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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM ROBERTA VIEGAS NORONHA REFLEXOS DE IDENTIDADES: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DE CANÇÕES DE JORGE DREXLER NITERÓI/RJ 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

ROBERTA VIEGAS NORONHA

REFLEXOS DE IDENTIDADES: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DE CANÇÕES DE JORGE DREXLER

NITERÓI/RJ

2016

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ROBERTA VIEGAS NORONHA

REFLEXOS DE IDENTIDADES: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DE CANÇÕES DE JORGE DREXLER

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Linguística.

Orientadora: Profª Drª Beatriz dos Santos Feres

Niterói/ RJ

2016

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N852 Noronha, Roberta Viegas.

Reflexos de identidades : uma análise semiolinguística de canções

de Jorge Drexler / Roberta Viegas Noronha. – 2016.

102 f.

Orientadora: Beatriz dos Santos Feres.

Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade

Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2016.

Bibliografia: f. 97-102.

1. Música. 2. Identidade. 3. Linguística. I. Feres, Beatriz dos

Santos. II. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras.

III. Título.

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ROBERTA VIEGAS NORONHA

REFLEXOS DE IDENTIDADES: UMA ANÁLISE SEMIOLINGUÍSTICA DE CANÇÕES DE JORGE DREXLER

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Linguística.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________ Profª Drª Beatriz dos Santos Feres – orientadora

(Universidade Federal Fluminense)

________________________________________________________ Profª Drª Nadja Pattresi

(Universidade Federal Fluminense)

________________________________________________________ Profª Drª Muna Omran

(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)

Niterói/ RJ

2016

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Á minha mãe, que renunciou a muitas

realizações pessoais para investir na

minha formação, fazendo surgir em

mim um espírito investigativo.

Ao meu sobrinho, Arthur, motivo de

toda minha alegria.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que, com seu infinito amor, permitiu que eu chegasse até aqui. Minha eterna gratidão.

À minha mãe, que é, com certeza, o motivo de todas as minhas conquistas pessoais e presença fundamental em minha formação. Você propiciou tudo isso.

À minha orientadora, Beatriz Feres, amizade valiosa, pela paciência e generosidade a mim dispensadas em todos os momentos de orientação e por ter me aberto os olhos e o coração para o caminho da reflexão. Você tornou possível este trabalho.

Ao meu tio, Luiz Carlos, pela ajuda nos momentos difíceis, por ter sido um bálsamo na minha vida pessoal.

Aos colegas de curso, Gisella, Glayci, Anabel, Iran, Sabrina e Margareth pela contribuição intelectual e pessoal. Ao grupo de pesquisa LEIFEN. Aos professores componentes da banca examinadora, pela gentileza de terem aceitado contribuir com este trabalho.

A Drexler, motivo de inspiração para esta pesquisa.

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Hay gente que es de un lugar, no es mi caso. Estoy aquí de paso.

Jorge Drexler

Por cultura entendo a mais intensa vida interior, a de mais batalha, a de mais

inquietação, a de mais ânsia.

Miguel Unamuno

Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a

música.

Aldous Huxley

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SINOPSE

Análise das marcas identitárias do sujeito enunciador

nas letras das canções de Jorge Drexler, com base

na Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso,

proposta por Patrick Charaudeau. Destaque aos

conceitos de ethos e às estratégias discursivas de

captação, credibilidade e legitimação.

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RESUMO

Este trabalho tem o propósito de analisar letras de canções do compositor e cantor

Jorge Drexler, a fim de verificar, a partir da “imagem de si” criada discursivamente

pelo sujeito enunciador, a construção de uma identidade oscilante entre a

“latinidade” e a “universalidade”. Parte-se do pressuposto de que, por meio das

letras, constrói-se um imaginário discursivo que não só remete à identidade do

cantor, como também colabora para a tentativa de “apagamento” do sujeito

individual em função da composição de uma identidade universal. Para isso, analisa-

se, nesta dissertação, um corpus de cinco canções, sob o viés da Teoria

Semiolinguística de Análise do Discurso, proposta por Patrick Charaudeau (2005,

2008, 2009, 2013), com destaque aos conceitos de ethos e às estratégias

discursivas de captação, credibilidade e legitimação. Também norteiam esta

pesquisa conceitos extraídos dos Estudos Culturais (HALL, 2011; SILVA, 2013;

BAUMAN, 2005; BHABHA, 2013). Observa-se que a discografia de Jorge Drexler

supera posições identitárias fixas, estáticas, reforçando a mobilidade entre o local e

o global.

Palavras-chave: Canção; Identidade; Teoria Semiolinguística.

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RESUMEN

Este trabajo tiene el propósito de analizar letras de canciones del cantautor uruguayo

Jorge Drexler, para verificar, a partir de la “imagen de sí” creada discursivamente por

el sujeto enunciador, la construcción de una identidad que oscila entre “latinidad” y

“universalidad”. Se parte del presupuesto de que a través de las letras se construye

un imaginario discursivo que no sólo remite a la identidad del cantautor, sino también

colabora a un intento de “anulación” del sujeto individual en función de la

composición de una identidad universal. Para ello se analiza un corpus de cinco

canciones, a partir del marco de la Teoría Semiolinguística de Análisis del Discurso,

propuesta por Patrick Charaudeau (2008, 2009, 20013), del cual destacan los

conceptos de ethos y las estrategias discursivas de captación, credibilidad y

legitimación. Asimismo, conceptos extraídos de los Estudios Culturales (HALL, 2011;

SILVA, 2013; BAUMAN, 2005; BHABHA, 2013) nortean esta investigación. Se

observa que la discografía de Jorge Drexler sobrepasa posiciones identitarias fijas,

estáticas, reforzando la mobilidad entre lo local y lo global.

Palabras clave: Canción; Identidad; Teoría Semiolinguística.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.....................................................................................13

1. A TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA..................................................................19

1.1 A semiotização do mundo: processo de produção do sentido...........19

1.2 Os sujeitos do ato de linguagem.........................................................21

1.3 Os modos de organização do discurso................................................23

1.3.1 Modo Enunciativo......................................................................25

1.3.2 Modo Descritivo.........................................................................27

1.3.3 Modo Narrativo..........................................................................28

1.3.4 Modo Argumentativo.................................................................30

1.4 Os imaginários sociodiscursivos..........................................................31

2. ETHOS E IDENTIDADE............................................................................35

2.1 Ethos nos estudos linguísticos............................................................36

2.2 A identidade sob o viés da Teoria Semiolinguística............................41

2.3 A identidade nos Estudos Culturais.....................................................45

3. A CANÇÃO E O COMPOSITOR JORGE DREXLER ................................50

3.1 O gênero canção: uma tentativa de descrição.....................................50

3.2 Jorge Drexler: o compositor transnacional............................................54

4. ANÁLISE DO CORPUS.............................................................................58

4.1 Metodologia...........................................................................................58

4.2 O corpus................................................................................................59

4.3 Análise das canções .............................................................................60

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................94

6. BIBLIOGRAFIA................................................................................................97

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APRESENTAÇÃO

Em uma época na qual os fenômenos suscitados pela globalização acelerada

afetam radicalmente as sociedades tradicionais, a temática/problemática das

identidades culturais está, mais do que nunca, no centro das discussões não só

econômicas e políticas, como também das ciências da cultura e da linguagem:

sociólogos, filósofos antropólogos, psicólogos, historiadores, professores, entre

outros, vêm buscando compreender como se processa a formação e a

transformação das identidades sociais.

Bauman (2005) afirma que há apenas poucas décadas a temática em questão

não estava no centro dos debates, era apenas um objeto de meditação filosófica.

Atualmente, a identidade é o “papo do momento”, está em evidência, pois, segundo

o sociólogo, só percebemos as coisas e as colocamos no foco do nosso olhar,

quando elas fracassam e começam a se comportar estranhamente ou nos

decepcionam de alguma forma. Sendo assim, a condição provisória da identidade

não pode ser mais ocultada, já foi revelada. Entretanto, este ainda é um assunto

muito recente.

Dessa forma, o sociólogo ainda salienta que as forças mais determinadas a

ocultar a condição eternamente inconclusa da identidade perderam o interesse e

estão “contentes” com a tarefa de construir uma identidade para nós, homens e

mulheres, separada ou individualmente. Sendo assim, a identidade deve ser

considerada um propósito, um objetivo, algo a ser inventado.

Segundo Bauman (1999), a globalização tanto divide como une ou divide

enquanto une, pois aquilo que para alguns parece globalização, para outros significa

localização; para alguns é sinal de liberdade, para outros é um destino indesejável.

Porém, estão todos sendo globalizados.

A “globalização” está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o mesmo para todos. (BAUMAN, 1999, p. 7)

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Para Hall (2011), a globalização tem o efeito de deslocar as identidades

centradas, além do efeito pluralizante que produz uma variedade de possibilidades e

novas posições de identificação, tornando, assim, as identidades mais políticas,

mais diversas, menos fixas.

A tensão entre o local e o global é crescente e relevante na configuração das

sociedades atuais: as identidades se encontram descentradas e o sujeito social não

pertence mais a um único grupo identitário que o define, mas assume identidades

diferentes em diferentes momentos, pois “as velhas identidades, que por tanto

tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas e

fragmentando o indivíduo moderno”. (Op.cit.)

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. (HALL, 2011, p. 13)

Além disso, o tema das identidades interessa também a linguistas e

professores de língua e literatura, evidenciando assim uma nova maneira de

conceber a educação em língua materna e estrangeira, voltada para a leitura e para

o processo de produção de sentido de um texto, a fim de possibilitar a formação de

um leitor independente, crítico e autônomo.

Moita Lopes (2003) afirma que, no campo dos estudos linguísticos, o tema

das identidades surge em meio a uma concepção de linguagem como discurso, uma

concepção que “coloca como central o fato de que todo uso da linguagem envolve

ação humana em um contexto interacional específico”, pois é impossível pensar o

discurso sem enfocar nos sujeitos envolvidos em um contexto de produção: todo

discurso provém de alguém que tem suas marcas identitárias específicas. Assim, a

aprendizagem de uma língua estrangeira vai colaborar para que o aluno tenha

consciência de si enquanto um sujeito sócio-histórico que está em constante

formação/transformação identitária.

Segundo Mota (2004), uma pedagogia pautada no multiculturalismo deve

conter alguns objetivos específicos: a construção de conhecimentos, integração de

conteúdos, uma pedagogia da igualdade e o empoderamento da cultura escolar.

Desta forma, a educação multicultural busca modificar os padrões de ensino, de

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observação e de avaliação, auxiliando os alunos a analisar e incentivar a inclusão de

conteúdos contextualizados e que contemplem a diversidade cultural.

Para Garcia Martínez et alii (2007), o multiculturalismo é determinado pela

presença de diferentes culturas num mesmo espaço geográfico, mas cada uma com

seu modo de vida e estilos diferentes. O autor salienta também a ideia de uma

abordagem intercultural, de interdependência entre várias culturas que vivem em um

mesmo espaço concreto.

A interculturalidade é definida [...] como o conjunto de processos políticos, sociais, jurídicos e educativos gerados pela interação de culturas em uma relação de intercâmbios recíprocos provocados pela presença, em um mesmo território, de grupos humanos com origens e histórias diferentes. Isso implicará o reconhecimento e entendimento de outras culturas, seu respeito, o aumento da capacidade de comunicação e interação com pessoas culturalmente diferentes e o fomento de atitudes favoráveis à diversidade cultural. (ibid et alii, 2007, p. 90)

Em consonância com essa perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais

do Ensino Médio (PCN-EM) apontam para uma concepção de língua estrangeira que

consiste em propiciar ao aluno a possibilidade de alcançar um nível de competência

linguística que lhe permitirá o acesso a diferentes tipos de informação, capacitando-

o a comunicar-se de maneira adequada em diferentes situações da vida cotidiana,

ao mesmo tempo em que contribuía para sua formação geral enquanto cidadão.

Além disso, os PCN-EM (2000) sugerem ao professor trabalhar com temas

transversais, escolher diferentes gêneros textuais, dar atenção à pluralidade cultural

da língua meta, de forma que o aluno perceba a linguagem da maneira como é

usada no mundo social; privilegiar a leitura e a interpretação de textos, lembrando

sempre que o ensino deve ser feito de maneira contextualizada e atrelada à

realidade sociocultural do aprendiz. Além disso, o professor não deve limitar-se ao

ensino de formas gramaticais, à memorização de regras, mas contribuir para a

formação cidadã do educando, possibilitando-lhe ter uma visão crítica e aberta às

diferenças culturais.

O interesse pela problemática apresentada nesta dissertação tem sua origem

em minhas atividades como professora de língua espanhola do 1º ao 3º ano do

ensino médio das redes pública e privada de ensino, onde a maioria dos alunos tem

pouco ou nenhum contato com o idioma em questão. Além disso, ler em língua

estrangeira exige desse educando e, claro, dos professores, diferentes habilidades e

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estratégias para aprender e ensinar a ler, pois numa turma em que a maioria dos

discentes não é bilíngue, torna-se mais difícil levá-los ao gosto pela leitura em língua

estrangeira e, consequentemente, à produção de sentido de um texto para uma

possível interpretação autônoma e proficiente.

Por acreditar que a leitura deve ser levada ao aluno como uma forma

prazerosa e instigante de relacionar-se com o mundo, trabalho em minhas aulas

com diferentes gêneros textuais, mas, sobretudo, com canções, porque percebo o

interesse que tal gênero desperta nos educandos. A canção está presente na vida

cotidiana da maioria dos alunos e, por ser um gênero híbrido (texto e música),

possibilita diferentes abordagens/análises e um amplo campo de discussões quando

levada à sala de aula. Utilizar o texto como pretexto para ensinar somente gramática

e/ou memorização de regras é “echar por la borda”, ou seja, desperdiçar todo

trabalho realizado para que o aluno seja capaz de tornar-se um leitor competente. A

canção é uma maneira interessante de aproximar-me do “mundo” desses alunos e

aproximá-los da cultura do “mundo” que é impressa nas canções. É uma forma

dinâmica de atraí-los ao texto e à língua espanhola.

Deste modo, a escolha deste gênero, como objeto pedagógico e corpus para

análise desta dissertação é extremamente relevante, pois desperta emoções,

pensamentos críticos e o desenvolvimento da produção textual. Além disso, o

conteúdo do corpus selecionado para este trabalho é raro em livros didáticos de

língua espanhola, nos quais a seleção textual nem sempre atende aos propósitos

dos professores e da turma.

Assim, instigada por essas motivações e problemáticas, pensei que uma

pesquisa centrada em canções com uma abordagem discursiva poderia contribuir

para a área de Linguística Aplicada ao Ensino e submeti-a ao Programa de Estudos

da Linguagem da UFF, optando pela orientadora Profa. Dra. Beatriz dos Santos

Feres, que já desenvolvia pesquisa com leitura, ensino e produção de sentido de

texto. Além disso, ela trabalha com a Teoria Semiolinguística de Análise do

Discurso, proposta por Patrick Charaudeau, que é a base de nossa pesquisa. Essa

teoria se ajustava ao meu interesse de pesquisa, pois, no campo da linguagem, a

Semiolinguística adota uma perspectiva interdisciplinar; aborda o discurso dentro de

um modelo comunicativo, tendo incidências em aspectos sociais e psicológicos.

Sendo assim, é uma teoria de perspectiva psicossociocomunicativa, que considera a

existência de dois responsáveis pela significação textual (o falante e o destinatário),

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além de reservar importância ao fator situacional, o qual interferiria no resultado final

da interpretação.

Para Charaudeau (2008), o fenômeno linguageiro apresenta uma dupla

dimensão cujas partes não podem ser separadas: uma explícita e outra implícita.

Portanto, postula a ideia de que a comunicação não se situa nem no nível do que é

dito explicitamente, nem somente no nível subjacente, mas na relação entre ambos

para construir a significação de uma totalidade discursiva. Dessa forma, a finalidade

do ato de linguagem não deve ser buscada apenas em sua configuração verbal, mas

no jogo que um dado sujeito estabelece entre esta configuração e seu sentido

implícito.

Esses motivos também justificam a escolha do objeto/corpus desta pesquisa,

que é a obra (canções) de Jorge Drexler, cantor e compositor uruguaio, mais

conhecido pela sua canção "Al Otro Lado del Río", vencedora do Oscar de melhor

canção original. É considerado um artista excepcional pela sua originalidade e estilo.

É uma obra poética, rica, sensível, icônica. Ele imprime, em suas letras, temáticas

que nos interessam, como a ampliação de territórios nacionais, a identificação local

e a universal, um ethos mostrado e construído discursivamente, o caráter diaspórico

impresso nas letras, além de sua própria nacionalidade e gênero musical em que se

inscreve.

Jorge Abner Drexler Prada nasceu em Montevideo no dia 21 de setembro de

1964, formou-se em Medicina, além de ser músico e poeta. Tendo exercido a

medicina por três anos antes de se profissionalizar como músico, Drexler credita à

sua formação acadêmica o desejo de juntar ciência e arte em sua obra. Neto de

judeu polonês refugiado da Segunda Guerra Mundial, filho de um judeu alemão e

uma "uruguaia da terra" e pai de um espanhol, Jorge Drexler interessa-se pelo tema

das identidades.

Assim, este trabalho se propõe a analisar, sob o viés da Teoria

Semiolinguística de Análise do Discurso, as marcas de “latinidade” e

“universalidade” do sujeito enunciador. Ao propor uma pesquisa desta natureza,

pretendemos, a partir das marcas textuais, das representações que compõem o

ethos, das marcas de universalidade ou individualidade e do modo enunciativo

impresso nas canções, verificar: (i) o grau de individualidade e de universalidade e

sua possível compatibilidade; (ii) a dupla articulação do ato linguageiro (explicito X

implícito) relacionada às identidades construídas; (iii) a questão do Ethos – como o

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cantor constrói, a partir das imagens de si nas canções, a questão identitária. Nossa

hipótese aqui é de que as canções constroem um imaginário discursivo que nos

remetem à identidade do cantor e que há uma tentativa de “apagamento” do sujeito

individual em favor da composição da identidade universal.

Não pretendemos incentivar a formação de compositores e músicos, mas de

leitores críticos e autônomos, habilitados para ler e interpretar o que não está “dito”.

Além disso, desejamos estimular o conhecimento da cultura estrangeira e despertar

interesse pelo tema das identidades por parte dos professores de línguas

estrangeira e materna, possibilitando assim o aumento do capital enciclopédico e

cultural, promovendo, nas salas de aula, o ensino eficaz de leitura e interpretação de

texto.

Por fim, após expormos a pesquisa nesta seção, justificando sua escolha e

traçando os primeiros objetivos a serem alcançados, no primeiro capítulo, a escolha

pela Teoria Semiolinguística, alicerce desta pesquisa, será justificada e os conceitos

selecionados para análise, elencados. No segundo capítulo, revisaremos o conceito

de identidade, além de realizar uma breve discussão sobre ethos e imaginários

sociodiscursivos. No terceiro capítulo, discutiremos sobre o gênero canção, assim

como traçaremos um breve panorama histórico da música latina e do estilo e

contexto musical em que se insere o cantor e compositor Jorge Drexler. No quarto

capítulo, delinearemos a metodologia de análise do corpus e apresentaremos a

análise propriamente dita. Por fim, serão apontadas breves considerações acerca da

pesquisa.

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1 A TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA

Pretendemos desenvolver uma breve revisão bibliográfica relacionada ao

nosso objeto de pesquisa, assim como às teorias que sustentam este trabalho. Para

isso, recorremos à Semiolinguística, teoria que se filia à disciplina Análise do

Discurso e agrega conhecimentos de diferentes áreas, tais como a Sociologia,

Psicologia, Linguística, entre outras, para buscar explicar como ocorrem as

interações linguísticas e a construção do sentido.

