Usina Hidrelétrica de BELO MONTE - O descompasso e o piroscópio

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Tese de doutorado de Ivan Dutra Faria.Uma análise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidrelétrica BELO MONTEMelhor e mais imparcial estudo sobre o assunto. Ele analisa os argumentos favoráveis e os contrários a construção da usina e diz: "Nesse contexto, é possível se considerar a hipótese de que todos tenham razão."

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL CDS

"O DESCOMPASSO E O PIROSCPIO: Uma anlise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte"

Ivan Dutra Faria

Orientador: Prof. Dr. Paulo Gonalves Egler

Tese de Doutorado

Braslia-DF: Novembro/ 2004

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UNIVERSIDADE DE BRASLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL"O Descompasso e O Piroscpio: Uma anlise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte" Ivan Dutra Faria Tese de Doutorado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Doutor em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao em Poltica e Gesto Ambiental.

Aprovado por: _____________________________________ Paulo Csar Gonalves Egler, PhD. (Orientador) _____________________________________ Doris A. Villamizar Sayago, DSc. (Examinador Interno) ____________________________________ Jos Augusto Leito Drummond, DSc. (Examinador Interno) ____________________________________ Alessandra Magrini, DSc. (Examinador Externo) ____________________________________ Brasilmar Ferreira Nunes, DSc. (Examinador Externo)

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FARIA, IVAN DUTRA. "O Descompasso e O Piroscpio: Uma anlise dos conflitos socioambientais do projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte", 390p, 297 mm, (UnB-CDS, Doutorado, Poltica e Gesto Ambiental, 2004). Tese de Doutorado Universidade de Braslia. Centro de Desenvolvimento Sustentvel. 1. Conflitos 3.Amaznia I. UnB-CDS 2. Setor Eltrico e Meio Ambiente 4. Usina Hidreltrica Belo Monte II. Ttulo (srie)

concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias desta tese e emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte desta tese de doutorado pode ser reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.

______________________________ Ivan Dutra Faria

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DEDICATRIA

Este o resultado de um trabalho coletivo. Nunca estive s. minha esposa, Muriel, e aos meus filhos, Evaristo, Flvia e Maria Vitria, que nunca me deixaram sofrer sozinho, nessa desgastante caminhada, dedico, carinhosamente, esta tese. Ao meu pai, Joo, minha me, Ilma e minha irm, Ftima, com quem sempre poderei contar, mesmo no estando mais a minha me entre ns, nessa vida. Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Gonalves Egler, pela maneira solidria, competente e digna com que se portou, dando uma dimenso exata palavra orientao. Ao meu amigo Edmundo Antnio Taveira Pereira, com quem tive a honra de comear a trajetria que deu origem a esta tese e a quem serei eternamente grato pelas incontveis demonstraes de amizade verdadeira.

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AGRADECIMENTOS

Agradeo a Deus, que a quem se deve agradecer nessa hora, pela sade e pela proteo contra os obstculos surgidos ao longo do caminho.

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RESUMOEste trabalho investiga os conflitos socioambientais de projetos hidreltricos na Amaznia. Para tanto, foram utilizados como marcos referenciais os modelos de Georg Simmel e de Kai N.Lee para anlise de conflitos e para a busca de uma Aprendizagem Social, respectivamente. O foco principal da pesquisa colocado sobre o projeto da usina hidreltrica Belo Monte, no rio Xingu, sudoeste do estado do Par. O local do barramento previsto se situa prximo s cidades de Altamira e Vitria do Xingu, onde se deram os eventos que compuseram a cena na qual os atores mais relevantes relacionados com o projeto atuaram. Os conflitos socioambientais do setor eltrico na Amaznia so investigados por meio da anlise da atuao da Eletronorte na regio, em especial em relao ao projeto de Belo Monte. Essa anlise privilegia os aspectos de comunicao com a sociedade, de democratizao da informao, de negociao dos empreendimentos e da mediao dos conflitos.

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ABSTRACTThis work investigates the social and environmental conflicts of hydroelectric projects in Amazon. Therefore, the models of Georg Simmel and Kai N.Lee were used as reference to the conflict analyses, as well as to the search for a Social Learning, respectively. The researchs main focus is on the project of Belo Monte Hydroelectric Power Plant, in Xingu river, southeast of the State of Par. The foreseen locality of the dam lies next to cities of Altamira and Vitoria do Xingu, where the events that composed the scene took place, in which the most relevant actors related to the project performed.

The electric sectors social and environmental conflicts in Amazon are analyzed through the analyses on Eletronortes performance in the region, specially regarding the project of Belo Monte. This analyses gives privilege to the aspects of communication with the society, democratization of information, negotiation on the projects and the mediation of conflicts.

