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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Vânia Regina Zardo Pinto Rabello O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM ÊNFASE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR CURITIBA 2010

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

Vânia Regina Zardo Pinto Rabello

O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM ÊNFASE NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

CURITIBA

2010

O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM ÊNFASE NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Curitiba

2010

Vânia Regina Zardo Pinto Rabello

O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM ÊNFASE NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no

Curso de Direito da Faculdade de Ciências

Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de

Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª Danielli Weber Santos Costi

CURITIBA

2010

TERMO DE APROVAÇÃO

Vânia Regina Zardo Pinto Rabello

O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL, COM ÊNFASE NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do grau de Bacharel em Direito no Curso de Direito da

Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná

Curitiba, 30 de agosto de 2010.

Prof. Dr. Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador de Monografias

Faculdade de Ciências Jurídicas

Universidade Tuiuti do Paraná

Orientadora: Prof.ª Danielli Weber Santos Costi

UTP/FACJUR

Prof.

UTP/FACJUR

Prof.

UTP/FACJUR

Dedico este trabalho com muito amor ao meu esposo,

Francisco Pinto Rabello Filho, o verdadeiro responsável por

mais esta conquista tão significativa.

Às minhas filhas, Maria Augusta e Maria Carolina, com todo

carinho.

Ao meu pai, Hugo Zardo, que mesmo estando em outro plano,

me protege em todos os momentos.

E à minha mãe, Norma Mertens Zardo, muito obrigada por

tudo.

Agradeço a pequena Isabella, por ter dividido a atenção de sua

mãe, Prof.ª Danielli Weber Santos Costi, que me orientou com

tanta presteza.

Ao Prof. Clayton Reis, por sua simpatia e dedicação de sempre.

A todos os Professores, que muito contribuíram para a

concretização deste sonho e pela generosidade em compartilhar

seus ensinamentos.

A todos os funcionários da Instituição.

A Fabiane Davet e Marinete Luiza Oro, minhas grandes

amigas, com todo carinho.

"Grandes realizações não são feitas por impulso, mas por uma

soma de pequenas realizações".

(Vincent Van Gogh)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. ................... 10

1 PRINCÍPIOS JURÍDICOS .......................................................................................................................... 12

1.1 CONCEITO ................................................................................................................................................. 12

2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL ......................................................................................................... 16 2.1 BREVE INVENTÁRIO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO ............................................................................. 16

2.2 EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ............ 19

2.3 CONCEITO E CONTEÚDO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL ....................................................... 20

2.3.1 A proibição de juízo ou tribunal de exceção ............................................................................................ 22

2.3.2 A exigência de juiz competente ................................................................................................................ 26

2.3.3 A exigência de imparcialidade do juiz ...................................................................................................... 28

3 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR .............................................................................. 30

3.1 PROCESSO ADMINISTRATIVO ............................................................................................................. 30

3.1.1 Conceito .................................................................................................................................................... 30

3.1.1.1 Processo e procedimento administrativo ............................................................................................... 32 3.1.2 Princípios do processo administrativo ...................................................................................................... 34

3.1.2.1 Princípio do devido processo legal ........................................................................................................ 34

3.1.2.2 Princípio da legalidade objetiva ............................................................................................................. 36

3.1.2.3 Princípio da oficialidade ........................................................................................................................ 36

3.1.2.4 Princípio do informalismo ..................................................................................................................... 37

3.1.2.5 Princípio da publicidade ........................................................................................................................ 37

3.1.2.6 Princípio da verdade material ................................................................................................................ 38

3.1.2.7 Princípio do contraditório e da ampla defesa ........................................................................................ 38

3.1.2.8 Princípio da motivação .......................................................................................................................... 40

3.1.3 Espécies de processos administrativos ..................................................................................................... 42

3.1.4 Processo administrativo disciplinar .......................................................................................................... 44 3.1.4.1 Conceito ................................................................................................................................................. 44

3.1.4.2 Objeto e finalidade ................................................................................................................................. 45

3.1.4.3 Obrigatoriedade ............................................................................................................................. ........ 45

3.1.4.4 Princípios do processo administrativo disciplinar ................................................................................. 47

4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E O PROCESSO DISCIPLINAR ............................................... 48

4.1 DEVIDO PROCESSO LEGAL, JUIZ NATURAL E PROCESSO DISCIPLINAR .................................. 48

4.2 JUIZ NATURAL: PREEXISTÊNCIA DO ÓRGÃO JULGADOR ............................................................ 51

4.3 JUIZ NATURAL: COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO JULGADOR .............................................................. 53

4.4 JUIZ NATURAL: IMPARCIALIDADE DO ÓRGÃO JULGADOR ........................................................ 54

4.5 APLICAÇÃO PRÁTICA DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NO PROCESSO DISCIPLINAR ....... 55

4.6 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL ................ 56

CONCLUSÕES ............................................................................................................................. ................... 57

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................... 59

RESUMO

O presente trabalho desenvolve investigação visando a apurar se o princípio do juiz

natural, como uma das manifestações do princípio do devido processo legal, deve ser

aplicado no âmbito dos processos administrativos disciplinares. Como o estudo trata

diretamente com dois princípios que têm assento constitucional, desde logo é feita

verificação conceitual dos princípios jurídicos, sua normatividade e diferenciação com

as regras jurídicas. O princípio do juiz natural é, então, objeto de ocupação, com breve

inventário de seu histórico e sua evolução nas Constituições brasileiras, seguindo-se o

desenho de seu conceito e seu conteúdo, com a tríplice configuração que o caracteriza:

a proibição de juízo ou tribunal de exceção e as exigências de juiz competente e

imparcial. Aspectos centrais do processo administrativo são em seguida examinados,

tais como seu conceito, a distinção entre processo e procedimento administrativo,

princípios e espécies de processos administrativos. O processo administrativo

disciplinar é então examinado, quando não somente seu conceito é verificado, como

também seu objeto, finalidade, obrigatoriedade e princípios. O processo administrativo

disciplinar e o princípio do juiz natural são examinados, fazendo-se articulação

integrativa entre o devido processo legal, o juiz natural e o processo disciplinar,

seguida de busca de aplicação da tríplice configuração que integra o princípio do juiz

natural no processo administrativo disciplinar. Ao lado das conclusões parciais

apresentadas, a conclusão central do trabalho é no sentido de que o processo

administrativo disciplinar reclama, para sua validade e legitimidade, fiel observância

do princípio do juiz natural.

Palavras-chave: processo administrativo disciplinar, processo administrativo,

princípios constitucionais, juiz natural, devido processo legal.

ABSTRACT

This essay develops research in order to establish the principle of Natural Judge, as an

expression of the principle of due process of law, should be applied in the discipline

administrative proceedings. As the studies attend directly to two principles that

have been constitutional acccent, initially is made a conceptual legal principles, its

normativity and differentiation with the Legal Rules. Theeprinciple of natural judge,

then, is the object of occupation, with a brief inventory of the history and the evolution

in the Brazilian Constitutions, followed by the design of the concept and content, with

the triple configuration that characterizes the prohibition of Court to demands for

competent and impartial judge. The central aspects of the process administration is the

review such as the concept, the distinction between process and administrative

procedure, principles and species administrative processes. The administrative

disciplinary procedure is the viewing, not only when the concept is verified, as well as

their object, purpose, obligation and principles. The administrative process discipline

and the principle of natural judge are examined by making integrative relationship

between the due process of law, the judge and the natural disciplinary procedures, then

research for the application of the triple configuration integrating the principle of

natural judge in the administrative discipline. Besides partial conclusions presented,

the central of the conclusion of this present essay is the sense of the administrative

disciplinary process claims, to validate and the legitimacy, with faithful observance of

the principle of the natural judge.

Keywords: administrative disciplinary procedures, administrative procedures,

constitutional principles, natural judge, due process of law.

10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho está voltado para um aspecto essencial relativo ao

processo administrativo disciplinar, qual seja a investigação consistente em saber se

nessa espécie de processo administrativo deve ou não ser observado o princípio do juiz

natural, enquanto uma das manifestações do princípio do devido legal (due process

law).

Nessa pesquisa nitidamente interdisciplinar, procuramos articular com

institutos fundamentais do Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito

Processual Civil, sempre tendo em conta uma bipolaridade por qualquer ângulo

inegavelmente importante: de um lado, a necessidade de a Administração Pública

controlar a conduta de seus servidores, até mesmo por imperativo de legalidade,

moralidade administrativa etc.; de outro lado, a garantia fundamental que o servidor

público tem a um, digamos assim, devido processo disciplinar legal (devido processo

legal).

Assim é que verificamos o conceito de princípio jurídico, com a

normatividade que hoje em dia lhe é reconhecida e examinamos os aspectos essenciais

do princípio do juiz natural, com a tríplice configuração que acaba lhe dando a

Constituição Federal na formatação de seu conteúdo, para, em seguida, voltarmos

nossa atenção para o processo administrativo.

Esse exame, do processo administrativo e seus aspectos básicos fundamentais,

foi indispensável por também figurar como um pressuposto para que pudéssemos

expor melhor o que aqui é importante em relação ao processo administrativo

disciplinar, que é espécie daquele.

Vencida essa etapa, foi alcançado o momento, então, de dirigirmos nossa

atenção especificamente para a questão que motivou a pesquisa: com a preparação até

11

aí feita, utilizamos as constatações a que chegamos e nos foi possível, então, examinar

de perto a existência ou não de importância e necessidade de aplicação do princípio do

juiz natural no âmbito do processo administrativo disciplinar, para, com isso,

extrairmos as conclusões gerais que a pesquisa nos possibilitou.

Embora nos pareça claro, pelo que já mencionamos, é conveniente enfatizar

que este não é um trabalho especificamente de direito positivo infraconstitucional. Não

se trata, por assim dizer, de comentários, por exemplo, do Estatuto dos Servidores

Públicos Civis da União (Lei n.º 8.112/1990), nem da Lei que rege o Processo

Administrativo na esfera federal (Lei n.º 9.784/1999).

Por essa razão, a menção que fazemos, aqui e ali, à legislação

infraconstitucional, tem conotação apenas ilustrativa quanto a alguma abordagem que

nos pareceu pertinente fazer, como é o caso de momentos em que apontamos um ou

outro aspecto do Estatuto dos Funcionários do Poder Judiciário do Paraná (Lei

Estadual n.º 16.024/2008) e do Estatuto dos Funcionários Civis do Poder Executivo

paranaense (Lei Estadual n.º 6.174/1970).

O que nos impulsionou, o que foi, digamos, o combustível para nossa

pesquisa, foi buscar afeiçoar, no limite de nossas possibilidades, o processo

administrativo disciplinar aos princípios constitucionais que regem a Administração

Pública brasileira e aqueles outros, que integram os direitos e garantias individuais.

Afinal de contas, o processo administrativo disciplinar, por dizer tão de perto

com valores caros ao Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais do

servidor público, reclama, para sua validade e legitimidade, fiel observância do

postulado máximo do devido processo legal.

É necessário manter viva a célebre advertência do juiz Felix Frankfurter, da

Suprema Corte dos Estados Unidos, quando realçou a singularidade do due process of

law, ocasião em que pôs em destaque a importância de o cidadão ter um julgador

imparcial, reto e justo.

12

1 PRINCÍPIOS JURÍDICOS

1.1 CONCEITO

Numa época mais recente os estudiosos dos vários domínios do Direito vêm

dando especial atenção aos princípios, tendo o professor espanhol Luis Prieto de

Sanchís1, catedrático de Filosofia do Direito da Universidad Castilla La Mancha,

assegurado que vivemos uma nova idade de ouro dos princípios.

Entre nós, o professor emérito Paulo Bonavides2 acentua que os princípios

acabaram se convertendo no coração das Constituições, o que entre nós se acentuou

sobremaneira com a Carta de 1988.

Com base nessa concepção Francisco Rabello3 expõe que “[...] princípios

(jurídicos) são, por definição, a viga-mestra do sistema (jurídico), suas prescrições

supremas e primeiras e, na intelecção e aplicação das demais normas jurídicas, o

primeiro instrumental do operador”.

Celso Antônio Bandeira de Mello4 é categórico:

Princípio é, [...] por definição, mandamento nuclear de um sistema,

verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes

normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e

inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico.

É útil citar mais uma formulação enfática, como é o caso de Roque Carrazza5:

1 SANCHÍS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas del razonamiento jurídico, p. 17. 2 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, pp. 281-283. 3 RABELLO FILHO, Francisco Pinto. O princípio da anterioridade da lei tributária, p. 30. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 53. Essa definição, que se mantém

atual, o autor já formulara em 1971, a propósito de artigo doutrinário que escreveu: “Criação de secretarias

municipais: inconstitucionalidade do art. 43 da lei orgânica dos Municípios do Estado de São Paulo”. In: Revista

de direito público, vol. 15, pp. 284-288 [285]).

13

[...] princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por

sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do

Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a

aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.

