “bacia”;

alguém me diz que deve ser assim para que os cabos que mantêm a torre em pé pudessem ser

fixados no chão da forma mais segura possível. Arrastamo-nos por subidas íngremes e

descidas agudas. Vez ou outra e com mais freqüência, conforme penetramos na floresta, há

um igarapé para cruzar, sobre os quais foram colocados pequenos troncos de árvores em

diferentes estados de decomposição como pontes de não mais que um metro de largura - às

vezes, não mais que meio metro. O caminho seria árduo sem o peso extra, mas, com as

mochilas, caixas e sem as mãos livres, os dois quilômetros e meio da jornada assumem uma

outra proporção. Levamos mais do que duas horas para chegar ao acampamento. A essa altura,

já estamos todos suados e ofegantes e as conversas limitam-se ao mínimo necessário. A noite

está caindo depressa e ouve-se um suspiro coletivo de alívio quando finalmente avistamos as

luzes do abrigo no qual vamos amarrar nossas redes. O último igarapé que cruzamos é,

justamente, aquele que tornar-se-áo mais familiar, para onde retornaremos todos os dias para

lavar a sujeira e o suor. Alguns dias depois, um jacaré será visto aí, tomando banho

preguiçosamente.

Uma das primeiras conversas memoráveis que tive na expedição foi com Raquel,

quando parte de nosso grupo voltou no dia seguinte, às sete da manhã, para pegar o

equipamento que havíamos deixado para trás. Conversamos enquanto andávamos

rapidamente em fila ao longo da trilha e eu tentava anotar o que ela dizia, ao mesmo tempo

que tentava manter um olho cauteloso no chão, para evitar raízes, buracos, cobras e poças de

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lama. No começo achava isso difícil e caía muitas vezes, para a diversão silenciosa do grupo.

Tomava notas de forma compreensivelmente errática. Perguntei a ela se ela pensava que, no

campo, algumas condições afetam os dados sendo coletados. Eu estava interessada em saber o

que ela entenderia como “condições” na minha pergunta. Ela ri. “Depende”, diz ela. Raquel

conta, por exemplo, que ter alguém para ajudar a coletar liteira de folhas não era tão

importante. No entanto, a ajuda de outra pessoa é importante para marcar as “parcelas” (áreas

quadradas marcadas com fita na floresta, onde ela vai coletar suas amostras). Pode haver

cobras. E os diferentes modos de medir as amostras de madeira morta que se está coletando

“vão afetar as medidas”. “Então, por que você não pode incluir esse tipo de informação nos

seus papers?”, pergunto. Ela ri novamente. “De jeito nenhum. Ninguém faz”, ela responde.

“Não tem lugar onde colocar esse tipo de dado… O que você vai dizer? O meu trabalho

poderia ter sido melhor?”

***

Como Marta havia me explicado um dia antes, enquanto nós esperávamos para

embarcar no avião em Manaus, a equipe do LBA que trabalha com a torre de São Gabriel e a

estação de pesquisa é parte do Projeto Fronteiras. Raquel afirma que o Projeto Fronteiras é

uma iniciativa do INPA que havia sido originalmente concebida como uma resposta ao

crescente problema de suicídio de adolescentes indígenas em São Gabriel. Aparentemente, o

LBA (especificamente Manzi e Carlos Nobre, do que eu fui dita) aproveitou a oportunidade,

financeira e logística, oferecida pela implementação do Projeto Fronteira do INPA, para

estabelecer sua própria pesquisa na área. A equipe do LBA que estou acompanhando é

formada por três grupos normalmente separados. Carlos E e Glaudecy são do Departamento

de Fisiologia das Plantas do INPA. Jair e Marta são micrometeorologistas e eu já havia

conhecido ambos em Manaus. Eles são responsáveis pela instrumentação na torre, juntamente

com Flora, Mékio e Albert, “técnicos da torre” que vivem em São Gabriel. Júlio é da

Logística e veio para confirmar se a torre está estruturalmente em boas condições. Raquel e

Sandra trabalham com o departamento do LBA de Ciclos Biogeoquímicos e ambas já estão

em São Gabriel aguardando nossa chegada. Chego no mesmo dia que Sandra volta para

Manaus. Raquel, Marta e Sandra têm bolsistas da Escola Agrotécnica em São Gabriel:

Michael, Danilo e Camila, respectivamente. A Escola tinha bolsas para estudantes, mas sem

orientadores para supervisioná-los, então, a escola aproximou-se do LBA naquele ano para

sugerir que o projeto assumisse os estudantes e as bolsas que vinham com eles. Raquel

também havia contratado Tony, que também vive em São Gabriel, e se revelou um

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trabalhador inestimavelmente incansável e uma presença divertida. Em São Gabriel,

encontramos também dois membros da “2a Brigada de Infantaria de Selva”, sediada em São

Gabriel e designada para nos ajudar durante nossa estadia na selva.

Um dos objetivos gerais do LBA é o de coletar dados da “Amazônia”. Isso significa

coletar dados do maior número possível de áreas da Amazônia. de modo que há torres no

Acre, Rondônia, Pará, Amazonas, Mato Grosso e Tocantins – “uma rede de torres”, como

disse Marta. A possibilidade de ser bem sucedido nessa meta foi algo que discuti com vários

pesquisadores, cada um com uma opinião diferente, que variava de um otimismo estatístico a

um pessimismo benigno. No total, parece que atualmente o LBA possui 15 (embora ninguém

parecia concordar de fato sobre quantas são) torres de diferentes dimensões (uma vez que

altura da torre depende da altura da vegetação em volta dela), em diferentes estados de

conservação. A torre próxima a São Gabriel é uma das menos acessíveis e mais sujeitas a

acidentes, portanto, requer uma supervisão semanal dos “técnicos” que vivem em São

Gabriel: Flora, Mékio e Alberto. Eles são responsáveis por fazer o download dos dados da

torre semanalmente e enviá-los por email para Marta em Manaus bem como por manter o

equipamento funcionando, apesar de nenhum deles ter sido formalmente treinado como

micrometeorologista. Eles estão aprendendo na prática, mas Flora voltará para Manaus

conosco em duas semanas para fazer a prova de seleção do mestrado do LBA em “Clima e

Meio Ambiente”. Marta diz que sentirá muito a sua falta.

Carlos E, Glaudecy, Marta, Jair, Jaime e eu nos conhecemos no aeroporto de Manaus

às cinco da manhã daquele dia. Eu perguntava a Marta sobre os detalhes do projeto e

observava, a pequena e desconcertante aeronave ATR 42 em que iríamos embarcar mais

tarde. Foi quando, de repente, Jair apareceu. Ele tentava convencer a segurança do aeroporto a

nos permitir carregar para a aeronave a enorme quantidade de equipamentos que tínhamos.

Ele se juntou à nossa conversa: “a idéia do projeto é integrar”. Eles estariam estudando a

mesma área, mas com diferentes objetivos em mente. Apesar disso, “vai ter momentos de

convergência”. “É uma rede”, Marta comenta mais tarde, ao falar sobre o modo como o

Projeto Fronteiras envolve pesquisadores do LBA, INPA, PPBIO, embora ela diga, ,logo

depois, que isso não significa que não haja “alguns problemas em comunicação”: as conexões

entre os vários grupos envolvidos são “confusas”.

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161

Jair, repentinamente, desaparece de novo. O problema do peso da bagagem e do

equipamento não havia sido resolvido. Jaime precisa trazer uma “catraca” “para esticar os

cabos”, uma grande ferramenta semelhante a um guincho que causa consternação entre os

funcionários do aeroporto. Marta já havia tido seu alicate confiscado quando atravessou a

segurança, o que não era um bom presságio. Acabamos tendo que deixar a catraca para ser

trazida em outro vôo. Marta não conseguiu pegar de volta seu alicate. Finalmente,

embarcamos no avião e, duas horas mais tarde, tocamos o solo em São Gabriel da Cachoeira,

a 852 km de Manaus.

***

Uma ANT Deslocalizante

A Teoria Ator-Rede tornou-se muito proeminente nas últimas três décadas, como um

meio de estudar processos sociais, incluindo a produção de conhecimento científico. Foi

defendida, talvez de modo mais consistente e conhecido, por Bruno Latour, John Law e

Michel Callon, mas, certamente, aparece como um dispositivo analítico em muitos dos

múltiplos artigos e livros que emergiram a partir dos anos 80, quando “Estudos de Ciência e

Tecnologia” (Science and Technology Studies - STS) tornou-se uma área de pesquisa ainda

mais atraente e controversa. Como todos os conceitos que se tornam amplamente difundidos

na comunidade acadêmica, a noção de um “ator-rede” sofreu muitas críticas e transformações,

dúvidas foram lançadas - não apenas por Latour-, inclusive, sobre em que medida isso pode

ser chamado de “teoria” (ver Latour, 1997 e Law, 2004:159). No momento, gostaria apenas de

delinear o modo pelo qual utilizarei o conceito aqui, isto é, a forma que me parece a mais

fértil para se pensar a expedição do LBA para São Gabriel da Cachoeira. Estou ciente da

natureza presuncosa desse objetivo, especialmente se um dos princípios da ANT do Latour

(que descreverei extensivamente) é que não se pode impor categorias a priori sobre seus

“atores”. Porém, como indiquei no capítulo anterior, também estou consciente da natureza

fabricada/planejada (contrived) da minha descrição do LBA – isto é, estou ciente de que é

apenas tentando estar ciente de suas próprias premissas que se tem a chance de não aplainar as

premissas, certamente diferentes, dos outros.

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Como escreve Latour (1997), a ANT é, sobretudo, um tipo de abordagem analítica que

se auto-nega e permite a descrição de todas as formas sociais oferecidas a nós por nossos

nativos. O que deve emergir da minha descrição é, portanto, também uma justificação

implícita da minha escolha de usar a abordagem “ator-rede”, como um meio pelo qual

apreender os processos e movimentos conceituais e físicos que me pareceram serimportantes

para aqueles que estive observando e tentando entender. Como tentei demonstrar no último

capítulo, não é suficiente assumir que estamos necessariamente falando das mesmas coisas

quando Marta me diz que o projeto é uma “rede” ou quando Jair me diz que haverá momentos

de “convergência” e “integração”. Como nota Strathern: “ È importante quais idéias se usa

para se pensar (com) outras idéias”” (Strathern 1992a: 10 in Haraway 2000: 401).187 De fato,

espero que, ao tornar minhas noções explícitas agora, a diferença entre ambos irá revelar algo

específico do Projeto Fronteiras e a ciência que aí se conduz, algo que não será

completamente análogo nem às suas idéias, nem às idéias que coloco em movimento para

tentar entendê-los. A proeminência dada a essa relação ao longo da dissertação é o que deverá

permitir seu próprio movimento imprevisível. O traçado dessa dinâmica, mesmo que não

exaustiva, poderá oferecer alguns insights sobre como a própria noção de “ator-rede” pode ser

transformada depois de ser colocada para funcionar no ato da análise. De fato, a própria

noção, como pretendo demonstrar, prediz essa transformação.

Agora vou delinear o que quero dizer a esta altura com “ator-rede”. Ao longo do

capítulo, estarei recorrendo intensamente ao trabalho de Latour sobre o tema, mas também

gostaria de me referir ao trabalho de Michel Callon e à crítica de Andrew Pickering sobre a

“abordagem semiótica”, assim como pretendo tocar em outras críticas ou alternativas para a

ANT. Esta não é, de modo algum, uma revisão exaustiva, mas, talvez a impossibilidade de sê-

lo seja parte do processo do tipo de análise que estou tentando efetuar. Mais tarde irei sugerir

também que a noção de “ator-rede” não seja tomada de forma isolada – uma vez que ela

também possui um lugar num tipo de rede em que transformações na significação aparecem

junto para revelar (ou não) uma coerência conceitual. Enquanto tal, a noção de “ator-rede”

pode ser usada como meio para entrar emuma discussão sobre reflexões sobre ou refrações do

mesmo tema. Esse é o tema do qual venho me aproximando ao longo da dissertação – o tema

da cumplicidade, “agencement recursif”, antropologia simétrica, princípio da irredução, ou a

possibilidade analítica do humor ao invés da ironia. A aproximação que iniciei no final do

187 “It matters what ideas one uses to think other ideas (with)”

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último capítulo entre o trabalho de Stengers e Strathern irá funcionar, no último capítulo,

como um meio pelo qual explorar a possibilidade e, mais ainda, algo da significância ou valor

das analogias para montar a lista acima, como aquela entre o “poder inventivo da ciência

moderna” (sensu Stengers), a abordagem conceitualmente bem humorada da própria análise

de Stengers e os modos pelos quais uma antropologia simétrica poderia conceber “a natureza

distintiva”188 (Strathern 1988a: 10) daqueles que estuda. O trabalho de Latour lida com essa

questão, mas de modo oblíquo. Deve-se ter em mente que o que a primeira vista parece como

uma variação sobre um tema, poderia ser, ao invés disso, uma variação de um tema. A idéia de

simetria pode ser elaborada tanto na forma como se aproxima “analiticamente” conceitos

nativos, quanto quando se aproxima conceitos nativos e exógenos. Mantendo em mente minha

ênfase no movimento analítico da própria descrição - uma aproximação e um distanciamento

que deve ser provocado e também controlado - no último capítulo eu gostaria de questionar as

analogias aqui propostas.

Acima de tudo, gostaria de deixar que os detalhes deste conceito de “ator-rede”

provenham da etnografia, então esta caracterização inicial será breve e talvez pareça

experimental. Mantendo uma idéia que toquei no último capítulo e que expandirei depois,

analisarei essa noção em termos de incertezas (um risco). Essa é a mesma estratégia que

Latour usa no Reassembling the Social (2005), um livro que se insere, em grande medida,

naquilo que escrevo (ver também Latour 2004a, por exemplo). Permanece incerto, porém, se

empregar a mesma estratégia é equivalente a realizar a mesma ação. Como argumentei, no

que parecia a proposta de uma teoria da mediação fluida e emergente, Latour parece ter ele

mesmo inevitavelmente sofrido uma purificação e estabilização, como se evidencia pelo

modo como suas idéias podem ser usadas ou pensadas . Vale notar que ele mesmo escreveu

extensivamente sobre os quatro problemas da Teoria do Ator-Rede: o “ator”, a “rede”, a

“teoria” e o hífen (ver, por exemplo, Latour, 1999b e Jensen, 2008). Meus esforços didáticos

agora, necessários para situar meu argumento, parecerão supérfluos para seus próprios

objetivos – mas isso é em si mesmo importante.

Um ator, por definição, “age”. Mas o que é ação? “Ação deve permanecer uma

surpresa, uma mediação, um evento” (Latour 2005:45)189. Ela é “deslocada” (ibid: 45) no

sentido em que é distribuída. Nunca se pode ter certeza do que está agindo quando alguém age

188 “The distinctive nature” 189 “Action should remain a surprise, a mediation, an event”

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164

e não se pode pressupor que há alguma única força macro-social por trás da ação, o que reduz

as especificidades de toda ação a um tipo de resíduo epistemológico. Essa abordagem

significa que o aparato da “agência”, tal como intencionalidade e identidade, é emergente no

processo de “agir”, o traçado das associações heterogêneas que constituem o “social”.190

Este processo de associação (da parte tanto do “observador” e do “observado”) é uma

“tradução/translação” (translation) que “se refere a todos os deslocamentos através de outros

atores cuja mediação é indispensável para qualquer ação ocorrer... cadeias de

tradução/translação se referem ao trabalho através do qual os atores modificam, deslocam e

traduzem seus vários e contraditórios interesses” (Latour 1999a: 311). Como escreve Callon,

“devido a uma série de deslocamentos imprevisíveis, todos os processos podem ser descritos

como uma tradução/translação e tradução/translação é o mecanismo pelo qual os mundos

social e natural progressivamente tomam forma. O resultado é uma situação em que algumas

entidades controlam outras” (1999 [1986]:81)191, suas identidades, intenções e definições

emergindo desse processo de tradução/translação.

A “tradução/translação” para Callon é feita de quatro diferentes movimentos – a

problematização (o questionamento inicial, estabelecendo “pontos de passagem obrigatórios”

(obligatory passage points) em qualquer rede de relações), o intéressement (as

ações/dispositivos pelos quais uma entidade tenta impor ou estabilizar outros atores invocados

pela problematização), o protocolo (a transformação estabilizadora, através do intéressement

bem sucedido, de “questões” em “afirmações”) e a mobilização (o re-agrupamento de

entidades de modo que elas sustentem ativamente a entidade que reivindica falar em seu nome

através dessas mesmas afirmações)192. Um “ator-rede”, que é constituído e constitui essa

190 “Isso [o social] não designa um domínio da realidade ou algum item em particular, mas, ao contrário, é

o nome de um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma translação, um ‘enrolment’. É uma associação entre entidades que não são reconhecidas de modo algum como sendo social da forma comum, exceto no breve momento em que elas são re-embaralhadas juntas... Assim, social para ANT é o nome de um tipo de associação momentânea que é caracterizada pelo modo como se une em novas formas. (Latour 2005: 64-65) (“It [social] does not designate a domain of reality or some particular item, but rather is the name of a movement, a displacement, a transformation, a translation, an enrolment. It is an association between entities which are in no way recognizable as being social in the ordinary manner, except in the brief moment when they are reshuffled together...Thus, social, for ANT, is the name of a type of momentary association which is characterized by the way it gathers together into new shapes.”)

191 “because of a series of unpredictable displacements, all the processes can be described as a translation” and “translation is the mechanism by which the social and the natural worlds progressively take form. The result is a situation where certain entities control others”

192 A implicação da natureza particularmente “política” desses movimentos será demonstrada mais a frente no capítulo.

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ação, é o que ele chama de “uma rede de relacionamentos restritivos” (1999 [1986]: 79)193,

que, apesar disso, pode sempre ser “traída”, isto é, as associações e tradução/translação entre

entidades enlistadas (enrolled)na construção mútua da rede pode se quebrar de maneira fácil

ou dramática durante o processo em que são feitas.

Como fazer para se distinguir “o agir” é outra incerteza. Latour escreve (alguns diriam

que de forma pouco característica) que o que dá a pista é o que os seus nativos dizem sobre o

que fazem (2005: 47-48) e continua sugerindo que isso significa que devemos prestar muito

atenção à “metafísica” própria dos nossos informantes, tentando assegurar que a linguagem

que escolhemos para descrevê-los é uma “infra-linguagem”, ao invés de uma meta-

linguagem. Uma “infra-linguagem” é um modo dos conceitos do ator serem mais fortes do

que o do analista (ibid: 30), já que ela “permanece estritamente sem significado exceto por

permitir o deslocamento de um quadro de referência para o seguinte” (ibid: 30)194. Assim,

deve-se permitir o máximo possível que as coisas falem e ajam por si mesmas, especialmente

se elas falam em termos “estranhos, barrocos e idiossincráticos” (ibid: 47)195. Devemos

formular “explicações descartáveis”196 de modo que, a cada vez que lidamos com um novo

assunto, campo ou objeto, a explicação deva ser “completamente diferente” (Latour 1988b:

174)197. O que está agindo é revelado pelo próprio processo de agir e, igualmente, o que é o

agir.

Porém, isso nos leva a outra incerteza e simultaneamente a um dos aspectos mais

controversos da ANT: o que é permitido que esses atores sejam. ANT tem sido

freqüentemente descrita, de forma crítica ou não, como uma teoria social que traz “objetos

inanimados” à discussão que se desenrola em torno da idéia de “agência”. A “socialidade” de

objetos tem sido convencionalmente vista como resultado das projeções “simbólicas”

humanas, tornando-os receptáculos mudos de significado humano. Ou, por outro lado, ignora-

se de todo sua agência ao se atribuir a eles o status ontologicamente imutável de “natural”.

Os atores-objetos da ANT198, por outro lado, participam da construção do significado. Eles

193 “Constraining network of relationships” 194 “remains strictly meaningless except for allowing displacement from one frame of reference to the next 195 “The queerest, baroque, most idiosyncratic terms” 196 “Throw-away explanations” 197 “wholly different” 198 Ou “quasi-objetos” como Latour (1993 [1991]: 55) também por vezes costuma se referir a eles, a partir

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são “mediadoras” - entidades que adicionam algo novo e surpreendente para a ação – em

oposição às “intermediárias” – que servem como um tipo de condutores agenciais para outros

atores, nada mudando no mundo e nelas mesmas (2005:39). ANT traça um mundo feito de

“concatenações de mediadores” (ibid: 59)199 e, ao liberar analiticamente esses actantes

(atores como mediadores) para participarem do traçado das associações quer dizer que “é

possível que existam muitas sombras metafísicas entre a causalidade completa e a inexistência

total... ANT simplesmente diz... uma ciência do social não pode nem começar se a questão de

quem e o que participa da ação não é em primeiro lugar inteiramente explorada, ainda que

isso possa significar permitir a entrada de elementos que, por falta de termo melhor, nós

chamaríamos de não-humanos” (ibid: 72)200. Um ator não é “a fonte de uma ação, mas o

alvo motil de um amplo conjunto de entidades se move na direção dele” (ibid: 46)201. Isso

significa que os atores participam das redes de modos que não precisam se reduzir a noções

de causa e efeito unilinear. A tradução/translação não é o veículo relacional para a causalidade

(“este objeto inanimado é meramente um símbolo desta força social”), mas “induz dois

mediadores a coexistirem” (ibid: 108)202, uma coexistência que pode ter conseqüências

imprevisíveis e multi-direcionais. O “princípio de simetria” de Latour é inerente a esta

premissa de que tudo aquilo que age deve ter oportunidade de ter suas ações traçadas e

registradas. Nem sujeito-objeto, cultura-natureza, mente-matéria, verdade-erro, nem

tampouco Ocidente-Resto (Latour 1993 [1991]: 103) são oposições viáveis de onde se pode

começar a análise, embora, em termos teóricos, elas possam ser precipitadas no momento em

que se pára o traçado.

Embora, nesta paisagem “simétrica”, um não humano possa agir como um mediador

da mesma forma que um humano, isso não significa que eles ajam da mesma maneira: “ANT

não é, eu repito, não é, o estabelecimento de uma absurda ‘simetria entre humanos e não-

humanos’” (2005: 76)203. Nem tampouco eles agem o tempo todo. Há sempre

descontinuidade entre os participantes de uma rede, uma incomensurabilidade inescapável à

de Serres

199 “concatenations of mediators” 200 “there might exist many metaphysical shades between full causality and sheer inexistence… ANT

simply says…that no science of the social can even begin if the question of who and what participates in the action is not first of all thoroughly explored, even though it might mean letting elements in which, for lack of a better term, we would call non-human”

201 “the source of an action, but the moving target of a vast array of entities moving towards it” 202 “but induces two mediators into co-existing” 203 “ANT is not, I repeat is not, the establishment of some absurd ‘symmetry between humans and non-

humans’”

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“suave continuidade dos elementos heterogêneos” (ibid: 77)204. Uma mesa não precisa andar,

falar ou cantar para ser um ator numa rede. Mas tem que associar, mediar, traduzir,enlistar,

interessar, permitir; em suma, agir. Um objeto pode até mesmo ‘objetar’. As chamadas críticas

“humanistas” da ANT (ver, por exemplo, Vandenberghe 2002), contestam, é claro, que objetos

não podem falar ou que se deve levar em conta as macro-estruturas nas quais toda ação está

inserida; porém não estão de fato de modo algum dialogando com a ANT. A isso se soma o

fato de que essas críticas derivam de uma perspectiva sobre a ANT que pressupõe que ela é

uma “explicação” social (ver, por exemplo, Vandenberghe (2002: 51): “Da mesma forma que

as ‘explicações chegam a um fim em algum lugar (Wittgenstein,1953: 3), a rede de confusões

emaranhadas entre humanos e não-humanos não pode seguir em frente indefinidamente”205),

o que também é uma posição frágil (ver Latour, 1988b), ou, ao menos, uma posição que não é

tão simples quanto parece, como pretendemos explorar mais a frente.

É claro que há alternativas à ANT que não a criticam diretamente. Jackson (2002) oferece

uma análise fenomenológica e “intersubjetiva” das maneiras em que humanos e objetos ou

tecnologia interagem. “Intersubjetividade” - evidenciada na forma como os seres humanos

falam de computadores como sendo “loucos” ou, por exemplo, a forma como órgãos

transplantados se tornam um meio de se identificar com o doador - possui um componente

antropomórfico implícito, que é a forma pela qual nós, enquanto seres humanos, lidamos com

a “ambigüidade” da existência social (ou “toda vida intersubjetiva” (ibid: 340)) – “o sentido

de que nós somos às vezes atores, no controle de nossas próprias situações, e, outras vezes, à

mercê das circunstâncias, somos efetados ”” pelo “Outro” (ibid: 341)206). Pares binários

como “razão e emoção, corpo e mente, eu e outro, natureza e cultura, sujeito e objeto” são

tomados não como “ontologias em competição” (ibid: 341), mas como “estratégias

discursivas” (ibid: 341) para demarcar o Humano ou o Self do resto, ou para empregar em

termos de agitação emocional. Portanto, tal interface tecnológica é governada pelos mesmos

tipos de processos que “as visões racistas de corpos estrangeiros” e “as visões chauvinistas de

buscadores de asilo” (ibid: 338)207.

204 “the smooth continuity of heterogeneous elements” 205 “In the same way as ‘explanations come to an end somewhere’ (Wittgenstein,1953: 3), the network of

entangled confusions between humans and non humans cannot go on indefinitely” 206 “all intersubjective life” (ibid: 340)) –“the sense that we are at times actors, in control of our own

situations, and at other times at the mercy of circumstances , and acted upon” by the “Other” 207 “racist views of foreign bodies” and “chauvinistic views of asylum seekers”

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Isso está muito distante da ANT, o que, é claro, não é uma crítica. Jackson

propõe que “falar de intersubjetividade é reconhecer que objetos parecem às vezes estar

animados pela consciência e vontade humanas e os sujeitos humanos parecem às vezes serem

como objetos, tratados como se fossem meras coisas”208. A noção de “antropomorfismo”

requer um tipo de relação representacional hierárquica que justamente a ANT está tentando

eliminar como um a priori, através da noção de ‘simetria’209. Considero estranho que

Jackson se refira a uma igualdade entre todos os seres humanos em nome da experiência

enfaticamente universal da “ambigüidade intersubjetiva”, quando essa noção parece ser

derivada da filosofia (ocidental) marxista: “para refrasear a famosa formulação marxista,

podemos dizer que quando não nos sentimos existencialmente ameaçados pelas coisas, as

relações entre as coisas assumem a forma de relações entre as pessoas, mas quando nos

sentimos existencialmente ameaçados por outras pessoas, as relações entre as pessoas

assumem a forma das relações entre as coisas” (ibid: 344)210. Esta visão, é claro, assume em

certa medida que ‘coisa’ e ‘pessoa’ são categorias universais e que a relação entre elas é

sempre de exclusividade mútua. É o que faza ANT parecer fazer mais sentido à luz de minha

etnografia do que esta leitura fenomenológica-existencial da “interface homem-tecnologia”,

admito que tem tanto a ver com as minhas próprias idéias sobre a tarefa da antropologia (não

pressupor categorias universais), como pelo fato de que os pesquisadores com que trabalhei

no campo não parecerem estar sofrendo de nenhuma crise existencial por tentar negociar seu

sentido de “Ser” em relação ao “Outro”.

O que é uma rede? De certo modo, eu me precipito aqui, uma vez que já lidei

parcialmente com essa questão no capítulo anterior. Lá, eu enfatizei de forma entusiasmada a

forma como Latour faz uso da noção de ‘rede’ como uma ‘abordagem’, mais do que a

descrição de algo existente no mundo real “que teria mais ou menos o formato de pontos

208 “to speak of intersubjectivity is to recognize that objects appear sometimes to be animated by human

consciousness and will, and human subjects appear sometimes to be like objects, treated as if they were mere things.”

209 É por isso também porque, embora pareçam convergir em muitos pontos, a teoria da agência de Gell (1998) em Art and Agency não é tão próxima da ANT como pode parecer. Novamente, isso não é em si mesmo uma crítica, mas a superioridade implícita dada à agência humana mascara um compromisso com a dicotomia sujeito-objeto que deve ser questionada.

210 “to rephrase the famous Marxian formulation, we could say that when we do not feel existentially

threatened by things, relations between things assume the form of relations between persons, but when we feel existentially threatened by other people, relations between people assume the form of relations between things”

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interconectados” (Latour 2005:129)211. Uma rede é “um indicador da qualidade de um texto”

(ibid: 129)212, que nos permite ver se um texto é um traçado empírico fiel de uma cadeia de

ações ou traduções/translações nas quais cada ator é um mediador e não um intermediário.

Assim, o cientista social e aqueles que ele/ela estudam estão juntos na feitura do ‘social’.

Todos estamos envolvidos neste processo de “fazer rede” (embora, como veremos, mesmo

este esclarecimento possa ser em si mesmo sujeito a esclarecimentos (Jensen 2008); o que não

é surpreendente, já que “essa palavra [rede] é tão ambígua, que deveríamos tê-la abandonado

há muito tempo” (Latour 2005:129)213). Enquanto tal, uma rede não é um formato

específico, mas uma “ação que captura a ação”. Rede é um conceito e não uma coisa em si,

porque qualquer coisa pode ser descrita como uma rede (Latour 2005: 130). É o meio pelo

qual se pode produzir relatos de fenômenos e eventos que não cairiam convencionalmente sob

a rubrica de “redes”. Mas, ao mesmo tempo, a palavra é mantida porque há alguns aspectos

do uso convencional que são úteis. As associações sendo feitas são fisicamente traçáveis;

associar requer trabalho a ser feito e traduzir deixa espaços vazios em que não há conexão.

Este último ponto pode ser estendido, de modo a demonstrar um aspecto importante da

abordagem ator-rede, que Latour chama de “plasma” (Latour 2005:241). A noção de plasma

capta o sentido de que nós não sabemos o que há entre ou fora do que está associado. Não

estamos em posição de nos pronunciar prematuramente sobre este vasto ‘vazio’, nos termos

de Law (2004:117), “o que está ausente... um conjunto de padrões potenciais que zunem,

ofuscam e dançam, que são muito complicados para condensar, para tornar presente” 214.

Nós não precisamos lamentar que “a ação não seja algo que se possa somar” (Latour

2005:243)215. A ação social na ANT não está inserida numa ‘estrutura social’ pré-existente. O

‘micro’ não está dentro do ‘macro’, não há apelo à transcendência e nenhuma soma pela qual

seja possível equilibrar as contas. Portanto, num sentido importante, evidencia-se que um

“ator-rede” é um caminho através do qual se pode evitar algumas dicotomias fundadoras das

ciências sociais – uma rede não tem um dentro ou um fora estrutural, não possui a priori

micro-macro, nem uma estrutura pré-determinada na qual encaixar atores pré-determinados.

Nesse sentido, as respostas às minhas questões introdutórias – o que é um ator? O que é uma

211 “that would have roughly the shape of interconnected points” 212 “an indicator of the quality of a text” 213 “this word [network] is so ambiguous, we should have abandoned it long ago” 214 “what is absent...a set of potential patterns that buzzes and dazzles and dances, that is too complicated

to condense, to make present” 215 “action doesn’t add up”

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rede? – são apenas discerníveis no ato da descrição. Elas são imanentes ao processo de

análise, o qual em si mesmo está em analogia, ou deveria estar, com os processos em vias de

serem descritos. Enquanto tal, as questões são, num certo sentido, redundantes. Para retornar a

uma observação anterior, as transformações imprevisíveis que ocorrem na noção de ANT são

elas próprias partes inseparáveis da análise.

***

Um mês antes de chegarmos a São Gabriel, eu havia participado de uma das reuniões

marcadas para organizar a expedição. A reunião aconteceu no “Auditório” no Escritório em

Manaus. Já mencionei essa reunião no primeiro capítulo. Não participei da reunião

diretamente, mas observei algumas coisas surpreendentes. Uma dessas coisas foi que, de

repente, surgiu uma hierarquia subjacente à situação que eu não havia percebido antes.

Naquele momento, pensei que, talvez, isso acontecesse em função da forma como o ‘espaço’ é

dividido dentro do prédio do LBA. Normalmente, os distintos grupos tendem a se manter em

suas salas separadas, ‘virados de costas uns para os outros’, como diria Stengers (2000

[1993]:101). O encontro em si, unindo pessoas de salas separadas, parecia criar condições

para que se tornassem visíveis relações que antes não o eram, o que mais tarde parece mudar:

no “campo”, como veremos, não havia marcas claras de posição ou estatus que não

pudessem ser negociadas. Em outras palavras, o ato de reunir-se fora da partição staccato do

espaço do prédio foi o que me permitiu ver outras “partições” além das espaciais. Nesse

sentido, reunir-se também significava separar-se; não houve nenhum outro momento em que

vi mais de uma “sala” junta, além do horário de almoço, e nenhum outro momento em que

estive mais ciente do que estou chamado de relações “hierárquicas”. Por “hierarquia” entendo,

de modo bem convencional, uma diferença constituída por uma interação governada por uma

relação inferior-superior. Não preciso complexificar esse conceito – uma vez que ele é tirado

explicitamente do LBA, tal como apresentado no seu website (descrito no primeiro capítulo) –

porque só desejo enfatizar que havia uma diferença. Isso intensificou a minha confusão em

relação à estrutura do LBA, que vinha parecendo cada vez mais fluido à medida que eu

navegava pelos websites e artigos formais. Esta reunião pareceu ser uma instanciação da

imagem que o LBA apresenta de si mesmo no website, nas quais relações de superioridade e

inferioridade eram tornadas visíveis.

