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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ VANESSA MARISTER DE ANGELO SANTIN A LEI DE DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS À LUZ DO BIODIREITO: EM BUSCA DO RESPEITO À AUTONOMIA CURITIBA 2015

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

VANESSA MARISTER DE ANGELO SANTIN

A LEI DE DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE

ÓRGÃOS À LUZ DO BIODIREITO: EM BUSCA

DO RESPEITO À AUTONOMIA

CURITIBA

2015

VANESSA MARISTER DE ANGELO SANTIN

A LEI DE DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS À LUZ DO

BIODIREITO: EM BUSCA DO RESPEITO À AUTONOMIA

Trabalho de Conclusão de curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná como

requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador (a): Professora Mestre Helena de Souza

Rocha.

CURITIBA

2015

TERMO DE APROVAÇÃO

VANESSA MARISTER DE ANGELO SANTIN

A LEI DE DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS À LUZ DO

BIODIREITO: EM BUSCA DO RESPEITO À AUTONOMIA

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado e aprovado para obtenção do título de Bacharel no

Curso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, ____de________de 2015.

_______________________________________

Prof. Doutor Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador do Núcleo de Monografias

Universidade Tuiuti do Paraná

Orientador:________________________________

Professora Mestre Helena de Souza Rocha

Faculdade de Ciências Jurídicas

Universidade Tuiuti do Paraná

Prof. ____________________________________

Faculdade de Ciências Jurídicas

Universidade Tuiuti do Paraná

Prof.____________________________________

Faculdade de Ciências Jurídicas

Universidade Tuiuti do Paraná

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por me dar a oportunidade de nascer em uma

família tão maravilhosa e capaz de doar toda a força e apoio que preciso nas horas

difíceis da minha vida. Família esta, que incondicionalmente divide meus pesos,

viabilizando meus sonhos e me fazendo ir adiante em cada degrau da minha jornada.

Especialmente a meus pais, que inúmeras vezes enxugaram minhas lágrimas

de cansaço ou tristeza e que com broncas ou palavras de conforto me deram colo e

perseverança, jamais falhando em seus papéis comigo, sempre me ensinando o

caminho do bem e do bom caráter.

À professora Helena de Souza Rocha, dedicada orientadora que abraçou a

minha causa, aceitando a missão de me guiar no momento de angústia na escolha do

tema, acreditando na minha capacidade ecom toda a generosidade do mundo,

exprimiu sua bondade não apenas como professora, mas como especial ser humano.

Por fim, a todos aqueles que entenderam minha ausência e mesmo de longe

dispensaram-me torcida e compreensão, não diminuindo em nada o carinho e amor

sentido por mim.

RESUMO

O presente trabalho tem o escopo de analisar a lei de doação e transplante de órgãos

à luz do Biodireito, bem como a busca pelo respeito à autonomia da vontade e os

vários problemas que envolvem a seara. Os assuntos aqui tratados, serão pertinentes

à legislação, sua regulamentação, os princípios envolvidos, e todo o histórico sobre o

consentimento do ato de doação ou transplante de órgãos, sua não comercialização

e assuntos relativos ao tráfico ilícito do mesmo.

Palavras-chave: Biodireito, Bioética, Doação e Transplante de Órgãos, Lei nº

9434/97, Tráfico e Comercialização de Órgãos, Princípios, Autonomia.

ABSTRACT

This study undertakes an analysis of the organ donation and transplantation law in the

light of Biolaw and its principles, specially the person’s autonomy. For this purpose, the

essay undertakes a study of relevant legislation, its regulations and the legal principles

related to the matter, as well as the history of organ transplantation in Brazil, the

regulation of informed consent as well as the prohibition of commercialization of

transplants and matters pertaining illicit organ trafficking.

Keywords:Biolaw, Bioethics , Donation and Transplantation of Organs , Law No.

9434/97, Trafficking and Trade Bodies, Principles , Autonomy.

“Quem sabe concentrar-se numa coisa e insistir nela como único objetivo, obtém, ao

fim e ao cabo, a capacidade de fazer qualquer coisa.”

Mahatma Gandhi

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 08

2 BIOÉTICA E BIODIREITO............................................................................................... 09

2.1 PRINCÍPIOS BÁSICOS DA

BIOÉTICA.................................................................................Erro! Indicador não definido.2

2.2 PRINCÍPIOS BÁSICOS DO BIODIREITO ............. Erro! Indicador não definido.3

3 DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS ................................................................ 17

3.1 APONTAMENTOS HISTÓRICOS DA DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

................................................................................................................................................. 18

3.2CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO .................................................................................. 20

3.2.1 A Comercialização de órgãos ................................................................................... 22

3.3 NORMATIVA ................................................................................................................... 23

3.3.1 A evolução legislativa ................................................................................................. 23

3.3.2 A Lei 9434/97 e sua modificação pela Lei 10211/01.........................................24

4 RESPEITO À AUTONOMIA ............................................................................................ 28

5 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 34

6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 35

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1. INTRODUÇÃO

Em uma sociedade em que a cada dia o surgimento e aprimoramento de

inovações biomédicas e avanços tecnológicos estão surgindo, nem sempre o que se

é tecnicamente possível é admissível juridicamente ou até mesmo moral, e a partir

deste conflito a doação e o transplante de órgãos se insere e deverá buscar um norte

para não estar fadado ao retrocesso e desrespeito humano.

Outrossim, a coerção legislativa através da intervenção Estatal deve ser mais

forte do que a disposição da vontade e respeito à Dignidade da Pessoa Humana?

O presente estudo tem por objetivo analisar a lei de doação e transplante de

órgãos à luz do Biodireito, bem como, a busca pelo respeito à autonomia da vontade

e os vários problemas que envolvem a seara.

Sobre a temática, serão tratados assuntos pertinentes à legislação, sua

regulamentação, os princípios de Biodireito, da Constituição Federal Brasileira e

éticos; juntamente com todo o histórico sobre o consentimento do ato de doação ou

transplante de órgãos, sua não comercialização e assuntos pertinentes ao tráfico ilícito

do mesmo.

Muito se fala sobre o ato de doar ou transplantar órgãos humanos, mas a

realidade é que ainda hoje, há pouco conhecimento e regulamentação sobre a

vontade e autonomia de quem quer realizar o feito.

Destarte, dentro de uma ótica norteadora, será analisada a constitucionalidade

de alguns dispositivos de lei. A contraposição legislativa com o princípio constitucional

da Dignidade da Pessoa Humana, o direito fundamental à vida e discussões acerca

do direito da personalidade; poder de disposição do seu próprio corpo, integridade

física e a liberdade de consciência de cada um, também serão amplamente

abordados.

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2. BIOÉTICA E BIODIREITO

Diante do grande avanço da humanidade, nada mais certo do que a evolução

da ciência, tecnologia e costumes, trazendo não apenas direitos, mas também

deveres.

A utopia ou ficção científica vem tornando-se pouco a pouco realidade fática e

social trazendo inúmeros benefícios, que; porém, na medida errada, consequentes

riscos e desrespeitos.

Questiona Maria Helena Diniz:

Com os transtornos e destruições causados por guerras mundiais, com a possibilidade de transformação do patrimônio genético, com o triunfo da revolução biotecnológica e da fissão nuclear e com o crescente poder

tecnológico sobre o corpo e a mente, como se poderia falar, num ambiente de diálogo livre e respeitoso, em sadia qualidade de vida e dignidade da pessoa humana sem as pautas indicadas pela bioética e pelo biodireito?

(DINIZ, 2010, Prefácio XXIII)

Neste período, a ciência deixa de restringir-se a objeto de interesse do cientista

e do homem culto, e passa a incitar fortes transformações nas mais diversas esferas

da vida: das organizações sociais às organizações políticas e econômicas, do

ambiente natural à indústria, ao trabalho intelectual e à vida familiar. (Russel, 2005, p.

27)

É visível o avanço científico e tecnológico nas diversas áreas aplicadas, mas

aqui; o foco será mantido na saúde humana.

