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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
ESCOLA DE MÚSICA
LICENCIATURA EM MÚSICA
JASON DESIDERIO BEZERRA
IDENTIDADE DO PROFESSOR DE MÚSICA:
COMPREENDENDO OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DOCENTE
NATAL – RN
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
ESCOLA DE MÚSICA
LICENCIATURA EM MÚSICA
JASON DESIDERIO BEZERRA
IDENTIDADE DO PROFESSOR DE MÚSICA:
COMPREENDENDO OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DOCENTE
Monografia apresentada ao curso de
Licenciatura Plena em Música da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN – como requisito parcial
para a obtenção do Grau de Licenciado
em Música.
Orientador: Profa. Drª Valéria Lázaro de
Carvalho
Coorientador: Esp. Gislene de Araújo
Alves
NATAL – RN
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
ESCOLA DE MÚSICA
LICENCIATURA EM MÚSICA
JASON DESIDERIO BEZERRA
IDENTIDADE DO PROFESSOR DE MÚSICA:
COMPREENDENDO OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO DOCENTE
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profa. Dr.ª Valéria Lazaro de Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Orientadora
________________________________________________
Profa. Esp. Gislene de Araújo Alves
Instituto Federal do Rio Grande do Norte - IFRN
Coorientador
__________________________________________________
Profa. Ms. Catarina Shin Lima de Souza
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Avaliador
DEDICATÓRIA
A Deus autor e consumador de minha fé, e a minha mãe Zenilda
Barros Desiderio por todo carinho, dedicação e apoio que foram
condições relevantes para obtenção de êxito em minha
caminhada acadêmica.
AGRADECIMENTOS
Tudo quanto tem fôlego louve ao Senhor. Louvai ao Senhor!
(Salmos, 150.6)
A minha orientadora Profa. Dr.ª Valéria Lazaro de Carvalho pelo emprenho
dedicado à elaboração deste trabalho.
A minha coorientadora Gislene de Araújo Alves, pelo suporte nо pouco tempo
qυе lhe coube, pelas suas correções е incentivos.
Obrigado meus irmãos е a minha sobrinha, que nоs momentos dе minha
ausência dedicados ао estudo superior sempre foram compreensíveis.
Um muito obrigado em especial para a minha mãe Zenilda Desiderio, que me
apoiou deste os meus primeiros passos em direção a música condição relevante para que
eu prosseguisse.
Meus agradecimentos аоs amigos, companheiros e professores do CIART е
irmãos nа amizade quе fizeram parte dа minha formação е quе vão continuar presentes
еm minha vida.
EPÍGRAFE
Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada
pessoa é única e nenhuma substitui outra. Cada um que passa
em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos, deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito, mas não há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida, e a prova de que
duas almas não se encontram ao acaso.
Antoine De Saint-Exupery, O Pequeno Príncipe
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo geral analisar o processo de construção da identidade
docente, centrado na valorização da singularidade do sujeito em permanente formação.
Buscou-se compreender as relações e significados emergidos a partir do processo de
(auto) formação, sendo evidenciados os processos de formação, de conhecimento e de
aprendizagem. O referencial metodológico e conceitual de formação docente e
aprendizagem de Marie-Christine Josso e Maurice Tardif, assim como a abordagem
(Auto)Biográfica, constituíram meu referencial teórico. A pesquisa foi realizada através
da abordagem (Auto)Biográfica em que o sujeito é o responsável pela elaboração e
reconstrução de sua memória, narrando acontecimentos a partir de uma demanda de
investigação. O trabalho contribui para que a área de educação musical possa entender o
processo de formação docente como um momento único, no qual o caminhar para si
contribui significativamente para compreensão da formação da identidade profissional.
Palavras-chave: Pesquisa (Auto)Biografica, narrativas de formação, identidade
docente.
ABSTRACT
This work aimed to analyze the process of construction of teacher identity, focused on
the value of the subject's uniqueness in ongoing formation. He sought to understand the
relationships and meanings emerged from the process (self) training, and highlighted
the training processes, knowledge and learning. The methodological and conceptual
framework for teacher training and learning Marie-Christine Josso and Maurice Tardif,
as well as the approach (Auto) Biographical, were my theoretical framework. The
survey was conducted by addressing (Auto) Biographical where the subject is
responsible for the development and reconstruction of their memory, recounting events
from a research demand. The work contributes to the music education area can
understand the teacher education process as a unique moment, where the walk to itself
contributes significantly to understanding the formation of professional identity.
Keywords: Search (Auto) Biographical, training narratives, teaching identity.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Posições Existenciais .............................................................................................. 34
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
2 REVISÃO DA LITERATURA ................................................................................ 13
2.1 Compreendendo os caminhos de si: da pesquisa a formação ............................... 14
2.2 Aprender a ser professor .................................................................................. 16
3 CAMINHOS METODOLÓGICOS ......................................................................... 19
3.1 Pesquisa (auto) biográfica ..................................................................................... 19
3.2 A coleta de dados ............................................................................................. 21
4 Caminhar para si: construindo sentidos ................................................................. 22
4.1 O Despertar Pela Música ...................................................................................... 23
4.2 Entre o som e o silêncio ........................................................................................ 26
4.3 O Nascer de um Professor .................................................................................... 32
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 37
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 39
11
1 INTRODUÇÃO
Se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei
um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos
me fazem entrar de baixo da terra. Os teus me chamarão para fora da
toca, como se fossem MÚSICA. E depois, olha! Vês lá de longe, os
campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim não vale nada.
Os campos de trigo me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu
tens cabelos dourados. Então será maravilhoso quando me tiveres
cativado. O trigo, que é dourado, fará com que eu me lembre de ti. E
eu amarei o baralho do vento no trigo ...
Saint-Exupéry, O Pequeno príncipe
No transcurso de nossas vidas, temos contatos com inúmeras pessoas em
diferentes situações. Cada qual com a sua importância e significado, algumas dessas
vivências passam sem deixar grandes marcas, outras como o pequeno príncipe na vida
da raposa, nos cativam e de alguma maneira ficam registradas para sempre. Muito do
que construímos e somos hoje, como nossas atitudes, formação pessoal e profissional,
ideias e escolhas estão vinculados as vivências e experiências que exercem uma função
relevante na construção de nossa história de vida.
Este trabalho monográfico tem como foco do estudo revelar a formação da
identidade docente em música, tendo como foco a valorização da singularidade como
um dos elementos centrais no processo da construção da identidade profissional.
O interesse pelo tema surgiu a partir de lembranças acerca de minha formação
pessoal e profissional, o olhar para si como um momento de formação e valorização das
experiências formadoras, sendo as mesmas consideradas de fundamental relevância na
construção da identidade docente.
As discussões sobre a formação da identidade profissional têm estado em
evidência nos últimos anos, sendo ressaltado o processo da inter-relação entre a
experiência e a reflexão evidenciando como, e quais experiências se fazem relevantes
no constructo da prática docente. Nessa perspectiva, ao refletir acerca das experiências
emerge um eu mais consciente a respeito do processo de formação.
O trabalho configura-se como pesquisa qualitativa e utiliza como metodologia
de pesquisa a abordagem (Auto)Biográfica, buscando compreender as inter-relações
entre o sujeito e suas experiências, na busca pela tomada da consciência de si,
construindo por sua vez caminhos de reflexão da própria trajetória de vida pessoal e
profissional. Para Carvalho,
12
O relato biográfico como ato narrativo que proporciona ao sujeito
sempre uma nova oportunidade de se apresentar, recontar e
reposicionar-se, tecendo e retecendo a intriga, sob os limites da
discordância do destino, do tempo e do desconhecimento de si mesmo
(CARVALHO, 2003, p.298).
Nessa perspectiva, a abordagem (Auto)Biográfica oferece-se não só como uma
ferramenta de pesquisa, como também de formação haja vista que ao contar e refletir o
transcurso formativo de vida é possível reorganizar e reconstruir uma identidade. Este
trabalho está dividido em três partes: a revisão da literatura, os caminhos metodológicos
e o caminhar para si: construindo sentidos.
Na revisão da literatura alguns autores que discutem a aprendizagem docente em
música, a formação e construção da prática docente, bem como estudiosos que
apresentam a pesquisa/formação e a abordagem (auto) biográfica como um método e
uma prática de formação.
Nos caminhos metodológicos discorre-se sobre a pesquisa (Auto)Biográfica e
suas vertentes, sendo ressaltado o processo de investigação e formação que se revela
como condição pertinente para o caminho de autocompreensão, sendo levados em conta
as aprendizagens que constituímos ao longo de nossa vida. O processo de coleta de
dados foi realizado através da criação de um diário de formação (Auto)Biográfico,
através da escrita etnográfica (Pesquisador-narrador-personagem).
