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  • UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO UNINOVE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO - PPGE

    HISTRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAO SOCIAL DADA AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS.

    MRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN

    SO PAULO 2010

  • MRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN

    HISTRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAO SOCIAL DADA AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS.

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Nove de Julho, como exigncia parcial para a obten-o do ttulo de Mestre em Educao, sob a orienta-o da Profa. Dra. Ivanise Monfredini.

    SO PAULO

    2010

  • Feldman, Mrcia Regina dos Santos. Histrias que se cruzam na significao social dada ao Programa Universidade Para To-dos. / Mrcia Regina dos Santos Feldman. 2010. 298f. Dissertao (mestrado) Universidade Nove de Julho - UNINOVE, So Paulo, 2010. Orientador (a): Profa. Dra. Ivanise Monfredini 1. ProUni - Programa Universidade para Todos. 2. Genericidade em si. 3. Genericidade para si.

    CDU 37

  • MRCIA REGINA DOS SANTOS FELDMAN

    HISTRIAS QUE SE CRUZAM NA SIGNIFICAO SOCIAL DADA AO PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Nove de Julho, aprovada pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes membros:

    _______________________________________

    Presidente: Profa. Ivanise Monfredini, Dra Orientador, Uninove

    _______________________________________ Membro: Profa. Cladia Barcelos de Moura Abreu, Dra - Unifesp/SP /UFPR/PR

    _______________________________________ Membro: Profa. Rosemary Roggero, Dra - Uninove

    So Paulo, 31 de Maro de 2010

  • Dedico este trabalho a Hanan Feldman (in memori-an) que com sua dignidade e simplicidade soube o-lhar o mundo e as pessoas com respeito.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus filhos Ilana, Tamara e Felipe, pelo incentivo e pacincia nesses dois anos de

    pesquisa.

    Aos meus pais Mercedes e Agostinho, pelo carinho e preocupao.

    Ao Thiago Cruz de Oliveira, pela colaborao na transcrio das entrevistas.

    professora Dra. Ivanise Monfredini, que desde o incio de meu mestrado acreditou

    em meu projeto, mostrou-me caminhos, leituras e possibilidades para realizao desta pesqui-

    sa

    s professoras Dra. Cladia Barcelos de Moura Abreu e Dra. Rosemary Roggero, pela

    disponibilidade, ateno e sugestes.

    Rene Vituri e seu esposo Jnior, pela generosidade de me receber em seu lar du-

    rante tantos finais de semana, e pacientemente, ler, comentar e enriquecer o texto de minha

    pesquisa.

    Ao Jorge Freneda, pela disposio e carinho na elaborao da verso do resumo em

    lngua inglesa.

    Aos colegas da turma de 2008, pelo companheirismo, fazendo um pouco mais fcil es-

    se caminho to rduo. Como no deixar de registrar nossos cafs da tarde que, de modo to

    afetivo, nos faziam mais unidos.

    Aos meus amigos que souberam entender meu cansao e meu distanciamento.

    Maria Luiza Favret pelo trabalho de reviso.

    Agradeo a todos aqueles que no desistiram de mim.

  • SUMRIO

    LISTA DE TABELAS ............................................................................................................. vii

    LISTA DE QUADROS ........................................................................................................... viii

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ............................................................................... ix

    RESUMO ................................................................................................................................. xii

    ABSTRACT ............................................................................................................................ xiii

    INTRODUO .......................................................................................................................... 1

    CAPTULO 1 OPES METODOLGICAS E SUJEITOS DESTA PESQUISA .............. 4

    1.1 Categorias de anlise ..................................................................................................... 61.2 Sujeitos desta pesquisa ................................................................................................ 13

    CAPTULO 2 PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS: PANORAMA

    HISTRICO, POLTICO, SOCIAL E ASPECTO LEGAL .................................................... 18

    2.1 Reconfigurao do Estado ........................................................................................... 182.2 A educao superior no processo de publicizao e privatizao ............................... 232.3 Prouni: aspectos legais................................................................................................. 302.3.1 Quanto aos tipos de concesso de bolsas ................................................................. 332.3.2 Quanto adeso, ao desempenho e s isenes concedidas pelo governo ............. 332.3.3 Quanto ao perfil do aluno candidato ao Prouni ...................................................... 352.4 Algumas anlises sobre a implantao do Prouni ....................................................... 37

    CAPTULO 3 A JUVENTUDE BRASILEIRA .................................................................... 45

    3.1 Perfil educacional dos jovens brasileiros..................................................................... 483.2 O mercado de trabalho para os jovens brasileiros ....................................................... 523.3 - Aes governamentais para a juventude ...................................................................... 58

    CAPTULO 4 - PROUNI: ALTERNATIVA POSSVEL ANLISE DOS DADOS .......... 61

    4.1 O lugar social dos entrevistados. A experincia familiar ............................................ 624.2 A escolarizao ............................................................................................................ 754.3 A experincia do emprego, ou da ausncia dele. A busca da empregabilidade .......... 884.4 As possibilidades ......................................................................................................... 96

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 118

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................... 120

  • APNDICES: ENTREVISTAS ............................................................................................. 129

    Beatriz Rodeiro Martinez ................................................................................................... 130Rodrigo Loureno Gonalves ............................................................................................. 153 Emlia Mara Lima Silva ..................................................................................................... 164Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa ...................................................................................... 176Karen Jaqueline Santana Gomes ........................................................................................ 200Wendy Francisco Pereira .................................................................................................... 215Kelly Cristina Pereira ......................................................................................................... 227Eduardo Pires de Oliveira ................................................................................................... 245Elton Luiz Fotoni ................................................................................................................ 271

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Bolsas ofertadas por ano, 2005-2008

    Tabela 2 Bolsas ofertadas por regio, 2005-2008

    Tabela 3 Bolsas por turno cursos presenciais , 2005-2008

    Tabela 4 Bolsistas por categoria administrativa da IES, 2005-2008

    Tabela 5 Bolsistas por sexo, 2005-2008

    Tabela 6 Bolsistas por raa, 2005-2008

    Tabela 7 Bolsistas professores da educao bsica pblica, 2005-2008

    Tabela 8 Bolsistas portadores de deficincia, 2005-2008

    Tabela 9 Populao por grupo etrio e sexo, censo IBGE 2000 (em milhes)

    Tabela 10 Perfil da populao brasileira total jovem e adulta , 2006

    Tabela 11 IDEB 2005-2007 e projees para o Brasil

    Tabela 12 Estudantes de 15 a 24 anos por grau que frequentavam (em milhes) , 1995 a

    2001

    Tabela 13 Nvel de instruo dos jovens de 15 a 24 anos que no frequentam a escola

    Tabela 14 Estimativa da populao acima de 16 anos e jovens de 16 a 24 anos segundo

    condio de atividade

    Tabela 15 Taxas de desemprego dos jovens com idade entre 16 e 24 anos segundo grupo

    de quartis do rendimento familiar mensal . Regies metropolitanas, 2004

    Tabela 16 Distribuio dos jovens com idade entre 16 e 24 anos segundo situao de tra-

    balho, estudo e procura de trabalho por grupo de quartis do rendimento familiar

    mensal . Regies metropolitanas, 2004

    Tabela 17 Do ingresso ao trmino do ensino fundamental dos entrevistados

    Tabela 18 ltimo Enem realizado pelos entrevistados e respectiva pontuao

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Legislao Prouni ano de 2004

    Quadro 2 Legislao Prouni ano de 2005

    Quadro 3 Legislao Prouni ano de 2006 a 2008

    Quadro 4 Programas e projetos do governo Luis Incio Lula da Silva para a juventude

    Quadro 5 Instituies de ensino fundamental frequentadas pelos entrevistados

    Quadro 6 Instituies de ensino mdio frequentadas pelos entrevistados

    Quadro 7 Cursos matriculados e instituies frequentadas pelos entrevistados

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Anped Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao

    BM Banco Mundial

    Capes Coordenao de Aperfeioamente de Pessoal de Nvel Superior

    Cedeca Centro de Defesa da Criana e do Adolescente

    CIP Centro de Internao Provisria

    Dieese Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos

    ECA Estatuto da Criana e do Adolescente

    EE Escola Estadual

    EJA Educao de Jovens e Adultos

    EM Ensino Mdio

    Emef Escola Municipal de Ensino Fundamental

    Enade Exame Nacional de Desempenho do Estudante

    Enem Exame Nacional do Ensino Mdio

    FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador

    FHC Fernando Henrique Cardoso

    Fies Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior

    FMU Faculdades Metropolitanas Unidas

    FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao

    Gats Acordo Geral sobre Comrcio de Servios

    Ibase instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Economicas

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    Ideb Indce de Desenvolvimento da Educao Bsica

    IES Instituio de Ensino Superior

    Ifes Instituties Federais de Ensino Superior

    Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDB Lei de Diretrizes e Bases

    Mare Ministrio da Administrao Pblica e da Reforma do Estado

    MEC Ministrio da Educao

    MMC Movimento de Moradia do Centro

  • x

    MP Medida Provisria

    MTE Ministrio do Trabalho e Emprego

    OIT Organizao Internacional do Trabalho no Brasil

    OMC Organizao Mundial do Comrcio

    ONG Organizao no Governamental

    PCN's Parmetros Curriculares Nacionais

    PEA Populao Economicamente Ativa

    PED Pesquisa de Emprego e Desemprego

    PGFN Procurador Geral da Fazenda Nacional

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    PNE Plano Nacional de Educao

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    Polis Instituto de Estudos, Formao e Assessoria em Polticas Sociais

    Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

    Prouni Programa Universidade para Todos

    PT Partido dos Trabalhadores

    Reuni Reestruturao e Expanso das Universidades Federais

    RFB Receita Fedaral do Brasil

    Seade Superintendncia Estadual de Apoio Pessoa com Deficincia

    Senai Servio Nacional de Aprendizagem Industrial

    Sesi Servio Social da Indstria

    Sinaes Sistema Nacional de Avaliao da Educao Superior

    Sisprouni Sistema do Programa Universidade para Todos

    TCC Trabalho de Concluso de Curso

    TCU Tribunal de Contas da Unio

    UNE Unio Nacional dos Estudantes

    Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

    Uniban Universidade Bandeirantes

    Unicef Fundo das Naes Unidas para a Infncia

    Unicid Universidade Cidade de So Paulo

    Unicsul Universidade Cruzeiro do Sul

    Uniesp Unio das Instituies Educacionais do Estado de So Paulo

  • xi

    Unifesp Universidade Fedreal de So Paulo

    Uninove Universidade Nove de Julho

    Unip Universidade Paulista

    USP Universidade de So Paulo

    VAI Programa de Valorizao de Iniciativas Culturais

  • RESUMO

    FELDMAN, Mrcia Regina dos Santos. Histrias que se cruzam na significao social dada ao programa universidade para todos. Dissertao de mestrado. So Paulo: Universidade Nove de Julho, 2010. O presente trabalho tem como sujeito de estudo o aluno de ensino superior com bolsa conce-dida pelo Prouni. E, como objeto, a significao social que esse aluno atribui ao Prouni. Os procedimentos metodolgicos delinearam-se por meio de levantamento bibliogrfico e da entrevista semi-estruturada como tcnica, sendo o depoimento de nove alunos/indivduos de ensino superior com bolsa concedida pelo Prouni o cerne do estudo. O objetivo central foi o de verificar por meio das vozes dos entrevistados, se a significao social que o aluno atribui ao Prouni ocorre na genericidade do em-si ou do para-si. Os dados foram analisados sob o pensamento de Lukcs, tendo como eixos orientadores das anlises: formao pelo trabalho - sujeito enquanto ser social; reflexo na conscincia; teleologias e alternativa. As narrativas analisadas sob a perspectiva qualitativa de pesquisa revelaram que estudar em uma faculdade uma necessidade, construda para manter a labilidade, mesmo em situao de no trabalho. A pesquisa demonstrou ainda que, diante da possibilidade de um curso superior, a significa-o dada ao Prouni elaborada no imediato, no havendo demonstrao de uma compreenso crtica da realidade. Palavras-chave: Prouni; Genericidade em-si; Gnericidade para-si.

  • ABSTRACT

    FELDMAN, Mrcia Regina dos Santos. Histories that cross the social meaning given to the university program to all. Masters dissertation. So Paulo: Nove de Julho University, 2010. The current essay has as subject of study the college student who has fringe benefit supports acquired from Prouni. Yet, as object, the social meaning that that student attributes to Prouni. The methodological procedures outlines bibliographical research and also a semi-structured interview as technique which the statements from nine students/individuals from college stu-dent who have fringe benefit supports acquired from Prouni are the core of the study. The main objective was that to verify by their voices if the social meaning that the students attribute to Prouni occurs when in the engendering of in-itself or of to-itself. The data were analyzed under Lukcss thoughts, and they also have as investigation guidance: forma-tion by work subject as social being; reflection on principles; teleology and option. The narratives analyzed under a quantitative perspective from the research revealed that studying in a college is a need, built to keep labiality, even in situation of non work. The research pre-sented, yet, by the possibility of a graduating college course, the meaning given to Prouni is prepared on the moment, and there is no demonstration of a critical comprehension of reality. Key-words: Prouni; Engendering by themselves; Engendering to themselves.

  • INTRODUO

    Camadas da sociedade sem oportunidade de se inserir no mundo produtivo, principal-

    mente por terem sido excludas dos direitos prioritrios de um Estado democrtico, como e-

    ducao, sade e moradia, tm sido objeto, nos ltimos governos, desde a dcada de 1990, de

    resgate histrico e social, por meio de Programas e Aes Governamentais de alcance popu-

    lar.

    Nesta pesquisa, aborda-se um desses Programas1, o Programa Universidade para To-

    dos (Prouni), que possibilita o acesso ao ensino superior de indivduos pertencentes a uma

    camada da sociedade dita excluda, com perfil bem definido: estudante de escola pblica, com

    baixa renda familiar, que no tenha cursado nenhuma faculdade e que busca no ensino superi-

    or sua emancipao social.

    Cabe dizer que o interesse pelo tema surgiu da trajetria pessoal e profissional desta

    pesquisadora, que vem de uma famlia numerosa, com dificuldades financeiras, e que at a

    sua primeira graduao realizou seus estudos na rede pblica.

    Na dcada de 1970, na Universidade de So Paulo (USP), palco dessa primeira gradu-

    ao, teve a oportunidade de vivenciar discusses sobre o acesso e o direito de ingresso edu-

    cao pblica aos estudantes oriundos de camadas populares. Essas discusses se davam entre

    um grupo de estudantes que lutava pela democratizao do acesso ao ensino superior pblico,

    pois estudantes com melhores condies financeiras e que haviam cursado o ensino bsico em

    escolas particulares tinham maiores chances de alcanar sucesso no vestibular e, consequen-

    temente, maiores possibilidades de ingresso nas universidades pblicas.

    Hoje, atua na educao bsica, como professora efetiva da Secretaria de Educao do

    Estado de So Paulo, vivenciando a precariedade do ensino pblico, e na educao superior,

    em uma faculdade que tem como misso proporcionar ensino de qualidade a alunos de classes

    menos favorecidas e, de modo geral, provenientes do ensino pblico, por meio da utilizao

    de vrios programas governamentais de incluso, como: Programa Escola da Famlia, Univer-

    sidade na Alfabetizao, Programa Jovem Acolhedor, Bolsa Escola Municipal para o Ensino

    Superior, Programa de Financiamento Estudantil e o Prouni. Foi essa vivncia que despertou

    o interesse desta pesquisadora pela discusso desse ltimo programa.

    1 Esses programas so comentados em pormenores no captulo 1.

  • 2

    O Prouni um programa de incluso universitria que concede bolsas de estudo parci-

    ais ou integrais em instituies de ensino superior privadas2 a estudantes de baixa renda.

    O programa tambm assegura s instituies de ensino que a ele aderem iseno dos

    impostos e contribuies no perodo de vigncia do termo de adeso: imposto de renda de

    pessoas jurdicas; contribuio social sobre o lucro lquido; contribuio social para financia-

    mento da seguridade social; contribuio para o Programa de Integrao Social, alm do par-

    celamento de antigas dvidas, conforme se l no art. 10 da Lei n 10.260, de 12 de julho de

    2001, alterada pela Lei n 11.552, de 19 de novembro de 2007. A regulamentao do parce-

    lamento encontra-se na Portaria Conjunta PGFN/RFB n 6, de 17 de dezembro de 2007.

    um programa de incluso que atende, ao mesmo tempo, a dois segmentos opostos da

    sociedade: atende s necessidades de apoio financeiro das instituies privadas, que durante

    dcadas foram favorecidas por leis que possibilitavam a renncia fiscal, desde, principalmente

    a dcada de 1970, e s pessoas das camadas de baixa renda familiar que no conseguem aces-

    so s universidades pblicas e tm dificuldades para pagar seus estudos na rede privada.

    Diante do exposto, a presente pesquisa tem como sujeito de estudo o aluno de ensino

    superior com bolsa concedida pelo Prouni. E, como objeto, a significao social que esse alu-

    no atribui ao Prouni. O problema que se pretende discutir, no limite que a pesquisa possibili-

    tou se esta significao se d na genericidade do em-si ou do para-si3? Esse aluno ca-

    paz de elevar-se a uma conscincia para-si?

    Partiu-se da hiptese de que o aluno do ensino superior, por estar inserido em um con-

    texto de privatizao que visa a eficincia e a eficcia dos resultados, alvo de um sistema

    que no contribui para um avano significativo em termos de formao humana. Ao contrario,

    contribui para o fortalecimento da adaptao do indivduo ao que est posto, reforando de-

    terminadas significaes sociais relacionadas ao ensino superior e sua funo social.

    O objetivo principal foi verificar, por meio dos depoimentos dos entrevistados, se a

    significao social que eles atribuem ao Prouni ocorre na genericidade do em-si ou do pa-

    ra-si, posto que a formao, como prtica social, pode ser mediadora de uma humanizao

    mais plena pelo acesso do aluno cultura mais ampla, cincia e arte.

    Para isso, buscou-se traar a trajetria dos alunos, considerando a formao escolar, a

    experincia familiar, o meio social, econmico e cultural em que vivem, suas expectativas em

    relao formao universitria. Procurou-se verificar tambm a importncia dada s ativida

    2 Nas instituies pblicas de ensino superior, as aes positivas foram implementadas por meio de cotas aos estudantes autodeclarados afrodescendentes. 3 As categorias em-si e para-si sero explicadas, em pormenores, no captulo 1 deste trabalho.

  • 3

    des exigidas pela instituio que os remetem a experincias culturais. Buscou-se ainda com-

    preender como esses alunos significam a experincia universitria, considerando os impactos

    na sua formao e o lugar ocupado pelo Prouni nessa experincia.

    Os dados foram analisados sob o pensamento de Lukcs (1978, 1981), tendo como ei-

    xo orientador as seguintes categorias de anlise: formao pelo trabalho do sujeito enquanto

    ser social; reflexo na conscincia; teleologia e alternativa.

    Este trabalho est organizado em quatro captulos, como se segue.

    No captulo 1, Opes metodolgicas e sujeitos desta pesquisa, abordam-se as catego-

    rias utilizadas na anlise dos dados, as metodologias escolhidas, bem como as justificativas

    dessas escolhas. Apresentam-se tambm os sujeitos entrevistados.

    No captulo 2, Programa Universidade para Todos: panorama histrico, poltico, so-

    cial e aspecto legal, aborda-se a reconfigurao do Estado brasileiro sob o pensamento neoli-

    beral, a expanso universitria em uma dimenso mercadorizada e as polticas pblicas edu-

    cacionais que se pretendem de resgate social, especialmente o Prouni, no tocante legislao.

    Apresentam-se tambm algumas anlises e discusses referentes ao programa.

    No captulo 3, A juventude brasileira, procurou-se apresentar o jovem brasileiro no a-

    tual momento histrico, objetivando identificar seu espao na sociedade, principalmente no

    que se refere educao e ao mundo do trabalho. Buscou-se ainda apresentar algumas polti-

    cas pblicas a essa faixa etria.

    No captulo 4, Prouni: a alternativa possvel, apresenta-se a anlise dos dados, con-

    forme as categorias propostas, procurando relacionar a individualidade em-si e para-si

    desses sujeitos com os contedos apresentados nos captulos anteriores.

  • CAPTULO 1 OPES METODOLGICAS E SUJEITOS DESTA

    PESQUISA

    Esta pesquisa amparou-se na tcnica da entrevista semiestruturada, a qual permitiu que

    cada um dos entrevistados expressasse sua vivncia particular e deu-lhes oportunidade de, em

    determinado momento, tornar-se singulares, pois possibilitou resgatar o indivduo como sujei-

    to no processo histrico, reativando o conflito entre liberdade e determinismo (FREITAS,

    2002, p. 15). O depoimento de nove alunos/indivduos de ensino superior com bolsa concedi-

    da pelo Prouni constituiu o cerne deste estudo.