Inegável constatar sua extensão, relevância, aplicação, benefícios alcançados

e qualidade de vida através de fármacos mais eficazes, terapias mais modernas,

combate à dores e doenças latentes, aparelhos e procedimentos médicos novos; com

isto aumentando não apenas a expectativa da sobrevivência humana, mas também

os antônimos que amodernidade nos traz, quiçá, a vontade de “brincar de Deus”.1

A bioética surge a partir do questionamento sobre os reais benefícios que todos

estes atuais avanços científicos, experimentais e tecnológicos efetivamente trarão

para a humanidade, assim como o temor de que os valores até entãocultivados e

1 “Com esta nova faceta criada pela biotecnociência, que interfere na ordem natural das coisas para “brincar de Deus”, surgiu uma vigorosa reação da ética e do direito, que, aqui, procuramos ressaltar, fazendo com que o respeito à dignidade da pessoa humana seja o valor -fonte em todas as situações, apontando até onde a

manipulação da vida pode chegar sem agredir”. (DINIZ, 2010. Prefácio XXIV)

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considerados importantes e fundamentais, sejam violados e ceifados por práticas

abusivas, com fins escusos ou até mesmo discriminatórios.

Segundo Letícia Ludwig Möller:

A Bioética veio delineando-se de modo particular a partir do segundo pós- guerra, com a terrível descoberta de que experimentos genéticos de

finalidade eugênica eram realizados em campos de concentração nazistas, e ao longo das décadas posteriores, com o desenvolvimento de inúmeras possibilidades de intervenção no organismo humano. A preocupação ética

com as possíveis aplicações dos novos conhecimentos científicos e biotecnológicos à saúde humana (também ao ecossistema), bem como com aquilo que já vinha sendo feito sem a existência de regulação e controles, fez

nascer um novo campo de estudo destinado à reflexão e discussão interdisciplinar acerca de questões delicadas e complexas tais como as que envolvem o início e o fim da vida, a doença, a relação médico-paciente, a

realização de pesquisas e experimentos e o uso dos seus resultados, as políticas públicas de assistência à saúde, as tomadas de decisão no caso concretos e a elaboração de normas nacionais e internacionais sobre estes.

(MÖLLER, 2007, p. 231 e 232)

Depois de tantos embates a respeito da temática aqui posta em xeque, verifica-

se então a necessidade de uma ordem, um controle, um limite às realizações da

ciência e seus avanços, aplicações e procedimentos, impedindo abusos e buscando

o equilíbrio. É justamente este equilíbrio que, a ética, bioética e o direito procuram

estabelecer, fazendo uma ponte entre o progresso e o cuidado para não haver a falta

de respeito humano, mais a segurança jurídica que é grande aliada no combate aos

excessos que podem ser constantemente cometidos sem uma possível ordem

norteadora.

Mas qual seria então a definição, de Bioética? Aqui nos servem de base

algumas definições:

Nas palavras de Leo Pessini e Christian de Paul Barchifontaine, “bioética

estuda a moralidade da conduta humana no campo das ciências da vida,

estabelecendo padrões de conduta socialmente adequados”. (PESSINI, 1994, p. 97)

Já, Aluízio Borem e Fabrício R. Santos aduzem que “a bioética estuda a visão

moral, as decisões de conduta e aspectos políticos do comportamento humano em

relação aos fatos e fenômenos biológicos”.(BOREM, 2001, p. 209)

Para a ilustre estudiosa Maria Helena Diniz:

A bioética deverá ser um estudo deontológico, que proporcione diretrizes morais para o agir humano diante dos dilemas levantados pela biomedicina,

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que giram em torno dos direitos entre avida e a morte, da liberdade da mãe,

do futuro ser gerado artificialmente, da possibilidade de doar ou de dispor do próprio corpo, da investigação científica e da necessidade de preservação de direitos das pessoas envolvidas e das gerações futuras.(DINIZ, 2010, p. 13)

Em respeito a esta “ordem norteadora” das questões bioéticas acima descritas,

surge assim o biodireito, tentando dar limites jurídicos a essas práticas e, começando

a dar passos concretos para sua regulamentação. Neste sentido disserta Maria

Helena Diniz:

[...] tem a vida por objeto principal, salientando que a verdade jurídica não poderá salientar-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade da pessoa humana, nem traçar

sem limites jurídicos, os destinos da humanidade. (DINIZ, 2010, p. 8)

No que tange a Constituição Federal Brasileira de 1988 à inteligência do seu

artigo 5º, IX, dentre os direitos e garantias fundamentais expressos em nossa carta

magna, está a liberdade de expressão da atividade científica, independentemente de

censura ou licença, porém, mister ressaltar que tal direito não poderá ser absoluto,

devendo, portanto, impor limitações em suas manipulações. Uma vez não imposto

limites na medida do bem geral da coletividade humana, danos irreparáveis poderão

ser cometidos, correndo o risco de que a ciência desmedida sobreponha à ética e ao

direito, ferindo veementemente a dignidade da pessoa humana e comprometendo

todo o destino da humanidade.

Sob a ótica de Vicente de Paula Barreto:

[...] faz-se necessário buscar estabelecer os princípios racionais que fundamentam a bioética, e como podem servir de parâmetros éticos na

formulação de políticas públicas. Estes princípios encontrarão nas normas jurídicas a sua formalização final. O Biodireito, assim, deverá encontrar

justificativas racionais que o legitimem. (BARRETO, 1999, p. 396 e 403; 2001,

p. 63,65, 67 e 74)

Ainda na definição dos autores Soares e Piñero, Biodireito é:

Ramo do saber jurídico, didaticamente autônomo, que tem por área de

conhecimento o conjunto das proposições jurídicas atinentes, imediata ou mediatamente, à vida, desde o momento em que surge um novo ser até o derradeiro momento em que não há mais vida, envolvendo, também, aquelas

que tem por escopo delimitar o uso das novas tecnologias biomédicas. [...] apreende o ordenamento jurídico de uma forma distinta dos outros ramos do saber jurídico. Somente ingressarão em seu campo de atenção as normas

jurídicas que tiverem a vida como centro de interesse, mas desde que relacionadas à nova medicina, com suas novas tecnologias e descobertas, afinal de contas, foram as novas indagações surgidas do avanço desta área

que impulsionaram o surgimento tanto da bioética como, por consequência, do biodireito. (SOARES E PIÑERO, 2002, p. 74)

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Finalizamos a definição de Biodireito com os ilustres dizeres de Diego Gracia:

Biodireito é a regulamentação jurídica da problemática da bioética, no sentido

em que formula as relações peculiares entre ética e direito que se inter-relacionam reciprocamente: ética como instância prática do direito e direito como expressão positiva da ética”. (GRACIA, 1989, p. 576)

2.1 PRINCÍPIOS BÁSICOS DA BIOÉTICA

São pautados basilarmente em quatro princípios e são estes que servirão de

parâmetro de suas investigações e diretrizes.

A) Princípio da Autonomia – segundo o Código de Ética Médica em seus artigos

24 e 31, requer por tal princípio, que o profissional da área da saúde respeite a

vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta, em certa

medida, seus valores morais e crenças religiosas. Reconhece o domínio do

paciente sobre a própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade,

restringindo com isso a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo

submetido a um tratamento; ou seja, desde que, com capacidade de atuar são,

com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou interferência externa,

tem o poder de autogovernar-se, fazendo suas opções com autonomia. Já,

aquele que tiver sua capacidade reduzida deverá ser protegido. Do princípio da

autonomia decorrem a exigência do consentimento livre e informado2 e a

maneira de como tomar decisões de substituição quando a pessoa for

incompetente ou incapaz.

B) Princípio da Beneficência–nas palavras de Adriana Maluf:

Refere-se ao atendimento do médico e dos demais profissionais da área da

saúde, em relação aos mais relevantes interesses do paciente, visando seu bem-estar, evitando-lhe quaisquer danos. Baseia-se na tradição hipocrática de que o profissional da saúde, em particular o médico, só pode usar o

tratamento para o bem do enfermo, segundo sua capacidade e juízo, e nunca para fazer o mal ou praticar a injustiça. No que concerne às moléstias, deverá ele criar na práxis médica, o hábito de auxiliar ou socorrer, sem prejudicar ou

causar mal ou dano ao paciente. (MALUF, 2013, p. 11)

Cabe aqui esclarecer que não é o caso de distribuição dos meios do bem e do

mal, e sim ressaltar que, em casos de situações conflitantes, deve-se maximizar os

2Termo retirado do Código de Ética Médica, arts. 12, 13, 22, 34, 44 e 101.