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171

Roberto, um fisiologista de plantas, veio do seu escritório no INPA para o encontro

com dois jovens estudantes de mestrado. No início, assuntos “logísticos” foram discutidos:

onde os membros do grupo iriam dormir, na Escola Agrotécnica ou nas barracas do exército

em São Gabriel; o tempo e os preços dos vôos; a documentação necessária de cada membro

do grupo para permitir o acesso ao Parque Nacional (estavam em questão preocupações

militares com o policiamento da fronteira, áreas indígenas demarcadas e conservação

ecológica); os veículos necessários para se chegar à estação de pesquisa, a importância de se

ter um motorista e quanto pagá-lo, as dificuldades de se manter um carro em bom estado no

clima da Amazônia, o preço da gasolina; se as baterias haviam chegado de barco ou não (elas

foram mandadas mais tarde). Ficou evidente a quantidade de trabalho sendo feita e ainda a ser

feita para que fosse possívellevar o grupo a São Gabriel.

Cada grupo, então, apresentou o trabalho que já havia terminado na estação de

pesquisa (já que também houve uma expedição no ano anterior) e o que eles planejavam

resolver ou realizar nesta viagem iminente. As apresentações eram direcionadas aos outros

membros do grupo e assumiram o que eu entendi como um baixo nível de compreensão,

explicando-se premissas teóricas básicas e sem se aprofundar muito em nada. Elas serviam,

claramente, apenas para se dar uma idéia do trabalho que cada grupo estaria fazendo e não

pareciam estar de modo algum integradas. Roberto interrompeu as apresentações muitas vezes

com perguntas e comentários e, então, saiu abruptamente. O power point de Marta

documentava tudo o que havia de errado com o equipamento na torre – “não tem muita coisa,

só problemas”, ela disse, e Jair a corrigiu, sorrindo: “desafios”. Os dois jovens estudantes de

mestrado em Fisiologistas de Plantas apresentaram um power point demonstrando como eles

iriam tentar chegar à “taxa de fotossíntese”, usando um tipo específico de IRGA. Raquel

mostrou algumas imagens de satélite de onde suas “parcelas” estavam em relação à torre e

falou brevemente sobre a topologia da paisagem, mencionando que na última viagem no ano

anterior, quando ela tentou medir suas “parcelas”, a falta de um carro a impediu de se afastar

mais do lugar onde ela finalmente teve de marcá-las. Apesar da “ciência” e da “logística”

terem sido consideradas separadamente na reunião, em momentos como este, ambas estavam

claramente em relação e isso era reconhecido. Como disse Roberto, “as pessoas não entendem

essa coisa de pesquisa na Amazônia…precisa de carro, se chover…”.

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172

Embora as apresentações tenham sido separadas, na discussão que se seguiu ficou

evidente que Roberto e Jair estavam se dirigindo a todo o grupo a partir de posições de

superioridade. Isto é, eles pediam atenção e falavam com autoridade. Roberto era

especialmente proeminente nesse sentido. Era chamado de “chefe” e mais de uma vez

interrompeu alguém para esclarecer algum ponto. As observações que ele fez indicavam em

geral uma posição exclusiva de conhecimento e eram tanto sobre a “ciência” quanto sobre a

“logística”. A observação citada - “as pessoas não entendem essa coisa de pesquisa na

Amazônia…precisa de carro, se chover…” - não apenas diz algo sobre a relação de

dependência entre a “ciência” sendo feita e a logística funcionando, mas também implica, é

claro, que ao menos “uma pessoa” entende o que é fazer pesquisa na Amazônia. Quando

Roberto saiu, todos visivelmente relaxaram. Manzi e Flavio Luizão, os membros claramente

mais seniors(experientes) da equipe, não apareceram na reunião.

Menciono esse encontro por diversas razões. A primeira é para ilustrar o quão

rapidamente as relações podem aparecer e desaparecer ou, como parecem ser substituídas. A

convergência do grupo e o evento do encontro permitiram que relações previamente invisíveis

para mim se tornassem aparentes. Embora possa haver uma hierarquia formal inscrita na

autoria dos papers publicados ou no modo como o LBA se apresenta para aqueles que não

trabalham lá, essa hierarquia foi materializada somente em alguns momentos bem específicos

durante o tempo em que passei com os pesquisadores. A forma que o LBA assume parecia

mudar constantemente, dependendo de onde eu estava e com quem eu estava falando. Já

mencionei isso no primeiro capítulo, sugerindo que essa mudança de forma confunde a

aplicação não-problemática das noções usuais de partes e todos e pontos de vista. Ao invés

disso, sugiro, a partir da aplicação de Wagner e Strathern da noção matemática de fractal, que

uma metáfora de movimento, derivada da forma como os dados do LBA circulam e se

transformam, é a maneira mais apropriada para se compreender e descrever o LBA.

Gostaria de me aprofundar nisso aqui, seguindo uma direção ligeiramente

diferente. Quero explorar em que medida esta observação parece ser parte de um fenômeno

mais amplo que observei no meu trabalho com o LBA, em que o espaço ocupado, as

condições de vida, o ‘meio ambiente’ mudam, assim como as relações que estruturam o

conhecimento sendo produzido; e essa mudança no ‘espaço’ não precisa ser tão radical quanto

nós podemos imaginar. De fato, o que constitui uma mudança no espaço pode em si mesmo

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ser algo emergente da configuração particular do evento. Isso quer dizer que o que nós

convencionalmente chamamos “espaço” e “prática” pode ter uma relação que é mutuamente

constitutiva e mutualmente restritiva. O que pode ser considerado uma refração temporal

desta idéia enquanto uma “agência temporariamente emergente”216 é algo que Pickering

(1999 [1993]) discute e a que eu vou voltar um pouco mais à frente.

O papel que a mudança na locação ou no espaço pode desempenhar é também

sugerido por outro aspecto da reunião. Dado o papel dominante desempenhado por Roberto

na reunião, considerei estranho ele não viajar para o campo. Ao invés disso, ele pediu a Carlos

Eduardo e Glaudecy, ambos formalmente afiliados ao INPA e nenhum dos dois presentes na

reunião, para coletar os dados necessários para o seu projeto. Como me disseram numa

conversa, há pesquisadores que não são “o tipo de pesquisador que faz trabalho de campo”.

Ouvi esse tipo de observação diversas vezes de diferentes pessoas, sempre se referindo a

membros mais seniors(experientes) do LBA. Sempre foram ditas por alguém no campo, isto

é, na floresta (isto é, por alguém que “faz o trabalho de campo”). Deixando de lado os

julgamentos pessoais ligados a tais observações, é intrigante que houvesse essa clara

diferença, demarcada por aqueles pesquisadores com que falei, entre aqueles que ficam no

escritório e aqueles que vão para o campo. Falaram-me que Manzi nunca havia visto a torre

de São Gabriel. Esta viagem à torre foi planejada nas confortáveis instalações de uma sala

com ar-condicionado em Manaus e se baseava na expertise e no conhecimento de

pesquisadores que nunca foram nem nunca iriam ao campo de pesquisa em questão. Nesse

sentido, a ação estava certamente deslocada.

Dentro da sala da reunião vários elementos díspares encontravam-se unidos: carros,

aviões, documentos, fotossíntese, equipamento técnico, imagens de satélite. Planos foram

feitos e entidades foram colocadas em contato com outras entidades. Essa sala se tornou um

momento de aglutinação, o que Callon chamaria de um momento em que a problematização

era forjada, descrevendo “um sistema de alianças ou associações entre entidades, por meio do

qual se definem a identidade e o que eles ‘querem’” (Callon 1999 [1986]: 70)217. Um

momento em que pontos de passagem obrigatórios eram instanciados, uma vez que as

entidades se tornaram indispensáveis para os desejos daqueles envolvidos. Porém, como

216 “temporally emergent agency” 217 “a system of alliances, or associations, between entities, thereby defining the identity and what they

“want””

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ficaria claro e como me disseram mais de uma vez, os pesquisadores, “tudo muda em campo”

e “aqui no campo as relações são diferentes”.

Uma das implicações disso é que a topologia específica de tal rede depende de como

as relações são atuadas, estabelecidas ou possibilitadas entre os próprios elementos. A reunião

no escritório de São Gabriel juntava entidades que permitiam que o projeto fosse colocado em

ação, mas ninguém na reunião falou do “sistema econômico do Brasil” ou “o sistema político

do Estado-Nação”. As entidades apareceram de um modo mais simples: as imagens de satélite

confirmavam a viabilidade da topologia da área; burocratas em Brasília permitiam que o

projeto seguisse adiante; a tecnologia de power point permitia a efetuação do fluxo de

informações entre pesquisadores; a torre, por não se comportar da forma como deveria,

prontificava os pesquisadores a ir examiná-la em primeiro lugar. Não apenas os

pesquisadores, mas essas e muitas outras entidades estavam todas envolvidas na reunião.

Eram todos atores e o que os tornava atores não era um “ether” (Latour 1993 [1991])

subjacente de uma força mais ampla – social, política ou econômica (embora certamente esses

fatores estivessem possivelmente agindo também; por não tê-los encontrado diretamente, não

posso dar testemunho por eles) – mas o que os permitia ser atores eram outros atores. Isso, por

sua vez, implica que não é que um intermediário se torne um mediador para, então, afetar

aqueles em seu entorno, mas, sim, que ele se torna um mediador por causa dos atores em seu

entorno. Isso é permitido por sua posição e relação na rede. Como Waldby escreve sobre a

“semiótica material” de Latour: “distinções não possuem uma estabilidade positiva, mas,

chega-se a eles através da relatividade e qualificação introduzidas pelo jogo/pela atuação de

todos os outros termos no sistema em que operam. Sistemas de diferença são, portanto,

sempre relacionais. Entidades e termos aparentemente estáveis podem deslizar e passar umas

por cima das outras, dispersarem-se e comporem-se de acordo com a dinâmica das redes de

significado em que se localizam”(2000: 469)218.

A denominação dos atores enquanto tais também implica que, talvez, faça

pouco sentido prender-se a definições predeterminadas do que seja “científico” e o que seja

“não-científico”. Como o próprio Roberto aponta, sem o carro, nenhuma “ciência” poderia ser 218 “distinctions do not have a positive stability, but are arrived at through the relativity and qualification

introduced by the play of all the other terms in the system in which they operate. Systems of difference are hence always relational. Apparently stable entities and terms can be shown to slip and slide over each other, to disperse and compose according to the dynamics of the meaning networks in which they are located.”

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feita. As regras de segurança do aeroporto agem de modo a impedir que a “catraca” embarque

no avião, da mesma forma que faz com o alicate de unha. Na Amazônia, a chuva afeta o que

você pode e não pode conseguir, independentemente do que é planejado. Todas essas

entidades agem dentro da rede e agem para construir a rede. De dentro da ciência, o que é

ciência e o que não é torna-se estranhamente difícil de discernir. Porém, essa observação é

complicada pelo fato de que, se indagados, os pesquisadores diriam que estão fazendo ciência

e que há, sim, uma diferença. Como entender essa dissonância é algo que vou tentar descobrir

ao longo deste capítulo.

Que “tudo muda no campo” é uma formulação explícita de uma das sensações que eu

tentei trazer à tona através da minha descrição da nossa caminhada até o local do

acampamento. O contraste entre os laboratórios e escritórios no prédio do LBA (que descrevo

no primeiro capítulo) e os locais de pesquisa é impressionante. O local do acampamento no

Parque Nacional próximo a São Gabriel que era nossa base durante a semana localizava-se a

80m da torre e era feito de duas estruturas temporárias feitas de estacas e coberturas de

plástico. Uma delas era a área de cozinhar e comer. A outra estrutura oposta à área da cozinha

era a área de dormir, onde nossas redes eram penduradas e nossa bagagem e equipamentos

armazenados. Ambas as áreas alagavam de modo alarmante quando chovia, incitando

esforços frenéticos para cavar canais de drenagem por parte daqueles que ficavam próximos

às beiras das tendas. Essas estruturas temporárias haviam sido erguidas, antes de nossa

chegada, pelo Sr. Lima, o botânico do INPA que viera fazer um inventário das espécies de

árvores na área e que já havia partido com Sandra para voltar para Manaus quando cheguei.

Danilo, Michael, Tony, o capitão e o soldado do exército e Jair amarraram suas redes entre as

árvores atrás da área de cozinha, cobertos por lonas impermeáveis que ofereciam pouca

proteção quando chovia torrencialmente. Chove, pelo menos, duas vezes por dia diariamente.

Algumas vezes, são chuvas muito fortes, normalmente, no meio da noite (quando o abrigo é

invadido por enormes aranhas procurando refúgio), às vezes, o dia inteiro, às vezes, só um

pouco – ou, pelo menos, o que nos atingia no solo parecia pouco. Se você é pego por uma

tempestade quando está no alto da torre, você se dá conta do quão pouco da água que toca o

alto das árvores consegue chegar até o chão. No chão, você ouve a chuva atingir as folhas 30

segundos antes de atingir você.

A área da cozinha era de aproximadamente 8x4 metros e Dona Virgínia, nossa

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cozinheira, também de São Gabriel, tinha um pequeno fogão a gás e uma mesa improvisada

onde ela cozinhava com maestria arroz, feijão, massa e (às vezes) carne seca que nós

tínhamos toda noite no jantar. Acordávamos todos os dias entre 6h30 e 7h da manhã, quando a

luz finalmente atingia o solo da floresta. Vestíamo-nos rapidamente e arrastávamo-nos para a

área da cozinha, onde Dona Virgínia já estava de pé, preparando café e canjica à luz de velas e

coletando água do igarapé. Comíamos biscoitos e canjica, bebíamos um café extremamente

doce e, então, o grupo dividia-se para começar o dia de trabalho. Raquel seguia para suas

“parcelas”, as áreas que ela havia marcado na floresta, que se espalham a até dois quilômetros

do acampamento, levando Tony, Michael e o Capitão com ela; Júlio começava a se mover

com suas rodas de cabos que seguram a torre ao chão; Jair, Marta, Flora e Mékio, junto com

Alberto e Danilo, ficavam com a torre; e Carlos E e Glaudecy começavam a preparar seus

equipamentos perto da torre e iniciavam os procedimentos abrindo um enorme guarda-sol de

praia listrado para proteger o IRGA caso começasse a chover. Tentei, dentro do possível,

passar o mesmo tempo com cada grupo, embora tenha sido difícil e de forma não seqüencial –

eu alternava entre eles, retomando discussões prévias onde achava que precisava, mudando de

grupo quando eles voltavam ao acampamento ou quando anoitecia e eles estavam se

preparando para o próximo dia. O gerador começava a funcionar às seis da tarde, embora

pudesse ser ligado durante o dia para recarregar laptops. O grupo reunia-se à noite, por volta

das sete horas, para comer, trocar estórias e conversar, quase nunca sobre trabalho, às vezes,

sobre os procedimentos do dia seguinte, na maior parte das vezes, só conversas informais.

Latour e Woolgar descrevem o que chamam de conversas “microprocessuais” como sendo

muito importantes na seleção e subseqüente estabilização das afirmações e fatos científicos

(1986 [1979]: 151-186). Por sua banalidade, tais conversas mostram que “o processo

supostamente misterioso empregado pelos cientistas não é surpreendentemente diferente

daquelas técnicas empregadas para se conseguir o que se quer nos encontros da vida diária”

(Latour e Woolgar 1986 [1979]:166)219. Essas conversas específicas que tínhamos depois do

cair da noite no acampamento raramente eram sobre trabalho e, é verdade, não eram

surpreendentes de modo algum, embora eu tire conclusões ligeiramente diferentes de tal

observação. É possível que a qualidade das conversas diárias sobressaiam-se mais contra o

fundo estéril e controlado do laboratório que sintetiza proteínas. Contra o fundo de floresta

aqui, as conversas no final do dia centram-se muito em torno do cansaço que se sente, o

desconforto dos carrapatos ou dos mosquitos mordiscando você, as expectativas sobre o dia

219 “the mysterious thought process employed by scientists is not strikingly different from those techniques

employed to muddle through daily life encounters”

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seguinte e a perspectiva de se esticar na sua rede. Piadas são contadas. Isso não quer dizer que

essas conversas informais não sejam também parte da “ciência em ação”; talvez seja que,

dependendo do plano de fundo, diferentes coisas venham para o primeiro plano. Essas

conversas eram certamente diferentes daquelas que ouvi nos escritórios em Manaus, por

exemplo, onde não ouvi ninguém reclamar que sentia falta de comer carne ou que havia sido

atacado por abelhas. O gerador é desligado às 9h30 da noite.

Comparado com os laboratórios ou escritórios pristinos dos modeladores, o local de

campo em São Gabriel parece completamente diferente. Chegar lá é um negócio arriscado e aí

permanecer é fisicamente exigente. O modo como o campo “interfere” quando os

micrometeorologistas de São Gabriel “fazem ciência” parece ser diferente do modo em que

interfere, imprevisivelmente, quando os modeladores “fazem ciência”. Nesse último caso,

como vimos, o mundo é posto no modelo em forma de dado e, às vezes, empina sua cabeça

sob a forma de “resultados caóticos”, resultados sobre os quais o modelador não tem controle.

Para os pesquisadores que descrevo neste capítulo, o mundo toma diferentes formas, como

veremos. Ao mesmo tempo, todos os pesquisadores, do modelador equipado com a mais alta

tecnologia computacional no laboratório com ar-condicionado, ao biólogo no meio da selva

com nada mais do que papel, lápis e uma fita métrica, todos estão “fazendo ciência” e todos se

definem como sendo parte do LBA.

***

Na minha explicação sobre a “teoria ator-rede”, o papel desses processos de

tradução/translação (translation) é, por um lado, permitir que a “problematização” (por

exemplo, “como fazer o equipamento da torre funcionar novamente?”) seja sustentada, de

forma bem sucedida, por aqueles que têm ‘interesse’. Assim, todas as entidades envolvidas no

começo, no escritório e na reunião, precisam adequar-se às identidades atribuídas a elas,

naquele momento, para o plano funcionar, para o projeto ser um sucesso, na medida em que o

sucesso do projeto também é definido naquele momento. Como veremos, ambos parecem

mudar constantemente.

Falávamos sobre os problemas com os equipamentos da torre enquanto almoçávamos

em São Gabriel, à beira do rio, logo antes de sair da cidade em direção à torre. A viagem à

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torre, em São Gabriel, foi motivada, em parte, pelo fato de que a torre não estava se

comportando bem, isto é, os dados que estava produzindo eram “misteriosos”, não se

adequavam aos padrões fornecidos pela literatura micrometeorológica, eram “impossíveis”.

“As coisas têm que bater”, diz Jair, referindo-se às discrepâncias entre os vários tipos de

dados que o equipamento da torre acumula, diariamente,em grande quantidade - o

anemômetro sônico, por exemplo, registrava a direção dos ventos em três dimensões a cada

dez segundos. Os dados de fluxo de CO2, os dados da umidade do ar, os dados da temperatura

do ar, os dados da pressão, os dados da velocidade dos ventos, os dados do solo – eles todos

têm que se conformar não apenas a certas tendências micrometeorológicas conhecidas para a

região, como também devem adequar-se uns aos outros. Jair suspeita que a razão pela qual os

dados não estão batendo é uma das seguintes: o “equipamento está descalibrado” (e, portanto,

está dando sistematicamente a informação errada), “ou tem espécies não representativas...” (a

área em que a torre está não é ‘representativa’, então, os dados estão sofrendo um tipo de ardil

estatístico); “ou há um erro na medida” (causado pelo equipamento que não funciona); “ou

novas perguntas” (como ele me disse enfaticamente mais tarde na viagem: você sempre tem

que estar preparado para estar errado). “Você sempre tem a possibilidade de novas perguntas;

tem que pensar do ponto de vista macro”, explica Jair. “Você junta os dados e vê o conjunto.

Se você tem certeza…. pode ser verdade, aí você vê se isso se repete”. Novamente, vemos um

número possível de entidades sendo “interessadas” pelas observações que Jair fez para mim.

Elas serão ou não mantidas quando ele vier testá-las na torre, no campo. Como a explicação

em power point da Marta, essas são formas purificadas dos problemas. Isso fica claro quando

chegamos à torre.

***

Os Micrometereologistas e o Real Real Real

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“99% do tempo é consertando”, diz Jair. “Nada acontece como planejado, foram três

meses planejando”, ele suspira, “só para consertar o programa de computador”. Jair, Marta,

Flora e eu estamos sentados na torre, 20m acima do solo, comprimidos entre um laptop e a

caixa datalogger do AWS (Automatic Weather System - Sistema de Tempo Automático),

tentando ver se o programa no computador é compatível com o programa no datalogger. Cada

nível da torre oferece espaço suficiente para três pessoas sentarem mais ou menos

comfortavelmente e as outras três encontram um lugar na escada de degraus que conecta cada

nível, ou, no caso de Mékio, pendurado precariamente no nível imediatamente superior. Era o

final de uma longa tarde que passamos tentando entender porque o sensor da umidade do solo

estava se comportando misteriosamente. Havia vários problemas com o equipamento da torre

que a equipe de micrometeorologia tinha que tentar resolver durante a semana que passamos

lá. O datalogger CR23-X que armazena os dados de solo não permitia leituras desde 4 de abril

de 2007 (quase quatro meses); a bateria que faz funcionar o equipamento da torre não ficava

carregada durante o tempo que deveria e o Licor era descalibrado a cada vez que a bateria se

descarregava inesperadamente; o CIRAS mostrava “pouca variação” (comparada com a

literatura e com leituras prévias); o barômetro fornecialeituras significativamente baixas,

comparadas com o que é esperado, assim como os sensores de umidade do solo e temperatura

do ar. O sensor de radiação tinha que ser trocado. Um dos copos do anenômetro estava

“travando”, mas não se podia fazer nada, já que não havia outro disponível para substituí-lo.

Tudo isso havia sido indicado por Marta antes de chegarmos, representado graficamente na

apresentação de power point durante a reunião que mencionei e, em certa medida,

identificado. Ao invés de serem o ponto final desta rede particular, essas formas “purificadas”,

separadas do seu referente, estavam no começo da nossa expedição. Voltamos para a torre

exatamente para descobrir esse referente.

Agora que estamos lá, a bagunça (messiness) é muito aparente. Informações estão

sendo adicionadas e subtraídas dos gráficos e diagramas que Marta nos mostrou em Manaus.

Comparamos a seqüência intrincada de cabos e quais conectam o datalogger aos sensores com

as seqüências que o computador nos indica. Nós sabíamos, em Manaus, que os dados não

estavam “certos” e uma das razões poderia ser o conjunto de conexões que estamos olhando

agora. O resultado dessa comparação irá, idealmente, subtrair uma possível causa de erro do

quadro que tínhamos em Manaus. Mas para que isso seja possível, deve ser adicionado um

certo número de elementos diferentes. A equipe trouxe consigo o computador, com sua carga

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de informações; o conhecimento dos dataloggers tem que ser discutido, assim como a

possibilidade dos programas de computador estarem desatualizados. Jair me explica que

“cada um tem uma opinião, mas tem que saber qual é a opinião correta”. Observo que,

coerentemente, parece que a opinião dele é estabelecida como a correta. Ele cita outra

pesquisa, seu tom de voz, seu trabalho pessoal prévio - todos esses elementos sobre sua

identidade são trazidos à baila no processo de averiguar o que está levando o sensor a

produzir os números “errados”. Os microprocessos de Latour e Woolgar brotam à minha

mente. Embora não tenham aparecido de forma particularmente evidente como “atores”

durante as conversas das noites, esses elementos tornaram-se mais óbvios como participantes

ativos no trabalho dos micrometeorologistas na torre, onde Jair assume o controle da situação

ao negociar sua capacidade para fazê-lo.

Embora tenhamos passado a tarde na torre, a manhã foi dedicada a tentar criar um

espaço estéril para abrir o Licor, olhar por dentro e limpá-lo. Jair terminou por acortinar

algumas redes de mosquito em um canto do abrigo de dormir: “estamos montando um

laboratório”, ele me diz. Eles abrem o Licor, mas descobrem que têm as ferramentas erradas

para abrir os compartimentos internos e que está “faltando filtros”. Eles discutem se poderiam

usar um substituto para o tubo de plástico caso o removessem, mas decidem que não, “não

pode substituir; pode jogar carbono”. Os quatro estão agachados dentro do laboratório de

plástico improvisado, espalmando qualquer inseto que consegue entrar. Jair ensina Flora e

Mékio sobre o funcionamento interno do Licor, enquanto o desmonta. Decide-se que Marta e

Flora terão de levá-lo de volta ao laboratório em São Gabriel e ver se podem limpar lá,

“porque aqui tem muito ruído”, diz Flora. Há muita interferência para o trabalho delicado que

precisa ser feito para limpar e checar este equipamento temperamental. Parece muito fora do

lugar aqui, em meio à lama e aos insetos. Mesmo o repelente de mosquito que usamos, feito

de petróleo, poderia corroer o tubo sem que nos déssemos conta. Conhecimento especializado

é obviamente necessário aqui e Jair está partilhando-o com Flora e Mékio da mesma forma

como ele aprendeu, como ele me disse, “na prática, durante minha dissertação”. Marta

aprendeu sobre Licors nos quatro meses em que ela passou trabalhando com Tota em Manaus,

quando ela chegou, no ano anterior, antes de assumir a responsabilidade pela torre aqui em

São Gabriel. Carlos E contou-me a mesma coisa – ele aprendeu como usar o IRGA, que é

usado para medir as variáveis fotossintéticas, durante sua dissertação e a razão de ele estar na

viagem agora é que há um número limitado de pessoas que sabem como utilizá-lo. O

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conhecimento que é posto em ação sobre os problemas micrometeorológicos aqui são também

específicos e especializados e, no entanto, Marta também me diz que cada um precisa saber

algo, mas não tudo. Colaboração e negociação são visíveis, há tentativas conjuntas e consertos

feitos de forma coletiva, não apenas entre pessoas.

Quando se decide que nada mais pode ser feito com o Licor por enquanto, Marta

revela sua preocupação em relação ao sensor de temperatura de ar, que está mostrando leituras

inesperadas. Marta desenha rapidamente um gráfico para mostrar como ele parece estar errado

e Jair diz “pode ser o datalogger também”. Flora menciona que Manzi havia falado sobre o

mesmo padrão gráfico e Marta a corrige, dizendo que ele estava se referindo à umidade. A

pequena discussão prossegue. Decide-se que se irá lidar com o sensor de temperatura somente

após o sensor de umidade do solo. Há uma constante negociação mútua acontecendo, uma

série de sugestões, julgamentos e opiniões sendo partilhadas no grupo, para se averiguar quem

tem a “opinião” correta – e a palavra final, neste caso, provém do próprio equipamento. Deste

modo, os próprios instrumentos também falam com os pesquisadores. Flora e Mékio estão

aprendendo com Jair e Marta. Flora está anotando tudo em um notebook e pede para eu tirar

fotos de modo que ela e Mékio possam estudá-las quando Jair e Marta não estiverem lá.

Porém, Jair e Marta também estão aprendendo. Há coisas desconhecidas para eles aqui e eles

estão atentos às mensagens do equipamento, da mesma forma que Flora está atenta às suas

notas. Flora me diz “eu não posso deixar de entender nada”, assim como Jair e Marta. O

equipamento possui uma posição definitivamente ativa e seu comportamento é

“surpreendente” e “misterioso”. Os modos como os dados e os equipamentos que os

produzem são descritos para mim são sempre nesses termos: surpreendente, inesperado,

anômalo, excepcional, misterioso. O sensor de umidade do solo tem que ser trocadoporque os

dados que ele está fornecendo “não corresponde ao esperado”: os dados enviados para

Manaus nos últimos poucos meses têm sido surpreendentemente baixos. Não estão dizendo o

que se espera que digam. Como Marta disse: “é horrível, porque você não confia nos dados”.

Um dos aspectos cruciais de se reformular (ou, como Latour diria, “se desviar”-

bypassing) a dicotomia sujeito-objeto é que “humanos e não humanos... podem trocar

propriedades” (Latour 2004a:61)220, enquanto sujeito e objeto não podem. Latour usa esta

220 “humans and nonhumans…can exchange properties”

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noção para mostrar como todos os seres em qualquer rede podem ter “vontade, liberdade,

discurso e existência real” (ibid: 62)221. No capítulo anterior, vimos como isso esclarece o

modo como a realidade é uma conseqüência dos processos em rede, não uma conclusão pre-

definida. No exemplo que tomei de Latour, tanto Pasteur como o fermento trabalham duro

para fazer o fermento “existir” – Pasteur organizando os ensaios experimentais para

“interessar” seus colegas cientistas e o fermento ao atuar para eles – “a extensão das

associações e a estabilidade das conexões por várias substituições e mudanças de pontos de

vista constituem em grande medida aquilo que entendemos como existência e realidade”

(Latour 1999a: 164)222.

Esse intercâmbio de propriedades também abre uma passagem analítica aqui para se

examinar como os chamados “objetos mudos” (dentro da matriz tradicional sujeito-objeto)

podem ser “misteriosos” e “surpreendentes” e como enquanto micrometeorologista você pode

confiar neles ou não. Você confia ou não naquilo que eles dizem para você. Isto é, esses não-

humanos possuem a capacidade de falar, de entrar na discussão não apenas enquanto tema da

discussão, mas enquanto participantes. Mas isso não quer dizer que os objetos falem de um

modo convencional – não por serem receptáculos mudos, mas porque “nenhum ser, nem

mesmo os humanos, falam por si mesmos, mas sempre através de alguma coisa ou de

alguém” (Latour 2004a:68)223. Desse modo, da mesma forma que o agir é distribuído e a

ação é deslocada, falar também o é; falar depende de muitas outras entidades, é incerto, é

emergente. Isso não significa que alguma entidade não está agindo ou não está falando, mas

que ação e discurso são atividades questionáveis e incertas e, por isso, demandam uma

investigação completa. No que diz respeito à prática científica, toda “disciplina científica...

pode se definir como um mecanismo complexo para atribuir aos mundos a capacidade de

escrever ou falar, um modo geral de alfabetizar entidades mudas” (ibid: 66)224. Ao invés de

“matters of fact”, controvérsias estabelecidas, nós temos “matters of concern”, que provocam

discurso e discussão, causam problemas e levantam objeções.

Então, como o sensor de umidade “fala” ou como se faz ele falar para os 221 “will, freedom, speech, and real existence” 222 “the length of associations, and the stability of the connections through various substitutions and shifts

in points of view make for a great deal of what we mean by existence and reality” 223 “no being, not even humans, speak on their own, but always through something or someone else” 224 “scientific discipline…can define itself as a complex mechanism for giving worlds the capacity to write

or speak, as a general way of making mute entities literate.”

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pesquisadores? O sensor em si mesmo é uma “sonda perfil” – uma sonda preta de um metro

com pequenos sensores de umidade a 5, 10, 20, 40, 60 e 100 centímetros da superfície.

Pergunto o que faz os sensores funcionarem e Jair me diz que “o que mede é a

microvoltagem”. Quanto maior a porcentagem de água no solo, mais condutor ele será para a

corrente, passando pelos sensores, isto é, mais ou menos corrente passará através dele. Isso

fornece a medida da percentagem de água que está no solo, a partir da qual Jair explica que

ocorre a “conversão” daquilo “que ele tá medindo para aquilo que o pesquisador quer saber”.

Ou seja, a corrente elétrica tem que ser feita falar algo específico. A corrente elétrica é lida

pelo sensor de solo, que a transmite como um número para o datalogger, onde ela permanece

como um número esperando ser downloaded, enviado para Manaus, uploaded em um

programa de excel e transformado através de uma série de equações em um número que fala,

não sobre eletricidade, mas sobre percentagem de água, que será, então, levado e feito falar

sobre ciclo de carbono, conteúdo aquoso ou absorção de nutriente.

Esse processo de conversão de milivolts à umidade e, então, à dinâmica do carbono é um

exemplo dos tipos de “movimentos” de conversão ou transformações que Latour discute na

Esperança de Pandora, através dos quais a “terra local” é transformada em conhecimento

global, através de “uma série regulada de transformações, transmutações e

traduções/translações” (1999a :58), parte da “tarefa prática de abstração e do que significa

carregar uma afirmação com um estado das coisas” (ibid:58)225. É esse processo de inscrição

que o próprio Latour nos incita a tentar captar em palavras – “em science studies, somos

ambidestros: focamos a atenção do leitor neste híbrido, neste momento de substituição, no

momento específico em que o futuro signo é abstraído do solo” (ibid: 59)226. Isto é, isso é

possível na medida em que o equipamento esteja funcionando. Quando não está, como é o

caso dos equipamentos na torre em São Gabriel, nós somos lembrados de modo inevitável que

o equipamento possui um papel ativo e vocal neste processo de “abstração”, e o trabalho do

micrometeorologista concentra-se, exatamente, nos momentos em que o equipamento não diz

o que é suposto dizer. Não é tanto que o equipamento tenha parado de falar; antes, é aquilo

que ele está falando que é “misterioso”.

225 “a regulated series of transformations, transmutations and translations” part of the “practical task of

abstraction, and what it means to load a state of affairs into a statement” 226 “in science studies, we are ambidextrous: we focus the reader’s attention on this hybrid, on this

moment of substitution, the very moment when the future sign is abstracted from the soil”

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Trazemos um novo sensor do INPE e levaremos o velho para ser calibrado no

escritório do LBA. Vou explorar mais detalhadamente o que está envolvido na calibração um

pouco mais à frente. Porém, antes de voltar para Manaus, os micrometeorologistas querem

estar seguros em relação à causa do corte na comunicação e tentam, então, resolver o mistério.