A teoria de Análise Semiolinguística do Discurso proposta por Patrick

Charaudeau considera a existência de dois responsáveis pela significação textual (o

locutor e o interlocutor). Além disso, essa teoria adota uma perspectiva

transdisciplinar, pois aborda o discurso dentro de um modelo comunicativo, tendo

influências de aspectos sociais e psicológicos. Sendo assim, é uma teoria de

perspectiva psicossociocomunicativa.

Semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do sentido e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em diferentes sistemas semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito intencional, com um projeto de influência social, num determinado quadro de ação; linguística para destacar a matéria principal da forma em questão – a das línguas naturais. Estas, por sua dupla articulação, pela particularidade combinatória de suas unidades (sintagmático-paradigmática em vários níveis: palavra, frase, texto), impõem um procedimento de semiotização do mundo diferente de outras linguagens. (CHARAUDEAU, 2007, p.13)

Como uma disciplina de corpus1, a Semiolinguística tem como objeto de

estudo o discurso, pois se interessa pela maneira como este circula entre os

indivíduos, destacando as características dos comportamentos linguageiros (o

“como dizer”) em função das condições psicossociais que os restringem segundo os

tipos de situações de troca (os “contratos”).

1.1 A semiotização do mundo: processo de produção do sentido

Para Charaudeau (2005), o mundo não é referenciado a princípio, mas se

constrói através da estratégia humana de significação. Assim, chama o processo de

1 Do ponto de vista das ciências da linguagem, é empírico-dedutiva. O analista do discurso parte de um material

empírico, a linguagem, que está configurada numa certa substância semiológica (verbal). Ver Charaudeau, 2005.

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construção do sentido de semiotização do mundo. Essa semiotização leva em conta

a presença de dois sujeitos designados locutor e interlocutor e a ocorrência de dois

processos: o primeiro seria a tomada, por parte do produtor, do mundo real e a sua

transformação num mundo significado, que ocorre por meio de quatro “operações”:

identificação, qualificação, ação e causação. O segundo seria a transação, no qual

esse mundo já significado se converteria em “objeto de troca” entre o sujeito falante

e seu destinatário. Além do mundo a significar e do mundo significado, também deve

ser acrescentado ao esquema proposto por Charaudeau um mundo interpretado,

que será o resultado da interpretação que o sujeito interpretante faz do mundo

semiotizado.

FIGURA 1: Processo de Semiotização (CHARAUDEAU, 2005)

Ademais, o processo comunicativo não resulta de uma única intencionalidade,

pois é necessário levar em conta não somente o que poderiam ser as intenções

declaradas do emissor, mas também o que diz o ato de linguagem a respeito da

relação que une os interlocutores. Nesse sentido, o autor considera uma dupla

dimensão presente no fenômeno linguageiro que não pode ser dissociada: uma

explícita e uma implícita.

O componente explícito atua no nível estrutural associado ao que é

manifestado pela linguagem, ligado ao processo de conceitualização e

categorização da realidade que nos rodeia. É nesse nível da linguagem que

acontecem as relações paradigmáticas e sintagmáticas entre os termos, agindo

como articuladores da estrutura textual. Segundo Charaudeau (2008), é o sentido

implícito que comanda o sentido explícito para construir a significação de uma

totalidade discursiva.

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Quando se procura o sentido de uma palavra, é no dicionário que vamos buscá-lo (situação fora do contexto); porém, quando se trata de significação de um texto ou de uma conversa estamos aí nos referindo ao fato de discurso (ou seja, à situação de emprego). (CHARAUDEAU, 2008, p.25)

Charaudeau (2008) considera o fenômeno linguageiro como algo que se

constitui em um duplo movimento (exocêntrico e endocêntrico). O primeiro

movimento é o exocêntrico, ou seja, movido por uma força centrífuga que obriga

todo ato de linguagem a se significar em uma intertextualidade que é como um jogo

de interpelações realizado entre os signos, que no âmbito de uma contextualização,

ultrapassa seu contexto explícito. A esse movimento, Charaudeau salienta que

corresponde a atividade serial que garante a produção da significação do discurso.

O segundo movimento, o endocêntrico, é movido por uma força centrípeta

que obriga o ato de linguagem a ter significado, ao mesmo tempo, em um ato de

designação da referência (no qual o signo se esgota em função de troca) e em um

ato de simbolização (nesse ato o signo se instala dentro de uma rede de relações

com outros signos). A esse movimento, corresponde a atividade estrutural que

garante a construção do sentido da Simbolização referencial.

Esse duplo movimento define a linguagem como fenômeno conflitual no qual,

de um lado, a atividade serial põe em causa as tentativas que a atividade estrutural

empreende para fixar o signo em um lugar definitivo de reconhecimento do sentido

e, de outro lado, a atividade estrutural tenta fixar, “congelar”, o sentido comandado

pela atividade serial.

1.2 Os sujeitos do ato de linguagem

Ainda de acordo com o autor, é a partir da instância de produção e da

instância de interpretação que o ato de linguagem se configura. Para ele, todo ato de

linguagem é um fenômeno de troca entre dois parceiros que devem reconhecer-se

como semelhantes e diferentes. Semelhantes porque, para a troca acontecer, é

necessário que tenham em comum saberes compartilhados e

finalidades(motivações comuns); são diferentes porque o outro só é identificável na

dissemelhança, ou seja, “somos o que o outro não é”. Assim, todo ato de linguagem

implica “alteridade”, que, segundo Charaudeau (2005), é o fundamento do aspecto

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contratual de todo ato de comunicação, pois implica um reconhecimento e uma

legitimação mútua entre os parceiros.

O ato de linguagem, segundo o teórico, não deve ser entendido como um ato

de comunicação que resulta da simples produção de uma mensagem que o Emissor

envia a um Receptor, mas deve ser visto como um encontro dialético entre dois

processos:

- O processo de produção, criado por um EU e dirigido a um TU-destinatário;

- O processo de interpretação, criado por um TU´- interpretante, que constrói uma

imagem do EU do locutor.

Assim, o ato de linguagem torna-se um ato interenunciativo entre quatro

sujeitos interagentes: EUc/EUe e TUd/TUi.

O TUd (sujeito destinatário) é o interlocutor fabricado pelo EUe como

destinatário ideal, adequado ao seu ato de enunciação. É um sujeito de

fala, que depende do EUe e pertence, portanto, ao ato de produção

produzido por este último.

O TUi (sujeito interpretante) é um ser que age fora do ato de

enunciação produzido pelo EUc. É responsável pelo processo de

interpretação que escapa, devido a sua posição, do domínio do EUc. O

TUi tem por tarefa, em seu ato interpretativo, recuperar a imagem do

TUd que o EUe apresentou e, ao fazer isso, deve aceitar (identificação)

ou recusar (não-identificação) o estatuto do TUd fabricado pelo EUe. O

TUi é um sujeito que age independentemente do EUc, que institui a si

próprio como responsável pelo ato de interpretação que produz.

O EUe (sujeito enunciador) é um ser de fala (como o TUd) sempre

presente no ato de linguagem. O EUe é uma imagem de enunciador

construída pelo sujeito produtor da fala (EUc) e representa seu traço de

intencionalidade nesse ato de produção.É apenas uma máscara de

discurso usada por EUc.

O EUc (sujeito comunicante) é, como o TUi, um sujeito agente que se

institui como locutor e articulador de fala. O EUc está localizado na

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esfera externa do ato de linguagem, mas é responsável por sua

organização. O EUc é o iniciador do processo de produção e é a

relação EUc-EUe que produz um certo efeito pragmático sobre o

interpretante. O EUc é sempre considerado como uma testemunha do

real, mas, dentro desse “real”, depende do conhecimento que o TU tem

sobre ele.

FIGURA 2: Contrato de Comunicação (CHARAUDEAU, 2008, p.77)

1.3 Os modos de organização do discurso

Para Charaudeau (2008), o ato de comunicação funciona como um dispositivo

cujo centro é ocupado pelo locutor em relação a seu interlocutor. Esse dispositivo

possui quatro componentes: 1) a Situação de Comunicação, que compõe o

enquadre físico e mental no qual se encontram os parceiros da troca linguageira,

determinados por uma identidade social e psicológica e conectados por um contrato

comunicativo; 2) os Modos de organização do discurso, que compõem os princípios

de organização da matéria linguística (enunciar, descrever, contar, argumentar); 3) a

Língua, que compõe o material verbal estruturado em categorias linguísticas; 4) o

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Texto, que representa o resultado material do ato de comunicação e que resulta de

escolhas conscientes ou inconscientes feitas pelo sujeito falante.

Dessa forma, comunicar é proceder a uma encenação, cujo sujeito falante,

mais ou menos consciente das restrições impostas pela situação de comunicação,

utiliza categorias de língua para produzir efeitos de sentido, através da configuração

de um texto. Em função das finalidades discursivas do ato comunicativo, essas

categorias de língua são agrupadas em modos de organização do discurso: o

Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo e o Argumentativo.

Charaudeau (2008) destaca que o modo enunciativo possui uma função

particular na organização do discurso, pois sua vocação é dar conta da posição do

locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros. Esse modo intervém

na encenação de cada um dos três outros modos. Assim, pode-se afirmar que o

enunciativo comanda os demais.

FIGURA 3: O enunciativo na encenação dos demais modos de organização do discurso

(CHARAUDEAU, 2008, p.74)

Tais modos de organização não são completamente independentes uns dos

outros, mas, no desenvolvimento dos textos, estão estreitamente ligados. Uma

descrição, por exemplo, pode ser utilizada quando se deseja persuadir o interlocutor

a uma tomada de posição. Assim, neste trabalho, revisamos as características de

cada um dos modos de organização a fim de fundamentar as análises, destacando

as estratégias utilizadas pelo sujeito enunciador na composição do ethos.

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MODO

DE ORGANIZAÇÃO

FUNÇÃO DE BASE

PRINCÍPIO

DE ORGANIZAÇÃO

ENUNCIATIVO

Relação de influência

(EU -> TU)

Ponto de vista do sujeito

(EU -> ELE)

Retomada do que já foi dito

(ELE)

Posição em relação ao

interlocutor

Posição em relação ao mundo

Posição em relação a outros

discursos

DESCRITIVO

Identificar e qualificar

Seres de maneira

Objetiva/subjetiva

Organização da construção descritiva

(Nomear-Localizar-Qualificar)

Encenação descritiva

NARRATIVO

Construir a sucessão das

ações de uma história no

tempo, com a finalidade de

fazer um relato.

Organização da lógica

narrativa (actantes e

processos)

Encenação narrativa

ARGUMENTATIVO

Expor e provar

casualidades numa visada

racionalizante para influenciar

o interlocutor

Organização da lógica

argumentativa

Encenação argumentativa

QUADRO 1: Modos de organização do discurso (CHARAUDEAU, 2008, p.75)

1.3.1 Modo enunciativo

Segundo Charaudeau (2013), o Modo de organização Enunciativo não deve

ser confundido com a Situação de Comunicação, pois nesta última, encontram-se os

parceiros do ato de linguagem – seres sociais, externos à linguagem, enquanto no

enunciativo, o foco está voltado para os protagonistas, seres de fala, internos à

linguagem.

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O modo enunciativo é “uma categoria de discurso que aponta para a maneira

pela qual o sujeito falante age na encenação do ato de comunicação”

(CHARAUDEAU 2008, p.82). O sujeito falante, ao enunciar, utiliza as categorias de

língua que deem conta de sua posição em relação ao seu interlocutor. O enunciativo

possui três funções:

1) Estabelecer uma relação de influência entre locutor e interlocutor num

comportamento alocutivo: o sujeito falante age sobre o interlocutor no

momento em que enuncia, impondo-lhe um comportamento, ou seja, o

interlocutor é levado a responder e/ou reagir ao ato de linguagem do locutor.

Essa imposição do locutor sobre o interlocutor estabelece entre ambos uma

relação de força, é o caso das modalidades de Injunção, Interpelação, etc.; e

uma relação de petição, como as modalidades de Interrogação e de Petição;

2) Revelar o ponto de vista do locutor, num comportamento elocutivo: aqui se

estabelece a relação do locutor consigo mesmo. Ao enunciar seu ponto de

vista sobre o mundo, o sujeito falante não leva o seu interlocutor a uma

tomada de posição. A enunciação é subjetiva, pois revela, por exemplo, de

que maneira o sujeito tem conhecimento de um propósito e de que maneira

ele julga esse propósito, revelando seu grau de adesão ao mesmo;

3) Retomar a fala de um terceiro, num comportamento delocutivo: o sujeito

falante é uma espécie de testemunha dos discursos que o mundo lhe impõe,

a partir de enunciação aparentemente objetiva, desvinculada de sua

subjetividade. Assim, o sujeito falante se apaga em seu discurso e não

implica o seu interlocutor. Ele relata, por exemplo, o que o outro diz e de que

forma diz.

Charaudeau (2008) salienta que o modo enunciativo não deve ser confundido

com a modalização, embora estejam intimamente ligados. A modalização é uma

categoria de língua que reúne o conjunto de procedimentos estritamente linguísticos

que permitem tornar explícito o ponto de vista do locutor.

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1.3.2 Modo descritivo

O modo descritivo se assemelha ao modo narrativo e, por vezes, com este se

confunde. Porém cada um tem a sua particularidade. Segundo Charaudeau (2008),

a tradição de exercícios escolares leva, muitas vezes, a se confundir a finalidade de

um texto com seu modo de organização. Diferenciar tais modos por meio de marcas

linguísticas não é um critério seguro para caracterizar um texto, pois isso depende

da situação de comunicação: “um texto pode se inscrever no modo de organização

descritivo, enquanto o texto, em seu conjunto, possui outra finalidade além de uma

pura descrição“ (CHARAUDEAU, 2008, p. 108).

Para Charaudeau (2008), o termo descritivo é utilizado para definir um

procedimento discursivo que ele nomeia modo de organização do discurso. Assim, o

descritivo é um processo, e a descrição um resultado (um texto ou fragmento de

texto). Descrever é uma atividade de linguagem que combina com contar e

argumentar. Enquanto descrever está para as qualificações do relato, narrar está

para as suas funções.

(...) descrever está estritamente ligado a contar, pois as ações só tem sentido em relação às identidades e às qualificações de seus actantes. Não é a mesma coisa dizer: “O leão salvou o camundongo”, e dizer: “O pequeno camundongo salvou o leão, rei dos animais”; aliás, todas as fábulas que contam como um personagem se livra de uma situação perigosa com a ajuda de um artifício só podem ser compreendidas na medida em que um dos personagens é identificado e qualificado como forte e ameaçador (o lobo, por exemplo) e o outro, como frágil e ameaçado mas esperto (a raposa). (CHARAUDEAU 2008, p. 111-112)

Os componentes do descritivo são: nomear, localizar-situar e qualificar.

Nomear significa dar existência aos seres no mundo a partir de classificações em

função de sua semelhança ou diferença com relação a outros seres. Não é um

simples processo de etiquetagem de uma referência preexistente, mas é o resultado

de uma operação que consiste em fazer existir seres significantes no mundo, ao

classifica-los. Localizar-situar aponta para um recorte objetivo do mundo que

determina o lugar que um ser ocupa no tempo e no espaço. Qualificar é reduzir a

infinidade do mundo em classes ou subclasses, é singularizar, atribuir

particularidades.

A descrição pela qualificação pode ser considerada, segundo Charaudeau

(2008), a ferramenta que permite ao sujeito falante satisfazer seu desejo de “posse

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do mundo”, pois é ele que o especifica, dando-lhe uma forma, em função da sua

própria visão das coisas, visão que depende não só de sua racionalidade, mas

também de seus sentidos e sentimentos.

Qualificar é, então, uma atividade que permite ao sujeito falante manifestar o seu imaginário, individual e/ou coletivo, imaginário da construção e da apropriação do mundo num jogo de conflitos entre visões normativas impostas pelos consensos sociais e as visões próprias do sujeito. (CHARAUDEAU, 2008, p.116)

Charaudeau (2008) salienta que o descritivo organiza o mundo de maneira

taxionômica, descontínua e aberta e o sujeito que descreve desempenha os papéis

de observador (aquele que vê os detalhes), de sábio (que sabe identificar, nomear e

classificar os elementos) e de alguém que descreve (que sabe mostrar e evocar).

Charaudeau (2008) acrescenta que o descritivo serve essencialmente para

construir uma imagem atemporal do mundo, pois a partir do momento em que os

seres do mundo são nomeados, localizados e qualificados, é como se eles fossem

impressos numa película para sempre. Segundo o autor, o descritivo se expande

fora do tempo (o que explica que o presente e o imperfeito sejam tempos

privilegiados da descrição) e, descrever, fixa imutavelmente lugares (localização) e

épocas (situação), maneiras de ser e fazer das pessoas, características dos objetos.

Assim, o descritivo é um modo de organização que não se fecha, em si, por

uma lógica interna, como os outros modos. Isso explicaria por que é possível resumir

um relato, por exemplo, e não uma descrição.

1.3.3 Modo narrativo

As diversas formas de entender o termo contar faz com que o modo de

organização narrativo seja um caso delicado de se tratar. Contar, para Charaudeau

(2008), não é somente descrever uma sequência de fatos ou acontecimentos, como

ele salienta que definem os dicionários. Para que haja narrativa, é necessário um

“contador” investido de uma intencionalidade, isto é, de querer transmitir alguma

coisa a alguém, um destinatário, e isso, de uma certa maneira, reunindo tudo aquilo

que dará sentido particular a sua narrativa.

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Contar é uma atividade linguageira que implica uma série de tensões e de

contradições. Assim, o autor apresenta algumas maneiras de se conceber o termo

contar:

a) Contar representa uma busca constante e infinita; a da resposta às perguntas

que o homem se faz: “Quem somos? qual é a nossa origem? qual é o nosso

destino?”

b) Contar é uma atividade posterior à existência de uma realidade que se

apresenta necessariamente como passada e, ao mesmo tempo, essa

atividade tem a prioridade de fazer surgir, em seu conjunto, um universo, o

universo contado;

c) Contar é construir um universo de representações das ações humanas por

meio deum duplo imaginário baseado em dois tipos de crença que dizem

respeito ao mundo, ao ser humano e à verdade.

Charaudeau (2008) salienta que o modo de organização narrativo se

caracteriza por uma dupla articulação: 1) a construção de uma sucessão de ações

segundo uma lógica que vai construir a trama de uma história, chamada de

organização da lógica narrativa; 2) a realização de uma representação narrativa,

aquilo que faz com que essa história, e sua organização acional, se torne um

universo narrado, chamada de organização da encenação narrativa.

A organização da lógica narrativa está voltada para o mundo referencial; é o

resultado da projeção sobre um plano (a história) de algumas das constantes da

manifestação semântica da narrativa, que permite descobrir os procedimentos da

encenação narrativa.

A encenação narrativa constrói o universo narrado propriamente dito, sob a

responsabilidade de um sujeito narrante que se acha ligado por um contrato de

comunicação ao destinatário da narrativa.

É importante não confundir narrativa e modo narrativo. O narrativo é um dos

componentes da narrativa e esta corresponde à finalidade do “que é contar?”,

descrevendo, ao mesmo tempo, ações e qualificações. O narrativo organiza o

mundo de maneira sucessiva e contínua, numa lógica cuja coerência é marcada por

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seu próprio fechamento. Assim, o sujeito que narra desempenha o papel de

testemunha que está em contato direto com o vivido.

1.3.4 Modo argumentativo

Para Charaudeau (2008), o modo de organização argumentativo é mais difícil

de ser tratado do que o narrativo, pois leva em conta um saber que provém da

experiência humana e se dá através de certas operações de pensamento, podendo

ser anulado em seu próprio fundamento pelo interlocutor.

A argumentação não se limita a uma sequência de conectores lógicos porque,

frequentemente, o aspecto argumentativo de um discurso encontra-se no que está

implícito. Segundo Charaudeau (2008), algumas condições são necessárias para

que a argumentação exista: uma proposta sobre o mundo que provoque um

questionamento quanto à viabilidade de uma proposta; um sujeito que desenvolva

um raciocínio que tente estabelecer a legitimidade da proposta; um outro sujeito que

se constitua no alvo da argumentação.