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benefícios, minimizando possíveis riscos e procurar sempre a maior porção possível

de bem em relação ao mal para o paciente.

C) Princípio da Não Maleficência – este princípio tem como lema, a obrigação de

não acarretar dano intencional sendo também um desdobramento do da

Beneficência e deriva-se da máxima da ética médica: “primum non nocere”.3

D) Princípio da Justiça–Requer a imparcialidade para com todas as pessoas,

sendo também assim, na distribuição dos riscos e benefícios da prática médica

por todos os profissionais da área da saúde, evitando discriminação e tratando

a todos os que estiverem nas mesmas condições igualmente.4

Conforme o que elenca José Roberto Goldim:

Entende-se por justiça distributiva como sendo distribuição justa, equitativa e apropriada na sociedade, de acordo com normas que estruturam os termos da cooperação social. Uma situação de justiça, de acordo com essa

perspectiva, estará presente sempre que uma pessoa receberá benefícios ou encargos devidos às suas propriedades ou circunstâncias particulares. (GOLDIM, 2002, online)

2.2 PRINCÍPIOS BÁSICOS DO BIODIREITO

Como anteriormente descrito, o biodireito pode ser definido como uma nova

ramificação do estudo jurídico, resultante do encontro entre a bioética e o direito,

buscando estabelecer limites na conduta dos profissionais envolvidos nesta área. Tem

como mote, a dignidade da pessoa humana, estabelecendo se as condutas

empregadas são lícitas e estão de acordo com os valores, princípios e normas que

protegem a vida humana, interferindo quando necessário nas formas e mecanismos

de sua manipulação.

3Princípio hipocrático que significa: “antes de tudo, não cause dano,não prejudique o paciente”. “Este pensamento não deve ser causa de receio ou medo por parte de médicos ou outros profissionais da saúde quanto aos cuidados administrados a um paciente, mas sim uma base sobre a qual devemos estar constantemente

pensando, para que lembremos que há riscos envolvidos em todo e qualquer momento para o doente, desde a tomada de uma medicação fundamental para um tratamento, mas que pode gerar uma reação adversa, até algo mais grave como uma cirurgia realizada no membro são ao invés de ser realizada no membro doente.

http://www.medicinanet.com.br/conteudos/biblioteca/901/introducao__primum_non_nocere.htm 4 Já dizia Aristóteles: “Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. O jus fi lósofo ao contrário do que se possa pensar de que estaria ele disseminando o preconceito entre as diferenças, queria apenas mostrar que elas existiam, que fossem tratadas como tais e que tivessem a

finalidade principal de integrar a sociedade e promover a dignidade entre elas.

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Pode-se dizer então que se, a bioética liga-se com assuntos que envolvem a

vida e a morte das pessoas como por exemplo: o aborto, métodos de fecundação e

natureza do embrião, eutanásia, manipulação genética, clonagem, transplante e

doação de órgãos, entre outros, o biodireito norteia para que haja respeito no

provimento de cada um desses atos, tendo como referência a proteção e dignidade

humana.

Nas palavras de Maria Helena Diniz:

Biodireito tem a vida por objeto principal, salientando que a verdade jurídica

não poderá salientar-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar sem limites jurídicos, os destinos da humanidade. (DINIZ, 2010, p. 8)

Mister se faz destacar os mais importantes princípios aplicados ao biodireito,

vez que, diversos são os princípios e o biodireito não está reunido em uma única lei.

São eles:

A) Princípio da Autonomia – ligado à disposição de sua própria vontade; ao

autogoverno humano. Destarte a pessoa envolvida ter direito a tomar suas

próprias decisões sobre os tratamentos médicos e experimentação

científica às quais será submetida, todas as decisões clínicas deverão ser

tomadas conjuntamente entre médico e paciente, respeitando a vontade e

autonomia do acometido.

B) Princípio da Beneficência–intimamente ligado ao bem estar físico e mental

do paciente que receberá o atendimento médico ou experimentação

científica. O tratamento somente será usado para o bem, com o intuito de

socorrer ou auxiliar, jamais prejudicando ou causando mal ou dano, sendo

que o profissional que executará o procedimento voltará seu trabalho à

práxis da moral na pesquisa científica.

C) Princípio da dignidade da pessoa humana – É uma garantia e um princípio

constitucional fundamental norteador e basilar para toda e qualquer norma

jurídica, à luz do artigo 1º, inciso III da Constituição Federal da República,

pode-se dizer que é coluna vertebral do biodireito. Nunes leciona que:

[...] acontece que nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha – ou, tem o direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e

psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu

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pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto

é, sua liberdade -, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade. (NUNES, 2000, p. 49)

Maria Helena Diniz arremata dizendo que “para a bioética e o biodireito, a vida

humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim, de vida

com dignidade”. (DINIZ, 2010. p. 18)

D) Princípio da Justiça – segundo Adriana Maluf refere-se “à imparcialidade da

distribuição dos riscos e benefícios de todos os envolvidos na pesquisa

científica e nas práticas médicas, seja no âmbito nacional quanto no

internacional”. (MALUF, 2013, p. 18)

E) Princípio da cooperação entre os povos – Primeiramente deixa-se claro que

a aplicação deste, em nada altera a soberania dos Estados ou abala o

princípio da autodeterminação dos povos como disciplina o artigo 4º da

nossa carta magna, apenas refere-se ao livre compartilhamento das

experiências científicas realizadas e do mútuo auxílio tecnológico e por que

não, financeiro entre os países, viabilizando a preservação das espécies

viventes e também do meio ambiente.

F) Princípio da igualdade – Aristóteles, o nome filósofo jus naturalista já dizia:

“tratar desigualmente os desiguais, e igualmente os iguais”. Diante disso,

de profunda e elevada importância em nosso ordenamento jurídico se a faz

a prática de tal princípio, vez que, não é possível uma sociedade livre, justa

e solidária conforme dispõe a nossa Constituição Federal, se a prática

necessária para se alcançar tais objetivos não estiver intimamente ligada

aos ditames da igualdade. Caberá ao biodireito a ponderação desses

valores sob a égide dos graus de necessidade, emergência ou utilidade no

caso concreto a se aplicar.

G) Princípio da Informação – Com fulcro no artigo 5º, inc. XIV da CF, é

assegurado a todos o acesso à informação [...]. Tudo o que diz respeito à

pessoa e ao seu interesse é assegurado ao indivíduo. Portanto, é garantia

de quem será submetido a todo e qualquer tratamento ou experimento

científico, receber todas as informações sobre estes para que possa

expressar o seu livre e consciente consentimento.

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H) Princípio da inviolabilidade da vida – o biodireito deverá resguardar ao

máximo a vida do indivíduo de todos e quaisquer procedimentos e

experimentos científicos que envolvam seres humanos. Dado que a vida é

o bem maior, no próprio artigo 5º da CF está consagrado o princípio da

inviolabilidade do direito à vida, sendo este um direito e garantia

fundamental assegurado constitucionalmente pelo Estado brasileiro.

I) Princípio da proteção à saúde –No que tange a saúde, o artigo 196 da

Constituição Federal, consagra que a saúde é direito de todos e dever do

Estado, porém, é impossível falar em saúde sem liga-la à dignidade da

pessoa humana e à inviolabilidade do direito à vida. Insere-se neste

contexto o biodireito, que impedirá que os procedimentos a serem

realizados no indivíduo, venham a provocar o comprometimento em sua

saúde.