Verifica-se, então, que os princípios jurídicos têm na atualidade

extraordinária importância, estando no centro do sistema jurídico, sendo por isso

norma indiscutivelmente vinculante para a interpretação e a aplicação das normas

jurídicas em geral.

Não são objeto de ocupação imediata deste trabalho os importantes aspectos

relativos à distinção entre princípio e regra jurídica. No entanto, é pertinente observar,

ainda que de passagem, como aqui é o caso, que ambos, princípio e regra, são espécies

de norma jurídica, que é seu gênero, uma vez que hoje em dia não há mais espaço para

discussão acerca da normatividade dos princípios.6

Afinal, na feliz síntese de Robert Alexy7, “Tanto as regras como os

princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser”. O que é preciso, então, é

distinguir princípios e regras.

Os princípios têm a peculiaridade da generalização, têm um alto grau de

generalidade, ao contrário das regras, que têm baixa generalidade. Conforme Alexy8,

“[...] os princípios são normas de um grau de generalidade relativamente alto, e as

regras normas com um nível relativamente baixo de generalidade”.

Fazendo a distinção dessa forma, podemos exemplificar com a norma

constitucional que assegura a liberdade de crença9 como um princípio, ao passo que o

estabelecimento de setenta anos como a idade em que o servidor público se aposenta

compulsoriamente10

, é caso de estabelecimento de regra.

5 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário, pp. 44-45. 6 A respeito, p. ex., BONAVIDES, Paulo. Obra citada, especialmente pp. 271-272. 7 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 83 – tradução livre da edição espanhola: “Tanto las

reglas como los principios son normas, porque ambos dicen lo que debe ser”. 8 ALEXY, Robert. obra citada, p. 83: “[...] los principios son normas de un grado de generalidad relativamente

alto, y las reglas normas con un nivel relativamente bajo de generalidad”. 9 Constituição Federal, artigo 5.º, inciso VI. 10 Constituição Federal, artigo 40, parágrafo 1.º, inciso II.

14

Bem por isso que Alexy11

concebe os princípios, em síntese, como

mandamentos de otimização, ao passo que as regras contêm determinações:

O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios

são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são

mandamentos de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser

cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só

depende das possibilidades reais como também das jurídicas. O âmbito das

possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.

No entanto, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se

uma regra é válida, então há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais nem

menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do fática e

juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é

qualitativa e não de grau. Toda norma é ou bem uma regra ou um princípio.

Ronald Dworkin12

, em uma de suas formulações diferenciadoras (princípios e

regras), observa que as regras, à diferença dos princípios, são aplicáveis à maneira do

tudo-ou-nada, de modo que se a regra é válida, tem de ser cumprida do modo como

está no sistema jurídico:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica.

Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da

obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à

natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-

nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a

resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada

contribui para a decisão.

Outra peculiaridade digna de nota aqui, revelada por Dworkin13

, é a de que

os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância, de modo que quando

11 ALEXY, Robert. Obra citada, pp. 86-87:

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que

algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo

tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser

cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades

reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y

reglas opuestos.

En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el

ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es

cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio. 12 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, p. 24 – tradução livre: “The difference between legal principles

and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation

in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in an

all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then cither the rule is valid, in which case the

answer it supplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision”. 13 DWORKIN, Ronald. Obra citada, pp. 26-27. No original:

15

eles se intercruzam, será necessário levar-se em conta “a força relativa de cada um”,

isto é, de se “perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é”, o que não se passa

com as regras.

O presente trabalho, então, tem como eixo central de seu desenvolvimento,

o exame do tema fundamentalmente pelo ângulo dos princípios. A distinção ora feita,

embora resumida e sem descer – porque não é o propósito imediato, vale repetir – ao

exame dos vários critérios distintivos entre princípios e regras, tem a virtude de pôr em

realce a superioridade dos princípios (também) no ordenamento jurídico brasileiro.

Em breves palavras: os princípios, que serão o norte deste trabalho, são,

como Bonavides14

enfatiza, “as normas-chaves de todo o sistema jurídico”; são,

inegavelmente, “o oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo”.

Estudando alguns aspectos relevantes que envolvem a dinâmica do processo

administrativo disciplinar no sistema jurídico brasileiro, e tomando os princípios

jurídicos com essa importância especial que estamos referindo, como é enfatizada

pelos estudiosos do Direito, desde logo reclama atenção o princípio do juiz natural, em

virtude do que para ele voltaremos nossa atenção em seguida, principalmente no que

diz respeito ao que mais de perto importa ao presente trabalho.

“This first difference between rules and principles entails another. Principles have a dimension that rulas do

not – the dimension of weight or importance. When principles intersect [...], one who must resolve the conflict

has to take into account the relative weight of each. [...].

Rules do not have this dimension. [...]”. 14 BONAVIDES, Paulo. Obra citada, pp. 286-288.

16

2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

2.1 BREVE INVENTÁRIO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO

A análise histórica do princípio do juiz natural, tendo em consideração o

propósito fundamental do presente trabalho, é de importância relevante, para que se

possa ter visão mais nítida das garantias que ele assegura, não obstante esse aspecto

deva ser considerado em qualquer setor jurídico que se tomar em conta.15

É bem verdade que a matriz do princípio do juiz natural não raro é apontada

como alojada na Magna Carta do rei João Sem Terra, de 121516

. Geralmente são

indicados os artigos 20, 21 e 39 da Carta de 1215, que assim dispunham17

:

20 – A multa a pagar por um homem livre, pela prática de um pequeno delito,

será proporcionada à gravidade do delito; e pela prática de um crime será

proporcionada ao horror deste, sem prejuízo do necessário à subsistência e posição do infrator (contenementum); a mesma regra valerá para as multas a aplicar a um

comerciante e a um vilão, ressalvando-se para aquele a sua mercadoria e para este a

sua lavoura; e, em todos os casos, as multas serão fixadas por um júri de vizinhos

honestos.

21 – Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão pelos pares e de

harmonia com a gravidade do delito.

39 – Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos

seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e

nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país.

15 Realçando a importância desse exame, Ada Pellegrini Grinover destaca que “A análise histórica do princípio

do juiz natural é necessária para a correta colocação de suas garantias” (“O princípio do juiz natural e sua dupla

garantia”. In: Revista de processo, vol. 29, p. 11). 16 É o caso, por exemplo, de: PORTANOVA, Rui. Princípio do processo civil, p. 63. BACELLAR Filho, Romeu

Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, p. 287. CUNHA, Leonardo José

Carneiro da. “Anotações sobre a garantia constitucional do juiz natural”. In: Processo e Constituição: estudos em

homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira, p. 501. 17 cf. MIRANDA, Jorge. Textos históricos do direito constitucional, pp. 14-15 – os destaques são nossos.

17

Observa Ada Pellegrini Grinover18

, no entanto, que a garantia contida

nessas disposições era dirigida à justiça feudal e não, propriamente, à “proibição de

juízes extraordinários”. “A garantia não significava negação dos juízes itinerantes,

ainda incipientes. Daí porque poder-se afirmar que a problemática do juiz natural,

como hoje a entendemos, é sucessiva à época da Magna Carta”.

Alexandre Auto de Alencar19

faz idêntica crítica, ao constatar que a

disposição da cláusula 39 da Magna Carta “[...] representa muito pouco da evolução e

do sentido atual da garantia [do juiz natural]”.

Ferrajoli20

apurou que realmente a garantia do juiz natural é uma conquista

moderna, tendo fracassado a tentativa de remeter suas origens à Carta de 1215:

[...] a garantia do juiz natural, não diversamente da de independência, é uma

conquista moderna. Resultou de fato infrutífera a tentativa de remeter suas origens à

Magna Charta, pois esta, em seus arts. 20, 21, 39, 52 e 56, limita-se a estabelecer

que para a condenação de qualquer cidadão é necessário um “legale iudicium parium

suorum”, em que a condição de que os jurados sejam “pares”, ou “homens probos da

vizinhança”, indica apenas uma qualidade dos juízes, e, no máximo, um critério de

competência territorial, mas não tem nada que ver com a proibição da instituição do juiz post factum.

Realmente, a proibição da instituição de juiz post factum só veio a se afirmar

no século XVII, tendo o princípio surgido, ao que parece, na legislação constitucional

norte-americana.

Com efeito, a Emenda 621

à Constituição americana de 1787 estabelece o

seguinte22

:

ARTIGO VI

Em todos os processos criminais o arguido terá direito a julgamento pronto e

público por um júri imparcial do estado e distrito onde o crime tiver sido cometido,

devendo o distrito estar previamente determinado por lei. Terá também direito a ser

informado da natureza e da causa da acusação, a ser acareado com as testemunhas de

acusação, a obter por meios legais testemunhas em seu favor e a ter assistência de

um advogado na sua defesa.

18 GRINOVER, Ada Pellegrini. “O princípio do juiz natural e sua dupla garantia”. In: Revista de processo, vol.

29, pp. 11-33 [12]. 19 ALENCAR, Alexandre Auto de. Comentários à Constituição Federal de 1988, p. 207. 20 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 472. 21 As dez primeiras emendas formam o “Bill of Rights”, aprovadas em 25 de setembro de 1789 e ratificadas em

15 de dezembro de 1791 (MIRANDA, Jorge. Textos históricos do direito constitucional, p. 51). 22 cf. MIRANDA, Jorge. Obra citada, p. 52 – os destaques são nossos.

18

Do Direito norte-americano, passando pela prática constitucional britânica23

,

foi na Constituição Francesa de 1814 que pela primeira vez o princípio foi formulado

com o nome de princípio do juiz natural24

: “Ninguém poderá ser subtraído aos seus

juízes naturais”25

.

Na Itália, o Estatuto Albertino, de 1848, estabeleceu no artigo 71 que

“Ninguém poderá ser subtraído aos seus juízes naturais. Não poderão, portanto, ser

criados tribunais e comissões extraordinárias”26

.

A Constituição Italiana de 1947, no artigo 25 dispõe que “Ninguém pode ser

subtraído ao juiz natural pré-constituído por lei”.27

Prescrevia o artigo 58, item I, da Constituição da Suíça de 1874 que “Ninguém

pode ser subtraído ao seu juiz natural. Por conseguinte, não poderão ser estabelecidos

tribunais extraordinários”.

A segunda alínea do artigo 14 da Constituição Mexicana, de 1917, dispõe:

Ninguém poderá ser privado da vida, da liberdade ou de suas propriedades,

posses ou direitos, senão mediante julgamento perante os tribunais previamente

estabelecidos, em que se cumpram as formalidades essenciais do procedimento e

conforme as leis expedidas anteriormente ao fato28.

A Constituição da República Federal da Alemanha de 1949, em seu artigo

101, item 1, prescreve:

Artigo 101 (Proibição de tribunais de exceção)

(1) São proibidos os tribunais de exceção. Ninguém pode ser subtraído ao seu

juiz legal. [...].29

23 MELLO FILHO, José Celso de. “A tutela judicial da liberdade”. In: Revista dos tribunais, vol. 526, pp. 291-

302 [299]. 24 Cf. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 172. Do mesmo autor:

Tratado de direito processual penal, 1.º vol., p. 241. 25 Nul ne pourra être distrait de ses juges naturels. 26 Nessuno può essere distolto dai suoi Giudici naturali. Non potranno perciò essere creati tribunali e

Commissioni straordinarie. 27 Nessuno può essere distolto dal giudice naturale precostituito per legge. 28 Art. 14. [...]

Nadie podrá ser privado de la vida, de la libertad o de sus propiedades, posesiones o derechos, sino mediante

juicio seguido ante los tribunales previamente establecidos, en el que se cumplan las formalidades esenciales

del procedimiento y conforme a las leyes expedidas con anterioridad al hecho. 29 Artikel 101

[Verbot von Ausnahmegerichten]

(1) Ausnahmegerichte sind unzulässig. Niemand darf seinem gesetzlichen Richter entzogen werden.

[...].

19

2.2 EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NAS CONSTITUIÇÕES

BRASILEIRAS

Exceto, unicamente, a Carta de 1937, as demais Constituições brasileiras

sempre fizeram referência ao princípio do juiz natural, ainda que sem grafar essa

expressão:

Constituição Imperial de 182430

:

Art. 179. [...]

XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por

virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.

[...]

XVII. À excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juizos

particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem

Commissões especiaes nas Causas civeis, ou crimes.

[...].

Constituição de 189131

:

Art. 72. [...]

§ 15. Ninguem será sentenciado, sinão pela autoridade competente, em

virtude de lei anterior e na forma por ella regulada.

[...] § 23. À excepção das causas, que, por sua natureza, pertencem a juizos

especiaes, não haverá fôro privilegiado.

[...].

Constituição de 193432

:

Art. 113. [...] [...]

25) Não haverá fôro privilegiado nem tribunaes de excepção; admittem-se,

porém, juizos especiaes em razão da natureza das causas.

26) Ninguem será processado, nem sentenciado, senão pela autoridade

competente, em virtude de lei anterior ao facto, e na fórma por ella prescripta.

[...].