Assim, argumentar é uma atividade que depende tanto daquele que

argumenta como daquele que recebe a argumentação e emite uma resposta a partir

dela. É, portanto, uma relação triangular entre um sujeito argumentante, uma

proposta sobre o mundo e um sujeito-alvo.

A argumentação é uma totalidade que o modo argumentativo contribui para

construir, é o resultado textual de uma combinação entre diferentes componentes

que dependem de uma situação que tem finalidade persuasiva. Esse texto pode

poderá apresentar-se sob forma dialógica, escrita ou oratória, e é nesse quadro que

poderão ser utilizadas as expressões "ter bons argumentos", "bem argumentar” etc.

(CHARAUDEAU, 2008, p. 207)

A função do modo argumentativo é permitir a construção de explicações

sobre asserções feitas acerca do mundo numa dupla perspectiva de razão

demonstrativa e razão persuasiva. A razão demonstrativa se baseia num mecanismo

que busca estabelecer relações entre duas ou várias asserções, através de

procedimentos que constituem a organização da lógica argumentativa. Já a razão

persuasiva se baseia num mecanismo que busca estabelecer a prova com a ajuda

de argumentos que justifiquem as propostas a respeito do mundo, através de

procedimentos de encenação discursiva do sujeito argumentante chamados de

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encenação argumentativa.

A encenação argumentativa consiste em utilizar procedimentos que devem

servir ao propósito de comunicação do sujeito argumentante em função da situação

e do modo como vê o seu interlocutor. Tais procedimentos têm a função de validar

uma argumentação. Os procedimentos semânticos apoiam-se no valor dos

argumentos. Os procedimentos discursivos utilizam certas categorias de língua ou

procedimentos de outros modos de organização do discurso para produzir certos

efeitos de persuasão. Os procedimentos de composição organizam o conjunto da

argumentação, repartindo, distribuindo e hierarquizando os elementos do processo

argumentativo ao longo do texto.

Assim, Charaudeau (2008) salienta que, para haver argumentação, é

necessário que haja proposta, proposição e persuasão, componentes do dispositivo

argumentativo. A Proposta, chamada também de Tese, se configura quando se põe

(explícita ou implicitamente) uma asserção em relação com outra. A Proposição se

baseia na possibilidade de pôr em causa (questionar) a Proposta, dependendo do

posicionamento adotado: tomada de posição ou não tomada de posição, cuja

argumentação se dará na direção de concordar ou de refutar a Proposta. A

Persuasão coloca em evidência uma das opções do quadro de questionamento:

refutação, justificativa, ponderação. É nessa fase que o argumentante, recorrendo a

diversos procedimentos, estabelece a prova da posição adotada na Proposição.

Em suma, o dispositivo argumentativo configura-se a partir de uma Proposta

(Tese), passa pela Proposição (quando o argumentante justifica, refuta ou pondera

sobre a Tese), chegando à Persuasão, momento em que as provas de justificativa,

refutação ou ponderação são apresentadas.

1.4 Os imaginários sociais e os imaginários sociodiscursivos

Charaudeau (2013) salienta que o homem apreende o mundo por meio dos

sistemas de representações que ele próprio constrói e que dependem ao mesmo

tempo de sua vivência. O homem necessita da realidade para significá-la. Ele é, ao

mesmo tempo, sujeito e objeto, conhecedor do mundo e por este conhecido.

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Por meio desses discursos de representações, os indivíduos se reconheceriam como pertencentes a um grupo-classe um jogo de identificação e de exclusão, e desse modo constituiriam para si próprios uma “consciência social” que seria alienada pelos discursos dominantes que provêm de diversos setores da atividade social (direito, religião, filosofia, literatura, política etc.), constituindo uma ideologia dominante. (CHARAUDEAU 2013, p.192)

Segundo Charaudeau (2013, p. 192), a ideologia é um modo de articulação

entre significação e poder, que possui quatro pilares: 1) legitimação, que denota

conferir-se legitimidade para justificar e significar sua posição de dominação; 2)

dissimulação, que acaba por mascarar as relações de dominação, já que se trata

de uma atividade racional de legitimação; 3) fragmentação, que consiste no

resultado da dissimulação que ocasiona a oposição dos grupos entre si; 4)

reificação, uma vez que a racionalização tende a naturalizar a história como se esta

fosse atemporal.

Esses quatro pilares são parte da representação social que constrói o real. As

representações têm por função interpretar a realidade que nos cerca, por um lado

mantendo com ela relações de simbolização; por outro, atribuindo-lhe significações.

O termo representação social é entendido por Charaudeau (2013, p.192-193)

como “fenômeno cognitivo-discursivo geral que engendra sistemas de saber nos

quais se distinguem os saberes de conhecimento e os de crença”, formados por

imaginários sociodiscursivos. Os saberes de conhecimento visam a estabelecer uma

verdade sobre os fenômenos do mundo. É o saber científico e, como razão

científica, não considera a subjetividade do sujeito, mas busca explicar o que é

exterior ao homem. Assim, se constrói um discurso impessoal, que não pertence à

pessoa enquanto tal, mas é enunciado na terceira pessoa.

Os saberes de crença visam a sustentar um julgamento sobre o mundo por

valores que lhe atribuímos. Os valores são procedentes de um juízo relativo aos

conhecimentos que circulam na sociedade, procedentes de um movimento de

avaliação findado o qual o sujeito determina seu julgamento a respeito dos fatos. O

sujeito que fala faz sua escolha baseado em uma lógica do necessário e do

verossímil na qual pode interferir tanto a razão quanto a emoção.

Assim, os saberes de conhecimento e os saberes de crença estruturam as

representações sociais. Os primeiros ao construírem representações classificatórias

do mundo por meio da experimentação e os segundos ao darem um tratamento

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axiológico às relações do homem com o mundo. A realidade tem a necessidade de

ser percebida pelo homem para significar, e é essa atividade de percepção

significante que produz os imaginários. Charaudeau (2013) salienta que a noção de

imaginário não deve ser entendida como aquilo que é fictício, irreal, inventado,

imaginado, mas como “uma imagem que interpreta a realidade, que a faz entrar em

um universo de significações”. O imaginário é uma maneira de apreender o mundo,

transformando a realidade em real significado.

Para Charaudeau (2013), o imaginário social é o que funda a identidade de

um grupo na medida em que mantém uma sociedade unida. Além disso, como o

imaginário reflete a visão que o homem tem do mundo, ele é da ordem do

verossímil, ou seja, daquilo que é possivelmente verdadeiro. Sendo assim, todo

imaginário é um imaginário de verdade que essencializa a percepção do mundo em

um saber que é provisoriamente absoluto. O imáginário social resulta de uma dupla

interação: do homem com o mundo e do homem com o homem.

Essa dupla interação leva a pensar que os imaginários não são todos

conscientes, pois alguns circulam na sociedade a partir de julgamentos implícitos

veiculados pelos enunciados, pelas maneiras de falar, assimilados de tal forma por

um grupo, que funcionam como se fossem partilhados por todos de maneira natural.

Outros imaginários estão escondidos no “inconsciente coletivo”, construindo

sistemas de pensamentos coerentes com os tipos de saberes de cada sociedade.

Os imaginários necessitam ser materializados para que possam desempenhar

bem seu papel de espelho identitário. Isso pode acontecer por comportamentos ou

por atividades coletivas. São os grupos sociais que dão sentido e sustentam essas

materializações a partir de um discurso racionalizado, apresentado por textos orais e

escritos, transmitidos de geração em geração: como as doutrinas religiosas, os

manifestos, as teorias científicas, os provérbios. Esses textos desempenham

diversos papéis (de polêmica, de apelo, de reivindicação) e expressam algum tipo de

imaginário que os reforça discursivamente. Surgem, então, os imaginários

sociodiscursivos.

Esses imaginários circulam em um espaço de interdiscursividade, pois

testemunham a visão que cada grupo e indivíduo têm dos acontecimentos. No

espaço político, por exemplo, circulam imaginários sobre a postura que um político

deve adotar conforme a situação em que se encontre: campanha eleitoral, debate,

etc.; imaginários relativos ao ethos que ele deve construir em função de uma

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expectativa coletiva dos cidadãos. Na instância política, os imaginários

sociodiscursivos são usados com a intenção de persuadir, convencer e captar

eleitores. Porém, em outras esferas da vida, os imaginários sociodiscursivos podem

ser utilizados com outros propósitos como, por exemplo, os de gerar efeitos

patêmicos, emocionar.

No próximo capítulo, revisaremos os conceitos de ethos e identidade sob o

viés da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso e dos Estudos Culturais.

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2 ETHOS E IDENTIDADE

Em pesquisas como esta, cujo objetivo é analisar os discursos e/ou textos

que circulam na sociedade, se faz necessário levar em conta a identidade dos

sujeitos interagentes no ato comunicativo, o contexto sociocultural em que estão

inseridos, os elementos presentes nessa troca, entre outros fatores. Acreditamos

que todo discurso implica a construção da imagem de si, imagem daqueles que

estão envolvidos no jogo discursivo, das suas intenções e dos papéis sociais que

definem sua pessoa e seu caráter, sendo possível identificar que ethos está

presente nesse ou naquele discurso e/ou texto. Neste capítulo revisaremos o

conceito de ethos e identidade.

Sempre que se recorre à noção de ethos, compulsoriamente, percorremos um

longo caminho até a Retórica de Aristóteles, primeiro filósofo grego a conceber

teorias e lançar as bases para a construção do conceito de ethos nos estudos da

linguagem.

A retórica aristotélica tinha como essência o discurso oral. E Aristóteles,

responsável por sistematizar a arte de persuadir, apresenta, em sua obra “A

Retórica”, técnicas e conceitos que podem tornar um discurso digno de credibilidade,

válido, aceito. O filósofo ensina como um orador deve portar-se, utilizando sua

imagem, para convencer um auditório; e admite três provas engendradas pelo

discurso que garantem a eficácia do processo persuasivo: logos, pathos e ethos,

conhecidas como a tríade aristotélica. O logos pertence ao domínio da razão e torna

possível convencer; o pathos e o ethos pertencem ao domínio da emoção e tornam

possível emocionar (Charaudeau 2013, p.113).

Dessa forma, a construção do ethos – tema que nos interessa particularmente

neste trabalho – pode ser entendida em Aristóteles como um conjunto de virtudes

morais que o orador precisa mostrar a fim de convencer seu auditório, apresentando

um caráter digno da credibilidade de seu público. Sendo assim, o ethos equivale a

uma imagem que o locutor deve construir de si para inspirar a confiança dos que o

ouvem, não significando, necessariamente, a imagem real do locutor. Os antigos

designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada a

garantir o sucesso do empreendimento oratório (AMOSSY, 2013, p.10).

Na filiação de Aristóteles, há os que acreditam que o ethos está ligado à

própria enunciação, no próprio dizer do sujeito que fala, pouco importando sua

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sinceridade. E “essa posição é defendida pelos analistas do discurso que situam o

ethos na aparência do ato de linguagem, naquilo que o sujeito falante dá a ver e

entender” (CHARAUDEAU, 2013, p. 114).

Para parecer digno da confiança e da credibilidade do auditório e garantir uma

imagem positiva de sua pessoa, o orador deve apresentar um conjunto de virtudes e

se valer de três qualidades: a phronesis, a aretee a eunoia.

Os oradores inspiram confiança por três razões que são, de fato, as que, além das demonstrações (apódeixis), determinam nossa convicção: (a) prudência/sabedoria prática (phrónesis), (b) virtude (areté) e (c) benevolência (eunóia). Os oradores enganam [...] por todas essas razões ou por uma delas: sem prudência, se sua opinião não é correta, se pensando corretamente, não dizem – por causa de sua maldade – o que pensam; ou, prudentes e honestos (epieikés), não são benevolentes; razão pela qual se pode, conhecendo-se a melhor solução, não a aconselhar. Não há outros casos. (ARISTÓTELES apud EGGS, 2005, p. 32)

Tais categorias reaparecem recentemente nos estudos linguísticos e foram

redefinidas por pesquisadores da análise do discurso.

2.1 Ethos nos estudos linguísticos

A teoria do Ethos foi recuperada e ampliada por diversos pesquisadores no

campo da linguagem, dentre os quais se destacam Amossy (2013) e Charaudeau

(2013).

Amossy (2013) situa suas pesquisas sobre o ethos a partir da intersecção de

disciplinas como a retórica, a pragmática e a sociologia. Para ela, a maneira de dizer

induz a uma imagem que facilita a boa elaboração do projeto, pois a apresentação

de si ocorre, com frequência, independente do conhecimento dos parceiros, nas

trocas verbais mais simples.

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si. (AMOSSY, 2013, p. 9)

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Diz-nos Amossy (2013) que a pragmática contemporânea não se interessa

pelos rituais sociais externos à prática linguagueira, mas pela eficácia da palavra do

interior da troca verbal, pelos dispositivos de enunciação. É nessa perspectiva que a

pragmática defende a noção de ethos como um fenômeno discursivo que não deve

ser confundido com o status social do sujeito empírico.

A autora, em seus estudos, se propõe a aliar o ethos dos pragmáticos com o

ethos dos sociólogos na tentativa de mostrar que ambos são complementares numa

perspectiva aberta pela retórica. Os pragmáticos consideram que o ethos é

puramente interno ao discurso, enquanto os sociólogos o inscrevem em uma troca

simbólica regrada por mecanismos sociais e por posições institucionais exteriores.

(AMOSSY, 2013, p.122)

Inspirada na “nova retórica” do filósofo Perelman, segundo a qual se concebe

que toda argumentação se desenvolve em função do auditório ao qual ela se dirige e

ao qual o orador é obrigado a se adaptar, Amossy (2013) salienta que a importância

atribuída ao auditório conduz a uma doxa comum, que segundo ela, compreende o

saber prévio, partilhado, que o auditório possui sobre o orador. A doxa é fator

determinante no estabelecimento do ethos prévio, que corresponde ao que

Maingueneau (2012) chamou de “ethos pré-discursivo”.

No momento em que toma a palavra, o orador faz uma ideia de seu auditório e da maneira pela qual será percebido; avalia o impacto sobre seu discurso atual e trabalha para confirmar sua imagem, para reelaborá-la ou transformá-la e produzir uma impressão conforme às exigências de seu projeto argumentativo. (AMOSSY, 2013, p.125)

Amossy (2013) defende a noção de estereotipagem como papel essencial no

estabelecimento do ethos, pois o conhecimento prévio que se faz do locutor e a

imagem que este constrói não são totalmente singulares. É preciso que sejam

relacionados a modelos culturais existentes, partilhados, cristalizados para

parecerem legítimos.

É o conjunto das características que se relacionam à pessoa do orador e à situação na qual esses traços se manifestam que permitem construir sua imagem. Se esta é sempre em última instância singular, é preciso ver, entretanto, que a reconstrução se efetua com a ajuda de modelos culturais que facilitam a integração dos dados em um esquema preexistente. (AMOSSY, 2013, p. 127)

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Nessa perspectiva, Charaudeau (2013) salienta que na medida em que o

ethos está relacionado às representações sociais que tendem a essencializar essa

visão, ele pode estar ligado tanto a indivíduos (ethos individual) quanto a grupos

(ethos coletivo).

Além disso, ao analisar o texto Carta aberta aos camponeses de Jean Giono,

Amossy (2013) traz uma questão bastante relevante com relação ao ethos. Ela

postula a ideia de um ethos discursivo e um ethos institucional indissociáveis, ou

seja, não se pode separar o ethos discursivo da posição social do locutor, nem

dissociar a interlocução da interação social como troca simbólica, pois o status

institucional do escritor como ser no mundo e a construção verbal do locutor como

ser do discurso se reforçam mutuamente. (AMOSSY, 2013, p.136)

Para Charaudeau (2013), o ethos é a imagem de que o locutor se transveste

a partir daquilo que ele diz. O ethos então pode ocorrer por um cruzamento de

olhares: “olhar do outro sobre aquele que fala, olhar daquele que fala sobre a

maneira como ele pensa que o outro o vê”. Assim, esse outro se apoia nos dados

trazidos pelo ato de linguagem e no que ele sabe a priori do locutor, isto é, os dados

preexistentes.

O autor salienta também que o ethos pode ser entendido como a fusão de

duas identidades: a identidade social e a identidade discursiva. A identidade social

do locutor lhe dá direito à palavra e funda sua legitimidade de ser comunicante, em

função do papel que lhe é atribuído pela situação comunicativa, e a identidade

discursiva é uma figura que o sujeito constrói para si daquele que enuncia, ou seja,

uma identidade de enunciador, que se atém aos papéis que se atribuiu em seu ato

de enunciação.

Assim, o ethos é uma concepção ideológica que o sujeito faz de seu auditório

e que o guiará para produzir a melhor imagem de si que ele acha ser mais bem

aceita pelo seu público. É uma dupla imagem.

Vale lembrar que o locutor pode esconder o que é pelo que ele diz, jogando

com suas identidades social e discursiva e, ao mesmo tempo, o interlocutor pode

interpretar que aquilo que o locutor diz aproxima-se com o que ele realmente é

sendo sensível ao que é dito. Porém, como o ethos não é totalmente

consciente/voluntário, o destinatário pode construir uma imagem do locutor que este

não desejou.

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Charaudeau (2013) destaca ainda que o ethos trata-se de uma concepção

idealizada, ou seja, é uma imagem ideal que o sujeito cria para si achando que essa

imagem é a mais adequada para atingir o(s) outro(s). É uma idealização do sujeito

comunicante para criar um sujeito enunciador, que é uma estratégia de discurso.

O autor, em seu estudo sobre o discurso político, salienta também a

existência de figuras identitárias que se agrupam em duas grandes categorias de

ethos: ethos de credibilidade e ethos de identificação.

Os ethé de credibilidade estão ligados à identidade discursiva do sujeito

falante e não à identidade social. Dessa forma, o sujeito político, por exemplo,

preocupado em parecer digno de crédito, deve questionar-se: “Como fazer para ser

aceito”? Sendo assim, este sujeito deve satisfazer três requisitos: sinceridade (ser

transparente, dizer a verdade), performance (ser capaz de colocar em prática o que

promete), eficácia (ter meios de fazer o que promete). Para isso, é preciso que o

político construa umethos de sério, virtuoso e competente.

Ethos de sério

Para a construção desse ethos são necessários alguns índices que auxiliem

nessa tarefa, como os índices corporais, comportamentais e verbais: rigidez

na postura do corpo, expressão pouco sorridente, capacidade de

autocontrole, muita energia e capacidade de trabalho, não ser dado a

constantes brincadeiras, tom firme e comedido da voz, não utilizar-se de

frases de efeito e demonstrar elocução serena. É importante destacar que o

excesso de seriedade pode demonstrar pretensão e pouca simpatia.

Ethos de virtude

Esse ethos exige demonstração de sinceridade, fidelidade e honestidade. É

uma imagem construída através do tempo, pois a partir de atitudes

verdadeiras a virtude é mostrada, indicando integridade e retidão por parte do

político. Além disso, tais virtudes vêm acompanhadas de uma atitude de

respeito em relação ao cidadão.

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Ethos de competência

Essa imagem exige do sujeito político conhecimento e habilidade, pois não

basta saber, é preciso provar que tem os meios, o poder e a experiência para

realizar seus objetivos e obter os resultados planejados.

O ethé de identificação é, segundo afirma o linguista francês, uma questão

delicada, pois o político vai querer mostrar-se, ao mesmo tempo, tradicional,

moderno, sincero, sagaz, poderoso, etc., jogando, assim, com valores contraditórios,

porém positivos em certas circunstâncias. Mas, apesar dessa mistura de imagens,

Charaudeau (2013) destaca aquelas que são mais recorrentes na construção do

ethos de identificação do discurso político. São seis tipos de ethé ligados à

identificação:

Ethos de potência

Pode ser entendido como uma referência à energia física. E pode ser visto

mediante uma figura de virilidade sexual– “marca por excelência da potência

masculina” (CHARAUDEAU, 2013, p. 139). Essa imagem está associada ao

seu poder para agir, pois, além de um homem de fala, o político também é um

homem de ação.