J) Princípio da precaução – Intimamente ligado ao Princípio da proteção à

saúde, este; impõe em casos de dúvidas quanto aos riscos que poderão ser

causados pelos procedimentos a serem feitos a proibição da autorização do

exercício da referida atividade. Ainda inclui neste rol os riscos que poderão

ser causados ao meio ambiente e às espécies, além dos danos causados

aos seres humanos. Neste sentido Adriana Maluf:

[...] toda vez que determinada prática fosse potencialmente causadora de um dano indesejável, deveria a parte interessada comprovar a sua segurança ou desaconselhar-se-ia a prática, sob pena de indeferimento da licença para o

exercício da atividade desejada. No âmbito do biodireito, tal princípio implicaria na impossibilidade de se efetuar qualquer pesquisa científica até que se comprove a inexistência de consequências maléficas – diretas ou

indiretas – para o ser humano. Não se trata de se provar o risco da atividade para, só depois, impedir-se a sua continuação. Trata-se, sim, de impor ao interessado na realização da atividade o dever de comprovar a inexistência

de risco, sob pena de proibição da prática da atividade científica que se deseja praticar. (MALUF, 2013, p.19)

3. DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

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Com o passar dos anos, aumentou-se consideravelmente o número de pessoas

que necessitam de tratamentos para dar acalento à sua saúde e esperança às famílias

que esperam vê-los novamente desfrutando de vida com qualidade e novas

possibilidades de cura. Com este aumento, houve também o surgimento de diversos

outros métodos e técnicas para se alcançar o resultado na continuidade da vida

natural. Pessoas muitas vezes em sofrimento constante e que lutam a cada dia por

sua sobrevivência aguardam a generosidade humana através de doações e

transplante de órgãos.

Esclarece a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Eisntein em seu site que:

A doação pode ser de órgãos (rim, fígado, coração, pâncreas e pulmão) ou

de tecidos (córnea, pele, ossos, válvulas cardíacas, cartilagem, medula óssea e sangue de cordão umbilical). A doação de órgãos como o rim, parte do fígado e da medula óssea pode ser feita em vida.Para a doação de órgãos

de pessoas falecidas, somente após a confirmação do diagnóstico de morte encefálica. Tipicamente, são pessoas que sofreram um acidente que provocou traumatismo craniano (acidente com carro, moto, quedas etc.) ou

sofreram acidente vascular cerebral (derrame) e evoluíram para morte encefálica. (2015, online)

Adriana Maluf relata:

Diante do inegável avanço da medicina desde o último século e a constante necessidade de salvar vidas utilizando-se de técnicas novas, criou-se a

possibilidade da realização de transplante de órgãos e tecidos “levando à valorização do corpo humano como repositório de matéria-prima”. (MALUF, 2013, p.332)

Define Ricardo Antequera Parilli que “transplante de órgãos é a retirada de um

órgão ou material anatômico proveniente de um corpo, vivo ou morto, e sua utilização

com fins terapêuticos em um ser humano”. (PARILLI, 2010, p. 22)

Para Maria Helena Diniz, “transplante é a amputação ou ablação de órgão, com

função própria de um organismo para ser instalado em outro e exercer as mesmas

funções”. (Diniz, 2010, p. 330).

O transplante de órgãos pode significar também, simplesmente, um enxerto ou

implante. Como argumenta Daisy Gogliano que sistematizou esta matéria e

esclareceu que “o vocábulo transplante, no vernáculo, pode, às vezes, aparecer como

sinônimo de enxerto ou de implante”. (GOGLIANO, 1986, p.43)

Cabe, pois, uma explicação do parágrafo supra citado.

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Enxerto, na propriedade linguística e segundo Todoli é:

A secção de uma porção do organismo, próprio ou alheio, para a instalação

no mesmo organismo ou no de outrem, com fins estéticos e terapêuticos, sem exercício de função autônoma. É a inserção de um tecido em outro local, para que seja parte integrante deste, caso em que se denomina enxerto

plástico.(TODOLI, 1968, p. 213)

Maria Helena Diniz explica que:

Apesar dessa diferenciação, há quem empregue o termo transplante como

sinônimo de enxerto, considerando-os a intervenção cirúrgica com a qual se introduz no organismo do receptor um órgão ou tecido retirado do doador. Já o implante, por sua vez, dá-se quando tecidos mortos ou conservados são

incluídos no corpo de alguém, e reimplante, quando se reintegram ao corpo humano segmentos traumaticamente dele separados, como dedos, orelhas, nariz, pedaços de pele, couro cabeludo, etc.(DINIZ, 2010, p. 331)

Em relação aos benefícios que o transplante pode trazer a quem dele

necessita, Garcia reflete:

Para a maioria dos pacientes urêmicos crônicos, o transplante oferece a

melhor oportunidade de sobrevida a longo prazo e de reabilitação, com menor custo social que a diálise. Para aqueles enfermos com cardiopatia, hematopatia ou pneumopatia terminal, é, ainda de maior valor, por ser a única

opção terapêutica capaz de evitar a morte certa em poucos meses, oferecendo a expectativa de uma nova vida. [...] os transplantes de órgãos e tecidos, assim, tem se convertido em última fonte de esperança de vida para

pacientes portadores de várias doenças, em particular, devido às melhorias em termos de técnicas cirúrgicas, cuidados intensivos e utilização de drogas imunossupressoras, passando de um procedimento extremamente arriscado

a intervenções de sucesso e significativa de reabilitação dos pacientes. (GARCIA, 2000, p. 19, 165)

3.1 APONTAMENTOS HISTÓRICOS DA DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

Embora se possa pensar que o ato de transplantar e doar órgãos é resultado

de técnicas médicas recentes, há referências da realização destas por volta do ano

750/800 a.C pelos hindus.

A técnica supra foi uma reconstrução facial transplantando um pedaço de pele

da testa. Na Antiguidade encontramos dados concretos de sua ocorrência, tais como

há 300 anos a.C quando a tradição chinesa aponta a troca de órgãos entre dois

irmãos. Ainda, estudos arqueológicos feitos na Grécia, Egito e América pré-

colombiana registram transplante de dentes e durante a era medieval, o transplante

de perna efetuado pelos santos médicos Cosme e Damião.

19

Nos séculos XV e XVI foram prescritos vários experimentos primitivos de

extração de tecido animal para os homens, mas contudo, devido às inúmeras

infecções, muitas vezes não obtinham sucesso.

Destarte, o primeiro transplante científico realizado com êxito foi o renal,

ocorrido em Viena, por Emerich Ullman, no ano de 1902, onde os rins de um cão foram

implantados em seu próprio pescoço. Em 1906 foi a vez de um ser humano receber

rins de cabra e porco, porém, este não foi bem sucedido.

Em meados dos séculos XIX e começo do século XX, os inconvenientes

mencionados foram superados através dos princípios basilares das modernas

técnicas cirúrgicas, quais sejam, refinamento instrumental, assepsia,

antibioticoterapia, aplicação de testes imunológicos de combate à rejeição e assim, o

transplante passou a ser considerado método científico.

Após inúmeras tentativas frustradas e muita polêmica gerada em torno do

assunto, a primeira cirurgia que obteve sucesso foi a de transplante renal, no ano de

1954, em Boston, quando o médico Joseph Murray, extraiu o rim de um gêmeo para

implantar em seu irmão. A partir deste momento, foi uma constante de acertos

cirúrgicos, implacando em 1963 o primeiro transplante de fígado e de pulmão pelo

americano Starzl, depois o primeiro transplante de pâncreas e, 1968 quando a técnica

ganhou verdadeira repercussão e reconhecimento mundial através de um transplante

cardíaco realizado por Christian Barnard.

No Brasil, o primeiro transplante de órgão realizado, ocorreu no ano de 1965,

no hospital das Clínicas de São Paulo, pelo professor Geraldo de Campos Freire. Foi

um transplante renal.

Em 1968, mais um avanço no Brasil, foi realizado o primeiro transplante de

doador cadáver da América do Sul, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina

de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), sendo esse um transplante

de rim. A técnica foi executada pelo professor Antônio Carlos Pereira Martins e

transmitida ao também professor Antônio Fernando D. Maynard.

Em 25/09/2013 o Ministério da Saúde brasileiro divulgou dados do balanço de

transplantes do primeiro semestre do mesmo ano. Segundo estes, dobrou no Brasil

nos últimos dez anos o número de doadores, passando de 7500 para 15141 cirurgias.