Constituição de 194633

:

30 Mantida a ortografia original. 31 Mantida a ortografia original. 32 Mantida a ortografia original. 33 Mantida a ortografia original.

20

Art. 141. [...]

[...]

§ 26. Não haverá fôro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção.

§ 27. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior.

[...].

Constituição de 196734

:

Art. 151. [...] [...]

§ 15. A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela

inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção.

[...].

Emenda Constitucional n.º 1, de 17/10/1969, à Constituição de 1967:

Art. 153. [...]

[...]

§ 15. A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela

inerentes. Não haverá foro privilegiado nem tribunais de exceção.

[...].

Constituição de 1988:

Art. 5.º [...]

[...]

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

[...]

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade

competente;

[...].

2.3 CONCEITO E CONTEÚDO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

Como visto, e para ficar, neste momento, no âmbito do direito positivo em

vigor, os incisos XXXVII e LIII da Constituição da República brasileira consagram o

princípio do juiz natural, também conhecido como princípio do juiz legal, princípio da

regular investidura do juiz etc.

34 Mantida a ortografia original.

21

O que basicamente se tem estabelecido na Constituição Federal, na

conjugação desses dois incisos, é o postulado de que é direito fundamental da pessoa

somente ser submetida a processo ou julgamento por um (a) juiz ou tribunal

preexistente (e não um juiz ou tribunal ad hoc), que seja (b) competente e (c)

imparcial.

Essa garantia, aliás, está na atualidade presente em todas as Constituições dos

povos cultos, refletindo preocupação universal no sentido logo acima resumido, como

esclarece o ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça José Augusto Delgado35

:

É uma garantia presente em todas as Constituições dos povos cultos,

refletindo a preocupação de não se permitir que ninguém seja processado ou julgado

senão por juízes componentes do Poder Judiciário e que sejam investidos de

atribuições jurisdicionais fixadas e limitadas pela Lei Maior. O alcance do princípio

é proibir uma justiça de privilégios ou de exceção, garantindo-se que todos os

cidadãos tenham seus litígios julgados por juízes legais, juízes investidos nas suas

funções de conformidade com as exigências constitucionais. A força dessa garantia

constitucional não permite que os poderes constituídos criem juízos destinados a

julgamentos de determinados casos ou de pessoas especificadas.

O modo como nas duas passagens referidas (art. 5.º, incs. XXXVII e LIII) a

Constituição brasileira dispõe sobre esse princípio, autoriza afirmar que ele (o

princípio do juiz natural) está consagrado no texto constitucional com uma tríplice

configuração, para o que, aliás, já acenamos mais acima.

Com efeito, Nelson Nery Júnior36

, por exemplo, expõe do modo como

estamos afirmando:

A garantia do juiz natural é tridimensional. Significa que 1) não haverá juízo

ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de submeter-se

a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3)

o juiz competente tem de ser imparcial.

Dinamarco37

também reconhece essa tripartição:

[...] prepondera a garantia conforme costuma ser apresentada, ou seja,

caracterizada por esse trinômio: a) julgamento por juiz e não por outras pessoas ou

35 DELGADO, José Augusto. “A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão”. In: As

garantias do cidadão na justiça, p. 71. 36 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, pp. 66-67. 37 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, vol. 1, p. 204 – os destaques são do

original.

22

funcionários; b) preexistência do órgão judiciário, sendo vedados, também para o

processo civil, eventuais tribunais de exceção instituídos depois de configurado o

litígio; c) juiz competente segundo a Constituição e a lei.

Não é diferente a constatação de Cristiane Catarina de Oliveira Ferreira38

, ao

resumir que “[...] o significado do princípio do juiz natural é no sentido de garantia de

um julgador constitucionalmente investido na função, competente para o litígio e

imparcial na condução e decisão da causa”.

A propósito, mesmo no âmbito do direito comparado os estudiosos costumam

identificar essa tríplice configuração caracterizadora do princípio do juiz natural. É o

caso, por exemplo, de Luigi Ferrajoli39

, ao examinar o princípio no âmbito do sistema

italiano, quando observa o seguinte:

Ela [a garantia do juiz natural] significa, precisamente, três coisas diferentes

ainda que entre si conexas: a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e

não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade

das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais.

O que se constata, dessa maneira, é que o juiz natural tem essa feição

tripartida, como, aliás, também verifica e resume o ex-Ministro Sálvio de Figueiredo

Teixeira40

, porquanto “[...] reclama julgador constitucionalmente investido na função,

competente para o litígio e imparcial na condução e decisão da causa”.

Para o que pretendemos demonstrar neste trabalho, é importante o exame,

ainda que maior aprofundamento, desses três componentes do princípio do juiz

natural.

2.3.1 A proibição de juízo ou tribunal de exceção

José Cretella Neto41

define tribunal de exceção como “[...] aquele criado ex

post facto, ou ad personam, ou ainda, ad hoc, vale dizer, instituído por ato arbitrário

38 FERREIRA, Cristiane Catarina de Oliveira. “Visão atual do princípio do juiz natural”. In: Processo e

Constituição, pp. 95-110 [105]. 39 FERRAJOLI, Luigi. Obra citada, p. 472. 40 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. “O processo civil na nova Constituição”. In: Ajuris, vol. 44, pp. 86-95 [91]. 41 CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil, p. 118.

23

para julgar determinado caso, tenha ele já ocorrido ou não, segundo critérios

favoráveis à autoridade de quem o instituiu”.

Athos Gusmão Carneiro42

toma tribunal de exceção como aquele criado ex

post factum, instituído ad hoc, algo como um tribunal de encomenda, constituído para

favorecer ou para prejudicar a determinadas pessoas ou interesses, para atuar em

determinados casos, tudo acertado previamente, a cujos juízes faltaria a presunção de

independência e de imparcialidade.

Essa inegavelmente é uma explicação mais abrangente da ideia (conceito) de

tribunal de exceção, cujo modo assim mais amplo é exposto também por Nelson Nery

Júnior43

:

Tribunal de exceção é aquele designado ou criado por deliberação legislativa

ou não, para julgar determinado caso, tenha ele já ocorrido ou não, irrelevante a

existência prévia do tribunal. Diz-se que o tribunal é de exceção quando de

encomenda, isto é, criado ex post facto, para julgar num ou noutro sentido, com

parcialidade, para prejudicar ou beneficiar alguém, tudo acertado previamente.

Enquanto o juiz natural é aquele previsto abstratamente, o juízo de exceção é aquele

designado para atuar no caso concreto ou individual.

A proibição constitucional enérgica, contida no inciso XXXVII do artigo 5.º

da Lei Fundamental (não haverá juízo ou tribunal de exceção), entendida do modo

como explicado pela doutrina mais autorizada, conforme acima exemplificado,

permite reconstruir conceitualmente esse aspecto da tríplice configuração do princípio

do juiz natural de modo inverso.

Por aí, é possível dizer-se que a ideia de juiz natural, tendo-se em conta a

proibição de juízo ou tribunal de exceção, aponta para a exigência de juízo ou tribunal

pré-constituído. É necessário, nesse sentido, que se tenha presente a ideia de

predeterminação.

É autorizado dizer-se, então, que a imposição constitucional é no sentido de

que o órgão (juízo ou tribunal) seja previamente constituído, com o estabelecimento do

âmbito de suas atribuições (competência) abstratamente definidas em lei.

42 CARNEIRO, Athos Gusmão. jurisdição e competência, p. 14. 43 NERY JÚNIOR, Nelson. Obra citada, p. 67. Desse autor, no mesmo sentido: “O juiz natural no direito

processual civil comunitário europeu”. In: Revista de processo, vol. 101, pp. 101-132 [103]. “Imparcialidade e

juiz natural: opinião doutrinária emitida pelo juiz e engajamento político do magistrado”. In: Estudos de direito

processual civil, p. 176.

24

Com efeito, Leonardo Cunha44

, ao enfatizar essa noção de imposição de juiz

pré-constituído, reconhece, no âmbito do que estamos a explicar, que “[...] o adjetivo

pré-constituído deve ser entendido como uma característica do juiz natural,

consistente na sua potencial identificação em um ou mais juízos indicados ex ante,

segundo as normas de competência, mediante critérios abstratos”.

A forma empregada pela Constituição italiana para expressar o princípio,

como mais atrás registramos, é bem eloquente dessa característica do juiz natural. É

útil repetir: Ninguém pode ser subtraído ao juiz natural pré-constituído por lei.

Aí está, induvidosamente, esse dado característico relevante do princípio do

juiz natural: quer-se que a lei, antecedentemente, e de modo abstrato, estabeleça quem

são os julgadores (juízes e tribunais) detentores do poder jurisdicional do Estado, que

com imparcialidade, e em que medida (competência), poderão validamente atuar nos

casos que lhes forem submetidos.

Em suma, juiz natural é expressão que não se afeiçoa com a cláusula juiz de

encomenda. Juiz natural, parece-nos não haver margem para dúvidas, é juiz

predeterminado, juiz pré-constituído, ali e aqui, por lei, abstratamente.

Para encerrar esta subseção, é conveniente registrar que a vedação de juízo de

exceção não pode ser confundida com as assim chamadas justiças especializadas, ou

com órgãos com competência específica, definida pela matéria (competência em razão

da matéria) ou pela função (competência funcional).

Leonardo Cunha45

assim discorre a esse respeito:

As justiças especializadas, longe de constituírem juízos ou tribunais de

exceção, existem para julgar casos relacionados com determinadas matérias ou com

a denominada prerrogativa de função; não consistem em poder de comissão, por não

serem criadas especificamente para casos concretos já ocorridos. As justiças especializadas não se confundem com tribunais de exceção, exatamente porque são

compostas de órgãos prefixados para o julgamento da generalidade de casos que se

encartem na previsão da norma que as criou e as concebeu.

Celso Bastos46

, do mesmo modo, adverte:

44 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Obra citada, p. 503 – destaque nosso. 45 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Obra citada, p. 504. 46 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, pp.

204-205.

25

Não se deve confundir o tribunal de exceção com a justiça especializada, esta

última encontra já raízes relativamente profundas no nosso direito constitucional e

pode espelhar-se em precedentes encontráveis em quase todos os países, não sendo

possível acumular em único órgão judicante toda a atividade jurisdicional. Surge

como necessário especializarem-se determinadas justiças. Este procedimento

nenhuma mossa causa ao princípio vedador dos tribunais de exceção.

A propósito, André Ramos Tavares47

explica e exemplifica que “Pela

aplicação do princípio ora em apreço não se afasta a possibilidade de juízos

especializados, tal como aquele admitido expressamente pela Constituição para dirimir

conflitos fundiários em questões agrárias (art. 126, caput)”.

Fredie Didier Júnior48

não diverge desse entendimento:

Não viola o princípio do juiz natural a criação de varas especializadas, as

regras de competência determinada por prerrogativa de função, a instituição de

Câmaras de Férias em tribunais, porque em todas essas situações as regras são

gerais, abstratas e impessoais.

Está na atualidade resolvido, tanto na doutrina como na jurisprudência, que a

criação de juízos especializados em geral não é ofensiva ao princípio do juiz natural. A

propósito, queremos ilustrar essa afirmação com uma eloquente decisão do Supremo

Tribunal Federal, que do mesmo modo também reforça os aspectos que vínhamos

abordando, relativamente ao princípio em exame:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – MATÉRIA CRIMINAL – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (RESOLUÇÃO N. 213/91) –

CONDENAÇÃO PENAL DE PREFEITO MUNICIPAL – COMPETÊNCIA

ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO – PRINCÍPIO DO

JUIZ NATURAL – COMPETÊNCIA DO VICE-PRESIDENTE DO TRIBUNAL A

QUO PARA EXERCER O CONTROLE DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

EXTRAORDINÁRIO – PRETENSÃO DE NOVA AUDIÊNCIA DO MINISTÉRIO

PÚBLICO PARA COMPLEMENTAR PARECER ANTERIORMENTE

PRODUZIDO – INADMISSIBILIDADE – AGRAVO IMPROVIDO.

PRERROGATIVA DE FORO E PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL

– A questão da prerrogativa de foro – achando-se intimamente associada ao

postulado do juiz natural – constitui expressiva garantia de ordem processual outorgada pela Carta da República a quem sofre, em juízo, a persecução penal

instaurada pelo Estado.

A definição constitucional das hipóteses de prerrogativa de foro ratione

muneris representa elemento vinculante da atividade de persecução criminal

exercida pelo Poder Público. É que o Estado não pode desconsiderar essa garantia

básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de

47 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 643. 48 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de

conhecimento, vol. 1, p. 84.

26

competência funcional para a apreciação de litígios penais que envolvam

determinados agentes públicos.

O princípio da naturalidade do juízo – que reflete noção vinculada às

matrizes político-ideológicas que informam a concepção do Estado Democrático de

Direito – constitui elemento determinante que conforma a própria atividade

legislativa do Estado e que condiciona o desempenho, pelo Poder Público, das

funções de caráter persecutório em juízo.