Pode nem mesmo ser o sensor, embora esteja na época de ser calibrado – cada sensor deve ser

calibrado a cada dois anos, diz Jair. O sensor é substituído, mas não antes de efetuar o

download das últimas leituras que ele enviou ao datalogger “para comparar o antes e o

depois”. Esperamos. As leituras ainda estão muito baixas. A equipe está atordoada. Jair

começa a mexer na conexão de cabos que conecta a torre ao datalogger no solo. Marta senta

em frente ao datalogger do solo, esperando para ver se as leituras fazem algum sentido. Jair

descobre que a caixa de cabos está furada e que entrou água dentro do cabo – “tá tudo

oxidado” – ele terá que cortar fora a parte enferrujada, soldar os cabos juntos de novo e depois

selá-los com fita isolante. Em grandes distâncias, os cabos usados para conectar os sensores

aos dataloggers e aos computadores inevitavelmente perdem informações. De volta a Manaus,

a equipe do LBA-DIS trabalha em uma conexão de internet que permitirá que os dados sejam

lidos em “tempo real” – uma conexão sem fio para o datalogger, dispensando a necessidade

de cabos e downloads semanais, permitindo que seja percebido, imediatamente, se há algum

erro ou anomalia nos dados. Como Marta havia comentado, em relação a São Gabriel, ela

recebe dados que estão pelo menos uma semana atrasados e esse intervalo de tempo significa

que os erros se “acumulam”. Quando o conjunto de dados semanais chega a ela, o erro já está

infiltrado. Mas esta ligação de internet é ainda um trabalho em progresso, algo para o futuro.

O cabo que conecta o datalogger ao sensor não é longo o suficiente para sofrer do que

sabemos ser perda de informação. Sob a torre de São Gabriel, tentamos reconectar os cabos

usando uma solda.“Esta solda é ruim”, diz Jair. Ele decide esperar até que Mékio traga uma

solda melhor de São Gabriel. De repente, começa a chover. e Corremos para um abrigo.

Carlos E e Glaudecy passam por nós com expressões lastimáveis, sob o abrigo de seu grande

guarda-sol de praia. “São Gabriel tem que ser bom, tem que melhorar” diz Flora com um

suspiro. Jair ri e a corrige “funcionando, isso é importante”, e Flora, que visita a torre toda

semana, responde, também rindo: “não, o que é importante é São Gabriel melhorar”.

“Tem que testar toda hipótese. Não faz sentido não funcionar”, declara Jair. O novo

sensor de umidade do solo não está funcionando ainda, mesmo com suas conexões

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parcialmente recém-soldadas. Marta sabe que não está funcionando porque ela tem uma folha

com uma tabela “da literatura” e as leituras estão significativamente abaixo do que a tabela

diz que deve ser. “Pode não ter sido o sensor”, diz Marta, checando pela segunda vez se os

cabos do datalogger estão conectados corretamente. Todos parecem estar na ordem correta. O

programa do datalogger para o solo (e não aquele para o AWS) é, agora, apontado comoo

próximo principal suspeito. Esse programa é o que conecta as informações fornecidas pelos

sensores aos números mostrados na tela. É outra máquina que se junta às outras que “carrega

o mundo em palavras” (Latour 1999a)227. Marta e Flora sentam-se sob uma lona e se inclinam

junto ao laptop procurando pelo programa que lida com os dados do solo.

Marta explica o tempo todo a Flora o que ela tem que fazer. Ela não consegue encontrar o

programa, então, se dá conta de que alguém o salvou com o nome errado. Ela não consegue

abri-lo. Voltamos para a torre para fazer o download do programa novamente. O computador

está sendo “chato”, o mouse não funciona. Neste momento, Jair suspeita que “pode ser que os

cabos estejam conectados errados” e, então, etenta encontrar um programa que diz a

seqüência correta dos cabos de conexão do sensor com o datalogger. O equipamento é, assim,

“uma extensão” do datalogger, Jair explica. Datalogger, equipamento e torre são todos,

idealmente, extensões uns dos outros, cada qual facilitando o outro a fazer o trabalho ao qual

estão destinados.

“99% do tempo é concertando”, diz Jair. “Nada acontece como planejado”. Jair, Marta,

Flora e eu estamos sentados na torre, a 20 metros do solo, espremidos entre um laptop e a

caixa do AWS datalogger, tentando baixar seu programa no computador de Jair. Ele planejou

esta viagem por três meses e agora está tentando corconsertar uma “porcaria” de um programa

de Windows.

Há um virus no pen drive de Marta.

A bateria que Jair está usando para conectar o datalogger ao laptop não está carregada.

Jair começa o trabalho meticuloso de re-conectar os cabos ao datalogger do solo. Há uma

certa discussão sobre qual cor é qual; isto é verde ou turquesa? Jair e Marta gritam cores um

para o outro entre as árvores, verificando conexões e canais. Por um momento, esta parece

227 “load the world into words”

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uma cena absurda. Os cabos parecem estar conectados corretamente. Jair olha para mim.

“Tudo é possível”, ele diz.

Muitos pontos emergem aqui. O primeiro é que o equipamento e os instrumentos sobre

a torre estão, certamente, agindo como objetos recalcitrantes. Jair e sua equipe estão tentando

fazer o sensor falar do modo como eles querem e o sensor está se recusando teimosamente.

Essa recusa faz a “rede” mudar, faz os micrometeorologistas tentarem envolver novos atores

de modo a ajudá-los, atores que, em troca, provem “objetar” a tal “intéressement” e causem

mais problemas, mais mudanças, mais deslocamentos, mais entidades a serem envolvidas. O

plano claro apresentado na sala de reuniões – “consertar o sensor de umidade do solo” – se

tornou uma “rede” complexa de movimentos e deslocamentos, em que se está constantemente

reformulando o que é que precisa ser “consertado-fixado” (fixed), isto é, as identidades das

entidades envolvidas. Um ponto notável sobre o tempo que passei com os

micrometeorologistas é a rapidez com que eles testavam e mudavam para novas causas

possíveis; a velocidade com que as coisas assumiam novas identidades, o modo visível pelo

qual a rede mudava; a quantidade de ocorrências inesperadas que eles tinham que superar. As

ações dos micrometeorologistas não pareciam, de modo algum, serem direcionadas para a

descoberta de algum tipo de realidade estática e imutável, da forma como a ciência é

tradicionalmente concebida, apesar de sua ciência ser a ciência da meteorologia e eles

negociarem uma certeza instrumental. Como explorei no capítulo anterior, Latour identifica

algo como tendo o status de “fato” ou “real” em relação ao acúmulo de conexões. Podemos

agora falar sobre isso como a “estabilização da rede”.

Na Vida de Laboratório, Latour e Woolgar examinam meticulosamente a construção

de fatos em um laboratório, no caso, a definição de uma seqüência de proteínas: TRF é (mais

do que “poderia ser”) Pyro-Glu-His-Pro-NH2 (1986 [1979]:147). Eles escrevem:

“A produção de um paper depende criticamente de vários processos de escrita e leitura que podem ser

resumidos como inscrição literária. A função da inscrição literária é a persuasão bem sucedida dos

leitores, mas os leitores somente são totalmente convencidos quando todas as fontes de persuasão

parecem ter desaparecido. Em outras palavras, as várias operações de leitura e escrita que sustentam

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um argumento são vistas pelos participantes como irrelevantes em relação aos “fatos”, que emergem

somente em virtude dessas mesmas operações. Há, então, uma congruência essencial entre “fato” e a

operação bem sucedida de vários processos de inscrição literária. Um texto ou uma afirmação podem,

então, ser lidos como “contendo” ou “sendo sobre um fato”, quando os leitores estão suficientemente

convencidos de que não há debate sobre isso e os processos de inscrição literária são esquecidos”

(Latour and Woolgar 1986 [1979]:76)228.

Latour e Woolgar efetivamente demonstram, na Vida de Laboratório, como o que é tido como

“real” só emerge como conseqüência da atividade científica e que a diferença entre um “fato”

e um “artefato” é, realmente, aquilo no que a ciência está constantemente trabalhando para

estabelecer – não é algo que já está dado no mundo, mas algo que precisa ser “feito”. A

ciência faz isso através de processos de “inscrição”, em que uma entidade se torna um

“signo”, um número numa tela, uma leitura de um sensor, um documento, um paper

publicado (Latour and Woolgar 1986 [1979], Latour 1999a). E, quando a inscrição é bem

sucedida, o trabalho dedicado a fazer isso é “esquecido” – isto é como o mundo “sempre foi”.

Potência tecnológica, discussões entre pesquisadores, conversas informais – tudo isso

contribui para este processo de elaboração ou “construção” da “realidade”. Porém, como eles

destacam:

Se a realidade é a conseqüência mais do que a causa desta construção, isto significa que a atividade

científica não é direcionada à “realidade”, mas, sim, a essas operações sobre essas afirmações. A soma

total destas operações é um campo agonístico. A noção de agonístico contrasta significantemente com

a visão de que os cientistas estão, de algum modo, preocupados com a “natureza”. (Latour and

Woolgar 1986 [1979]:237)229

228 “The production of a paper depends critically on various processes of writing and reading which can be

summarised as literary inscription. The function of literary inscription is the successful persuasion of readers, but the readers are only fully convinced when all sources of persuasion seem to have disappeared. In other words, the various operations of reading and writing which sustain an argument are seen by participants to be largely irrelevant to ‘facts’, which emerge solely by virtue of these same operations. There is then an essential congruence between ‘fact’ and the successful operation of various processes of literary inscription. A text or statement can thus be read as ‘containing’ or ‘being about a fact’ when readers are sufficiently convinced that there is no debate about it and the processes of literary inscription are forgotten.”

229 “If reality is the consequence rather than the cause of this construction, this means that a scientist’s activity is directed not toward “reality”, but toward these operations on these statements. The sum total of these operations is the agonistic field. The notion of agonistic contrasts significantly with the view that scientists are somehow concerned with ‘nature’”

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Embora Latour e Woolgar pareçam (ao menos neste livro) delimitar a ação que ocorre no

“campo agonístico” como os vários meios pelos quais um cientista pode persuadir seus

colegas da verdade da afirmação que está propondo, isso pode ser estendido em função da

discussão anterior sobre a ação ser constitutiva da rede. Não são apenas as negociações dos

micrometeorologistas e as discussões que acontecem nas tentativas de se fazer o sensor falar

com eles, mas muitos diferentes tipos de entidades também adicionam suas vozes à discussão.

Porém são os micrometeorologistas que estão trabalhando exatamente com os processos que

permitem a inscrição acontecer. Eles estão lidando com o que acontece quando a inscrição dá

errado, como foi o caso, quando você não é persuadido, quando você “não confia” nos dados

e quando você “perde confiança nos instrumentos”.

O que desejo levantar das observações de Latour e Woolgar sobre o “campo

agonístico” não é tanto o murmúrio competitivo, mas, simplesmente, que este processo de

cristalizar uma certeza apareceu no campo com os micrometeorologistas não para ser dirigido

ao “Real”, mas a alguma outra coisa. Isso não significa, é claro, que eles se dirigiram a algo

que era “não-real”. Uma das muitas vantagens da ANT, como já foi colocado, é que não se

está mais restrito a escolher entre “real ou irreal” – é possível haver muitas nuances

diferentes. Isso é importante porque é como os micrometeorologistas falavam comigo sobre o

assunto. Como disse Marta – “a gente sabe que o que a gente tá medindo não é o real real

real” – mas é o que eles “admitem” ser real. Os próprios micrometeorologistas estão cientes

dessa gradação; de fato, eles têm de estar, de modo a dar conta da rapidez com que a certeza

aparece e, de repente, desaparece de vista. Sugiro que sua atenção esteja direcionada não tanto

a uma realidade subjacente absoluta, mas à certeza. Estar certo era a principal preocupação,

ser capaz de confiar nos instrumentos e nos dados, ser capaz de acusar corretamente o culpado

e, corretamente, “consertar-fixar” (fix) o problema, que é, por todos os meios possíveis,

assegurar que os instrumentos façam o que devem fazer e que digam o que se quer que digam.

A idéia de “realidade” que está interligada a esta idéia de certeza é, portanto, mais efêmera e

instável (uma vez que é criada quase do zero a cada estágio do processo) à medida que novos

culpados são introduzidos e descartados. Essas entidades envolvidas provocam uma

determinada configuração a cada estágio, de modo a averiguar o que está errado com o sensor.

Então, primeiro os cabos, depois o datalogger, depois o sensor, depois o próprio solo, todos

são trazidos para a discussão e cada um existe brevemente como a fonte do erro – isto é, de

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um erro determinado. Em seguida, a entidade desaparece de vista por sua própria ação (como

é feito agir, como faz outras entidades agirem – mesmo se isto é “não agir”). Mas, ao mesmo

tempo, ser descartada enquanto tal não extrai inteiramente a entidade. Entidades “colocadas

em teste” e que não conseguem corrigir o erro carregam consigo diferentes quantidades de

certeza. Que o culpado não seja o programa de computador não resolve o problema, mas

significa que, por ora, se pode subtrair aquela entidade da possibilidade de erro.

Isso é importante, porque estou ciente de uma dissonância possível entre a minha

descrição dos micrometeorologistas em ação e aquilo exatamente que desejo transmitir. A

forma ao acaso em que eles parecem fazer (go about) o trabalho não é meramente o resultado

das condições físicas difíceis, mas contém sua própria dinâmica específica. Ao se dirigir a

atenção, como fazem os micrometeorologistas, para cada momento de tradução enquanto

outra entidade é enlistada, ao invés de direcionar a atenção para uma realidade subjacente

imutável, afastamo-nos ligeiramente da imagem que Latour e Woolgar oferecem no final da

Vida de Laboratório, no qual eles associam a “criação da ordem a partir da desordem” dos

cientistas a um jogo de Go, no qual

“como no campo agonístico, o padrão que muda não é ordenado (orderly). Um território pode ou não

ser defendido de acordo com as pressões exercidas pelo oponente. O jogo termina quando todo o

território foi apropriado e todos os territórios disputados foram estabelecidos. De um começo

inteiramente contingente, os jogadores chegam (sem o uso de uma ordem externa preexistente) a um

ponto final no jogo onde alguns movimentos são necessários”. (Latour and Woolgar 1986 [1979]:247-

248)230

Enquanto que com os modeladores do último capítulo foi fértil pensar em termos de

uma desordem ou caos simultaneamente englobantes e englobados, a partir do qual (em

ambos os sentidos) deve-se cuidadosamente construir uma ordem e uma previsibilidade, eu

acho que isso acontece menos com os micrometeorologistas. Primeiramente porque eles não

230 as in the agonistic field, the changing pattern is not orderly…A territory may or may not be defended according to the pressures exerted by the opponent. The game ends when all territory has been appropriated and all disputed territories have been settled. From an entirely contingent beginning, the players arrive (without the use of external or preexisting order) at a final point in the game where certain moves are necessary.”

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falaram comigo sobre o caos inerente ao seu trabalho – talvez porque ele estivesse muito

obviamente presente sob certa forma física, da chuva que nos levava a ir correndo para o

abrigo, aos sapos caindo nos pluviômetros. O mundo estava claramente interferindo de formas

imprevisíveis. Eles não precisavam colocar essas formas numa “caixa preta” para controlá-

los, porque sua atenção estava direcionada para outra coisa.

Além disso, essa metáfora com o jogo Go implica um movimento progressivo (mesmo

se ao acaso) rumo à estabilização, rumo ao estabelecimento de uma certeza, quando um

“matter of concern” é transformado em um “matter of fact” frio e duro (Latour, 2005). O

trabalho dos micrometeorologistas nunca terminava num “fechamento da controvérsia” deste

modo. No que dizia respeito ao sensor de umidade do solo, a matéria era num certo sentido

“posta pra descansar”, quando Jair se lembra que Jorge disse a ele que, quando se muda o

sensor de solo, pode demorar um tempo para o solo no entorno da caixa se estabilizar

novamente para que a leitura correta seja obtida – às vezes isso demora até 3 meses. Por que

nós o substituímos antes de descobrir o que estava errado?, pergunto. Era a época de mudar o

sensor, de todo modo, ele responde e “outra posibilidade é uma queima no canal do

datalogger”. Há sempre outra possibilidade, tudo é possível. Por um tempo, o próprio solo é o

culpado e Jair me diz que agor eles só têm que “esperar uma resposta”; mas no dia seguinte,

nós voltamos para o datalogger e checamos as conexões novamente. Jair pensa que pode ser o

transistor, um pequeno (até agora ignorado) equipamento eletrônico, que de repente assume o

papel de ser o pedaço mais importante, capaz do maior poder explanatório e maior certeza,

exatamente porque não está funcionando. Incerteza e certeza podem ser postos para funcionar

juntos nesse sentido. E quando estão lidando com uma situação, como os

micrometeorologistas estão, em que muitos fatores diferentes estão todos se manifestando, a

certeza é instável e imprevisível.

Estou ciente de que isso pode ser tomado como uma inferência de um “fracasso” por

parte dos micrometeorologistas. Estou ciente de que minha descrição se apóia nas coisas que

eles aparentemente não fizeram, não conseguiram fazer corretamente ou não verificaram. Não

creio que isto seja insignificante ou pejorativo ou tampouco um artifício etnográfico da minha

parte. Certamente, todos ficavam muito preocupados quando cada culpado possível provava-

se inocente ou levantava suas próprias objeções que deslocavam a ação. Mas houve também –

e mais freqüentemente – momentos de grande satisfação. Quando perguntei se a viagem havia

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sido um “sucesso”, a resposta foi “sim, muito melhor do que da última vez”. O invés de uma

divisão mutuamente definidora entre certeza-verdade-realidade e incerteza-falsidade-

irrealidade, outra forma de se entender o que está acontecendo talvez seja necessária. O que

poderia ser discutido é a “natureza” da certeza ou da realidade sendo construída, com a qual

os micrometeorologistas estão lidando.

Como escrevem Latour e Woolgar, “a realidade é a conseqüência ao invés da causa

desta ação” (1986 [1979]: 237)231. Mas “realidade” em termos de “certeza” – (‘isto é

‘realmente’ o que está fazendo o sensor falar com a gente de um modo 'misterioso’) – emerge

aqui de um tipo de ação ligeiramente diferente. Ao invés de um acúmulo lento de conexões ou

de uma construção cuidadosa de “canais de referência”, os micrometeorologistas trabalham

por muitas oscilações rápidas, em que a “direção” de cada movimento é dado pela relação

particular que emerge da mais nova configuração da rede. Comparando isso com a

caracterização geral de Latour e Woolgar e Callon sobre a concretização microprocessual

gradual de um “fato” ou “realidade”, os micrometeorologistas estão aqui lidando com uma

realidade emergente muito fluida, que parece entrar e sair de foco muito rapidamente. Há não

uma, mas muitas controvérsias a serem resolvidas. E algumas vezes, “você não sabe a causa,

mas volta a funcionar”. Logo, o estabelecimento da certeza ou realidade “absolutas” está

deslocado do centro de sua atenção, e, ao invés disso, cada “pequena” controvérsia” e seu

“fechamento” assumem um papel muito mais importante. Isto é, não há algo como uma

pequena controvérsia. Cada entidade envolvida carrega sua própria carga de certeza, que é

então confirmada ou negada pelas outras entidades invocadas. Isto segue experimentos, que

aumentam ou diminuem seu poder dentro da rede para manter alguma “realidade” estável.

Outra forma de colocar essa questão é em termos de “fluxo” ou movimento e fixidez.

Isso ressoa além com a noção de uma certeza fluida ou uma realidade graduada, em ambas as

direções. Os cabos/fios que conectam o datalogger ao sensor eram os culpados; eles foram

“consertados-fixados”; o sensor ainda fornece o dado errado; os cabos não eram mais

culpados, mas ainda podem vir a ser. Da mesma forma que deste modo a certeza parecia

efêmera para algumas entidades, algumas entidades estavam definitivamente mais “fixas” do

que outras. A rede tinha que ser expandida, mais entidades foram adicionadas e evocadas para

231 “reality is the consequence rather than the cause of this action”

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ajudar. Nesse sentido, a realidade não parece ser a conseqüência do acúmulo de conexões e

associações. Marta se refere com freqüência a tabelas e gráficos que ela trouxe para a floresta,

que dizem a ela o que as leituras “deveriam” ser. Atribui-se a essas tabelas e gráficos a certeza

que eles obtêm através de um processo de construção muito mais similar àquele que Latour

descreve. Eles acumularam tantas conexões e passaram por um número suficiente de

experimentos que são confiadas como “representando” o fenômeno pelo qual elas falam

(Callon 1999 [1986]). Eles são muito mais próximos dos produtos dos processos de inscrição

de Latour, que escondem a heterogeneidade do ato de inscrever. Os micrometeorologistas,

porém, referem-se a eles, ao invés de produzirem-nos – isto é, eles se tornam uma parte igual

da rede dos micrometeorologistas, não o término final fixado. Essas entidades eram

exatamente aquelas não sendo questionadas pelos micrometeorologistas, como Latour e

Woolgar prevêem. Mas então eles eram exatamente não aquilo em que os

micrometeorologistas estavam trabalhando. Quando esse processo de produção científica do

conhecimento “dá errado”, os cientistas que têm que “fixar-consertar”-lo oferecem uma

oportunidade para reavaliar a medida em que esses processos de inscrição realmente são

esquecidos ou não, ou se, de modo a reabrir a controvérsia, outro processo precisa ser só

temporariamente (mesmo se seguramente) fechado.

A “Natureza” frequentemente apareceu em nossas conversas e ações sob várias

formas. Quando trocamos o sensor de radiação por um novo, a forma como nos asseguramos

que ele está funcionando é comparando a mudança na leitura que ele está dando, com a

própria incidência do sol. Quando o sol se esconde atrás de uma nuvem, checamos para ter

certeza que os números diminuem e aumentam de novo quando o sol reaparece. Além disso,

nós soubemos que ele estava dando o dado “errado” porque há algumas impossibilidades no

mundo: é “impossível” que a superfície da terra reflita mais radiação do que recebe, então um

sensor que define que isso está acontecendo é suspeito. Da mesma forma, ao testar um sensor

de calor, Jair primeiro o coloca sob sua axila e então acende uma lanterna sobre ele, olhando

para ver se ele registra a mudança na temperatura que ele sabe estar acontecendo. Como Jair

me diz mais tarde quando nós conversamos sobre como se sabe se um equipamento está

desregulado ou não, uma constante é que “o que esse equipamento tá medindo não pode

acontecer na natureza”. “Natureza” emerge aqui como um ponto fixo a partir do qual a equipe

é capaz de “fixar-consertar” o equipamento. Esses processos naturais têm uma carga completa

de certeza, que os micrometeorologistas têm como inquestionável. Porém, como veremos a

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seguir, o quão fixo exatamente este ponto é parece variar.

A calibração é outro exemplo do modo pelo qual uma entidade pode ser carregada

(loaded) com certeza. De volta ao laboratório em Manaus, há novos instrumentos que nunca

são levados para o campo. Esses instrumentos “padrão” são usados para calibrar os

instrumentos que são trazidos de volta das torres. Infelizmente nunca tive a oportunidade de

observar este processo de calibração dos sensores acontecendo. Quando pergunto o que

“calibra” os instrumentos “padrão”, fico confusa. “Ninguém calibra o padrão”, dizem-me. Foi

quando questionei isso que Marta me disse “é impossível saber o que é real real real...mas a

gente admite que o que a padrão tá medindo é o real”. Frente à persistência de minha

confusão, ela explica: “não é um binário”. A atenção dos micrometeorologistas não é

direcionada a esse “real” absoluto, mas a aproximações e certezas que constituem o “real” em

oposição ao “real real real”.

A noção de Andrew Pickering (1999 [1993]) de “the mangle” – uma “dialética de

resistência e acomodação” (ibid: 377)232 parece um modo relevante de analisar o tipo de

movimento que vemos na prática dos micrometeorologistas. Ele sugere que o “apelo à

semiótica” da ANT parece um recuo à “ciência-enquanto-representação” (ibid:374), face à

insistência de Collins e Yearley de que dar agência aos objetos é ceder controle analítico

àqueles que explicitamente lidam com objetos, isto é, os cientistas. Para Pickering, embora os

objetos (neste caso, uma bubble chamber (câmera bolha) – “um instrumento que se tornou a

principal ferramenta para a física experimental de partículas elementares nos anos 60 e 70”)

tenham “agência” (e aqui ele diz que pode-se facilmente vê-los como “intermediários que

induzem as partículas a escrever” ou “armadilhas para capturar... a agência de partículas

elementares” (ibid: 381)233), eles não têm “intencionalidade”, uma qualidade reservada para

os atores humanos: “Nós humanos nos diferimos dos não-humanos precisamente pelo fato de

que nossas ações têm intenções por trás delas, enquanto que a performance (comportamentos)

dos quarks, micróbios e máquinas não têm” (ibid: 375)234. Descrevendo a construção da

232 “dialectic of resistance and accommodation”

233 “intermediaries which induce the particles to write” or “traps for capturing...the agency of elementary particles”

234 “[W]e humans differ from non-humans precisely in that our actions have intentions behind them, whereas the performances (behaviours) of quarks, microbes and machine tools do not”

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bubble chamber de Glaser, Pickering demonstra a dinâmica do “mangle”, em que cada

obstáculo a algum objetivo (por exemplo, a falha da câmera pra registrar o choque de

partículas) enfrentado pelo cientista provoca um redirecionamento e uma redefinição da

agência material e da intencionalidade humana. Embora postulando uma assimetria entre

humanos e não humanos em termos de intencionalidade, ele restaura a simetria na medida em

que tanto a agência material quanto a humana são “temporariamente emergentes” e

imprevisivelmente precipitadas de cada estágio do the mangle e “mútua e emergentemente

produtivas um do outro” (ibid. 382)235.

Aqui ele admite que converge com o ANT. The mangle é uma visão de mundo da

ciência como “performativa” – “Resistência (e acomodação) está no coração da luta entre os

domínios humano e material, na qual cada um deles é restruturado interativamente um em

relação ao outro – no qual, como no nosso exemplo, a agência material, o conhecimento

científico e a agência humana e seus contornos sociais são todos reconfigurados de uma só

vez” (ibid:385)236. Certamente, o mangle de Pickering poderia, por razões óbvias, ser aplicado

à minha descrição dos micrometeorologistas e dos objetos resistentes que estão misturados

com a torre. Ainda mais considerando que a maioria da sua análise é muito similar a uma

abordagem ANT. Podemos retornar aqui para minha descrição da reunião do Projeto

Fronteiras. Certamente, não apenas uma mudança no tempo, mas também no espaço parece

influir no que emerge, em quais intenções e desejos são instados. Isto é, entidades e práticas

são “espacialmente emergentes” também. Mas “tempo” e “espaço” devem ser tomados como

categorias que existem “fora” da rede? Ou eles estão mangled também? Não tenho uma

resposta para isso, mas sugiro que estes dados ocidentais como “espaço” e “tempo” são uma

das coisas com que Latour está brincando com a idéia de “ontologias variáveis” ( 1993

[1991]: 85-88)237 e especificamente “historicidade” e “temporalidade” (1993 [1991]: 67-76).

O tempo pode ser considerado uma espiral, um fio ou um sonho. Embora the mangle seja

talvez um bom meio para se refletir sobre a prática científica tal como a vi (eu teria que tê-la

feito para saber), seria interessante ver como ela held up numa ciência que questiona as

235 “mutually and emergently productive of one another”

236 [R]esistance (and accommodation) is at the heart of the struggle between human and material realms in which each is interactively restructured with respect to the other – in which, as in our example, material agency, scientific knowledge, and human agency and its social contours are all reconfigured at once”

237 “variable ontologies”

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concepções correntes dessas dimensões ocidentais como tempo e espaço. Estudos

antropológicos mostraram que noções de tempo e espaço podem ser tão problemáticos para a

descrição como outras noções menos aparentemente ontológicas (Casey 1996). Minhas

experiências na expedição de São Gabriel parecem sugerir que, tal como uma mudança de

espaço seems to elicit diferentes relações e ações, também diferentes ações moldam o tipo de

espaço em que se está agindo. Uma rede captura muito bem essa dinâmica mútua – talvez

como os “contextos” wagnerianos do primeiro capítulo, ela é constituída enquanto “constitui”.

Considero ligeiramente problemática a insistência de Pickering de que os humanos

têm intencionalidade enquanto os objetos não. Isso porque, se as agências humana e material

são propriedades emergentes e mutuamente constitutivas, por que importa, de saída, que um

tenha “agência” e o outro tenha “intencionalidade”, senão para marcar uma diferença

qualitativa irredutível e não-emergente entre eles? E isso então implica que há algo que está

“realmente” governando a direção do mangle, a intencionalidade humana, que é de certo

modo “mais forte” do que as agências dos não-humanos que ela encontra – o que em si

mesmo parece também com um tipo de “recuo para o representacionismo”. De novo, o quão

“profundo” o mangle vai? Manter uma diferença que não se modifica ao longo da dinâmica

toca num centro que me leva a postular que o mangle é um dispositivo especificiamente

ocidental. O que não é uma crítica, nem ao menos surpreendente (enquanto uma

“reconceitualização”), mas isto é algo para se ter em mente, especificamente enquanto a

“ciência” abra suas portas e não está mais em contato exclusivo com sua “própria cultura”.

Os humanos são intencionais na ANT, é claro; como vimos Latour não está postulando

uma “simetria absurda” entre humanos e não-humanos. Mas qualquer afirmativa no ANT é

algo que se paga o preço (pay one's way) para verificar. Além disso, acho que está faltando

alguma coisa na divisão implícita de objetos que “resistem” e humanos que “se acomodam”.

Ambos podem fazer ambos para ambos. A insistência de Latour que atores – todos os atores –

são acima de tudo “bagunceiros” (2004a)238 tem ressonâncias profundas com a razão pela qual

a abordagem “semiótica” me parece mais fértil. A caracterização de Pickering sobre a

semiótica a define como sendo “algo a ver com textos e escrita”, o que é claro que ela é.

Como aponta Latour, “descrever”, escrever “ficção” não é fácil e de fato é apenas pela

238 “troublemakers”

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natureza artificial deste exercício que a “objetividade pode ser atingida” (2005: 126-127)239. A

realidade é uma conseqüência não uma causa. Mas para mim a abordagem semiótica não é

apenas uma questão de falar e escrever, mas uma questão de porta-vozes. Trata-se falar em

nome de outros, quem tem o direito de fazer isso e como se administra e mantém esse direito.

***

O acúmulo de conexões pode ter efeitos surpreendentes e a fixidez dos pontos fixos

não parece em si mesma fixa. A extensão em que as entidades são postas junto a partir de

todos os lugares na formação da rede ou de seu “campo agonístico” e o efeito que isso pode

ter sobre as entidades que já estão na rede foi algo que me chamou atenção uma noite quando

eu e Jair estávamos no alto na torre esperando para que o novo barômetro “começasse a

funcionar”. Perguntei Jair sobre os IRGAs e sobre o que exatamente “fluxo” significa.

O fluxo de carbono é ostensivamente uma das medidas mais importantes que a torre está

fazendo, dado que a questão central do LBA é verificar se a Amazônia está lançando mais

carbono do que está absorvendo ou vice versa. O fluxo de carbono é medido pelo Licor, que é

ligado ao anemômetro sônico, um instrumento de aparência futurista que se ergue para o céu a

partir do alto da torre. Como descrevi no primeiro capítulo, o Licor mede uma quantidade de

carbono em micromols em cada altitude que está tocando o ar e isso é combinado com a

informação do vortex de vento em três dimensões que ele pega do anenômetro sônico. Isso dá

uma quantidade de fluxo de carbon: a quantidade de moléculas de carbono por período de

tempo por área, micromol/m2/segundo. Trata-se de uma medida de movimento, uma

dinâmica. Mas o fluxo também é “fixado” – é um outro número, a ser usado numa

“conversão, para biólogo entender”. Para que essas medidas façam sentido para um biólogo,

precisam ser convertidas em um medida de fotossíntese (não diferente, para um antropólogo,

daquilo que vimos com o sensor de umidade do solo. Muito dessemelhança, é preciso dizer,

para um biólogo). Isso também requer dados do sensor PAR (sensor de Radiação

Fotossintética Ativa), um longo equipamento que se alonga a partir da torre, com um sensor

dupla face no topo que, registrando a quantidade de radiação que chega e que é refletida de

239 “objectivity might be achieved”

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volta da superfície da terra, calcula a diferença – que é a quantidade de radiação absorvida

pela vegetação circundante. Então há a aplicação de uma série de equações (“tem várias

equações até chegar”), que são “complicadas” (e Jair está relutante para explicá-las para mim,

já que pareço confusa), até que se chega à taxa de fotossíntese. As equações são baseadas nas

quantidades de carbon necessárias para absorver uma certa quantidade de CO2 – números que

em si mesmos são o resultado de uma longa série de equações. E mesmo aí a quantidade de

radiação necessária para absorver uma certa quantidade de CO2 também varia, de acordo com

a espécie de planta e sua fisiologia. Embora todas as plantas façam fotossíntese dentro de um

espectro estreito de radiação, há diferenças nisso. “A diferença é dentro da folha”; plantas não

fazem fotossíntese segundo a mesma taxa e as diferenças residem dentro da “biometria da

planta” e dentro das diferentes categorias de plantas. E nem todas fazem fotossíntese

puramente somente durante o dia: algumas a fazem à noite, descoberta que Jair deixa claro

que não foi pouco perturbadora para fisiologistas de plantas. A “natureza” aqui parece mais

fluida do que fixa, mais cheia de pequenas variações. Tudo isso pode acontecer na Natureza.