    Recorreu-se tambm pesquisa bibliogrfica sobre polticas pblicas de incluso uni-

    versitria, polticas pblicas da educao superior no Brasil e estudos sobre a juventude. Os

    principais autores consultados foram: Peroni (2006); Silva Junior (2002); Silva Junior e

    Sguissard (2005); Sposito (2003)

    Fez-se uso ainda de relatrios de pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-

    sas Educacionais Ansio Teixeira (Inep), do Ministrio da Educao (MEC), do Instituto Bra-

    sileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), do Departamento Intersindical de Estatstica e Estu-

    dos Socioeconmicos (Dieese), do Instituto Polis e da Organizao Internacional do Trabalho

    no Brasil (OIT).

    Para embasar a anlise dos dados, considerando as categorias propostas, realizou-se

    principalmente a leitura dos seguintes autores: Duarte (1993) e Lukcs (1978, 1981).

    Para verificar se a significao social que o aluno atribui ao Prouni ocorre na generici-

    dade do em-si ou do para-si, buscou-se analisar as narrativas sob a perspectiva qualitativa

    de pesquisa, especialmente por se entender que, nessa tica, o papel do investiga-

    dor/pesquisador o de melhor compreender o comportamento e a experincia humanos [...]

    compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em

    que consistem estes mesmos significados (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p. 70).

    No processo de construo de uma pesquisa qualitativa, a documentao dos dados

    no mera gravao neutra da realidade, mas sim orientada ou para codificao e a categori-

    zao ou para a anlise de estruturas sequenciais no texto, envolvendo o pesquisador em ques-

    tes do tipo como avaliar a validade e a apropriabilidade do processo de pesquisa e dos dados

    produzidos.

  • 5

    Os investigadores que utilizam a perspectiva qualitativa em suas anlises buscam es-

    tudar objetivamente os estados subjetivos dos seus sujeitos, tendo como meta principal cons-

    truir conhecimento, e no opinar sobre determinado contexto. Interagem com os seus sujeitos

    de forma natural, no intrusiva e no ameaadora.

    Os tericos qualitativos (BOGDAN e BIKLEN, 1994; CHIZZOTTI, 2005), dentre ou-

    tros interessam-se pela maneira como as pessoas se comportam e pensam sobre as suas pr-

    prias vidas, as suas experincias e as situaes particulares vivenciadas. Por meio das entre-

    vistas, possvel coletar dados sobre como as pessoas se comportam e pensam suas experin-

    cias e as situaes que vivenciam.

    A pesquisa qualitativa tem como um de seus enfoques a anlise de casos concretos,

    partindo das narrativas e atividades das pessoas em seus contextos locais. Buscou-se ento,

    neste estudo, entender os fenmenos humanos e sociais em sua complexidade e dinamicidade

    e interpretar os seus significados.

    Para isso, as questes das entrevistas, base deste trabalho, foram elaboradas com o in-

    tuito de permitir que os envolvidos falassem, se revelassem. E, quanto a isto, vale registrar o

    que expe Ianni:

    H vrios modos de dizer a verdade, ou procur-la. Um deles, segundo nos parece, consiste em deixar que as pessoas envolvidas em situaes e proble-mas estudados utilizem as suas prprias palavras. Mesmo quando elas no esto em condies de ver claro, ou quando no podem dizer as coisas com clareza; mesmo nesses casos revelam dados significativos para a compreen-so das situaes e problemas. Em geral, no entanto, dizem o essencial. Essa uma contingncia de toda a situao, a no ser quando ela no contm ten-ses ou antagonismos, o que no se verifica nesta histria. medida que fa-lam, que dizem apenas o que querem, que tomam decises e agem, revelam tambm as relaes e as estruturas mais ntimas das situaes e problemas. Neste ponto, as pessoas podem aparecer como personagens e a histria pode adquirir os seus movimentos reais (1996, p. 21).

    Nesse sentido, a opo pela nfase na anlise dos dados, sob a tica da pesquisa quali-

    tativa, constitui um procedimento metodolgico eficaz, porque por meio dos relatos orais, das

    narrativas, das entrevistas e dos depoimentos pessoais possvel socializar um conhecimento

    particular, alm de possibilitar a compreenso dos fatos problematizados, nem sempre consi-

    derados no cotidiano.

    Segundo Chizzotti

    Na pesquisa qualitativa todos os fenmenos so igualmente importantes e preciosos: a constncia das manifestaes e sua ocasionalidade, a frequncia

  • 6

    e a interrupo, a fala e o silncio. necessrio encontrar o significado ma-nifesto e o que permaneceu oculto. Todos os sujeitos so igualmente dignos de estudo, todos so iguais, mas permanecem nicos e todos os seus pontos de vista so relevantes [...]. Esses conceitos manifestos, as experincias rela-tadas ocupam o centro de referncia das anlises e interpretaes na pesquisa qualitativa (2005, p. 84).

    Neste trabalho de pesquisa, a escolha da abordagem qualitativa de investigao, en-

    quanto proposio de coleta e de interpretao dos dados, respaldou-se no fato de que tal a-

    bordagem estimula o pensamento do entrevistado, fazendo emergir aspectos subjetivos, atin-

    gindo motivaes no explcitas ou mesmo conscientes de maneira espontnea, o que propor-

    cionou a abertura de espaos de explorao que favoreceram a interpretao e a compreenso

    do objeto de pesquisa.

    1.1 Categorias de anlise

    Para o estudo aqui proposto, em consonncia com Duarte, concebeu-se que a formao

    propiciada pela escolarizao, e no caso desta pesquisa, a formao universitria, pode se

    constituir em uma prtica que contribui para

    a elevao da conscincia do indivduo ao nvel da genericidade para-si, ou seja, para a formao, pelo indivduo, de uma relao consciente entre sua vida concreta, histrica e socialmente determinada, e as possibilidades de sua objetivao ao nvel da universalidade do gnero humano [...] que no se reduza ao nvel da insero do indivduo na socialidade em-si, mas que tenha por objetivo fundamental que esse homem viva uma socialidade para-si (1993, p. 119).

    importante dizer que, de acordo com Duarte (1993), Lukcs afirma que tanto o em-

    si quanto o para-si so determinaes ontolgico-universais do ser social que se articulam.

    Para este autor, enquanto o em-si das individualidades est presente no cotidiano da vida

    social, o para-si necessita de uma prvia ideao objetivada pela capacidade do homem de

    transpor a prpria conscincia alm de sua prpria particularidade. O para-si apresenta-se

    nas decises conscientes em busca de novas relaes sociais, pois as particularidades, histori-

    camente produzidas, no potencializam o processo de superao e de ascenso genericidade

    consciente.

    A trajetria escolar dos entrevistados, a possibilidade de darem continuidade aos estu-

    dos mediante sua condio econmica precria, a importncia dada experincia universit

  • 7

    ria e a significao social do Prouni, constituram-se nas categorias empricas que orientaram

    a anlise terica, que, como j anteriormente indicado, teve como base as contribuies de

    Lukcs (1978, 1981) e Duarte (1993).

    Segundo Lukcs (1978) o trabalho a base para a construo do indivduo social. Ele

    se caracteriza como um fenmeno original e clula geradora da vida em sociedade.

    Como aponta Duarte os seres humanos, a partir de um certo ponto da evoluo natu-

    ral (biolgica), tornaram-se biologicamente aptos realizao de uma atividade chamada tra-

    balho (2004, p. 48).

    Assim, possvel compreender que o trabalho determinante das relaes sociais e

    identitrias do prprio indivduo. O homem tem no trabalho sua valorao, na ocupao desse

    espao, sua materializao, e nesse movimento, sua essncia. definido e se define pela sua

    posio no mundo do trabalho, pelo que possui ou pelo que produz.

    O homem se distingue dos animais na medida em que transforma a natureza, produ-

    zindo, a partir das finalidades socialmente postas, seus meios de vida e, indiretamente, sua

    prpria vida material, como ato da conscincia dirigido pela prpria conscincia, entendida

    no como o domnio racional de todo o processo, mas apenas a intencionalidade do sujeito

    de pensar uma ao, ou seja, de preestabelecer um fim para seus atos e antever o resultado de

    sua ao (MAGALHES, 2003, p. 2).

    Para Lukcs (1978), as finalidades sociais nascem de uma necessidade humano-social,

    sendo preciso, porm, ter um conhecimento da natureza para que no seja um mero projeto

    utpico. Portanto, o trabalho se faz na busca dos meios e na compreenso dos atributos espe-

    cficos ao objeto trabalhado, considerando sua finalidade. Segundo o autor, a conseqncia

    disso que em cada processo singular de trabalho o fim regula e domina os meios (1978, p.

    10), no se tratando, por conseguinte, de mera causalidade, gerada pelas foras da natureza,

    mas sim de um processo teleolgico, construdo nas tramas das relaes de fora e de poder

    entre os prprios seres humanos.

    Diferente do animal, que programado para agir conforme sua natureza e necessida-

    des e, por isso, no modifica sua existncia, antes adapta-se ao meio em que vive e age instin-

    tivamente, os seres humanos, segundo Lukcs (1981), criam e recriam sua existncia por meio

    da ao consciente do trabalho, trabalho este que, enquanto atividade consciente, apresenta

    carter teleolgico, provocando, deste modo, opes, escolhas e liberdade.

    Para esse autor, o carter alternativo do por no processo do trabalho se apresenta a

    partir da finalidade do trabalho. O filsofo hngaro exemplifica esse processo ao falar do ho-

    mem primitivo, que escolhe, de um conjunto de pedras, uma que lhe parece mais apropriada

  • 8

    aos seus fins, deixando outras de lado, caracterizando ento uma escolha ou alternativa. J os

    animais se relacionam com a natureza de modo instintivo, por uma ligao com a natureza

    biolgica, epifenmica, e no por uma alternativa.

    No processo de trabalho dos homens, a escolha produz hbitos, reflexos condicionados

    que tornam suas objetivaes genricas em-si, gerados por decises alternativas. A alterna-

    tiva um ato da conscincia e uma categoria mediadora por meio da qual o reflexo da reali-

    dade se torna veculo do ato de por um existente (LUKCS, 1981, p. 19).

    O trabalho que promove a relao do homem com a natureza de forma consciente,

    buscando, portanto, a partir de suas finalidades teleologicamente postas, alternativas e esco-

    lhas para as objetivaes da prxis humana.