O postulado do juiz natural, por encerrar uma expressiva garantia de ordem

constitucional, limita, de modo subordinante, os poderes do Estado – que fica,

assim, impossibilitado de instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção –,

ao mesmo tempo em que assegura, ao acusado, o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados,

em conseqüência, os juízos ex post facto.

[...].49

É atualmente pacífico, portanto, que não se pode confundir tribunal de

exceção com justiça especial. Tribunal de exceção, no resumo de Manoel Gonçalves

Ferreira Filho50

, é transitório e arbitrário, ao passo que justiça especial é permanente e

orgânica, pois aplica a lei a todos os casos de determinada matéria; o tribunal de

exceção, diversamente, é ad hoc, criado para cada caso concreto.

2.3.2 A exigência de juiz competente

A segunda característica que compõe o conteúdo do princípio do juiz natural é

a imposição de que o órgão julgador seja competente, como estabelece o inciso LIII do

artigo 5.º da Constituição da República: ninguém será processado nem sentenciado

senão pela autoridade competente.

A competência, em breves palavras – porque não é objeto de ocupação do

presente trabalho –, é a medida em que a jurisdição pode validamente ser exercida. É

pela verificação da competência, prévia e abstratamente definida em lei, que se

encontra qual é o juiz natural para um determinado caso que se tiver em consideração.

Liebman51

fornece explicação que vem bem ao encontro do conteúdo do

princípio do juiz natural, como estamos fazendo:

49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal: 1.ª Turma. AI 177313-MG (AgReg.). João Ramos Filho versus

Ministério Público Estadual. Relator: Ministro Celso de Mello. Acórdão de 23/4/1996. Unânime. Disponível em:

www.stf.jus.br. Acesso: 27/7/2010 – todos os destaques são do original. 50 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988, vol. 1, p. 55. 51 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil, vol. I, p. 55.

27

[...] a competência é a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a

cada órgão, ou seja, a “medida da jurisdição”. Em outras palavras, ela determina em

que casos e com relação a que controvérsias tem cada órgão em particular o poder de

emitir provimentos, ao mesmo tempo em que delimita, em abstrato, o grupo de

controvérsias que lhe são atribuídas. Para cada possível causa, há por isso (ao

menos) um juiz competente, segundo as normas legais vigentes: é o “juiz natural”

[...].

Os órgãos que compõem o Poder Judiciário brasileiro são aqueles arrolados no

artigo 92 da Constituição Federal. Esses órgãos dispõem de competência, no seio da

Constituição igualmente definida, como, por exemplo, nos artigos 101 e seguintes, que

não pode ser suprimida por lei infraconstitucional.

Aplica-se aqui a explicação de Leonardo Cunha52

:

As autoridades judiciárias são aquelas previstas no texto constitucional,

restando vedado à legislação infraconstitucional conferir poder jurisdicional a juízes

e tribunais não previstos na Constituição Federal. Consequentemente, não se

permite, por exemplo, que haja modificações arbitrárias ou discricionárias de competência, não se admitindo igualmente que o Poder Executivo estabeleça ou

manipule mecanismos de substituições de juízes.

A propósito, é por isso que se diz que o juiz natural é o juiz constitucional. No

âmbito do que nesta parte do trabalho estamos desenvolvendo, isso quer indicar que o

juiz natural é aquele detentor de competência estabelecida pela própria Constituição

Federal.

Para perfeito entendimento dessa nossa afirmação, é necessário não perder de

vista que essa exigência somente se aplica no que diz respeito à competência absoluta,

justamente porque contém norma cogente, de ordem pública, que não pode ser

alterada.53

O juiz natural, por conseguinte, está relacionado com a competência absoluta,

fixada constitucionalmente, não havendo garantia de competência relativa. “A

autoridade judiciária deve ser aquela prevista na Constituição, sendo defeso à lei

ordinária outorgar jurisdição a juízes ou tribunais não previstos na ordem

constitucional”.54

52 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Obra citada, p. 504. 53 NERY JÚNIOR, Nelson. Obra citada, p. 69. 54 FERREIRA, Cristiane Catarina de Oliveira Ferreira. Obra citada, p. 104.

28

Atento a essas considerações, Cássio Scarpinella Bueno55

adverte que o tema

juiz natural diz respeito à identificação do juiz constitucionalmente competente, isto é,

juiz natural é aquele que a Constituição indicar como competente:

[...] o “princípio do juiz natural” diz respeito à identificação do “juiz”

constitucionalmente competente. É fundamental, destarte, compreender em que

condições a Constituição Federal cria e aceita determinados órgãos jurisdicionais

para julgar determinados assuntos, determinadas pessoas e assim por diante. Será

“juiz natural” aquele que a Constituição indicar como competente ou, quando

menos, quando ela, Constituição Federal, permitir que o seja.

A competência (absoluta) do órgão jurisdicional, por conseguinte, atua de

modo relevante na construção do conteúdo do princípio do juiz natural. É dizer: juiz

natural é o juiz constitucional, isto é, aquele indicado na Constituição como o

competente para processar e julgar as situações que vierem a ocorrer.

2.3.3 A exigência de imparcialidade do juiz

A exigência de imparcialidade do juiz impõe que o processo seja conduzido e

julgado por magistrado investido de autoridade jurisdicional, atuando sem submeter-se

a quaisquer pressões ou influências, sujeitando-se apenas ao ordenamento jurídico.

Preleciona José Cretella Neto56

que a garantia constitucional de imparcialidade

exige que sejam satisfeitas pelo menos três condições:

A garantia constitucional de imparcialidade exige, pelo menos, três condições: independência, para que o juiz possa situar-se acima dos poderes

políticos e dos grupos de pressão que pretendam influenciar suas decisões;

autoridade, para que suas não sejam meras obras de cunho acadêmico ou

doutrinário, e possam ser efetivamente executadas; e responsabilidade, para que o

poder não seja expressão de autoritarismo.

Realmente, como sintetiza Fredie Didier Júnior57

, “Substancialmente, a

garantia do juiz natural consiste na exigência da imparcialidade e da independência

55 BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual

civil, vol. 1, p. 115 – os destaques são do original. 56 CRETELLA NETO, José. Obra citada, p. 124. 57 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Obra citada, p. 83.

29

dos magistrados. Não basta o juízo competente, objetivamente capaz, é necessário que

seja imparcial, subjetivamente capaz”.

O que se tem, portanto, é que o conteúdo do juiz natural contém

necessariamente a exigência de garantia de um juiz imparcial.

Na verificação até aqui realizada, embora não verticalizada, é perfeitamente

possível notar que o princípio do juiz natural é essencialmente fundado em bases

democráticas. Não apenas atua como eficiente limitador dos poderes persecutórios do

Estado, como, ao mesmo tempo, garante a imparcialidade de juízes e tribunais.

O que é extremamente relevante, então, é verificar se essa importante garantia

do cidadão pode e deve ser estendida para o terreno do processo administrativo

disciplinar, já então como postulado democrático garantidor dos direitos do servidor

público em geral.

É o que passaremos a fazer em seguida, não sem antes desenhar seu perfil

estrutural (do processo administrativo disciplinar).

30

3 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

3.1 PROCESSO ADMINISTRATIVO

3.1.1 Conceito

Nos dias atuais já não se discute que o conceito de processo não é privativo ou

exclusivo do Direito Processual. No âmbito jurídico, onde houver exercício de poder

ele estará presente como instrumento para esse fim, não sendo, portanto, equivocado

falar em processo jurisdicional, processo legislativo, processo administrativo.

Nesse sentido que estamos referindo, vem a calhar a síntese de Dinamarco58

:

“Costuma ser dito que o processo é o instrumento da jurisdição. Ele é, na realidade, o

instrumento de que se vale o Estado não só para exercer jurisdição mas, vistas as

coisas de uma perspectiva mais ampla, para o exercício do poder”.

Também é bastante explicativa a exposição de Cintra, Grinover e

Dinamarco59

:

Processo é conceito que transcende ao direito processual. Sendo instrumento

para o legítimo exercício do poder, ele está presente em todas as atividades estatais

(processo administrativo, legislativo) e mesmo não-estatais (processos disciplinares

dos partidos políticos ou associações, processos das sociedades mercantis para aumento de capital etc.).

O processo, então, mesmo no âmbito administrativo pode ser examinado como

“relação jurídica entre as partes que nele interagem”, na afirmação de Egon Bockmann

58 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, t. I, n. 145, p. 276. 59 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria

geral do processo, n. 169, p. 302.

31

Moreira.60

Nessa linha também é a conclusão de José dos Santos Carvalho Filho61

, que

define processo como “a relação jurídica integrada por algumas pessoas, que nela

exercem várias atividades direcionadas para determinado fim”.

Por isso que esse último autor mencionado62

define o processo administrativo

como “[...] o instrumento que formaliza a sequência ordenada de atos e de atividades

do Estado e dos particulares a fim de ser produzida uma vontade final da

Administração”.

Sem realçar o fator da relação jurídica que se estabelece, preferindo enfatizar

os atos praticados, em sua globalidade, Diógenes Gasparini63

procura definir processo

administrativo de forma mais ampla e prática, buscando abranger as situações em que

a Administração Pública tem necessidade de (i) registrar seus atos, de (ii) controlar o

comportamento de seus agentes e de (iii) decidir sobre certas controvérsias.

Enfatizando esses aspectos, conclui:

Destarte, processo administrativo, em sentido prático, amplo, é o conjunto de

medidas jurídicas e materiais praticadas com certa ordem e cronologia, necessárias

ao registro dos atos da Administração Pública, ao controle do comportamento dos

administrados e de seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder de

polícia, os interesses público e privado, a punir seus servidores e terceiros, a resolver

controvérsias administrativas e a outorgar direitos a terceiros.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro64

, por seu turno, nota que a expressão processo

administrativo é empregada em sentidos diferentes. Ora é o conjunto de papéis e

documentos organizados numa pasta; ora é sinônimo de processo disciplinar; por

vezes, desligado da ideia de controvérsia, indicando a série de atos preparatórios de

uma decisão administrativa final; já “[...] em sentido mais amplo, designa o conjunto

de atos coordenados para a solução de uma controvérsia no âmbito administrativo”.

60 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a lei 9.784/1999, p. 39. 61 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, p. 1.055. 62 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Obra citada, pp. 1.057-1.058. 63 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo, p. 1.061 – o destaque em itálico é do original. 64 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, pp. 622-623.

32

3.1.1.1 Processo e procedimento administrativo

Nesse breve exame das definições apresentadas por alguns autores para que se

possa ter ideia (conceito) do significado da expressão processo administrativo, surge

naturalmente a necessidade de ser dita alguma coisa sobre procedimento

administrativo, o que igualmente faremos de modo resumido, sempre evitando, dessa

maneira, maior distanciamento da linha central que norteia a elaboração deste trabalho.

Quando se utiliza a expressão procedimento administrativo, o que se quer é

fazer referência ao aspecto exterior do processo. Por outras palavras, já se trata, aí, da

maneira como o processo se desenvolve, de seu início até o último ato praticado; sua

dinâmica, em uma palavra.

Por isso, aliás, o largo emprego da palavra rito, como sinônimo de

procedimento, por passar a ideia de ritual, de ritualística do processo, por indicar o

termo ritual o conjunto de práticas a serem observadas de forma invariável em

ocasiões determinadas.65

É por essa perspectiva que Fernanda Marinela66

formula sua definição de

procedimento administrativo, dizendo ser “[...] o modo pelo qual o processo anda, ou a

maneira de se encadearem os seus atos, o rito a forma pelos quais os atos são

realizados”.

José dos Santos Carvalho Filho67

, valendo-se da construção empregada para o

Direito Processual, averba que “[...] procedimento é o processo em sua dinâmica, é o

modo pelo qual os diversos atos se relacionam na série constitutiva de um processo”.

A síntese de Di Pietro68

é bem conotativa do conceito de procedimento: “O

procedimento é o conjunto de formalidades que devem ser observadas para a prática

de certos atos administrativos; equivale a rito, a forma de proceder; o procedimento se

desenvolve dentro de um processo administrativo”.

Apesar do que dissemos, no sentido de que o conceito de processo não é

exclusivo do Direito Processual, porque, conforme a doutrina contemporânea, onde

65 Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.513, verbete

“ritual”. 66 MARINELA, Fernanda. Direito administrativo, p. 967 – a transcrição é ipsis litteris. 67 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Obra citada, p. 1.056. 68 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 623.

33

quer que haja exercício de poder, para seu exercício (do poder) haverá de ser utilizado

como instrumento o processo, é interessante dar a notícia de que há autores que

continuam defendendo o emprego do termo procedimento, quando se tratar de

exercício da atividade da Administração Pública.

É o caso, para exemplificar, de Carlos Ari Sundfeld69

, que enfatizando, no que

aqui é relevante, que “[...] as diferenças básicas entre as funções jurisdicional e

administrativa influirão decisivamente na estruturação dos respectivos processos”,

sustenta que é preferível “[...] usar uniformemente a expressão procedimento

administrativo [...]”, afastando-se, com isso, a expressão processo, “[...] porque ela

está por demais ligada à atividade jurisdicional que [...] tem características próprias”.