. Cada informação que Jair me dá complexifica o trabalho de verificar a taxa de

fotossíntese; cada uma adiciona um outro elemento, faz outra conexão, desenha outro

processo bioquímico no quadro. Jair desenha para mim uma série de gráficos representando a

absorção de CO2 segundo uma base diurna, esboçando as curvas padronizadas que

representam diferentes absorções de CO2. Na mesma página, ele me desenha uma célula

vegetal e alguns estomatas. Ele desenha um modelo que “aprendemos na escola”. “A

diferença entre o LBA e o segundo grau é a complexidade”, ele diz. Continuamos

conversando; estou interessada na idéia de conversão para o uso dos biólogos. Jair me diz

“essa conversão não é uma lei, é uma teoria”. Por que não é uma lei?, pergunto. “Porque, até

onde eu sei no mundo, isso é verdade. Nao é lei. Dois corpos se atraem é lei…a lei da

gravidade….é imutável porque testável em qualquer situação, matematicamente…” - mas, ao

mesmo tempo, “ depende da situação, é muito difícil matematizar natureza”, e então,

“especialmente esse tipo de natureza” querendo dizer “floresta tropical”. A floresta tropical é

muito mais complexa do que qualquer outro tipo de floresta, Jair me diz, “tem aqui muito

mais variaveis [do que na temperada]. Aqui é mais complexo do que qualquer outro tipo de

ambiente.” Mas há algumas coisas que você só tem que admitir que são verdadeiras, que você

tem certeza. Como Jair me disse, “o que esse equipamento estava medindo não era o que pode

existir na natureza”. Mesmo entre toda essa certeza em mudança, “você tem que admitir que

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algumas coisas são verdades”.

A luz começa a diminuir, e o barômetro toca longe e a discussão se dirige para

“processos biológicos”. Imperceptivelmente nós começamos a falar sobre algo diferente dos

equipamentos e do fluxo. Jair é um biólogo e já passou muitos anos quando era mais jovem

arrastando IRGAs pelas florestas enquanto fisiólogo de plantas. Mas ele diz que era um

trabalho muito duro e então ele “desistiu”. E no entanto o conhecimento que ele obteve por

meio deste trabalho como biólogo é acionado no trabalho que ele faz agora. O que exatamente

ele “desistiu” quando começou a devotar seu tempo à micrometeorologia? Como antropóloga

tentando descrever os movimentos que ele faz, recai sobre mim descrever os atores que ele

invoca, as moléculas de carbono, vórtices de ar, redes de conhecimento bioquímico e

biológico, equipamentos que registram constantemente e que em si mesmos participam como

o resultado reificado de diferentes redes de conhecimento mecânico e físico, enfim, uma

multitude de entidades. As conexões parecem se espalhar em todas as dimensões: o

movimento centrífugo do ponto repentinamente arbitrário que eu habito como observadora, o

movimento que se expande para fora e torna cada vez mais difícil definir em termos fixos os

caminhos que cada entidade toma ou saber onde começar e onde terminar minha descrição. A

“integração” está agora mais aparente do que nunca e não é algo que precisa esperar para

existir somente na volta ao escritório do LBA; ela vem acontecendo constantemente nesta

coreografia científica e seus efeitos são qualquer coisa exceto estabilizadores.

Usei as noção de Latour de “campo agonístico” para tentar transmitir como as

operações dos micrometeorologistas não estão direcionadas para alguma realidade absoluta

subjacente, mas para essas próprias operações, a partir das quais parece aparecer um número

transiente de “reais” e “certezas” em diferentes graus. Esses graus são mutáveis e dependem

dos outros atores envolvidos. Essa observação foi confirmada pela forma na qual os

micrometeorologistas falaram para mim sobre a “realidade” sendo graduada, o que, por sua

vez, se encaixa com a idéia de que a “certeza” é distribuída desigualmente na rede (embora

isso seja exatamente o que está sendo negociado e mude constantemente). Entidades tais

como tabelas de dados trazidos dos escritórios em Manaus ou uma concepção de “Natureza”

que é tomada como “fixa” (sabendo-se que os micrometeorologistas estão lá para “fixar-

consertar” os equipamentos) são assim devido à extensão de sua rede e ao número de

conexões e outras entidades que testemunham a certeza que qualquer um pode ter nelas. Mas

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a atenção dos micrometeorologistas está dirigida exatamente não em direção a essas

entidades.

Ao mesmo tempo, o aumento no número de associações parece diminuir a certeza ou

ao menos fazer mais difícil fixá-la, quando mais e mais entidades entram na rede e têm sua

voz. A “fixidez” da natureza, por exemplo, torna-se fluida então. A “natureza” da Amazônia é

diferente daquela da tundra, por exemplo; da mesma forma como as plantas fazem

fotossíntese durante o dia, mas não sempre. Há algumas coisas que você só tem que admitir

que são verdadeiras. O que elas são então parece emergir da forma específica que a rede de

associações assume a qualquer momento dado. O que é certeza e o que é “realidade” poderia

de fato ser visto como uma conseqüência de suas operações, sem que isso seja uma denúncia

em termos de “construtivismo social”.

“Às vezes a solução aparece”, me diz Marta. Sua escolha de palavras trai o modo

como o surgimento da solução pode ser surpreendente. Uma das vezes em que a solução

apareceu foi com os sensores de temperatura. Eles são organizados como um perfil ao longo

da extensão da torre, dando uma série de leituras. Mas por alguma razão, o sensor a 12 metros

“não tá registrando”. “Nesse momento”, diz Jair, “pode ser problema com o sensor, ou os fios,

ou o datalogger”. Depois de um dia checando o novo sensor que trouxemos conosco

juntamente com todos os outros sensores e assegurando-se que o datalogger está funcionando,

Jair decide olhar ao cabeamento dentro do datalogger. Trata-se de um nó górdio de canais e

fios coloridos que requer um trabalho muito meticuloso para ser desfeito (cortar não é uma

opção!). De repente, ele nota que o fio do sensor de 12m está conectado ao canal para o

sensor de 2m. Ouvem-se exclamações de alegria. Ele reconecta o datalogger corretamente e,

num só golpe, os sensores estão fazendo sentido novamente. Algo foi fixado-consertado

(fixed).

Para um micrometeorologista, a complexidade da floresta tropical é especificamente

manifesta pelo tempo e esforço que se gasta para manter o equipamento funcionando. Como

Jair gosta de me dizer: “aqui é mais complexo do que qualquer outro tipo de ambiente….em

manutenção de equipamento por exemplo”. A complexidade da floresta tropical então se torna

peculiarmente micrometeorológica. Para se conquistar um “bom funcionamento” dos

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equipamentos é preciso que se lute com os problemas de manutenção causados por animais ou

plantas desobedientes ou pelo fato de que o equipamento vem da Europa e então é feito para

um clima temperado e não para um clima tropical. O sentido de “um bom funcionamento”

havia sido fixado de certo modo na reunião de Manaus. Ele se baseava em informações

simultaneamente reificadas dentro do equipamento com que se trabalhava, que haviam sido

construídas para suas especificações e também está muito distante delas, que estão num livro

em alguma sala de aula a milhares de quilômetros da selva fulmegante em que o equipamento

está fazendo seu trabalho. O que “fixado-consertado” significava no começo da viagem não é

o que passou a significar no final.

***

No início da expedição, durante o caminho para a Escola Agrotécnica em São Gabriel,

onde o LBA possui um pequeno escritório com dois computadores e uma conexão à internet,

eu perguntei a Marta sobre como é trabalhar com a torre. “O ambiente interfere nos dados”,

ela disse. Isso me deixou um pouco confusa na época. Mas quanto mais eu observava e

perguntava, mais ficava claro que, no campo, o ambiente é muito mais do que meramente o

que está sendo medido ou transformado em números pelo equipamento e pelos pesquisadores.

O ‘ambiente’ ou a ‘natureza’ ultrapassam tal caracterização de modos surpreendentes. Quando

chegamos à torre, eu vi as carcaças de uma barata, de uma aranha e de uma centopéia dentro

de um barômetro que havia parado de funcionar. Como mencionei, os sapos são conhecidos

por pular dentro dos pluviômetros e, em Manaus, eu vi uma caixa datalogger que havia sido

retomada por abelhas e estava coberta de mel.

Por um lado, então, há um modo no qual o ambiente conspira “contra” o pesquisador.

Como notam Roberto e Jair, o pesquisador é lançado contra o ambiente tropical.

Equipamentos manufaturados para suportar climas temperados lutam para lidar com as

condições climáticas dos trópicos; a vastidão da própria Amazônia torna a tarefa do LBA

parecer fútil. Como me disse um pedologista em Santarém: como é possível que 15 torres

representem toda a Amazônia? A fauna e a flora lutam pelo espaço que os pesquisadores

tentam salvaguardar com dificuldade e, de qualquer modo, “é difícil matematizar a natureza...

esse tipo de natureza”, o que, note-se, é exatamente o que os modeladores do último capítulo

têm que aceitar em relação ao trabalho que os pesquisadores de campo estão fazendo. E então

desta maneira a “natureza” desempenha um papel múltiplo naquilo que os pesquisadores estão

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“fazendo” quando “fazem” ciência – ela não é apenas fixa-consertada de um modo que

ofereça certeza, mas ela diverge, denigre, re-direciona e dá o formato específico para a forma

como os pesquisadores fazem aquilo que fazem. Ela age de modos que não são previsíveis e

parece fazer tudo o que pode para romper as associações que os pesquisadores estão forjando.

Desejo voltar-me agora para essas associações, não apenas como processos de rede, mas

como relações de cumplicidade que permitem aos cientistas tornarem-se porta-vozes.

A estabilização da certeza através do estabelecimento de uma relação assimétrica entre

causa e efeito (isto é, reduzindo a equação ‘causas múltiplas : um efeito = incerteza = infinito’

para ‘uma causa : um efeito = certeza = 1’) no papel (e em papers quando publicados) parece

ser uma simples tarefa dedutiva e redutiva. Na prática se torna algo muito mais complicado e

intrincado, misturando virus em pendrives e programas teimosos de computadores,

necessitando negociações e uma oscilação constante entre certeza e incerteza, entre “uma

realidade” e “não uma realidade”. A freqüência dessa oscilação é reduzida, mas nunca atinge

zero. “Tem que funcionar”, “tem que ser melhor”, dizem-me, mas nunca me dizem “tem que

ser verdade”. Eles têm que se contentar em esperar e ver, porque não podem criar as

condições nas quais basear sua certeza naquele momento. O transistor não pode ser

encontrado em São Gabriel, eles terão que esperar até voltar para Manaus para comprar um. A

habilidade para controlar o ambiente é um luxo que o laboratório oferece, mas que a selva

não, mesmo quando construímos um laboratório no meio dela, mesmo se trazemos o

equipamento do laboratório de volta a Manaus. Mesmo se a selva é remendada, escavada e

consertada de modo que se dê a ela a melhor chance possível. Os próprios

micrometeorologistas não estão trabalhando tanto com “inscrição” (in-scription) como com

“contradição” (contra-diction). O sensor de umidade é novo – “deve funcionar”. Flora me diz

que “a gente tá trabalhando com paradoxos”. A purificação da incerteza em certeza neste caso,

de “tudo” a “soma zero” não é um assunto simples. Estmaos longe do laboratório, onde o

ambiente é um aspecto tão controlado do experimento quanto os actantes que nele trabalham.

O trabalho dos micrometeorolistas parece requerer, ao invés disso, um tipo de cumplicidade

entre pesquisador e ‘ambiente’, já que o ambiente ‘interfere’ e simultaneamente ‘confirma’.

Quero abordar a seguir o caráter específico desta relação inventiva de cumplicidade.

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202

***

Ciclos Biogeoquímicos, Fisiologia das Plantas e Tudo Muda em Campo

A equipe de Fisiologia das Plantas, Carlos E e Glaudecy, vieram para torre para medir

as taxas de fotossíntese em seis espécies diferentes de árvores com variadas alturas. Este

“micro” estudo de taxas de fotossíntese requer sentar com um IRGA durante horas

examinando pequenas seções de folhas. O IRGA que estavam usando permite que se controle

minuciosamente o ambiente de uma pequena parte de uma única folha. A parte da folha é

escolhida cuidadosamente de modo a não ser afetada ou infectada com algum mofo ou doença

e então é selada dentro de uma pequena câmara no IRGA. Lá dentro, a quantidade de luz,

CO2 e água pode ser cuidadosamente controlada por meio de um pequeno teclado digital, que

pode produzir gráficos e de onde dados podem ser baixados todas as noites no laptop.

Aumentando a quantidade de luz, mas sem permitir que entre CO2 e H2O entre dentro

da câmera, este IRGA mede quanto CO2 e H2O é absorvido pela seção da folha, conforme se

aumenta a luz. Isto é usado para calcular a taxa de fotossíntese, baseando-se no princípio que

uma planta absorve CO2 e H2O quando faz fotossíntese. O IRGA é um instrumento muito

delicado e relativamente pesado e usá-lo requer passar muito tempo sentado, assegurando-se

de que ele está controlando corretamente as quantidades dos três fatores que nos interessam.

Ele deve ser mantido seco e limpo o tempo todo – Carlos E o carregava pela floresta quase

como se estivesse carregando uma criança e se a chuva ameaçava, ele imediatamente abria um

grande guarda-sol colorido para protegê-lo.

As folhas têm que chegar no IRGA no estado o mais próximo possível em que

estariam se estivessem na árvore, então elas são cortadas com muito cuidado de modo a não

“estressá-las” colocadas na água por alguns minutos e manuseadas com o máximo de cuidado.

Para assegurar que as estomatas (os pequenos “poros” que absorvem CO2) das folhas estejam

o mais aberto possível eles devem idealmente ser coletados entre 10 horas da manhã e 4 horas

da tarde, o principal período fotossintético para plantas clorofílicas, o horário em que há mais

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luz. Esse processo totalmente delicado e absolutamente controlado acontece em uma área

pequena ao lado da torre e a amostra tomada será usada para calcular a taxa de fotossíntese de

seis espécies. Se chove, os pesquisadores terão que esperar até que as folhas nas árvores

sequem, o que significa às vezes que dias inteiros são gastos esperando nas redes, reduzindo a

quantidade de tempo que eles tem para completar o experimento. Idealmente, deve haver o

maior número possível de repetições, o “ideal” sendo mais de 30 – embora devido a

constrangimentos de tempo eles irão realizar o experimento 5 vezes para cada espécie, para

“excluir quaisquer erros e ser o mais preciso possível”.

O estudo de Raquel é sobre matéria morta caída na floresta, ou necromassa, e o papel

que ela possui no ciclo de minerais e carbono. Ela está especificamente interessada na “liteira

grossa” – a matéria morta que é maior do que 2 cm. Ela tem que andar muitos quilômetros

todos os dias pela floresta para o local onde suas “parcelas” estão, as áreas de amostra que ela

escolheu e demarcou em uma expedição prévia. Há cinco “parcelas”, cada uma medindo

100m x 20m. Dentro dessas “parcelas”, ela marcou parcelas menores de 5m x 5m sistemática

e aleatoriamente localizadas ao longo da parcela, para “pegar toda a variação”. Em cada uma

dessas parcelas menores, ele marcou um quadrado ainda menor de 1m x 1m. A “parcelinha”

de 5m x 5 m é rigorosamente limpa de toda matéria morta, deixando um quadrado de 5m2

estranhamente vazio na floresta. Ela vai retornar em seis meses para registrar o que caiu nesse

período de tempo. Pergunto a ela se limpar o chão da floresta de toda matéria morta não

afetará o que morrerá nos próximos seis meses, dado que todos os nutrientes (desta floresta

por outro ângulo pobre em nutrientes) vêm da matéria morta que cai. Sim, é uma

possibilidade, ela diz, mas não há outro jeito, isso é algo que ela tem que aceitar – “você tem

que arrumar um jeito”.

Antes de limpar a “parcelinha”, Raquel e Tony acocoram-se e trabalham usando uma

régua para medir a extensão, a espessura e o diâmetro de todos os pedaços entre 10 e 30 cm

de madeira caída que encontram no quadrado de 1m x 1m que foi marcado. Raquel explica

que fazer isso para toda a “parcelinha” demoraria muito, assim como fazer isso para a matéria

de 2 a 30 cm de diâmetro, então ela inventou um outro modo: ela mede somente este

quadrado e isso “representa” toda a “parcelinha”, “porque eu sei a área da parcelinha”. Uma

parte da madeira coletada desse quadrado é também colocada em uma pequena sacola

plástica, rotulada e numerada de acordo com a parcela e a data e será levada a Manaus para ter

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sua densidade e seus nutrientes analisados. Medindo a densidade e tendo o volume dado pelo

diâmetro, Raquel poderá descobrir a massa (M=D/V) da “liteira grossa” que é produzida nas

suas parcelas em seis meses ou um ano, dependendo de quando ela conseguir voltar para São

Gabriel. A matéria morta que ela coleta de cada metro quadrado é colocada na mesma sacola

de plástico; sua densidade combinada vai dar a ela uma média da densidade do material que

está sobre o solo da floresta. Isso “permite que eu fale em termos de toneladas por hectare”,

que é a unidade de medida da necromassa que ela precisa chegar de modo a publicar suas

descobertas em um formato aceito. Quando pergunto a ela onde ela quer chegar no final (uma

pergunta que pergunto muitas vezes em vários pontos dessa viagem), a primeira resposta que

ela me dá é que deseja chegar à necromassa, um valor de nutrientes para suas parcelas – que

se obtém multiplicando os valores de nutrientes oferecidos a ela pelas amostras de madeira

morta que ela leva para Manaus pelo valor da necromassa que ela descobre através da

densidade.

Ela também está medindo a “liteira fina”, folhas e qualquer matéria de madeira morta

abaixo de 2 cm de diâmetro, usando 10 redes para se coletar liteira de folha localizadas em

intervalos sistemáticos e novamente aleatórios ao longo de sua parcela, assim como amostras

de matéria orgânica e solo retiradas da pequena área ao lado de cada rede coletora. Embora

ela esteja mais preocupada com a “liteira grossa”, seus estudo é dar conta tanto da liteira fina

como da grossa – tudo que cai e é “estocado”. Ela já havia explicado para mim que o estudo

da “liteira grossa” inicialmente a atraiu porque há muito poucos estudos feitos sobre isso –

muitos mais foi produzido sobre “liteira fina”, que é mais fácil de se trabalhar e não requer tal

flexibilidade. Tentar estudar a “liteira grossa” envolve medir grandes troncos de árvores

caídas que não se pode levar de volta para o laboratório para analisar como se pode com uma

sacola de folhas mortas. Nós nos espalhamos e andamos pela parcela, apontando para troncos

caídos que vemos para que Raquel venha medir. Michael brinca que “tudo o que Raquel vê é

coisa morta”.

Pergunto a ela mais tarde qual é a diferença entre o que é “produção” e o que é

“estocado”. “Estocado é o que é armazenado”, ela diz e Jair, sentando ao nosso lado, adiciona

“é o que está guardado. Como uma loja, o que pode ser usado de novo”. “Produção”, por

outro lado, “é a partir de uma data que eu decidi, o que cai…e o que vai formar o estoque. Eu

estou tentando ter controle desse entrada”, isto é, a entrada daquilo que cai sobre e dentro do

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solo – “toda hora tá caindo”. A diferença do valor dos nutrientes entre os dois vai mostrar a

ela o quanto do que cai – a produção – é “reciclado” e o quanto permanece “estocado” (pelo

menos, para esta parte da floresta) e quanto nutriente está, portanto, entrando de volta na

floresta.

Em uma das minhas discussões com um pesquisador em ciclos biogeoquímicos numa

outra ocasião, nós falamos sobre o tema do trabalho que os pesquisadores em Fisiologia

fazem. O pesquisador foi inflexível: “eu não gosto desses trabalhos micro”, disse-me ele.

“Não representa o macro pra mim. Uma espécie, uma folha, pode mudar numa outro dia…..e

só uma arvore, nessa area, nesse dia. Eu gosto das médias, das biomedias……nao representa

para mim, é muito muito micro, fica só num lugar.” Mas quando pergunto a eles o que é o seu

“micro”, eles me dizem que isso é uma pergunta impossível. Quando eles publicam eles vão

especificar que seus dados vêm “desta área”, onde suas amostras foram coletadas – “mas

quem sabe quem vai usar os meus dados?”

A prática científica de Raquel e de Carlos E e Glaudecy tal como a observei poderia

também ser traçada como fiz com os micrometeorologistas, mas com um efeito diferente.

Suas redes são ligeiramente diferentes. Eles também estão envolvendo, listando e

posicionando uma grande quantidade de entidades heterogêneas. Enquanto que o trabalho dos

micrometeorologistas me pareceu ser caracterizado por muitas e rápidas oscilações

multidirecionais, as atividades de Raquel e de Carlos E e Glaudecy parecem ser melhor

descritas como criando o que Latour chama de “cadeias de referência” (1999a: 69)240, ao

longo das quais seus fenômenos – madeira morta, propriedades fotossintéticas – circulam,

transformadas a cada estágio por uma ou outra entidade, da fita métrica para o teclado, do

teclado para o computador, do computador para a base de dados, da base de dados para a

publicação, da publicação para....;ou, no segundo caso, do IRGA para o gráfico, do gráfico

para o computador, do computador para a base de dados, da base de dados para publicação, da

publicação para... Como Latour nota, cada momento de tradução supõe que algumas

propriedades do fenômeno sejam mantidas e outras sejam descartadas – essa característica

desses “móbiles imutáveis” (1999a:102)241 como ele os chama significa que as cadeias que

240 “chains of reference”

241 “immutable mobiles”

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estão sendo forjadas pordem ser traçadas para a frente e para trás, da madeira morta coletada

na floresta para o artigo publicado e inversamente também. Isso é crucial para a prática ser

chamada “ciência”, nota Latour. O que é “matéria” e o que é “forma”, o que está sendo

representado e o que representa, alterna-se tanto que, em cada estágio desta transformação,

quando a matéria de madeira morta se torna um dado publicado, algo se ganha e algo se

perde. A madeira morta é “matéria” de uma “forma” que a régua oferece sob o formato de

uma medida, que então se torna “matéria” pelo volume que é abstraído daí, que então se torna

“matéria” pela densidade que representa e assim por diante. A cada passo, o fenômeno em

questão perde algumas propriedades e ganha outras. Quanto mais nos afastamos da selva de

São Gabriel e nos aproximamos de uma revista científica em ecologia na prateleira de alguém

em Berlim (onde essa informação pode chegar), perdemos particularidade e materialidade

mas ganhamos compatibilidade, universalidade e circulação (Latour 1999a: 70). Esses

fenômenos, “móbiles imutáveis”, circulam por todas essas “cadeias de referência”; não são o

resultado do encontro do “mundo real” com a “mente humana”, mas contem ambos deles em

cada estágio de transformação. A cadeia cuidadosamente construída não pode ser quebrada em

nenhum ponto; observe-se o meticuloso trabalho de rotulagem feito por Raquel e as notas que

ela toma a cada estágio. Conhecimento biológico, tempestades, estudantes de São Gabriel,

instrumentação high-tec, todos possuem efeitos e são afetados uns pelos outros. Mas a ação de

Raquel e de Carlos E e Glaudecy é direcionada obviamente para permitir que essas cadeias de

referência existam enquanto circuitos estáveis que se estendem pelo mundo.

***

Não tornarei mais explícito o que essas redes são e como elas se transformaram

durante o tempo em que as observei, porque tal explicitação demandaria outras 50 páginas.

Outro insight de Latour sobre a prática científica serve melhor para começar a responder

algumas das diferentes questões que eu toquei ao longo do texto até o momento. Para nos

lembrar, essas questões incluem: como ANT aguenta (holds up) ao longo de minha descrição

etnográfica – por exemplo, quais tipos de “escapamento” (slippage) metafórico pode ser visto

na ANT tal como apareceu em minha descrição? Como entender como nas redes que tracei, “a

floresta” ou “a natureza” é emergente, enquanto ao mesmo tempo um ponto fixo para todos os

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pesquisadores?Como podemos tentar entender o modo pelo qual as várias práticas científicas

unidas no Projeto Fronteiras ou no LBA são também marcados por descontinuidades não

apenas na forma de fronteiras disciplinares, mas por pesquisadores que “discordam” da

prática científica de outros? Também, como podemos tentar entender o modo pelo qual mudar

de lugar, seja dos escritórios separados à sala de reuniões gerais, ou do laboratório para a

selva, parece revelar diferentes configurações relacionais do que seja “fazer ciência”?

Uma forma de ver todas as práticas científicas dos pesquisadores que descrevi acima é

examinando como eles constróem “laboratórios” na floresta. Um definição simples e

convencional de laboratório poderia ser um espaço no qual as condições podem ser

controladas de modo que alguns dados possam ser obtidos. Como mencionei, por exemplo, os

micrometeorologistas estão trabalhando para obter um certo tipo de informação da floresta.

Essa informação é aquela que os instrumentos com que se lida de um modo ou de outro são

capazes de extrair do “ambiente”, ou são capazes de fazer o “ambiente” ou a “natureza”

‘falar’ para eles sobre. A relevância desse slant ‘semiótico’ particular para a descrição se

tornará mais clara aqui.

No entanto, essa definição de um laboratório pode ser posta em movimento de

diferentes formas. Um modo que parece interessante é explorado por Latour em um artigo

chamado “Give me a Laboratory and I will Raise the World” (1999 [1983]). Usando como

exemplo o processo pelo qual Pasteur conseguiu “descobrir” a vacina do antrax e se tornou

um nome familiar, Latour discute o potencial de um laboratório para dissolver distinções

tradicionais como micro e macro, dentro e fora. O laboratório oferece as condições nas quais

a escala pode ser invertida, de modo que os pequenos micróbios se tornam fortemente

visíveis, multiplicados em um disco de petri e contados, quantificados e registrados, enquanto

ao mesmo tempo a “hierarquia de forças” é invertida uma vez que a doença epizoótica que

ultrapassava o conhecimento das pessoas da época ficou sob “o controle dos homens”. Além

disso, Latour demonstra como o “contexto macro social” – a sociedade francesa – está de fato

sendo composta no “micro laboratório” através de uma sucessão de deslocamentos de todas as

entidades envolvidas, dos fazendeiros “interessados” aos micróbios, passando pelo próprio

Pasteur.

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Latour traça traduções do laboratório para a fazenda onde os esporos de antrax são

colectados, para o laboratório novamente para multiplicá-los e então para Pouilly le Fort onde

o sucesso da vacina no laboratório é repetido do lado de fora, para todo o sistema agricultural

francês através de escritórios de estatística que provam que a vacina causa uma queda na

incidência de antrax. Da mesma forma, essa série de deslocamentos torna pouco claro o que

está dentro e o que está fora do laboratório, onde a ciência termina e o social começa, porque

o laboratório é estendido a cada estágio, de modo que o cientista não precisa nunca deixar seu

laboratório. O laboratório se torna a fonte inesperada de uma política nova e clara, exatamente

porque tem essa capacidade de inverter forças de hierarquia. E a razão pela qual a vacina se

espalhou por toda a França, e alguns anos depois deste evento se tornou parte da prática

agronômica padrão, é porque, em primeiro lugar, uma rede estatística já existia esperando

para “provar’ o sucesso da vacina e, em segundo lugar, porque as condições de laboratório são

construídas fora do laboratório – “fatos científicos são como trens, eles não funcionam fora

dos trilhos” (ibid:266)242 – isto é, porque as condições de laboratório estão estendidas por

todos os lugares, o “fato” da vacina também está. O fora é dentro e o dentro se espalha para

fora.

Os micrometeorologistas, nas proprias palvras deles, constrói um “laboratório” a partir

de uma rede com o qual ele tenta consertar o Licor (um laboratório que, no fim das contas,

não tem as condições de laboratório e portanto não os permite completar sua tarefa). Além

disso, os instrumentos que estão sendo investigados pelos micrometeorologistas transportam

condições de laboratório para a floresta e tornam possível medir o “fluxo de carbono” ou a

“umidade do solo” de um modo que outros pesquisadores podem entender. Na teoria, este

equipamento poderia fazer isso em qualquer lugar do mundo (embora os

micrometeorologistas, note-se, estejam na torre exatamente porque isso não parece ser o

caso). Como afirma Latour, leis universais são universais somente na medida em que as

condições de laboratório que as produz podem ser replicadas universalmente. O “mundo” e

este lugar onde a torre está Latitude 0 grau 12, 740’N, Longitude 66 grau 45, 884’ S, podem

falar uns com os outros através deste equipamento. Ao mesmo tempo, a enorme floresta

Amazônica é posta sob controle, quantificada e carregada em números (loaded into numbers).

242 “scientific facts are like trains, they do not work off their rails”

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Raquel e Glaudecy e Carlos E estão também construindo laboratórios na floresta. O

laboratório de Carlos E e Glaudecy está condensado em um equipamento muito high tech que

os permite controlar exatamente o influxo de certos fatores escolhidos. Este equipamento

novamente transporta as condições de laboratório para a floresta, permitindo Carlos E e

Glaudecy produzir as inscrições que eles precisam. Um pequeno número de amostras via uma

série de experimentos repetidos (isto é, condições de laboratório repetidas), virão falar por

cada membro existente dessas seis espécies de árvores (ao menos presumivelmente até que

outra amostra com uma “voz mais alta” apareça). Novamente, a distinção entre pequena e

larga escala se torna indiscernível pela extensão do laboratório na floresta e pela forma como

a floresta emerge numa forma purificada e inscrita a partir do encontro com e no laboratório.

Raquel usa equipamentos aparentemente muito menos sofisticados do que aqueles dos

fisiologistas de plantas. Ele tem uma fita métrica, uma fita e fios amarelos e seus olhos. Mas

ela igualmente pode ser vista como construindo seu laboratório, de uma forma muito mais

óbvia a olho nu. Nós gastamos muito tempo construindo as condições que irão permitir a ela

obter os dados que ela precisa. Medindo e marcando suas “parcelas”, limpando as

“parcelinhas” de toda matéria morta, rotulando e identificando as árvores mortas que já foram

contadas, de modo que no final do dia a parcela não pareça mais nenhuma outra parte da

floresta. O quadrado de 100m x 20m foi transformado de modo que pode fornecer a ela com

informações que ela pode usar para falar sobre toda a área de São Gabriel e não apenas lá.

Como me disse outro pesquisador de ciclos biogeoquímicos “quem sabe quem vai usar meus

dados?” Como saber o quão “global” os dados de alguém se tornarão?

Em todos esses casos, é possível discernir as transformações e inversões de escala que

Latour descreve, através da extensão das “condições de laboratório” para dentro da floresta.

Em cada caso essas condições são ligeiramente diferentes (para isso eu devo retornar mais

tarde), mas todos têm o objetivo de obter dados. Mas o que significa “obter dados”? Seja com

os micrometeorologistas, com os fisiologistas de plantas ou o pesquisador em ciclos

biogeoquímicos, o que pareceu estar acontecendo nesses atos de construção era mais como

uma 'eliciação' (elicitation) de algo mais do que uma imposição.

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A torre escondida entre as árvores, o IRGA protegido pelo guarda sol de praia multi

colorido no meio da floresta, a “parcela” marcada com áreas nuas, fita amarela e rótulos –

esses diferentes “laboratórios” eram todos, de modos diferentes, dependentes do seu ambiente

para assumir a forma que tomaram, e ao mesmo tempo estavam moldando seu ambiente de

diferentes modos. Parecia haver uma cumplicidade, um envolvimento “não-natural” ou

surpreendente, com a ação envolvida.

É no próprio ato de tentar delimitar um espaço no qual começar um processo de

transformar a “natureza” em “números” – carregando (loading) o mundo em palavras – que se

molda a “natureza” da natureza que será quantificada e que encontra seu caminho em papers

publicados e discusões que acontecem a milhares de quilômetros de distância. O

relacionamento que o “ambiente” tem com os “dados” é nesse sentido algo inventado

(devised) e particular. Parte do ambiente é “dados”; parte é ruído indesejado – ele “interfere

com os dados”. A partir de uma discussão com Flavio Luizão, eu fico sabendo que o

comportamento dos insetos é uma área do ciclo de carbono na floresta que foi pouco

pesquisada e merece mais atenção, mas para Marta isto é irrelevante para aquilo que ela está

tentando se assegurar. As ações das centopéias e anfíbios impertinentes não são parte disso.

Ela está tentando eliciar (elicit) um certo tipo de informação. Por um lado, como ela me diz,

“a gente sabe que tudo é interligado”, uma conceitualização que parece se aplicar a todas as

diferentes áreas do LBA e fundamentalmente permite que o mundo inteiro eventualmente seja

considerado um só sistema, como exemplificado pelos modelos globais no último capítulo.

Mas, ao mesmo tempo, o mundo é feito de muitos diferentes sistemas, somente um desses

interessa a Marta. Aqui, como vimos nos últimos dois capítulos, a realidade holística

“overarching” não está no centro das atenções. De fato, está sempre além do alcance e, como

tal, não no “centro” de nada. A configuração criada pelo perfil de equipamento e a

combinação (conflation) de conhecimento contido dentro de tais equipamentos tal como

existem na torre produzem um certo tipo de realidade. Marta tem que se assegurar das

condições necessárias para ela e outros que irão utilizá-los para ser capaz de “confiar” nos

dados que ela está coletando. É nesse sentido que ela está persuadindo os instrumentos a falar

para ela. Tanto a informação sendo extraída ou eliciado (elicited) e as dificuldade inerantes a

essas práticas específicas de 'eliciação' (elicitation) fazem a floresta, ou a “natureza” ou o

“mundo” (dependendo de quão longe os pesquisadores estendem seus dados) tomar uma

forma específica, reconhecível para os meteorologistas, mas possivelmente muito obscura

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para, digamos, um geólogo. Da mesma forma, como nota Michael, tudo o que Raquel vê é

“coisa morta”; este é o certo tipo de realidade que Raquel busca, o que não é o mesmo que

busca a equipe de Fisiologia. Seu trabalho não “representa” o “macro” para alguém nos Ciclos

Biogeoquímicos porque há tantos tipos diferentes de ‘macro’, ainda que todos estejam

contidos dentro da rubrica “ciência”. A “natureza” (como a “sociedade francesa”) está sendo

composta de modos muito diferentes dentro do espaço do laboratório fornecido pelos

instrumentos.