    Segundo Lukcs (1981), na medida em que ocorre desenvolvimento humano social, as

    relaes do homem com a natureza se tornam cada vez mais complexas, transformando as

    escolhas e alternativas de uma dimenso utilitria e imediatista em uma dimenso de carter

    social diversificado e diferenciado.

    O filsofo chama a ateno para o fato de que a alternativa sempre ser concreta, pois

    pressupe a deciso de uma pessoa concreta a respeito de condies concretamente melhores

    para realizar uma finalidade concreta. Isto quer dizer

    que toda alternativa (e toda cadeia de alternativas) no trabalho nunca pode se referir realidade em geral, mas uma escolha concreta entre caminhos cuja meta (em ltima anlise, a satisfao da necessidade) foi produzida no pelo sujeito que decide, mas pelo ser social no qual ele vive e opera. O sujeito s pode tomar como objeto de sua finalidade, de sua alternativa, as possibilida-des determinadas sobre o terreno e por este complexo de ser que existe inde-pendentemente dele (LUKCS, 1981, p. 21).

    H que se dizer ento que nenhuma escolha se faz de maneira independente, mas sim

    conforme as possibilidades e as condies histrica e socialmente construdas, porm pass-

    veis de serem alteradas pela ao consciente dos sujeitos humanos.

    Para o homem, a categoria alternativa, tem como contedo ontolgico essencial no

    somente o carter cognitivo que impulsiona a satisfao de uma necessidade, mas tambm e

    principalmente a posio teleolgica frente necessidade mediada pelo trabalho. O animal, ao

    contrrio, apenas tem na escolha o fim imediato para a sua necessidade. O que caracteriza o

    domnio da conscincia sobre o elemento instintivo, puramente biolgico.

  • 9

    Em todo ato humano, no existe apenas uma finalidade, mas um curso de ao e todos

    os outros meios necessrios para realiz-la objetivamente no mundo em-si. Medeiros, escla-

    rece que para Lukcs,

    O trabalho, em particular, e a prtica humana em geral, alm de ser caracte-rizada como realizao de uma finalidade pr-concebida, deve ser compre-endida como escolha entre alternativas concretas existentes. Em todo ato humano, no apenas uma finalidade (valor), mas um curso de ao (dever-ser) e todos os outros meios necessrios a realiz-la objetivamente num mundo em si insensvel com relao aos desgnios humanos [...] so escolhi-dos, e outros negados (2007, p. 10).

    Isto posto, razovel inferir que a alternativa uma categoria determinante, uma vez

    que por meio dela que se realiza a passagem da possibilidade realidade.

    Como sintetiza Gramsci:

    A possibilidade no a realidade, mas , tambm ela, uma realidade: que o homem possa ou no fazer determinadas coisas, isto tem importncia na va-lorizao daquilo que realmente se faz. [...]. Mas a existncia das condies objetivas ou possibilidade, ou liberdade ainda no suficiente: necess-rio conhec-las e saber utiliz-las. Querer utiliz-las (1978, p. 47).

    Pode-se dizer, ento, que a conscincia humana no epifenmica, mas sim teleolgi-

    ca. Como explica Lukcs na medida em que a realizao de uma finalidade torna-se um

    princpio transformador e reformador da natureza, a conscincia que impulsionou e orientou

    um tal processo no pode ser mais do ponto de vista ontolgico um epifenmeno (1981, p. 13).

    Nesse processo, o autor afirma que no h identidade sujeito e objeto, uma vez que o

    produto do trabalho objetivado no se identifica mais com o ser que o subjetivou.

    No reflexo da realidade a reproduo se destaca da realidade reproduzida, coagulando-se numa realidade prpria da conscincia. Pusemos entre aspas a palavra realidade porque, na conscincia, ela apenas reproduzida; nasce uma nova forma de objetividade, mas no uma realidade, e exatamente em sentido ontolgico no possvel que a reproduo seja da mesma nature-za daquilo que ela reproduz e muito menos idntica a ela (LUKCS, 1981, p. 15).

    Parafraseando Ranieri (2009), a capacidade humana de produzir os meios de satisfazer

    suas necessidades pressupe um conhecimento concreto das propriedades do objeto a ser

    transformado, o que remete categoria do reflexo da conscincia que, segundo Lukcs (1981)

  • 10

    diferencia o ser e o seu reflexo na conscincia, sendo esta diferenciao um fato fundamental

    do ser social.

    Nesse sentido,

    o reflexo tem uma natureza peculiar contraditria: por um lado, ele o exato oposto de qualquer ser, precisamente porque ele o reflexo e o no ser; por outro lado e ao mesmo tempo, o meio atravs do qual surgem novas objeti-vidades no ser social, por meio do qual se realiza a sua reproduo no mes-mo nvel ou em nvel mais alto (LUKCS, 1981, p. 15-6).

    Essa reproduo do ser social pode se dar tanto na dimenso do em-si quanto do

    para-si, mesmo porque estas dimenses fazem parte do processo de constituio social do

    indivduo. Na tendncia em-si, ele reproduz a partir de uma ideia j concretizada, enqua-

    drando-se em uma essncia prvia, relacionando-se sempre com os objetos de sua cotidiani-

    dade de um modo espontneo e imediato. Costa diz que

    na sociedade moderna, os saberes incorporados ao cotidiano dos indivduos so funcionais s atividades prticas e imediatas, servem para que o indiv-duo funcione bem no seu cotidiano. A superficialidade extensiva faz das aes cotidianas meras reprodutoras da normalidade da vida de cada indi-vduo. Coexistem, de forma absolutamente tranqila, na conscincia pragm-tica do homem do cotidiano, representaes de mundo contraditrias em si, sem ao menos ter-se clara essa questo, pois o saber cotidiano heterogneo (2001, p. 34).

    J na tendncia para-si pressupe-se que os homens se objetivem reflexivamente

    enquanto gnero e enquanto humanidade, construindo relaes temporais e funcionais com os

    seres em-si e, com isso, criando um sentido para o mundo no qual vivem, definindo a cada

    momento qual a sua essncia. De acordo com Costa, a superao da superficialidade emp-

    rica do cotidiano uma tarefa que os homens realizam ao adotarem uma postura reflexiva

    frente vida cotidiana. pelo distanciamento reflexivo frente ao cotidiano, que o homem o

    compreende e analisa (2001, p. 34).

    Segundo Duarte (1993), ao transformar a natureza por meio do trabalho, o homem, no

    incio do processo de humanizao do gnero humano, estava se transformando de um ser

    genrico para um ser genrico em-si. As objetivaes humanas limitadas pelos utenslios,

    costumes e linguagem constituram a primeira e indispensvel esfera de objetivao do gnero

    humano. O ser em-si tambm constitudo por pensamentos e aes que dirigem as suas

    objetivaes em-si, mesmo que essas relaes estabelecidas no alcancem o plano da gene-

    recidade para-si.

  • 11

    com o surgimento da sociedade de classes4 que as relaes econmicas, provenien-

    tes da explorao, foram se tornando cada vez mais autnomas, ou seja, em mediadoras entre

    as foras produtivas e as relaes sociais em geral (HELLER, 1977, p. 230). no capitalis-

    mo que essas relaes atingem, segundo esta autora o ponto mximo enquanto ser em-si

    convertido em autnomo. Somente a superao da alienao nas relaes econmicas exigir

    o desenvolvimento de um sentido para-si. De acordo com a autora, a apropriao das obje-

    tivaes genricas em-si constitui a base da vida social. O indivduo somente pode objeti-

    var-se mediante essas apropriaes, encontrando-se a a possibilidade do alcance da generici-

    dade para-si.

    importante salientar ainda, conforme Heller (1977), que a prtica pedaggica da es-

    cola mediadora entre a formao do indivduo na vida cotidiana portanto, onde ele se a-

    propria das objetivaes genricas em-si e sua formao nas esferas no cotidianas, as das

    objetivaes genricas para-si.

    De acordo com Duarte uma das diferenas entre a apropriao das objetivaes gen-

    ricas em-si e a apropriao das objetivaes genricas para-si est em que esta ltima exige,

    em princpio, a superao do carter imediato, espontneo, com que se realiza a primeira

    (1993, p. 140).

    As objetivaes genricas para-si, como a cincia, a moral, a filosofia e a arte, alm

    de representarem objetivamente o desenvolvimento do gnero humano, representam tambm

    a relao consciente dos homens com as objetivaes genricas em-si.

    Como aponta Heller:

    O para-si constitui a encarnao da liberdade humana. As objetivaes gen-ricas para-si so expresso do grau de liberdade que o gnero humano alcan-ou em uma determinada poca. So realidades nas quais est objetivado o domnio do gnero humano sobre a natureza e sobre si mesmo (sobre sua prpria natureza) (1977, p. 233).

    Com a finalidade de anlise, Lukcs (1981) decompe o trabalho humano em dois

    momentos: objetivao e alienao, que no ato real so inseparveis. A capacidade humana de

    criar objetos sociais antes inexistentes possui carter positivo. na produo de objetos soci-

    ais e de sua alienao em relao a eles que o ser humano se hominiza e desenvolve bens que

    4Embora Marx reconhecesse que, nas diferentes pocas histricas, sempre existiram mltiplas categorias sociais, considera que o sculo XIX presenciou, de maneira mais marcante, a polarizao de duas classes antagnicas e hostis: a burguesia e o proletariado. O capitalista proprietrio dos bens de produo, enquanto o operrio possui apenas sua fora de trabalho, vendida em troca de salrio (ARANHA, 1992). Portanto, o surgimento das classes sociais est associado diviso do trabalho.

  • 12

    o produzem e o reproduzem, o que leva o indivduo ao que o filsofo denomina estranhamen-

    to, carter negativo da exteriorizao.

    Lukcs (1981) entende o estranhamento, na sociedade capitalista, como o no reco-

    nhecimento do homem de sua prpria produo e reproduo social. Na verdade, torna-se

    obstculo ao desenvolvimento humano, o que impede a formao de uma individualidade rica

    e livre, possibilitada e ao mesmo tempo impedida pela sociedade capitalista.

    Para que haja uma real possibilidade de objetivao do ser para-si na sociedade capi-

    talista, Lukcs (1981), citado por Tassigny, aponta para a necessidade

    de superao dos estranhamentos. Entretanto, destaca que o desenvolvimen-to social anima um ser cada vez mais integrado e, por isso, crescentemente portador de necessidades genricas [...] implica-se da uma conscincia pro-gressivamente mais sintonizada com as necessidades humanas como um to-do. Tal superao, entretanto, ainda ir demandar escolhas, em escala social, de valores que sejam expresso do prprio fim do desenvolvimento social: a produo de seres livres e autnomos (TASSIGNY, 2004, p. 84).