Mais um exemplo70

, para ilustrar a observação que ora estamos fazendo, é o de

Marçal Justen Filho71

, que aponta “[...] uma característica que diferencia, de modo

absoluto, o processo judicial. Trata-se da posição do juiz, que integra a relação

processual, mas que não é titular dos interesses em conflitos”.

Assim, estimando que o ponto fundamental da questão reside na natureza

triangular da relação jurídica processual, por ter três sujeitos (juiz, autor e réu), em que

o juiz não é parte, afirma Justen Filho72

que é impossível o uso da locução processo

administrativo no âmbito da Administração Pública, o que só seria admissível “[...] na

medida em que se organizasse uma estrutura orgânica à qual se atribuísse a

competência para conduzir a solução da controvérsia na via „administrativa‟,

totalmente independente dos sujeitos em conflitos”.

Por fim, também há autores que resolvem empregar indistintamente as duas

locuções. Exemplo eloquente dessa deliberação é Celso Antônio Bandeira de Mello73

,

que embora entenda “[...] que a terminologia adequada para designar o objeto em

causa é „processo‟, sendo „procedimento‟ a modalidade ritual de cada processo”,

69 SUNDFELD, Carlos Ari. “A importância do procedimento administrativo”. In: Revista de direito público, vol.

84, pp. 64-74 [71 e 73, respectivamente]. No original, a expressão “procedimento administrativo”, contida na segunda transcrição que fizemos, está em negrito. 70 O que queremos, no texto, é deixar claro que não são apenas esses dois autores que defendem esse ponto de

vista terminológico, porque outros estudiosos também fazem idêntica sustentação, como é o caso, ainda

exemplificativamente, de Alberto Xavier (Do procedimento administrativo, pp. 133-134), Lúcia Valle

Figueiredo (Curso de direito administrativo, pp. 284-285) etc. 71 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 227. 72 JUSTEN FILHO, Marçal. “Considerações sobre o „processo administrativo fiscal‟”. In: Revista dialética de

direito tributário, vol. 33, pp. 108-132 [113]. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 228. 73 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Obra citada, p. 478.

34

esclarece que como “[...] não há pacificação sobre este tópico [...]”, “[...] usaremos

indiferentemente uma ou outra”.

3.1.2 Princípios do processo administrativo

Não há, formulada pela doutrina, uma enumeração uniforme, isto é, uma

indicação taxativa de quais são os princípios que informam o processo administrativo.

Como quer que seja, geralmente são apontados os seguintes princípios estruturadores

do processo administrativo em geral: devido processo legal, legalidade objetiva,

oficialidade, informalismo, publicidade, verdade material, contraditório e ampla

defesa, motivação das decisões.

3.1.2.1 Princípio do devido processo legal

Desde a Constituição de 1824 o devido processo legal (due process of law) é

referenciado como princípio constitucional, restrita sua aplicação, no entanto, aos

processos judiciais. A Constituição Federal de 1988, no entanto, estendeu sua

aplicação ao processo administrativo.

Trata-se de direito fundamental plantado no inciso LIV do artigo 5.º da

Constituição da República, segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de

seus bens sem o devido processo legal.

Quer-se um processo, administrativo ou jurisdicional, que esteja em

conformidade com o que determina a lei, o que assegura que as relações estabelecidas

pelo Estado sejam participativas e igualitárias. Como registra Fernanda Marinela74

, o

princípio do devido processo legal “Traz a certeza de que o processo de tomada de

decisão pelo Poder Público não seja um procedimento arbitrário, mas um meio de

afirmação da própria legitimidade e de afirmação perante o indivíduo”.

Ao registrar que o devido processo legal se realiza também na esfera

administrativa, Carlos Ari Sundfeld75

articula com o contraditório e a ampla defesa e

74 MARINELA, Fernanda. Obra citada, p. 971. 75 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público, p. 176.

35

especifica que “[...] a aplicação de sanções administrativas deve ser precedida de

procedimento onde se assegure a oportunidade para manifestação do interessado e para

produção das provas por ele requeridas, bem como o direito ao recurso etc.”.

Vem daí que a Administração Pública tem o dever de cumprir a exigência de

que na prática de seus atos observe um processo administrativo prévio, com

observância do devido processo legal, notadamente quando a decisão possa repercutir

no âmbito de interesses individuais.

Essa que pode ser, aparentemente, uma formulação somente teórica, é

exigência peculiar ao Estado Democrático de Direito, já proclamada pela Corte

Suprema do país, como, por exemplo:

CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. SUSPENSÃO DE BENEFÍCIO.

PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ALEGADA

OFENSA AO ART. 5º, XXXV, LIV e LV. OFENSA REFLEXA.

I - A jurisprudência da Corte é no sentido de que a alegada violação ao art.

5º, XXXV, LIV e LV, da Constituição pode configurar, quando muito, situação de

ofensa reflexa ao texto constitucional, por demandar a análise de legislação

processual ordinária. Precedentes. II - Como tem consignado o Tribunal, o princípio do devido processo legal,

de acordo com o texto constitucional, também se aplica aos procedimentos

administrativos. Precedentes.

III - Agravo regimental improvido.76

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

CONCURSO PÚBLICO. NOMEAÇÕES. ANULAÇÃO. DEVIDO PROCESSO

LEGAL. INOBSERVÂNCIA.

O Supremo Tribunal Federal fixou jurisprudência no sentido de que é

necessária a observância do devido processo legal para a anulação de ato

administrativo que tenha repercutido no campo de interesses individuais. Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento.77

76 BRASIL. Supremo Tribunal Federal: 1.ª Turma. RE 552057-9-MG (AgReg). Instituto Nacional do Seguro

Social – INSS versus Rosalina Esteves de Oliveira. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Acórdão de

5/5/2009. Unânime. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso: 27/7/2010. 77 BRASIL. Supremo Tribunal Federal: 2.ª Turma. RE 501869-5-RS (AgReg). Município de Júlio de Castilhos

versus Angelita Soares Martins Schneider e outros. Relator: Ministro Eros Grau. Acórdão de 23/9/2008.

Unânime. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso: 27/7/2010.

36

3.1.2.2 Princípio da legalidade objetiva

A instauração do processo administrativo somente é permitida com base na lei

e para preservá-la, não sendo validamente possível, ademais, deixar de atendê-lo no

transcurso de todo o procedimento.

Essa a tônica do processo administrativo, observando Hely Lopes Meirelles78

que a exigência, ao mesmo tempo em que ampara o particular, serve também ao

interesse público na defesa da norma jurídica objetiva, visando a manter o império da

legalidade e da justiça no funcionamento da Administração. Daí porque, como resume

esse autor, “Todo processo administrativo há que embasar-se [...] numa norma legal

específica para apresentar-se com legalidade objetiva, sob pena de invalidade”.

3.1.2.3 Princípio da oficialidade

Também chamado de princípio da impulsão, tem-se, por ele, que é à

Administração Pública, unicamente, que cabe a movimentação do processo

administrativo, ainda que instaurado por provocação do particular, assim como lhe

toca adotar tudo o que for necessário e adequado à sua instrução.

Realmente, como resume Diogo de Figueiredo Moreira Neto79

, “Sendo

prevalecente o interesse público, é curial que caiba, em princípio, à Administração,

impulsioná-lo em todas as suas fases”.

Aliás, a Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, há a previsão, como um

dos critérios a serem observados nos processos administrativos, a “impulsão, de ofício,

do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados” (artigo 2.º,

parágrafo único, inciso XII).

78 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 721. 79 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, p. 514.

37

3.1.2.4 Princípio do informalismo

Por esse princípio, são dispensados ritos rigorosos e formas solenes para o

processo administrativo, bastando que sejam observadas as formalidades necessárias

para obtenção de certeza jurídica e segurança procedimental. Não há, então, apego a

um formalismo exagerado, caracterizando-se por não ser exigido excessivo rigor na

forma de praticar os atos.

É bem de ver, no entanto, que quando houver imposição legal de uma dada

forma ou formalidade, esta deverá ser atendida, sob pena de nulidade do

procedimento, principalmente se a inobservância resultar prejuízo, como obtempera

Hely Lopes Meirelles80

, porque já aí o próprio princípio do devido processo legal

acabaria desrespeitado.

A Lei n.º 9.784/99, já referida, entre os critérios que impõe sejam observados

nos processos administrativos, indica a “observância das formalidades essenciais à

garantia dos direitos dos administrados” e a “adoção de formas simples, suficientes

para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos

administrados” (artigo 2.º, parágrafo único, incisos VIII e IX, respectivamente).

3.1.2.5 Princípio da publicidade

A Constituição da República de 1988 consagra expressamente a publicidade

como um dos princípios básicos da Administração Pública (artigo 37, caput), o que se

traduz no dever que o Estado tem de dar a maior divulgação possível aos atos que

praticar. É a chamada transparência das atividades administrativas.81

No que diz respeito especificamente aos processos administrativos, o princípio

aponta no sentido de que as pessoas têm amplo direito de acesso a tais processos. Esse

princípio, em verdade, como examina Di Pietro82

, é até mais amplo do que sua

formulação no âmbito dos processos judiciais. No processo administrativo o direito de

acesso é muito mais amplo, bastando que a pessoa demonstre ter um interesse

80 MEIRELLES, Hely Lopes. Obra citada, p. 723. 81 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Obra citada, p. 1.065. 82 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 627.

38

atingido, ou atue na defesa do interesse coletivo, ou pretenda exercitar seu direito à

informação, e desde que assim faça sem abuso, tudo isso por aplicação do disposto no

artigo 5.º, incisos XXXIII e LX, da Constituição Federal.

No plano infraconstitucional, a Lei n.º 9.784/99 ordena a “divulgação oficial

dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição”

(artigo 2.º, parágrafo único, inciso V), e a “garantia dos direitos à comunicação, à

apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos,

nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio” (artigo 2.º,

parágrafo único, inciso X). Além disso, o artigo 3.º, inciso II, dessa mesma Lei

estabelece ser direito do administrado “ter ciência da tramitação dos processos

administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter

cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas”.

3.1.2.6 Princípio da verdade material

Por esse princípio, também chamado de princípio da liberdade na prova, a

Administração está autorizada a atuar, notadamente na colheita de provas, no rumo da

obtenção da verdade real.

Assim, para chegar à sua conclusão e para que o processo administrativo

alcance, tanto quanto possível, a verdade material, a própria Administração pode

buscar as provas para tanto necessárias.

Nesse sentido, a Lei n.º 9.784/99 dispõe no caput do artigo 29 que “As

atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à

tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável

pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações

probatórias”.

3.1.2.7 Princípio do contraditório e da ampla defesa

Trata-se de princípio expresso na Constituição de 1988, em seu artigo 5.º,

inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em

39

geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes”.

A propósito do processo administrativo na esfera federal, a Lei n.º 9.784/99

estabelece, no artigo 2.º, parágrafo único, inciso X, a “garantia dos direitos à

comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à

interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações

de litígio”.

O fato é que o princípio da ampla defesa é aplicável em qualquer processo que

envolva situações de litígio ou o poder sancionatório do Estado sobre as pessoas

físicas e jurídicas, como resume Di Pietro83

.

O princípio do contraditório, inerente como é ao direito de defesa, decorre da

bilateralidade do processo: a alegação de uma das partes sobre algo de relevância no

processo, implica na audição também da outra, cuja oportunidade lhe deve ser

assegurada. Além disso, o princípio implica dar a conhecer os atos processuais ao

interessado e garantir-lhe o direito de resposta ou reação, conforme o caso.

Embora se diga, em sede doutrinária84

, que o contraditório implica na

exigência de presença de defensor, inclusive o dativo, quando for o caso, o Supremo

Tribunal Federal assentou que a falta de defesa técnica por advogado, no processo

administrativo disciplinar, não agride a Constituição Federal. Assim realmente ficou

estabelecido na Súmula Vinculante n.º 5, que tem o seguinte teor:

Súmula Vinculante n.º 5. A falta de defesa técnica por advogado no processo

administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

83 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Obra citada, p. 631. 84 Também no plano jurisprudencial infraconstitucional, o entendimento largamente preponderante sempre foi no

sentido de ser exigida a presença efetiva de advogado nos processos administrativos disciplinares, tendo o

Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, editado a Súmula 343, que tem o seguinte teor: “É obrigatória a

presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”. Porém, uma vez que as súmulas

vinculantes do Supremo Tribunal Federal submetem (também) todos os “demais órgãos do Poder Judiciário”,

como estatui expressamente a Constituição Federal (artigo 103-A), cremos que essa súmula 343 do STJ acabou

revogada pela Súmula Vinculante n.º 5, citada no texto.

40

3.1.2.8 Princípio da motivação

Esse princípio foi adotado expressamente no inciso X do artigo 93 da

Constituição Federal:

Art. 93.º [...] X – as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão

pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus

membros.

[...].