20

Os avanços nacionais não pararam por aí, sendo o Brasil, responsável pelo

maior sistema público de transplante do mundo, possuindo 27 centrais de notificação,

captação e distribuição de órgãos, 11 câmaras técnicas nacionais, 748 serviços

distribuídos em 467 centros, 1047 equipes de transplantes e 71 organizações de

procura por órgãos.5

Hoje em dia, cerca de 95% dos transplantes do Brasil são realizados pelo

Sistema Único de Saúde(SUS).

Dispõe o Dr. José O. Medina Pestana, presidente da Associação Brasileira de

Transplante de Órgãos (ABTO) e professor da Universidade Federal de São Paulo:

[...] se considerarmos todos os fatores que impedem que uma notificação de potencial doador se concretize em uma real doação, como contraindicação médica, a recusa familiar ainda representa quase a metade deles. [...] Embora

pesquisas comprovem que a vontade de ser um doador é muito maior do que o número real, é triste saber que, na maioria dos casos, esse último desejo não se realiza simplesmente pela falta de diálogo familiar. Vencer esta

barreira depende de um gesto simples. Converse com a sua família e ajude a salvar milhares de pessoas que hoje esperam por uma doação”. (Site Saúde Plena, 2013, online)

3.2 CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO

A literatura médica apresenta quatro espécies de transplante, quais sejam:

xenotransplante, autotransplante, isotransplante e alotransplante.

A) Xenotransplante: é aquele que ocorre da transferência de órgão ou tecido

animal para o ser humano. Esta técnica começou no século XVIII quando foram

transplantadas córneas de cães e gatos para seres humanos.

B) Autotransplante: nesta técnica, o paciente utiliza-se de certa parte de órgão ou

tecido do seu próprio corpo para a realização de implante em outra, sendo este,

doador e receptor. Ressalta Maria Helena Diniz que o autotransplante pode dar-

se com a anuência da própria pessoa, registrada em seu prontuário médico,

5Dados tirados do site Saúde Plena que versa sobre os dados numerológicos da Doação e Transplante de órgãos, Disponível em : http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2013/09/25/noticia_saudeplena,145638/brasil-dobra-

o-numero-de-doacoes-de-orgaos-em-dez-anos.shtml. Acesso em 21/03/2015.

21

ou, se ela for incapaz, com a de um de seus pais ou responsável legal (Lei n.

9434/97, art. 9º, §8º). (DINIZ, 2010, p.332)

C) Isotransplante:se dá nos casos de pessoas com características genéticas

idênticas, como o caso de gêmeos univitelinos.

D) Alotransplante:nesta espécie, o doador que pode estar vivo ou morto e o

receptor, não possuem características genéticas idênticas.

Nas palavras de Maria Helena Diniz:

É preciso esclarecer que o transplante em qualquer dessas modalidades somente poderá ser realizado em paciente com doença progressiva ou

incapacitante, irreversível por outras técnicas terapêuticas. Esse tratamento deverá ser levado a efeito por estabelecimento de saúde, público ou particular e por equipes médico-cirúrgicas devidamente credenciadas pelo órgão de

gestão nacional do SUS e mediante autorização da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes [...], concedida somente depois da realização no doador de todos os testes de triagem para o diagnóstico de

infecções e afecções, principalmente em relação ao sangue. A autorização isolada para a retirada ou acompanhamento pós transplante de tecidos, órgãos, células ou partes do corpo humano estará condicionada a supervisão

técnica, formalmente estabelecida de equipe especializada autorizada para a realização de transplantes (art. 20, §4º, do Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes). (DINIZ, 2010, p. 333)

Antonio Chaves, conceitua doador como sendo a” pessoa que não implica em

nenhum momento sobre a disponibilidade gratuita do próprio corpo. É pessoa maior e

capaz, apta a fazer doação em vida ou pós morte de tecidos, órgãos ou parte de seu

corpo, com fins terapêuticos e humanitários.(CHAVES, 1994, p. 249)

O mesmo autor Antonio Chaves define receptor como o “indivíduo em

condições de receber por transplante de tecidos, órgãos ou partes do corpo de outra

pessoa viva ou morta e que apresenta perspectivas fundadas de prolongamento de

vida ou melhoria de saúde. (CHAVES, 1994, p. 249)

3.2.1 A comercialização de órgãos

O mercado humano é tão antigo quanto os relatos de transplantes, percorrendo

os anos de forma esparsa até o seu desenvolvimento acelerado no século XX. Assim

como os transplantes estavam presentes desde tempos imemoriais em suas formas

mais grotescas, o sucesso envolvendo órgãos e tecidos aumentou, amentando

também a demanda rapidamente, causando carência na provisão de estruturas

22

humanas para suprir essas finalidades, levando assim à inevitável discussão acerca

do comércio de órgãos e tecidos nesta área.

O assunto a partir de então, tornou-se preocupante no cenário mundial,

dispondo sobre o tema Volnei Garrafa:

A principal razão do crescimento do mercado neste campo está assentada

basicamente nas mesmas e velhas razões históricas que originaram a acumulação exagerada de capital: a insaciável sede de lucro, e crônicos desequilíbrios mundiais verificados entre a oferta, a demanda e o acesso aos

serviços de saúde. [...]O extraordinário impulso experimentado pela ciência e pela tecnologia médica trouxe grandes benefícios para a sociedade, por outro lado, criou alguns impasses, como, em matéria de transplantes, o suprimento

de estruturas humanas para atender às finalidades terapêuticas”. (GARRAFA, 1998, p. 206)

Fica claro constatar que ao mesmo tempo que a ciência trouxe grandes

avanços para a sociedade, trouxe juntamente alguns problemas a serem analisados

e discutidos.

Embora exista uma escassez mundial de órgãos disponíveis para transplante,

ainda assim, a sua comercialização é ilegal em todos os países, com exceção do Irã.

Anteriormente na China, os órgãos eram frequentemente adquiridos de

prisioneiros executados, e, mesmo através de uma frouxa regulamentação, ainda

assim sofreu escassez de órgãos para transplante.

Severas foram as críticas ao país, e depois do governo chinês, receber escrutínio

austero do resto do mundo, aprovou legislação terminando com a venda legal de

órgãos e tecidos.

Na Índia, antes de haver a aprovação da Lei de Transplante de órgãos humanos

no ano de 1994, o país possuía mercado legal na área, onde o baixo custo e a

disponibilização transformou o país em um dos maiores pólos de transplante renal do

mundo. Porém, durante este período, inúmeros problemas começaram a surgir e

contribuíram para que o governo indiano aprovasse legislação impedindo a venda de

órgãos.

Nas Filipinas, até março de 2008 a comercialização era legal, porém, após este

período há expressa proibição do ato.

Hoje, o único Estado que permite a prática da comercialização de órgão é o Irã.

Para o país, a venda de um dos rins para obter lucro é legal e não tem listas de espera.

A Associação de Caridade para o Apoio a Pacientes Renais e a Fundação de Caridade

para Doenças Especiais tem o apoio do governo para controlar a mercantilização.

23

Dentre os inúmeros motivos para a proibição da prática e comercialização de

órgãos humanos, os abusos sofridos na área, pode desacreditar o progresso

científico, impedindo que o real motivo – salvar ou prolongar a vida humana – vire

motivo de repulsa ou medo em massa. Explico: Ainda há muita polêmica em torno do

tema, e o surgimento do mercantilismo orgânico tem levado muitos doadores

potenciais a abandonar a decisão de algum dia virem a doar seus órgãos. Outrossim,

o tráfico e comercialização de órgãos está intimamente ligado à pobreza, fortes

desigualdades sociais e culturais, má estrutura para captação de transplantes, falta

de informação e entendimento às leis que versam sobre o enredo.

Esclarece Almeida:

O maior fator que agrava o tráfico de órgãos é a nossa legislação, se a lei

realmente suprisse a procura de órgãos, não existiria tráfico de órgãos, mas como a falta de órgãos é um problema crítico, os traficantes usam isto para ganhar dinheiro, enquanto os que podem pagar compram a sua saúde.