Ethos de caráter

Esta imagem está mais associada à força do espírito que à força do corpo.

Nesse ethos, pode-se perceber a figura daquele que tem “personalidade

forte”, que se indigna e se vitupera em função dessa indignação, porém o

bramido e as pulsões do corpo são controlados. Assim, o sujeito político que

“tem caráter” é alguém que demonstra uma “força tranquila”, que pode ser

entendida como perseverança, confiança em si, equilíbrio, prudência,

coragem, firmeza, moderação e sensatez.

Ethos de inteligência

Essa figura provoca e busca admiração e respeito dos indivíduos através do

nível/grau de inteligência demonstrado. Para Charaudeau (2013, p. 145),

existem duas figuras que ajudam no processo de construção de um ethos de

inteligência: a figura do homem culto, qualidade que o torna um homem de

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bem e a astúcia ou malícia que denota um saber jogar com o ser e o parecer,

dissimulando intenções para conseguir atingir seus objetivos. Porém, essa

malícia pode ser negativa se colocada a serviço da simulação moral, para a

prática de corrupção, por exemplo.

Ethos de humanidade

Essa imagem é importante para a figura do político, pois se baseia na

demonstração de sentimentos, como a compaixão e a solidariedade para com

aqueles que sofrem, como também pela capacidade de o político poder

confessar suas fraquezas e seus gostos pessoais mais íntimos. Porém, existe

a possibilidade de esse ethos ser construído pelo outro, gerando imagens

estereotipadas por parte daqueles que trabalham com o humor.

Ethos de chefe

Esse ethos se direciona para o outro, como uma imagem que é explicitamente

oferecida ao cidadão. O ethos de chefe se manifesta e atua por meio de

variadas figuras, de guia (aquele que agrega, que acompanha, direciona), de

soberano (aquele que se posiciona como fiador dos valores até o ponto de

confundir-se com eles) e de comandante (aquele que, de maneira mais

autoritária e agressiva, lidera e participa).

Ethos da solidariedade

Esse ethos faz do político uma pessoa responsável e atenta às necessidades

dos outros, partilhando das mesmas ideias e dos mesmos pontos de vista. Ele

(o político) está interessado em não distinguir-se dos outros membros do

grupo, mas unir-se a eles. Assim, seu objetivo é convencer o outro a respeito

de suas ideias.

2.1 A identidade sob o viés da Teoria Semiolinguística

Patrick Charaudeau (2009), em seu artigo “Identidade social e identidade

discursiva, o fundamento da competência comunicacional”, salienta que não há

sociologia, nem psicologia social, nem antropologia que não levem em conta os

mecanismos linguageiros e que o tema das identidades sociais mostra a

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necessidade de distinguir a língua do discurso, num sentido inverso ao de certa

representação que pretende que o discurso seja secundário em relação à língua. Na

realidade, o discurso é fundador da língua e a identidade é o que permite ao sujeito

tomar consciência de sua existência, existência esta que se dá através de seu

corpo, seu saber (seus conhecimentos sobre o mundo), seus julgamentos (suas

crenças) e de suas ações (seu poder fazer).

Assim, para o autor, quanto mais forte é a consciência do outro, mais

fortemente se constrói a própria consciência identitária, pois o princípio de alteridade

faz com que cada um dos parceiros da troca esteja engajado num processo

recíproco de reconhecimento e de diferenciação para com o outro, cada um se

legitimando através de uma espécie de “olhar avaliador”. Dessa forma, Charaudeau

afirma que uma vez percebida a diferença, desencadeia-se no sujeito um duplo

processo de atração e de rejeição em relação ao outro. Paralelamente ao processo

de atração, o de rejeição se dá porque a diferença percebida, mesmo sendo

necessária, não deixa de ser, para o sujeito, uma ameaça.

Vê-se então o paradoxo no qual se constrói a identidade. Cada um precisa do outro em sua diferença para tomar consciência de sua existência, mas ao mesmo tempo desconfia deste outro e sente necessidade de rejeitá-lo, ou de torná-lo semelhante para eliminar a diferença. O risco está no fato de que, ao rejeitar o outro, o eu não disponha mais da diferença a partir da qual se definir; ou, ao torná-lo semelhante, perca um pouco de sua consciência identitária, visto que esta só se concebe na diferenciação. (CHARAUDEAU, 2009, p. 2)

O autor salienta que a identidade resulta de um mecanismo complexo que

consiste na construção, não de identidades globais, mas de traços identitários, pois

a identidade do sujeito comunicante é compósita, incluindo dados biológicos,

psicossociais e dados construídos por nosso próprio comportamento. Assim, o autor

reduz estes componentes a dois: identidade social e identidade discursiva, e é por

essa combinação que se constrói o poder de influência do sujeito falante.

(...) a identidade social não explica a totalidade da significação do discurso, pois seu possível efeito de influência não está inteiramente dado por antecipação; por outro lado, é certo que o discurso não é apenas linguagem, sua significação depende também da identidade social de quem fala. A identidade social necessita ser reiterada, reforçada, recriada, ou ao contrário, ocultada pelo comportamento linguageiro do sujeito falante, e a identidade discursiva para se construir necessita de uma base de identidade social. (CHARAUDEAU, 2009, p. 4)

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Vale lembrar que o mesmo autor postula a ideia de que o jogo entre

identidade social e identidade discursiva, e a influência daí resultante, não podem

ser considerados fora de uma situação de comunicação.

É a situação de comunicação, em seu dispositivo, que determina antecipadamente, a identidade social dos parceiros do ato de troca verbal. Além disso, esta lhes fornece instruções quanto à maneira de comportar-se discursivamente, isto é, define certos traços da identidade discursiva. Ao sujeito falante restará a possibilidade de escolher entre mostrar-se conforme as instruções, respeitando-as, ou decidir mascará-las, subvertê-las ou transgredi-las. (CHARAUDEAU, 2009)

A identidade social para Charaudeau tem como particularidade a necessidade

de ser reconhecida pelos outros, pois é ela o que confere ao sujeito seu “direito à

palavra”, o que funda sua legitimidade. Legitimidade que autoriza alguém a agir da

maneira pela qual age. No domínio midiático, por exemplo, existe uma legitimidade

atribuída pela força do reconhecimento, por parte dos integrantes de uma

comunidade, do valor de seus membros, pela atribuição de um prêmio ou de um

título honorífico. Assim, é como se o premiado ou o medalhista estivesse num

pedestal e é neles (premiado ou medalhista) que uma comunidade pode olhar-se e

reconhecer-se. Essa legitimidade da palavra provém de um saber fazer.

Dessa forma, a identidade social é, em parte, determinada pela situação de

comunicação, pois deve responder à questão que o sujeito falante tem em mente

quando toma a palavra. Vê-se que essa identidade pode ser reconstruída,

mascarada ou deslocada. Já a identidade discursiva tem a particularidade de ser

construída pelo sujeito falante para responder à questão: “Estou aqui para falar

como”? E, sendo assim, depende de um duplo espaço de estratégias: de

credibilidade e de captação.

Para Charaudeau (2009), a credibilidade está ligada à necessidade, para o

sujeito falante, de que se acredite nele, tanto no valor de verdade de suas

asserções, quanto no que ele pensa realmente, ou seja, em sua sinceridade. O

sujeito deve defender a imagem de si mesmo (um “ethos”). Neste sentido, este

sujeito pode adotar diferentes atitudes discursivas:

de neutralidade – atitude que leva o sujeito a apagar, em seu discurso,

qualquer vestígio de julgamento ou avaliação pessoal. É a atitude da

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testemunha que fala para constatar, para relatar o que viu, ouviu,

experimentou.

de distanciamento – leva o sujeito a adotar uma atitude fria e controlada de

especialista que raciocina e analisa sem paixão, tal como um experto, tanto

para explicar as causas de um fato, comentar os resultados de um estudo,

quanto para demonstrar uma tese.

de engajamento – leva o sujeito, contrariamente ao caso da neutralidade, a

optar por uma tomada de posição na escolha de argumentos ou palavras.

Constrói, assim, a imagem de um sujeito falante como “ser de convicção”.

Já as estratégias de captação surgem quando o EU-falante não está, para

com seu interlocutor, numa relação de autoridade. A captação vem da necessidade,

para o sujeito, de assegurar-se de que seu parceiro de troca comunicativa perceba

seu projeto de intencionalidade, compartilhando de suas ideias e opiniões. Neste

caso, será necessário que o sujeito falante possa “fazer crer”, tentar persuadir,

seduzir o interlocutor, para que este se coloque numa posição de “dever crer”.

Assim, destacam-se diferentes atitudes discursivas:

uma atitude polêmica – tentando antecipar, para eliminá-las, as possíveis

objeções que os outros poderiam apresentar. Trata-se de “destruir um

adversário” questionando suas ideias, e, até mesmo, sua pessoa.

uma atitude de sedução – propor ao interlocutor um imaginário no qual

desempenharia o papel de herói beneficiário. Esta atitude manifesta-se quase

sempre através de um relato no qual as personagens podem funcionar como

suporte de identificação ou de rejeição.

uma atitude de dramatização – leva o sujeito a descrever fatos que

concernem aos dramas da vida, em relatos cheios de analogias,

comparações, metáforas, etc. A maneira de contar apoia-se largamente em

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valores afetivos socialmente compartilhados, pois se trata de fazer sentir

certas emoções.

Assim, a identidade discursiva postulada por Charaudeau se constrói com

base nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na

manipulação dos imaginários sociodiscursivos. Essa identidade leva em conta,

evidentemente, os fatores constituintes da identidade social. E é nesse jogo entre

identidades que se realiza a influência discursiva.

2.2 A identidade nos Estudos Culturais

Para Hall (2011), as sociedades modernas no final do século XX estão sendo

transformadas por um tipo diferente de mudança estrutural, fazendo com que as

paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnias, raça e nacionalidade

sejam fragmentadas, já que antes, no passado, elas nos forneciam sólidas

localizações como sujeitos sociais. Além disso, essas transformações afetam e

mudam também as identidades pessoais e abalam a ideia que temos de nós

próprios como sujeitos integrados. O sociólogo salienta que esse duplo

deslocamento do indivíduo de seu mundo social e cultural gera uma “crise de

identidade”, pois a identidade somente se torna uma questão quando está em crise,

deixando de ser fixo e estável.

Stuart Hall (2011) distingue três concepções de identidade de diferentes sujeitos:

a identidade do sujeito do Iluminismo; do sujeito sociológico e do sujeito pós-

moderno.

Sujeito do Iluminismo

Estava baseado numa concepção de indivíduo totalmente centrado, unificado,

permanente. Concepção bastante individualista do sujeito e de sua

identidade.

Sujeito sociológico

Baseado numa concepção “interativa”. A identidade do sujeito sociológico é

formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito tem um núcleo ou

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essência interior “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo com

os mundos culturais exteriores.

Sujeito pós-moderno

Concepção de sujeito que não tem uma identidade estável, fixa, permanente.

Essa identidade é definida historicamente, pois

“à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2011, p.13).

O sociólogo também salienta que a globalização é um fator relevante na

questão da identidade e no que diz respeito ao processo de mudança que as

sociedades modernas vêm sofrendo. A globalização pode ser entendida como

Àqueles processos, atuantes numa escala global que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e experiência, mais interconectado. (MC GREW, 1992 apud HALL, 2011, p. 67)

Assim, a globalização pode implicar um movimento de distanciamento da

ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua

substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está

ordenada ao longo do tempo e do espaço (GIDDENS, 1990 apud HALL, 2011).

Dessa forma, Hall (2011) salienta que umas das características principais da

globalização é a compressão espaço-tempo, ou seja, a aceleração dos processos

globais, que fazem com que o mundo pareça menor e as distâncias mais curtas e

que os eventos em determinado lugar tenham um impacto imediato sobre pessoas e

lugares situados a uma longa distância.

Além disso, o sociólogo afirma que o efeito geral dos processos globais tem

sido o de enfraquecer formas nacionais de identidade cultural, pois, quando

colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações globais se deslocam

e, algumas vezes, tendem a apagar as identidades nacionais. E quanto mais a vida

se torna mediada pelo mercado global de lugares, estilos, viagens, pelas imagens da

mídia, pelos sistemas de comunicação interligados, mais as identidades se tornam

desvinculadas, desalojadas, parecendo “flutuar livremente”.

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A tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso todas as identidades culturais fortes e está produzindo àquela fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural. (HALL, 2011, p. 74)

A tensão entre o “global” e o “local” é evidente na transformação das

identidades, pois as identidades nacionais representam vínculos a lugares, eventos,

histórias, representam uma forma de pertencimento. Sendo assim, alguns teóricos

dos estudos culturais argumentam que essa visão do futuro das identidades num

mundo pós-moderno, em que os processos globais ameaçam a “unidade” nacional,

pode ser considerada um tanto exagerada e simplista, pois, juntamente com o

impacto do global, existe um novo interesse pelo local e, na verdade, a globalização

explora a diferenciação local. Nesse sentido, pode-se pensar que, ao invés do global

substituir o local, parece mais interessante pensar na articulação entre eles, pois a

globalização vai produzir, simultaneamente, identificações globais e novas

identificações locais, gerando uma fonte criativa, novas formas de cultura, culturas

híbridas.

Para Silva (2013), a identidade é a referência, é o ponto original a partir do

qual se define a diferença, pois quando eu declaro sou brasileiro, significa dizer que

não sou argentino, não sou espanhol, etc., pois tal declaração carrega em si mesma

o traço do outro. A mesmidade (ou a identidade) porta sempre o traço da outridade

(ou da diferença).

Sendo assim, a identidade e a diferença são interdependentes e partilham

uma importante característica: são o resultado de atos de criação linguística, pois a

identidade e a diferença, segundo o sociólogo, devem ser produzidas, fabricadas no

contexto de relações culturais e sociais, são o resultado de um processo de

produção simbólica e discursiva.

Dessa forma, uma vez que a identidade, como a diferença, é uma relação

social, ambas estão em estreita conexão com as relações de poder. Portanto,

afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, incluir e excluir, fazer separação

entre “nós” e “eles”. Além disso, o processo de produção da identidade vai oscilar

entre dois movimentos: os processos que tendem a fixar e estabilizar a identidade e

os processos que tendem a desestabilizá-la. Porém, por mais que a fixação seja

uma tendência, ela é, ao mesmo tempo, uma impossibilidade.

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Assim, como exemplo do processo de estabilização e fixação da identidade

está o apelo, no caso das identidades nacionais, aos mitos fundadores. E, no que

diz respeito aos processos de desestabilização, o sociólogo destaca o hibridismo, o

sincretismo, o deslocamento, como movimentos que complicam e subvertem a

identidade.

Segundo Silva (2013), a identidade que se forma por meio do hibridismo não

é mais nenhuma das identidades originais, pois o hibridismo está ligado aos

movimentos demográficos que permitem o contato com diferentes identidades como

as diásporas, os deslocamentos nômades, os cruzamentos de fronteiras. Ele

ressalta que tais movimentos podem ser literais ou metafóricos. Assim, “cruzar

fronteira” pode significar, literalmente, cruzar geograficamente um espaço

demarcado ou “cruzar fronteira” pode significar mover-se livremente entre os

territórios simbólicos de diferentes identidades.

Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a instabilidade da identidade, é nas próprias linhas de fronteira, nos limiares, nos interstícios, que sua precariedade se torna mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a chegada, é cruzar a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que é o acontecimento crítico. (SILVA, 2013, p. 89)

Assim, para Silva (2013), a possibilidade de “cruzar fronteiras” e de “estar na

fronteira”, de ter uma identidade indefinida, instável, é uma demonstração do caráter

“artificialmente” imposto das identidades fixas.

Bauman (2005), em consonância com as perspectivas descritas

anteriormente, salienta que a identidade e o pertencimento não têm a solidez de

uma rocha, não podem ser garantidos para toda a vida, são negociáveis e

revogáveis. Por isso, as pessoas em busca de uma identidade se veem diante da

tarefa de alcançar o impossível. A tomada de decisão de cada indivíduo, os

caminhos que ele percorre e a maneira como age são fundamentais tanto para o

pertencimento quanto para a identidade.

Além disso, o desejo por uma identidade vem do anseio de segurança, pois, a

longo prazo, flutuar sem apoio num espaço pouco definido pode configurar uma

condição geradora de ansiedade. E, por outro lado, uma posição fixa dentro de uma

gama de possibilidades também não é algo atraente. Sendo assim, estar

desimpedido, livre, é ser um herói popular, já que o “estar fixo” é algo cada vez mais

malvisto.

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Dessa forma, Bauman (2005) afirma que, no mundo globalizado, “identificar-

se com” significa dar abrigo a um desconhecido que não se pode influenciar, e que

talvez seja mais prudente portar as identidades como um manto leve pronto a ser

despido a qualquer momento, pois, para o sujeito moderno, quando a qualidade não

o satisfaz, ele tende a procurar a salvação na quantidade, substituindo uma

identidade por uma rede de conexões.

Segundo o sociólogo, quando a identidade perde as âncoras sociais, a

“identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos, quepassam a

buscar avidamente um nós a quem possa pedir acesso. Porém, nesse mundo fluido,

comprometer-se com uma única identidade para a vida toda é um negócio arriscado,

pois as identidades servem para serem usadas e exibidas, não para serem mantidas

ou guardadas.

No próximo capítulo, discutiremos sobre o gênero canção, assim como

traçaremos um breve panorama histórico da música latina e do estilo e contexto

musical em que se insere o cantor e compositor Jorge Drexler.

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3 A CANÇÃO E O COMPOSITOR JORGE DREXLER

No intuito de estabelecer um percurso teórico para o uso da canção2 nos

estudos da linguagem e das identidades culturais, é necessário pensar, a priori, que

a canção, segundo Finnegan (2008), pode ser considerada universal, pois é um

fenômeno extensamente difundido por todos os tempos e culturas; existe na

experiência de todos os indivíduos. Além de universal, ela também é particular, pois

cada povo marca seus traços de identidade e suas nuanças na produção musical.

Pode ser eficaz em comunicar representações sociais. Dessa forma, tentaremos,

aqui, discutir sobre o gênero canção.

3.1. O gênero canção: uma tentativa de descrição

Finnegan (2008) salienta que, hoje em dia, apesar da visão romântica da

canção como sede da criatividade primeva e do transbordamento natural da

expressão humana, ela é mais comumente entendida em sua determinação cultural

que, assim como a linguagem, varia em suas especificidades.

Para o geógrafo Panitz (2010), a canção é um conjunto e uma interação de

relações criativas, interpessoais, sociais, culturais, econômicas, espaciais e

históricas que se expressam no fazer musical. A canção, principalmente a canção

popular, está presente no cotidiano de milhões de pessoas e, diferente de outras

manifestações artísticas, não está restrita a condições socioeconômicas de acesso.

Segundo o autor, a chamada indústria que envolve música, literatura e

audiovisual – responde por cerca de 7% do PIB mundial; no Mercosul, segundo o

Fórum de Biarritz, o valor chega a 3% e no Brasil, o PIB da indústria cultural chega a

1%. Assim, como prática socioespacial, o geógrafo argumenta que a canção é um

importante componente a ser considerado e estudado, não só pelo dinheiro que

movimenta, mas também pelos fluxos de pessoas, bens e serviços que são gerados

em torno desta.

No campo dos estudos linguísticos, Costa (2002) salienta que, numa primeira

definição, a canção pode ser entendida como um gênero híbrido, de caráter

intersemiótico, por conjugar dois tipos de linguagem, a verbal e a musical. Porém, o

linguista defende que a canção exige uma tripla competência: a verbal, a musical e a

2 Termo utilizado neste trabalho por entendermos que engloba texto (letra) e música.

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lítero-musical. “A canção é uma peça verbo-melódica breve, de veiculação vocal”

(COSTA, 2002, p.107). Assim, a canção não é exclusivamente texto, nem

exclusivamente peça melódica, senão um conjugado dessas materialidades.