Não obstante a Constituição, nesse inciso, faça menção às decisões

administrativas no âmbito do Poder Judiciário, é uniforme o entendimento de que o

princípio se aplica também no âmbito da Administração Pública em geral.

É bem expressiva, a esse respeito, a explicação de Fernanda Marinela:

[...] se o Judiciário, no exercício de uma função atípica, a administrativa,

deve motivar os seus atos, com mais razão ainda devem fazê-lo os diversos administradores públicos que exercem tipicamente a função de administrar, devendo

a regra ser aplicada por analogia a todos os atos administrativos, independentemente

do Poder. Tal exigência de motivar para os demais Poderes, não só para o Poder

Judiciário, justifica-se ainda em razão do princípio da isonomia, que não admite

tratamento diferenciado quando se trata do exercício da mesma função

administrativa.

Aliás, para reforçar, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello85

é de que o

fundamento constitucional do princípio da motivação pode ser encontrado tanto no

artigo 1.º, inciso II, da Constituição Federal, que indica a cidadania como um dos

fundamentos da República, quanto no parágrafo único desse mesmo artigo, que

proclama que todo o poder emana do povo, como ainda no artigo 5.º, inciso XXXV,

que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito.

Com efeito, no que diz respeito a cidadania como um dos fundamentos da

República Federativa do Brasil, é fundamental que o titular do poder saiba quais as

razões que justificam os diversos atos administrativos praticados.86

Outrossim, como a Constituição garante a análise, pela Jurisdição, de qualquer

lesão ou ameaça de lesão a direito (artigo 5.º, inciso XXXV), também aí há

85 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Obra citada, pp. 112-113. 86 MARINELA, Fernanda. Obra citada, p. 978.

41

fundamento para a exigência de motivação dos atos administrativos – inclusive,

portanto, nos processos administrativos –, para que possa haver controle jurisdicional.

Afinal, como argumenta Fernanda Marinela87

, esse controle só é possível se forem

conhecidas as razões do ato; caso contrário, o juiz não poderá avaliar se o

administrador obedeceu ou não às regras legais e aos princípios constitucionais com os

da eficiência, moralidade etc.

Ainda em reforço, Marinela88

lembra que o inciso XXXIII do artigo 5.º da

Constituição89

também pode servir de fundamento para o princípio da motivação no

âmbito da Administração Pública. É que o direito de informação ficaria prejudicado

enquanto instrumento de controle dos atos da Administração, na medida em que as

pessoas não saberiam os motivos determinantes dos atos praticados nos processos

administrativos.

Essa autora90

indica ainda a alínea “b” do inciso XXXIV do artigo 5.º da

Constituição Federal91

como mais um fundamento do princípio da motivação.

Realmente, a garantia de obtenção de certidões em repartições públicas para

defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal, na medida em

que reclama, quando for caso, a indicação dos motivos dos atos praticados, inclusive

nos processos administrativos em relação aos quais é feita a postulação (de certidão),

se não observada (a garantia), deixa-a aniquilada ou esvaziada, porquanto abriria a

possibilidade de fornecimento de certidão, por exemplo, com indicação somente da

conclusão de uma decisão (dispositivo), com omissão completa dos fundamentos que a

alicerçaram.

87 MARINELA Fernanda. Obra citada, p. 980. 88 MARINELA, Fernanda. Obra citada, p. 979. 89 Que assim estabelece:

“Art. 5.º [...]

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de

interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas

aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; [...]”. 90 MARINELA, Fernanda. Obra citada, p. 979. 91 Que tem o seguinte teor:

“Art. 5.º [...]

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

[...]

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de

interesse pessoal;

[...]”.

42

Nos processos administrativos federais isso já está resolvido. É que a Lei n.º

9.784/99 ordena, em seu artigo 2.º, parágrafo único, inciso VII, a “indicação dos

pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão”. E seu artigo 50, em oito

incisos, indica várias situações em que “Os atos administrativos deverão ser

motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos”, como está no seu

caput.

O fato é que a jurisprudência já é sensível a essa construção doutrinária. O

Superior Tribunal de Justiça, a propósito, já enfatizou a necessidade de observância do

princípio da motivação:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE

SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ATO ADMINISTRATIVO. MOTIVAÇÃO. AUSÊNCIA.

1. O motivo é requisito necessário à formação do ato administrativo e a

motivação, alçada à categoria de princípio, é obrigatória ao exame da legalidade, da

finalidade e da moralidade administrativa.

2. Como ato diverso e autônomo que é, o ato administrativo que torna sem

efeito ato anterior, requer fundamentação própria, não havendo falar em retificação,

se o ato subseqüente não se limita a emendar eventual falha ou erro formal,

importando na desconstituição integral do ato anterior.

3. O ato administrativo, como de resto todo ato jurídico, tem na sua

publicação o início de sua existência no mundo jurídico, irradiando, a partir de

então, seus legais efeitos, produzindo, assim, direitos e deveres.

4. Agravo regimental improvido.92

O princípio da motivação, conforme exposto, é aplicável no âmbito do

processo administrativo, cuja inobservância o contamina de nulidade.

3.1.3 Espécies de processos administrativos

Não há, propriamente, uma classificação uniformemente adotada pelos

estudiosos desse setor do Direito Administrativo, estabelecendo por assim dizer uma

tipologia dos processos administrativos em geral.

Assim, classificações diversas são indicadas, com adoção de critérios

diferenciados, para identificação das espécies de processos administrativos existentes

no Brasil.

92 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça: 6.ª Turma. ROMS 15350-DF (AgReg). Distrito Federal versus André

Luiz Santos Gomes de Lima e outros. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. Acórdão de 12/8/2003. Unânime.

Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso: 27/7/2010.

43

Diogo de Figueiredo Moreira Neto93

, por exemplo, toma em consideração o

“ato final” objetivado, que para ele é o que “caracterizaria e batizaria cada processo”.

Desde esse ponto de vista, ele encontra (a) processos ordinatórios, (b) processos

negociais, (c) processos enunciativos e (d) processos punitivos:

Assim é que, conforme a natureza jurídica desse ato final, encontraríamos processos ordinatórios, destinados a baixar atos administrativos normativos;

processos negociais, destinados a declarar uma vontade administrativa coincidente

com um interesse privado previamente expressado, como sejam a licença, a

autorização, a dispensa, a permissão etc.; processos enunciativos, que objetivam

uma declaração certificatória ou atestatória, de ato, de fato ou de omissão; e

processos punitivos, que visam a infligir uma sanção, interna ou externa, ante

violações da lei ou de comando administrativo.

Esse mesmo professor94

faz referência a outra classificação dos processos

administrativos, “conforme sua formalização”. Por aí, exemplifica falando em

processos de edificação, utilizados pelas Prefeituras para emissão de licenças de obras;

processos de loteamento; processos tributários ou fiscais; processos disciplinares “e

assim por diante”.

Hely Lopes Meirelles95

toma o processo administrativo como gênero, que se

reparte em várias espécies, das quais cita como exemplos o processo disciplinar, o

processo tributário ou fiscal e o processo ambiental. Já levando em conta as fases do

processo administrativo, prefere esse autor96

dividir tais processos em quatro

modalidades, a saber: processo de expediente, processo de outorga, processo de

controle e processo punitivo.

Poderíamos prosseguir, inventariando outras concepções a partir das quais são

indicadas as espécies de processos administrativos. Essa tipologia, no entanto, não é

objeto de ocupação deste trabalho, que está voltado unicamente para (a) um aspecto de

(b) um específico tipo de processo administrativo, razão pela qual parece-nos

suficiente o exemplário mais acima arrolado.

Por outro lado, o que nos parece relevante notar é que em todas as

classificações apresentadas pelos autores, uma espécie de processo administrativo está

93 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Obra citada, p. 513. 94 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Obra citada, p. 513. 95 MEIRELLES, Hely Lopes. Obra citada, p. 720. 96 MEIRELLES, Hely Lopes. Obra citada, p. 727.

44

sempre presente, tal seja o chamado processo punitivo (ou de punição) ou processo

disciplinar, ou inquérito administrativo, sobre o qual diremos uma palavra em seguida.

3.1.4 Processo administrativo disciplinar

3.1.4.1 Conceito

O instrumento utilizado pela Administração Pública para apurar a existência

de infrações praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplicar as sanções

adequadas, é o chamado processo administrativo disciplinar.

Essa concepção, que imediatamente acima formulamos, está em conformidade

com o pensamento de Carvalho Filho97

. Esse, aproximadamente, também é o sentir de

Marinela98

: “O processo administrativo disciplinar é composto por um conjunto de

atos que servem de instrumento para apuração de ilícitos administrativos com a

consequente punição de faltas graves praticadas por servidores públicos”.

Essa também é a concepção retratada no Estatuto dos Servidores Civis

Federais (Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990), que assim prescreve em seu

artigo 148: “O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar

responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições,

ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido”.

É muito comum o emprego da locução processo disciplinar, assim como a

denominação de processo de punição ou punitivo, havendo também, por vezes,

referência a inquérito administrativo99

, sendo esta última a denominação mais

imprópria, uma vez que esse tipo de processo nada tem de inquisitório, como se passa,

a propósito, com o inquérito policial, cuja essência, aí sim, é inquisitorial.100

97 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Obra citada, p. 1.073. 98 MARINELA, Fernanda. Obra citada, p. 993. 99 É o caso, para ilustrar, da Lei n.º 8.112/90, que em seu artigo 151, inciso II, ao tratar das fases do processo

disciplinar, faz referência a inquérito administrativo:

“Art. 151.O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases:

[...]

II – inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;

[...]. 100 Cf. GASPARINI, Diógenes. Obra citada, p. 1.082.

45

3.1.4.2 Objeto e finalidade

O processo disciplinar tem como objeto a apuração da existência ou não de

infrações e, em caso afirmativo, a aplicação das sanções correspondentes aos

servidores públicos.

Já sua finalidade, como explica Gasparini101

, é o controle da conduta dos

servidores públicos.

3.1.4.3 Obrigatoriedade

A proclamação constitucional do princípio do contraditório e da ampla defesa,

no sentido de que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos

acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa” (artigo 5.º, inciso

LV), autoriza afirmar que sempre que um servidor for acusado de ter cometido

infração, obrigatoriamente deverá ser instaurado processo administrativo disciplinar.

É que somente nessa espécie de processo administrativo podem ser

eficazmente realizadas essas garantias constitucionais.

Por essa razão, argumenta Diógenes Gasparini102

que os tradicionais institutos

da verdade sabida (conhecimento pessoal da infração e aplicação direta da pena pela

autoridade competente) e do termo de declaração (aplicação direta da pena em razão

da confissão, em termo, do seu autor), estão proscritos de nosso ordenamento jurídico.

As normas legais anteriores à Constituição Federal de 1988, que previam esses

institutos, portanto, não foram recepcionadas pela Lei Maior, sendo nula de pleno

direito, por inconstitucional, qualquer sanção aplicada por um desses meios, salvo se

atendida a referida garantia (CF, art. 5.º, inc. LV), mas já aí haverá, então, processo

disciplinar, em cujo seio os institutos serão aplicados.

Por outro lado, o artigo 41, parágrafo 1.º, inciso II, da Constituição Federal

torna obrigatório o processo disciplinar quando o caso for de aplicação de pena de

demissão ao servidor público estável, assim estabelecendo:

101 GASPARINI, Diógenes. Obra citada, p. 1.083. 102 GASPARINI, Diógenes. Obra citada, p. 1.083.

46

Art. 41. São estáveis após 3 (três) anos de efetivo exercício os servidores

nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

§ 1.º O servidor público estável só perderá o cargo:

[...] II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla

defesa;

[...].

Afirmamos há pouco, a propósito da extensão do princípio constitucional do

contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5.º, LV), que é obrigatória a instauração de

processo administrativo disciplinar sempre que um servidor público sofrer acusação de

prática de infração.

Isso poderia levar, então, ao entendimento de que essa disposição

constitucional logo acima transcrita é desnecessária, porque a disposição do artigo 5.º,

inciso LV, da Carta Política é mais abrangente, alcançando tanto o servidor estável

como o não estável, de modo que a garantia do prévio processo administrativo se

aplicaria a ambos, indistintamente.

Esse modo de pensar, no entanto, seria equivocado, porque o disposto no

inciso II do parágrafo 1.º do artigo 40 da Constituição da República não é contraditório

nem desnecessário. É preciso ter em conta que o servidor estável tem a garantia do

prévio processo administrativo para um caso em que houver previsão legal de pena de

demissão como sanção. Já o servidor não estável, ainda que a (afirmada) infração não

seja desse gênero, poderá ser desligado, se durante o estágio probatório vier a revelar

inadequação para o cargo.

Celso Antônio Bandeira de Mello103

bem explica o que estamos sintetizando:

Poder-se-ia imaginar, num primeiro relanço, que o § 1.º do art. 41, ora “sub

examine”, contém disposição supérflua e incongruente, pois o art. 5.º, inciso LV, da

atual Constituição teria produzido autêntica uniformização entre estáveis e não

estáveis, na medida em que outorgou a todas as pessoas direito à ampla defesa nos

processos administrativos. É que o referido inciso LV do art. 5.º assim dispõe: “aos

litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são

assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes”.