    Quanto alienao, segundo Duarte (1993), super-la demonstra a prtica de objetiva-

    es genricas para-si, como a produo de cincia, arte e filosofia, transpondo o carter

    no consciente e espontneo das objetivaes genricas em-si, na medida em que se desen-

    volve uma relao consciente do indivduo com o gnero humano. Entretanto, ainda para o

    autor, no apenas a apropriao das objetivaes genricas para-si que garantem a supera-

    o da alienao, pois, se assim o fosse, a formao da individualidade para-si dependeria

    da posse ou no posse de determinadas formas do saber. Mas

    a relao consciente com a genericidade para-si torna-se, medida em que vai se desenvolvendo na vida do indivduo, mediadora na reconstruo da hierarquia das atividades cotidianas e dos valores que dirigem tais ativida-des. O indivduo passa a no mais aceitar como natural a hierarquia das a-tividades da vida cotidiana [...] (DUARTE, 1993, p. 143)

    Em suma, o trabalho, entendido como prxis humana material e no material, e no

    apenas como produo de mercadorias, uma categoria fundante na formao do indivduo

    enquanto ser social. Por meio do trabalho ele promove objetivaes e apropriaes, a partir

    das constantes relaes com a natureza e consigo prprio. O homem satisfaz suas necessida-

    des de modo consciente e teleolgico, tornando a sua capacidade de fazer alternativas e esco-

    lhas o seu estar em sociedade, mesmo que em condies no determinadas por ele. Reunidos

  • 13

    na esfera das relaes sociais, os homens criam valores e definem objetivos de vida a partir

    dos desafios encontrados na atividade produtora de sua existncia.

    Desse modo, tanto o indivduo em-si quanto o indivduo para-si devem ser com-

    preendidos como um homem real inserido em determinado contexto histrico-social.

    1.2 Sujeitos desta pesquisa

    Os sujeitos que compuseram a amostra desta pesquisa foram nove alunos, matricula-

    dos em instituies do ensino superior, com bolsa proveniente do Programa Universidade para

    Todos (Prouni), criado pelo Governo Federal. Foram ouvidos alunos do curso de pedagogia,

    marketing, economia, enfermagem, turismo e direito.

    Os alunos ouvidos tambm tiveram acesso ao ensino superior por meio do Exame Na-

    cional do Ensino Mdio (Enem). Portanto, possuem o perfil socioeconmico definido pelo

    programa: baixa renda familiar, estudos realizados em escolas pblicas e no portadores de

    diploma de ensino superior.

    Desses sujeitos, oito encontram-se na faixa etria de 18 a 31 anos. Somente um deles,

    Eduardo, tem 46 anos de idade e foi escolhido por se tratar de um sujeito com uma histria de

    vida diferenciada, j que foi interno do sistema carcerrio paulista. Ou, em suas prprias pala-

    vras, um indivduo que viveu [...] como qualquer animal em qualquer outra situao, e sendo

    o ser humano autoadaptvel e com instinto de sobrevivncia enorme, o meu instinto era de

    sobreviver, mais do que sobreviver o meu corpo, tinha de sobreviver minha mente.

    Ainda, partindo da premissa de que a categoria administrativa poderia influenciar nas

    significaes, foram contempladas instituies de trs categorias: faculdades, centro universi-

    trio e universidades, como se segue: Faculdades Integradas Brasileiras Renascena/Uniesp;

    Faculdade So Camilo; Centro Universitrio UniSantAnna; Universidade Presbiteriana Mac-

    kenzie; Universidade Bandeirantes de So Paulo (Uniban).

    As entrevistas transcorreram no perodo de junho a dezembro de 2009. Sete foram rea-

    lizadas na residncia dos sujeitos deste estudo e duas na instituio de ensino na qual estu-

    dam. Todas foram gravadas e transcritas.

    Para a realizao deste trabalho, esta pesquisadora enfrentou alguns entraves. Quando

    informados de que o depoimento seria gravado, a grande maioria alegou no ter disponibili-

    dade de tempo. Outra dificuldade foi o no comprometimento dos entrevistados em relao s

    datas e horrios marcados, o que resultou, algumas vezes, na remarcao do encontro.

  • 14

    Embora tenham ocorrido entraves, a pesquisadora se sentiu privilegiada em poder ter

    contato com a histria de vida dessas pessoas. Alguns alunos que aceitaram dar seu depoi-

    mento, permitiram o acesso s suas residncias. Esta pesquisadora foi recebida carinhosa-

    mente pelos familiares, inclusive, convidada, algumas vezes, a participar das refeies junto

    famlia. Um fato curioso nessas visitas foi o envolvimento das pessoas prximas ao entrevis-

    tado nas narrativas de sua trajetria escolar. Muitas vezes elas se emocionaram, principal-

    mente com fatos que relembravam o difcil passado. Aqueles que deram seus depoimentos na

    instituio foram igualmente solcitos e atenciosos.

    De todo modo, o processo de entrevistas possibilitou o estabelecimento de uma rela-

    o de confiana entre entrevistados e entrevistadora.

    Por meio dos depoimentos, foi possvel conhecer mais amplamente essas personagens

    que, com as suas experincias e trajetrias de vida, nos mostraram um pouco das tenses soci-

    ais vivenciadas por uma camada substancial da sociedade brasileira. Uma camada que, tolhida

    ao longo da histria da possibilidade de acesso ao ensino superior, alcana-o, na grande maio-

    ria das vezes, por meio de polticas pblicas governamentais.

    Foi possvel tambm traar o perfil dessa pequena amostra dessa camada da sociedade,

    que contribuiu para a realizao desta pesquisa, e que apresentamos a seguir.

    Beatriz Rodeiro Martinez uma jovem de 27 anos que vive com a me e duas irms,

    em casa prpria, na cidade de Ribeiro Pires, SP. Cursa pedagogia nas Faculdades Integradas

    Brasileiras Renascena/Uniesp So Paulo, capital , terceiro semestre, perodo noturno. Em

    1996, logo aps o trmino do ensino mdio, matriculou-se em um curso de teatro promovido

    pela prefeitura de Ribeiro Pires. Aps o curso, foi convidada a trabalhar no projeto de teatro,

    no qual permaneceu at o ano de 2004. Neste mesmo ano, aderiu a uma organizao no go-

    vernamental (ONG) que, por meio da arte-educao, atendia jovens com idades entre 16 e 24

    anos, em vulnerabilidade social, que buscavam o primeiro emprego. Em 2006, a prefeitura

    exigiu que os professores da ONG tivessem graduao, o que motivou Beatriz a buscar o en-

    sino superior. Para sustentar-se no ensino superior, faz trabalhos espordicos na rea de teatro.

    Rodrigo Loureno Gonalves tem 23 anos. Filho mais velho de trs irmos, mora com

    os pais, o irmo e a irm na Vila Maria, Zona Norte da cidade de So Paulo, em casa prpria.

    Concomitantemente ao ensino mdio cursou o tcnico em administrao na Escola Tcnica

    Estadual (Etec). No Centro Universitrio UniSantAnna, So Paulo, fez o curso superior de

    tecnlogia em marketing, que terminou no 1 semestre de 2009. Hoje trabalha como auxiliar

    administrativo no Grupo Autofax Tecnologia para deciso de negcios.

  • 15

    Emlia Mara Lima Silva, 22 anos nasceu e foi criada em So Joo da Boa Vista, SP.

    Uma vez conseguida a bolsa pelo Prouni, mudou-se para a cidade de So Paulo e matriculou-

    se no curso superior de tecnlogia em marketing, no Centro Universitrio UniSantAnna, ter-

    minando-o no 1 semestre de 2009. Longe da famlia, mora com uma amiga e o pai desta no

    centro da cidade em um pequeno apartamento. O aluguel e outras despesas so divididos.

    Mesmo tendo terminado a faculdade, trabalha como atendente em uma loja de roupas.

    Tatiana de Oliveira Cruz Barbosa tem 31 anos e a mais velha de trs irms. casada

    e tem dois filhos, uma menina de 11 anos e um menino de 2. Mora no centro da cidade de So

    Paulo, em um edifcio financiado pela Caixa Econmica Federal, por meio do Programa de

    Arrendamento Residencial5, aos participantes do Movimento de Moradia do Centro6 (MMC).

    Cursa o 3 semestre de direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagia na rea.

    Karen Jaqueline Santana Gomes tem 18 anos. Mora com a me e a irm mais nova no

    centro da cidade de So Paulo, tambm em apartamento conquistado por meio do Movimento

    de Moradia do Centro. Quando criana, sempre acompanhava a me em reunies do MMC.

    Pratica handball desde o ensino fundamental. Comeou a trabalhar com 16 anos, como estagi-

    ria, encaminhada pelo Ncleo Brasileiro de Estgio (Nube), com o propsito de conseguir

    dinheiro para acompanhar a turma em um cruzeiro de formatura do ensino mdio. Cursa o 1

    semestre de enfermagem na Faculdade So Camilo e trabalha em uma clnica odontolgica na

    capital.

    Wendy Francisco Pereira tem 27 anos e mora com seu companheiro no centro da cida-

    de, em imvel conseguido por meio da luta da populao de baixa renda para a conquista da

    moradia. Oriundo de uma famlia composta por pai, me e dez irmos natural de Itabaiani-

    nha, Sergipe, e at os 10 anos ajudou o pai, na zona rural, na venda de banana. A partir dos 12

    anos foi trabalhar no comrcio da pequena cidade. Aos 16 anos, pela precariedade de opes

    de trabalho que a cidade oferecia, comeou a atuar na indstria de confeco. Morou em Ita-

    baianinha at os 20 anos, quando veio para So Paulo, reencontrando a me e alguns irmos

    que aqui j residiam. Cursa o 2 semestre de turismo, na Universidade Bandeirantes (Uniban).

    Continua trabalhando no ramo da confeco, como costureiro.

    5Programa institudo por meio da Lei n 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, para atendimento da necessidade de moradia da populao de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial, com opo de compra (BRASIL. PLANALTO DO GOVERNO, 2001). 6O Movimento de Moradia do Centro surgiu por volta de 1984, fruto da mobilizao de um grupo de moradores de cortios engajados na luta contra taxas de aluguis abusivas e cobranas de gua e luz muito alm das suas possibilidades. Sua atuao caracteriza-se pela ocupao de edifcios pblicos e privados ociosos no centro de So Paulo, tendo como fundamento a luta pela moradia e a organizao urbana de trabalhadores empregados e desempregados (BLOCH e MARTINS, 2009).