Para Tatit (1996, apud Costa 2002, p. 108), a canção é uma fala camuflada

em maior ou menor grau, é a síntese perfeita entre a voz que fala e a voz que canta

e o elemento que confere a eficácia da canção popular, pois, sem a voz, a melodia é

mera estrutura e, sem a voz que fala no canto, a voz é apenas um instrumento.

Sem a voz que fala por trás da voz que canta não há atração nem consumo. O público que saber quem é o dono da voz. Por trás dos recursos técnicos tem que haver um gesto, e a gestualidade oral que distingue o cancionista está inscrita na entoação particular de sua fala. Entre dois intérpretes que cantam bem, o público fica com aquele que faz da voz um gesto. (TATIT, 1996 apud COSTA, 2002, p.109)

Nesta perspectiva, Costa (2002) afirma que a influência da voz da fala no

canto contribui de maneira decisiva para distinguir a canção popular da canção

erudita. Na canção erudita, a aproximação com o texto escrito formal acontece na

dimensão verbal e no aspecto melódico. A prática musical erudita é marcada pelo

apego à partitura, à fidelidade fixada pelo compositor, ao sistema de notação que

normatizam a execução musical e condicionam a própria composição, marcando,

inclusive, o índice de competência dos músicos e intérpretes. Até a “liberdade” dos

músicos é definida pela partitura. Ela sempre será o ponto de referência.

Ainda segundo o linguista, a canção popular, diferentemente da erudita, não

se prende às amarras de um sistema de notação, pois o compositor, normalmente,

compõe diretamente no seu instrumento. Na música popular, existe partitura

também, mas ela apresenta somente os acordes necessários para a execução da

canção, ela sustenta apenas um perfil melódico e rítmico básico. Assim, os músicos

possuem liberdade para improvisar, para desenvolver variações sem nenhuma

determinação prévia.

Para Costa (2002), além de linguagem musical (ritmo e melodia), a canção

também é composta de linguagem verbal, ou seja, o texto, a letra: uma dimensão

escrita inquestionável. A canção tende a lançar mão de recursos semelhantes ao

processo de criação poética, como a métrica, a rima, o verso, o sentido figurado e,

mais recentemente, procedimentos concretistas.

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Por essas e outras razões, a canção tem sido objeto de estudo e análise de

disciplinas da linguagem e da literatura, que privilegiam a matéria escrita. Com

frequência, a canção é vista como a combinação de “música” e “poesia” porque

ambas apresentam traços aparentemente comuns (Finnegan, 2008, p.18).

Nessa perspectiva, Costa (2002) reforça a ideia de Finnegan (2008) no que

diz respeito ao caráter poético da canção:

Parece-nos mais sensato, porém, considerar a poesia e a canção dois gêneros específicos, que se interseccionam por aspectos de sua materialidade e por alguns momentos comuns de sua produção. Na canção, texto e melodia são duas materialidades imbricadas (não sendo a melodia um mero meio de transmissão de letra e vice-versa). (COSTA, 2002, p. 113)

Matos (2008) destaca que, com o advento da cultura românica e da

modernidade artística desde o final do século XVIII, as relações entre palavra

poética e linguagem musical cresceram e se intensificaram, pois sempre foi um tema

de interesse para a filosofia da arte, a crítica de literatura e de música, para o

pensamento estético de um modo geral.

A poesia antiga e medieval era toda cantada ou entoada, tanto a épica dos

gregos, quanto a tragédia antiga e o teatro medieval. Poesia e música andavam tão

juntas a ponto de não se poderem distinguir. Porém, no final da Idade Média, com a

difusão da cultura escrita e o progresso da instrumentação musical, o vínculo que as

unia se afrouxou. Somente em meados do século XVIII é que a reaproximação entre

linguagem poética e música acontece, como um projeto pré-romântico. Dessa forma,

Matos (2008) salienta que a ligação entre poesia e música será constantemente

evocada ao longo do século XIX pelas primeiras gerações românticas.

A autora toma duas vertentes como referências para discutir a conexão entre

poesia e música: 1- os estudos literários e a criação poética e 2- o pensamento e

práticas musicais. E afirma que a primeira vertente pressupõe uma relação

idealizada de parentesco entre poesia e música, que se poderia representar na

fórmula poesia = música, e que a segunda dedica-se a interrogar as modalidades de

parceria entre as duas artes, articulação entre texto poético ou verbal e texto

musical, que poderia se representar na fórmula poesia + música.

Em consonância com essa perspectiva, Pound (1970, apud Santaella 1997)

afirma que a poesia está mais próxima da visualidade e da música do que da

linguagem verbal. Pignatari (2005) confere o que foi postulado por Pound e afirma

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que o poeta vive o conflito signo vs. coisa, pois o poeta não trabalha com o signo,

ele trabalha o signo, faz linguagem, fazendo poema. Um (bom) poema não se

esgota: ele cria modelos de sensibilidade... É criação pura – por mais impura que

seja. Assim, defende a tese de que o poema é um ícone.

Para o poeta Octavio Paz, a poesia é:

Conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de liberação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio todos os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação e outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno á infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia; o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. (PAZ, 2012, p. 21)

Sendo assim, fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone

(imagem). Percebemos então que a palavra, assim como a imagem, também pode

constituir-se iconicamente. Um poema transmite a qualidade de um sentimento. Uma

ideia para ser sentida e não apenas entendida, explicada.

Já o texto poético é caracteristicamente opaco, sedutoramente visível; é impactante, provocador de estranhezas; desafiador de sentidos. Não pode nem mesmo ser resumido, pois nessa tarefa perder-se-ia sua essência: “Posso resumir uma conceito, mas não posso resumir uma forma”. (PIGNATARI, 2004 p.24). É impossível passar por ele sem percebê-lo: tornar-se chamativo é sua meta, isto é, revestir-se de uma camada que seja vista, que “incomode”, que provoque sensações, seja pela estranheza de suas formas, seja pelos temas centrados no humano que suscita. Na opacidade de sua superfície, guardam-se os “excessos” acionadores do “conhecimento das sensações”, conforme explica Zumthor; por isso é um texto imerso em rico universo de “primeiridades” expostas ao sentimento (mais uma vez, aqui entendido como ato de sentir), em função da Qualidade das coisas. (FERES, 2010, p.142.)

Assim, valendo-nos das palavras de Pignatari (2005) e Feres (2010),

podemos dizer que o cantor e compositor Jorge Drexler, em sua discografia,

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trabalha o signo e faz linguagem, fazendo de suas letras verdadeiros poemas

cantados. Suas composições são sedutoramente visíveis e desafiadoras de sentido.

3.2 Jorge Drexler: o compositor transnacional

Como nosso corpus é formado por canções deste compositor, faz-se

necessário um mínimo de conhecimento de sua biografia e de sua produção artística

musical, assim como um breve panorama da música latino-americana em que está

inserido, tão relevante em nossas análises.

Soares (2011) salienta que a música, particularmente a música latino-

americana, que tem sido, historicamente, um importante canal por meio do qual se

discutem questões de âmbito social, político e identitário, pois a música produzida no

continente foi bastante discutida pelo relevante papel que teve durante o período de

ditaduras em diversos países. E, nesse período, era claro o desejo de se conquistar

a tão sonhada unidade latino-americana e, assim, a produção musical de cada país

estava voltada para suas fronteiras internas e eram reconhecidas como expressões

de cada nação e seu povo.

Porém, o final do século XX e a globalização acelerada marcam um novo

cenário na canção latino-americana, pois a relação entre música e sociedade pós-

moderna não aponta, prioritariamente, para temas que representem a vida local,

nacional, mas faz surgir novas narrativas de expressão sonora híbrida, ou seja,

narrativas musicais que apresentam características que são, ao mesmo tempo,

regionais e globais.

Assim, o artista Jorge Drexler em sua discografia, objeto de nossas análises,

a partir de uma linguagem poética e sonora singulares, parece dialogar com a

tradição musical de seu país de origem ao mesmo tempo em que extrapola as

fronteiras geográficas e nacionais, constituindo assim uma identidade que não é fixa,

mas que se move do local ao universal.

Jorge Drexler, cantor e compositor uruguaio, tornou-se mais conhecido pela

sua canção "Al Otro Lado del Río", vencedora do Oscar de melhor canção original. É

considerado um artista excepcional pela sua originalidade e estilo. Sua obra

(discografia) é rica, poética e singular, pois o compositor mistura ritmos regionais e

recursos eletrônicos nos arranjos de suas canções, além de usar em suas metáforas

e composições termos (vocábulos) próprios da fisiologia e da física. Em entrevistas à

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mídia, Drexler diz que suas canções abordam suas preocupações centrais como a

ânsia de liberdade, a urgência de vagar pelo mundo sem destino fixo, a aventura de

viver à deriva. A canção “Madera de deriva”, que integra o projeto N, aplicativo

criado por Drexler para dar vida às canções nas telas dos smartphones, exemplifica

e reforça como as viagens, as mudanças e aquilo que é passageiro definem o

cantor:

Voy a merced de la resaca y del río Vengo, voy y vengo Soy todo aquello que no puedo llamar mío

O compositor afirma à revista Emeequis, em 15 de abril de 2013, que sempre

foi consciente da diversidade e da efemeridade da vida: “Gracias a mi família nunca

me llevé muy bien con los absolutos. Desde chico fui muy consciente de la

diversidad y de lo efímero que es todo. Nada es permanente.” Assim, parece que o

fato de “não pertencer a lugar nenhum” o atrai e passa a ser tema de muitas

canções.

Jorge Abner Drexler Prada nasceu em Montevidéu, Uruguai no dia 21 de

setembro de 1964, formado em Medicina, mas músico, cantor, compositor e poeta.

Tendo exercido a medicina por três anos antes de se profissionalizar como músico,

Drexler credita à sua formação acadêmica o desejo de juntar ciência e arte em sua

obra. Neto de judeu polonês fugido da Segunda Guerra Mundial, filho de um judeu

fugido da Alemanha nazista com uma "uruguaia da terra". Jorge chegou a morar por

um tempo em Israel e diz ter escrito sua primeira canção em hebraico. Começou sua

carreira artística no início da década de 1990 e, em 1996, se mudou para Madri,

recebendo frequentemente da mídia o título de uruguaio-madrileno.

Segundo o site oficial do cantor (www.jorgedrexler.com), aos cinco anos de

idade, Jorge Drexler começa seus estudos de piano e, aos onze, de violão clássico.

Estudou linguagem musical, harmonia, composição e técnica vocal. Em 1987

escreve seus primeiros contos e, em meados de 1989 começa a escrever canções.

Edita seu primeiro LP em 1992, com o título "La luz que sabe robar". E, nesse

mesmo, ano se forma em Medicina.

Em 1993, recebe o reconhecimento da crítica musical na primeira entrega dos

Prêmios Fabini, obtendo o prêmio Revelação no gênero Violão Acústico. No final

desse mesmo ano, Rubén Oliveira o convida a participar na abertura dos shows

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oferecidos por Caetano Veloso em sua primeira apresentação no Uruguai. Lança

seu segundo disco, "RadaR”, em dezembro de 1994, e de novo recebe uma

resposta positiva por parte da crítica local. Nesse mesmo mês, Joaquín Sabina,

impressionado por Drexler, o convida a Madrid, cidade que Jorge chega em

fevereiro de 1995.

Jorge começa sua etapa na Espanha lançando três CDs: "Vaivén", "Llueve" e

"Frontera". Em 2001 lança “Sea”, seu quarto álbum. Três anos mais tarde, em 2004,

lança o disco “Eco”. No mesmo ano, porém onze meses depois, lança o disco

chamado “La edad del cielo”, que é uma recopilação dos melhores temas que o

cantor uruguaio gravou anteriormente, mais alguns temas novos.Em 2005 chega o

álbum "Eco 2", a mesma versão do disco de 2004, porém com três novas canções:

"Al otro lado del río" (canção trilha sonora do filme "Diarios de motocicleta"), "Oda al

tomate" e "El monte y el río".Em 2006 lança "12 segundos de oscuridad". E dois

anos depois se edita "Cara B", um CD duplo com temas próprios e versões de

Caetano Veloso e Leonard Cohen, entre outros grandes nomes. Jorge Drexler grava

ao vivo em 2010o álbum "Amar la trama". E, em janeiro de 2013, realiza juntamente

com uma marca telefônica um sistema chamado N,projeto interativo pensado para

smartphones onde o usuário pode escutar uma canção, selecionar e editar a voz do

artista como prefira. Ali, o usuário encontra diferentes versões de uma única canção.

Em março de 2014 lançouseu mais novo e atual álbum chamado "Bailar En La

Cueva", gravado entre Bogotá e Madri com a participação de Caetano Veloso na

canção "Bolivia".

Artistas tão importantes como Mercedes Sosa, Shakira, Ana Belén, Víctor

Manuel, Pablo Milanés, Ana Torroja, María Rita, Simone, Zelia Duncan, Paulinho

Moska, Bajofondo Tango Club, entre outros, gravaram canções de Jorge Drexler em

seus discos.Apesar disso, a ideia de se converter em um ícone e renunciar sua

“humanidade” não atrai esse uruguaio que luta para conservar sua privacidade, pois

para ele “la fama es puro cuento”. Porém, suas músicas e a experiência do Óscar

tornaram Jorge Drexler um personagem público, pois já é considerado o uruguaio

vivo mais reconhecido e popular no mundo, depois do escritor Eduardo Galeano e

do Presidente do Uruguai Pepe Mujica.

Outra característica singular da obra de Jorge Drexler é a criação do termo

“Templadismo”, que pode ser traduzido por Temperalismo ou Temperália. Esta

concepção foi inspirada na Estética do Frio de Vitor Ramil e faz alusão ao

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Tropicalismo. Vitor Ramil (1993, apud Panitz 2010), compositor brasileiro, cria uma

concepção contemporânea tipicamente gaúcha na música brasileira ao perceber que

o frio simbolizava o gaúcho. Está metáfora do frio remete a imagens e paisagens

frias, ambientes melancólicos e calmos, característico dos pampas.

Panitz (2010) salienta que, no bojo da concepção criada por Drexler, a partir

de conversar sobre a Estética do Frio, o Movimento Antropofágico e o Tropicalismo,

está uma característica que acompanha o espaço vivido, assim como o clima e suas

estações bem definidas e suas respectivas imagens e sensações criadas. Portanto,

o “templadismo” forma uma espécie de corrente musical em que predominam

elementos imagéticos, cores, sons e climas calmos, caracterizada pelo não excesso.

Dessa forma, a produção artística de Drexler pode ser inserida no que se

convencionou chamar de “world music” ou estaríamos diante de um tipo de recorte

identitário específico?

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4 ANÁLISE DO CORPUS

Nesta seção trataremos da metodologia e análise do corpus no intuito de

responder a algumas indagações e verificar nossa hipótese.

Estando vinculada à linha Teorias do Texto, do Discurso e da Interação, do

curso de Pós-Graduação de Estudos de Linguagem da Universidade Federal

Fluminense, esta pesquisa visa analisar as marcas de “latinidade” e “globalização”

utilizadas pelo sujeito enunciador a partir da maneira como este constrói o ethos

(imagem de si) e, assim, a questão identitária.

4.1 Metodologia

A metodologia utilizada é a qualitativa com análise de dados. Assim, para

analisar as canções, seguimos alguns passos. Inicialmente, descrevemos a canção,

acompanhada de três informações contextuais básicas: quem foi o compositor (ou

compositores), qual o ano de lançamento e que álbum (CD) tal canção integra.

Posteriormente, analisamos cada canção a partir de um circuito de análise

que contemple os procedimentos empregados pelo compositor para a constituição

do ethos e dos traços identitários do sujeito enunciador das canções, a saber:

CIRCUITO DE ANÁLISE DAS CANÇÕES

1º- Os imaginários sociodiscursivos que circulam na canção

2º- A identidade social do sujeito falante: a legitimidade

3º- A identidade discursiva do sujeito falante: atitudes de neutralidade e captação

4º- Procedimentos expressivos: o “bem falar”, o “falar forte”, o “falar tranquilo” e o “falar regional”

5º- Procedimentos enunciativos: a elocução, a alocução e a delocução

6º- As categorias do ethos e as marcas identitárias

Quadro 2: Esquema do Circuito de Análise das canções

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Além disso, analisamos a primeira canção “Milonga del moro judío” de forma

mais detalhada e as outras, para evitar repetições desnecessárias e enfado, de

forma mais esquematizada.

Da Teoria Semiolinguística, destacamos aspectos que pudessem auxiliar na

análise, aproveitando-nos da noção de semiotização do mundo.

Finalmente, mencionamos aspectos culturais e históricos que consideramos

relevantes e que pudessem intervir na produção de cada canção.

Para a análise e compreensão das canções selecionadas, o leitor/ouvinte

precisa estar atento às condições de produção, já que os signos linguísticos

constituintes da composição musical não são dotados de sentido pleno, funcionam

como “índices” que permitem alcançar a significação desejada, pois, para que a

semiotização do mundo – construção do sentido – aconteça, é necessário levar em

conta os contextos linguístico e extralinguístico ativados pela letra da canção. Assim,

no que diz respeito ao sentido de língua e discurso, em “Milonga del moro judio”, por

exemplo, há muitos elementos implícitos que exigem do leitor/ouvinte fazer muitas

inferências, pois, segundo Charaudeau (2008, p. 26),é o sentido implícito que

comanda o sentido explícito para construir a significação de uma totalidade

discursiva.

Além disso, é importante considerar que “em todo ato de discurso, o propósito

é aquilo de que se fala, o projeto que se tem em mente ao tomar a palavra; o que é,

afinal, proposto” (CHARAUDEAU, 2013, p. 187). Assim, só é possível, na relação

com o outro, influenciá-lo, seduzi-lo ou persuadi-lo, se tivermos por objeto o

conhecimento que se tem da realidade e os julgamentos que fazemos dela.

Conhecer o propósito do discurso do sujeito comunicante Jorge Drexler é de

extrema relevância para compreender as temáticas impressas em suas canções e a

composição do ethos do sujeito enunciador.

Dessa forma, para garantir essa totalidade, pretende-se, aqui, associar os

possíveis projetos de fala do sujeito enunciador ao contexto de produção das

canções.

4.2 O corpus

O corpus se compõe de cinco canções, escolhidas de forma a permitir uma

amostragem do gênero, dos traços e da temática recorrente em cada uma delas. A

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ordem em que se apresentam não segue uma cronologia, mas um agrupamento por

temáticas similares.

1- Milonga del Moro Judio

2- Disneylandia

3- Montevideo

4- Frontera

5- Todo se transforma

4.3 Análise das canções

Por cada muro un lamento

En jerusalén la dorada

Y mil vidas malgastadas

Por cada mandamiento.

Yo soy polvo de tu viento

Y aunque sangro de tu herida,

Y cada piedra querida

Guarda mi amor más profundo,

No hay una piedra en el mundo

Que valga lo que una vida.

Yo soy un moro judío

Que vive con los cristianos,

No sé qué dios es el mío

Ni cuales son mis hermanos.

No hay muerto que no me duela,

No hay un bando ganador,

No hay nada más que dolor

Y otra vida que se vuela.

La guerra es muy mala escuela

No importa el disfraz que viste,

Perdonen que no me aliste

Bajo ninguna bandera,

Vale más cualquier quimera

Que un trozo de tela triste.

Y a nadie le dí permiso

Para matar en mi nombre,

Un hombre no es más que un hombre

Y si hay dios, así lo quiso.