(ALMEIDA, 2000, p. 88)

No Brasil, a comercialização de órgãos é terminantemente proibida. A Lei

9434/97 estabelece a Política Nacional de Transplante de Órgãos e Tecidose tem

como escopo regulamentar e combater o comércio com punição para quem pratica o

ilícito.

3.3 NORMATIVA

3.3.1 Evolução legislativa

A Lei 4280 de 06/11/1963 foi o primeiro diploma normativo a regulamentar a

matéria que dispunha sobre a extirpação de órgão ou tecido da pessoa morta. O

dispositivo permitia apenas a doação de córneas de pessoa já falecidas e que

manifestaram expressamente em vida a sua vontade, ou então, através de

consentimento do cônjuge ou parente até segundo grau. Ainda poderia ter o

consentimento através das corporações religiosas ou civis das quais fazia parte.

Surge então a Lei 5479/68, revogando a anterior e inovando quanto ao seu

conteúdo, permitindo além da doação “post mortem”, a possibilidade de o indivíduo

capaz, dispor de tecidos e órgãos, inclusive do corpo vivo. Porém, apesar da inovação,

esta não nunca foi regulamentada, causando obstáculos e dificuldades diversas em

sua efetiva e correta aplicação.

24

Atento à questão de que as leis supracitadas restaram ineficazes para o

aumento na oferta de órgãos doados, o legislador brasileiro em seu artigo 199, §4º da

Nossa Carta Magna, disciplinou sobre as condições e requisitos que facilitariam a

remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante,

pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e

seus derivados, proibindo qualquer tipo de comercialização.

Em 1992 a Lei 8489/92 juntamente com o Decreto 879 de 22/07/1993,

determinou que se acaso a pessoa não manifestasse em vida a sua vontade de

realizar a doação de seus órgãos e tecidos, poderia a família realizar a autorização de

forma verbal para o médico, porém, ainda assim não houve êxito no propósito de

aumentar o número de doações, dando asas à edição da Lei 9434 de 05 de fevereiro

de 1997, regulamentada pelo Decreto 2268 de 30 de julho de 1997. Houve a criação

do Sistema Nacional De Transplantes (SNT) com objetivo mor de captar e distribuir

órgãos e partes do corpo humano para fins terapêuticos e intuito de prolongamento

da vida. Os integrantes do SNT são: o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde

dos Estados, Distrito Federal e Municípios ou órgãos equivalentes, estabelecimentos

hospitalares autorizados e rede de serviços auxiliares à execução da atividade de

transplante.

Tal lei, dispõe sobre a retirada de órgãos e tecidos do corpo humano com a

finalidade de realização de transplantes em vida ou pós morte.

3.3.2 . A Lei 9434/97 e sua modificação pela Lei 10211/01

No Brasil, a comercialização de órgãos é vedada pelo texto constitucional de

nossa Carta Magna em seu artigo 199,§4º, entretanto, a disposição gratuita destes é

legalmente permitida e está amparada na Lei 9434/97. A lei estabelece algumas

condições para que o ato possa ser efetuado, embora também tenha gerado bastante

polêmica a respeito do assunto.

Nosso Código Civil de 2002 no que tange o interesse pecuniário no ato é

explícito em seu artigo 14: “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição

gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”.

25

No artigo 1º da referida Lei, declara-se a disposição gratuita de tecidos, órgãos

e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e

tratamento. Em seu artigo 2º, fica expressamente declarado que tal procedimento só

poderá ser realizado por estabelecimento de saúde, público ou privado e por equipes

médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de

gestão nacional do Sistema Único de Saúde. Aduz Maria Helena Diniz a respeito do

assunto:

À luz da Lei nº 9434/97, art. 1º, que regula os transplantes, é admitido o ato de disposição gratuita de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post

mortem para fins científicos ou de transplantes em pacientes com doença progressiva ou incapacitante, irreversível por outras técnicas terapêuticas. Consagra ainda o princípio do consenso afirmativo pelo qual a pessoa capaz

deve manifestar a sua vontade de dispor de seu corpo gratuitamente, no todo ou em parte, para depois de sua morte, com objetivo científico: estudo de anatomia nas universidades ou terapêutico – realização de transplantes.

Existe o direito de revogação dessa disposição a qualquer momento. (DINIZ, 2010, p. 25)

O dispositivo ainda prevê que a doação e realização de transplantes deverá ser

feita de forma voluntária e tece algumas diferenças entre o procedimento inter vivos e

pós morte. Quais sejam: De acordo com a Lei 9434/97, a doação de qualquer parte

do corpo poderá ocorrer post mortem, desde que, precedida de diagnóstico de morte

encefálica, a qual deverá ser constatada e registrada por dois médicos estranhos à

equipe de remoção de transplante. Serão utilizados critérios clínicos e tecnológicos

definidos por Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) e os resultados,

laudos e prontuários médicos alusivos à morte encefálica do paciente juntamente com

os atos cirúrgicos relativos aos transplantes, deverão ser mantidos em arquivos da

instituição por no mínimo cinco anos conforme artigo 3º, §1° da Lei.

O Conselho Federal de Medicina em sua resolução nº1480/97 estabelece

critérios para se declarar a morte encefálica do paciente, que serão dotados de

critérios clínicos (coma aperceptivo com arreatividade inespecífica, ausência de

reflexo corneano, positividade do teste de apneia, entre outros) e complementares

(ausência de atividade bioelétrica ou metabólica cerebral).

Ainda sobre a Lei 9434/97 em seu procedimento pós morte do paciente, esta,

em seu artigo 4º determina que a retirada de órgãos e tecidos de pessoas falecidas

dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha

sucessória, reta e colateral, até o segundo grau inclusive, devendo ser firmada em

26

documento subscrito por duas testemunhas que presenciaram a verificação da morte

do doador.

Se acaso a pessoa falecida for incapaz, o artigo 6º da Lei em questão,

determina que a retirada poderá ser feita desde que permitida por autorização

expressa dos pais ou responsáveis legais, sendo terminantemente proibida a remoção

de órgãos, tecidos ou partes do corpo de pessoas não identificadas.

Em relação à doação entre vivos, também é permitida e conta com alguns

requisitos como o de ser pessoa juridicamente capaz. Neste caso, a doação poderá

ser feita para fins terapêuticos ou para transplantes ao seu cônjuge ou parentes

consanguíneos até o quarto grau. Caso não seja parente, se faz necessária

autorização judicial, sendo dispensável apenas no caso de doação de medula óssea.

Para isto, o doador poderá dispor gratuitamente de parte de seu corpo, desde que,

não comprometa sua saúde, de tecidos, órgãos do corpo vivo. Outrossim, a lei autoriza

a retirada de um órgão duplo ou tecido, vísceras ou partes do corpo com vida com a

condição de não causar ao doador comprometimento de suas funções e aptidões

físicas e mentais.

Mister ressaltar que a doação poderá ser revogada a qualquer tempo tanto por

parte do doador, quanto por parte de seus representantes legais antes de sua

concretização efetiva. É o que dispõe o artigo 9º, §§ 3º a 8º da Lei 9434/97 e o Decreto

nº 2268/97, artigos 15, §§1º a 8º e 20, parágrafo único: “admite-se a doação voluntária

de órgãos e tecidos, feita preferencialmente por escrito e na presença de duas

testemunhas, por pessoa juridicamente capaz, especificando o órgão, tecido ou parte

do corpo que será retirado para a realização de transplante ou enxerto, desde que

haja a comprovação de necessidade terapêutica do receptor.

Maluf esclarece:

Assim, especificamente em relação à doação para a retirada em vida, só se admitem em hipóteses específicas que atendam os seguintes requisitos:

capacidade do doador, autorização judicial, justificativa médica e vínculo familiar específico entre doador e receptor. [...] No caso da condição de existência de vínculo familiar específico, trata-se de medida que visa impedir

a comercialização de partes do corpo, pois caso não existisse essa restrição legal, qualquer um poderia vender órgãos e alegar que estava fazendo uma doação. Seria impossível o controle da veracidade da alegação. (MALUF,

2013, p. 350, 351)

27

Disposição do artigo 13 do Código Civil brasileiro de 2002: “Salvo por exigência

médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição

permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes”.