O caminhar para si: construindo sentidos, é a análise do meu diário (auto)
biográfico que está pautada na tomada de consciência de si, e nas relações e significados
emergidos a partir do processo de (auto)formação. Que procurou evidenciar os
processos de formação e aprendizagem da docência.
Na construção do diário foram ressaltadas experiências pessoas e profissionais
consideradas relevantes na construção da identidade do ser professor de música. O
diário apresenta três partes nas quais: a primeira parte intitulada “O Despertar Pela
Música” onde narro as minhas primeiras experiências musicais e auditivas, “Entre o
Som e o Silêncio” onde descrevo o início de meus estudos musicais como também as
influências recebidas pela família comunidade e amigos, e por último “O Nascer de Um
Professor” onde relato sobre minhas primeiras experiências como docente onde o
formar e o estar sendo formado se cruzam.
13
2 REVISÃO DA LITERATURA
As discussões sobre a formação da identidade docente, tem estado em evidência
nos últimos anos, sobretudo o processo da inter-relação entre a experiência e a reflexão
evidenciando como, e quais experiências se fazem relevantes no constructo da prática
docente. Nesse sentido pensar a experiência nos permite ir mais longe no processo
investigativo da pesquisa/formação, como também na compreensão dos processos
formativos.
Nessa perspectiva utilizei como aporte teórico a abordagem (Auto)Biográfica
tendo em vista a atenção particular que tal metodologia oferece aos sujeitos em processo
de formação. Em relação ao tema histórias de vida, autobiografia, biografia e narrativas
de formação é possível identificar trabalhos em livros e artigos publicados
recentemente. As principais publicações se desdobram na pesquisa/formação, na inter-
relação entre o sujeito e a experiência, e na busca pela tomada de consciência de si,
formando um caminho para reflexão acerca dos significados das narrativas de formação
(ABRAHÃO; 2003; 2009, CHENÉ; DOMINICÉ; FERRAROTTI; JOSSO, PINEAU;
NÓVOA 2010; SOUZA; 2006). Parte desses estudos destina-se a apresentar e discutir
metodologias e abordagens como ferramentas de pesquisa em que o sujeito e suas
experiências tornam-se objeto de estudo.
Os processos de aprendizagem docente em música acontecem de maneira
singular, tendo em vista a relevância das experiências formadoras sejam no âmbito
pessoal ou profissional que vão sendo internalizadas no decorrer da construção da
trajetória de vida. Sendo assim o “processo de aprendizagem do ser professor é um
processo único e liga-se às suas vivências e experiências pessoais e profissionais as
quais se desenrolam ao longo de sua vida, configurando seus pensamentos e práticas”
(SOUZA, 2012, p.49).
Nesse sentido alguns trabalhos que discutem a aprendizagem docente em
música, a formação e construção da prática docente (GAULKE; 2012; 2013,
BELLOCHIO; SOUZA; 2013, SAVELI; 2006; TARDIF; 2011). Alguns desses
trabalhos discutem a formação da prática docente, e outros sobre a prática docente
especificamente em música.
O processo de construção da docência é entendido por alguns autores a partir da
perspectiva acerca dos estudos sobre os saberes docentes, como levantado por Tamar
Genz Galke em sua dissertação, dentre os autores destacados estão Clermont Gauthier,
14
Lee Shulman, Maurice Tardif e Selma Garrido Pimenta (cf. GALK, 2013). Sendo
entendido esses saberes como “uma diversidade de conhecimentos, competências e
habilidades que caracterizam e devem ser inerentes ao profissional professor”
(HENTSCHKE, AZEVEDO; ARAÚJO, 2006 apud GALKE, p. 14). Os saberes
docentes são classificados como saberes “disciplinares, curriculares, profissionais
(incluindo os da ciência da educação e da pedagogia) e experienciais” (TARDIF, 2011,
p.33).
Nesse trabalho serão destacados os saberes experiências, “eles constituem, por
assim dizer, a cultura docente em ação” (TARDIF,2011, p. 49). Compreendendo que os
saberes experienciais, são um conjunto de saberes atualizados, assimilados e adquiridos
através da prática profissional, onde os mesmos não se encontram estruturados em
doutrinas e teorias, nem provêm de instituições de formação nem dos currículos.
2.1 Compreendendo os caminhos de si: da pesquisa a formação
A pesquisa (Auto)Biográfica contribui para o conhecimento e o reconhecimento
de si e da história de vida de cada sujeito aprendente no qual o processo de
autorreflexão permite-nos uma tomada de consciência acerca de nossa historicidade,
como também de narrar as vivências tornando-as experiências formadoras,
significativas e de vida.
A (Auto)Biografia apresentada nesse trabalho busca refletir acerca das
experiências formadoras e musicais, buscando compreender o processo de construção
da identidade do ser professor de música. Tendo em vista a particularidade que tal
abordagem favorece a interpretação e tomada de consciência de si e de seus processos
constituintes.
A abordagem biográfica, (Auto)Biográfica e as narrativas de formação vem
sendo um instrumento de grande relevância no processo investigativo acerca do sujeito
e suas experiências como elementos centrais no processo de pesquisa/formação. Nessa
perspectiva o trabalho configura-se como “investigação porque se vincula a produção de
conhecimento às relações do sujeito com a experiência: ter experiência, fazer
experiência e pensar a experiência”. (JOSSO, 2010, p. 12). O mesmo também é
formação partindo do princípio de que o sujeito “toma consciência de si e de suas
aprendizagens experiências quando vive, simultaneamente, ao papeis de ator e
investigador da sua própria história”. (JOSSO, 2010, p. 12).
15
Para Dominicé (2010, p. 148), “a biografia é um instrumento de investigação e,
ao mesmo tempo, um instrumento pedagógico”. Nesse sentido a (auto) biografia se
apresenta como um instrumento de pesquisa porque busca, através das experiências,
responder questões atreladas ao processo formativo do sujeito, estando o mesmo no
centro das preocupações sobre o conhecimento e a formação; e pedagógico, tendo em
vista o olhar para si como um momento de reflexão sobre as experiências formadoras,
podendo dizer em quê elas foram mais ou menos intensas no processo formativo.
As narrativas de formação se propõem como um caminho para auto
compreensão, sendo levadas em conta as experiências consideradas formadoras no
curso de nossa vida, o olhar para si como um momento de pensar e refletir os processos
formativos. Para Josso (2010, p. 84)
O processo de caminhar para si apresenta-se, assim, como um projeto
a ser construído no decorrer de uma vida, cuja utilização consciente
passa, em primeiro lugar, pelo projeto de conhecimento daquilo que
somos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação
conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural.
Sendo assim, esse transcurso de caminhar para si está atrelado ao ato de auto
orientação, sendo compreendido a partir das condições e possibilidades para uma
tomada de consciência do que já foi experienciado. Segundo Josso,
Elaborar a sua narrativa de vida e, a partir daí, separar os materiais,
compreendendo o que foi a formação, em seguida, trabalhar na
organização do sentido desses materiais ao construir uma história, a
sua história, constitui uma prática de encenação do sujeito que se torna
autor ao pensar a sua vida na sua globalidade temporal, nas linhas de
força, nos seus saberes adquiridos ou nas marcas do passado, assim
como na perspectivação dos desafios de presente entre a memória
revisitada e o futuro já atualizado, porque induzido por essa
perspectiva temporal (JOSSO, 2010, p. 86)
A construção da narrativa oferece-se como uma ferramenta relevante no
processo da construção da prática docente, haja vista os questionamos levantados acerca
de sua identidade em formação. Portanto, pensar a experiência é um trabalho
autorreflexivo que nos obriga a um olhar retrospectivo e prospectivo, em que, no
processo de autorreflexão, pode-se emergir um eu mais consciente e crítico sobre sua
caminhada. Dentre os objetivos das narrativas de formação está o de falar a experiência
formadora, conforme destacado por CHENÉ (2010, p. 133),
A narrativa de formação tem como objetivo principal, segundo o que é
pedido, falar da experiência de formação. Relativamente a narrativa de
vida, presume-se que a narrativa de formação apresente um segmento
16
da vida: aquele durante o qual o indivíduo esteve implicado num
projeto de formação.
Nesse sentido poderíamos considerar a narrativa de formação como um
“instrumento de avaliação formadora, à medida que permite ao adulto tomar consciência
das contribuições fornecidas por um ensino e, sobretudo, das regulações e
autorregulações que dele resultam para o seu processo de formação” (DOMINICÉ,
2010, p. 147).