103 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regime constitucional dos servidores da administração direta e

indireta, pp. 98-99 – os destaques são do original. Esse também é o entendimento de Diógenes Gasparini (obra

citada, p. 1.084), inclusive com transcrição da passagem aqui citada no texto, de Celso Antônio Bandeira de

Mello.

47

Bem examinada a questão, entretanto, percebe-se que o disposto no § 1.º do

art. 40 não é supérfluo nem contraditório com o art. 5.º, LV. Adilson Dallari, com

razão, observa que o servidor estável só poderá ser demitido quando incurso em

alguma infração para a qual se preveja, como sanção, a pena de demissão. Já os não

estáveis, ainda que sem cometerem infrações deste gênero, podem ser desligados se,

durante o estágio probatório, vierem a revelar inadequação ao cargo. É certo apenas

que, em ambos os casos, haverá direito à garantia estabelecida no art. 5.º, LV.

É fora de dúvida, portanto, que não é contraditório nem supérfluo o disposto

no artigo 41, parágrafo 1.º, inciso II, da Constituição Federal. Do que foi dito, agora

em outras palavras: o servidor estável só pode ser demitido quando para a infração de

que é acusado, a pena cominada for de demissão; já o servidor não estável, pode ser

demitido, ainda que para a infração não houver cominação de pena de demissão,

bastando que no processo fique revelada sua inadequação para o cargo.

O que há de comum, em ambos os casos, é a garantia estabelecida no artigo

5.º, inciso LV, da Constituição Federal, isto é, a imperiosidade do processo

administrativo disciplinar tanto para o estável como para o não estável.

3.1.4.4 Princípios do processo administrativo disciplinar

Os princípios a serem observados no âmbito do processo disciplinar são,

basicamente, os mesmos do processo administrativo em geral, até porque se são

aplicáveis ao gênero, pela mesma razão se aplicam à sua espécie. Por todos, Diógenes

Gasparin104

faz advertência no sentido que estamos expondo.

Por essa razão, é de todo desnecessário fazer considerações sobre tais

princípios, porque sobre eles já fizemos abordagem neste capítulo.

O que a nosso juízo é muito importante considerar agora, em relação ao ponto

que chegamos no presente trabalho, especialmente quanto ao seu ponto central, reside

em verificar e responder se o princípio do juiz natural deve ou não ser observado no

processo administrativo disciplinar.

Essa, no entanto, é questão que reclama desenvolvimento a partir do que até

aqui foi visto, o que faremos em seguida, em novo capítulo.

104 Obra citada, p. 1.084.

48

4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E O PROCESSO DISCIPLINAR

4.1 DEVIDO PROCESSO LEGAL, JUIZ NATURAL E PROCESSO DISCIPLINAR

Em capítulo anterior voltamos nossa atenção para o princípio do devido

processo legal (due process of law), momento em que demonstramos, com base em

doutrina e jurisprudência da mais alta Corte de Justiça do País – o Supremo Tribunal

Federal –, que esse postulado constitucional fundamental tem aplicação no âmbito dos

processos administrativos.

O que pretendemos agora, nesta seção, como antecedente para sustentação de

nosso ponto de vista sobre o assunto, é demonstrar a articulação inevitavelmente

existente entre o due process of law, o princípio do juiz natural e o processo

administrativo disciplinar.

Como demonstra Carlos Roberto de Siqueira Castro105

, principalmente a partir

da segunda metade do século XX, as relações jurídicas em geral entre a sociedade civil

e a Administração Pública não só se ampliaram como se tornaram cada vez mais

complexas, sem esquecer, paralelamente, a maior visibilidade do intervencionismo

estatal. Esses fatores acabaram contribuindo fortemente para que o devido processo

legal se ampliasse, para, do campo processual civil e penal, alcançar também os

procedimentos desenvolvidos no âmbito da Administração Pública, encontrando no

Direito Administrativo da atualidade um campo extremamente fértil para a sua mais

recente afirmação.

105 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

Constituição do Brasil, pp. 40-41 e 319.

49

Essa hoje em dia indiscutível aplicação do princípio do devido processo legal

no âmbito da Administração Pública, implica necessariamente na aplicação também do

princípio do juiz natural.

Desde logo, vem à lembrança a profunda pesquisa realizada por Nelson Nery

Júnior106

, para demonstrar que o devido processo legal é a base sobre a qual todos os

outros princípios constitucionais processuais se sustentam. A relação, digamos assim,

é de gênero para espécie. E entre os princípios que aparecem como manifestações do

devido processo legal, está o princípio do juiz natural.

Essa constatação é também a de Sálvio de Figueiredo Teixeira107

, ao concluir

que o due process of law é “[...] síntese de três princípios fundamentais, a saber, do

juiz natural, do contraditório e do procedimento regular”.

Fernanda Marinela108

, do mesmo modo, adverte que “Seguir o devido

processo legal significa observar todos os demais princípios apontados no texto

constitucional e na forma infraconstitucional [...]”.

Geraldo Ataliba109

, em obra referenciada por todos os publicistas da

atualidade, afirma o que estamos realçando, o que faz de modo contundente:

De acordo com os postulados resumidos nesta fecunda expressão [devido

processo legal], prenhe de conteúdo constitucional, os direitos à vida, liberdade e

propriedade são protegidos contra o poder por um processo ordenado, leal e adequado, segundo o Direito; isto veio a significar, hodiernamente: processo

contraditório, no qual as partes são tratadas com igualdade, na forma de normas

adjetivas claras, aplicando-se lei prévia, mediante autoridade imparcial e

independente de um juiz natural. Tal é a garantia processual que nos oferece o

direito constitucional positivo brasileiro.

Vem daí que não se pode falar, validamente, ter sido observado o devido

processo legal em um processo em que não se tenha observado o contraditório; não

haverá devido processo legal ali onde houver julgamento com base em provas obtidas

por meio ilícito; devido processo legal não será cumprido no processo em que a

amplitude de defesa for denegada. Não há, induvidosamente, como refugir disto: sem

juiz natural, não há devido processo legal.

106 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, pp. 32-33. 107 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. “O processo civil na nova Constituição”. In: Revista de processo, vol. 53,

pp. 78-84 [81] – no original não há o destaque em itálico. 108 MARINELA, Fernanda. Direito administrativo, p. 972. 109 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 121 – o destaque em itálico é do original.

50

Complementando a articulação, é o caso de desde logo referir, conjugando os

três termos: (a) se o devido processo legal (gênero) se aplica ao processo

administrativo e (b) se o juiz natural é autêntica espécie do devido processo legal, não

há como não concluir que (c) o princípio do juiz natural se aplica ao processo

administrativo.

Mas o aspecto central deste nosso texto é o processo administrativo

disciplinar. Isso, como parece evidente, leva necessariamente à mesmíssima

conclusão: (a) se o processo administrativo, como demonstramos em capítulo anterior,

é gênero, e (b) se o processo administrativo disciplinar é sua espécie, não há outra

conclusão: (c) o princípio do juiz natural também se aplica no âmbito do processo

administrativo disciplinar.

Quanto a essa conclusão, Romeu Felipe Bacellar Filho110

é categórico: “A

normatividade do princípio do juiz natural informa o processo administrativo

(inclusive o disciplinar)”.

Rafael Munhoz de Mello111

, em monografia sobre o assunto, observa que o

princípio do juiz natural, inerente à ideia de devido processo legal, “veda a criação de

tribunais de exceção, instituídos post facto para julgar um determinado e específico

caso”. Tem-se aí, conforme esse autor, “a garantia da autoridade administrativa

natural, correlata à do juiz natural que se aplica ao processo judicial”.

Egon Bockmann Moreira112

também reconhece aplicável aqui o princípio do

juiz natural:

O art. 5º, LIII, do Texto Maior estabelece que “ninguém será processado nem

sentenciado senão pela autoridade competente”, e seu inciso XXXVII proíbe “juízo

ou tribunal de exceção”, expressões constitucionais do princípio do juiz natural –

autoridade com competência legal expressa para processar e julgar, definida anteriormente ao fato objeto do processo. Como leciona Ana Paula Oliveira Ávila,

“tanto as funções de processamento quanto a emissão de juízos críticos e decisões

são desempenhadas pela Administração, de modo que nada mais justo do que fazer

incidir nessas atividades a garantia do juiz natural. E com ela, naturalmente, o dever

de imparcialidade, pois seria inútil disciplinar previamente um sistema de

distribuição de competências caso fosse permitido à autoridade legalmente

constituída atuar com parcialidade”.

110 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar, p.

298. 111 MELLO, Rafael Munhoz de. “Processo administrativo, devido processo legal e a lei nº 9.784/99”. In: Revista

de direito administrativo, vol. 227, pp. 81-104 [99]. 112 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a lei 9.784/1999, p. 309.

51

A doutrina contemporânea, portanto, como os exemplos acima atestam, é

largamente majoritária no sentido de que o princípio do juiz natural se aplica ao

processo disciplinar.

O que é necessário, então, é verificar se nessa sede – no processo disciplinar –

é viável a aplicação da tríplice configuração que integra o princípio do juiz natural,

conforme desenvolvemos em capítulo anterior.

Naquela passagem, em resumo, verificamos que o princípio do juiz natural

tem como conteúdo (a) a proibição de juízo ou tribunal de exceção, a (b) exigência de

juiz competente e (c) imparcial. Com outras palavras: especificamente no âmbito do

processo disciplinar é viável articular com a presença desse tríplice conteúdo do

princípio do juiz natural? Vejamos.

4.2 JUIZ NATURAL: PREEXISTÊNCIA DO ÓRGÃO JULGADOR

A proibição de juízo ou tribunal de exceção, dissemos antes, significa que

ninguém pode ser subtraído ao juiz natural pré-constituído por lei. Quer-se o

estabelecimento, antecipada e abstratamente, de quem são os julgadores que com

imparcialidade, e em que medida (competência), poderão validamente atuar nos casos

que lhes forem submetidos.

Desde logo, não pode aparecer como obstáculo o fato de a Constituição

Federal, na literalidade do inciso XXXVII do artigo 5.º, falar em juízo e em tribunal:

“não haverá juízo ou tribunal de exceção”.

Com efeito, a palavra juízo, no texto constitucional, autoriza o entendimento

de que se trata do julgamento que ocorre (também) no processo administrativo

disciplinar, onde há um juízo administrativo, como demonstra Bacellar Filho113

,

secundado por Rafael Munhoz de Mello.114

Aliás, na própria Constituição Federal vamos encontrar a referência a juízo

administrativo. É ver, por exemplo, que o artigo 71, inciso II, estabelece ser

113 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Obra citada, p. 298. 114 MELLO, Rafael Munhoz de. Obra citada, vol. 227, p. 99, nota de rodapé 46, onde é transcrito o entendimento

de Romeu Felipe Bacellar Filho, dizendo Mello ter o mesmo pensamento.

52

competência do Tribunal de Contas “julgar as contas dos administradores e demais

responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos [...]”, acrescentando no inciso VIII

do mesmo artigo que a esse órgão administrativo115

compete “aplicar aos responsáveis,

em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em

lei [...]”.

O vocábulo tribunal, por seu turno, não quer dizer necessariamente tribunal

jurisdicional, isto é, tribunal judiciário. Também vem para aqui, a propósito, o

exemplo que acabamos de mencionar, relativamente ao Tribunal de Contas, que não é

integrante do Poder Judiciário.

Pois bem. O órgão julgador, destarte, no processo disciplinar, deve anteceder

ao fato, é imprescindível que seja órgão pré-constituído abstratamente, como averba a

Ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha116

, em estudo sobre os princípios

constitucionais do processo administrativo:

Princípio constitucional processual encarecido no sistema democrático e que

tem raízes remotas é o do juiz natural. Emanado também do princípio da igualdade

jurídica (que proíbe a discriminação beneficiadora tanto quanto a prejudicial a

alguém, o que, no caso, ocorreria pela escolha específica de julgador para

determinado caso e pessoa), o princípio do juiz natural compõe-se da garantia de

juízo preconstituído, de um lado, e pela segurança de que o julgamento será feito por

um órgão e agentes pré-qualificados, sem vinculação ao caso posto à análise, o que

assegura a imparcialidade do julgado.