  • 16

    Kelly Cristina Pereira tem 22 anos, casada e possui um filho. Tem trs irmos por

    parte do pai e dois por parte da me. a mais velha dos irmos e no conhece a me. Ficou

    rf de pai aos 4 anos de idade e foi morar com os avs paternos na Paraba, onde permaneceu

    at os 9 anos, quando a famlia transferiu-se para Caraguatatuba, So Paulo. Dois anos depois,

    retornou Paraba e seis anos mais tarde, j com 17 anos, voltou para So Paulo. Foi morar

    em Itaquaquecetuba com os avs, permanecendo sob seus cuidados at os 19 anos, quando se

    casou. Kelly trabalha desde os 14 anos. J trabalhou como atendente de sorveteria, de loja de

    noivas, como bab, costureira em confeco de bolsas, monitora em escola de informtica.

    Hoje atua como atendente em empresa de telemarketing e cursa o 1 semestre de pedagogia

    nas Faculdades Integradas Brasileiras Renascena/Uniesp.

    Eduardo Pires de Oliveira, 46 anos, faz questo de frisar que filho de empregada

    domstica e de pai funcionrio pblico. A me, hoje com 64 anos, ainda exerce a funo de

    domstica e sempre foi engajada em movimentos polticos comunitrios. Nascido em tempo

    de governo ditatorial, poca de inmeras proibies, motivado pela me tornou-se um contes-

    tador. Considera-se um revoltado por natureza. Com 14 anos comeou a trabalhar como offi-

    ce-boy. A partir da passou a ter um novo registro na carteira a cada trs meses, em diferentes

    atividades. Serviu o exrcito, poca em que se especializou no trato de equinos, funo que

    exerceu por mais um ano depois de sua baixa. Foi policial militar. Saiu da corporao na con-

    dio oposta, de presidirio, em liberdade assistida. divorciado da me de seu filho, hoje

    com 19 anos, e casado com outra mulher. Atualmente exerce a profisso de manobrista notur-

    no e cursa o 5 semestre de pedagogia nas Faculdades Integradas Brasileiras Renascen-

    a/Uniesp.

    Elton Luiz Fotoni filho de pais separados. Tem 26 anos e mora com a me em um

    espao ocupado na Vila Albertina, Zona Norte de So Paulo, espao caracterizado como n-

    cleo habitacional de risco. Contratado pela prefeitura, comeou a trabalhar aos 19 anos como

    auxiliar de almoxarife na Escola da Polcia Militar do Barro Branco. Permaneceu por dez me-

    ses, quando foi chamado para trabalhar com um primo em um escritrio contbil, como auxi-

    liar de contabilidade, cargo em que permanece at hoje. Elton j teve uma banda de msica e

    participou do Programa para a Valorizao de Iniciativas Culturais7 no governo da prefeita

    7Criado pela Lei n 13.540 e regulamentado pelo Decreto n 43.823/03, o do Programa para a Valorizao de Iniciativas Culturais (VAI), tem como objetivo apoiar financeiramente atividades artstico-culturais de jovens de baixa renda de regies da Cidade desprovidas de recursos ou equipamentos culturais. A primeira edio do VAI, realizada em 2004, contabilizou 645 projetos inscritos, sendo 65 contemplados. Em 2005 foram selecionadas 71 propostas, de 450 inscritas. Em 2006 foram 758 inscries e 62 grupos. 2007 foi um ano de crescimento, com 777 inscritos e 102 selecionados (PORTAL DA PREFEITURA DO ESTADO DE SO PAULO, 2008).

  • 17

    Marta Suplicy8. Toca teclado, escreve poesias e cursa o 3 semestre de cincias contbeis na

    Universidade Paulista (Unip).

    A metodologia utilizada envolveu basicamente trs momentos. O primeiro refere-se

    elaborao tcnica da entrevista semiestruturada; o segundo, realizao das entrevistas, que

    foram gravadas, transcritas e posteriormente editadas, de forma a facilitar a compreenso do

    leitor, porm sem que as caractersticas dos depoimentos fossem alteradas; o terceiro foi o de

    tratamento e anlise dos dados.

    As questes foram organizadas de forma a: 1) caracterizar o perfil e traar a trajetria

    escolar dos alunos e a experincia familiar de cada um; 2) identificar sua compreenso e suas

    expectativas quanto experincia universitria e o lugar do Prouni nela. A anlise dos dados

    coletados baseou-se nas categorias j mencionadas.

    As entrevistas, por constiturem a base deste trabalho de pesquisa e por trazerem ele-

    mentos cuja anlise no se esgota nesta investigao, encontram-se no apndice, com o intuito

    de que outros investigadores possam, com outros olhares, fazer uso do material levantado por

    esta pesquisadora.

    8Prefeita da cidade de So Paulo de 1 de janeiro de 2001 a 1 de janeiro de 2005.

  • CAPTULO 2 PROGRAMA UNIVERSIDADE PARA TODOS:

    PANORAMA HISTRICO, POLTICO, SOCIAL E ASPECTO LEGAL

    Neste captulo apresentado um panorama histrico-poltico brasileiro da dcada de

    1990, buscando identificar as reformas polticas e sociais ocorridas em tempos de influncia

    do pensamento neoliberal. A reconfigurao do Estado e a insero da discusso do ensino

    sob a gide de um Estado gerencial tambm so abordadas. O Programa Universidade para

    Todos constituiu o ncleo desta parte do trabalho.

    O Prouni um programa do governo inserido na reconfigurao da educao superior

    brasileira, quando se redefinem os conceitos de pblico e privado. Portanto, para entender o

    programa como poltica afirmativa9 que atua por meio da iniciativa privada, preciso enten-

    der, antes, essas transformaes e as reformas do Estado ocorridas a partir do governo de Fer-

    nando Henrique Cardoso10 (FHC), sob o chamado pensamento neoliberal (SILVA JR., 2002).

    2.1 Reconfigurao do Estado

    A reconfigurao do Estado, segundo Hyplito (2005), d-se na tentativa de superar a

    crise do Estado Nao, que se apresenta desde a dcada de 1970, a partir dos objetivos impos-

    tos pelo pensamento neoliberal, e na reestruturao produtiva do capitalismo. No Brasil, pas

    em que jamais se constituiu o Estado de Bem-Estar Social11, toma corpo, a partir do governo

    de FHC, a tese de um Estado inoperante frente s necessidades de desenvolvimento do capita-

    lismo e a insero no novo pacto proposto pelo capital por meio da expanso da globalizao.

    O papel do Estado passa a ser muito mais de controle, avaliao e gerenciamento, e as

    aes das polticas pblicas sociais passam s mos de instituies privadas. Portanto, a re

    9 Do ente abstrato, genrico, destitudo de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critrios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. O indivduo especificado, portanto, ser o alvo das novas polticas sociais, polticas estas que buscam concretizar a igualdade substancial ou material do indivduo especificado (PIOVESSAN, 1998, p. 130). 10 Presidente da Repblica de 1995-1998 e 1999-2002. 11 O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos pases capitalistas avanados do hemisfrio norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazifacismo e da revoluo comunista. A crise econmica gerada pela Segunda Guerra Mundial, as crticas nazifacista e socialista ao liberalismo, a imagem da sociedade socialista em construo na Unio Sovitica e na China, fazendo que os trabalhadores encontrassem nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e a injustia do capita-lismo, tudo isso levou a prtica poltica a afirmar a necessidade de alterar a ao do Estado, corrigindo os pro-blemas econmicos e sociais (CHAU, 2000, p. 555).

  • 19

    configurao dos conceitos de pblico e privado cria novas formas de gerncia para a reorga-

    nizao estatal.

    O Brasil, na dcada de 1990, apresenta as reformas estruturais que iro inseri-lo na

    nova ordem mundial, as quais, segundo Silva Jnior, tendem para um desmonte do Estado

    intervencionista na economia e nos setores sociais (2002, p. 62).

    A adequao nova abordagem da administrao pblica aparece, no Brasil, com Luis

    Carlos Bresser Pereira12, na dcada de 1990. Segundo o ex-ministro, nos anos 1990, embora o

    ajuste estrutural permanecesse entre os principais objetivos, a nfase deslocou-se para a re-

    forma do Estado, particularmente para a administrativa. Para Bresser, a questo central que se

    apresentava era de como reconstruir o Estado, como redefinir o novo Estado que estava sur-

    gindo em um mundo globalizado:

    A abordagem gerencial, tambm conhecida como nova administrao pbli-ca, parte do reconhecimento de que os estados democrticos contemporneos no so simples instrumentos para garantir a propriedade e os contratos, mas formulam e implementam polticas pblicas estratgicas para suas respecti-vas sociedades tanto sociais quanto na rea cientfica e tecnolgica, para isso necessrio que o Estado utilize prticas gerenciais modernas, sem perder de vista sua funo eminentemente pblica [...] no se trata, porm da sim-ples importao de modelos idealizados do mundo empresarial, e sim do re-conhecimento de que as novas funes do Estado exigem novas competn-cias, novas estratgias administrativas e novas instituies (BRESSER-PEREIRA, 1998, p. 7).

    Essa abordagem criticada por intelectuais (SILVA Jr., 2002; SGUISSARDI, 2001;

    PERONI, 2006, dentre outros) que entendem o desmonte do Estado como plano da reconfigu-

    rao do capital, em prejuzo das camadas mais pobres, distanciando-as dos chamados servi-

    os pblicos, como sade, educao e moradia, que passam a ser publicizados ou privatiza-

    dos, ainda que se mantenham sob controle do Estado:

    A tese da inoperncia do Estado Nao foi aclamada como a nova verdade histrica. Porm, numa anlise mais cuidadosa, podemos compreender que longe de um desmonte do Estado Nao, o momento histrico atual coloca uma redefinio de suas funes e de seu papel, num novo pacto proposto pelo capital, com graves perdas para as classes trabalhadoras, constituindo-se num retrocesso na construo de um mundo mais igualitrio e democrtico. As diferenas entre os pases ricos e pobres cresceram nas duas ltimas d-cadas. Junto com a supremacia econmica est a dominao poltica, reali-zada atravs de vrias instituies globais, tais como: o FMI Fundo Mone

    12 Lus Carlos Bresser Pereira foi ministro da Administrao Pblica e da Reforma do Estado (Mare) no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998).

  • 20

    trio Internacional, o Banco Mundial e a OMC Organizao Mundial do Comrcio (COSTA, 2000, p. 2).