No processo de formação e construção da identidade do sujeito aprendente,
colocar as ações em perspectivas temporais e espaciais se apresenta como um momento
expressivo no processo de autoformação, em que através da reflexão acerca dos seus
percursos o aprendente forma-se a si próprio. Sendo assim o caminhar para si está para
além da compreensão de como nos formamos ou nos transformamos, esse conjunto de
vivências no qual transformamos em experiências formadoras servem para assomar um
eu mais ativo e consciente de seus objetivos, articulando melhor nossas heranças,
experiências formadoras, pertenças, valorizações, desejos e imaginário. (JOSSO, 2010).
Trabalhar a questão identitária através da autobiografia nos permite evidenciar a
pluralidade e ao mesmo tempo a fragilidade da mesma, tendo em vista dois aspectos
centrais, o constante processo de transformação do sujeito, e a uma identidade definida
num dado momento de estabilidade conquistada. Sendo essas atreladas a “tomada de
consciência de que a questão identitária deve ser concebida como processo permanente
de identificação/ diferenciação e de definição de si através de identidades evolutivas,
como emergências socioculturais visíveis da existencialidade”. (JOSSO, 2010, p. 68).
Nesse sentido a construção da identidade é movida por uma diversidade de
aspectos, que integram as muitas facetas vitais da identidade, propondo uma abordagem
na qual o entendimento não seja particularizado e sim movido pela pluralidade e
heterogeneidade.
2.2 Aprender a ser professor
Na construção da docência os campos formativos e o mundo interno do
professor exercem uma grande influência sobre a forma de conduzir e planejar a sua
prática docente, “toda ação do professor e consequentemente tomada de decisões
baseia-se no seu próprio mundo subjetivo, isto é, nas intenções, propósitos, crenças e
constructos pessoais” (SAVELI, 2006. p.96). Sendo assim, esse professor que está em
17
constante aprendizado traz diversas influências que contribuem direta e ativamente na
construção de sua identidade docente.
Para Josso (2010, p.35), “Formar-se é integrar numa prática o saber-fazer e os
conhecimentos, na pluralidade de registros, [...], aprender designa, então, mais
especificamente, o próprio processo de integração”. Sendo os registros: o psicológico, o
psicossociológico, o sociológico, o político, o cultural e o econômico. Por conseguinte,
o formar-se está ligado ao neologismo autopoiese, que vem do grego, com o significado
de produzir a si mesmo, estando o professor num constante processo de reflexão e
construção de sua prática docente.
Nessa direção o processo de aprendizagem do ser professor requer mudanças
contínuas, sendo feito uma seleção de saberes através do que já foi vivenciado tornando-
se experiência formadora. Com isso a experiência nos permite uma retomada crítica,
avaliando e filtrando os saberes na perspectiva da construção de sua identidade docente
sendo a mesma possibilitada pela prática cotidiana. Nesse sentido,
A prática pode ser vista como um processo de aprendizagem através
do qual os professores retraduzem sua formação e a adaptam à
profissão, eliminado o que lhes parece inutilmente abstrato ou sem
relação com a realidade vivida e conservando o que pode servi-lhes de
uma maneira ou de outra (TARDIF, 2011, p.53).
Na construção docente vivenciar a prática de sua profissão desenvolve saberes
específicos, esses saberes surgem da prática e pela mesma vão sendo validados “eles
incorporam-se a experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e habilidades,
de saber-fazer e de saber-ser” (TARDIF, 2011, p. 39). Com isso o professor cria um
modo de ser resultante de suas aprendizagens que dirigem, em certa medida, suas
escolhas, atitudes e comportamento.
Dessa forma,
Ao ensinar o professor realiza seu processo de aprendizagem de ser
professor na medida em que pensa sobre o ensino e o coloca em
prática [..] ou seja, é em sua prática docente e ao refletir sobre ela que
o professor vai construindo seus saberes e conhecimentos
profissionais (SOUZA, 2012, p.49).
Assim, o professor aprendente utiliza-se de várias características intrínsecas aos
saberes experienciais, construindo e reconstruindo a sua prática docente sendo o tempo
uma ferramenta de vital relevância no ofício do aprender a ser, na medida em que o
mesmo “contribui poderosamente para modelar a identidade do trabalhador” (TARDIF,
2011, p. 108). Sendo assim, é através do conhecimento prático e da reflexão que o
18
docente vai tecendo o processo de “esculpir” sua prática docente, como também a
formação da identidade profissional, trazendo à tona os conhecimentos de si mesmo.
Tardif (2011) ressalta algumas características do saber experiencial, dentre elas a
de ser “temporal, evolutivo e dinâmico que se transforma e se constrói no âmbito de
uma carreira, de uma história de vida profissional, e implica uma socialização e uma
aprendizagem da profissão” (TARDIF, 2011, p. 111). Posto isto, o tempo nos
proporciona um saber poroso sujeito a mudanças, integrando novas experiências e
conhecimentos que auxiliam no processo da aprendizagem docente.
O saber experiencial liga-se não só as experiências pedagógicas, mas a toda
situação que contribui para o desenvolvimento integral do professor, visto que modela a
identidade do sujeito em formação. Outra peculiaridade intrínseca ao saber experiencial
está ligada a subjetividade e ao seu percurso de vida, tornando o mesmo um saber
existencial. Conforme Tardif (2011, p.110
É um saber existencial, pois está ligado não somente à experiência de
trabalho, mas também à história de vida do professor, ao que ele foi e
ao que ele é, o que significa que está incorporado à própria vivência
do professor, à sua identidade, ao seu agir, às suas maneiras de ser.
Nessa concepção a postura do profissional que vem se firmando entre as
perspectivas atuais na área de educação musical é a do professor crítico reflexivo,
pesquisador e problematizador de sua prática (PIMENTA; LIMA, 2005/2006), que
relaciona os saberes práticos e teóricos na busca de uma formação integrada,
proporcionando a constituição de um profissional que desenvolva sensibilidades e
respeite a singularidade do sujeito.
Desse modo, apresentamos a construção de um profissional que tem como
característica relevante na formação do saber-fazer a heterogeneidade, tendo em vista a
mobilização de conhecimentos provenientes de fontes diversas, emergindo um ser
pessoal que traz uma marca singular na personalidade constituída como professor.
Por fim, tais características esquissam um profissional em constante estado de
formação, que utiliza diversas fontes de conhecimentos e competência na construção de
sua identidade docente. Conhecimento esse construído através da organização e
hierarquização dos saberes em função do seu trabalho, em quê na construção de sua
prática docente considera o saber experiencial e suas características intrínsecas como
condição relevante no constructo da prática profissional.
19
3 CAMINHOS METODOLÓGICOS
3.1 Pesquisa (auto) biográfica
Na busca pela identidade do ser professor as articulações entre as experiências
de vida, formação e conhecimento são de fundamental relevância na construção dos
saberes docentes. Nesse sentido, o professor está em constante estado de ressignificação
atribuindo um novo sentido à sua prática pedagógica. Assim sendo busco tecer relações
entre as experiências profissionais e pessoais, a fim de analisar o processo de construção
da identidade docente.
O presente trabalho configura-se como pesquisa qualitativa e utiliza como
metodologia de pesquisa a abordagem (auto) biográfica, que consiste em um trabalho de
investigação que se dá através da inter-relação entre o sujeito e suas experiências, na
busca pela tomada da consciência de si, formando assim um caminho para reflexão
acerca dos significados atrelados à narração de sua própria história.
A situação de construção de narrativa de formação,
independentemente dos procedimentos adotados, oferece-se como
uma experiência formadora em potencial, essencialmente porque o
aprendente questiona suas identidades a partir de vários níveis de
atividade e de registro (JOSSO, 2010, p.35).
Dessa forma, a abordagem (auto) biográfica corresponde ao processo de
investigação e formação que se revela como condição pertinente para o caminho de
autocompreensão, sendo levadas em conta as aprendizagens que constituímos ao longo
de nossa vida. Dessa maneira, o uso da narrativa (auto) biográfica está além da técnica
de registro e recolhimento de dados, sendo oferecida como um processo formativo que
nos leva à tomada de consciência de si, se utilizando dos processos relativos à formação
e à prática. Nessa perspectiva, o olhar para si está atrelado à reflexão que é feita quando
trazemos as memórias formativas à tona, possibilitando um caminho para investigação
do sujeito aprendente e suas experiências, partindo de questionamentos que nos
remetem a construção da identidade e prática do educador.