El mismo suelo que piso

Seguirá, yo me habré ido;

Rumbo también del olvido

No hay doctrina que no vaya,

Y no hay pueblo que no se haya

Creído el pueblo elegido

CANÇÃO 1

MILONGA DEL MORO JUDÍO

Álbum: Eco / Eco2 (2004-2005)

Composição: Jorge Drexler

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CANÇÃO 1

MILONGA DO MOURO JUDEU

Álbum: Eco / Eco2 (2004-2005)

Composição: Jorge Drexler

Por cada muro um lamento

Em Jerusalém a dourada

E mil vidas desperdiçadas

Por cada mandamento.

Eu sou poeira do teu vento

Ainda que sangre de tua ferida,

E cada pedra querida

Guarda meu amor mais profundo.

Não há uma pedra no mundo

Que valha uma vida.

Eu sou um mouro judeu

Que vive com os cristãos,

Não sei que deus é o meu

Nem quais são meus irmãos.

Não há morto que não me doa,

Não há um lado ganhador,

Não há nada mais que dor

E outra vida que voa.

A guerra é uma péssima escola

Não importa o disfarce que veste.

Perdoem que não me aliste

Sob nenhuma bandeira.

Vale mais qualquer quimera

Que um pedaço de pano triste.

E a ninguém dei permissão

Para matar em meu nome,

Um homem não é mais que um homem

E se há Deus, ele quis assim.

O mesmo solo que piso

Seguirá, eu já terei ido;

Rumo do esquecimento

Não há doutrina que não vá,

E não há povo que não se ache

O povo escolhido.

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“Milonga del moro judio”, composta e interpretada por Jorge Drexler, integra o

álbum “Eco”, sétimo álbum de sua carreira e aquele que dá ao artista verdadeira

visibilidade mundial. Foi gravado em Montevidéu com músicos argentinos,

uruguaios, brasileiros e espanhóis e lançado em 2004. No ano de lançamento, Jorge

Drexler vivia há nove anos na Espanha.

Nesta canção, o sujeito enunciador, que se apresenta como um mouro judeu

(“yo soy un moro judio”), expressa seu sofrimento e sua condição de desterrado em

função das guerras em “nome” de Deus. Para isso, recorre à metáforas verbais, à

interdiscursividade e adota algumas atitudes discursivas para defender um ethos.

Bakhtin (1997) salienta que os indivíduos, ao interagirem por meio do texto, buscam

diferentes discursos, historicamente situados, para elaborar seus enunciados. A

interdiscursividade é, portanto, um componente importante para a construção dos

sentidos do texto, que, segundo Charaudeau (2013), é o espaço onde os

imaginários sociodiscursivos circulam. Esses imaginários “dão testemunho das

identidades coletivas, da percepção que os indivíduos e os grupos têm dos

acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades sociais”

(CHARAUDEAU, 2013, p.207).

Observa-se que, na canção, circula o discurso de retorno às fontes,

valorizando a responsabilidade em relação à origem como herança moral.

Por cada muro un lamento En jerusalén la dorada Y mil vidas malgastadas Por cada mandamento

Esse discurso de retorno às fontes é evidenciado pelos vocábulos muro e

lamento, em que sistemas imagéticos e culturais se ligam ao verbal e evocam a

imagem do Muro das Lamentações, sagrado para os judeus como local de fazer

orações e depositar seus desejos e também pelo uso metonímico da expressão

Jerusalén la dorada que nos remetem à imagem da Porta Dourada, entrada mais

antiga da cidade de Jerusalém, ambos representativos, aqui, da origem, cultura e

história do povo judeu, marcada por genocídio, exílio e sucessivas diásporas. O

sujeito enunciador se mostra responsável em apresentar tais discursos para

legitimar sua fala e expressar o sofrimento daqueles que defendem a cidade

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sagrada, seja por ideologia seja obrigação que, apesar das feridas causadas, não

impedem que o sujeito deixe de amar seu território.

De todos os diversos lugares sagrados da capital de Israel, o Muro das

Lamentações é um dos mais significativos. Sua história começa em 957 a.C., com o

Templo de Jerusalém. Erguido pelo rei Salomão, o templo simbolizava a ligação com

Deus.

Segundo Krausz (2012), o prédio foi derrubado pelos babilônios e reerguido

pelos judeus após cinco décadas. A obra ficou intacta até Roma dominar a cidade e,

em 40 a.C., Herodes assume o domínio sobre a região. Começa então uma grande

ampliação que demorou 46 anos.

Mas o resplendor durou pouco e uma revolta contra os romanos leva a nova

destruição do templo. Os judeus começaram uma grande diáspora e construções

islâmicas surgiram no local, como o Domo da Rocha. O atual Muro das

Lamentações é uma pequena parte da parede que sobrou da grandiosa obra de

Herodes. Das três secções do muro que restaram depois da destruição – a do leste,

do sul e do oeste – é a do oeste, a ocidental, onde está situado o Muro das

Lamentações, daí ser também chamado de Muro Ocidental.

Depois de uma longa história de guerras e conflitos, no local onde existia o

Templo de Salomão é atualmente o Monte do Templo ou a Esplanada das

Mesquitas, onde os muçulmanos construíram as Mesquitas de Al-Aqsa e a Mesquita

do Domo do Rochedo. De acordo com a crença dos muçulmanos, foi na Esplanada

das Mesquitas onde ocorreu a ascensão do Profeta Maomé aos céus de Alá3 e isso

faz desse lugar o terceiro mais sagrado aos muçulmanos, depois de Meca e Medina.

O Muro das Lamentações é o segundo lugar mais sagrado do judaísmo, atrás

somente do Santo dos Santos no Monte do Templo.

Portanto, o lugar onde havia o Templo de Salomão é sagrado tanto aos

judeus como aos muçulmanos. É uma área bastante sensível em termos políticos e

religiosos, especialmente porque os judeus têm restrições quanto a circular na

Esplanada das Mesquitas, que está sob jurisdição islâmica. A competição não oficial

pelo controle de Jerusalém acontece pedra por pedra.

O Muro é conhecido também pela tradição que já existe há séculos: de

colocar nas suas fendas um papel dobrado com pedidos escritos nele endereçados

3 Deus em língua árabe.

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a Deus Jehová. Assim, é um lugar para se depositar esperanças e também de fazer

orações. É possível encontrar pessoas rezando dia e noite à frente do Muro das

Lamentações.

Y aunque sangro de tu herida, Y cada piedra querida Guarda mi amor más profundo

Para Charaudeau (2013), essa responsabilidade nos obriga a nos tornarmos

porta-vozes e transmiti-la por nossa conta em uma longa cadeia de filiação e

solidariedade histórica, pois “a descoberta de nossa origem determinaria nossos

engajamentos” (CHARAUDEAU, 2013, p. 214).

Esses engajamentos dizem respeito à identidade social do sujeito falante,

pois ao tomar a palavra, deve responder a seguinte questão: “Estou aqui para dizer

o quê, considerando o status e o papel que me é conferido por esta situação? ”

(CHARAUDEAU, 2009, p. 4).

Observa-se que, com a expressão “Milonga del moro judío”, título desta

canção, aproximam-se elementos (milonga e moro judío) que evidenciam o “dizer o

quê” (expressar um lamento) e o status do sujeito falante (pertencente a um grupo).

Para o dicionário on-line da Real Academia Espanhola (2010), o termo milonga

designa

um estilo de música tradicional em várias partes da América Latina e na Espanha. É considerado o ritmo nacional da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande do Sul. É também conhecido por Molonga e originou-se de uma forma de canto e dança da Andaluzia, Espanha, que, nos fins do século XIX, popularizou-se nos subúrbios de Montevidéu e Buenos Aires.

Para Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, no dicionário Miniaurélio Século

XXI (2000, p. 463), a milonga é “certa música platina, dolente, cantada ao som do

violão”. E segundo o Diccionario de La Musica (1981), a milonga é vista como

Canto popular muy corriente em las repúblicas sudamericanas, que se canta con acompañamento de guitarra. [...] Su especto musical es el de una canción somnolenta, de movimiento lento, proveniente de la forma rítmica de su acompañamiento.

É a música com que os cantores sul-americanos expressam suas emoções,

num ritmo apagado e nostálgico, como no tango, expressando tristeza, sofrimento.

Sendo assim, a milonga é a representação metonímica de lamento.

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Além disso, a identidade social institui a legitimidade do orador. Em Milonga

del moro judio, é atribuída ao sujeito enunciador a legitimidade por filiação, que

segundo Charaudeau (2013) se funda na ideia de que o falante deve ser “bem-

nascido” ou deve pertencer a certo grupo social (classe, meio, casta)

Yo soy un moro judío Que vive con los cristianos

Assim, ao declarar-se um mouro judeu, o sujeito enunciador evidencia os

grupos aos quais pertence, evoca o testemunho dos antigos e legitima a sua voz,

tornando-se um encarregado de levá-la adiante. Este sujeito está autorizado a dizer,

pois, mais do que ninguém, conhece sua própria origem e história.

Conhecedor de seu status e de seu propósito, o sujeito falante precisa

responder a outra questão: “Estou aqui para falar como”? Dessa forma, deve adotar

atitudes discursivas no intuito de ser levado a sério e conseguir a captação de seu

público. Verifica-se que o sujeito enunciador em Milonga del moro judio defende um

ethos a partir da atitude de engajamento, que, segundo Charaudeau (2009), é a

tomada de posição na escolha de argumentos ou palavras, construindo assim um

sujeito falante como um ser de convicção.

Krausz (2012) salienta que, na história dos judeus, uma das dispersões se dá

quando a comunidade judaica da Babilônia começa a declinar. Parte dos judeus foi

para o norte da África, região que hoje corresponde a Argélia, Marrocos, Sahara

Ocidental e Mauritânia, e lá se assentaram nos domínios de duas tribos

mulçumanas: os beberes e os mouros. Sabendo que os mouros estavam em franca

expansão pela Espanha, muitos judeus foram com eles e ficaram conhecidos como

os sefaradim, que significa Espanha em hebraico.

Os mouros chegaram por volta do ano 711 e se estabeleceram na Espanha

por oito séculos até que os reis católicos espanhóis, numa tentativa de acabar com o

domínio mouro no território espanhol, estabeleceram uma ofensiva que ficou

conhecida como “A Reconquista” e assim expulsaram e/ou mataram aqueles que

não aceitavam se converter à fé cristã. Os que se convertiam eram chamados de

“cristãos-novos”, porém ainda eram alvos de suspeita dos inquisidores.

La guerra es muy mala escuela No importa el disfraz que viste

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Assim, esse sujeito se posiciona contrariamente à questão da guerra entre

cristãos, mouros e judeus, pois, a partir da metáfora construída no verso acima,

defende a ideia de que a guerra, por mais que se tenham motivos “nobres” ou

“santos”, é sempre prejudicial comparando-a a uma escola de qualidade ruim,

duvidosa, que não educa, não forma, mas deforma os cidadãos.

Quanto aos procedimentos expressivos para a composição do ethos,

Charaudeau (2013) salienta que cada locutor tem uma maneira de falar que lhe é

próprio, mas que, ao mesmo tempo, depende de comportamentos e papéis sociais

repertoriados. O autor ainda destaca que a maneira de falar de um locutor

caracteriza-se sempre por certa vocalidade, que pode ser categorizada em: “o bem

falar”, o “falar forte”, o “falar tranquilo” e o “falar regional”.

Sendo assim, o sujeito enunciador desta canção se apresenta como aquele

locutor que tem o “falar tranquilo”, que segundo Charaudeau (2013), se caracteriza

por possuir uma dicção lenta e um tom de voz que não é terno nem estrondoso, a

articulação, sem ser exageradamente marcada, é compreensível e dá a impressão

de uma grande simplicidade natural que a aproxima da conversação familiar. Este

falar pode evocar vários ethé: de caráter, de inteligência, de chefe, demonstrando

uma força de alma interior capaz de se encarregar dos problemas do mundo.

Além disso, essa simplicidade da conversação familiar é marcada pela

escolha do ritmo milonga e pela composição do sujeito enunciador como a figura do

cantador ou “milonguero” que necessita transmitir, através da tradição oral, sua

mensagem.

No hay muerto que no me duela, No hay un bando ganador, No hay nada más que dolor

Essa mensagem é transmitida de maneira simples a partir da utilização de um

vocabulário comum, marcado pela presença da anáfora no hay no início dos versos,

remetendo-nos aos ditos populares “No hay mal que por bien no venga”, “No hay

que ser caballo para saber de carreras”, “No hay mal que dure cien años ni cuerpo

que lo resista” entre outros característicos da cultura espanhola.

Jorge Drexler é um artista que possui uma voz agradável, melodiosa e

tranquila, assim como sua música, que transita entre o acústico e o eletrônico,

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caracterizada pelo não excesso. Em Milonga del moro judio, ele utiliza o ritmo

milonga, de tom reflexivo e melancólico, de cadência e ponteio rigorosos, quase

como uma marcha e sutil em seus movimentos melódicos, reforçando o ethos que

ele constrói para conseguir a adesão de seu público e seduzi-lo facilmente.

Não podemos esquecer-nos do “falar regional”, visto que é a marca do falar

de Jorge Drexler e evoca sua região de origem, pois, segundo Charaudeau (2013),

esse falar, ao mesmo tempo em que revela o torrão natal ao qual pertence o orador,

estabelece uma relação de proximidade com aqueles que participam dessa mesma

origem. Assim, ao enunciar utilizando o falar regional, o sujeito enunciador da

canção constrói um ethos de autenticidade e de humanidade que o legitima a falar

aos seus, legitima o grupo identitário a que esse sujeito pertence e o coloca na

posição de defensor dos valores de sua nação, não negando suas origens e sua

identidade.

Ao pensarmos no mercado musical, Jorge Drexler poderia compor e cantar

suas canções em outro idioma para conseguir maior público, maior visibilidade e

maior vendagem, porém sua escolha ao produzir canções em língua materna é uma

escolha, antes de tudo, ideológica.

Além disso, Charaudeau (2008 p. 128) salienta que as canções, nas quais o

eu-enunciador expõe sua experiência e sua visão pessoal do mundo e dos seres

que o rodeiam, são textos que tem a finalidade de contar. O universo assim

construído é relativo ao imaginário pessoal do sujeito, que, a partir de uma descrição

subjetiva, deixa transparecer seus sentimentos, seus afetos e suas opiniões, a tal

ponto que, às vezes, o mundo descrito pode se confundir com os estados de alma

daquele que o descreve. Assim, na canção Milonga del moro judio, o eu poético-

descritor utiliza os componentes de organização descritiva nomear, localizar-situar e

qualificar para construção do mundo narrado ou descrito.

7. Nomear: consiste em fazer existir os seres no mundo. Esses seres representam

uma referência material ou não material e são nomeados por nomes comuns,

que os individualizam e os fazem pertencer a uma classe (identificação

genérica), ou por nomes próprios (identificação específica).

8. Localizar-situar: uso de categorias de língua que pode fornecer ao relato um

enquadre espaço-temporal, jogando com a precisão, o detalhe e a identificação

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dos lugares e da época de um relato ou, ao contrário, podem deixar os lugares

e o tempo incertos, sem identificação particular porque o relato não se ancora

em uma realidade específica. Esse enquadre depende da visão que um grupo

cultural projeta sobre esse mundo.

9. Qualificar: permite construir uma visão objetiva ou subjetiva do mundo, e

produzir efeitos de realidade / ficção a partir da descrição dos seres humanos

em seu aspecto físico, gestual, de indumentária, em suas posturas, gostos,

identidade, comportamentos, os objetos que possuem etc. Essa descrição se dá

pela acumulação de detalhes de tipo factual com o objetivo de produzir um

efeito de coerência ou pela utilização de analogias explícitas ou implícitas que

consiste em colocar em correspondência os seres do universo e as qualidades

que pertencem a âmbitos diferentes.

“Por cada muro un lamento En jerusalén la dorada” “Yo soy un moro judío Que vive con los cristianos”

Os nomes comuns, aqui, identificam na canção os personagens como

indivíduos que representam uma classe de seres, à qual é atribuído um papel, uma

espécie de arquétipo (moro judio, cristianos) e o nome próprio (Jerusalén) fornece

também o enquadre espacial, localizando a história narrada, carregada de

evocações simbólicas. Observa-se também que a qualificação se dá por meio da

expressão moro judio que vive con los cristianos, que singulariza o personagem e

evidencia sua identidade, sua postura, além de seus gostos, opiniões e sentimentos

encontrados ao longo de todo texto, explícita ou implicitamente.

No que diz respeito aos procedimentos enunciativos, Charaudeau (2013)

salienta que tais procedimentos permitem ao sujeito falante colocar-se em cena

(enunciação “elocutiva”), implicar seu interlocutor no mesmo ato de linguagem

(enunciação “alocutiva”) e apresentar o que é dito como se a ninguém estivesse

implicando (enunciação “delocutiva”).

Fica evidente em Milonga del moro judio a elocução, expressa por meio de

pronomes pessoais de primeira pessoa (“yo soy un moro judio”), revelando a

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implicação do locutor e seu ponto de vista pessoal. Charaudeau (2008) salienta que

o comportamento elocutivo se configura linguisticamente através de categorias

modais específicas. Assim, destacaremos algumas dessas categorias e os papéis

atribuídos ao locutor apresentados na canção:

Saber/ Ignorância - uma informação é pressuposta e o locutor diz se tem ou

não conhecimento dela: “No sé que dios es el mío, ni cuales son mis

hermanos”.

Apreciação – o locutor avalia não mais a verdade do propósito, mas seu valor,

seus próprios sentimentos. Trata-se de uma avaliação de ordem afetiva: “no

hay muerto que no me duela, no hay más que dolor”.

Concordância / Discordância – pressupõe que foi dirigido ao locutor um

pedido de dizer se adere ou não à verdade de um propósito de um outro e ele

responde expressando sua adesão ou sua não adesão a esse propósito:

“perdonen que no me aliste bajo ninguna bandera”.

Proclamação – faz existir um ato no momento em que profere uma fala que

descreve esse ato. Tem uma posição institucional (ou considera como tal),

que lhe dá autoridade para fazer com que essa fala se torne um ato: “a nadie

le di permiso para matar en mi nombre”.

Declaração – o locutor detém um saber e supõe que o interlocutor ignora esse

saber ou duvida da verdade desse saber: “yo soy un moro judio que vive con

los cristianos”.

Dessa forma, a elocução evoca, aqui, o ethos de humanidade, o ethos de

chefe e o ethos de solidadriedade, a partir de algumas figuras que demonstram as

fraquezas, a condição humana e os sentimentos do sujeito enunciador.

O ethos de humanidade constitui um imaginário importante para a figura do

locutor, pois o ser humano é mensurado pela capacidade de demonstrar

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sentimentos, compaixão por aqueles que sofrem e pela capacidade de confessar

suas fraquezas.

Assim, ao declarar-se um moro judío, o sujeito evidencia sua humanidade,

sua condição de desterrado e demonstra, ao longo da canção, sua posição contrária

à guerra, adotando uma atitude de compaixão e atenção às necessidades dos

outros, daqueles que padecem na guerra. Muito mais que observar esse sofrimento,

o enunciador sofre porque se coloca como um soldado do front que defende as

minorias, aqueles que, como ele, vivem desterrados em nome de doutrinas que

reforçam a soberania de um grupo em detrimento de outros.

O ethos de solidariedade está intimamente ligado ao ethos de humanidade. A

solidariedade caracteriza-se pela vontade de estar junto, de não se distinguir dos

outros membros do grupo e, sobretudo, de unir-se a eles a partir do momento em

que se encontram ameaçados. Charaudeau (2013) salienta que todo movimento de

solidariedade passa por um processo de identificação de um grupo por meio de uma

ideia, um valor.

Yo soy um moro judio Que vive com los cristianos no hay muerto que no me duela no hay nada más que dolor

Além disso, a figura do guia-profeta caberia ao sujeito falante, pois tal figura,

variante do ethos de chefe, diz respeito àquele que, ao mesmo tempo, é fiador do

passado e é voltado para o futuro, para o destino dos homens. Ele é uma palavra,

uma voz.