    De acordo com Peroni:

    A estratgia do neoliberalismo reformar o Estado ou diminuir sua atuao para superar a crise. O mercado que dever superar as falhas do Estado; as-sim, a lgica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele possa ser mais eficiente e produtivo (2006, p. 11).

    No momento em que se observam grandes movimentos de adaptabilidade provenientes

    das prprias contradies do modo de produo capitalista, h mudanas e transformaes

    profundas na forma de produo da vida material objetiva e subjetiva. Estas mudanas acon-

    tecem na esfera do Estado, da produo, do mercado e tambm no mbito poltico-cultural

    (PERONI, 2006, p. 11).

    No mbito da ideologia neoliberal13, no era o capitalismo que estava em crise, mas o

    Estado, que se apresentava incapaz de acompanhar os avanos e as mudanas do capitalismo,

    tornando-se, segundo essa viso, uma mquina emperrada, envelhecida, incapaz de atingir

    metas de uma gesto eficiente e eficaz.

    A resposta neoliberal para essa crise foi reformar o Estado ou diminuir sua atuao e

    interferncia no mercado. O prprio mercado, segundo Peroni que dever superar as falhas

    do Estado; assim, a lgica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele pos-

    sa ser mais eficiente e produtivo (2006, p. 11).

    Mas, para autores citados por Peroni (2006), como Mszros (2002), Antunes (1999) e

    Harvey (1989), a crise no se encontra no Estado, mas uma crise estrutural do capitalismo.

    Para esses autores, as estratgias de superao da crise, como o neoliberalismo, a globaliza-

    o, a reestruturao produtiva e a terceira via, que esto redefinindo o papel do Estado.

    Conforme Peroni:

    Segundo o diagnstico neoliberal, o Estado entrou em crise tanto porque gastou mais do que podia para legitimar-se, j que tinha que atender s de-mandas da populao por polticas sociais, o que provocou a crise fiscal,

    13 Conceituao: denominao de uma corrente doutrinria do liberalismo que se ope ao social-liberalismo e/ou novo liberalismo (modelo econmico keynesiano) e retoma algumas das posies do liberalismo clssico e do liberalismo conservador, preconizando a minimizao do Estado, a economia com plena liberao das foras de mercado e a liberdade de iniciativa econmica. Tem como princpios a nfase na liberdade, na propriedade, na individualidade (direitos naturais), na economia de mercado autorregulvel e na sociedade aberta; defende a livre concorrncia; o fortalecimento da iniciativa privada com nfase na competitividade, na eficincia e na qualidade de servios e produtos (LIBNEO, 2005, p. 97).

  • 21

    quanto porque, ao regulamentar a economia, atrapalhou o livre andamento do mercado. As polticas sociais, para a teoria neoliberal, so um verdadeiro saque propriedade privada, pois so formas de distribuio de renda, alm de tambm serem um obstculo ao livre andamento do mercado, visto que os impostos oneram a produo (2006, p. 13).

    Ainda segundo a autora, o papel do Estado em relao s polticas sociais alterado e

    passa a racionalizar recursos e esvaziar o poder das instituies, j que as instituies demo-

    crticas so permeveis s presses da populao, alm de serem consideradas improdutivas

    pela lgica do mercado.

    Nesse contexto, as esferas do pblico e do privado passam, portanto, ser entendidas,

    como dizem Silva Jnior e Sguissardi (2002), com base nas relaes sociais de produo. O

    movimento contraditrio do capital ir determinar o que estatal, pblico e privado.

    No Brasil, na dcada de 1990, essas transformaes das relaes sociais no modo de

    produo capitalista se daro por meio do projeto poltico neoliberal de Fernando Henrique

    Cardoso. Como apontam os autores acima citados:

    O governo de FHC teve no centro de seu projeto poltico a construo da ci-dadania. Tornado pblico pelo discurso de seus membros e arautos nos grandes espaos e templos da mdia, esse projeto alardeava a construo do novo cidado brasileiro a erigir-se sobre os pilares do modelo de competn-cia e empregabilidade e em meio intensa mudana institucional e constru-o de nova organizao social nos moldes do novo paradigma de Estado, cuja racionalidade se fundava em crescentes e inegveis valores mercantis (SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 2005, p. 7).

    Segundo esses autores, esse modelo de projeto poltico para o Brasil, a partir da dca-

    da de 1990, foi muito convincente. Fernando Henrique Cardoso colocou em prtica uma pol-

    tica conforme as orientaes do capital financeiro internacional, preocupando-se de forma

    tangencial com o fortalecimento do capital produtivo industrial brasileiro. Ainda segundo os

    autores, tratava-se de um projeto que apresentava os seguintes traos:

    A adoo no pas do novo paradigma de organizao das corporaes mun-diais; a desnacionalizao da economia; a desindustrializao; a transforma-o da estrutura do mercado de trabalho, incluindo sua terceirizao e preca-rizao, e flexibilizao das relaes trabalhistas; a reforma do Estado e a restrio da esfera pblica e a ampliao da privada; o enfraquecimento das instituies polticas de mediao entre a sociedade civil e o Estado, especi-almente dos sindicatos e partidos polticos; o trnsito da sociedade do em-prego para a sociedade do trabalho, isto , a tendncia ao desaparecimento dos direitos sociais do trabalho; a transferncia de deveres e responsabilida-des do Estado e do direito social e subjetivo do cidado para a sociedade ci-vil (SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 2005, p. 4).

  • 22

    No Brasil, no Plano da Reforma do Estado que as polticas sociais foram considera-

    das servios no exclusivos do Estado, portanto, de propriedade pblica no estatal ou privada

    e, como tais, dependentes da ao e do movimento do mercado.

    Peroni entende que:

    As estratgias de reforma do Estado no Brasil so: a privatizao, a publici-zao e a terceirizao. Terceirizao, conforme Bresser-Pereira o proces-so de se transferirem, para o setor privado, servios auxiliares ou de apoio [...]. O conceito de privatizao significa transformar uma organizao esta-tal em uma organizao de direito privado, pblica, no-estatal (2006, p. 21).

    Ainda, sobre a reforma do aparelho do Estado, BRESSER-PEREIRA explica que sua

    proposta

    parte da existncia de quatro setores dentro do Estado: (1) o ncleo estrat-gico do Estado, (2) as atividades exclusivas do Estado, (3) os servios no exclusivos ou competitivos, e (4) a produo de bens e servios para o mer-cado [...]. Na Unio, os servios no exclusivos do Estado mais relevantes so as universidades, as escolas tcnicas, os centros de pesquisas, os hospi-tais e os museus. A reforma proposta a de transform-los em um tipo espe-cial de entidade no estatal, as organizaes sociais. A ideia transform-los, voluntariamente, em organizaes sociais, ou seja, em entidades que celebrem um contrato de gesto com o Poder Executivo e contem com a au-torizao do parlamento para participar do oramento pblico (1997, p. 286).

    A reforma estatal propunha, portanto, uma concepo de modernizao ancorada na

    eficincia dos setores do Estado e de modelos de administrao pblica, valorizando a admi-

    nistrao privada, a descentralizao, a autonomia, mas com controle por resultados.

    Com essa nova administrao

    as polticas pblicas passam, no pas e no exterior, por um processo de mer-cadorizao do espao estatal ou pblico, sob o impacto de teorias gerenciais prprias das empresas capitalistas imersas na suposta anarquia do mercado, hoje estruturado por organismos multilaterais a agirem em toda a extenso do planeta (SILVA JUNIOR e SGUISSARDI, 1999, p. 75).

    A partir desses enfoques, o governo brasileiro, na dcada de 1990, teve como meta a

    flexibilizao radical no plano social, incluindo as reas a ela pertinentes, inclusive a educa-

    o.

    Nessa dcada, enquanto o Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Esta-

    do (Mare) preocupou-se com questes da reforma do estatal, o Ministrio da Educao e dos

  • 23

    Desportos (MEC) atuou de maneira mais incisiva na reestruturao do sistema da educao

    superior, por meio da implantao de medidas legais, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB

    9.394/96), decretos, portarias, medidas provisrias, emendas constitucionais.

    No Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, estava previsto um programa de

    descentralizao da educao para o setor pblico no estatal, estabelecendo um sistema de

    parceria entre Estado e sociedade. O Plano previa, para a educao, um programa de publici-

    zao14, entendendo-a como um dos servios no exclusivos do Estado, porque no tem ne-

    cessariamente que ser executada/prestada por ele, mas regulada, facilitada, promovida ou par-

    cialmente financiada por ele, o qual deixa de ser executor e passa a ser coordenador desse

    servio (BRASIL, PRESIDNCIA, 1995).

    Essa nova administrao gerou tambm uma nova forma de olhar a educao, a qual

    passou a ser vista como um servio e, ento, a mesma lgica de mercado se aplicou na busca

    da eficincia e da eficcia.

    2.2 A educao superior no processo de publicizao e privatizao

    Apesar de os processos de publicizao e de privatizao terem alcanado todos os

    campos dos servios pblicos, considerando o tema desta pesquisa, o presente item traz dis-

    cusso a educao do ensino superior.

    No governo de Fernando Henrique Cardoso, em 9 de janeiro de 2001 foi aprovado, por

    meio da Lei n 10.172, o Plano Nacional de Educao (PNE). No texto da lei, no que se refere

    educao superior, l-se como diretriz:

    A presso pelo aumento de vagas na educao superior, que decorre do au-mento acelerado do nmero de egressos da educao mdia, j est aconte-cendo e tender a crescer. Deve-se planejar a expanso com qualidade, evi-tando-se o fcil caminho da massificao. importante a contribuio do se-tor privado, que j oferece a maior parte das vagas na educao superior e tem um relevante papel a cumprir, desde que respeitados os parmetros de qualidade estabelecidos pelos sistemas de ensino (BRASIL, 2001, s/p).

    Ainda, no texto da lei, a justificativa do governo ao apresentar um plano de expanso

    universitria respalda-se na assertiva de que

    14 Publicizao consiste na transferncia da execuo de atividades do setor pblico estatal para o setor pblico no estatal (COUTINHO, 2003, p. 957).

  • 24

    nenhum pas pode aspirar a ser desenvolvido e independente sem um forte sistema de educao superior. Num mundo em que o conhecimento sobrepu-ja os recursos materiais como fator de desenvolvimento humano, a impor-tncia da educao superior e de suas instituies cada vez maior. Para que estas possam desempenhar sua misso educacional, institucional e social, o apoio pblico decisivo (BRASIL, 2001, s/p).