Dentre os objetivos da abordagem (auto) biográfica estão o de falar a
experiência e ampliar os conhecimentos sobre a pessoa em formação, tendo em vista a
singularidade e subjetividade do objeto e sujeito de estudo. Podemos entender a
abordagem biográfica não só como um método e sim como uma experiência formadora,
tendo em vista o narrador como participante ativo de seu processo de relato e formação.
A vista disso,
20
Se a abordagem biográfica é um outro meio para um aspecto central
das situações educativas, é porque ela permite uma interrogação das
representações do saber-fazer e das referências que servem para
descrever e compreender a si mesmo no seu ambiente e natural. Para
perceber como essa formação se processa, é necessário aprender, pela
experiência direta, a observar essas experiências das quais podemos
dizer, com mais ou menos rigor em que elas foram formadoras.
(JOSSO, 2010, p. 36).
Portanto, refletir sobre as recordações é trazer à tona a representação e
influência das mesmas em seu processo de formação e construção dos saberes
observando em que elas foram formadoras. Com isso o aprendente se detém a narrar
experiências que de alguma forma significativas em seu constructo pessoal.
Segundo Josso (2010, p.37):
A recordação-referência pode ser qualificada de experiência
formadora, por que o que foi aprendido (o saber-fazer e os
conhecimentos) serve, daí para frente, quer como referência a
numerosíssimas situações do gênero, quer como acontecimento
existencial único e decisivo na simbólica orientadora de uma -vida.
São as experiências que podemos utilizar como ilustração numa
história para descrever uma transformação, um estado de coisas, um
complexo afetivo, uma ideia, como também uma situação, um
acontecimento, uma atividade ou um encontro.
Pensar a experiência é ressignificar o conhecimento construído ao longo da
trajetória de vida, pontuando aspectos inerentes à formação e construção da identidade
profissional, olhar para recordação como um processo relevante e significativo para a
prática crítico reflexiva, de maneira que possamos identificar como e de que forma essas
experiências foram expressivas na prática da (auto) formação.
Sendo assim a recordação é condição sine qua non no desenvolvimento do
pensar e ressignificar as experiências, portanto as situações vivenciadas atreladas ao
processo de reflexão influenciam diretamente a tomada de consciência sobre sua própria
formação. Contudo as narrativas de formação “contam não o que a vida lhes ensinou,
mas o que se aprendeu experiencialmente nas circunstâncias da vida”. (JOSSO, 2010, p.
40).
21
3.2 A coleta de dados
No processo de coleta de dados o pesquisador que utiliza a abordagem (auto)
biográfica poderá usar de vários documentos para realização da coleta e seleção, tais
como: diários, cartas, relatos autobiográficos gravados em meios diversos (filme, vídeo,
som, palavra escrita), incluindo também documentos oficiais. (MOREIRA, 2002). Para
realização do trabalho utilizei-me do fragmento da vida que foi registrado através de um
diário (auto) biográfico como fonte primária dos dados.
Trabalhar com a narrativa (auto) biográfica está para além do recolhimento dos
dados, o sujeito e objeto de estudo é responsável pela elaboração e reconstrução de sua
memória, narrando acontecimentos a partir de uma demanda de investigação. Nesse
processo é reconhecida a memória como condição relevante na investigação. Segundo
Abrahão (2003, p.80) é “o componente essencial na característica do narrador com que
o pesquisador trabalha para poder construir elementos de análise que possam auxilia-lo
na compreensão de determinado objeto de estudo”. Nessa direção tomo a memória
como elemento central da escrita.
22
4 Caminhar para si: construindo sentidos
Não se consegue escrever algo sobre si mesmo que seja mais
verdadeiro do que aquilo que se é. Essa é a diferença entre escrever
sobre si mesmo e escrever sobre objetos externos. Escreve-se sobre si
mesmo da sua própria altura, não apoiado em muletas ou andaimes,
mas com os pés descalços.
Ludwig Wittgenstein
No sentido de repensar e refletir as vivências passadas e ideias do hoje recorro à
minha memória e lembranças que ao longo do tempo vão constituindo minha identidade
pessoal e profissional, na busca da valorização da singularidade do sujeito em formação.
Sendo assim, rememorar a experiência é ressignificar o conhecimento construído
ao longo da trajetória de vida, pontuando aspectos inerentes à formação e construção da
identidade profissional, olhar para recordação como um processo relevante e
significativo para a construção de uma identidade em processo de formação. No
processo construtivo de minha (Auto)Biografia, busco trazer à tona experiências de vida
ligadas ao meu percurso musical, que ao longo do tempo foram de fundamental
relevância na minha formação pessoal, e, por conseguinte profissional.
A análise do meu diário (Auto)Biográfico está pautada na tomada de consciência
de si, e nas relações e significados emergidos a partir do processo de (auto) formação,
sendo evidenciados o processo de formação, a formação do processo de conhecimento,
e o processo de aprendizagem. (JOSSO, 2010).
Nessa perspectiva, trabalharemos com o conceito de projeto e posições
existenciais, que consiste na “relação entre projeto de conhecimento e formação do
sujeito como um eixo central da compreensão da dinâmica de formação de adultos”
(JOSSO, 2010, p. 282). Sendo as posições classificadas como: desprendimento,
expectativa, refúgio e intencionalidade. Nessa perspectiva, “o projeto é ação de
transformar o tempo e as energias de cada um em experiências, quer dizer, se é produzir
um valor acrescentado que constitui, por isso mesmo, um recurso novo, então ele é
abertura”. (JOSSO, 2010, p.292).
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4.1 O Despertar Pela Música
É sabido que na construção da identidade profissional o educador utiliza fontes
diversas do conhecimento, em que os saberes constituintes da formação nem sempre são
todos produzidos pelo mesmo. Nesse sentido,
o saber profissional está, de um certo modo, na confluência entre
várias fontes de saberes provenientes da história de vida individual, da
sociedade, da instituição escolar, dos outros autores educativos, dos
lugares de formação, etc. (TARDIF, 2011, p. 64).
Sendo assim, é nesse contexto que volto as minhas primeiras experiências
musicais, em que constato diversas aprendizagens oriundas da igreja. Saberes esses
mobilizados nas iterações diárias, que surgem como condição relevante na construção
de minhas atitudes e intenções.
A igreja é entendida como um espaço de formação informal, sendo a mesma
uma “ferramenta/alternativa importante para educação musical e para o ensino e
aprendizagem dos sujeitos que dela participam. É um espaço onde se trabalha
conjuntamente, promove-se o diálogo e a colaboração de pares”. (SOUZA, 2014, p.3).
Nesta primeira parte de minha análise é ressaltada a experiência obtida na igreja
como um espaço de formação, onde evidencio parte do formar-se através das vivências
pessoais e coletivas. O despertar pela música de forma natural é estabelecido pela
convivência e vivência na igreja.
Desde muito novo comecei a frequentar a igreja evangélica do meu bairro, para
ser mais preciso aos 09 anos de idade já participava ativamente da Assembleia de Deus
– Pastor Nelson Bezerril como até hoje é conhecida, situada na rua. Pr. Nelson Bezerril,
bairro Dix-sept Rosado. E mesmo sendo muito novo já participava como membro do
conjunto infantil Embaixadores do Rei.
Os ensaios do conjunto aconteciam sempre aos sábados pela manhã, não
tínhamos preocupações apenas com aspectos inerentes a estética do louvor, pois naquele
momento o principal objetivo era evangelizar crianças de todo o bairro e das
proximidades através dos cânticos. Eu era um participante assíduo sempre presente nos
cultos, festividades e programações especiais.
Grande parte das crianças que eu tinha como vizinhança, também fazia parte da
mesma igreja o que tornava a minha ida ainda mais prazerosa, pois estávamos todos
professando a mesma fé. A igreja tinha projetos maravilhosos, muitos deles voltados
para evangelização e participação das crianças, como escola dominical, culto do
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departamento infantil, conjunto infantil, escola bíblica de férias entre outros, e todas
essas ações foram sem dúvida de fundamental importância para a minha motivação de
atuar e permanecer dentro da igreja.
Nessa perspectiva, a igreja como os membros constituintes da mesma exerce um
papel relevante em meu constructo pessoal; estar imbuído num local de práticas
convenientes a minha profissão de fé, com pessoas que buscavam caminhar na mesma
direção foram sem dúvida uma condição significativa no ato de trocar e viver
experiências.