Y a nadie le dí permiso Para matar en mi nombre, Un hombre no es más que un hombre Y si hay dios, así lo quiso

Observa-se que, na canção, também circula o discurso do direito à identidade

que, segundo Charaudeau (2013), diz respeito à questão de saber se as relações

que os grupos mantêm entre si devem ser de integração ou de assimilação das

diferenças, criando uma identidade coletiva, ou se as relações devem ser de defesa

do grupo local e de preservação de sua identidade.

Dessa forma, duas concepções estariam em oposição: uma que pode ser

chamada depopular, no sentido de que os indivíduos se reconhecem como

pertencentes a uma massa, soberania que é mantida por um discurso que apaga as

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fronteiras nacionais; outra que pode ser relacionada à preferência nacional, fundada

sobre o passado histórico, sustentada pelos discursos de especificidade identitária.

Na canção Milonga del moro judio, apesar de se observar o discurso de

retorno às origens, ao passado, não é este que sobressai no texto, e sim aquele que

defende o igualitarismo do ponto de vista da identidade cidadã, que deve abolir as

diferenças de tratamento em função da pertença dos indivíduos a uma raça, religião,

etnia etc.

Un hombre no es más que un hombre Y si hay dios, así lo quiso.

Ao tratar da questão dos mouros, judeus e cristãos, o sujeito enunciador se

posiciona contrário ao imaginário de uma soberania popular intolerante, excludente

diante da “ameaça” que representa um grupo dominante e defende a noção de

hibridismo cultural a qual estamos todos irremediavelmente associados. “Em vez de

pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como

constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou

identidade” (HALL, 2011, p. 62).

Bauman (2005) salienta que identificar-se com significa dar abrigo a um

destino desconhecido que não se pode influenciar e que talvez seja mais prudente

portar identidades como um manto leve pronto a ser despido a qualquer momento.

Para Bhabha (2013), a questão da identificação é sempre a produção de uma

imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem é “o

retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro

de onde ela vem”.

É importante destacar também que as marcas identitárias estão presentes na

elocução, evidenciando um caráter mais subjetivo impresso nas canções, pois a

identidade e a condição do sujeito comunicante se misturam com a do sujeito

enunciador. Dessa forma, pode-se perceber que, ao tecer discursivamente a

identidade do sujeito enunciador, Drexler constrói sua própria identidade: filho e neto

de judeus.

Assim, ao construir discursivamente sua identidade, Drexler deixa em realce

suas raízes e se vê “encarregado” de levá-las adiante, ainda que com o advento da

globalização, não consigamos fugir de uma identidade universal. As marcas

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linguísticas e a construção discursiva evidenciam o caráter latino, pessoal da

canção.

Enquanto artista, Drexler se vê legitimado a falar sobre a temática impressa

em Milonga del moro judio, na tentativa de não só emocionar seu público, mas

também, através da identificação, de fomentar a reflexão e garantir a adesão de seu

interlocutor. Além disso, enquanto seres sociais, somos também seres políticos na

medida em que nos colocamos no mundo, lutamos por nosso direito, expressamos

nossas opiniões, defendemos uma causa etc. Assim, ao expressar suas ideologias

“em forma de canção”, Drexler faz política e necessita, para isso, recorrer a um

ethos que se constrói a partir da figura do sujeito enunciador desta canção.

1º- Os imaginários sociodiscursivos que circulam na canção

“Tradição” – discurso de fidelidade – dada como um valor moral, um dever de assumir a origem. (CHARAUDEAU, 2013, p.213)

Ex: “Yo soy un moro judio que vive con los cristianos”.

“Direito à identidade” - diz respeito à questão de saber se as relações que os grupos mantêm entre si devem ser de integração ou de assimilação das diferenças, criando uma identidade coletiva, ou se as relações devem ser de defesa do grupo local e de preservação de sua identidade (CHARAUDEAU, 2013)

Ex: “un hombre no es más que un hombre”.

2º- A identidade social do sujeito falante

Legitimidade“por filiação” – pertencer a certo grupo, meio, classe ou casta. (CHARAUDEAU, 2013, p. 71) O sujeito enunciador se apresenta como um mouro judeu.

Ex: “Yo soy un moro judío”.

3º- A Identidade discursiva do sujeito falante

Credibilidade: o sujeito enunciador adota uma atitude de engajamento – imagem de um sujeito como “ser de convicção”.

Ex: “La guerra es muy mala escuela No importa el disfraz que viste”.

4º- Procedimentos expressivos Falar regional e o falar tranquilo

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5º-Procedimentos enunciativos Enunciação “elocutiva”

Ex: Yo soy, no sé, no me alisto, mi nombre

6º-Ethos e marcas identitária. Ethos de humanidade, ethos de solidariedade,

ethos de chefe sujeito Drexler constrói sua própria identidade: filho e

neto de judeus.

QUADRO 3: CIRCUITO DE ANÁLISE 1: “Milonga del moro judío”

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Hijo de inmigrantes rusos casado em

Argentina con una pintora judía, se casa

por segunda vez con una princesa africana

en Méjico.

Música hindú contrabandeada por gitanos

polacos se vuelve un éxito en el interior de

Bolivia.

Cebras africanas y canguros australianos

en el zoológico de Londres.

Momias egipcias y artefactos incas en el

Museo de Nueva York.

Linternas japonesas y chicles americanos

en los bazares coreanos de San Pablo.

Imágenes de un volcán en Filipina salen en

la red de televisión de Mozambique.

Armenios naturalizados en Chile buscan a

sus familiares en Etiopía.

Casas prefabricadas canadienses hechas

con madera colombiana.Multinacionales

japonesas instalan empresas en Hong-

Kong y producen con materia prima

brasilera para competir en el mercado

americano.

Literatura griega adaptada para niños

chinos de la Comunidad Europea

Relojes suizos falsificados en Paraguay

vendidos por camellos en el barrio

mejicano de Los Ángeles.

Turista francesa fotografiada

semidesnuda con su novio árabe en el

barrio de Chueca.

Pilas americanas alimentan

electrodomésticos ingleses en Nueva

Guinea.

Gasolina árabe alimenta automóviles

americanos en África del Sur.Pizza

italiana alimenta italianos en Italia.Niños

iraquíeshuídos de la guerra no obtienen

visa en el consulado americano de

Egipto para entrar en Disneylandia.

CANÇÃO 02

DISNEYLANDIA

Álbum: 12 Segundos de Oscuridad (2006)

Composição: Arnaldo Antunes

Versão: Jorge Drexler

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Filho de imigrantes russos casado na

Argentina com pintora judia, casou-se

pela segunda vez com uma princesa

africana no México.

Música hindú contrabandiada por ciganos

poloneses faz sucesso no interior da

Bolívia.

Zebras africanas e cangurus australianos

no zoológico de Londres.

Múmias egípcias e artefatos íncas no

museu de Nova York.

Lanternas japonesas e chicletes

americanos nos bazares coreanos de

São Paulo.

Imagens de um vulcão nas Filipinas

passam na rede de televisão em

Moçambique.

Armênios naturalizados no Chile

procuram familiares na Etiópia.

Casas pré-fabricadas canadenses feitas

com madeira colombiana.

Multinacionais japonesas instalam

empresas em Hong-Kong e produzem

com matéria prima brasileira para

competir no mercado americano.

Literatura grega adaptada para crianças

chinesas da comunidade europeia.

Relógios suiços falsificados no Paraguai

vendidos por camelôs no bairro mexicano

de Los Angeles.

Turista francesa fotografada seminua

com o namorado árabe na Baixada

Fluminense.

Pilhas americanas alimentam

eletrodomésticos ingleses na Nova

Guiné.

Gasolina árabe alimenta automóveis

americanos na África do Sul.

Pizza italiana alimenta italianos na Itália.

Crianças iraquianas fugidas da guerra

não obtém visto no consulado americano

do Egito para entrarem na Disneylândia.

CANÇÃO 02

DISNEYLÂNDIA

Álbum: 12 Segundos de Oscuridad (2006)

Composição: Arnaldo Antunes

Versão: Jorge Drexler

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A canção “Disneylandia”, que integra o álbum “12 Segundos de Oscuridad”

lançado em 2006 por Jorge Drexler, é uma versão em espanhol de uma composição

do músico brasileiro Arnaldo Antunes, gravada no disco “Cabeça Dinossauro”, de

quando ele era integrante dos Titãs, banda paulistana formada nos anos 1980 por

jovens colegas de escola. O grupo fez parte daquilo que se designou, nos veículos

midiáticos, de “rock nacional”, período de surgimento e propagação de bandas cujas

letras das canções eram de cunho crítico-social e retratavam problemáticas da

realidade brasileira como violência urbana, corrupção, política, desigualdades etc.

Porém, é importante salientar que, ao cantar sua versão, Drexler “ocupa” o lugar do

enunciador.

A escolha desta letra para compor o corpus deste trabalho se deve ao

conteúdo e à temática da mesma, uma vez que a riqueza de detalhes de processos

representativos de uma sociedade em transformação, sem limites geográficos bem

delimitados é marcante. Nota-se que o sujeito enunciador, aqui, se assemelha a um

jornalista que noticia o fluxo de pessoas e produtos e eventos sociais característicos

dos anos 1990, daquilo que se convencionou chamar de processo de globalização.

Para Castells (1999), a Globalização é o processo resultante da capacidade de

certas atividades de funcionar como unidade em tempo real em escala planetária. É

um fenômeno novo porque só nas últimas décadas do século XX se constituiu um

sistema tecnológico de sistemas de informação, telecomunicações e transporte que

articula todo o planeta numa rede de fluxos nas quais convergem as funções e

unidades estratégicas dominantes de todos os âmbitos da atividade humana.

Segundo Bauman (1999), o significado mais profundo transmitido pela ideia

da globalização é o de caráter indisciplinado, indeterminado e de autopropulsão dos

assuntos mundiais, a ausência de um centro, de um painel de controle, a “nova

desordem mundial” de Jowitt com outro nome. É um movimento de abertura

comercial que possibilita a integração econômica e estimula o desmantelamento do

Estado para acelerar investimentos da mais-valia global.

Pautado nos elementos discursivos e na temática em questão, observa-se

que, nesta canção, diferentemente de “Milonga del moro judio”, circula o imaginário

da “modernidade”, que segundo Charaudeau (2013), trata de um conjunto de

representações que os grupos sociais constroem a propósito da maneira como

percebem ou julgam seu instante presente. São celebradas, neste imaginário, a

ação do homem e sua capacidade de transformar o mundo com seu pensamento,

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sua mão (criação manufatureira) e as novas ferramentas que produz (criação

tecnológica).

Pilas americanas alimentan electrodomésticos ingleses en Nueva Guinea

Tal imaginário é portador de uma crença na existência do progresso

necessário à realização do bem-estar do homem e das sociedades e engendra, em

seu interior, dois tipos de discursos: um centrado na economia e outro na tecnologia.

O discurso centrado na economia diz respeito ao modo como uma sociedade

representa para si a legitimidade das maneiras de gerir a vida coletiva do ponto de

vista da produção e repartição de riquezas, já que os indivíduos não são igualmente

produtores nem têm o mesmo acesso às riquezas criadas. Daí nascem os discursos

de “regulação controlada” e “autorregulação natural”. O primeiro, segundo

Charaudeau (2013), está fundado no reconhecimento de que em qualquer

sociedade existem dominantes e dominados, e o segundo fundamenta-se na ideia

de que em toda sociedade as relações de força são inevitáveis, garantia de um

dinamismo que manifesta a livre concorrência entre produtores, fazendo crescer o

consumo.

Linternas japonesas y chicles americanos en los bazares coreanos de San Pablo Multinacionales japonesas instalan empresas en Hong-Kong y producen con materia prima brasilera para competir en el mercado americano.

Em “lanternas japonesas e chicletes americanos nos bazares coreanos de

São Paulo”, bens de consumo duráveis e não duráveis (lanterna, chiclete) vindos de

países desenvolvidos (Japão e Estados Unidos) aparecem no mercado interno

brasileiro através de estabelecimentos (bazares) situados em São Paulo, cujos

donos são estrangeiros (coreanos), reforçando, assim, a ideia de um sistema

produtivo pautado na produção, distribuição e consumo. É evidente, aqui, o

referencial econômico dos fluxos globalizados. Tal referencial aparece através da

abertura ao mercado internacional, da conexão comercial entre multinacionais e

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suas filiais, das relações de dominação, do controle de matéria-prima e mão de obra

em busca de lucratividade.

Outro discurso que circula na canção é o que está centrado na tecnologia e

que, segundo Charaudeau (2013), testemunha uma representação social sobre a

maneira de enfocar o mundo e a técnica do ponto de vista de seu valor. Esse

discurso é portador de um imaginário de verdade ligado à noção de eficácia e

competência. O século XXI é marcado pela tecnologia da comunicação, pela

fabricação de modos de transmissão eletrônicos e digitais, pela organização das

conexões em rede e permite circular uma informação em um espaço de tempo curto

e colocar em contato direto pessoas que se encontram distantes umas das outras.

Para Flichy (1991 apud CHARAUDEAU 2013), nossa época é marcada pelo que

chamou de “imaginário cooperativo”.

Imágenes de un volcán en Filipina salen en la red de televisión de Mozambique Turista francesa fotografiada semidesnuda con su novio árabe en el barrio de Chueca

Assim, esse imaginário se funda na crença de que todos podem ter acesso a

todas as informações que circulam no mundo e que estas seriam imediatamente

compreendidas por todos devido à modernização dos meios de comunicação que

articula o planeta numa grande rede.

Um elemento interessante e fundamental nesta canção é o fluxo de pessoas,

o movimento populacional que acontece entre as fronteiras, que envolve emigração-

imigração, identificação x desidentificação, choques culturais, componentes da

globalização.

Hijo de inmigrantes rusos casado en Argentina con una pintora judía, se casa por segunda vez con una princesa africana en Méjico. Niños iraquíes huídos de la guerra no obtienen visa en el consulado americano de Egipto para entrar en Disneylandia.

Ao emigrarem da Rússia, pais dão ao filho a condição de se fixar em outro

local (Argentina, México), buscando construir novos vínculos identitários via

casamento com pessoas de outras culturas e territórios (judia, africana). Porém,

esses fluxos populacionais também encontram “muros” sociais, políticos e culturais

que dificultam a fixação em território estrangeiro, pois se observa que crianças

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iraquianas foram impedidas de entrar nos Estados Unidos através do complexo

turístico da Disneylândia, tratado, aqui, como ponto de passagem, como “não lugar”.

Outras referências com forte apelo à identificação e representação (comunidade,

naturalizado, adaptado, entrada) aparecem na canção e evocam a ideia de

hibridismo, de assimilação.

Assim, para relatar os acontecimentos de um mundo globalizado, o sujeito

falante adota uma postura de neutralidade, que, segundo Charaudeau (2009), é a

atitude que leva o sujeito a apagar, em seu discurso, qualquer vestígio de avaliação

pessoal, atitude esta da testemunha que fala para constatar o que viu, ouviu,

experimentou. Dessa forma, o sujeito enunciador recorre à enunciação delocutiva

para apresentar o que é dito como se a palavra dada dependesse unicamente do

ponto de vista de uma voz terceira, voz da verdade. Para Charaudeau (2013), a

delocução é expressa com a ajuda de frases que apagam todo traço dos

interlocutores, para se apresentar de forma impessoal. O sujeito falante se

apresenta, então, como um “soberano”, aquele que está acima das massas e se faz

portador de uma verdade estabelecida. Esse modo de enunciação pode construir um

ethos de grandeza e revelar, também, uma distância, uma frieza e ainda um espírito

dogmático por parte do orador.

Dessa maneira, a partir da atitude discursiva do sujeito enunciador e dos

procedimentos enunciativos observados para a composição do ethos, Drexler

assume um discurso que tenta apagar qualquer sinal de identidade latina para

composição de uma identidade universal.

1º- Os imaginários sociodiscursivos que circulam na canção

“Modernidade” – esse imaginário se define inicialmente contra um passado que seria percebido como uma era, senão de obscurantismo, ao menos de um saber menor, de um saber “de uma outra idade” e, assim, o tempo presente se beneficiaria de um estado de saber superior. (CHARAUDEAU, 2008, p. 216)

Ex: “Pilas americanas alimentan electrodomésticos ingleses en Nueva

Guinea”.

“Turista francesa fotografiada semidesnuda con su novio árabe en el barrio de Chueca”.

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2º- A identidade social do sujeito falante Legitimidade pela força do reconhecimento ou domínio midiático

3º- A Identidade discursiva do sujeito falante

Credibilidade: o sujeito enunciador adota uma atitude de neutralidade – imagem de um sujeito que apaga qualquer vestígio de avaliação pessoal. Captação: o sujeito adota uma atitude de dramatização – descreve fatos que concernem aos dramas da vida.

Ex: “Niños iraquíes huídos de la guerra no obtienen visa en el consulado americano de

Egipto para entrar en Disneylandia.”

4º- Procedimentos expressivos Falar regional e o falar tranquilo

5º-Procedimentos enunciativos

Enunciação “delocutiva” – é expressa com a ajuda de frases que apagam todo traço dos interlocutores. (CHARAUDEAU, 2013, p.179) Ex: “Armenios naturalizados en Chile buscan

a sus familiares en Etiopía”.

6º-Ethos e marcas identitárias

Ethos de grandeza, soberania Apagamento da identidade individual

QUADRO 4: CIRCUITO DE ANÁLISE 2: “ Disneylandia”

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CANÇÃO 03 MONTEVIDEO Álbum: Llueve (1997) Composição: Jorge Drexler

Yo tengo pintada en la piel

la lágrima de esta ciudad,

la misma que da de beber,

la misma te hará naufragar.

Yo tengo en la piel su sabor,

un leve resabio de sal,

que nunca he sabido esconder,

que nunca he sabido mirar.

Si dejo elegir a mis pies

me llevan camino del mar,

me llevan camino del mar,

me llevan camino del mar.

El mar que me trajo hasta aquí,

el puerto en que habré de zarpar,

un día pensando en volver,

un día volviendo a escapar.

Un día cualquiera me iré

dejando su lágrima atrás

la pena que me haga partir

la misma me hará regresar.

Si dejo elegir a mis pies

me llevan camino del mar,

me llevan camino del mar,

me llevan camino del mar

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CANÇÃO 03 MONTEVIDÉU Álbum: Llueve (1997) Composição: Jorge Drexler

Eu tenho pintada na pele

a lágrima desta cidade,

a mesma que dá de beber,

a mesma te fará naufragar.

Eu tenho na pele o seu sabor,

um leve sabor de sal,

que nunca soube esconder,

que nunca soube olhar.

Se deixo os meus pés escolherem

me levam a caminho do mar,

me levam a caminho do mar,

me levam a caminho do mar.

O mar que me trouxe até aqui,

o porto em que terei de zarpar,

um dia pensando em voltar,

um dia voltando a fugir.

Um dia qualquer eu irei

deixando sua lágrima para trás

a tristeza que me fará partir

a mesma me fará regressar.

Se deixo os meus pés escolherem

me levam a caminho do mar,

me levam a caminho do mar,

me levam a caminho do mar.

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A canção “Montevideo”, composta e interpretada pelo músico Jorge Drexler,

integra o álbum “Llueve”, lançado em 1998.O sujeito enunciador, que se apresenta

como um residente ou nativo da cidade de Montevidéu, expressa seu desejo de

escape a partir de suas experiências, do conhecimento de sua história e das

condições de sua cidade, que o faz, então, produzir um discurso que valoriza o

tempo presente e rompe com os valores do passado. O que está em jogo é a

legitimidade de uma maneira de viver, uma nova visão do mundo.

Este desejo de fuga da cidade natal diz respeito à identidade social do sujeito

falante, pois se observa que, com as expressões “Montevideo”, “volver” e “escapar”,

aproximam-se elementos que evidenciam o “dizer o quê”. Além disso, fica evidente,

aqui, a enunciação elocutiva(Yo tengo pintada en la piel)que evoca o ethos de

humanidade e faz referência à identidade do sujeito comunicante Drexler, uruguaio

nascido em Montevidéu. É interessante perceber que o título da canção evidencia

uma identificação local, apesar do desejo de partir.