A lei 9434/97 que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo

humano com finalidades de transplantes tanto em vida quanto pós morte causou

bastante polêmica, tendo sua redação modificada pela Lei 10211 de 23 de março de

2001. No artigo 4º da lei anterior, a qual se referia ao consentimento do doador para

doar seus órgãos pós morte, adotava-se o consentimento presumido, onde deduzia-

se doador toda pessoa capaz que não manifestasse disposição em contrário ainda

em vida. Obrigava as pessoas que não queriam ser doadoras que expressassem em

seus documentos a vontade contrária ao ato de doar.

Além de causar oportuno desconforto, o artigo provocou corrida aos órgãos de

registro causando indignação, muitas dúvidas e duras críticas por médicos,

operadores do direito e público em geral, entendendo que estaria contrariando uma

tradição cultural do povo brasileiro e que o ato de doar, deveria ser um gesto generoso

e não imposto goela abaixo através de lei a obrigação daquele feito.

Maria Helena Diz tece sua ilustre opinião sobre a presente Lei:

A questão de sua inconstitucionalidade pela estatização do corpo humano, devido ao fato de o Estado ficar com a disponibilidade de algo que não é seu,

pois, ao tornar, outrora, todo brasileiro que tivesse capacidade jurídica doador presumido de órgãos e tecidos humanos, violou direito da personalidade (art. 5º da CF), por desrespeitar o direito individual da pessoa à sua integridade

física e dignidade, consagrado constitucionalmente (art. 1º, III, da CF), e o princípio filosófico do controle do homem sobre seu próprio corpo vivo ou morto. Deveras, como a doação é um ato pessoal, ninguém, em regra, pode

doar algo em lugar de outrem, gesto que deve ser fruto da consciência e da solidariedade humana, isso representaria indubitavelmente, uma intromissão inconveniente do Estado na vida privada (art. 5º, X, da CF) e na liberdade

individual. Parece-nos que o governo não poderia ter obrigado os cidadãos a ser ou não doadores de órgãos ou tecidos. Essa forma de doação não teria sido também uma profanação do corpo humano, que, vivo ou morto, deve, na

verdade, ter o destino querido pelo seu proprietário?(DINIZ, 2010, p. 360)

Por outro lado, tal dispositivo não estava sendo obedecido pela classe médica,

que com o intuito de se resguardar, optou em se portar conforme a ética médica e

respeito aos familiares, pedindo sempre a estes a autorização para a remoção de

órgãos para fins de transplantes, gerando ainda mais insegurança jurídica quanto ao

assunto. Diante de extremo impasse, a Associação Médica Brasileira juntamente com

o Conselho Federal de Medicina, ficaram do lado de sua classe, aconselhando seus

28

membros a abster-se de qualquer ato contrário à manifestação dos familiares do

morto.

Dispõe Drumond acerca do embate:

Estava então estabelecido o conflito de uma lei que atentava contra a autonomia e os direitos individuais com uma sociedade pluralista e

democrática, na qual dever-se-ia promover um amplo debate para se obter uma conscientização que estimulasse a doação de órgãos, mas nunca ser obrigado a fazê-la, levando ao constrangimento, aqueles que, por razões

pessoais, assim não entendessem ou optassem. Por outro lado, os médicos brasileiros não se sentiam a vontade para promover a retirada de órgãos do morto, quando a sua família não consentia no procedimento, o que fez a

Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina aconselharem à classe médica abster-se de qualquer ato contrário à manifestação dos familiares do morto. (DRUMOND, 2009, ONLINE)

A Lei 10211/01 veio para tentar dirimir de vez a polêmica acerca do tema,

tornando sem efeito todas as manifestações de vontade constantes nos documentos

e adotando como norma o consentimento expresso, passando então a exigir

autorização dos familiares do falecido. Desta maneira, mesmo que o falecido tenha

manifestado verbalmente em vida à sua família a vontade de ser doador ou ainda que

este, tenha registrado declaração quanto ao assunto, ainda assim, a decisão final e

decisiva será de sua família.

Nas palavras de Drumond conclui-se:

Revogou-se na nova norma legal aquilo que mais feriu a cultura brasileira,

caracteristicamente refratária à imposição de qualquer natureza. [...] daí porque no Brasil a doação de órgãos para transplantes continuará sendo mais uma questão de consciência individual, e sobretudo, uma opção de solidária

e generosa fraternidade. (DRUMOND, 2009, online)

4. RESPEITO À AUTONOMIA

Apesar da boa intenção e finalidade altruística do legislador com o intuito de

aumentar o número de doações de órgãos e prolongar ou salvar vidas, alguns pontos

devem ser rebatidos e levados em consideração no que tange o certame da

autonomia.

Goldim em seu entendimento afirma que o critério adotado pela atual lei é um

retrocesso em nossa legislação, e questiona:

A atual proposta legal, em vigor desde março de 2001, onde só a família pode

decidir, pode trazer novas questões. A lei estabelece que a vontade do

29

doador, consignada nos documentos estabelecidos pela lei de transplantes,

não tem mais validade. Quem responde pela pessoa falecida? Pela lei é o cônjuge ou outros familiares. Quem tem o poder de decisão quando a família tem posições divergentes entre doar e não doar? A Bioética deve refletir e

discutir estas questões auxiliando as pessoas a tomarem suas decisões. Uma reflexão transcultural destes aspectos pode auxiliar no esclarecimento desta questão.(GOLDIM, 2002, online)

Em que pese o artigo 9º da Lei de Transplantes onde explicita que é legalmente

permitido à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e

partes do corpo vivo para fins terapêuticos ou de transplantes em cônjuge ou parentes

consanguíneos até o quarto grau, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização

judicial, em mão contrária à autonomia do doador, o §5º do mesmo artigo diz que a

doação poderá ser revogada a qualquer tempo antes da sua concretização pelos seus

responsáveis legais.

Cabe aqui o questionamento: Será que o Estado com esta lei, não estaria

suprimindo a liberdade básica do ser humano, principalmente sua capacidade de

autodeterminação contrariando assim a sua dignidade? Fato é, que está o Estado

interferindo na vida privada, desrespeitando a autonomia do cidadão, declarando

arbitrariamente a imposição de uma regra através de coerção legislativa.

O artigo 4º da Lei 9434 de 04 de fevereiro de 1997, estabelece que a retirada

de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplante ou outra

finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de

idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive,

firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da

morte.

Se formos levar em consideração o fato de que a família do falecido tem a

palavra final, independentemente de respeitada ou não a vontade do de cujus,

podemos afirmar haver uma infração no que tange os direitos fundamentais. Como

fica a liberdade de consciência? O Poder de disposição sobre o próprio corpo? A

manifestação expressa em vida da vontade de ser ou não doador?

Questões como essas levam à reflexões sobre o direito da família em ir contra

a decisão do doador in casu.

30

Nosso Código Civil em seu artigo 14 que trata dos direitos da personalidade é

enfático em dizer que desde que para fins científicos ou altruísticos, é válida a

disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte.

A disposição do próprio corpo para depois da morte é direito personalíssimo,

vez que somente pode ser exercido pelo próprio titular em questão, desta feita, seria

grande afronta ao dispositivo legal, qualquer outra pessoa exercer este direito.

Ocupa-se da explicação Pontes de Miranda:

[...] toda transmissão supõe que uma pessoa se ponha no lugar da outra, assim, caso a transmissão pudesse ocorrer, ou seja, sendo possível que uma pessoa se pusesse no lugar de outra, o direito não seria de personalidade,

logo, como o direito da pessoa lhe é personalíssimo, nem poderes contidos em cada direito de personalidade, ou seu exercício, são suscetíveis de serem transmitidos ou por maneira outorgados. (MIRANDA, 1990, p. 7, 8)

Sobre a mesma ótica salienta Cardoso:

O sujeito tem o direito subjetivo personalíssimo de dispor de seu próprio corpo ou apenas parte dele, com efeitos post mortem, caracterizando esse ato de

disposição negócio jurídico extrapatrimonial, decorrente do exercício da autonomia privada, sujeito às limitações e condições impostas pelo ordenamento jurídico. (CARDOSO, 2002, p. 229)

Nos casos de pessoas falecidas e juridicamente incapazes, a remoção de

órgãos e tecidos deste para fins de transplante, dependerá expressamente de

autorização dos pais, caso estejam vivos, ou então, de quem seja o detentor do poder

familiar, da guarda judicial, tutela ou curatela.