Uma breve divagação aqui. Latour também descreve os laboratórios como locais não

tanto onde o conhecimento se acumula, mas onde tentativas e erros são acumulados e

registrados longe de olhares curiosos, de modo que o cientista pode sair do seu laboratório

finalmente com um “fato certo”. Os cientistas só podem fazer isso, porém, porque a

quantidade de erros que ele ou ela registraram e inscreveram tornam as reivindicações de

quaisquer outros cientistas com menos erros muito menos poderosas do que suas próprias.

Aqui há uma interessante inversão que imagino que se aplique aos micrometeorologistas:

estar “errado” pode também ser “certo”. O culpado que se prova inocente, como vimos, é um

“erro” que algumas vezes oferece um aumento na certeza (que é onde eu estava chegando

quando sugeri que “certeza” e “incerteza” de algum modo funcionam juntos). Mas, ao mesmo

tempo, não há, novamente, sempre um sentido de acumulação de erros. No trabalho de Carlos

E e Glaudecy, número de repetições do experimento é o que conta em última instância –

quanto mais repetições, melhor, eles dizem. Cada repetição soma-se ao perfil crescente de

taxas de fotossíntese daquela espécie em particular e os torna mais capazes e confiantes para

estender essas entidades para artigos publicados. Mas os micrometeorologistas estão lidando

com entidades que são muito mais inconstantes do que essas. Os erros que ocorrem não

podem sempre agir no sentido de aumentar a carga de certeza que é desejada, como

evidenciada pela forma na qual os micrometeorologistas oscilam de forma vertiginosa entre

entidades, possibilidades, certeza e incerteza.

***

Vou tentar agora mudar na direção de explorar com mais detalhe exatamente como os

cientista do LBA que acompanhei “representam” seus “macros” ou suas realidades. Isso não é

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apenas uma questão do que significa “representar”, mas, é claro, sobre o que a “realidade”

deve ser. O movimento crucial é aquele que parece aproximar a ambos. Na Invention of

Modern Science (2000a [1993]), Stengers se propõe a árdua tarefa de descrever a

singularidade das ciências modernas, de modo a nem reduzi-las nem a elas sucumbir. Um dos

pontos de convergência mais inspiradores nos trabalhos de Latour e Stengers é sua insistência

de que a prática científica e a prática política têm essencialmente o objetivo de perguntar as

mesmas questões. Como escreve Latour: “Busco simplesmente enfatizar uma vez mais que

não há dois problemas, de um lado as representações científicas e do outro a representação

política, mas um só problema: Como se pode conseguir que aqueles em nome dos quais

falamos possam falar por si mesmos? (2004a:70, see also Latour 1988)243. Mencionei que

considero a ênfase da ANT na semiótica fértil devido ao modo como ela contraintuitivamente

desloca o discurso. Gostaria de me concentrar no modo como pensar sobre a prática científica

desta maneira e examinar esse movimento de deslocamento como faz Stengers pode nos

ajudar a entender algumas das questões que coloquei anteriormente. Uma vez que o

argumento de Stengers é sofisticado e complexo, uma breve investida sobre alguns dos seus

pontos principais será necessária para mostrar o quanto eles ressoam com as questões que

surgiram no meu trabalho de campo, muitas das quais voltarei no último capítulo.

Explorando algumas das principais críticas da ciência, incluindo as críticas radicais

feministas e as sociológicas construtivistas, Stengers aponta que “os cientistas sabem que eles

estão inseridos em redes sociais... Mas eles também sabem que não são apenas isso (2000a

[1993]: 12-13)244 e que a tarefa que nós (aqueles que estudam a ciência) devemos tomar para

nós mesmos é uma que portanto necessita que apliquemos o “princípio de irredução”

(ibid:16)245 que marca a passagem do “isso é aquilo” para “isso não é aquilo” ou “não apenas

aquilo” e prescreve “o recuo da reinvindicação de saber e de julgar” (ibid: 16)246. Esse recuo é

243 “I seek simply to emphasize once again that there are not two problems, one on the side of the

scientific representations, and the other on the side of political representation, but a single problem: How can we go about getting those in whose name we speak to speak for themselves?”. Ver também Stengers: “A mesma questão aparece em relação à pessoa que afirma falar pelos outros e em relação à teoria que afirma representar os fatos: como se reivindica o reivindicador legítimo? (Stengers 2000a [1993]: 61)

(“The same question presents itself with regard to the person who claims to speak for others as it does with regard to the theory that claims to represent the facts: How does one claim the legitimate claimant?” (Stengers 2000a [1993]: 61))

244 “scientists know that they are embedded in social networks…but they also know that they are not only that”

245 “principle of irreduction” 246 “retreat from the claim to know and to judge”

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importante porque é ao reivindicar ser capaz de “conhecer realmente” o que a ciência é – seja

um tirano hegemônico ou uma construção social - as críticas feministas ou construtivistas não

apenas 'compram' o discurso científico ao afirmar que os cientistas de fato 'sabem' o que estão

fazendo, mas também se contradizem ao denunciar esse discurso ao mesmo tempo em que

usam sua lógica para comprovar as suas próprias posições estabelecidas (knowing) (essa

crítica é o que Stengers chama de argumento de “retorsion”).

Tomando as posições de Popper, Kuhn e Feyerabend, ela destila de cada um deles um

certo aspecto que é necessário para entender o que é singular na ciência moderna. De Popper

ela destaca que “a situação não é redutível ao seu meio de emergência” (ibid: 48)247, mas não

apenas isso; de Kuhn ela sublinha que a ciência preserva uma autonomia e não pode ser

reduzida a uma “leitura sociológica” porque um paradigma é uma prática, “um modo de

fazer... uma intervenção, não apenas um julgamento” (ibid: 49)248 e que, para interpretar as

ciências “é agora necessário ir até os próprios cientistas e não mais até o seu 'contexto'” (ibid:

50)249, mas não apenas isso; de Feyerabend, ela traz a noção de que a ciência não pode ser

entendida de modo separado de sua tradição histórica, mas não apenas isso.

Stengers defende o “princípio de irredução” como o meio pelo qual dirigir nosso

curso. O princípio de irredução deve ser aplicado ao estudo da própria ciência (ibid: 42),

“recusando-se a permitir que uma situação seja reduzida ao que a passagem do tempo nos

permite dizer sobre ela hoje”, sem, ao mesmo tempo, fundar “um privilégio para as ciências,

que sozinhas escapariam à análise sociológica” (ibid: 58)250. Ela propõe uma abordagem que

recusa chamar o apelo científico à objetividade e à realidade como “folclore” ou “mitos”, mas

também é capaz de “rir” disso – reaprender a gargalhada de Diderot que gostava e respeitava

D’Alembert “sem se deixar impressionar por ele” (ibid: 112). “Nesse sentido, ironia e humor

constituem dois projetos políticos distintos, dois modos de discutir sobre as ciências e de

produzir debates com cientistas. A ironia opõe poder a poder. O humor produz (na medida em

247 “a situation is not reducible to its milieu of emergence”

248 “a way of doing…an intervening, not just a judging”

249 “it is now necessary to go through the scientists themselves…and no longer through their ‘context’”

250 “refusing to allow a situation to be reduced to what the passing of time gives us the power to say about it today” ... “a privilege for the sciences, which alone would escape sociological analysis”

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que ele mesmo consegue ser produzido) a possibilidade de uma perplexidade compartilhada

que efetivamente torna iguais aqueles que consegue aproximar. A esses dois projetos

corresponde duas versões distintas do princípio da simetria: “um instrumento de redução ou

um vetor de incerteza” (ibid: 66)251. É este princípio de irredução ou humor, em oposição à

redução e ironia, o que permite a ela formular uma descrição particularmente perspicaz do que

é singular sobre a ciência moderna e também o que é internamente divergente.

Stengers situa a emergência da ciência moderna no laboratório de Galileu, onde ele

conseguiu não apenas descrever o movimento de um pêndulo ideal (aceleração dos corpos),

mas também silenciar todas as outras “ficções” por meio de seus próprios poderes. “Ficção”

aqui é usado de um modo específico252. Afirmações científicas são ficções, mas são “ficções

muito específicas, capazes de silenciar aqueles que afirmam “é apenas uma ficção” (ibid:

80)253. O que é científico, portanto, habita este tipo de domínio relativista-absolutista que se

tornou familiar para os estudantes de Estudos de Ciência e Tecnologia – um domínio de

pessoas que reivindicam “a verdade” ou se opõem a ela, o que é igualmente uma “ficção

particular”254. Galileu fez sua reivindicação de modo a “apagar” a si mesmo e deixar o

“plano inclinado” falar – “o que é apresentado como tendo sido reconquistado é o poder de

fazer a natureza falar” (ibid:80). Na descrição de Stengers, “Galileu se apaga de modo a

atribuir ‘fala’ à coisa que vai silenciar os outros. Entra o plano inclinado.” (ibid: 83)255. O

plano inclinado permite o fenômeno falar, o que ele faz, por sua vez, para silenciar as

reinvidicações rivais de outras “ficções” sobre a “verdade”. E este “mundo ficcional” que

Galileu cria não é simplesmente aquele que ele sabe como controlar ou “interrogar”, mas um

mundo em que qualquer pessoa pode interrogar de um modo diferente do dele. Este é o

significado do objetivismo. A ênfase de Stengers no laboratório é importante. Ligeiramente

diferente de Latour, ela cita o poder do laboratório enquanto lugar da invenção de um tipo

particular de poder – o poder da ciência moderna. Não é somente um meio para inverter 251 “In this sense, irony and humour constitute two distinct political projects, two ways of discussing the

sciences and of producing debate with scientists. Irony opposes power to power. Humour produces (to the degree it itself manages to be produced) the possibility of a shared perplexity, which effectively turns those it brings together into equals. To these two projects, there correspond two distinct versions of the principle of symmetry: an instrument of reduction, or a vector of uncertainty”

252 Aqui, Stenger usa “ficção” no sentido deleuziano. 253 “very specific fictions, capable of silencing those who claim “it’s only a fiction””

254 Latour (2005) e Strathern (1988a) também utilizam a noção de “ficção”, de modos particulares que devo abordar no último capítulo.

255 “Galileo effaces himself in order to leave “speech” to the thing that will silence the others. Enter the inclined plane”

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relações de hierarquia e provocar mudanças em escala, mas é o lugar em que a relação sujeito-

objeto foi estabelecida – isto é, quem faz as pergunta (o sujeito cientista) e quem as responde

(o objeto). (A diferença é importante porque é aqui que ela localiza os meios pelos quais nós

podemos dar conta das diferenças entre as ciências sem “ratificar sua hierarquização” (ibid:

47). Voltarei a isso mais tarde).

Voltamos então para a primeira citação que eu tirei de Stengers, no segundo capítulo:

“Nas ciências modernas, podemos ver a invenção de uma prática original de atribuição da qualidade

de ser um autor, jogando com os dois sentidos que isso opõe: o autor é um indivíduo, animado de

intenções, projetos, ambições; e o autor é alguém que cria autoridade. Não é uma questão de uma

ingenuidade que poderia ser criticada, por exemplo, pelas teorias literárias contemporâneas, mas diz

respeito à regra do jogo e a uma invenção imperativa. Os cientistas se reconhecem e a seus colegas

como “autores” no primeiro sentido do termo. Isso importa pouco. O que importa é que seus colegas

são constrangidos a reconhecer que eles não podem transformar a qualidade dos autores em um

argumento contra eles, eles não podem localizar a falha que os permitiria afirmar que alguém que

reivindica ter “feito a natureza falar” na verdade fala em seu lugar. Este é o significado próprio do

evento que constitui a invenção experimental: a invenção do poder de atribuir para às coisas o

poder conferido ao experimentador para falar em seu nome” (ibid: 89, ênfases minhas)256.

Podemos agora voltar para a minha primeira conversa com Raquel: ela não inclui

dados sobre seus “projetos, ambições ou intenções” ou qualquer outro “atalho subjetivo”, não

porque ela seja tímida e não queira falar sobre isso, mas porque não há lugar ou espaço para

eles; ela não está interessada nisso, nem qualquer outra pessoa que ela tem interessar com seu

trabalho. O teste que ela, como cientista, está enfrentando, é de outro tipo – tentar dar à

natureza o poder de dar a ela o poder de falar em seu nome. Essa relação distribuída é crucial.

256 “In the modern sciences, we can see the invention of an original practice of attribution of the quality of being an author, playing on the two senses that it opposes: the author as individual, animated with intentions, projects, ambitions; and the author as someone who creates authority. It is not a question of a naiveté, which could be critiqued, for instance, by contemporary theories of literature, but of a rule of the game and an imperative of invention. Scientists know themselves and their colleagues as “authors” in the first sense of the term. This matters little. What matters is that their colleagues are constrained to recognize that they cannot turn the quality of authors into an argument against them, that they cannot localise the flaw that would allow them to affirm that someone who claims to have “made nature speak” has in fact spoken in its place. This is the very meaning of the event that constitutes the experimental invention : the invention of the power to confer on things the power of conferring on the experimenter the power to speak in their name”

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Raquel está “criando sua autoridade” ao “fazer a natureza falar”. Latour nomeia isso em

termos de “proposições” (1999a, 2000): “uma afirmação diz em palavras o que uma coisa é.

Uma proposição implica que nós somos feitos “falar deste modo por aquilo que está sendo

falado” (2000:374)257 e, em seguida, referindo-se ao lugar do observador nisso: “aquilo que

permitimos falar de modo interessante nos permite falar de modo interessante” (2000: 376)258.

Encontramos a noção de proposições (tomada de Whitehead), quando no último capítulo eu

expliquei a descrição de Latour sobre elas como “ocasiões” em que as entidades podem ser

articuladas de modo a mudar propriedades e se tornar “real”. Isso forneceu uma abertura para

direcionar a discussão no sentido de demonstrar a necessidade de prestar atenção para aquilo

que os modeladores estavam me dizendo, não o que pensei que estavam afirmando mas o

modo pelo qual o mundo e o modelo de diferentes modos se modificam através de suas ações.

Eu irei desenvolver esta noção de proposição de um modo diferente neste capítulo.

A agência distribuída é em certa medida uma premissa implícita da ANT – a ação é

deslocada, incerta e emergente, assim como o discurso/a fala. A ênfase no par humano/não-

humano é importante porque permite que toda a multitude de entidades que vimos sejam

levadas a ter igual espaço de fala, como na micrometeorologia, por exemplo: “tal como a

noção de fala/discurso na seção anterior designava não alguém que estava falando sobre uma

coisa muda, mas designava um impedimento, uma dificuldade, uma gama de posições

possíveis, uma incerteza profunda, do mesmo modo o par humano/não-humano não se refere

à distribuição dos seres do pluriverso, mas a uma incerteza, uma dúvida profunda sobre a

natureza da ação, toda uma gama de posições relativas aos experimentos que tornam possível

definir um ator” (Latour 2004a: 73)259. Isso também implica que “incerteza” e “risco” não são

atributos a serem superados, mas devem, ao invés disso, formar a base das nossas tentativas

de entender. Devo voltar para isso, já que Latour, em ambas as citações, está aproximando

muito claramente aquilo que nós cientistas sociais fazemos daquilo que os primatólogos ou

biólogos fazem. Isso é significativo. O importante aqui é a idéia de que somos feitos falar por

257 “a statement says in words what a thing is. A proposition implies that we are made to speak in this way by what is talked about”

258 “we are allowed to speak interestingly by what we allow to speak interestingly”

259 “just as the notion of speech, in the preceding section, designated not someone who was speaking about a mute thing, but an impediment, a difficulty, a gamut of possible positions, a profound uncertainty, so to the human-nonhuman pair does not refer us to a distribution of the beings of the pluriverse, but to an uncertainty, to a profound doubt about the nature of action, to a whole gamut of positions regarding the trials that make it possible to define an actor”

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aquilo sobre o que falamos e isso é um refinamento da ANT, na medida em que isso está

engendrando um tipo muito particular de relação emergente. Não que qualquer entidade seja

“habilitada” (enabled) numa rede por um certo número de outras entidades, mas que, ao falar,

uma entidade se introduz na rede e é habilitada por aquilo que está sendo falado.

A formulação de Stengers é talvez um ponto mais claro para começar. No último

capítulo eu descrevi esta formulação como evocando um “agencement recursif”, um tipo de

agência recursiva distribuída. Isso não apenas ilumina os comentários que Raquel fazia sobre

seu trabalho, mas também captura muito bem a impressão geral que eu fiquei depois do

trabalho de campo. Eu não quero dizer que o recurso a tais comentários gerais sejam um fator

definitivo na análise, mas como espero ter deixado claro, eles têm a capacidade de pôr minha

descrição em movimento. A sensação que tive foi a de uma elucidação feita com

cumplicidade.

A construção cuidadosa de laboratórios que pareciam tão frágeis, o uso temporário que

nós estávamos fazendo da própria floresta, a forma como os micrometeorologistas persuadiam

e adulavam cuidadosa e pacientemente seus instrumentos dizendo a eles o que precisavam

ouvir – tudo isso parece encapsulado de forma muito astuta na citação de Stengers. A relação

entre o pesquisador e a floresta era tal que permitia uma ação em ambos os lados, sem se

reduzir a meros “resíduos” ou a resultados produzidos pelo outro. E essa “cumplicidade”

engendra algo que possui algo de monstruoso, como no caso do cyborg; uma hibridez

(hybridity) “ilegal” - um reposicionamento de coisas convencionalmente tidas como dadas –

que pode de fato estender nossa compreensão.

Por exemplo, o modo como esta formulação recursiva rearruma a configuração

convencional das relações entre a construção da prática científica e a “realidade” ilumina a

questão de como, nas nossas conversas, a “natureza” permanece como um referente fixo e, ao

mesmo tempo, algo específico que esses laboratórios permitem que seja construído.

“Representar a natureza” não é construi-la de modo a reduzir seu poder e tornar a “realidade”

em “mito”. Como nota Stengers:

“Procedimento, verdade e realidade engajam-se sob o modo de um novo modo de existência e

de fazer existir, em que o procedimento produz a verdade em relação a uma realidade que ele

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descobre-inventa; em que a realidade garante a produção da verdade se os constrangimentos do

procedimento são respeitados; em que o cientista submete-se a um tornar-se que não pode ser reduzido

à simples possessão de um conhecimento” (2000a [1993]: 92)260

A natureza é a única autoridade que os pesquisadores reconhecem, o ponto fixo ao qual eles

voltam sempre. Mas eles sabem também que, para que esta autoridade lhes dê autoridade,

para que isso seja feito, é necessário muito trabalho. A “natureza” e a prática são deste modo

“reinventadas” junto (ibid: 94). Trata-se de um empreendimento arriscado, que requer

tentativas, erros e incerteza para se entrar e para permitir a entrada de outras entidades que

estejam interessadas em questionar, objetar e testar. Um empreendimento em que permite-se

que não-humanos, tanto quanto humanos, tenham sua voz. Algo em que, como Jair destaca

para mim, ser “imutável” é ser “testável”.

Portanto, os micrometeorologistas (e, note-se, isso ressoa com o modo como Eduardo

Leonardo falou sobre “realidade” no último capítulo: ‘quanto real eu quero fazer no meu

estudo’) estão lidando exatamente com essa invenção de um poder que recursivamente

habilita. Eles estão carregando (loading) seus equipamentos com certeza, assegurando-se que

eles de fato tenham o poder de permiti-los ter o poder de falar em seu nome. E se a

recompensa por ser bem sucedido é alta, o risco de queda também é grande. No mínimo

porque os dados sendo produzidos pela torre em São Gabriel são vitais para fornecer

informações sobre a “floresta primária” e intenciona-se utilizá-los em artigos e papers por

todo o mundo. Como pessoa responsável por esta torre, Marta perde o sono com sua

reticência.

E a minha outra questão sobre como é que espaço e prática parecem se relacionar um

com o outro; que “no campo, tudo muda”, mas ao mesmo tempo todo pesquisador está

“fazendo ciência”; e não apenas isso, mas mesmo onde há descontinuidades e

desentendimentos, cada pesquisador é parte do LBA quanto projeto unificado com um

objetivo único? Aqui eu acho que o trabalho de Stengers oferece uma direção mais clara do

260 “Procedure, truth and reality engage in the mode of a new way of existing and making exist where the procedure produces truth with regard to a reality that it discovers-invents; where reality guarantees the production of truth if the constraints of the procedure are respected; where the scientist submits to a becoming that cannot be reduced to the simple possession of a knowledge.”

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que o de Latour, tal como o caracterizei até o momento. A idéia de que pode-se permitir que

diferenças apareçam de processos em rede é um bom ponto de partida, mas o que se deve

fazer com essas diferenças? Isso se combina com o fato de que “distribuir” uma rede deste

modo tem como efeito o esvanecimento das distinções sócio-estruturais convencionais,

exatamente como Latour pretende e prevê – a ciência aparece como uma prática sócio-

cultural, e, enquanto tal, a possibilidade de traçar seus contornos específicos é tornada

possível. Porém, como se chega a entender o modo como a ciência é uma prática social

diferente de qualquer outra está em risco aqui, um tema que Latour, ao mesmo tempo que

sublinha a importância disso, não torna tão explícito quanto poderia.

Stengers, num certo tipo de “idealismo concreto”, situa todas as ciências modernas, de

um modo ou de outro, como tendo surgido depois deste “evento”261 no laboratório de

Galileu, em que o plano inclinado “conferiu aos corpos que caem o poder de conferir a

Galileu o poder de definir como o movimento de aceleração deveria ser interpretado”

(Stengers 2007)262. Esta formulação é o que todas as ciências têm em comum e, de fato, como

eu indiquei, Stengers e Latour deixam claro que isto é uma questão política também. Mas a

preocupação de Stengers é também com os modos nos quais as ciências modernas divergem.

No laboratório, ou nas “ciências experimentais”, a situação foi “purificada”, controlada, de

modo que aquilo a que se pede ser uma “testemunha confiável” da ficção (que precisa sileciar

todos os outros), possa ser o árbitro de um poder insuperável, exatamente porque tais testes

podem ser repetido potencialmente ad infinitum, se as condições de laboratório são satisfeitas,

e ninguém pode interpretar os resultados de modo diferente. Certamente, no caso de Raquel,

as “parcelas” de floresta parecem preencher parcialmente os critérios para serem consideradas

um laboratório – como ela diz, ela quer controlar o que entrar nas parcelas. Então elas são

limpas de toda matéria, esvaziadas de modo a fornecê-la toda a informação que ela precisa,

dados em que ela pode confiar para falar em nome da natureza. Mas, ao mesmo tempo, como

261 Stengers emprega “evento” de um modo muito particular (também a partir de Deleuze), como um

momento formado pelas interpretações que se seguem ao evento – ele cria uma diferença, mas Stengers não especifica o que esta diferença significa. Ver Stengers 2000 [1993]:67-69

uses ‘event’ in a very particular way (also drawing on Deleuze), as a moment which is figured by the

interpretations of it that come afterwards – it creates difference, but does not specify what that difference means. See Stengers 2000 [1993]:67-69

262 “conferred to falling bodies the power of conferring on Galileo the power to define how their accelerated motion was to be interpreted”

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vimos, ela não pode controlar tudo. Ela tem que admitir que isso é o melhor que ela pode

fazer nessas circunstâncias, que você sempre tem que “encontrar um jeito”. Desejo me

concentrar agora nessas circunstâncias, pois elas fornecem um modo muito significativo para

se observar a natureza particularmente distinta da prática científica, em oposição a qualquer

outra. Além disso, elas servem para sustentar as diferenças específicas que se precipitam da

minha etnografia.

A relação particular que Latour aponta quando ele usa a noção de proposição é

inerentemente dialética. Isto é, há as posições “falante” e “falado” mesmo se essas posições

contém dentro de si múltiplas entidades. Latour descreve o par humano/não-humano como um

modo de se desviar da distinção sujeito-objeto, o que vimos que adiciona uma grande

quantidade de entidades para qualquer análise sobre o que a “ciência em ação” envolve.

Porém, Stengers faz um uso mais interessante desta distinção. Ela sugere que “é interessante

transformar uma contradição aparente em uma tensão que já habita o grupo em questão”

(2000a [1993]: 130)263. Como apontei, parece que os pesquisadores com quem trabalhei estão

criando laboratórios no campo. Outro modo ainda é se pensar o laboratório como o local onde

o sujeito interroga o objeto, ou onde a relação sujeito-objeto é formada enquanto uma relação

marcada pela diferença de poder. O sujeito se relaciona com o objeto de certo modo, distinto

do modo como se relaciona com outro sujeito. Mas “da perspectiva em que a experimentação

é afirmada como uma prática singular - o que não pressupõe, mas cria tanto o sujeito como o

objeto e suas relações – nenhuma versão dessas relações, não importa o quão purificadas,

pode reivindicar uma validade geral” (ibid: 133)264. Assim, dentro do quadro da concessão

recursiva da agência, o que é sujeito e o que é objeto encontra seu significado como uma

questão prática e não filosófica. Se o que Stengers está tentando fazer ao empregar o

princípio da irredução é, pelo vetor do “humor”, separar a “ciência” do “poder”, mas sem

separá-la da “verdade” (nem tornando-a passível de ser reduzida a outras ficções, nem

reduzindo-a a um ‘mito’) e, ao mesmo tempo, descrever sua singularidade, ela não pode

simplesmente eliminar esta relação sujeito-objeto, porque esta distinção define o que é ciência

e o que não é, o que é colocado à prova e o que não é. Isto é, esta distinção dá conta da

263 “it is interesting to transform an apparent contradiction into a tension that already inhabits the group in question”

264 “from the perspective where experimentation is affirmed as a singular practice, which does not presuppose but creates both subject and object as well as their relations, no version of these relations, no matter how purified, can claim a general validity any longer”

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singularidade da ciência, em oposição ao que não é ciência. Mas a relação é modificada: “é

reconhecida, não como um direito, mas como um vetor de risco, um operador de

“descentramento”. Não atribui ao sujeito o direito de conhecer um objeto, mas ao objeto o

poder (a ser construído) de colocar o sujeito à prova” (ibid: 134)265. Isso dá conta de uma

assimetria emergente, uma inversão das relações sujeito-objeto tradicionais, de uma forma

que talvez a descrição de Latour dos humanos/não-humanos não faça de modo explícito.

Este é, portanto, o primeiro elemento que considero esclarecedor. A realidade com que

os cientistas estão lidando não é um mito; mas também não é uma entidade muda esperando

para ser descoberta. Ela põe os cientistas à prova. Os pesquisadores que acompanhei estão

negociando esta invenção de um poder deslocado em que nem sempre se obtém certeza.

Assim, a caracterização das ciências modernas “não é mais uma questão de vencer o poder da

ficção, é sempre uma questão de colocá-la à prova, de submeter as razões que inventamos

para uma terceira parte capaz de colocá-las em risco” (ibid: 134)266. Isto é, de fato, um

construcionismo-anti construtivista. Atribui-se “realidade” à terceira parte, de modo a

ameaçar ou descentrar, não para confirmar. Inventar o poder de atribuir à natureza o poder de

autorizá-lo a falar em seu nome torna o poder algo muito mais debatido e incerto. De fato, não

se trata de poder, no sentido de que ele nunca está fixo. A fixidez com que vemos os

micrometeorologistas falarem sobre a Natureza está sempre sendo minada pelo fato de que

esta mesma Natureza os ultrapassa em complexidade. Deve-se fazer a Natureza ser uma

autoridade, mas uma autoridade que desestabiliza, porque não é mais o caso de ter suas

próprias perguntas confirmadas ou refutadas, mas de provocar o seu objeto a fazer as

perguntas e retrabalhar sua prática em torno deles. Por sua vez, isso significa que “como os

sofistas disseram, se ‘o homem é a medida de todas as coisas”, é sempre uma questão de

inventar práticas graças as quais essa afirmação perde seu caráter estático e relativista e entra

em um dinâmica no qual nem o homem nem a coisa é o dono da medida, em que a invenção

de novas medidas, isto é, novas relações e novos testes, é o que distribui as respectivas

identidades de homem e coisa” (ibid: 134)267. A ‘produção de testemunhas confiáveis’ no

265 “it is recognized not as a right, but as a vector of risk, an operator of “decentering”. It does not attribute to the subject the right to know an object, but to the object the power (to be constructed) to put the subject to the test”

266 “no longer a question of vanquishing the power of fiction, it is always a question of putting it to the test, of subjecting the reasons we invent to a third party capable of putting them at risk”

267 “if, as the Sophists said, “man is the measure of all things”, it is always a question of inventing

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laboratório de Galileu é reinventada, rearrumada e reconfigurada nas ciências modernas.

Voltando para Latour, os cientistas são feitos falar por aquilo sobre o que falam e isso é

uma dialética móvel, que tem a ver com 'recomeço' (recommencement) e reinvenção.

Lembramos aqui da teoria de Holbraad do mótile lógico, em que ambos os lados estão num

estado de tornar-se (“not-yet”). Mas como mencionei no último capítulo, as relação específica

entre esses dois é importante. Em que medida o cientista é habilitado para falar por aquilo

sobre o que ele/ela está falando? A noção de porta-voz, aquele ou aquela que falam em nome

do mundo, é uma noção que considero útil para refletir sobre minha etnografia e para dar

conta da cumplicidade que observei entre os pesquisadores e a floresta ou a “natureza”. Mas

essa relação contém suas próprias variações. A questão premente aqui é em que medida uma

transformação ontológica se efetua (para usar o vocabulário de Holbraad).

Stengers caracteriza a prática científica moderna modificando essa distinção sujeito-

objeto, que coloca o próprio mundo como o ator central que “subjaz e provoca aqueles que o

descrevem” (2000a [1993]: 47)268. Mas essa própria modificação forma a base para se levar

em conta as divergências dentro das práticas científicas. Stengers apresenta a modelação

climática – que mencionei no capítulo anterior – como um exemplo de um tipo de prática de

laboratório que está reinventando as ciências modernas do modo como ela descreve. Um

modelo não é uma teoria. Enquanto esta última desconta todas as outras possibilidades ao se

prolongar universalmente, o primeiro traça conseqüências e “se apresentam enquanto ficções”

(ibid: 135)269.Vários modelos diferentes podem coexistir alegremente. Como vimos, cada um

deles definido por variáveis diferentes, cada um tão potencialmente real ou teórico quanto o

outro. Enquanto as simulações matemáticas relativas à prática científica à la Galileu estão

preocupadas em atribuir o mesmo tipo de certeza – aquela em que aquilo de que falo e em

nome de que falo não pode ser contestado – a modelagem está preocupada com a matemática

da imaginação e da especulação. Isso talvez explique a tamanha confusão que fiz no capítulo

anterior. A modelagem climática ocorre em um “laboratório de informação” (em oposição ao

practices thanks to which this statement loses its static, relativist character and enters into a dynamic in which neither man nor thing is the master of measure, where it is the invention of new measures, that is, new relations and new tests, that distribute the respective identities of man and thing.”

268 “subsists and provokes those who describe it”

269 “say of themselves that they are fictions”

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“laboratório material” e, enquanto tal, “muito mais rápido, suave e dócil” (ibid: 137)270).

Pode-se, como Eduardo Leonardo me disse, “brincar de ser Deus”, sendo que a palavra

operativa que repito é “brincar”. Como tentei demonstrar, pode-se subir e descer em escala e

mudar a relação de representação-real. E, como Eduardo Leonardo também me disse, você

nunca possui certeza absoluta. Stengers aponta que a marca das ciências de campo é uma

“incerteza irredutível” (ibid: 144); tais práticas científicas não trazem provas estáveis, mas

incertezas e geram controvérsias.

Stengers, portanto, marca uma diferença entre tipos de laboratórios. O aparato que se

encontra no laboratório de Galileu que permite a purificação do fenômeno em questão e a

certeza absoluta que você pode falar em seu nome não é algo presente nas ciências de campo

(field sciences). Ao trabalhar com a distinção de Stengers entre os dois – um marcado pela

certeza e o outro pela incerteza; o primeiro com uma relação sujeito-objeto que apaga o

sujeito de modo a deixar o objeto falar para o mundo, o segundo com uma relação que não

consegue calar o mundo – sugiro aqui que o LBA é parte das “ciências de campo”. Ao mesmo

tempo, há diferenças que surgiram na minha viagem para São Gabriel que precisam ser

analisadas.

O outro modo como Stengers distingue as ciências de campo das ciências

experimentais é o papel que o mundo desempenha aí. E aqui há um aspecto muito mais

“prático” a ser levado em conta. Quando os pesquisadores com que estive vão para o campo

eles marcam uma diferença clara – “tudo muda no campo”, dizem-me. Há pesquisadores que

permanecem no escritório e aqueles que “põe o pé na lama”. Então mesmo dentro da

descrição ampla do LBA como praticando uma “ciência de campo”, há uma diferença a ser

levada em conta. Esta diferença, sugiro, é o mundo – mas em um sentido ligeiramente

diferente daquele de “terrain” que Stengers atribui a ele (2000a [1993]: 141). É mais

parecido com o que ela chama “a força das coisas” (“the force of things”) (ibid: 121),

exatamente aquelas forças que Galileu excluiu de seus experimentos – atrito, vento, coisas

vivas. O mundo interfere no campo de um modo que tem tudo e nada a ver com os dados

sendo produzidos. Enquanto “terrain”, o mundo ultrapassa os esforços do pesquisador no

campo e não pode ser feito falar em sua inteireza. Nas ciências puramente experimentais,

270 “much more rapid, supple and docile”

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todas as variáveis são controladas e sua variação controlada é o que cimenta a “verdade”, a tal

ponto que essa variação é o que permite-as ser aplicadas universalmente, em todos os tempos

e lugares. Porém, isto está ausente das ciências de campo – o “terrain” não autoriza seus

representantes a fazê-lo existir em outro lugar a não ser onde está – porque “o autor sabe que

seu terreno não fará dele um juiz… nenhum terreno é válido para todos… o que um terreno

permite-nos confirmar o outro pode contradizer (ibid: 139)271. Isso se evidenciou quando me

disseram que perguntar sobre o que é o macro é uma questão impossível – pode-se falar pela

própria área, nada além disso. Como “a força das coisas”, o mundo interfere de outros modos.