No processo de caminhar para si é compreensível que,
Nas narrativas de vida, a busca de nós começa muitas vezes pela
escolha das amizades na infância, pela busca de uma companheira ou
de um companheiro, pela criação de uma família, pelo ingresso em
associações de interesses de toda a espécie, por uma mudança de
nacionalidade, pela busca de acolhimento, pela escolha de um partido
político no qual podemos atuar como militantes ou como cidadãos que
exercem de voto e etc. (JOSSO, 2010, p. 123-124).
Na liturgia dos cultos sempre estavam presentes os louvores, e não eram um ou
dois, e sim muitos, dentre eles estavam solos, hinos da harpa cristã, cânticos entoados
pelos conjuntos entre outros. De alguma forma sempre estávamos ligados a melodias e
letras, pois seja qual for o evento ou programação o louvor se fazia presente. Mesmo
não se falando em técnica vocal, era perceptível o esforço de todos que faziam parte do
conjunto, o esmero em cantar afinado, decorar as letras, ser assíduo, pois sempre nos era
dito que se para fora da igreja faríamos o bom, para Deus faríamos o nosso melhor.
Ser uma criança cristã estava para além do se divertir ou apenas frequentar a
igreja, pois atrelados às oportunidades vinham as exigências do ser pontual,
responsável, obediente entre outros aspectos. E desde muito novo sempre me foi
passado tudo isso pelas dirigentes do departamento infantil e regentes do conjunto.
Tínhamos uma grande missão, pois nós éramos os cristãos do amanhã, os frutos da
igreja, por isso tínhamos tantos espaços formativos em nossa comunidade.
Na Assembléia de Deus, como era de costume, tínhamos o rodízio de pastores,
quando toda a igreja ficava ansiosa e apreensiva para saber quem viria nos pastorear
durante todo o ano. E aos dez anos de idade tive a oportunidade de vivenciar juntamente
com o corpo da igreja a minha primeira troca de pastor.
Os pastores trazem com eles características pessoais onde estão intrínsecas as
mudanças dentro da igreja, por esse motivo ficávamos ainda mais apreensivos. Com a
chegada do novo pastor não foi mudado muita coisa na condução dos projetos com as
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crianças, a igreja continuava a nos ver como o futuro da igreja, então os investimentos
nos espaços formadores cristãos só cresciam e era perceptível o investimento no campo
artístico feito pelo novo pastor e suas lideranças.
Neste mesmo ano o pastor criou um grupo de flauta doce chamado Herdeiros de
Jubau, o grupo era destinado ao ensino de flauta doce a todas as crianças da igreja. O
projeto tinha como um dos objetivos inserir as crianças na prática instrumental através
da flauta doce. Com isso comecei a tocar flauta doce dentro da igreja, o grupo tinha
como repertório hinos da harpa cristã.
Aprendíamos os hinos através da imitação, o professor tocava e logo em seguida
nós repetíamos igualmente fora tocado, assim assimilando e aprendendo os hinos; este
foi o meu primeiro contato com um instrumento musical. Participar do grupo de flauta
doce Herdeiros de Jubau sem dúvida vinha como uma experiência motivante para mim,
pois enquanto criança sentia que eu estava fazendo mais pela igreja, pois estar no
conjunto infantil era uma experiência maravilhosa, no entanto, cantar e tocar era ainda
mais gratificante.
Na busca de sentido ao rememorar os meus primeiros passos em direção à
música, percebo o quanto os espaços formativos presentes na igreja se fazem relevantes
eu meu processo de formação pessoal e musical. Nesse sentido,
Um grande número de narrativas conta como a busca de sentido se
iniciou muito cedo com base, na maioria das vezes, em uma herança
religiosa, em um compromisso familiar e/ou ainda em razão de uma
personalidade exemplar anônima ou socialmente reconhecida.
(JOSSO, 2010, p. 127)
É nesse ambiente que recordo as minhas primeiras aulas de música, sendo
ressaltados os esforços pessoais e coletivos através da igreja, evidenciando o meu
processo de aprendizagem musical e formação cristã.
Esse ano foi muito especial na minha passagem pela igreja, pois tínhamos
jograis, peças, desfiles bíblicos entre outros projetos. Mas o que mais me marcou foi o
fato de que pela primeira vez a igreja estava recebendo uma orquestra, Orquestra
Filarmônica Evangélica Gênesis. Foi anunciado por mais de uma semana no bairro a
presença da orquestra na igreja, todos estávamos ansiosos por receber a mesma. Então
foi feito um culto especial onde toda condução foi feita exclusivamente pela direção da
orquestra; a igreja estava lotada com muitas pessoas que não eram cristãs, mas todos
reunidos para ver a “famosa orquestra”.
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Lembro-me como se fosse hoje dessa experiência sem igual, consigo lembrar os
sons de quase todos os instrumentos e dos louvores que foram entoados e tocados
naquela noite. Nessa mesma noite floresce em mim o desejo de tocar aquele instrumento
grande, pelo qual eu ainda não sabia o nome.
Ao terminar o culto fui logo conversar com uma moça que tocava esse
instrumento grande, perguntado como era o nome do mesmo e ela me disse que se
chamava violoncelo. A partir desse dia eu tinha certeza que o instrumento que eu
gostaria de tocar seria o violoncelo. Muito entusiasmado perguntei o que precisaria
fazer para ter aulas e ela pediu para que eu falasse com a mãe dela. Logo em seguida foi
o que fiz, falei com a senhora a qual a moça tinha me indicado, e fiz a mesma pergunta
“o que eu preciso para fazer para ter aula de música”? Ela um pouco apressada me
falou: vá ao templo central da Assembleia de Deus e me procure no mês de janeiro. Me
chamo Eunice. Essas palavras não saíram da minha cabeça até o mês chegado.
Depois dessa experiência venho a inquietação do querer saber mais sobre
música, sobre o instrumento e a curiosidade que persistia. Esse desejo só foi
parcialmente realizado quando eu fui até o templo central da Igreja Assembleia de Deus
como foi combinado com a irmã Eunice.
Informei que estava muito interessado, mas não poderia pagar a mensalidade, ao
que logo a irmã Eunice respondeu que não poderia me dar uma bolsa integral, mas para
que eu pudesse vir a ser um aluno da igreja, ele daria um desconto, para que eu e meu
irmão pudéssemos cursar as aulas de teoria musical. Esse dia foi um dos mais felizes da
minha vida, pois sentia que cada vez estava mais perto o meu contato com violoncelo.
É perceptível em minha narrativa evidenciar a relevância das vivências que a
igreja e seus espaços constituintes e de formação me trouxeram. Ter os primeiros passos
guiados e orientados atrelados à uma formação cristã me permitiu uma reflexão acerca
de minhas experiências significativas para construção do que eu sou hoje.
4.2 Entre o som e o silêncio
Nessa segunda parte da análise de meu diário (auto) biográfico, procuro
evidenciar as relações entre os processos de aprendizagem e formação. Sendo pontuados
aspectos da técnica de formação musical, do processo de aprendizagem na igreja como
um espaço não formal, e das experiências repletas de significações consideradas
relevantes para o meu processo de formação musical e pessoal. Nesse sentido, Josso
(2010) afirma que:
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As experiências de vida de um indivíduo são formadoras na medida
em que, a priori ou a posteriori, é possível explicitar o que foi
aprendido (iniciar, integrar, subordinar), em termos de capacidade, de
saber-fazer, de saber pensar e de saber situar-se. O ponto de referência
das aquisições experienciais redimensiona o lugar a importância dos
percursos educativos certificados na formação do aprendente, ao
valorizar um conjunto de atividades, de situações, de relações, de
acontecimentos como contextos formadores (266-267).
Nessa perspectiva, certifico em minha formação as atividades, acontecimentos e
situações experienciadas no âmbito da igreja.
O sonho parecia estar se concretizando, pelo menos o início dele, pois
finalmente estaria prestes a ter aula de teoria musical. Até o dia a de começar me
perguntava o que seria essa teoria? Quem será meu professor? De uma coisa eu sabia
esse era o meu primeiro passo e condição sem a qual eu não poderia começar os meus
estudos com o violoncelo.
As aulas de teoria musical aconteciam aos sábados pela manhã, e para minha
surpresa a moça que estava tocando violoncelo no concerto feito na igreja que eu
frequentava seria a minha professora de teoria. Uma surpresa muito agradável e enfim a
cada minuto que passava me sentia cada vez mais próximo da música.