Há ainda que se falar nos casos da utilização de órgãos de grupos

populacionais com autonomia reduzida.Em casos de incapazes vivos, não raras as

vezes, nos deparamos com pais que concebem outros filhos para que estes, possam

servir como possíveis doadores em benefício de seu irmão doente. Seria então justo

e aceitável haver transplante inter vivos, sendo o doador uma criança? Quanto à este

oportuno questionamento, cabe o comentário de Maria Helena Diniz:

Seria justo que seus pais decidissem sobre a remoção de seus órgãos e

tecidos em benefício de outro filho ou de algum parente próximo? Bastaria para tanto que houvesse uma simples anuência de seus pais ou tutor ou seria necessária ainda, uma autorização judicial? [...] os pais ou representante

legal, somente podem consentir com a doação de tecidos regeneráveis, como medula óssea, pele ou sangue se houver não só uma imperiosa necessidade terapêutica que justifique tal decisão como também autorização judicial.

Assim, sendo, não deve haver autorização paterna ou judicial para extirpação de um órgão vital duplo, como o rim, para fins de transplante, porque isso

31

poderia prejudicar sua integridade física, causando-lhe alguma deficiência.

(DINIZ, 2010, p. 354)

No que diz respeito aos fetos anencéfalos (embrião, feto ou recém-nascido com

ausência de massa encefálica), deverá este ser respeitado como pessoa humana,

jamais ferindo a sua dignidade e caracterizando ilicitude a programação de seu parto

única e exclusivamente para a utilização de seus órgãos num transplante. Maria

Helena Diniz diz: que: “ninguém tem o direito de abreviar vida alheia para atender a

interesses terapêuticos de alguma pessoa”. (DINIZ, 2010, p. 353)

Para que este bebê anencéfalo possa ser doador de órgãos e tecidos, deverá

preencher os critérios legais de morte cerebral, portanto deverá estar legalmente

morto, e todo o processo de doação deverá ser feito por iniciativa dos pais e não por

solicitação de profissional da saúde. Quanto à temática:

O anencéfalo, enquanto estiver vivo, não poderá ser submetido a nenhum tratamento de terapia intensiva, porque isso seria um prolongamento de seu

sofrimento, não lhe trazendo qualquer benefício. somente depois da certeza da ocorrência de sua morte cerebral poder-se-á aplicar o referido tratamento para evitar que seus órgãos e tecidos se deteriorem, beneficiando aquele que

receberá o transplante. (DINIZ, 2010, p. 354)

Em se tratando de portadores de deficiências mentais não podem estes, ser

doadores inter vivos, pois deverão ser protegidos de qualquer abuso e de remoção de

seus órgãos ou tecidos por terem uma imunidade reduzida, acarretando-lhes assim,

maior risco à sua saúde.

Quanto ao questionamento sobre doações, de órgãos ou tecidos, realizadas

por prisioneiros, se faz importante as palavras de Gabriela Guilhen Caldeira:

Em caso de um prisioneiro, não seria ético fazer a doação para diminuir seu tempo da pena imposta, além de que seria considerada uma “operação mercantil” e nem seria uma decisão consciente, pois em situação prisional

provoca estado de ansiedade, depressão e desespero e não seria um gesto para salvar a vida de alguém, mas um gesto para obter o alívio de uma parte da pena que ainda deveria cumprir. (CALDEIRA, 2014, online)

Em se tratando de corpo de pessoa não identificada, a Lei 9434 de 1997 em

seu artigo 6º, estabelece que é vedada a remoção pós morte de tecidos, órgãos ou

partes do de seu corpo.

Falemos agora sobre o aspecto psicológico da família que terá que decidir

quase que, instantaneamente pelo ato de realizar ou não a doação dos órgãos de seu

ente.

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Normalmente o pedido de doação pela equipe de transplantes, vem quase que

imediatamente ao impactante comunicado da morte encefálica do paciente, e é neste

momento, muitas vezes traumatizante, que a família terá que decidir pelo

consentimento ou não da retirada dos órgãos para fins de transplantes. Aqui entram

mais algumas questões a se dirimir. Como proceder nos casos de que a própria família

não tem contato com seu ente morto e não sabe qual a sua disposição de última

vontade? Há também a dúvida sobre se o ente está realmente morto na realização da

retirada dos órgãos.

Muito se fala a respeito do ato de doar, porém, pouco se fala sobre o

consentimento livre e esclarecido de quem receberá os órgãos. O receptor de órgãos

deverá estar previamente inscrito em lista única de espera, além do fato de ser

portador de doença grave progressiva ou incapacitante e que seja irreversível por

outras técnicas médicas e terapêuticas. Atente-se ao importante detalhe de que este

receptor, somente poderá submeter-se a esta intervenção cirúrgica após o seu

expresso consentimento, depois de passar por aconselhamentos técnicos por termos

compreensíveis ao paciente, juntamente com os riscos corridos durante o

procedimento e também as possíveis sequelas advindas da cirurgia. As normas

relatadas neste parágrafo estão dispostas no artigo 10º caput e §§ 1º e 2º da Lei

9434/1997.

Embora neste caso, seja de suma importância o consentimento expresso do

receptor, muitas vezes estes são deveras pressionados e forçados por seus familiares

ao tratamento a qualquer custo, leia-se, de qualquer maneira, desrespeitando suas

dores, motivações, formas de pensar e encarar a sua vida, que dirás a aceitação de

sua morte, um exemplo clássico de afronta à sua autonomia.

Neste sentido, o ser humano está apto e deverá ter em suas mãos o poder de

manifestar-se de maneira favorável ou contrária a determinada questão, e

principalmente, quanto ao certame que versa sobre à sua saúde.

Leonidas Meireles Mansur Muniz de Oliveira esclarece:

Esse atributo de liberdade não é exercido de forma desmedida, uma vez que encontra como dosador o ordenamento jurídico que consiste em um conjunto de normas organizadas, de forma a manter a sociedade pacífica e longe do

caos. Assim mencionado, o ordenamento jurídico não deve ser visto como detentor de supremacia sobre a autonomia da vontade, mas sim como seu limitador, que não deve ser ultrapassado. (OLIVEIRA, 2013, online)

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Diante dos inúmeros questionamentos aqui pertinentes, se faz necessário

utilizar-se do bom senso, da Bioética e do Biodireito para que se possa chegar a um

meio comum entre os extremos.

5. CONCLUSÃO

Diante de tanto avanço na sociedade, seja de cunho tecnológico, científico,

intelectual, entre outros, fato é que em conjunto com o impulso pela melhoria de

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nossas condições surgem também os impasses e a dificuldade em se chegar a um

meio comum.

No caso da emblemática sobre o transplante e a doação de órgão, muitas

questões deverão ser levadas em consideração.

Ainda hoje, podemos falar que é um método bastante desconhecido por parte

da população, o que ainda gera muitos medos e dúvidas pertinentes ao assunto.

A ignorância temática deveria ser levada mais a sério, através de campanhas

para a conscientização sobre o procedimento, esclarecendo dúvidas frequentes e que

muitas vezes acarretam a não doação e consequentemente a dificuldade em salvar

ou prolongar a vida de outras pessoas que desses órgãos necessitam.

Com relação à lei de transplantes e doação de órgãos vigente, existem muitas

lacunas, destacando dentre elas, a supressão do direito da autonomia da pessoa em

questão, ferindo portanto, diversos outros direitos fundamentais.

A contrariedade legal entre as leis gera insegurança jurídica e viola um dos

bens maiores de que o ser humano pode possuir, seu direito de personalidade, tirando

o gosto daquele que em vida, manifestou pontualmente a sua vontade de ser doador.

Desta feita, acredita-se que para chegarmos ao respeito à autonomia, a Lei

atual deverá ser complementada, enfatizando que a manifestação expressa do doador

em vida será respeitada.

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