Mesmo que Carlos E e Glaudecy façam o maior número de repetições que podem, devido à

chuva e às condições de se fazer ciência no meio da floresta Amazônica, eles só têm tempo

para fazer cinco repetições para cada espécie – e eles terão que lidar com isso, embora isso

não seja suficiente. Diferenciar as ficções aqui tem menos a ver com poder, isto é, com o

poder de reduzir universalmente, do que com uma tentativa de se chegar ao modo como a

Amazônia funciona enquanto inventada pelas práticas que procuram registrá-la. Os

pesquisadores não estão introduzindo variáveis para estabilizá-la como um universal, mas a

estão delimitando como um fenômeno especificamente localizado. E este fenômeno possui

uma força própria.

Assim, o mundo se expressa de várias formas aqui. Ir ao campo não significa somente

mudar a relação de alguém com um objeto. Permitir que o seu objeto coloque você em teste

não é (na prática científica que observei) algo sempre separável dos elementos que aí estão de

fato: levar chuva, ser mordido, ficar com fome e cansado; ter que lidar com jacarés no rio em

que você toma banho e aranhas do tamanho de um prato no seu equipamento. Embora mais

humildes do que, digamos, a força do atrito, todas essas coisas são excluídas na construção de

um laboratório; ou, antes, o laboratório é construído para exclui-las. E elas são inseparáveis da

ciência particular feita nos trópicos, cuja a prática tem por objetivo entender os “trópicos”

enquanto entidades particulares. O que é feito no campo não pode ser feito no laboratório,

assim como o que é feito no laboratório não pode ser feito no campo. Para os pesquisadores

com quem trabalhei, a prática e o local não estão sempre separados. Tudo muda no campo

porque você está no campo, não somente porque você “modifica a relação de sujeito e 271 “the author knows that his terrain will not make him a judge...no terrain is valid for everyone...what one terrain allows us to confirm another one can contradict”

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objeto”. Essa diferença que eles marcam é importante, embora deva ser examinado em que

medida “ir ao campo” para os pesquisadores do LBA é ou não análogo com o “ir ao campo”

para Stengers. Portanto, há uma diferença, para os pesquisadores com quem falei na

expedição, entre os modeladores e eles. Ao mesmo tempo, não há. Pois esses “pesquisadores

de campo” também constróem laboratórios, também controlam tanto quanto podem. É sua

modificação comum da relação sujeito-objeto o que explica como tanto os modeladores

quanto Raquel estejam ambos “fazendo” ciência. O mundo está fazendo perguntas e o

cientista tenta seguir essas perguntas da melhor forma que pode, perseguindo-as de modo a

estabilizar a autoridade tanto do que eles dizem quanto daquilo que os permite falar. Mas

essas questões são específicas deste modelo, deste “terrain”, a floresta Amazônica, esta área

ao lado de São Gabriel, estas seis espécies de árvores. Essas também são perguntas de

interesse para a “comunidade científica”; não são de modo algum questões que o mundo

poderia colocar. Assim, o mundo existe enquanto um objeto que objeta e essas objeções são

diferentes – algumas estão dentro e outras estão fora da esfera da publicação científica. Mas a

extensão em que aqueles que não são “interessantes” podem tornar-se interessantes é clara. E

a extensão em que pode-se permitir uma divisão clara entre “terreno” e “a força das coisas”

depende não apenas de como, mas de onde se faz sua ciência.

“Fazer existir” (Stengers 2000: 144) possui significados distintos para as ciências de

campo e para as ciências experimentais. Não se trata de uma questão de provar, mas de

seguir, monitorar e registrar. Ao mesmo tempo, sugeri que os cientistas de campo que

acompanhei também estão envolvidos em fazer laboratórios. Como vimos, todos os

pesquisadores constroem laboratórios quando estão no campo, de diferentes formas. Mas as

formas diferentes em que eles fazem isso indicam para mim que há diferentes tipos de

laboratórios sendo construídos. Separar esses laboratórios em apenas dois tipos ou análogos

desses dois tipo que Stengers menciona na Invenção da Ciência Moderna – “material” e

“informacional” – seria não levar em conta o fato de que um pesquisador de ciclo

biogeoquímicos não concorda com a prática do fisiologista de plantas, por exemplo. Esses

laboratórios permitem que o mundo “entre” mais ou “entre” menos enquanto “terrain” e

“força das coisas”, permitem que ele objete mais ou menos, controle mais ou menos e

purifique mais ou menos. O laboratório de Carlos E e Glaudecy é um microcosmo

experimental perfeito, mas mesmo assim, é vulnerável à chuva e quando eles permitem que o

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mundo entre na sua câmara, se não for uma “folha ideal” (isto é, livre de mofo), o

experimento irá “fracassar”, isto é, eles não estarão autorizados a falar em nome daquela

espécie. O laboratório de Raquel é vulnerável a contingências que ela não pode prever, uma

vez que só voltará em seis meses, a processos eco-biológicos que ela não pode controlar, a

cobras esperando no subsolo. Os micrometeorologistas não conseguiram, apesar de seus

maiores esforços, manter o mundo em controle por tempo o suficiente para limpar o Licor.

Eles todos estão “procurando”, mas o que estão procurando varia. Os “terrains” são realmente

diferentes e isso possui um efeito nos modos como os pesquisadores falam sobre eles.

Ao mesmo tempo, o modo como os pesquisadores falam sobre o que estão procurando

define o que é o “terrain”. Esses laboratórios são tanto distintos como parecidos exatamente

porque eles são feitos para procurar o mundo – e o mundo pre-existe a eles, no sentido de que

é criado como sendo pre-existente a eles. Como me disse Raquel: “estou tentando ter controle

dessa entrada”, mas mesmo sem seus esforços “toda hora tá caindo”. Mas o poder específico

que o objeto possui para objetar dá a cada experimento um formato específico. A relação entre

“falante” e “falado”, na qual o que é falado é o que permite o falante falar, é diferente em cada

caso. Como escreve Latour, sobre a primatologia, “um outro modo de capturar melhor a

prática da ciência é considerar as pré-concepções, os viéses, as teorias, os métodos, os a

prioris e a cultura como muitas estradas que tornam possível se ter acesso aos animais em si

mesmos”, eles são o que “permite o chimpanzé entrar em foco” (Latour 2000: 371)272. É

nesse sentido que penso que o pesquisador em Ciclos Biogeoquímicos pode objetar à prática

do fisiologista sem por isso afirmar que o que ele está fazendo “não é ciência’. Talvez então,

do mesmo modo como as menores mudanças no espaço, dos escritórios à sala de reuniões,

possam revelar o LBA de um modo que não havia visto antes, essas pequenas mudanças no

modo como os laboratórios são construídos pode ser reveladora, porque elas desestabilizam a

análise.

Não é insignificante que as ciências de campo aconteçam no campo, as ciências

272 “another way to better capture the practice of science is to consider preconceptions, biases, theories,

methods, a prioris and culture as so many roads that make it possible to gain access to the animals themselves”, they are what “allows the chimp to enter into view”. Stengers (1993: 144-147) faz um comentário interessante sobre as práticas científicas como a primatologia, que eu não tenho espaço para discutir no momento, mas que remetem às modificações adicionais da distinção sujeito-objeto quando o que está sendo interrogado sabe que está sendo interrogado. Ela sugere que perguntas como “quem é você para me fazer essa pergunta?” ou “Quem sou eu para estar te fazendo esta pergunta?” sejam “vetores de devir”.

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experimentais no laboratório e os “espaços ocupados” sejam diferentes. Isto é, o que pode ser

feito no laboratório não pode ser feito no campo e vice-versa. Gostaria de propor algo além

disso, ou em interseção com isso: que esta separação faz pouco sentido em termos do LBA,

somente se não permitimos uma certa relação mutuamente constitutiva entre o “espaço

ocupado” e a “ciência feita”. Isto é, ciência experimental pode ser feita no campo e ciência de

campo no laboratório e isso implica que o que é “laboratório” e o que é “campo” pode surgir

da ação específica ao mesmo tempo em que governa a forma que esta ação toma. Isso não

quer dizer que Stengers faça uma separação espacial; de fato, ela concentra sua investigação

especificamente na “prática’. Mas os pesquisadores com quem conversei faziam esta distinção

espacial. Eles falam em termos de pessoas que vão ou não vão para o campo. Como

mencionei, não se pode presumir que a especificidade do que “ir para o campo” engendra para

os pesquisadores e para Stengers seja o mesmo e isso requer um maior desenvolvimento.

Voltando para a reunião do Projeto Fronteiras, vimos que aquele espaço compartilhado

tornava algumas relações visíveis; deste modo, evidenciava-se que as identidades eram

transformações de outras prévias e que se transformavam a si mesmas – tanto as pessoas

como os não-humanos envolvidos. Mas ao mesmo tempo, essas identidades se reuniram para

dar uma forma ao próprio espaço. É difícil estabelecer uma relação de causa e efeito. Do

mesmo modo, o mundo como “terrain” aparece tanto entre os modeladores como na prática

de Raquel e de Carlos E e Glaudecy; trata-se de um mundo que faz perguntas e que provoca,

que reduz a certeza e deste modo possui a autoridade para dar forma àquilo que eles fazem.

Mas esses “terrains” são feitos perguntar perguntas diferentes e são feitos para perguntar

perguntas diferentes. O espaço que eles oferecem é modelado e modela a prática dos cientistas

que acompanhei. Não apenas isso, mas o “mundo” enquanto a “força das coisas” interfere

com a prática dos pesquisadores no campo. E esta parece ser uma força potencialmente muito

mais desestabilizante para, digamos, Raquel, do que para um modelador climático. Falei sobre

o modo como o mundo enquanto “a força das coisas” apareceu muito nas minhas conversas

com os modeladores, invocados como exemplos. Mas seria insuficiente não levar em conta o

fato de que este é um tipo muito diferente de envolvimento, comparando-o com modo como

Raquel deve suportar viver na floresta por dez dias para fazer sua ciência. O risco toma uma

forma diferente.

Então enfrentamos novamente uma conservação da complexidade e a preservação de

uma perplexidade partilhada. É a multiplicidade das ciências modernas que denotam sua

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singularidade. Seguindo a abordagem sutil e poderosa de Stengers sobre as ciências

modernas, pode-se ver que o poder inventivo dos pesquisadores do LBA e a ciência que

praticam no campo reside na sua modificação de quem está perguntando e quem está

respondendo. Todos eles estão fazendo o que ela chama de “ciências de campo”, procurando

por sua vez as perguntas que seu “terreno” coloca. E esses terrenos, por causa desse poder

inventivo, são todos diferentes. Esse poder de representar a “natureza” possui o efeito de

diferenciação interna: “A mesma questão se apresenta… em relação à teoria que afirma

representar os fatos: como se pode reivindicar ser o demandante legítimo? As soluções

produzidas serão capazes de divergir e de selecionar critérios iminentemente diferentes; mas

sempre será uma questão de “organizar” e distribuir, de definir direitos e prescrever deveres”

(2000a [1993]:61)273. E essa pergunta não está decidida a priori. Enfrentamos uma situação

de “irredução” e duplamente. Como cientistas sociais, nós não temos mais que negar as

diferenças que os cientistas reivindicam para si, mas devemos “evitar todo modo de descrevê-

los que implique que os cientistas tenham um conhecimento privilegiado do que significam

essas diferenças que os singularizam” (ibid: 67)274. Ao mesmo tempo, o ato de revelar essas

diferenças revela uma proliferação de práticas. Há muitas maneiras de se inventar o meio de

estabelecer a diferença entre ficções e não somente no laboratório.

A distinção de Stengers entre ciências de “campo” e ciências “experimentais” ou “de

laboratório” toma uma forma particular aqui. Realmente sair do laboratório, ir para as

“profundezas do oceano” ou para “florestas onde são colhidas amostras”, onde se encontram

“tantos instrumentos sofisticados quanto no laboratório experimental, tanta invenção quanto o

significado de uma medida” (Stengers 2000a [1993]:140)275 é uma parte importante da

distinção stengeriana entre ciências de “campo” e ciências “experimentais”. No campo não se

273 “The same question presents itself...with regard to the theory that claims to represent the facts: How does one claim the legitimate claimant?...The solutions produced will be capable of diverging, and of selecting eminently different criteria; but it will always be a question of “arranging” and distributing, of defining rights and prescribing duties”

274 “avoid any way of describing them which implies that scientists have a privileged knowledge of what this difference that singularizes them signifies”

275 “as many sophisticated instruments as there are in the experimental laboratory, as much invention as the meaning of a measure”

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encontra o “aparato experimental no sentido de Galileu, dando ao cientista o poder de

apresentar suas próprias questões (ibid: 140)276. Mas devemos discutir como exatamente a

caracterização dos cientistas do LBA como “os que vão para o campo” se relaciona com esta

distinção. Os próprios pesquisadores do LBA marcam uma diferença entre aqueles que “vão

para o campo” e aqueles que ficam nos escritórios. Embora ambos sejam talvez vistos como

fazendo “ciência de campo” – aquela que insere “realidade” no mundo de modo a gerar

controvérsia e incerteza ao invés de certeza – eles são diferentes. Isso porque o mundo, como

“força das coisas”, adiciona um risco extra, torna sua presença sentida de modos que podem

ou não ser incluídos no estabelecimento do poder de alguém “falar em nome” do seu

“terrain” . E em cada um desses, há novamente uma diferenciação interna, da mesma forma

aparentemente confusa que examinamos no primeiro capítulo. No campo, laboratórios são

construídos; no laboratório, ciência de campo, em oposição a “ciência experimental” é feita.

Não apenas isso, mas os laboratórios são construídos de modo diferente em cada caso, cada

um produzindo um campo diferente para conceder a eles o poder de falar em seu nome, cada

um deixando seu objeto “objetar” mais ou menos. E nos escritórios pequenas mudanças no

espaço, na localização, podem revelar configurações relacionais muito diferentes sobre quem

tem a autoridade de falar. Talvez todos os cientistas dos LBA estejam lidando com “campos”

que objetam e recusam a ser reduzidos; campos que, ao contrário, proliferam como modelos

ou visões de pesquisa, mas a “força das coisas” é diferente para cada cientista. Pode ser que o

“campo” e a “força das coisas” sejam a “mesma perspectiva vista duas vezes” (Strathern

1991)277, que da mesma forma como depende do cientista criar novos testes e novos

caminhos, o mundo também possui um arsenal de modos diferentes de objetar, alguns que

possuem um lugar e outros que ainda não possuem um lugar nas publicações científicas. Isto

é, alguns que são e alguns que não são “interessantes”. Mas como Stengers aponta, a

diferença entre “interesse” e “verdade” é que deixar-se interessar é um risco, uma abertura de

novas possibilidades, que “não reivindica criar o poder da unanimidade, mas se presta à

proliferação e associação com outros interesses” (2000a [1993]:96)278. E embora eu não possa

dizer com certeza o que os pesquisadores do LBA diriam sobre isso, é claro que esses riscos

se intensificam em qualquer tentativa de entendê-los. 276 “experimental apparatus in the Galilean sense, giving the scientist the power to stage his own questions”

277 “same perspective seen twice” 278 “does not claim to create the power of unanimity but lends itself to proliferation and association with other interests”

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O risco também pode tomar muitas formas. Para os pesquisadores do LBA, isso

acontece não apenas por causa da “força das coisas”; ou porque, em congruência com a tese

de Stengers, tal habilidade permite ou mesmo instiga o objeto a interrogar o cientista,

demandando testes e se caracterizando pela incerteza. O risco também é inerente à minha

observação que (e aqui lidamos com minha outra questão sobre como adicionar entidades à

rede parece aumentar e reduzir a certeza), como vimos, quanto mais entidades você envolve e

atribui o poder de lhe dar o poder de falar em seu nome, mais complexa e complicada a rede

se torna, mais interesses você tem que administrar e negociar e mais espaço há para que as

coisas surjam com formas, identidades e interesses completamente diferentes. Trata-se de um

negócio arriscado e aqui nós voltamos para o papel do analista nisso tudo. Porque como

destaca Latour, o papel do antropólogo aqui é re-traçar essas redes. O que se aplica aos

cientistas se aplica aqueles que estudam os cientistas – “aquilo que nós permitimos falar de

modo interessante é o que nos permite falar de modo interessante” (2000: 376)279. Esse

deslocamento é não apenas esclarecedor tendo-se em mente a prática científica, mas também

a prática antropológica.

Como notei, tanto Latour como Stengers apontam para essa relação analógica entre a prática

política e a prática científica, a arte de inventar um meio de representar, em que “representar”

nos move numa direção diferente daquelas “representações” que discuti no capítulo anterior.

Isto é, o “representado” e o “real” partilham um poder igual no “evento”, e qualquer

interpretação particular co-existe com outras na criação do próprio evento. Como escreve

Stengers: “Eu vou chamar de capacidade ‘humorística’ para reconhecer a si mesmo como um

produto da história cuja construção se está tentando seguir – e isso num sentido em que o

humor é, em primeiro lugar, diferente de ironia” (2000a [1993]: 66)280. O princípio de

irredução, que simultaneamente permite e qualifica a singularidade das ciências modernas,

parece ser parte de uma tarefa ‘cosmopolítica’281 mais ampla. E a idéia que o acúmulo de

279 “does not claim to create the power of unanimity but lends itself to proliferation and association with other interests”

280 “I will call “humour” the capacity to recognise oneself as a product of the history whose construction one is trying to follow – and this in a sense in which humour is first of all distinguished from irony.”

281 Ver por exemplo Stengers, I. (1996). Cosmopolitiques – tome 1: la guerre des sciences. Paris: La

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entidades pode desestabilizar a rede ao invés de estabilizá-la nos traz de volta de um modo

problemático para o modo como descrevi Latour como inevitavelmente “purificando a si

mesmo”. Porque irei explorar isso com referência à noção de Latour de “reagrupamento do

coletivo” ou “Parlamento das Coisas”, outra tarefa abrangente, o que também direciona nossa

atenção para o enfrentamento da aproximação que fiz no capítulo anterior entre o trabalho de

Stengers e Strathern.

Eu irei lidar com essas questões na conclusão da dissertação. A prática antropológica

de aproximação e distanciamento torna-se o nosso vetor de incerteza aqui, pois “o que

também está em jogo aqui é a possibilidade de uma prática que, enquanto põe nossas ficções à

prova como requisitado pela singularidade das ciências modernas, cria uma posição de

humor, em que a Cultura Ocidental, enquanto produz ciência, submete-se à prova mais difícil:

o teste que reinventa o Ocidente como uma cultura entre outras. Pois a ficção que é posta à

prova pela questão de seres que são capazes de transformar toda teoria em ficção e certas

ficções em vetores de devir, nada mais é do que nossa crença no poder da verdade, se é

realmente verdade, nada mais é do que denunciar a ficção” (Stengers 2000a [1993]: 149)282. É

a multiplicidade singularizante – a unidade contrastiva – das ciências modernas, caracterizada

pela proliferação de campos e práticas, incerteza sobre certeza, interesse em oposição à

verdade, riscos e colocar-se à prova, o que parece sugerir a Stengers que nós não estamos tão

longe daqueles – “pré-modernos” – que antes descartamos tão facilmente.

Découverte and Les Empêcheurs de penser en rond

282 “what is also at play here is the possibility of a practice that, while putting our fictions to the test as required by the singularity of the modern sciences, creates a position of humour, in which Westen Culture, as it produces science, submits itself to the most demanding test: the test that reinvents the West as one culture amongst others. For the fiction that is put to the test by the question of beings capable of transforming every theory into a fiction, and certain fictions into vectors of becoming, is nothing other than our belief in the power of truth, if it is truly true, to denounce fiction.”

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A PERDER DE VISTA?

Para uma dissertação que, ela própria, se propõe móvel, esta parece ter progredido

muito pouco. Eu terei que fazer uma pausa para pensar.

O título deste capítulo final faz referência a uma já famosa anedota sobre William

James, na qual se diz que James, após ter dado uma conferência sobre o sistema solar em uma

pequena cidade norte-americana, foi abordado por uma velha senhora que discordara

veementemente da idéia de que a terra se movia ao redor do sol porque, segundo ela, a terra

estaria de fato sobre as costas de uma tartaruga gigante. Quando James perguntou,

educadamente, sobre o quê a tartaruga estaria sustentada, a velha senhora o informou estar

sobre as costas de outra tartaruga. Quando James questionou sobre o quê, por sua vez, esta

outra tartaruga estaria sustentada, a velha senhora exclamou: “Não adianta, Sr. James, é

tartaruga a perder de vista!”. Stengers (1997) reconta a história283 para sugerir que, após

cessado o riso, ela requer alguma consideração: “o que nós sabemos e quem somos nós nesta

anedota?”284 (ibid: 61). Qual é, de fato, a diferença entre a história da velha senhora, que nos

coloca no centro do universo, e as leis fundamentais da física “se, a partir dessas leis, os

físicos são capazes de afirmar que a totalidade dos fenômenos pode, em princípio, ser

compreendida?”285 (ibid: 62). Stengers utiliza as tartarugas como metáforas - estas “criaturas

lentas de aparência pre-histórica… recordam-nos o quanto somos atualmente os prisioneiros

inconscientes de linguagens profundamente formalizadas”286 (ibid: 62) - que não nos deixam

contemplar o fato de que, longe de vivermos em um mundo que é objeto de uma “linguagem

onisciente”, a mecânica quântica nos mostrou o paradoxo inerente em pensar que podemos

descobrir o mundo ‘tal como ele realmente é’. O estudo de fenômenos elementares nos

mostrou o quanto nossa ação de mensurar é importante na construção desses elementos, de

modo que somos confrontados com o choque de “uma fundação que faz referência àquilo que

283 Essa história foi também usada por vários outros autores, por exemplo Geertz (1973), mas para fins bem diferentes daqueles de Stengers. 284 N. T. “what do we know and who are we in this anecdote?” 285 N. T. “if from these laws physicists can claim that the totality of phenomena can in principle be

understood?” 286 N. T. “slow prehistoric-looking creatures…remind us of how much we are today the unaware prisoners

of a few powerfully formalized languages”

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pretensamente deve fundar”287 (ibid: 63). Se, portanto, tais tartarugas tornam-se, na visão de

Stengers, a perspectiva transcendental limitante e vagarosa de qualquer linguagem onisciente,

seja da física fundamental ou da lenda interiorana, eu gostaria neste capítulo que elas fossem

vistas como capturando um constante movimento articulado que parece inerente ao ato de

análise e analogia. Este movimento poderia ser exatamente tão perigoso e limitante quanto

àquelas grandes narrativas para as quais Stengers nos alerta, a não ser talvez que nos

esforcemos para ver como ‘o mundo’, que repousa sobre a primeira tartaruga, pode ser apenas

uma outra tartaruga, ou que as tartarugas são, de fato, mundos.

Em todos os três capítulos, eu apontei para o que pode significar “representar a

realidade”. No primeiro, sugeri que o idioma da representação, que se baseia em metáforas

sobre pontos de vista e partes englobadas por todos, parecia-me insuficiente para dar conta do

LBA tal qual ela se mostrou em meu trabalho de campo, ainda que este pareça ser o modo

pelo qual o LBA organiza o conhecimento sobre si própria e sobre a Amazônia. Mas

justapondo minha descrição do LBA com a descrição da LBA sobre a Amazônia, é como se

houvesse inicialmente um senso comum de uma complexidade sempre crescente. Se eu não

encontro um solo comum entre o modo como eu a percebo e a maneira pela qual o LBA se

organiza, eu o encontro quando percebo o LBA organizando o conhecimento sobre seu objeto.

A percepção antropológica de que “conceitualizações são inevitavelmente

reconceitualizações” compõe a sensação de desproporção e de uma angustiante descrição

parcial. Mas a incerteza que eu experimentei com a insuficiência das minhas analogias me

deixou apta a reconfigurar minha abordagem analítica, e propôs, em contrapartida, uma

metáfora de movimento que conserva a complexidade em cada nível, não havendo uma

totalidade estática ou um ponto último a partir do qual julgar; eu estava motivada a propor

essa idéia a partir da maneira pela qual os dados do LBA existem como uma constante e

irredutível circulação de transformações. Assim, o solo comum mudou. A cumplicidade é

aparente nessa mudança.

No segundo capítulo, revelei como não se pode assumir como dado o modo pelo qual

os modeladores climáticos “representam o mundo”. Eles se esforçam para estabelecer uma

relação de cumplicidade com seus modelos, e seus modelos se esforçam para estabelecer uma

relação de cumplicidade com o mundo. Os modos pelos quais a relação modelo-modelado –

287 N. T. “a foundation that makes reference to that which it is supposed to ground”

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ou representação-real – muda entre os ‘níveis’, sendo propriedade de todos e de nenhum, é o

modo como eles escalonam seus modelos de mundo e modelam seu mundo como escala; o

modo pelo qual a ‘realidade’ aparece como um horizonte sempre em recuo significa que esse

escalonamento nunca é absoluto ou totalizante. Assumir que, ao falar de “representação”, eles

estejam falando da mesma coisa que eu, pode levar a inevitáveis e intermináveis cul-de-sac;

os contornos específicos e particulares das entidades e relações devem ter prioridade para que

a informação siga fluindo, e para que as entidades tenham espaço conceitual suficiente para se

mover de maneiras surpreendentes. Mas o processo que confunde tal espaço, ‘purificação’,

parece ter sido a profecia auto-realizada de Latour. Ao caracterizar a estabilização das redes

como um acúmulo de conexões, Latour parece ter descrito seu próprio destino como um fato.

No terceiro capítulo, o ato de “representar” foi posto em ação no trabalho de campo.

Quando não se pode aceitar a priori como dados o quê ou quem está falando ou agindo, e

quando ambos são incertos e deslocados, “representar” se torna uma questão de porta-vozes.

Falar em nome da natureza revela as diferentes formas pelas quais a natureza faz com que se

fale dela; e quando a natureza contraria o que foi dito a seu respeito e coloca novas questões

ao cientista porta-voz, ela pode fazê-lo de diferentes maneiras – maneiras nas quais um

cientista pode ou não estar interessado. O risco envolvido em arrolar múltiplas entidades e

deixá-las falar não é apenas por medo do que elas possam dizer, mas por medo de perder a

própria voz. Aqui, acumular conexões desestabiliza a certeza. A diferenciação feita por

Stengers entre aqueles cientistas interessados, que assumem o risco, e aqueles que não o

fazem, serve como um ponto de partida para traçar, através do mesmo padrão de

diferenciação que ocorre por todo o texto. Cada todo contém seus próprios todos, a perder de

vista. Ir para o campo e ficar no laboratório, como prática e deslocamento, participam um do

outro de modos confusos, e geram diferenças; mas a multiplicidade que estes movimentos

suscitam, movimentos que singularizam a ciência ao passo que, ao mesmo tempo, politizam

suas questões comuns, serve para revelar analogias aproximativas não apenas entre a invenção

científica moderna e povos não-científicos, mas também entre aqueles que estudam ambos –

Stengers e Strathern288.

288 É interessante que a mencionada justaposição de duas teorias do movimento exógenas à minha etnografia, de Gibson (ver nota 23) e de Holbraad, também signifique evocar a tensão representante-representado. Gibson era um cientista, interessado em mostrar ‘visão’ como um problema de movimento através de um ambiente, ao invés de um ponto de vista estático. A visão é realmente indissociável do modo pelo qual todos os seres humanos existem como seres móveis. A noção de Holbraad de mobilidade destina-se a transgredir o divisor entre o “real” e o “representado”, a “coisa” e o “conceito” através da “relação conectiva” ‘e’, mas é também uma sugestão de que passemos a pensar as coisas como conceitos (ver Henare et al. 2007: 3). No entanto, o ‘real’ de Gibson me ajudou a repensar metaforicamente a maneira pela qual pude conceitualizar meu material etnográfico; e achei o argumento conceitual de Holbraad estranhamente divorciado de meu material

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Por todo texto eu evoquei analogias entre os pontos finais interpretativos sobre os

quais eu me sustentei. As analogias compõem comparações potenciais, um modo de pôr as

entidades juntas; mas tal movimento tem sua própria dinâmica interna. Uma analogia pode

parecer conectar ou separar. É, talvez, mais perspicaz fazer coro com Strathern e falar da

analogia antropológica como “a elucidação de uma coisa em referência a outra”289 (Strathern

2005: 8), que tanto conserva quanto estende. A importância disso ficará clara. Para começar

pelo fim: sugeri uma analogia entre os trabalhos de Stengers e Strathern, agora duas vezes

explícita. Na primeira vez, eu sugeri que, nas abordagens que as duas realizam em relação a

seus objetos, pode-se detectar uma agência distribuída e uma cumplicidade. Na segunda vez,

eu sugeri que essa abordagem poderia movê-las a posições similares com relação ao divisor O

Ocidente/O Resto.

A tarefa de Stengers é descrever o que é singular nas ciências através do vetor do

humor, ou “irredução”. Irredução é uma celebração das diferenças, mas que se recusa a

enxergar a história como uma questão da diferença entre ‘vencedores’ e ‘perdedores’, porque

‘humor’ é, antes de tudo, o reconhecimento de que somos “um produto da história cuja

construção tentamos acompanhar”290 (2000a [1993] :66); enquanto tal, como um produto de

irredução, ele “prescreve uma recusa do apelo de saber e julgar”291 (Stengers 2000a [1993]:

17). Ela não está interessada na ironia, que sempre “reconhece a mesma coisa além das

diferenças”292 (2000a [1993]: 18). E isso por duas vias: a prática científica nem é como outra

qualquer, um “folclore particular”, nem tampouco é a garantia de uma diferença essencial.

Ficção não se opõe à verdade, mas devemos nos esforçar para “compreender a singularidade

das ficções científicas e levar a sério sua vocação, não para descobrir, mas para ‘criar’ a

verdade”293 (Stengers 2000b: 47). Para ser científico, o conhecimento tem que ser

“interessante”, ele deve multiplicar o número de conexões e associações possíveis em vez de

etnográfico, apesar de ter sido o seu material etnográfico que o levou a propô-lo. Essa é também uma relação muito recorrente entre ‘teoria’ e ‘etnografia’; como Strathern diz em minha epígrafe: “the two points of anthropological theory and ethnography, of course, just consume one another; I mean they cannibalise one another, so to have a third point…” (Strathern 1999:159) . Esse consumo mútuo aparece como uma outra faceta da minha noção de “cumplicidade”, da qual trato no restante da dissertação em termos da conservação e extensão de ‘analogia’. 289 N. T. “elucidation of one thing by reference to another” 290 N. T. “product of the history whose construction one is trying to follow” 291 N. T. “prescribes a retreat from the claim to know and to judge”. 292 N. T. “recognizes the same thing beyond the differences”. 293 N. T. “understand the singularity of scientific fictions and to take seriously their vocation not to

discover but to ‘create’ truth”.

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reduzi-los a uma única grande narrativa (Latour 2004b: 215). Este é um resultado da

modificação da relação entre sujeito e objeto, uma relação inicialmente estabilizada no

‘laboratório’; a modificação julga não apenas possível, mas inevitável, que um objeto ‘objete’.

A recalcitrância do mundo deve ser ativamente buscada. Este é um negócio arriscado, pois

não é simplesmente uma questão de permitir que o mundo responda afirmativa ou

negativamente as suas questões teóricas, mas uma questão de permitir que seu objeto faça as

perguntas, e moldar sua prática de acordo com estas. Stengers propõe “uma abordagem da

singularidade da ciência na qual o interesse, a verdade e a história sejam indissociáveis”294

(2000b: 48). Ou seja, na qual a ‘verdade’ não se oponha à ‘opinião’ ou ficção, mas se torne

uma questão de interesse: o resultado do quanto o cientista pode interessar seus/suas colegas a

ponto de que eles aceitem que a ficção proposta não é como outra qualquer e, desse modo,

‘façam’ história. E isso é feito tornando comunicativo o que até então permanecia mudo: “a

trajetória da ciência requer, ao contrário, um cientista apaixonadamente interessado, que

fornece a seu objeto de estudo uma série de oportunidades para mostrar interesse e

contabilizar seu questionamento através do uso de suas próprias categorias”295 (Latour

2004b: 218). Isso gera uma diferenciação constante; o que é ou não é científico deve ser

avaliado em cada exemplo particular: “não há uma resposta genérica ou racional para a

questão: como as ficções científicas se tornam cientificamente verdade? Mas isso não

significa que nada acontece (…) cada resposta é o próprio pilar da atividade científica, o

objetivo mesmo da controvérsia científica”296 (Stengers 2000b: 49). Assim, com os

pesquisadores do LBA em São Gabriel, vimos a diferenciação constante, seu potencial de

elaborar por meios muito diferentes as circunstâncias nas quais eles podem se permitir serem

interrogados por seus ‘objetos’; posteriormente, vimos o modo pelo qual a “força das coisas”

pode ter desempenhado diferentes papéis nessa elaboração. Stengers pretende levar em conta

o implacável esforço e risco da ciência, e “apreciar o engajamento e paixão dos cientistas sem

perder a possibilidade de rir deles”297 (2000a [1993]: 73), pois “a paixão, ou as teorias, ou os

preconceitos não são em si mesmos negativos, eles só se tornam assim quando não fornecem

294 N. T. “…an approach to the singularity of science in which interest, truth and history are indissociable” 295 N. T. “the path to science requires, on the contrary, a passionately interested scientist who provides his

or her object of study with as many occasions to show interest and to counter his or her questioning through the use of its own categories”.

296 N. T. “there is no general or rational answer to the question, how do scientific fictions become scientifically true? But this does not mean that anything goes…each response is the very stake of scientific activity, the very scope of scientific controversy”.

297 N. T. “to appreciate the engagement and passion of scientists without losing the possibility of laughing at them”.

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a ocasião para que os fenômenos difiram”298 (Latour 2000b: 218).