As aulas de teoria musical duraram exatamente quatro meses, um módulo básico
introdutório apenas o suficiente para que a gente pudesse começar a ter as aulas
práticas. A nossa última aula teórica aconteceu de maneira diferente, foi feita dentro do
templo da igreja feita pela orquestra. A aula era uma exposição dos instrumentos cada
naipe da orquestra falava um pouco sobre o seu instrumento e em seguida tocava, o
intuito desse concerto didático era poder oferecer um maior contato com os
instrumentos ofertando um momento de reflexão na escolha de qual instrumento
escolher para dar prosseguimento aos estudos. Para mim essa aula só reforçou o que eu
já tinha escolhido desde o primeiro momento.
Terminado as aulas teóricas com o certificado em mãos pensei agora é só
começar as aulas práticas. A partir daí um novo desafio começava, pois não tinha
dinheiro o suficiente para pagar as aulas de violoncelo ofertadas pela igreja, e não tinha
o instrumento que também era um dos requisitos para se ingressar nas aulas práticas.
Então começou uma incessante busca por aulas práticas e muitos amigos e
vizinhos me diziam, não é melhor você escolher um instrumento mais barato, algo como
violino ou violão? Eles não entendiam que a experiência sonora que eu tive era maior
do que as dificuldades, minha mãe em todo o momento foi sempre muito compreensiva
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mesmo não podendo fazer muitos esforços financeiros para solucionar tal problema
nunca me desanimou.
Na busca por uma formação instrumental, percebo em meio às dificuldades
vivenciadas os esforços feitos por parte de minha família, sendo destacada a motivação
vinda de minha mãe que recordo como condição sem a qual eu não teria prosseguido
com os meus estudos musicais. Também é possível observar certa resiliência tanto de
minha parte como de minha família, à medida que tentávamos juntos contornar as
dificuldades que me afastavam da prática instrumental.
Segundo Josso (2010, p. 274-275),
O horizonte temporal da formação dos adultos é aqui agora, mas é
também um hoje que orienta o amanhã. É ver a dimensão de stress e
por vezes angústia que caracterizam o ato de aprender dos adultos; é
ver a exigência quase obsessiva da dimensão operatória e operacional
da formação para adultos, com a recusa, por vezes, em arriscar um
desvio para se autoconceder a possibilidade de uma mudança de
pontos de vista e se libertar do que pensava ser uma dificuldade sem
saída. A pouca tolerância concedida àquilo que é considerado como
uma perda de tempo em relação às urgências do momento testemunha
bem os desafios vitais do acto de aprender.
Dessa maneira, o fazer e aprender música estavam atrelados às dificuldades
momentâneas, que eram superadas e entendidas como forma de aprendizado sendo
respeitado o tempo e espaço oportuno para dar continuidade aos meus estudos musicais.
Sentia-me literalmente em pausa e sem poder fazer muita coisa, o problema
existia, mas não tinha expectativas à vista de como solucionar. Até que um dia
assistindo um jornal local antes de ir para escola o mesmo anunciava que um projeto
estaria selecionando alunos para fazer aulas de música gratuitamente. A solução parecia
estar mais próxima, bastava saber se o referido projeto tinha aulas de violoncelo, pois
para a minha surpresa o projeto contava com exatamente 6 vagas, então decidi que iria
me candidatar.
Tendo me candidatado, é chegado o dia da avaliação. Foi o próprio professor de
violoncelo quem realizou os testes, me fazendo solfejar uma melodia cantada por ele,
reproduzir com palmas ritmos e por último perguntou por que o violoncelo. Passadas
algumas semanas era a hora de receber o tão esperado resultado, e, para minha alegria
tinha sido contemplado com uma das 06 vagas. Não consigo mensurar o tamanho do
sentimento que tomava naquele momento, pois mais uma vez o sentimento de estar cada
vez mais perto da música crescia.
29
O sentimento de alegria tomava conta do meu ser, pois a solução tinha chegado
enfim iria ter aulas de violoncelo. Contei na época para a minha mãe e irmãos, para os
meus parentes, amigos e vizinhos e todos demonstravam um ar de felicidade por mais
uma conquista, mas ao mesmo tempo em que estavam alegres, me perguntavam, “o que
é mesmo violoncelo”? Eu respondia de forma bem simples: é um violino grande!
Esperava ansioso por minha primeira aula de violoncelo, lembro-me que fui três
vezes e somente na terceira vez foi que o professor que na época era muito ocupado
pôde comparecer. Não consigo explicar o sentimento que me tomou na primeira vez em
que eu pude tocar o violoncelo, ainda não sabia nada da técnica correta, mas só em tirar
algum tipo de som já me deixava com muita expectativa.
A cada aula, o meu progresso no instrumento era notório; eu sempre escutava do
meu professor: você é dos alunos que vai tocar, e certo dia eu respondi mas todos que
estão aqui vão tocar! E ele me respondeu dizendo: nem todos... Essas palavras que eu
escutava do meu professor serviram de motivação pois, nem sempre era fácil estar nas
aulas de violoncelo, mesmo não pagando pelas mesmas, existiam outros gastos que para
minha realidade, faziam toda diferença. Mas nunca deixei que essas dificuldades
atrapalhassem os meus estudos musicais, dentre as maiores dificuldades estavam coisas
triviais como ter dinheiro para pagar a passagem ou até mesmo o fato de não ter o
violoncelo para estudar em casa.
Os estudos musicais não se resumiam nas aulas práticas, paralelamente tínhamos
as aulas teóricas, que avançavam num ritmo constante. Muitas vezes me questionava o
porque de estudarmos teoria musical, pois naquele momento eu sentia tudo muito
descontextualizado, talvez isso acontecesse devido a escolha do meu professor de
violoncelo em não utilizar a leitura convencional que estávamos acostumados e sim,
uma adaptada em números e algarismos romanos. As aulas práticas nem sempre eram
constantes, o meu professor na época tinha muitas responsabilidades, mesmo me
esforçando muito para superar as dificuldades algumas delas não dependiam
exclusivamente de mim. Com isso acabei adquirindo muitos vícios técnicos, e não
desenvolvendo tanto a leitura tradicional aplicada ao meu instrumento.
A falta de relação entre os conhecimentos teóricos e práticos é algo perceptível
em minha narrativa de formação, ao evidenciar tal divergência emerge uma certa
dificuldade de aprendizado ou de entendimento momentâneo. Nesse sentido,
concordamos com Pimenta e Lima (2005/2006, p.9) ao pensar que,
A prática pela prática e o emprego de técnicas sem a devida reflexão
pode reforçar a ilusão de que há uma prática sem teoria ou de uma
30
teoria desvinculada da prática. Tanto é que freqüentemente os alunos
afirmam que na minha prática a teoria é outra.
Nesse sentido, a falta de percepção ou vinculação da teoria e prática por parte do
meu professor, fez surgir questionamentos acerca do meu processo de ensino e
aprendizagem. Sendo na verdade uma falta de reflexão e problematização do que me era
proposto.
Estudei nesse projeto um pouco mais de um ano, quando de repente a verba que
o financiava foi cortada, e todos os alunos que não eram particulares ficaram sem aulas.
Mais uma vez o sentimento de estar impotente voltava, pois agora nada do que eu
fizesse reverteria a situação, e dessa vez, digamos que eu fiquei muitos compassos em
pausa. Até que um dia um colega de estudo me informou que a minha primeira
professora de teoria da igreja estava a minha procura. Fui até o templo central da
Assembleia de Deus onde ela se congregava e conversando com a mesma, verifiquei
que ela já sabia do acontecido sobre a interrupção com as aulas no projeto. Foi então
que ela me convidou para voltar a ter aula de música na igreja sendo que dessa vez aulas
práticas. Fiquei sem acreditar com tal proposta, pois mais uma vez, o problema estava
sendo solucionado e eu poderia dar continuidade aos estudos.
Tendo recebido a proposta de voltar a ter aula na igreja um problema voltou à
tona: como ter aula na igreja se eu não possuía instrumento? Voltei a conversar com a
professora e foi proposto que eu participasse da Orquestra Gênesis. Com isso a igreja
poderia se mobilizar a fazer um investimento na compra de instrumentos para serem
utilizados na igreja, e para os estudos dos alunos que compõe a orquestra. Sendo assim
aceitei a proposta mesmo não sabendo tocar muito e mesmo sem instrumento, comecei
a frequentar os ensaios da orquestra. Como eu não tinha instrumento, não tocava, ficava
apenas acompanhando com uma pasta em mãos, o que por muitas vezes me deixava
triste e envergonhado.