    Essa viso tambm aparece no texto de apresentao da verso preliminar do Antepro-

    jeto de Lei da Educao Superior de 6 de dezembro de 2004, governo Lus Incio Lula da

    Silva, poca com Tarso Fernando Gerz Genro na cadeira do Ministrio da Educao, con-

    forme segue:

    A educao superior brasileira tem a misso estratgica e nica voltada para a consolidao de uma nao soberana, democrtica, inclusiva e capaz de ge-rar a emancipao social. Esta proposta traduz a viso poltica expressa no Programa de Governo Lula, reafirmada no debate pblico, nas crticas e con-sensos de que o projeto de nao est intrinsecamente vinculado aos destinos da educao superior (FRUM NACIONAL DE PR-REITORES DE GRADUAO DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS, 2005, p. 6).

    Mas, segundo Ristoff15, o sistema de educao superior pblico brasileiro pequeno e

    excludente, s vezes quase privado, mesmo dentro de um espao pblico.

    A verdade que o Brasil continua concebendo a universidade como coisa para um pequeno e seleto grupo, um espao onde alguns poucos privilegia-dos tm a oportunidade de acessar o ltimo conhecimento. Que a universi-dade deve servir sociedade que a criou parece no haver dvidas. Resta, no entanto, saber a que sociedade deve servir. E, neste sentido, parece evidente que num pas democrtico, ou que se queira democrtico, a universidade precisa romper com o elitismo que a concebeu e engajar-se num projeto na-cional que promova o acesso das populaes hoje excludas e transforme as universidades brasileiras em universidades do povo, para o povo e pelo povo [...]. O que est acontecendo entre ns o contrrio: as j elitizadas e exclu-dentes universidades pblicas elitizam-se ainda mais e foram populaes inteiras de jovens a buscarem nas universidades privadas e pagas o seu nico refgio. Hoje duas vezes mais difcil ingressar em um curso de graduao de uma universidade pblica do que h cinco anos. Estamos hoje entre os pa-ses com um dos sistemas de educao superior mais privatizados do planeta (2006, p. 7).

    Na avaliao dos autores, a educao superior no Brasil, principalmente nas dcadas

    de 1980 e 1990, sofreu uma histrica ausncia de financiamento pblico que criou um cenrio

    ainda maior de excluso.

    15 Dilvo Ilvo Ristoff foi diretor de Avaliao e Estatsticas da Educao Superior do Instituto Nacional de Estu-dos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, de junho de 2003 a janeiro de 2008(INEP/MEC, 2003, s/p).

  • 25

    Em crtica ao governo de Fernando Henrique Cardoso, Ristoff elenca algumas aes

    que acredita importante avaliar:

    Crescente vulgarizao do sentido de universidade; agressiva privatizao do sistema; desinvestimento programado e gradativo nas Instituies Federais de Ensino Superior (Ifes); desvalorizao programada das carreiras dos do-centes e dos tcnico-administrativos nas Ifes; crescimento vertiginoso da ex-cluso no acesso s IES pblicas; desrespeito repetido Constituio no que se refere autonomia das Universidades, democracia interna e indissoci-abilidade entre ensino, pesquisa e extenso; desestmulo financeiro pesqui-sa; expanso desigual e sem controle de qualidade da ps-graduao, com crescimento desenfreado de cursos endognicos; privatizao crescente do espao pblico, atravs de cursos regulares, especializaes, mestrados e doutorados, assessorias, consultorias, etc., oferecidos, como mercadorias, a-travs das fundaes de apoio; privatizao branca do espao pblico atravs de mestrados profissionalizantes pagos e de cursos sequenciais pagos; des-mantelamento dos processos de avaliao institucional; desmantelamento de programas acadmicos, com cortes de bolsas, na graduao e na ps-graduao; aligeiramento da graduao atravs de cursos sequenciais, colo-cados no mesmo patamar valorativo dos cursos de graduao, ou de propos-tas de encurtamento da graduao; aligeiramento dos mestrados atravs da proliferao de cursos profissionalizantes pagos, mesmo em IES pblicas e gratuitas, e da burocracia produtivista instituda pela Capes; perda de quali-dade acadmica atravs da substituio de professores efetivos por estagi-rios de docncia (2006, p. 3).

    Para Silva Jnior, o governo de Fernando Henrique foi marcado pela expanso dos

    valores mercantis na construo de uma nova organizao social (2005, p. 22). Ainda, nas

    palavras do autor:

    Fernando Henrique, em sua prtica poltica frente da Presidncia, governou conforme o capital financeiro internacional, preocupando-se tangencialmente com o capital nacional industrial e com o fortalecimento de um capital pro-dutivo brasileiro [...]. Por outro lado, por conta da desmobilizao da socie-dade civil ocorrida na dcada de 1980, gerenciou (mais do que governou) o pas (2005, p. 20).

    Desde 1980, o papel das polticas pblicas educacionais vem sendo debatido, levando-

    se em considerao a necessidade de adequao ao novo momento histrico, poltico, econ-

    mico e social que se instaurou a partir dessa dcada, caracterizada pela completa estagnao

    econmica que o Brasil viveu16. Organizaes mundiais como a OMC (Organizao Mundial

    16 A dcada de 1980, chamada de dcada perdida, caracterizou-se pela reduo do ritmo do crescimento da renda em relao s dcadas de 1970 e 1960 e, consequentemente, afetou de forma adversa os menos favorecidos. O resultado desses dois efeitos foi a ausncia de melhorias significativas na reduo da pobreza, estagnao do rendimento e a sua m distribuio que se mantiveram at o incio da dcada de 1990 (ROCHA, 2000).

  • 26

    do Comrcio) e o Banco Mundial (BM) tm interferido diretamente nos projetos polticos da

    educao brasileira.

    Desde 1994, com a criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC), temas da

    rea educacional fazem parte das chamadas negociaes multilaterais de comrcio. Em 1999,

    foi adotada uma lista incluindo doze setores de servios sujeitos s regras do Acordo Geral

    sobre Servios17 (Gats). A educao, vista como um mercado potencialmente lucrativo, in-

    cluda nesses setores.

    Ribeiro discute a amplitude do acordo:

    Em um sentido puramente econmico, como destacado pela comisso for-mada na Universidade de So Paulo (USP) para a discusso sobre a liberali-zao da educao como item dos setores de servios do Gats, a liberaliza-o pode trazer consequncias positivas e negativas. Dentre as positivas, o aumento de investimento no setor; a ampliao dos benefcios oferecidos ao consumidor, devido queda de preos dos servios em um mercado em con-corrncia; a atualizao tecnolgica. Entre as consequncias negativas, a desnacionalizao do setor; o acirramento da competitividade, com prejuzo para os pequenos e mdios empreendimentos; e o agravamento do quadro das diferenas regionais, j que a lgica de mercado se expande nas regies de maior atratividade econmico-financeira (2006, p. 138).

    Do mesmo modo, o Banco Mundial, entre outras aes, ressalta a importncia da edu-

    cao superior para o desenvolvimento econmico e social, para o aumento da produtividade

    no trabalho.

    Nesse sentido, em documento intitulado L enseanza superior Las lecciones deri-

    vadas de la experincia, o Banco Mundial apresenta quatro aes bsicas da educao superi-

    or:

    Fomentar a maior diferenciao das instituies, incluindo o desenvolvimen-to de instituies privadas; proporcionar incentivos para que as instituies diversifiquem as fontes de financiamento, por exemplo, a participao dos estudantes nos gastos e a estreita vinculao entre o financiamento fiscal e os resultados; redefinir a funo do governo no ensino superior; adotar polticas que destinadas a outorgar prioridade aos objetivos da qualidade e da equida-de (BANCO MUNDIAL, 1994, p. 28-9).

    17 O Acordo Geral sobre Comrcio de Servios (Gats) o primeiro acordo comercial multilateral que abrange comrcio de servios. Foi elaborado durante a Rodada Uruguai, que durou de 1986 at 1993, e entrou em vigor em 1995. O acordo tem como objetivo aumentar o nvel de liberalizao e de desregulamentao no setor de servios internacionalmente. administrado pelo Conselho para o Comrcio de Servios, que opera dentro da OMC. O Gats dividiu o comrcio de servios em doze setores: comunicaes, obras pblicas e engenharia, dis-tribuio, educao, ambiente (incluindo gua), finanas, sade e servios sociais, turismo, lazer, cultura e des-porto, transportes e outros. Os servios pblicos no esto formalmente includos no Gats, pelo menos obriga-toriamente (PORTAL REBRIP, 2005, p. 2).

  • 27

    A educao superior, a partir da dcada de 1990, , portanto, especialmente influenci-

    ada pelo pensamento das organizaes multilaterais e responde, a partir das polticas pblicas

    implementadas desde ento, de maneira a viabilizar as orientaes desses organismos.

    No que concerne imposio dessa lgica mercantil, Schwartzman ao analisar a atua-

    o da educao superior, explana:

    Em situaes de estagnao econmica, a educao pode funcionar como mecanismo de filtragem e consolidao das desigualdades sociais, contro-lando o acesso a posies de autoridade, prestgio e riqueza. Ao invs de fonte de gerao e distribuio de competncias, a educao funcionaria, nestes casos, como mecanismo de distribuio e controle de credenciais que permitem ou no o acesso a posies socialmente vantajosas, determinadas pelas condies anteriores, ou capital cultural das famlias dos estudantes. Quando isto ocorre, os aspectos formais e burocrticos da educao se tor-nam dominantes, reduzindo a relevncia da formao tcnica e profissional (2004, p. 481).

    A reestruturao da educao superior, tendo como eixo central as orientaes dos or-

    ganismos multilaterais, provocou um processo de reconfigurao do pblico e do privado, o

    que alterou a identidade das Instituies de Ensino Superior, tornando a educao um produto

    a ser adquirido no mercado universitrio.

    Esse processo acentua a aparncia produzida pelo capital, na qual as relaes sociais

    parecem um infinito movimento de mercadorias e de homens, que se relacionam entre si e

    com a natureza (SILVA JR.e SGUISSARDI, 1999, p. 91).

    Marx buscou desvendar a lgica do modo de produo emergente, com a base no es-

    tudo do movimento difuso e fragmentado de homens e coisas por meio da mercadoria.

    Para Marx (1982), a mercadoria apresenta-se por suas qualidades intrnsecas, suas

    qualidades fsicas, prprias e para sua utilidade. O seu preo o resultado das relaes dessas

    qualidades. H dois fatores constituintes da mercadoria, dois tipos de valor: o valor de uso e o

    valor de troca.

    Quanto ao valor de uso, Marx afirma:

    S se realiza com a utilizao ou o consumo. Os valores de uso co