O princípio da irredução é aplicável tanto à ciência quanto à política; pois ambas estão

implicadas na mesma questão – como eu posso falar em nome de (representar) alguma coisa?

Portanto, na formulação de Stengers, ele é aplicável tanto às ciências ‘naturais’ e àqueles que

as estudam. Ambos devem correr os mesmos riscos, repensando e remodelando de acordo

com aquilo que seus objetos estão dizendo. Ambos devem ser guiados pelo humor como um

vetor de incerteza, e como um movimento que faz com que uma proliferação de práticas se

torne visível. É esta multiplicidade que “institui uma relação de proximidade com aqueles que

descartamos porque não compartilhavam previamente os nossos testes”299 (Stengers 2000a

[1993]: 65), como aqueles chamados de ‘pré-modernos’. Assim, o humor e a ironia são dois

projetos políticos muito diferentes. Enquanto que a “ironia opõe poder e poder”, o humor

“produz (na medida em que ele próprio logra ser produzido) a possibilidade de uma

perplexidade compartilhada, que efetivamente torna iguais aqueles que ele une. A esses dois

projetos correspondem duas versões distintas do princípio da simetria: um instrumento de

redução, ou um vetor de incerteza”300 (2000a [1993]: 66). Esta é a demanda mais radical de

Stengers, pois sustenta que a própria divisão que serviu previamente para definir o Ocidente e

sua prática científica seja posta em questão. Colocar nossas ficções à prova, como as ciências

modernas requerem, inclui colocar a maior ficção à prova, aquela do poder da verdade em

denunciar a ficção.

Em The Gender of the Gift301, Marilyn Strathern se coloca a tarefa de elucidar “a

natureza específica da socialidade melanésiana”302 (1988a: 10). A maneira como ela faz isso

é problematizar, revelar e estender os próprios conceitos analíticos que a antropologia,

enquanto empreendimento ocidental, empregou para pensar sobre outras culturas, sugerindo

298 N. T. “passion, nor theories, nor preconceptions that are in themselves bad, they only become so when

they do not provide occasions for the phenomena to differ”. 299 N. T. “institutes a relation of proximity with those who we had previously discounted because they do

not share our tests”. 300 N. T. “produces (to the degree it itself manages to be produced) the possibility of a shared perplexity,

which effectively turns those it brings together into equals. To these two projects, there correspond two distinct versions of the principle of symmetry: an instrument of reduction, or a vector of uncertainty”.

301 Nesta sessão e na anterior, ofereço um breve e superficial panorama do trabalho de Stengers, baseada principalmente em The Invention of Modern Science, e do trabalho de Strathern, baseada, em grande parte, em The Gender of the Gift. Na última sessão, posso ter parecido ir além do antigo solo; nesta, ter coberto novos espaços. Em ambos os casos, eu deveria, mas não posso, explorar os meandros de seus alicerces ‘etnográficos’ – uma exploração plena está fora do escopo da presente dissertação. Mas ofereço essa descrição, na esperança de ser capaz de justapor as duas autoras, e revelar algo de interessante sobre as duas. 302 N. T. “the distinctive nature of Melanesian sociality”.

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que nós “nos entreguemos menos às nossas própria estratégias representacionais– para nos

impedir de pensar sobre o mundo de determinados modos”303 (1988a: 11). Mas isso por duas

vias; impedir que se pense o mundo de determinados modos equivale tanto a se voltar para

conceitualizações exógenas quanto revelar conceitualizações indígenas. Portando, seu

trabalho também se expande para o pensamento do parentesco inglês (por exemplo, Strathern

1992a) e para outras formas pelas quais os ocidentais pensam sobre o mundo – propriedade e

sentimento de posse sendo as mais proeminentes (por exemplo, Strathern 1988a, 1996, 2001).

Ao longo de seu trabalho há no cerne, no entanto, o compromisso etnográfico com a

Melanésia; como ela admite francamente, ela optou por uma “easy living” (1988a:11) ao

demonstrar a inaplicabilidade deste ou daquele conceito para pensar sobre seus encontros

etnográficos com os Hagen. Mas tal inaplicabilidade não é simplesmente uma questão de

demonstrar uma “má tradução”, uma vez que não somos capazes de encontrar os ‘sinônimos’

corretos na linguagem conceitual ocidental para falar sobre a Melanésia; trata-se, antes, do

quão melhor e efetivamente podemos “deslocar” nossas metáforas-raiz304. Estabelecendo

inversões, o que ela chama de “estratégia da negação” (1988a:17), é uma forma com a qual

nós ocidentais temos que pensar através de diferenças. Mas essas inversões são ficções de um

tipo particular: “a intenção não é uma constatação ontológica do efeito de que há um tipo de

vida social baseada em premissas em uma relação inversa à nossa. Antes, trata-se de utilizar a

linguagem que pertence à nossa própria vida social de modo a criar um contraste interno a

ela”305 (1988a: 16). O deslocamento é ‘interno’. E não se trata da questão de colocar uma

inversão fácil – tal como onde pensamos o mundo em termos de indivíduos que compõem

sociedades, os melanésios pensam sobre “a vida coletiva como unidade, ao passo que as

pessoas singulares são compostas”306 (1988a:13). Isto exige que pensemos sobre as relações

entre os conceitos que propomos, ou talvez a noção de ‘relação’ como um conceito; assim,

relações hierárquicas de englobamento e dominação não estão em questão – “homologias e

analogias” (1988a: 13), em vez disso, moldam as práticas de conhecimento melanésianas que

303 N. T. “indulge less in our own representational strategies – to stop ourselves thinking about the world in

certain ways”. 304 O argumento de Strathern é ‘comparável’ à noção de “equivocação controlada”, de Viveiros de Castro, na qual “equivocação” é, não tanto uma ameaça à comunicação entre antropólogo e nativo – uma falha patológica de tradução da parte do antropólogo –, mas a própria celebração (controlada) e exploração da diferença entre os dois, que impulsiona a análise antropológica. “Equivocar” é necessariamente “deslocar”; e o próprio conceito que Viveiros de Castro nos mostra é o de um ameríndio “equivocado”. As analogias entre esses dois autores, Strathern e Viveiros de Castro, é uma outra direção para a qual essa dissertação poderia, mas não pode, ter seguido. 305 N. T. “the intention is not an ontological statement to the effect that there exists a type of social life

based on premises in an inverse relation to our own. Rather, it is to utilize the language that belongs to our own in order to create a contrast internal to it”.

306 N. T. “collective life as unity, whilst singular persons are composites”.

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ela revela. Este quadro, portanto, desafia as tentativas ocidentais de ‘resgatar’ outras culturas,

mas sempre exclusivamente em seus próprios termos – como em alguns estilos de Marxismo

e Feminismo. A exploração existe, mas não do modo como nós a concebemos no Ocidente

(ver também Strathern 1987). O gênero e a diferença entre os sexos são uma poderosa

imagem social em Hagen, mas não se trata da mesma imagem que temos no Ocidente. Para

Strathern, as sociedades são, acima de tudo, mecanismos de criar seus próprios problemas;

elas não são soluções diferentes para um mesmo problema. Portanto, uma diferença essencial

permanece.

Mas ela está constantemente negociando e retrabalhando essa relação de diferença. Da

mesma forma que Partial Conections evidencia uma estrutura narrativa ‘fractal’ – uma

metáfora que ela usa para colocar o pensamento antropológico e o melanésio em uma relação

análoga um com o outro, mas mantendo simultaneamente a complexidade de ambos –, eu

penso que, também em The Gender of the Gift, há uma atenção narrativa e estilística

escrupulosa, dedicada ao modo pelo qual ela apresenta sua descrição. As duas metades do

livro podem ser vistas como eclipsando e estendendo a outra; assim como os modos

melanésios de agir são guiados pela extensão e condensação da influência, e eclipsam mais do

que encompassam. É exatamente porque “as metáforas participam umas das outras”307

(1988a: 188) que se tornam “relevantes as idéias que usamos para pensar (com) outras

idéias”308 (Strathern 1992: 10; em Haraway 2000: 401), e relevante também é o modo com o

qual Strathern manipula e desloca a linguagem. Isso é relevante não apenas como uma força

desestabilizadora, mas como uma força otimista, que se constitui fundamentalmente como um

jeito de reanimar a paralisia pós-moderna em relação a empreendimentos analíticos. Os

‘remanescentes’ (remainders) gerados pela investigação antropológica, como vimos,

propulsionam mais do que retardam.

A reflexividade de Strathern é de um tipo particularmente engenhoso. Retornemos a

uma citação prévia: “portanto, eu me referi da forma mais geral às idéias ‘ocidentais’ e

‘melanésianas’. E tal generalidade teve um motivo específico. Tudo o que fiz foi tornar

explícitas estas comparações culturais implícitas, tais como estão implicadas nas justaposições

incidentais que dispõem de uma língua como meio de revelar a forma que uma outra,

307 N. T. “metaphors participate in one another”. 308 N. T. “it matters what ideas one uses to think other ideas (with)”.

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comparável, deve assumir” (1988a: 343)309. Mas, em contrapartida, essa cumplicidade

intricadamente idealizada faz com que “a comparabilidade desapareça” (ibid: 343), pois as

línguas têm suas próprias especificidades. Ela só pode usar a linguagem ocidental, e só pode

empregar conceitos ocidentais. As críticas “participam da construção que elas pretendem

desfazer. Elas próprias são galhos da metáfora-raiz mercadoria (commodity), como devem ser”

(1988a: 136; ênfases minhas)310, e Strathern tem consciência de que não pode se retirar desta

“árvore: eu simplesmente ocupo outra posição” (1988a:136)311. Ela estabelece eixos em seu

trabalho – nós/eles, dom/mercadoria, antropologia/feminismo – que atuam e participam um no

outro, opondo e relacionando, aproximando e distanciando, enquadrando e sustentando um ao

outro. Cada qual provê o solo para diferenciar o outro, mas todos estão contidos na ‘visão de

mundo’ ocidental. Esta posição inescapável é conscientemente feita - é uma posição a partir

da qual as metáforas-raiz ocidentais se tornam visíveis, e os contrastes necessariamente

internos à análise são estendidos a duas formas culturais irredutivelmente externas uma à

outra - Melanésia e Euro-América. A diferença entre as duas revelada através dessa extensão

é o que impulsiona a análise. O fato de que, em Hagen, aquilo que chamamos de ‘dons’ possa

ser traduzido por ‘coisas’ é exatamente onde a análise pode ser feita, porque tal distorção é

onde repousa a relação entre eles: a inversão não é fácil - importa saber o que exatamente são

essas ‘coisas’ e, de uma perspectiva ocidental, qual a forma social que elas assumem.

Igualmente, não é que não haja desigualdades entre os homens e as mulheres em Hagen - mas

a natureza exata dessas desigualdades deve ser examinada. O resultado é que “o

conhecimento que eu produzo sobre as sociedades melanésianas não é comensurável com a

forma que o conhecimento assume lá” (1988a:343)312. O fato de que seu argumento opere

através de uma série de oposições e contrastes não é um modo melanésio de organizar o

conhecimento; mas é justamente tal incomensurabilidade que Strathern se recusa a reduzir,

mesmo quando estende seus próprios conceitos analíticos com conceitos melanésios, e mesmo

enquanto move sua narrativa para um tempo distintivamente melanésio. Contextos devem ser

contrastados, não “juntados/combinados” (conflated) (1988a: 10); mas tais contrastes são

técnicas “propriamente nossas para tornar as suposições dos outros ‘aparecerem’ com alguma

309 “hence I have referred in the most general way to both ‘Western’ and ‘Melanesian’ ideas. And that

generality has been with specific intent. All I have done is make explicit such implicit cultural comparisons as are entailed in the incidental juxtapositions of deploying one language as the medium in which to reveal the form that another, were it comparable, might take”

310 ““participate in the constructions they seek to undermine. They are branches themselves of the commodity root metaphor, as they have to be”

311 “radix: I merely occupy another position” 312 “the knowledge I produce about Melanesian societies is not commensurate with the form that

knowledge takes there”

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autonomia em nossos registros (1988a:175)313. Nossas próprias metáforas ocidentais estão

constantemente interferindo e, portanto, temos que nos esforçar para manter a diferença e

conservar a complexidade. Isto não significa, entretanto (e novamente retomamos uma citação

anterior), “rejeitar o poder dos conceitos euro-americanos... O objetivo é, ao contrário,

estendê-los com imaginação social. Isto inclui observar como eles são postos em ação em seu

contexto indígena, e de que modo eles podem operar em um contexto exógeno” (1996:521)314.

Reflexividade conceitual não implica em uma progressiva auto-consciência, como a solução

pós-moderna para sua própria crise, mas envolve, ao contrário, prestar uma atenção

meticulosa em quanto a análise antropológica devolve os conceitos que as pessoas têm sobre

si próprias para estas próprias pessoas (Strathern 1987: 18); e esta é uma questão da diferença

irredutível que se pretende revelar e, enquanto tal, é sempre deslocada.

A analogia, sendo o modo pelo qual a comparação se move e o sentido é feito, é tanto

conservação quanto extensão de sentido. “Explorar universos paralelos, ou seja, universos

sem conexão aparente entre eles, requerendo do exercício nada mais do que um paralelo

sugestivo, tem, como vimos, dois efeitos simultâneos e distintos. Cada qual é conservado em

sua particularidade; ao mesmo tempo, qualquer um deles pode se tornar um conhecimento

inesperado para o outro e, portanto, encontrar-se brotando em solo estrangeiro” (Strathern

2006: 11)315. A distância inerente que é conservada está mutuamente implicada na

aproximação-como-extensão que a analogia, o ato de análise, precipita. Assim como as

diferenças e similaridades emergem no ato da comparação, as próprias bases da comparação

“repousam entre as entidades e são criadas pela - como são função da - relação. Elas não

existem antes da análise. Não se pode prever, conseqüentemente, o que será esclarecedor

como eixo de comparação. (E não se segue disto, tampouco, que todas as comparações ou

analogias sejam esclarecedoras” (ibid: 11). E, ao mesmo tempo, a ‘incompatibilidade’ (‘not-

quite’ fit) (eg see 1991:115)] entre as ‘nossas’ analogias e as dos ‘outros’, entre ‘nossas’

comparações e as dos ‘outros’, apontam para uma irredutível falta de conexão. Strathern

sugere, antes, que se deve mostrar o quanto as complexidades da vida social “provoca ou

313 “of our own devising for making the suppositions of others ‘appear’ with some autonomy in our accounts” 314 “dismiss the power of Euro-American concepts...The point is, rather, to extend them with social imagination. That includes seeing how they are put to work in their indigenous context, as well as how they might work in an exogenous one” 315 “To explore parallel universes, that is, universes with no apparent connection between them, asking of the exercise nothing more than a suggestive parallel, has as we have seen two simultaneous and distinct effects. Each is conserved in its particularity; at the same time, either of the universes can turn into unexpected knowledge for the other, and thus find itself growing in foreign soil”

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elicia uma forma analítica que não se pretende comensurável a elas mas que, entretanto, pode

indicar um grau análogo de complexidade” (1988a:7). É a este “fim ficcional” que Strathern

pretende levar “um diálogo interno à linguagem da análise”, não preenchendo de termos

ausentes nas conceitualizações indígenas mas, em vez disso, “criar espaços ausentes na

análise exógena” (1988a:11)316. Nesse sentido, ela também ‘repensa’ analiticamente o divisor

O Ocidente/O Resto - prestando atenção nas relações, as analogias que ambos se empenham

em criar, e pretendendo conservar a diferença priorizando uma relação de analogia, não de

hierarquia, e de diferença, não de similaridade. Portanto, eu retorno à LBA no primeiro

capítulo para me fornir com uma metáfora que me faça pensar através do meu material

etnográfico, e esta própria metáfora é ainda um meio pelo qual diferenciar nossos respectivos

empreendimentos; o uso que os pesquisadores fazem dos dados da LBA não é o mesmo que o

uso que eu conceitualizei: “Novos idiomas desmembrados devem fornecer ao antropólogo um

vocabulário com o qual apreender os projetos desmembrados de outras pessoas, mas ‘nosso’

projeto não deve ser confundido com o ‘deles’. Não estamos incumbidos com, e não

reproduzimos os mesmos mundos” (Strathern 1992b: 98)317.

Eu tentei colocar as duas autoras juntas, para provocar um movimento e uma extensão

através desta justaposição. Pretendo agora traçar algo desse movimento, mas não posso

pretender ser capaz de levar a analogia a seus limites máximos; e reconheço que possa haver

inúmeras aberturas possíveis das quais eu sequer me aproximo. No entanto, talvez haja tantas

quantas eu faça.

Stengers toma como seu ponto de partida uma diferença, que julga o que é ou não

científico. Ela repensa essa diferença desafiando-a com o vetor do humor, sugerindo que a

ciência e a não-ciência são contínuas, parte da mesma proliferação de práticas resultante da

abordagem que ambas devem partilhar. Ambas devem se fazer vulneráveis ao princípio da

‘irredução’, que engendra uma incerteza simétrica e uma perplexidade compartilhada. Mas

essa simetria produz diferença. A ciência tem um jeito particular de tornar as ficções

cientificamente verdadeiras: “a singularidade dos ‘desafios científicos’, quando confiável,

deve satisfazer esta estranha condição: alegar com sucesso que eles foram sustentados por

316 “provoke or elicit an analytical form that would not pretend to be commensurate to them but that would, nonetheless, indicate an analogous degree of complexity” 317 [N]ew dismantling idioms might give anthropologists a vocabulary with which to apprehend other people’s dismantling projects, but ‘our’ project should not be mistaken for ‘theirs’. We are not devolved from and do not reproduce the same worlds”

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coisas e não por idéias ou demandas humanas” (2000b: 46)318. Portanto, o desafio de Stengers

não é o de mostrar que as ciências são diferentes, mas o que essa diferença pode significar.

Ao fazê-lo, ela abre a possibilidade de que isso não signifique que o Ocidente seja de algum

modo mais avançado (ou qualquer outra imagística hierárquica desse divisor) do que os ‘pré-

modernos não-científicos’.

Strathern partiu de uma similaridade – o modo como os povos não-ocidentais

estudados pela antropologia parecem se tornar meras reconceitualizações de nossos próprios

modos de organizar o conhecimento. Ela sustenta que somos irredutivelmente diferentes, e

que tal diferença deve ser mantida, seja só pelo fato de revelar os contornos específicos da

organização conceitual do Ocidente. Cada cultura possui suas próprias analogias, que podem

ser postas em contato umas com as outras, mas não podem jamais ser suprimidas – elas

podem, contudo, ser estendidas. No entanto, jamais podemos escapar dessa diferença. Os

desafios de Strathern não são feitos tendo como alvo a Melanésia, mas sim o meio intelectual

no qual ela está escrevendo. Para tentar compreender outras práticas de conhecimento,

devemos redirecionar a posição que os conceitos nativos ocupam em nossa análise. Devemos

permitir que eles nos ‘inventem’ enquanto nós os ‘inventamos’ (Wagner 1975).

Stengers e Strathern estão ambas preocupadas em não perder o caráter singular daquilo

que estudam: no caso de Stengers, a paixão, o interesse e a ficção ‘particular’ da ciência, no

caso de Strathern, a ‘natureza específica’ dos melanésios. Nenhuma delas é

desconstrucionista, mas ‘herdeiras’ do ‘evento’ desconstrucionista e, portanto, interessadas

em levá-lo a sério sem, no entanto, serem afetadas por ele. Ambas ressaltam a natureza crucial

de permitir que os objetos façam as perguntas, e de moldar suas práticas em resposta a eles.

Ambas apontam, com intensidades diversas, para a natureza irredutível de seus

empreendimentos – que as distinções apareçam como um resultado da análise (isto é

científico? Isto é igual/diferente?), que as relações específicas sejam reveladas por ela e que a

especificidade importa. Ambas recusam a noção de um conhecimento transcendental, uma

única perspectiva ou teoria geral que ‘reduzam’ ou tornem claro aquilo que têm como

objetivo. Ambas procuram reavaliar a relação entre o Ocidente e o Resto, e ambas se mostram

otimistas – Stengers com o poder do humor, e Strathern com o poder da linguagem analítica.

Ao fazê-lo, a noção de ‘poder’ se torna distorcida. Claro, tanto o humor como ironia e a

318 “the singularity of “scientific challenges”, when reliable, is that they must satisfy this strange condition: to succeed in claiming that they were enforced by things and not by human ideas or demands”

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linguagem como metáfora-raiz são também bastiões ocidentais do ‘progresso’, que ambas

desafiam ao mesmo tempo.

Seus trabalhos ‘cortam’ em duas frentes (cuts in two ways) simultaneamente, mas

como e o quê eles atacam é diferente. Stengers 'corta' as ciências, (o quê ela estuda), e as

ciências sociais (como ela estuda), requerendo que ambas sejam sujeitas aos mesmos

princípios de irredução, humor e incerteza. Seu 'corte' parece instigar uma continuidade para

que a diferença prolifere. Strathern ataca a antropologia e o Ocidente no qual ela está imersa

(como ela estuda), e ao fazê-lo ela atravessa entre o Ocidente e a Melanésia (o que ela

estuda); ela não corta a Melanésia do mesmo modo que ela ataca (critica) a prática

antropológica. De fato, pode-se dizer que ela corta o Ocidente com a Melanésia. Stengers

afirma que a ciência é singular, mas a diferença não é o que eles podem dizer que é; Strathern

afirma que a Melanésia é diferente, mas não do modo singular que nós podemos supor. Há

uma continuidade entre Stengers e aqueles que ela estuda que ela pretende complexificar e

diferenciar; há uma descontinuidade entre Strathern e aqueles que ela estuda que ela pretende

conservar. Stengers co-autorou livros com cientistas (por exemplo Prigogine e Stengers 1984)

dentro de uma tradição ocidental de autoria para a qual “autor” denota posse; o quanto se

pode dizer que Strathern co-autora seus livros com os Melanésios, eu suponho, dependeria do

quanto se poder estender a idéia ocidental de ‘autoria’ a um contexto melanésio (ver Strathern

1987)319. É interessante que, quando Strathern se põe a estudar ciência, ela a encara como

estando imersa nas práticas das pessoas – a ciência que ela pretende revelar é aquela que

repousa tacitamente no modo como nós todos (euro-americanos) organizamos nosso

conhecimento (Strathern 2005:34). Assim, em seu livro mais recente, a ciência é precipitada

para fora de sua análise na forma das noções fundamentais de “descoberta” e “invenção”, dois

modos de verificar informação. Esses dois modos são apresentados no que poderíamos

chamar de um estilo ‘melanésio’, ou ao menos, um estilo ‘relacional’ – “invenção” diz

respeito à forma com que nós relacionamos entidades ou fatos independentes (as relações são

‘inventadas’); “descoberta” significa revelar relações já existentes entre as entidades (as

entidades são ‘descobertas’ como já sendo parte de tudo o mais). A “ciência” nem sempre

assume uma forma singular como ocorre no trabalho de Stengers; para Strathern, ela já está

‘na’ sociedade (2005: 33). Como tal, a ciência é sempre estendida a outros domínios da

socialidade, tornada visível nestes domínios – sob a forma dessas duas imagens relacionais,

319 Gostaria de agradecer a Eduardo Viveiros de Castro por trazer esse assunto a minha atenção.

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criando conexões entre as coisas, e todas as coisas estando já implicadas em tudo o mais. Com

isso, ela torna estes domínios – ‘parentesco’, por exemplo – diferentemente visíveis. Pode-se

dizer que ela extrai aquilo que Stengers pretende unir.

A diferença entre estudar ciência e estudar a Melanésia tem um efeito óbvio aqui.

Stengers tem um projeto normativo muito específico em mente, ainda que radical e

‘humorístico’, e separa a ‘boa’ da ‘má’ ciência (ver, por exemplo, a interpretação de Latour

(2004b) sobre seu trabalho). Este não é um projeto que Strathern poderia implementar em

relação àqueles que estuda, mas por outro lado, ao estudar a Melanésia, ela de fato critica e

estuda o arsenal conceitual antropológico. A acusação de Holbraad de ‘falsa consciência’ de

novo vem à mente aqui; como ele aponta, um antropólogo não deve sonhar em impor padrões

normativos sobre aqueles que estuda. Stengers não é uma antropóloga, mas uma filósofa da

ciência. Mas mesmo assim, não penso que suas imposições ‘normativas’ possam ser

compreendidas em um estilo ‘normativo’. Sua crítica não se faz em nome de uma posição

transcendente e onisciente, porque ela recusa a possibilidade de que isso exista.

Ao explorar essa analogia entre os trabalhos de Stergers e Strahern, estou ciente da

relativa ‘incompatibilidade’ (not-quite fit) dos meus paralelos; confrontamo-nos com um

padrão familiar – a diferenciação é multiplicada e a complexidade conservada dentro de

ambos os ‘pontos’ conservados de qualquer par análogo. Algo parece sempre escapar às

minhas inversões certinhas. Há um constante “ajuste” potencial na narrativa. Sou movida para

as outras analogias implicadas em minhas descrições; estarei fazendo a mesma coisa que

aqueles que eu estudo? No primeiro capítulo, havia a sensação de solo comum, de que o LBA

e a minha experiência etnográfica sugeriam um sistema compartilhado de organização do

conhecimento que provoca um senso de complexidade progressiva; um movimento

subseqüente que realizei foi o de repensar isso, escolhendo ‘pagar o preço’ e olhar para o

LBA como aquela que me oferece uma imagem que conserva a complexidade. No segundo

capítulo, me encontrei enfrentando os mesmos dilemas que os modeladores climáticos, uma

“oscilação cotidiana” (Strathern 2002:109) entre o que é conhecido e o que é (conhecido por

ser) desconhecido, na qual os modeladores tentam “driblar” um caos original, e eu tento

entendê-los mesmo sabendo que não posso fazê-lo. Fiquei com a revelação de que não posso

supor que organizamos o conhecimento da mesma maneira. Há uma descontinuidade e uma

diferença entre o que eu faço e o que eles fazem. Assim, isso provoca um conjunto adicional

de analogias. Pois dentro de cada pólo de toda analogia há mais analogias a serem exploradas.

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.

O que ‘o Ocidente’ pode indicar em qualquer empreendimento comparativo é que não

deve ser tido como dado. Como Strathern (1980), entre outros, deixou claro, os conceitos

basilares do Ocidente, como natureza e cultura, podem ser configurados de maneiras muito

diversas, “como um prisma que produz diferentes padrões na medida em que é virado – e

através do qual a natureza e a cultura podem ser vistas, cada uma, ora como elemento

englobante, ora como englobado” (1980: 178-179)320. De modo a adquirir compreensão

analítica, escreve Strathern, tal prisma deve ser mantido momentaneamente fixo. Mas a

“ambigüidade semântica” (ibid: 179) contida em tais conceitos trai o cuidado com o qual

esses pontos de parada devem ser decididos. Não seja porque eles “fornecem uma estrutura

tão persuasiva que, quando nos deparamos com outras culturas ligando, digamos, um

contraste homem-mulher a oposições entre o doméstico e o selvagem ou a sociedade e o

indivíduo, imaginamos que elas são parte do mesmo todo” (1980: 216)321. Há um cuidado

com o qual estamos familiares agora. Mas, assim como é exatamente essa diferenciação

interna que Strathern explora em sua análise do parentesco euro-americano (Strathern 1992a),

usando a noção de “merografia”, ele pode ser igualmente aplicado a nossas próprias noções

ocidentais. A algo a ser dito sobre tomar mais cuidado, parar para pensar ou respirar antes de

agrupar conceitos sob a mesma ‘rubrica’. Como mencionei antes, as noções de “simetria”,

“agencement recursif”, “humor”, “cumplicidade” – estes tropos com os quais eu tentei

estender minha análise se mostraram, eles próprios, internamente diferenciados no ato da

análise. É necessário prestar atenção a essa diferenciação detalhada, às maneiras específicas

pelas quais a ambigüidade semântica se torna “ideologia” (Strathern 1980: 179). Ao encontrar

constantemente diferença em nossas próprias conceitualizações, podemos estar mais bem

equipados para favorecer a diferença dos outros. Se, como Viveiros de Castro elegantemente

imagina, “fazer antropologia significa comparar antropologias”, nos confrontamos com o fato

de que as analogias internas que fazemos estão em estrita “continuidade ontológica” com as

analogias que estendemos alhures para moldar outras culturas. Mas, como Viveiros de Castro

adverte, “continuidade ontológica não implica em transparência epistemológica” (ibid: 4)322.

320 “rather like a prism that yields different patterns as it is turned – through it at times either nature or culture may be seen as the encapsulated or the encapsulating element” 321 “provide a structure so persuasive that when we come across other cultures linking say a male-female contrast to oppositions between the domestic and the wild or society and the individual, we imagine they are parts of the same whole” 322 “ontological continuity does not imply epistemological transparency”

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Ou seja, essa continuidade não implica que nossos nativos possam ser reduzidos a – e,

portanto, tornados cognoscíveis como – ‘o mesmo’ que nós – mas que eles são igualmente tão

diferentes quanto nós. Viveiros de Castro mostra como a antropologia multinatural dos

ameríndios pode afetar a antropologia multicultural do Ocidente: “A questão para os índios,

portanto, não é a de saber ‘como os macacos vêem o mundo’ (Cheney & Seyfarth 1990), mas

qual o mundo expresso através dos macacos, de qual mundo eles são o ponto de vista.

Acredito que essa é uma lição que nossa própria antropologia poderia aproveitar” (ibid:

11)323. Um problema para o antropólogo aqui surge, é claro, quando aqueles que você estuda

são ‘da mesma cultura’ que você; ou seja, quando a transparência epistemológica parece

inescapável como um dado definitivo. E isso é posteriormente complicado se aqueles que

você estuda são daquele domínio da sua cultura – ciência – que parece fornecer o discurso

‘epistemológico’ dominante que você está tentando repensar. Ou seja, em que medida se pode

assumir uma continuidade, e em que medida se deve obter uma diferença? Isto nos leva

novamente à problemática de Holbraad. Tal problema de “auto-antropologia” (Strathern

1987) é um daqueles que eu não posso desenvolver aqui. O que eu posso sugerir, a partir de

minha experiência de campo, é que, se as diferenças são mantidas em casa, elas também são

mantidas em campo.

Prestar tal atenção às continuidades e descontinuidades em nossos modos analíticos de

conceitualizar nos leva de volta a algumas das problemáticas que eu descrevi no trabalho de

Latour. A idéia de que Latour, ou suas idéias, se tornaram purificados, ficou em certa medida

evidenciada na maneira com a qual Holbraad, entre outros, empregam o “anti-

representacionismo” em seu argumento como um pólo estático. Como Strathern indica, este

tipo de rigidez é talvez necessário para conferir sentido analítico a qualquer coisa. No entanto,

ao mesmo tempo, tal estabilização parece estar inscrita na própria teoria de Latour sobre o

modo pelo qual os fatos científicos se tornam estabilizados, como vimos. O que é, pois,

interessante é que, quando Latour fala do “Parlamento das Coisas” (por exemplo, Latour 1993

[1991]: 144-145), o “coletivo” (por exemplo, Latour 2004: 86), ou o “mundo comum” (por

exemplo, Latour 2005: 118), parece haver uma dissonância. Ou seja, foi exatamente o

estabelecimento dessas redes estabilizadoras – estes coletivos heterogêneos de quase-objetos

e quase-sujeitos nos quais os cientistas se interessam e registram em sua construção de rede de

323 “The question for Indians, therefore, is not one of knowing “how monkeys see the world” (Cheney & Seyfarth 1990), but what world is expressed through monkeys, of what world they are the point of view. I believe this is a lesson our own anthropology can learn from”

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modo a prover conexões e, portanto, ‘ganhar’ realidade (que é o que a ciência sempre fez sem

necessariamente reconhecê-lo ou se reconhecendo ao fazê-lo) – que levou Latour na direção

do ‘mundo comum’; mas este ‘mundo comum’ é tudo menos estável. Sua “unidade” é

questionável – ou seja, há uma diferença entre “unidade” e “realidade”; o coletivo necessita

“ainda ser coletado e composto” (ibid: 118). A “multiplicidade da realidade – metafísica –

pode ser distinta de sua unificação progressiva – ontologia” (ibid: 120)324, advertindo contra

uma unificação “prematura”, que já tenha sido decidida. Quer dizer, o coletivo se encontra em

um processo de devir, é instável, ainda por fazer; cada novo ator acrescido, cada nova

descrição “consiste em uma decisão sobre o quê deve ser o social, ou seja, o quê deve ser a

múltipla metafísica e a única ontologia do mundo comum” (ibid: 258)325. As redes, nesta

visão, se tornam “associações de humanos e não-humanos em um estado de incerteza”

(Latour 2004a: 75), sendo constantemente acrescidas – como vimos, quem ou o quê está

agindo ou falando é algo incerto, emergente e constantemente mutável. Eu fui alertada para a

possibilidade de um duplo papel desempenhado pelas entidades em uma rede quando vi os

pesquisadores em São Gabriel arrolando e envolvendo mais atores em suas redes –

computadores, outros instrumentos, eles próprios – de modo a estabilizar uma certeza, por

temporária que fosse; e, ao mesmo tempo, arrolar mais atores e prover mais conexões parecia

desestabilizar o conhecimento científico, resultando em uma multidão de entidades todas com

sua própria voz a ser acrescida à discussão.