Voltar a ter aula na igreja, em um ambiente que já me era familiar e agradável
era uma experiência maravilhosa, pois as aulas e os ensaios estavam para além da
técnica instrumental, aprendíamos também muitos ensinamentos cristãos. Em todo
ensaio existia um momento destinado a consagração da orquestra, louvor e adoração,
pois atrelado ao trabalho musical estava o de evangelização através da música. Passados
alguns meses em que eu estava participando como membro da orquestra gênesis a igreja
comprou dois violoncelos e um deles foi emprestado para mim. A partir desse momento
poderia participar ativamente dos ensaios e começar a voltar a ter aulas do instrumento.
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Nesse mesmo ano mudei de escola. Estudava numa escola municipal e ganhei
uma bolsa para uma escola privada. E por acaso, a minha nova escola tinha um grupo
chamado Armorial, onde todos os alunos que soubessem tocar algum instrumento o
grupo acolhia, sem restrição de instrumento ou técnica. Cada vez que eu via alguma
apresentação deles me dava muita vontade de participar, entretanto ao mesmo tempo
lembrava que não tinha técnica suficiente para tocar então nunca me candidatei a
participar do grupo.
Estar participante como componente da Orquestra Gênesis era algo muito
gratificante, não só por se tratar de uma oportunidade de fazer música de qualidade, mas
por ter sido minha primeira grande experiência motivadora. Atrelados a função de
músico voluntário estava o compromisso com a obra, com os estudos musicais e com a
igreja, pois tocar na orquestra exigia um tempo e dedicação para estudo das músicas a
serem tocadas. Através da prática orquestral amadureci como músico em formação, e
busquei crescer enquanto componente da orquestra. Estar na mesma era motivo
suficiente para buscar mais conhecimento, pois cada vez mais o repertório nos exigia
uma técnica mais apurada.
A participação efetiva como músico na orquestra não só me proporcionou o
estudo prático do instrumento, como também desenvolveu habilidades e características
intrínsecas a formação de instrumentista. Nesse sentido, Souza (2014) afirma que,
Essas atividades contribuem para a formação musical dos
instrumentistas, sejam esses em espaços formais ou não formais de
ensino de música e favorecem a difusão da música através da
formação de plateia, promovendo o desenvolvimento intelectual e
emocional, a construção da cidadania, ampliação do universo musical
de crianças e adolescentes pelo envolvimento com a música. (p.4)
A formação proporcionada pelos ensinamentos através dos professores oriundos
da igreja estava para além da técnica instrumental, sendo desenvolvidos diversos
espaços de aprendizagem coletiva, e de formação cristã. O incentivo a busca de novos
campos de conhecimento era uma prática constante para aqueles que de alguma forma
procuravam crescer como músico instrumentista.
Durante todo o período em que passei na orquestra, a minha professora foi uma
das minhas grandes motivadoras, sempre chegando com uma palavra amiga em meio às
dificuldades. Sempre a vi como um exemplo de determinação a ser seguido. Muito da
minha formação musical e cristã provém de influências e ensinamentos vindos
diretamente dela e de sua família que me acolheu e me deu a oportunidade de estudar
música na igreja.
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A orquestra não era para mim apenas um espaço formador musical, pois vários
aspectos eram trabalhados em nossa formação integral. Desde princípios cristãos,
morais e comportamentais, a orquestra sempre teve a família como um dos eixos
centrais do processo formativo. A minha família sempre esteve presente nas festividades
ou em qualquer outra data importante, o apoio por parte de minha família foi
condicional para que eu estivesse sempre motivado. A minha mãe mesmo não sendo da
mesma igreja que eu, sempre me cobrava pontualidade, assiduidade, ter realmente um
compromisso com a o trabalho desenvolvido na igreja.
Quanto mais nos esmerávamos na obra como assim chamamos o trabalho na
igreja, mais recebíamos oportunidades tendo em vista que a Assembleia de Deus
Templo Central é um grande espaço formador de músicos. Nesse processo de ensino e
aprendizagem é condição fundamental para dar aula na igreja, ser cristão e participante
da orquestra. Assim como muitos, eu me esforçava e almejava um dia lecionar nos
cursos livres ofertados pela orquestra gênesis.
Chegado ao término da análise dessa segunda parte, percebo quão contrastantes
foram os momentos de som e de silêncio em meu percurso de formação musical. Sendo
assim, fica sobressaído a importância da igreja como um espaço de formação musical e
pessoal, como também a relevância da família como instrumento de motivação e
incentivo.
4.3 O Nascer de um Professor
Nesta terceira parte de minha análise procuro ressaltar as primeiras experiências
como docente em que o formar e o estar sendo formando se cruzam em experiências
oriundas de diversos espaços e vivências, em que “o tempo do processo de
aprendizagem é não apenas relativo a cada singularidade, mas varia igualmente segundo
a amplitude da “renovação” que provoca no aprendente” (JOSSO, 2010, p 232). Sendo
assim, o ato de ressignificação da vivência se faz presente ao pensar como e de que
forma essas experiências se fazem relevantes na construção de minha identidade
docente.
Nesse sentido, trabalharemos com o conceito de projeto e posições existenciais,
conforme o quadro desenvolvido por Josso (2010, p. 284),
33
Figura 1: Posições Existenciais
Fonte: Experiências de Vida e Formação (JOSSO, 2010)
O conceito de projeto e posições existenciais consiste na “relação entre projeto
de conhecimento e formação do sujeito como um eixo central da compreensão da
dinâmica de formação de adultos” (JOSSO, 2010, p. 282). Sendo as posições
classificadas como: desprendimento, expectativa, refúgio e intencionalidade.
A posição de expectativa está centrada na casualidade, em que o passado é
condição determinante na condução do presente e do futuro, na posição de
intencionalidade as suas conquistas, iniciativas, atividades e investidas são dinamizadas
por suas vontades, em que o sujeito crê numa casualidade teleológica. O
desprendimento é a posição que reconhece todas as suas vontades, no entanto está
atrelado as causas, condições, e as ilusões remetendo-se a procura de proteção ou
mesmo prevenção, a posição de refúgio está ligada a fidelidade num consciencioso
“servidor de uma teoria, de uma igreja, de uma paixão, de um inconsciente, de uma
ideia” (JOSSO, 2010, p.284).
Ao voltar para minha formação inicial percebo o quão significativo é a
influência da igreja na construção do “eu”, estando a mesma claramente evidenciado em
vários fragmentos de minha vida apresentados em meu diário de formação.
Em 2009 aos 16 anos eu me encontrava cursando o 3° ano do ensino médio, e
muitos questionamentos me apareceram nesse mesmo ano, dentre eles estava para qual
curso universitário eu prestaria o vestibular. Nunca fui cobrado por minha família a
obrigação de ter que cursar uma graduação, no entanto sempre me foi passado que essa
seria uma forma de melhorar de vida pois nunca fomos tão providos financeiramente.
Eu continuava participando ativamente da igreja, sendo músico voluntário na Orquestra
Filarmônica Evangélica Gênesis, e conciliava os meus estudos com as responsabilidades
na comunidade cristã.
34
Eu me encontrava aflito, pois todos da minha classe já tinham em mente qual
curso iria fazer seja por decisão própria, ou a pedido dos pais, mas já estavam
encaminhados, e os meus amigos me cobravam essa decisão também. Até que um dia
conversando com a minha mãe ela me questionou porque eu não faria música. Nunca
tinha passado pela minha cabeça fazer o curso de licenciatura em música, então logo
vieram muitos impedimentos todos arraigados ao estigma e estereótipos atrelados a
profissão de ser professor. Compartilhando com os meus colegas de classe, todos
questionavam: “você quer passar fome”? Você está preparado para fazer outro curso!
Música é seu hobby ... e muitos outros comentários, todos com o mesmo cunho.
A escolha da carreira profissional é uma decisão além de difícil muito
importante em nossas vidas, tal escolha está repleta de sentimentos e critérios. Ao aludir
esses fatos posiciono-me no desprendimento havendo uma necessidade de escolhas
imbuídas de desejos e circunstâncias. A vista disso, o desprendimento
Reconhece todos os seus quereres, mas também todas as causas
e condições que pesam sobre a sua humanidade, todas as suas
ilusões de procura de proteção ou de prevenção, remetendo-se
para uma oportuna sincronização ou para uma feliz
coincidência. (JOSSO, 2010, p.).
Minha mãe me incentivou durante todo o pré-vestibular a fazer o curso de
música, mas o meu preconceito atrelado à opinião dos meus amigos, não me deixava
enxergar o quanto eu poderia ser feliz sendo professor de música e o quanto era
promissor o curso. Então optei por outros cursos, dentre eles, Radialismo e
Gastronomia. Minha mãe sempre respeitou a minha decisão quanto ao vestibular,
mesmo tendo um posicionamento diferente ela só deseja que eu estivesse satisfeito e
feliz. Então dei continuidade aos meus estudos certo de que não prestaria o vestibular
para música.