Essa exigência, no Estado do Paraná, é atendida em relação aos servidores do

Poder Judiciário. Com efeito, a Lei Estadual n.º 16.024, de 19 de dezembro de 2008,

que “Estabelece o regime jurídico dos funcionários do Poder Judiciário do Estado do

Paraná”, prevê a criação de Comissão Disciplinar para atuar nos processos

administrativos disciplinares durante os dois anos seguintes, prorrogável esse biênio

por até mais dois anos. É o que dispõe o artigo 204, parágrafo 4.º, dessa Lei:

115 O Tribunal de Contas não integra a estrutura do Poder Judiciário brasileiro (CF, art. 92). Trata-se, como explica Alexandre de Moraes (Direito constitucional, p. 432), de “[...] órgão auxiliar e de orientação do Poder

Legislativo, embora a ele não subordinado, praticando atos de natureza administrativa, concernentes,

basicamente, à fiscalização”. Tem esse Tribunal, por conseguinte, “apenas a natureza de órgão auxiliar do Poder

Legislativo, no que tange à função de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial

da Administração direta e indireta”, com o que sua atuação não tem “função jurisdicional, pois não julga pessoas

nem dirime conflitos de interesses, mas apenas exerce um julgamento técnico de contas” (SILVA, José Afonso

da. Comentários contextual à Constituição, p. 466 – o destaque em itálico é do original). 116 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. “Princípios constitucionais do processo administrativo no direito

brasileiro”. In: Revista de direito administrativo, vol. 209, pp. 189-222 [217].

53

Art. 204. O Secretário do Tribunal de Justiça é competente para ordenar a

instauração de procedimentos disciplinares, nomear e designar integrantes para

Comissão Disciplinar e aplicar as penalidades disciplinares.

[...] § 4.º A Comissão Disciplinar será composta de 03 (três) funcionários

ocupantes de cargos efetivos, estáveis e bacharéis em Direito, pelo prazo de 02

(dois) anos, prorrogável por até mais (02) dois anos.

Como se vê, essa Comissão Disciplinar é constituída antecipadamente à

ocorrência de qualquer fato que seja considerado como infração praticada por servidor

do Poder Judiciário Estadual. É, em uma palavra, a pré-constituição exigida pelo

princípio do juiz natural.

Isso não ocorre, ainda ilustrativamente, no que diz respeito aos servidores do

Poder Executivo paranaense. A Lei Estadual n.º 6.174, de 16 de novembro de 1970,

que “Estabelece o regime jurídico dos funcionários civis do Poder Executivo do

Estado do Paraná”, ao dispor sobre o processo administrativo disciplinar, deixa claro

que a comissão respectiva será designada quando o fato (dito) ilícito acontecer:

Art. 315. Promoverá o processo uma comissão designada pela autoridade que

houver determinado a sua instauração e composta de três funcionários efetivos de

alta hierarquia funcional.

[...].

Juízo de exceção, não há dúvida: a comissão é designada depois da ocorrência

do fato (post factum), e para apurar aquele determinado fato, o que inegavelmente não

atende à imposição constitucional, que proíbe juízos criados após o fato para a

resolução de um caso específico.

4.3 JUIZ NATURAL: COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO JULGADOR

A competência é a primeira condição de legalidade, como resume Egon

Bockmann Moreira117

, com apoio em Caio Tácito.

Na explicação de Romeu Felipe Bacellar Filho118

, o princípio, quanto a esse

aspecto competencial, estende-se obrigatoriamente à autoridade que desempenha o

117 MOREIRA, Egon Bockmann. Obra citada, p. 333.

54

ofício da acusação, à autoridade que conduz o processo (competência instrutória) e à

autoridade com competência decisória, a quem compete definir e aplicar a sanção, se

for o caso.

Caso esse prévio estabelecimento de competência não seja atendido, aberta

estará a possibilidade de arbitrariedade: conforme a situação, ocorrido um fato (tido

como ilícito), seria constituído o órgão julgador de encomenda: rigoroso para os

inimigos, ou benevolente para os apaniguados. Daí a necessidade de a competência ser

definida antes da ocorrência do fato, como refere Rafael Munhoz de Mello119

:

Salta aos olhos que a arbitrariedade teria grande espaço para florescer se

fosse dado ao Estado designar, após a ocorrência do fato, a autoridade encarregada

do julgamento. Conforme os interesses do momento, seria constituído órgão

julgador mais rigoroso (para os inimigos) ou mais benevolente (para os

apaniguados). Daí a necessidade de que a competência para proferir julgamento em

processo administrativo esteja definida em lei anterior à ocorrência do fato.

4.4 JUIZ NATURAL: IMPARCIALIDADE DO ÓRGÃO JULGADOR

A expressão procedural due process, isto é, devido processo legal em sentido

processual, no Direito Processual americano significa o dever que tem o Estado de

propiciar ao cidadão, no que aqui importa, um juiz imparcial.

É famoso o julgamento, pela Suprema Corte dos Estados Unidos120

, do caso

solesbee v. Balcom, quando o juiz Felix Frankfurter realçou a singularidade do devido

processo legal, enfatizando a importância de o cidadão ter um julgador “imparcial, reto

e justo”:

Acha-se assentada a doutrina por esta Corte que a cláusula do due process

enfeixa um sistema de direitos baseado em princípios morais tão profundamente

enraizados nas tradições e sentimentos de nossa gente, de tal modo que ela deve ser

julgada fundamental para uma sociedade civilizada tal como concebida por toda

118 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Obra citada, p. 303. 119 MELLO, Rafael Munhoz de. Obra citada, vol. 227, p. 99. 120 U.S. Supreme Court. Solesbee v. Balcom, 339 U.S., 9, 16 (1950), argued november 15, 1949, decided

february 20, 1950. Tradução livre. No original: “Does the Due Process Clause then bar a State from executing a

man under sentence of death while insane? It is now the settled doctrine of this Court that the Due Process

Clause embodies a system of rights based on moral principles so deeply embedded in the traditions and feelings

of our people as to be deemed fundamental to a civilized society as conceived by our whole history. Due Process

is that which comports with the deepest notions of what is fair and right and just”. Fonte:

http://supreme.justia.com/us/339/9/case.html. Acesso: 27/7/2010.

55

nossa história. Due process é aquilo que diz respeito às mais profundas noções do

que é imparcial, reto e justo.

No Brasil, no âmbito dos processos administrativos, há muitos anos Manoel

de Oliveira Franco Sobrinho121

já acentuava que a moralidade finca a imparcialidade

administrativa como “[...] condição legal imperativa na aplicação dos textos legais e

sobretudo nas práticas governamentais. Fugir dela, é fugir da lei, da norma-ordenança,

do princípio hoje consagrado nas cartas avançadas”.

É preciso haver certeza prévia da não-vinculação da atividade instrutória e

decisória em favor de qualquer uma das partes envolvidas no processo administrativo

disciplinar (servidor ou Administração); exige-se, mesmo, independência e ausência

de submissão hierárquica no que concerne ao conteúdo das decisões.122

4.5 APLICAÇÃO PRÁTICA DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NO PROCESSO

DISCIPLINAR

A jurisprudência começa a ser sensível à conclusão que este trabalho

proporciona: o princípio do juiz natural é aplicável no processo disciplinar.

Realmente, no julgamento do Mandado de Segurança 13250-DF, o Superior

Tribunal de Justiça123

manifestou esse entendimento:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR. POLICIAL FEDERAL. ART. 53, § 1º, DA LEI Nº 4.878/65.

COMISSÃO AD HOC. NULIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA.

A designação de comissão temporária para promover processo administrativo

disciplinar contra servidor policial federal viola os princípios do juiz natural e da

legalidade, a teor do art. 53, § 1º, da Lei 4.878/65, lei especial que exige a condução

do procedimento por Comissão Permanente de Disciplina. (Precedentes: MS

10.585/DF, 3ª Seção, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ de 26/02/2007 e MS 10.756/DF,

Rel. Min. Paulo Medina, cujo voto foi modificado após voto-vista do Min. Arnaldo

Esteves Lima, DJ de 30/10/2006.) Segurança concedida.

121 FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. O princípio constitucional da moralidade administrativa, p. 17. 122 MOREIRA, Egon Bockmann. Obra citada, p. 120. 123 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça: 3.ª Seção. MS 13250-DF. Marcos Aurélio Soares Bomfim versus

Ministro de Estado da Justiça. Relator: Ministro Felix Fischer. Acórdão de 5/12/2008. Unânime. Disponível em:

www.stj.jus.br. Acesso: 27/7/2010.

56

A Corte Superior de Justiça entendeu, ao acolher o voto do relator, que no

caso em exame a validade do processo administrativo disciplinar “está condicionada à

promoção por Comissão Permanente de Disciplina, devidamente instituída, em estrita

observância aos princípios constitucionais da legalidade e do juiz natural”.

Foi reconhecido que no caso do processo administrativo disciplinar em

exame, “o princípio é de aplicação cogente [...], cuja inobservância conduz à nulidade

absoluta do procedimento, por macular garantia processual do acusado”.

O que se extrai, portanto, é que a observância do princípio do juiz natural

(também) no processo administrativo disciplinar já passa a ser reconhecida como

obrigatória pelos Tribunais brasileiros.

4.6 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E O PRINCÍPIO DO JUIZ

NATURAL

Ao fim da presente pesquisa, firmamos a convicção de que o processo

disciplinar deve estrita obediência ao princípio do juiz natural.

Não se pode negar que a garantia do devido processo legal reveste-se de

extremo rigor quando estiver em questão a aplicação de penalidades administrativas124

,

não se podendo esquecer, ao mesmo tempo, que o processo administrativo é meio

ativo de exercício e garantia dos direitos individuais125

.

Nesse contexto, o processo administrativo disciplinar, por dizer tão de perto

com valores caros ao Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais do

servidor público, reclama, para sua validade e legitimidade, fiel observância do

princípio do juiz natural.

124 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. Obra citada, pp. 347-348. 125 MOREIRA, Egon Bockmann. Obra citada, p. 65.

57

CONCLUSÕES

Embora este trabalho tenha uma conclusão central, isto é, referente ao tema

central que norteou a pesquisa, ao longo de seu desenvolvimento algumas conclusões

parciais foram extraídas, à medida que íamos preparando ou encaminhando a

exposição para o exame da questão fundamental.

Por essa razão, tomando o trabalho como um todo, é possível sumariar as

seguintes conclusões:

1. Os princípios jurídicos têm na atualidade extraordinária importância,

estando no centro do sistema jurídico, sendo por isso norma indiscutivelmente

vinculante para a interpretação e a aplicação das normas jurídicas em geral.

2. Princípio e regra jurídica, são espécies de norma jurídica, que é seu gênero,

uma vez que hoje em dia não há mais espaço para discussão acerca da normatividade

dos princípios.

3. Conceitualmente, o princípio do juiz natural tem tríplice configuração, que

informa seu conteúdo, devendo por isso ser compreendido, em virtude do que dispõem

as duas passagens sobre na Constituição Federal (artigo 5.º, incisos XXXVII e LIII),

como o direito fundamental que a pessoa tem de somente ser submetida a processo ou

julgamento por um (a) juiz ou tribunal preexistente (e não um juiz ou tribunal ad hoc),

que seja (b) competente e (c) imparcial.

4. A ideia de juiz natural, tendo-se em conta a proibição de juízo ou tribunal

de exceção, aponta para a exigência de juízo ou tribunal pré-constituído, sendo

necessário, nesse sentido, que se tenha presente a ideia de predeterminação abstrata do

órgão julgador.

58

5. A exigência de juiz competente leva ao entendimento de que juiz natural é o

juiz constitucional, isto é, aquele indicado na Constituição como o competente,

absolutamente, para processar e julgar as situações que vierem a ocorrer.

6. A exigência de imparcialidade do juiz impõe que o processo seja conduzido

e julgado por magistrado investido de autoridade jurisdicional, atuando sem submeter-

se a quaisquer pressões ou influências, sujeitando-se apenas ao ordenamento jurídico.

7. O processo administrativo, enquanto relação jurídica entre as pessoas que

nele interagem no âmbito da Administração Pública em geral, é expressão empregada

em mais de um sentido: (a) conjunto de papéis e documentos organizados numa pasta;

(b) processo disciplinar; (c) atos preparatórios de uma decisão administrativa final; e

em sentido mais amplo, (d) designa o conjunto de atos coordenados para a solução de

uma controvérsia no âmbito administrativo.

8. Procedimento administrativo é expressão voltada para o aspecto exterior do

processo, na medida em que tem a ver com a maneira como o processo se desenvolve,

de seu início até o último ato praticado; sua dinâmica, em uma palavra.

9. O instrumento utilizado pela Administração Pública para apurar a existência

de infrações praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplicar as sanções

adequadas, é o processo administrativo disciplinar.

10. Por força do constitucional princípio do contraditório e da ampla defesa,

sempre que um servidor for acusado de ter cometido infração, obrigatoriamente deverá

ser instaurado processo administrativo disciplinar, porque somente nessa espécie de

processo administrativo podem ser eficazmente realizadas essas garantias

constitucionais.

11. O princípio do devido processo legal é garantia constitucional que se

reveste de extremo rigor quando estiver em questão a aplicação de penalidades

administrativas, não se podendo esquecer, outrossim, que o processo administrativo é

meio ativo de exercício e garantia dos direitos individuais.

12. Nesse contexto, o processo administrativo disciplinar, por dizer tão de

perto com valores caros ao Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais

do servidor público, reclama, para sua validade e legitimidade, fiel observância do

princípio do juiz natural.

59

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