Ausência de limite e estabilização parecem se confundir: “Se quisermos que o coletivo

seja capaz de se reunir, é conveniente que dissociemos a noção de realidade externa da noção

de necessidade incontestável, para que possamos distribuí-las igualmente entre todos os

‘cidadãos’ humanos e não-humanos. Iremos, pois, associar a noção de realidade externa com

surpresas e eventos, em vez do simples ‘estar lá’ da tradição guerreira, a teimosa presença dos

matters of fact” (Latour 2004a: 79)326. Humanos e não-humanos surgem em um “estilo

surpreendente” e “o coletivo é, de fato, uma miscigenação, mas que não incorpora objetos da

natureza feitos de matters of fact e sujeitos dotados de direitos; ele mistura actantes definidos

324 “multiplicity of reality – metaphysics – can be distinguished from its progressive unification – ontology” 325 “consists of a decision about what the social should be, that is, of what the multiple metaphysics and single ontology of the common world should be” 326 “If we want the collective to be able to come together, it behooves us to dissociate the notion of external reality from that of indisputable necessity, in order to be able to distribute it equally among all humans and non-human “citizens”. We are thus going to associate the notion of external reality with surprises and events, rather than with the simple “being-there” of the warrior tradition, the stubborn presence of matters of fact”

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por listas de ações nunca completas” (2004a:80)327 e “os atores são definidos acima de tudo

como obstáculos, escândalos, aquilo que detém a maestria, aquilo que substitui a dominação,

aquilo que interrompe o fechamento e a composição do coletivo”, eles são “baderneiros”

(2004a: 81). A realidade ‘aumenta’ exatamente na medida em que você se torna sensível às

diferenças (2004a: 85), acrescentando a, sem silenciar, esses “baderneiros” – artifício e

realidade ‘trabalham’ juntos nesse sentido, e ambos aparentam poder ser estendidos

indefinidamente.

Parece, portanto, haver duas diferentes noções de realidade em jogo, e dois diferentes

papéis que os atores podem desempenhar. A primeira é uma realidade estabilizada na qual os

atores são convencidos a permitir que se os representem, na qual eles se convencem que se

pode falar em seus nomes; na segunda, a realidade é incerta e emergente, e os atores são

baderneiros que impedem a composição do coletivo. Um fato ‘reduzido’ está sob inspeção,

feita de proposições bem articuladas, como Latour nos mostrou com Pasteur e a fermentação

(1988a, 1999a); mas, assim, trata-se de um coletivo “irredutível”. Ou isso parece uma má

disfarçada recolocação do Grande Divisor, voltado para dentro de si mesmo (ao manter a

diferença entre “purificadores” e “mediadores”), ou nos defrontamos (como Holbraad indica)

com a tentativa de escolher (talvez absurdamente) – somos ou não modernos?

Talvez, como me disse Marta, não seja um binarismo; como aponta Latour, coletivos

podem ser “mais ou menos articulados”, ter mais ou menos conexões:

“Devemos dizer de um coletivo que ele é mais ou menos articulado, em todos os sentidos da

palavra: que ele ‘fala’ mais, que é mais sutil e astuto, que inclui mais artigos, unidades discretas, ou

interessados, que os mistura com maiores graus de liberdade, que emprega maiores possibilidades de

ação. Devemos dizer, em contrapartida, que outro coletivo é mais silencioso, que tem poucos

interessados, menor grau de liberdade e menos artigos independentes, que á mais rígido. Podemos até

falar de um coletivo 'binário'(two-house collective), feito de sujeitos livres e naturezas inquestionáveis,

que é completamente inarticulado, totalmente sem voz, uma vez que a meta da oposição sujeito-objeto

é efetivamente suprimir o discurso, suspender o debate, interromper a discussão, obstruir a articulação

e a composição, causar um curto-circuito na vida pública, substituir a progressiva composição do

mundo comum pela impressionante transferência do inquestionável – fatos ou violência, dever ou

327 “the collective is indeed a melting pot,but it does not fold in together objects of nature made of matters of fact and subjects endowed with rights; it mixes together actants defined by lists of actions that are never complete”

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direito” (Latour 2004a: 86)328.

Mas essa é uma imagem “gradativa” ou ‘binária”? Graus de articulação parecem coexistir com

um critério ou/ou. O papel político da ANT tem como objetivo a distinção entre ‘organização’ e

‘unificação’; a ‘unificação’ não é conhecida de antemão, é o que é precipitado ao fim, quando o

coletivo foi reunido – mas este foi o modo com o qual Latour descreveu a “realidade”, como uma

conseqüência, não uma causa. Listas de ações maiores tanto estabilizam quanto desestabilizam; a

realidade e a unidade parecem tanto separadas quanto unidas; redes e coletivos podem ser mais ou

menos articulados; atores podem obstruir ou apoiar sua construção. E, assim como Latour nos

convence, a moderna proliferação de híbridos é uma conseqüência da purificação. A mecânica destes

processos separados de unificação e agregação parece ser um negócio escorregadio329.

Stengers nos diz que seus alunos freqüentemente lhe perguntam se o Parlamento das Coisas do

Latour é reformista ou revolucionário (2000a [1993]: 152). Ela nos diz que não há resposta a essa

questão. Mas ela sugere que seu interesse enquanto imagem é que “ela provoca uma

‘deformação’ imediatamente operativa do presente sob o efeito de um futuro cujas demandas

são ilimitadas” (ibid: 152). Ela, de fato, celebra o “triunfo da empreitada científica, pois

constitui o teste generalizado das ficções” (ibid: 152)330, especialmente aquela ficção que

considera que as ficções particulares devam ser submetidas a uma geral. A seus olhos, o

Parlamento das Coisas do Latour valoriza o princípio da multiplicidade sobre o da conquista;

da mesma forma que as ciências modernas modificam a relação sujeito-objeto para deixar o

mundo complicar o estabelecimento de uma ficção sobre todas as outras, ela também vê o

Parlamento das Coisas de Latour como permitindo que cada novo representante complique o

328 “We shall say of a collective that it is more or less articulated, in every sense of the word: that it “speaks” more, that it is subtler and more astute, that includes more articles, discrete units, or concerned parties, that it mixes them together with greater degrees of freedom, that it deploys longer lists of actions. We shall say in contrast that another collective is more silent, that it has fewer concerned parties, fewer degrees of freedom and fewer independent articles, that it is more rigid. We can even say of a two-house collective, made up of free subjects and indisputable natures, that it is completely inarticulate, totally speechless, since the goal of the subject-object opposition is actually to suppress speech, to suspend debate, to interrupt discussion, to hamper articulation and composition, to short-circuit public life, to replace the progressive composition of the common world with the striking transfer of the indisputable – facts or violence, might or right.” 329 Tânia Stolze Lima (1999) demonstra muito bem esse caráter escorregadio. Ela argumenta que, ao sugerir que os pré-modernos – que estão envolvidos no processo de mediação e não de purificação – não separam natureza e cultura, enquanto nós – modernos purificadores – o fazemos, Latour está resgatando o mesmo Grande Divisor que ele tenta descartar. Mas esta observação mesma se sustenta na ênfase de que uma premissa da regra de Latour é não acreditar nos cientistas (Lima 1999: 44), aqueles que nos fariam acreditar que natureza e cultura são separadas. Entretanto, como mostrei, Latour freqüentemente aponta para o fato de que os próprios atores que lhe demonstram a impossibilidade de escolher entre o ‘real’ e o ‘construído’, os que enlistam os mais elementos heterogeneos, são os próprios cientistas. 330 “triumph of scientific enterprises, for it constitutes the generalized putting to the test of fictions”

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problema de reuni-los, o que celebra o humor que permite a proliferação de interesses e

práticas. Não é nem revolucionário, porque já existe, nem reformista, porque é um ‘rizoma’,

sem limites e sem um princípio de exclusão. Ele pertence ao presente “como um vetor de

devir... um instrumento de diagnose, criação e resistência” (ibid: 155). A resposta para a

questão “somos ou não modernos?” é, talvez, que seremos aquilo que agora fazemos de nossa

modernidade.

Stengers pode descrever os coletivos de Latour nestes termos talvez porque ela tenha

descrito a ciência moderna em termos de irredução e humor; sua descrição da ciência

moderna está em continuidade com esta mesma ciência moderna, até o ponto em que é o que

ela diz que é. Seu projeto normativo que distingue entre uma boa e uma má ciência é também

uma espécie de manifesto político, distinguindo entre a boa e a má política – ambas devem

“irreduzir”. É neste sentido que o coletivo é uma celebração da ciência moderna. Entretanto, a

relação de Latour com aqueles que estuda é ligeiramente mais opaca. Ele parece descrever a

ciência inicialmente como uma aventura estabilizadora e purificadora, e sua prática, a

‘ecologia política’, como desestabilizadora. Ele traça as redes que os cientistas fazem, mas o

que ele demonstra ao fazê-lo é que essas múltiplas entidades são empregadas em nome da

verdade e da realidade; ele enfatiza as caixas-pretas das múltiplas conexões – a redução

praticada pela ciência. Enquanto tal, as explicações científicas são exatamente aquilo que não

devemos fazer enquanto “ecologistas políticos” (Latour 2004a)331.

Tal tendência, presente nas descrições que Latour faz da ciência, é talvez aquilo com o

que Holbraad implica (e deve-se notar aqui que eu venho dialogando, e continuo a fazê-lo,

com o problema Holbraad, procurando questionar a ‘estabilização’ tanto dos cientistas quanto

de Latour). Mencionei, no segundo capítulo, o modo com que Latour parece, ao mesmo

tempo, se distanciar e se aproximar da prática científica ao longo de sua obra. Sua relação

com a prática científica parece mudar, de modo que a prática científica seja parte do mesmo

processo geral de construção de rede (1986 [1979]), mas ao mesmo tempo não seja algo a ser

imitado (1988b); isto é o que resume o processo de purificação (1991 [1993]), mas ao mesmo

tempo é o que lhe revelou, antes de tudo, a mediação (1999a); e, ao descrevê-lo, se nossa 331 Notem a diferença de tom nos títulos dos livros de Latour e Stengers, por exemplo, We Have Never Been Modern, e The Invention of Modern Science. No primeiro caso, a ciência é mostrada como tendo sempre um processo de rede, não importa o que é dito sobre ela; no segundo, a ‘invenção’ e a ‘construção’ são negadas e reelaboradas como ‘inventividade’. Os dois apontam para a mesma coisa, talvez, mas com diferentes ênfases retóricas nos cientistas/modernos.

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descrição é boa, nós necessariamente o reunimos – “seguindo os atores”. De fato, foi

estudando a ciência que Latour despertou para a impossibilidade de descrever a prática

científica em termos de formas puras: “Será que Pasteur não percebe a dificuldade ou nós é

que não conseguimos reconciliar o construtivismo e o empirismo tão prontamente quanto ele?

De quem é tal contradição – de Pasteur ou nossa?... Enquanto não compreendermos por que

aquilo que nos aparece como contradição não aparece assim para Pasteur, fracassaremos em

aprender com aqueles que estudamos – simplesmente imporemos nossas categorias filosóficas

e metáforas conceituais a suas obras (1999a: 129)332. Não tenho nenhuma ‘conclusão’

adicional a acrescentar a isso; o que eu posso sugerir é que, talvez assim como Stengers

mostra que a ciência, uma vez tirada do laboratório, se torna facilmente um princípio de

redução, uma retórica mobilizadora que “leva a diversidade de volta ao mesmo” (2000a

[1993]: 115) (seja este ‘mesmo’ as leis universais da física ou os genes), também o trabalho

de Latour pode ser mobilizado neste estilo. Como vimos com “a grande pergunta do LBA”,

parece haver apenas a proliferação das possibilidades mais do que a estabilização de uma

resposta universal, e isto é reconhecido pelos cientistas com os quais falei. No entanto, as

respostas cristalizadas ‘mundo afora’ parecem abundar – a mídia anuncia a todo instante que

“a grande pergunta” foi respondida, e eu duvido que financiamentos fossem obtidos se

admitíssemos que, no fim das contas, não há nenhuma resposta. A tarefa de reunir muitas

associações, interessando tantas entidades quanto possível, e de ‘compor o coletivo’, é uma

tarefa em andamento. Mas por vezes ela é interrompida. Como escreve Latour, “meu próprio

texto está em suas mãos e sua vida ou morte depende do que você fará com ele” (1988b: 171).

Aquilo que fazemos das idéias e práticas, estejam elas em “nossa” antropologia ou na dos

“outros”, cabe a nós mesmos. Como escreve Stengers “saber que já não podemos crer não

significa ‘parar de crer’ ou nos retirar de nossa herança – foi um mal-entendido ou um erro,

não visto ou conhecido – mas, antes, aprender a prolongar a herança diferentemente” (2000a

[1993]: 151)333.

332 “Is Pasteur unaware of the difficulty, or are we unable to reconcile constructivism with empiricism as readily as he does? Whose contradiction is this – Pasteur’s or ours?...as long as we do not understand why what appears to us as a contradiction is not one for Pasteur, we fail to learn from those we study – we simply impose our philosophical categories and conceptual metaphors on their work” 333 “knowing we can no longer believe does not ean 'ceasing to believe' or ridding ourselves of our heritage – it was a misunderstanding or an error, neither seen nor known – but rather learning to prolong the heritage differently”. Seria interessante comparar esse aspecto do trabalho de Stengers com o de Strathern no texto “Out of Context: The Persuasive Fictions of Anthropology” (Strathern 1990), mas, infelizmente, isso terá que ser adiado por enquanto.

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A relação de Latour com aqueles que estuda pode nos levar a um questionamento

sobre reflexividade. Sugeri, no terceiro capítulo, que uma das diferenças entre as abordagens

de Latour e de Wagner pode ser encontrada no modo como a ‘reflexividade’ aparece em suas

obras. Em um artigo escrito em 1988, Latour sugere que ‘explicação’ é justamente o que não

deveríamos buscar. Fornecer uma explicação é “trabalhar para construção do império”

(1988b: 162). Portanto, nós queremos mesmo participar da construção de redes? Queremos,

enquanto cientistas sociais, nos adicionar à torrente de disciplinas que já reduzem os diversos

problemas do mundo a uma, e apenas uma, resposta? Sua resposta é não, claro – “queremos

ser, ao mesmo tempo, mais científicos do que as ciências – já que tentamos escapar de seus

esforços – e muito menos científicos – uma vez que não queremos lutar com as mesmas

armas... Procuramos explicações mais fracas em lugar das mais fortes, mas, ainda assim,

gostaríamos que esses fracos relatos derrotassem os mais fortes...” (ibid: 165)334. Ele

prossegue sugerindo que a melhor maneira de ser reflexivo sobre aquilo que fazemos é

“apenas oferecer o mundo vivido e escrever. Não é isso que os romancistas fizeram por

séculos?” (ibid:170). Um texto que versa sobre si próprio não é mais reflexivo do que um

artigo em uma revista científica; estes relatos estão lado a lado, todos eles têm ligações com

alguma outra coisa, eles são “todos iguais” (ibid: 168); eles estão numa relação análoga antes

que hierárquica. Ao invés de prescrever estratos de reflexividade, ele sugere que “peguemos a

reflexividade de algum outro lugar” (ibid: 169).Aqui é onde sua idéia de uma infra-linguagem

e explicações descartáveis torna-se evidente – pois alcança-se a reflexividade seguindo o

máximo possível o que os atores estão fazendo, prestando atenção à sua metafísica,

privilegiando a auto-explicação sobre a auto-referência, e modificando sua explicação para

dar conta de suas ações surpreendentes. A banalidade disso, a “deflação do método” (ibid:

170) que engendra, é exatamente o traço mais ‘reflexivo’ de sua abordagem, pois se concentra

naquilo que todos nós estamos fazendo, ou seja, processos de mediação e associação, tentando

reunir as entidades em redes. Isto é exemplificado pela reunião destas redes, mas não é

preciso nenhuma desconstrução ou reflexividade analítica para fazê-lo:

“Argumento que há mais reflexividade em um relato que faça o mundo vivo do que em cem piruetas

auto-referenciadas que trazem o enfadonho espírito pensante de volta ao palco... Retornemos ao

mundo, ainda desconhecido e menosprezado. Se você desdenha desse argumento e diz ‘isso é retornar

ao realismo’, é isso mesmo. A escassez de relativismo nos afasta do realismo; o excesso nos traz de 334 “we want to be at once more scientific than the sciences – since we try to escape from their struggles – and much less scientific – since we do not wish to fight with their weapons...we are looking for weaker, rather than stronger explanations, but we would still like these weak accounts to defeat the strong ones...”

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volta” (1988: 173)335.

No entanto, ao mesmo tempo, o argumento geral de Latour é persuasivo exatamente porque

ele ‘manteve seu prisma fixo’ (purificado?): os binarismos natureza/cultura, pré-modernos/modernos,

ciência/sociedade são todos reificados como parte da mesma “constituição moderna”, e a potência

desse argumento, portanto, reside justamente em sua habilidade de afastá-los todos de um só golpe.

Como escreve Strathern, “em outros mundos eu veria intenção ideológica... – no desejo de produzir

uma dicotomia (natureza vs. cultura) a partir de um conjunto de combinações (todos os significados

que natureza e cultura possuem em nossa cultura, rica em ambigüidade semântica). É a mesma lógica

que cria “oposição” a partir da “diferença” (1980: 179)336. Não parece haver senão haver uma

ideologia ‘por trás’ da ‘simetria’ de Latour, e uma ‘reflexividade’ por trás da banalidade. A

proliferação de diferenças pode sempre se tornar uma questão de oposição –

“representacionismo versus anti-representacionismo”. Latour caracteriza os “modernos” como

fazendo sempre o oposto do que dizem fazer: “Manter-se cegos em relação a si próprios: esta

era uma parte integral da própria máquina de modernidade dos modernos” (Latour 2003:

14)337; mas essa acusação pode ser dirigida ao próprio Latour? Como Jensen (2008) apontou,

a linguagem de Latour não é nada mais do que banal, e usa em grande parte jargões e

estratégias narrativas – ele é de fato famoso por seu estilo inflamado. Mas ele o faz

conscientemente? Talvez essa não seja uma questão importante, mas é uma questão

interessante. Ao final do artigo de 1988, ele parece fazê-lo: “se... a procura por explicações

fracas e não-científicas parece desalentadora, lembremos que as ciências são ainda jovens

assim como nós – fornecer o estilo retórico de alguns ‘star warriors’ não leva a história inteira

a um fim abrupto” (1988b:176)338. Mas, como Stengers – e novamente eu a acho muito

perspicaz (talvez com excessiva generosidade) – sugere, apenas uma pessoa bem-humorada é

capaz de humor – somente uma pessoa que se reconhece como produto da história cuja

construção está tentando acompanhar está apta para a tarefa: “a única pessoa que poderia

fazer essa história seria um historiador que soubesse o que significa para ele ‘ter sido

335 “ I claim there is more reflexivity in one account that makes the world alive than in one hundred self-reference loops that return the boring thinking mind to the stage....Let us go back to world, still unknown and despised. If you sneer at this claim and say “this is going back to realism”, yes it is. A little relativism takes one away for realism; a lot brings one back” 336 “in other words I would see ideological intention…- in the desire to produce a dichotomy (nature vs culture) out of a set of combinations (all the meanings that nature and culture have in our culture, rich in semantic ambiguity). It is the same logic which creates “opposition” out of “difference” 337 “[B]eing blind towards oneself: that was an integral part of the very modernity machine of the moderns” 338 “if...the search for non-scientific and weaker explanations...seems daunting, let us still remember that the sciences are young and so are we – provided the rhetorical style of some star warrior does not bring the whole story to an abrupt end”

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moderno’, sem denunciar aquilo que ele tem sido, ou desvelar os truques e ilusões dos quais

foi vítima; ou seja, sem opor as verdades construídas pelas ciências a outra verdade de maior

potência – mesmo que seja o desafio a priori de qualquer verdade que não está reduzida a uma

crença ‘como as outras’” (Stengers 2000a [1993]: 66). Se assim é como o humor é distinto da

ironia, então Latour é bem-humorado ou irônico? E como nós, enquanto ‘herdeiros’ de seu

‘evento’, imaginamos esta diferença?

Sugeri tentativamente que, se Wagner revela e provoca o paradoxo, Latour pretende

“contorná-los”; se Wagner faz da reflexividade uma virtude, Latour visa igualmente contorná-

la. Mas, evidentemente, ao contornar, deve-se revelar, e ao revelar, há uma chance de

contornar. Os quatro autores em direção aos quais tentei levar minha dissertação podem ser

relacionados de diversas maneiras. Tanto Stengers quanto Strathern tomam a tarefa de seus

professores escolhidos, Latour e Wagner, respectivamente, e direcionam essas tarefas de

diferentes formas. Como autores, eles também participam uns dos outros, e as analogias que

tentei sustentar ao longo de minha dissertação são um atestado da forma complicada que

podem fazê-lo. A extensão que esses autores constituem uma “nova ortodoxia” está, talvez,

nas mãos daqueles que a utilizam. Certamente, há uma interna e reveladora diferenciação. Um

dos pontos de convergência, que sugeri anteriormente, é que Strathern, Stengers e Latour

todos usam a noção de ficção. Essa aproximação, contém, é claro, sua própria variação, que

não posso explorar satisfatoriamente aqui. Para Stengers, o novo problema é evitar concluir

que “as ciências são nada mais do que ficções”, como se soubéssemos que a ficção é,

naturalmente, o oposto de “verdade”. Devemos entender a singularidade das ficções

científicas e levar a sério sua vocação, não para descobrir, mas para “criar verdade”. Verdade

não pode ser oposta a ficção. Para Latour, é para os “gêneros ficcionais” (1988b: 173) que

devemos olhar, para que sejamos verdadeiramente reflexivos, e, de fato, ‘objetividade’

repousa na própria idéia de ficção como artificialidade, o construído – à mutuamente

implicada trajetória etimológica de “fait” (como ‘fato’ e como ‘feito’), podemos adicionar a

de “fictus”. Strathern planeja escrever ficções, “persuasivas” talvez – mas o que é ‘persuasivo’

ou não depende da relação específica entre escritor, leitor e o objeto em questão. Suas

oposições (nós-eles, dom e mercadoria, entre outros) são ficções que operam dentro dos

limites de um plano (Ocidental); mas, para tudo isso, elas funcionam. Se ‘nossa’ visão

consumista de que “todo conhecimento é auto-conhecimento” é o que representa a vida como

um texto (1990: 119), é também a ‘nossa’ análise retrospectiva o que nos permite perceber

isso. Todos os autores refiguram o que ‘ficcional’ pode significar, recusando opor ‘ficcional’

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a ‘verdade’. Stengers, na anedota narrada no início deste capítulo, encontra na mecânica

quântica a mesma confrontação paradoxal com os limites das “linguagens poderosamente

formalizadas” (Stengers 1997: 62) que talvez Strathern encontre na Melanésia. Mas isso pode

estar indo longe demais. Ao invés disso, podemos aqui começar a pensar através da noção de

“simetria”, já que, enquanto Stengers e Latour estão, neste sentido específico do termo,

tentando recapturar a natureza ‘ficcional’ da ciência, Strathern está tentando revelar a natureza

‘ficcional’ de sua própria iniciativa. Aqueles que sempre foram pensados exatamente como

não lidando com ficções, estão sendo mostrado como as criando, e aqueles que sempre foram

pensados como vivendo em mundos ‘ficcionais’, estão sendo mostrados a revelar a natureza

ficcional de nossas próprias iniciativas. Isso é, mais uma vez, um movimento purificador de

minha parte, uma tentativa de parar. Essa caracterização embotada, é claro, pede mais

explanações. Mas devemos seguir em frente.

Os autores se interceptam de outros modos interessantes. Strathern (1996, 1999a) fez

alguns comentários incisivos sobre o trabalho de Latour que podem reveler algumas dessas

relações e, ao fazê-lo, nos leva a diferentes esferas de questionamento que, no entanto, ao

mesmo tempo nos traz de volta às várias oposições e aproximações pelas quais viemos

transitando ao longo do trabalho. Irei simplesmente indicar os pontos que eu acho mais

salientes; novamente, eu não chego a nenhuma conclusão, mas meu objetivo é apenas esboçar

brevemente algumas das direções nas quais devemos seguir. A avaliação que Strathern faz de

Latour e a noção de rede demonstra, eu diria caracteristicamente, um desejo de não nos

apressar a conserver a diferença. No cerne de sua crítica está a noção de que a idéia de rede

deve ser situada como uma idéia occidental em seus usos particulares. A noção de uma rede

ou um híbrido pode ser internamente diferenciada de si própria, e quando aplicada for a do

contexto original, o Ocidente, sua ubiqüidade é limitada pelo próprio contexto constitutivo

que propõe sua ubiqüidade. Ela nos mostra redes “heterogêneas” – uma mistura Latouriana de

‘formas puras’ – e “homogêneas” – cadeias contínuas de identidade – dentro da ciência (e

aqui ela está “obstinadamente misturando velhas e novas” noções de “rede” (Strathern

1996:531)). No entanto, na Melanésia, estas mesmas categorias não podem ser tidas como

dadas – uma rede “homogênea” na Melanésia pressupõe “uma continuidade de identidades

entre formas humanas e não-humanas”, enquanto que uma rede heterogênea é uma na qual

“pessoas são diferencidas umas das outras por suas relações sociais” (ibid: 525). Ou seja, a

idéia Latouriana de uma “rede heterogênea” depende de uma noção ocidental a priori das

formas puras (humanos/não-humanos, natureza/cultura) que as torna aptas para a mistura; e a

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homogeneidade depende de uma compreensão ocidental das relações como pressupondo uma

identidade comum. Sugiro que isto é talvez um dos sentidos (intencional ou não) nos qual

‘mediação’ requer ‘purificação’.

Strathern também aponta que:

“O poder de tais redes analíticas é também o seu problema: teoricamente, elas são ilimitadas.

Se elementos diversos fazem uma descrição, eles podem ser vistos como extensíveis ou retraídos na

medida em que a análise é extensível ou retraída. A análise parece ser apaz de lever em conta, e

portanto crier, um sem-número de novas formas. E sempre se pode descobrir redes dentro de redes; tal

é a lógica fractal que permite que cada extensão seja uma multiplicidade de outras extensões, ou um

elo em uma cadeia seja uma cadeia de novos elos. Ainda assim, a análise, como a interpretação, deve

ter um sentido; ela deve ser representada como um ponto de parada” (1996: 523)339.

Este ponto de parade pode ser visto como o momento da condensação, e tal

condensação pode, inesperadamente, assumir a forma de um híbrido – pois as redes podem

ser vistas como híbridos em uma forma socialmente expandida, e os híbridos como redes

condensadas. Do mesmo modo, qualquer entidade dentro da rede contém sua própria rede.

Logo, no ato de condensação, “o híbrido euro-americano, enquanto imagem de fronteiras

dissolvidas, de fato deslocam a imagem da fronteira ao assumir seu lugar” (ibid: 523)340. Isto

significa que, conceitualmente, ele pode limitar ou estender nosso entendimento de outras

culturas. Mas ele também é representado na maneira como ela mostra que, em um contexto

indígena (científico-ocidental), a noção de um híbrido como uma rede condensada é uma

soma ou condensação (dita na forma de uma “invenção” científica) que, ao ser ‘possuída’,

corta a rede da qual faz parte e que constitui – “ao mesmo tempo a coisa que se tornou o

objeto de um direito e o direito de uma pessoa nele, a propriedade é, pode-se dizer, uma rede

em forma manipulável” (ibid: 525)341. As redes são expansíveis e contráteis. As maneiras

pelas quais elas o são são específicas a diferentes contextos indígenas, e repousam sobre os

339 “the power of such analytical networks is also their problem: theoretically, they are without limit. If

diverse elements make up a description, they may seem as extensible or involuted as the analysis is extensible or involuted. Analysis appears to be able to take into account, and thus create, any number of new forms. And one can always discover networks within networks; this is the fractal logic that renders any length a multiple of other lengths, or a link in a chain a chain of further links. Yet analysis, like interpretation, must have a point; it must be enacted as a stopping place”

340 “the Euro-American hybrid, as an image of dissolved boundaries, indeed displaces the image of boundary when it takes boundary’s place” 341 “at once the thing that has become the object of a right and the right of a person in it, property is, so to speak, a network in manipulable form”

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modos pelos quais as relações são diferentemente percebidas em tais contextos. “Estas noções

alteram a possibilidade interpretativa da ilimitação: os tipos de interesse, pessoais ou sociais,

que levam à extensão também a impedem, e os híbridos que parecem aptos a misturar

qualquer coisa podem servir de contornos para claims” (ibid: 531)342. Aqui, a sugestão de

Latour, de que a diferença entre ‘modernos’ e ‘pré-modernos’ é a extensão das redes que eles

constróem, é solapada pelo desafio que Strathern coloca à própria noção de rede.

O híbrido e a rede são imagens poderosas para nós justamente porque reencenam

nossas sensações ocidentais de “extensão infindável e entrelaçamento dos fenômenos”

(Strathern 1996: 522); mas o senso de parcialidade que engendram, como explorado no

primeiro capítulo, e o senso de insuficiência que eles geram não necessariamente implicam

em algo mais do que isso. Ou seja, a própria linguagem dos contornos, numa tentativa de

superar essa sensação de parcialidade, “levanta expectativas inapropriadas para a análise

social” (ibid: 520), pois inescapavelmente “a complexidade das interações entre as pessoas

que podem ser apreendidas sociologicamente não encontra um substituto simples na sutileza

com a qua los contornos categóricos podem ser repensados” (ibid: 520). Portanto, uma

diferença irredutível é instalada em relação à nossa habilidade de levar em conta outros

modos de ‘cortar’ e ‘fluir’, e também entre esses mesmos diferentes modos. Tal extensão da

noção de ‘rede’, portanto, possui alguns senões. A hipótese de Latour de que os “modernos” e

os “pré-modernos” estão todos envolvidos na construção de redes, mas a diferença entre eles é

apenas uma questão do tamanho das redes (1993 [1991]: 114-119), é de algum modo virada

ao avesso – tanto no contexto moderno quanto no pré-moderno, as redes são feitas para ter

diferentes tamanhos, e cabe ao analista explorar etnograficamente em detalhe os modos pelos

quais isso se faz. Ilimitação (ou, de fato, ‘o coletivo’) não é um conceito mais fértil do que

contorno, a não ser que seja usado de modo a permitir a emergência de diferentes formas e

práticas. E isso, por vezes, pode requerer uma parada – “um momento de pausa interpretativa”

(Strathern 1996: 522)343. Logo, o analista não apenas se envolve na construção e traçado das

redes, mas também em seu corte.

Este parece um bom lugar para chegarmos a um ponto final. As imagens e analogias que eu

empreguei ao longo da dissertação permanecem, quase com certeza, inexploradas. Mas a

342 “These notions challenge the interpretative possibility of limitlessness: the kinds of interests, social or personal, that invite extension also truncate it, and hybrids that appear able to mix anything can serve as boundaries to claims” 343 “a moment of interpretatice pause”

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cumplicidade, aquilo que nos permite pensar o impensável, pensando através do outro, é

sempre denunciada como exploração. Claro, isso é assumir que eu partilho a mesma noção de

exploração com aqueles que estudo. Minha ignorância aqui é talvez mais do que etnográfica.

Tenho em mente a observação de Miyazaki e Rile de que “[M]uitas estratégias analíticas que

povoam a antropologia contemporânea... em resposta à nossa apreensão com o fim de seu

próprio conhecimento... recusam-se a conhecer. E elas também se recusam a reconhecer o

fracasso de seu próprio conhecimento situando a indeterminação e a complexidade ‘out

there’” (2005: 327)344. Talvez, como eles sugerem, o ‘fracasso’ no encontro, seja nas

expectativas que nossos nativos possuem acerca de si próprios (como fazem Miyazaki e

Riles), ou na incapacidade de nossas análises de levar em conta essas expectativas, implica

que “ao invés de passar pelo ponto final a caminho de novos (e auto-conscientemente

limitados) começos”, devemos “preferir conhecer o ponto final de modo sustentável” (2005:

328)345. Stengers nos incita a “prolongar diferentemente nossa herança” (2000a (1993]: 152).

Não é uma questão de superação, mas de aprender a olhar para os erros do passado com

humor. A perplexidade é um estado compartilhado. Ao lado de sua caracterização do

Parlamento das Coisas do Latour, o devir coletivo, como um estabelecimento de “uma

comunicação paradoxal entre tudo o que progride, no sentido clássico do termo, sugeria que

opuséssemos o reformismo que humaniza e organiza em continuidade e a revolução que

denuncia e cria rupturas” (2000a [1993]: 152), talvez seja preferível que esse texto, enquanto

movimento, não pareça ter progredido a lugar algum, mas apenas tentado ao máximo

interessá-lo, sendo o mais interessado possível naqueles que o moveram.

Durante o 11º Encontro da Equipe Científica da LBA-ECO, em Salvador, que reuniu

um imenso tropel de cientistas e pesquisadores de todo o mundo, os quais participaram da

LBA, eu conversei com um jovem estudante de Mestrado, que lá tinha ido apresentar um

cartaz sobre fluxo de carbono. Tivemos uma discussão muito interessante, na qual ele me

alertou que, já há muito tempo, projetos como o LBA tomaram conhecimento de teorias

físicas e matemáticas não-lineares e não-equilibradas, como os fractais de Mandelbrot, e a

teoria de Prigogine do tempo não-reversível. Ele estava agradavelmente surpreso com o fato

de que uma estudante de antropologia tivesse ouvido falar de Prigogine e fractais. Eu

344 “[M]any of the analytical strategies that populate the anthropology of the contemporary…in response to the apprehension of the endpoint of their own knowledge…retreat from knowing. And they also retreat from the recognition that of the failure of their own knowledge by locating indeterminacy and complexity “out there”” 345 “instead of passing through the endpoint on the way to new (but self-consciously limited) beginnings” we should “prefer to know the endpoint in a sustained way”

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comentei que Prigogine, de fato, tinha escrito um livro com uma filósofa da ciência belga,

Isabelle Stengers. Ele tomou nota e disse que tentaria lê-lo assim que retornasse a Manaus.

Comentei isso porque minha descriçãio está situada em um certo lugar e época. Mas estas

épocas e lugares estão quase certamente mudando.

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