Na igreja todos os que acompanhavam meu crescimento musical me
incentivavam a dar prosseguimento ingressando num curso superior em Música; muitos
dos músicos que tocavam na igreja procuravam se especializar, alguns no curso técnico,
outros na Licenciatura em Música e Bacharelado. Sempre me relatavam de suas
experiências profissionais, me diziam que estavam satisfeitos com o que tinham
escolhido. A opinião que eu tinha formado antes mesmo de conhecer o curso, bloqueava
qualquer tentativa de ver uma carreira promissora ou estável, sendo professor de
música. Isso fez com que eu definitivamente não optasse pelo curso. Era perceptível a
influência e expectativa vinda por parte dos meus colegas e professores da igreja, como
35
também o preconceito já estabelecido por mim ao pensar em cursar uma graduação de
licenciatura em música.
Tendo chegado o ano de 2010 recebi a notícia que tinha ganhado uma bolsa para
cursar gastronomia, que me deixou muito feliz e toda minha família partilhava desse
momento. No entanto, tentei fazer por três vezes a matrícula e sempre era indeferido,
nunca obtinha êxito na realização da mesma. Então, conversando com a minha mãe
decidi que estudaria de novo para tentar o vestibular da universidade federal. E mais um
ano de muito estudo e muita música, pois durante todo esse tempo nunca abandonei
meus estudos musicais e minha dedicação em ser músico voluntário na igreja.
Ao refletir sobre o fragmento anterior situo-me na posição de expectativa e
desprendimento, ao pensar que o passado é fator determinante e que influencia a forma
de viver o presente e almejar o futuro. A vista disso, “o passado determina o presente e
o futuro, que obriga a não fazer nada para si, consigo, por si, visto que isso depende do
seu destino” (JOSSO, 2010, p. 284).
É chegado em minha trajetória de vida o momento que considero saliente em
minha formação como educador musical, os primeiros passos para o caminho da
docência. Uma passagem atribuída de desafios e obstáculos, mas que com muito
empenho e dedicação foram superados.
Nesse mesmo ano recebi uma proposta por parte da minha professora de
violoncelo, como eu era um dos mais antigos e dedicados no estudo de meu instrumento
ela me ofereceu a oportunidade de ensinar nos cursos de música ofertados pela
Orquestra Gênesis. Não me achava capacitado para tal chamado, e coloquei isso para a
mesma, ela me respondeu dizendo que Deus me capacitaria. Então eu comecei a
lecionar dentro do Templo Central da Assembleia de Deus.
Cada aluno que eu recebia era um desafio novo, mesmo tendo estudado por
algum tempo às vezes ficava em dúvida por onde começar. Mas a minha antiga
professora foi me auxiliando, até que aos poucos fui conseguindo ministrar de forma
mais natural. Cada aluno tinha uma demanda diferente, alguns queriam estudar por
hobby, outros queriam seguir carreira como músico. Isso exigia de mim uma
flexibilidade e um olhar diferente ao estudo do instrumento, pois não se tratava apenas
da minha formação isolada, mas da inter-relação que eu fazia com a formação do outro,
sempre atento às necessidades de cada um.
Nas aulas de música ofertadas pela igreja muitas vezes eu tinha que estar
preparado para além do conteúdo musical, não ficávamos presos a técnicas e
cronogramas, pois eu sabia que muitos dos meus alunos só queriam em algum dia parar
36
e conversar e eu entendia que para eles, esse era um momento muito importante, pois
me colocava na posição de um amigo, um irmão que eles poderiam contar a qualquer
hora e momento. Muitos não acreditavam que poderiam tocar violoncelo e por vezes já
chegavam na classe desacreditados do instrumento, então eu logo tentava explicar que
nenhum instrumento seria fácil, mas com dedicação e perseverança eles conseguiriam
cada um no seu tempo.
A cada aula que passava eu ficava cada vez mais satisfeito com o progresso dos
meus alunos, pois eu me dedicava, planejando e pensando como explicar de maneira
fácil e acessível os conteúdos que pareciam ser tão difíceis. Tínhamos na igreja
estudantes de vários níveis desde aqueles iniciantes, como também alunos já avançados
que até faziam curso técnico em outros instrumentos.
Todas essas experiências foram de grande relevância para que eu descobrisse a
minha verdadeira vocação. A cada aula ministrada, lágrimas de alunos e sorrisos de
agradecimento, eu me sentia mais satisfeito e com a sensação de dever cumprido. E
todas essas sensações foram condições sem a qual eu não teria me rendido aos
conselhos de minha mãe que tanto almejava que eu prestasse o vestibular para música.
E por tudo isso, eu prestei vestibular para música e no ano de 2011 me encontrava
cursando o primeiro período de uma longa e árdua jornada.
Refletir acerca de minhas experiências de formação musical, fez emergir um
educador consciente de seu processo formativo, ressignificando as experiências
passadas com o olhar de hoje, e ver que a construção do “eu” está atrelada ao passado
imbuído de vivências repletas de significados. No caminhar para si reconheço a
relevância que a igreja exerceu e exerce em minha formação pessoal e profissional, ao
mesmo tempo em que me proporcionou vivências e experiências em diferentes etapas
do conhecimento.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, tive como objetivo compreender o processo de construção da
identidade do ser professor de música. Busquei por meio de minha narrativa (auto)
biográfica evidenciar o processo de aprendizagem e a formação como processo de
mudança. A visão acerca dos conceitos de aprendizagem e dos saberes docentes de
Tardif (2011) e Josso (2010), bem como a pesquisa/formação em especial a abordagem
(auto) biográfica construíram meu referencial teórico.
Esta pesquisa traz uma narrativa de formação entrelaçando as experiências de
vida ligadas ao meu percurso musical, que ao longo do tempo foram de fundamental
relevância na minha formação pessoal, e, por conseguinte profissional. Nesse sentido,
procuro teorizar a minha história de vida em busca de significados atrelados à
construção da docência.
A partir das vivências narradas, pude entender a ligação dos saberes construídos
ao longo de minha trajetória, pontuando a relevância de cada experiência formadora.
Saberes esses que vão sendo construídos e validados pela prática, que nunca estão em
inércia, mas num construir e reconstruir que é contínuo e pessoal, ressaltado a marca da
singularidade na construção da identidade profissional.
Desse modo, apresentamos a construção de um profissional que tem como
característica relevante na formação do saber-fazer a heterogeneidade, tendo em vista a
mobilização de conhecimentos provenientes de fontes diversas, emergindo um ser
pessoal que traz como marca singular a personalidade constituída como professor.
A aprendizagem da docência é movida pelas experiências vivenciadas ao longo
da trajetória de vida, que se constituem como únicas na vida de cada sujeito aprendente,
bem como na construção deste trabalho.
Dentre as dificuldades vivenciadas na elaboração desse trabalho, destaca-se a
abordagem metodológica escolhida. Estar na posição de investigador ao mesmo tempo
em que estou como objeto de estudo, gerou uma complexidade ao analisar minha
narrativa de formação.
Por fim, ressalto que cada aprendente tem suas vivências e experiências que de
forma mais ou menos intensa evidenciam o seu processo de aprendizagem. Ao me ver
professor de música hoje, após a construção desse trabalho, emerge um educador
consciente acerca das experiências formadoras, ao evidenciar em meu transcurso de
vida em que e como essas vivências contribuíram para formação do “eu”.
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Esse estudo corresponde a valorização do ser humano frente as suas realizações,
ao apresentar-se por inteiro com sua história de vida, personalidade, recursos e limites.
Personalizando a marca de seu trabalho, “aproximando-se assim do conhecimento do
artista ou do artesão” (TARDIF, 2011, p. 110). À medida que ressignificamos a nossa
história nos tornamos autor e ator de nosso próprio caminhar para si.
Por esses motivos, compreende-se que a temática da pesquisa/formação ainda
deve ser explorada, visto que se trata de um amplo universo de conhecimentos e
entendimentos referentes à construção da identidade docente, promovendo assim,
contribuições significativas para a área de Educação Musical.
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Esta versão foi revisada e aprovada pelo(a) orientador(a), sendo aceite, pela
Coordenação de Graduação em Música, como versão final válida para depósito
no Repositório de Monografias da UFRN.
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Durval da Nóbrega Cesetti
Coordenador de Graduação