1º- Os imaginários sociodiscursivos que circulam na canção

“Tradição” – discurso de fidelidade – dada como um valor moral, um dever de assumir a origem. (CHARAUDEAU, 2013, p.213)

Ex: “Yo tengo pintada enla piel la lágrima de esta

ciudad”. “Tengo en la piel su sabor que nunca he sabido

esconder.”

“Modernidade”–esse imaginário se define inicialmente contra um passado que seria percebido como uma era, senão de obscurantismo, ao menos de um saber menor, de um saber “de uma outra idade” e, assim, o tempo presente se beneficiaria de um estado de saber superior. (CHARAUDEAU, 2013, p. 216)

Ex: “la misma que da de beber, la misma te hará naufragar”.

“Si dejo elegir a mis pies, me llevancamino del mar”.

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2º- A identidade social do sujeito falante

Legitimidade“por filiação” – pertencer a certo grupo, meio, classe ou casta. (CHARAUDEAU,

2013, p. 71)

O sujeito enunciador se apresenta como um nativo (uruguaio) ou morador da cidade de “Montevideo” – título da canção. Ex: “Tengo pintada el la piel la lágrima de esta ciudad”.

“Un día culaquiera me iré dejando su lágrima atrás”

3º- A Identidade discursiva do sujeito falante

Credibilidade: o sujeito enunciador adota uma atitude de engajamento – imagem de um sujeito como “ser de convicção”. Captação: o sujeito adota uma atitude de dramatização–apoia-se em valores afetivos socialmente partilhados pois trata-se de fazer sentir certas emoções.

Ex: “la pena que me haga partir, la misma me hará regresar”.

“Si dejo elegir a mis pies, me llevan camino del mar”

4º- Procedimentos expressivos

Falar regional e o falar tranquilo

5º-Procedimentos enunciativos

Enunciação “elocutiva”

Ex: Yo tengo, he sabido, iré, me trajo, me hará, habré

6º-Ethos e marcas identitárias

Ethos dehumanidade, ethos de virtude Ao tecer discursivamente a identidade do sujeito enunciador, Drexler constrói sua própria identidade: uruguaio.

QUADRO 5: CIRCUITO DE ANÁLISE 3: “Montevideo”

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CANÇÃO 04 FRONTERA Álbum: Frontera (1999) Composição: Jorge Drexler

Yo no sé de dónde soy,

mi casa está en la frontera

Y las fronteras se mueven,

como las banderas.

Mi patria es un rinconcito,

el canto de una cigarra.

Los dos primeros acordes

que yo supe en la guitarra

Soy hijo de un forastero

y de una estrella del alba,

y si hay amor, me dijeron,

y si hay amor, me dijeron,

toda distancia se salva.

No tengo muchas verdades,

prefiero no dar consejos.

Cada cual por su camino,

igual va a aprender de viejo.

Que el mundo está como está

por causa de las certezas

La guerra y la vanidad

comen en la misma mesa

Soy hijo de un desterrado

y de una flor de la tierra,

y de chico me enseñaron

las pocas cosas que sé

del amor y de la guerra

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FRONTEIRA

Álbum: Frontera (1999)

Composição: Jorge Drexler

Eu não sei de onde sou,

minha casa está na fronteira

E as fronteiras se movem,

como as bandeiras.

Minha pátria é um cantinho,

o canto de uma cigarra.

Os dois primeiros acordes

que eu aprendi na guitarra

Sou filho de um forasteiro

e de uma estrela d’alva,

e se existe amor, me disseram,

e se existe amor, me disseram,

toda distancia se salva.

Não tenho muitas verdades,

prefiro não dar conselhos.

Cada um por seu caminho,

vai aprendendo com a idade.

Que o mundo está como está

por causa das certezas

A guerra e a vaidade

comem na mesma mesa

Sou filho de um desterrado

e de uma flor da terra,

e de menino me ensinaram

as poucas coisas que sei

do amor e da guerra.

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“Frontera”, composta e interpretada pelo músico Jorge Drexler, integra o

álbum de mesmo título, gravado em Buenos Aires e lançado em 1999. Nesse álbum

encontramos canções que vão desde o candombe a ritmos mais pop, com a mescla

de recursos eletrônicos nos arranjos. A canção apresenta um discurso de fluidez, de

passagem, de uma vida sem limites geográficos bem delimitados, retratando um

homem que não está preso a verdades absolutas, mas que “desconhece” sua

própria identidade nacional, não se fixando em nenhum lugar.

A palavra “fronteira”, título da canção sugere um lugar de entremeio, uma

ponte, travessia, passagem, lugar de encontros e desencontros culturais, alcance de

novas margens, novos lugares, hibridismo, remetendo ao que afirma Bhabha sobre

o “local da cultura”:

É outro lugar de enunciação, híbrido, ‘inadequado’, outro lócus de inscrição e intervenção das lutas de identificações: raça, gênero, vinculação institucional, orientação sexual, localidade geopolítica, língua, habilidades e competências, dentre outras. A cultura é fronteira, passagem, travessia, (des)encontros de vozes dissonantes. (BHABHA, 2013, p. 51)

O sujeito enunciador, ao declarar Yo no sé de dónde soy, mi casa está en la

frontera, pode ser visto como o sujeito pós-moderno de Hall (2011) que, envolto a

uma “crise de identidade”, se percebe deslocado, sem uma identificação plenamente

unificada, segura, mas cambiante, móvel, pois sua casa está na fronteira. A crise de

identidade que salienta Hall (2011, p.7) é entendida como:

parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e os processos centrais da sociedade moderna e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem no mundo social.

Além disso, fica evidente en “las fronteras se mueven como las banderas” que

esse sujeito enunciador já não tem mais um lugar específico a ocupar e que, talvez,

a busca por uma identidade seja uma tarefa quase impossível, pois Bauman (2005)

salienta que

Não há mais ‘fronteiras naturais’ nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de encontrar – de inventar – uma razão).

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Além dos elementos, já analisados, como constituintes da identidade do

sujeito enunciador, é possível destacar, mais uma vez, que o modo enunciativo em

1ª pessoa, presente na construção desta canção, faz referência à identidade do

sujeito comunicante Jorge Drexler, evidenciando uma canção de cunho

autobiográfico, pois nos versos abaixo se observa que o cantor faz referência a ele

mesmo (“soy hijo”), a seu pai como “un desterrado”, por sua condição judia e a sua

mãe, uruguaia, como “una flor de la tierra”.

Assim, Drexler compõe uma canção de caráter mais universal, que tenta

ampliar os espaços geográficos, de saída do local para uma localização mais

continental, fazendo uma referência simbólica ou concreta à “fronteira”. É evidente,

também, que os elementos constituintes de uma identidade local não se perdem,

estão ancorados no discurso, porém não é o que sobressai.

1º- Os imaginários sociodiscursivos que circulam na canção

“Modernidade” – esse imaginário se define inicialmente contra um passado que seria percebido como uma era, senão de obscurantismo, ao menos de um saber menor, de um saber “de uma outra idade” e, assim, o tempo presente se beneficiaria de um estado de saber superior. (CHARAUDEAU, 2013, p. 216)

Ex:“Yo no sé de donde soy, mi casa está en la frontera”.

2º- A identidade social do sujeito falante

Legitimidade “por filiação” – pertencer a certo grupo, meio, classe ou casta. (CHARAUDEAU,

2013, p. 71) O sujeito enunciador se apresenta como filho de um desterrado, de um forasteiro e de uma “flor da terra”. Ex: “Yo soy hijo de un desterrado y de una flor de la

tierra”.

3º- A Identidade discursiva do sujeito falante

Credibilidade: o sujeito enunciador adota uma atitude de engajamento – imagem de um sujeito como “ser de convicção”. Captação: o sujeito adota uma atitude polêmica – leva o sujeito a questionar certos valores defendidos pelo interlocutor

Ex:“Que el mundo está como está por causa de las certezas”.

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4º- Procedimentos expressivos

Falar regional e o falar tranquilo

5º-Procedimentos enunciativos

Enunciação “elocutiva”

Ex: Yo no sé de donde soy, Soy hijo de um

forastero, Prefiero no dar consejo

6º-Ethos e marcas identitárias

Ethos de humanidade, ethos de virtude, ethos de caráter. Ao tecer discursivamente a identidade do sujeito enunciador, Drexler constrói sua própria identidade: filho de um desterrado (pai judeu) e de uma flor da terra (mãe uruguaia)

QUADRO 6: CIRCUITO DE ANÁLISE 4: “Frontera”

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CANÇÃO 05

TODO SE TRANSFORMA

Álbum: Eco2 (2005)

Composição: Jorge Drexler

Tu beso se hizo calor,

Luego el calor, movimiento,

Luego gota de sudor

Que se hizo vapor, luego viento

Que en un rincón de La Rioja

Movió el aspa de un molino

Mientras se pisaba el vino

Que bebió tu boca roja.

Tu boca roja en la mía,

La copa que gira en mi mano,

Y mientras el vino caía

Supe que de algún lejano

Rincón de otra galaxia,

El amor que me darías,

Transformado, volvería

Un día a darte las gracias.

Cada uno da lo que recibe

Y luego recibe lo que da,

Nada es más simples,

No hay otra norma:

Nada se pierde,

Todo se transforma.

El vino que pagué yo,

Con aquel euro italiano

Que había estado en un vagón

Antes de estar en mi mano,

antes de eso en Torino,

Y antes de Torino, en Prato,

Donde hicieron mi zapato

Sobre el que caería el vino.

Zapato que en unas horas

Buscaré bajo tu cama

Con las luces de la aurora,

Junto a tus sandalias planas

Que compraste aquella vez

En Salvador de Bahía,

Donde a otro diste el amor

Que hoy yo te devolveria

Cada uno da lo que recibe

Y luego recibe lo que da,

Nada es más simples,

No hay otra norma:

Nada se pierde,

Todo se transforma

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CANÇÃO 05

TUDO SE TRANSFORMA

Álbum: Eco2 (2005)

Composição: Jorge Drexler

Teu beijo se fez calor,

Logo o calor, em movimento,

Logo gota de suor

Que se fez em vapor, logo vento

Que em um recanto da La Rioja

Moveu a pá de um moinho

Enquanto pisavam o vinho

Que bebeu tua boca vermelha.

Tua boca vermelha na minha,

A taça que gira na minha mão,

E enquanto o vinho caía,

Soube que de algum lugar distante

Cantinho de outra galáxia,

O amor que me darias,

Transformado, voltaria

Um dia a agradecer-te.

Cada um dá o que recebe

E logo recebe o que dá,

Nada é mais simples,

Não há outra norma:

Nada se perde,

Tudo se transforma.

O vinho que eu paguei,

Com aquele euro italiano

Que havia estado em um vagão

Antes de estar na minha mão,

E antes disso em Turim,

E antes de Turim, em Prato,

Onde fizeram meu sapato

Sobre o qual cairia o vinho.

Sapato que em umas horas

Buscarei debaixo de tua cama

Com as luzes da aurora,

Junto a tuas sandálias planas

Que compraste aquela vez

Em Salvador da Bahia,

Onde a outro deste o amor

Que hoje eu te devolveria

Cada um dá o que recebe

E logo recebe o que dá,

Nada é mais simples,

Não há outra norma:

Nada se perde,

Tudo se transforma.

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A canção “Todo se transforma”, composta e interpretada por Jorge Drexler,

integra o álbum “Eco”, gravado em Montevidéu com músicos argentinos, uruguaios,

brasileiros e espanhóis, o que já salienta seu caráter globalizante. Editado em Los

Angeles e Madri, o álbum foi lançado em 2004 e reeditado em 2005.

A canção pode ser interpretada com uma constatação sobre a mobilidade da

vida moderna, fala de ”tudo”, das relações interpessoais, do amor, do “estar no

mundo”, das ações como geradoras de reações e transformações, da fugacidade e

efemeridade das coisas, salientando que elas passam, mudam, se transformam,

remetendo à Lei de Lavoisier conhecida pela célebre frase “na natureza nada se

cria, nada se perde, tudo se transforma”.

O caráter global se justifica também pela presença de elementos constituintes

de diferentes territórios e nacionalidades como euro italiano, vinho, La Rioja,

Salvador, Bahia, evidenciando um sujeito que está em conexão com essas regiões,

onde as distâncias temporais/espaciais e/ou simbólicas não significam mais nada,

pois, com o advento da globalização e da tecnologia, as conexões são cada vez

mais rápidas e as distâncias cada vez menores.

Sobre a composição do ethos do sujeito enunciador, pode-se perceber que há

um apagamento da identidade individual para composição de uma identidade

universal, trazendo, em seu discurso, uma fala e temáticas que podem ser

identificadas com qualquer pessoa do globo.

1º- Os imaginários sociodiscursivos que

circulam na canção

“Modernidade” – esse imaginário se define inicialmente contra um passado que seria percebido como uma era, senão de obscurantismo, ao menos de um saber menor, de um saber “de uma outra idade” e, assim, o tempo presente se beneficiaria de um estado de saber superior. (CHARAUDEAU, 2013, p. 216)

Ex:“No hay otra norma: nada se pierde

todo se transforma”.

2º- A identidade social do sujeito falante Legitimidade pela força do reconhecimento

3º- A Identidade discursiva do sujeito

falante

Credibilidade: o sujeito enunciador adota uma atitude de engajamento – imagem de um sujeito como “ser de convicção”.

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Captação: o sujeito adota uma atitude de sedução – apoia-se em valores afetivos socialmente partilhados.

Ex: “Cada uno da lo que recibe

Y luego recibe lo que da”.

4º- Procedimentos expressivos Falar regional e o falar tranquilo

5º-Procedimentos enunciativos

Enunciação “alocutiva” – é expressa com a ajuda de pronomes pessoais de segunda pessoa que revelam, ao mesmo tempo, a implicação do interlocutor; o lugar que lhe designa o locutor e a relação que se estabelece entre eles. (CHARAUDEAU, 2013, p.176)

Ex: “Tu beso se hizo calor”. “Tu boca roja enla mía”.

6º-Ethos e marcas identitárias

Ethos de humanidade, ethos de inteligência,

ethos devirtude

Tentativa de apagamento da identidade

individual.

QUADRO 7: CIRCUITO DE ANÁLISE 5: “Todo se transforma”

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É frequente ouvirmos falar sobre a importância do papel da escola na

formação de leitores proficientes. Entretanto, desenvolver a competência leitora nos

alunos requer professores competentes, visto que, na atividade de leitura,

acionamos conhecimentos linguísticos, enciclopédicos, relações com o outro,

experiências, lugar social, fazemos inferências e comparações. Saber ler é ser

capaz de circular entre textos e produzir sentidos. Dessa forma, é fundamental que o

professor auxilie o educando, apontando o “caminho” a ser percorrido para se

alcançar a significação de uma totalidade discursiva.

Vimos a importância da análise do discurso no que diz respeito à análise de

textos, pois buscamos na dupla dimensão do ato linguageiro (implícito x explícito),

um norte para estabelecer inferências, chegar à significação plena e verificar nossa

hipótese. A partir dos implícitos, do contexto linguístico e extralinguístico, dos

possíveis projetos de fala do sujeito enunciador associados ao contexto de produção

das canções, foi possível compreender as temáticas impressas em cada letra e

compor o ethos do sujeito falante e, consequentemente, sua identidade.

Além disso, propomos um trabalho em que se valorizem os aspectos culturais

e históricos, favorecendo a compreensão e interpretação de possíveis implícitos e a

conscientização do aluno como sujeito sócio-histórico, pois o processo de ensino-

aprendizagem de uma língua estrangeira favorece a construção identitária dos

sujeitos, o respeito à diversidade cultural e o exercício da cidadania. Por isso,

acreditamos que o gênero escolhido, neste trabalho, é uma importante ferramenta

para discutir os imaginários que circulam em uma sociedade, os eventos históricos,

os recursos linguísticos e discursivos empregados pelo sujeito comunicante, além do

contato com a música, a melodia, despertando, no aluno, a fruição musical.

Dessa forma, estabelecemos um circuito de análise das canções a fim de

verificar os elementos linguísticos empregados e as atitudes discursivas adotadas

pelo sujeito enunciador para a composição da “imagem de si” e, consequentemente,

de uma identidade oscilante entre o local e o global. O circuito contemplou os

imaginários sociodiscursivos, a identidade social e a identidade discursiva do sujeito

falante, os procedimentos expressivos, os procedimentos enunciativos e as

categorias do ethos.

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Os discursos presentes nos textos possibilitaram verificar os posicionamentos

mais ou menos engajados do sujeito enunciador, posicionamentos estes que

estabelecem a identidade do compositor. Além disso, os procedimentos enunciativos

nos ajudaram a caracterizar cada canção como mais ou menos subjetiva e nos

permitiram distinguir qual a postura adotada pelo cantor e, então, “inseri-lo” em

diferentes categorias do ethos.

É impossível ao sujeito que fala escapar à questão do ethos, pois revelar-se

emocionado, alegre, ser convincente, estar acima das massas, defender valores,

exprimir compaixão, contribui para a construção de uma imagem com a qual o

interlocutor poderia identificar-se.

Assim, confirmamos nossa hipótese inicial de que os textos remetem à

identidade do cantor e comprovam que esta identidade oscila ente “latinidade” e

“universalidade”, uma vez que as canções “Milonga del moro judio e “Montevideo”

são consideradas mais “latinas” e as canções “Disneylandia”, “Frontera” e “Todo se

transforma”, mais universais. Além disso, a partir dos imaginários sociodiscursivos

que circulam em cada canção, da interdiscursividade, dos elementos linguístico-

discursivos para composição do ethos, como atitudes de legitimidade e captação e

os procedimentos enunciativos empregados pelo sujeito enunciador, observamos

que Jorge Drexler recompõe antigas representações e compõe uma identidade

móvel, transnacional.

Em sua discografia, é possível observar temáticas que superam posições

estáticas, fixas, de permanências imutáveis, pois a mistura de tecnologia e arranjos

eletrônicos com ritmos regionais como a milonga, por exemplo, reforçam a

mobilidade entre o artesanal, local e o global e a ampliação do seu território. Dessa

forma, podemos dizer, levando em conta sua biografia e heranças identitárias, que

Jorge Drexler é um artista inserido em um mundo globalizado, marcado por

constantes mudanças.

Verificamos, também, que o ethos é uma marca saliente na análise de

canções e reforça a necessidade de se delinear um perfil dos compositores e dos

cantores, de forma que seja criado um modelo para facilitar próximas leituras.

Porém, tomar o ethos como um padrão fixo dos artistas pode ser um erro, já que os

mesmos podem se inserir em diferentes estilos ao longo de suas carreiras. Assim,

quando analisamos as canções e o percurso artístico de Drexler, vimos não ser

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possível relacionar a ele um único ethos. Ele se apresentou de maneiras diferentes

em cada canção, reforçando assim um “ethos eclético”.

Tentamos refletir, aqui, maneiras de identificar a postura dos sujeitos e como

isso poderia interferir na construção dos sentidos de canções consideradas “latino-

americanas” divulgadas nas últimas décadas.

Ao propormos um trabalho desta natureza, mostramos ser possível promover,

por meio do trabalho com língua estrangeira, um ensino culturalmente relevante,

pois a temática das identidades pode e precisa ser explorada no processo educativo,

uma vez que esse tema, dentre tantos outros, como as relações de poder, a

ideologia dos discursos, a diversidade sociocultural, são caros à Linguística Aplicada

e reúnem os diferentes contextos históricos e culturais que se originam com a

língua.

Dessa forma, as aulas de língua estrangeira se constituem como um espaço

privilegiado para a compreensão do papel das línguas e das culturas na sociedade

cada vez mais globalizada. Salientamos, também, que o investimento em certo

conhecimento “semiolinguístico” possibilita a formação de leitores competentes,

capazes de relacionar texto e contexto.

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