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SUMRIO

INTRODUO.............................................................................................................1

CAPTULO 1: TRAANDO RUMOS......................................................................13 1.1 Introduo....................................................................................................................13 1.2 Viso de mundo...........................................................................................................15 1.3 A escolha Metodolgica..............................................................................................26 1.3.1 Metodologia da pesquisa.............................................................................26 1.3.2 Modelos adotados na pesquisa....................................................................34 1.4 Apresentao dos mtodos adotados na pesquisa.......................................................55 1.5 Concluso....................................................................................................................64

CAPTULO 2: A VALIDAO DA INFORMAO.........................................66 2.1. Introduo..................................................................................................................66 2.2 Informao e escolha..................................................................................................67 2.3 Informao e controle.................................................................................................71 2.3.1 Informao sobre a sociedade ou para a sociedade?..................................71 2.4 A informao e a legislao ambiental.......................................................................77 2.5. Informao e descontrole..........................................................................................86 2.5.1 O caso Chernobyl......................................................................................86 2.5.2 O csio de Goinia e o reator de Angra dos Reis......................................88

ix 2.5.3 Mdia e Internet ........................................................................................90 2.5.4 Na Academia: o caso Sokal.......................................................................95 2.6 Concluso ...............................................................................................................107

CAPTULO 3: AMAZNIA, AMAZNIAS!................................................108 3.1 Introduo...............................................................................................................108 3.2 Uma viso particular das questes amaznicas......................................................111 3.3. Vises das Amaznias...........................................................................................125 3.3.1 Buscando exemplo de vises territoriais................................................125 3.3.2 Buscando exemplos de vises de usos florestais...................................134 3.3.3 Buscando exemplos de vises conspiratrias........................................148 3.3.4 Buscando exemplos de vises de Estado...............................................162 3.3.5 Buscando exemplos de vises estratgicas............................................182 3.4 Concluso...............................................................................................................203

CAPTULO 4: SETOR ELTRICO, MEIO AMBIENTE E AMAZNIA, EM UMA INTERSEO CONFLITADA....................................................................205 4.1. Introduo...........................................................................................................205 4.2 Os conflitos do setor eltrico...............................................................................206 4.3 Os conflitos no setor ambiental............................................................................233 4.4 Os conflitos na Eletronorte..................................................................................254 4.4.1 Distinguindo os conflitos.....................................................................254 4.4.2 Os conflitos de Tucuru.......................................................................262 4.4.3 Os conflitos em Balbina, Samuel e Manso.........................................272

x 4.5 Concluso............................................................................................................279

CAPTULO 5: DESCOMPASSO E PIROSCPIO (UMA HISTRIA DE CONFLITOS EMERGE EM BELO MONTE)...281 5.1 Introduo.........................................................................................................281 5.2 O CHE Belo Monte e a regio de Altamira......................................................283 5.3 O descompasso.................................................................................................316 5.4 O Piroscpio ....................................................................................................329 5.5 Concluso.........................................................................................................365 CONCLUSO......................................................................................................365

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS

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LISTA DE QUADROS, FIGURAS E TABELASQuadro 3.1: Anexo B do Protocolo de Quioto (p.135) Figura 3.1: Mapa no-validado da Amaznia (p.151) Figura 3.2: Mapa no-validado do Brasil (p.151) Box 4.1: Anedota sobre o Ibama (p.243) Quadro 4.1: reas protegidas associadas UHE Balbina (p.275) Figura 5.1: Localizao do Projeto Belo Monte (p.286) Figura 5.2: Imagem de satlite da Volta Grande do Xingu (p.287) Quadro 5.1 Dados principais do CHE Belo Monte (p.293) Tabela 5.2: Pesquisa de opinio sobre o projeto do CHE Belo Monte (p.359)

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASAciapa: Associao Comercial, Industrial, Agrcola e Pastoril de Altamira. Aneel: Agncia Nacional de Energia Eltrica Arpa: reas protegidas da Amaznia BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento Bird: Banco Mundial CCMA: Comit Consultivo de Meio Ambiente da Eletrobrs Cesp: Companhia Energtica de So Paulo S.A. Cemig: Centrais Eltricas de Minas Gerais S.A. CEEE: Companhia Estadual de Energia Eltrica S.A. Cepel: Centro de Pesquisas de Energia Eltrica Chesf: Centrais Hidreltricas do So do So Francisco S.A. CMB: Comisso Mundial de Grandes Barragens CNEC: Consrcio Nacional de Engenheiros Consultores Comase: Comit Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do Setor Eltrico CNPE: Conselho Nacional de Poltica Energtica Conama: Conselho Nacional de Meio Ambiente Dnaee: Departamento Nacional de guas e Energia Eltrica EIA: Estudo de Impacto Ambiental Eletrobrs: Centrais Eltricas Brasileiras S.A. Eletronorte: Centrais Eltricas do Norte do Brasil S.A. Eletrosul: Centrais Eltricas do Sul do Brasil S.A. Furnas: Centrais Eltricas de Furnas S.A. GCPS: Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Eltricos GCOI: Grupo Coordenador para Operao Interligada GTA: Grupo de Trabalho da Amaznia Ibama: Instituto. Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis Incra: Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria Inpe: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais LP: Licena Provisria

xiii LI: Licena de Instalao LO: Licena de Operao MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens MCH: Micro Central Hidreltrica MDTX: Movimento de Defesa da Transamaznica e Xingu MMA: Ministrio do Meio Ambiente MME: Ministrio de Minas e Energias MPF: Ministrio Pblico Federal MST: Movimento dos Sem Terras ONG: Organizao no-governamental ONS: Operador Nacional do Sistema PAS: Programa Amaznia Sustentvel PCH: Pequena Central Hidreltrica PDMA: Plano Diretor de Meio Ambiente da Eletrobrs PNMA: Poltica Nacional de Meio Ambiente PPA: Plano Plurianual Rima: Relatrio de Impacto Ambiental Sectam: Secretaria Estadual de Cincia,Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Par Sema: Secretaria Especial de Meio Ambiente Sisnama: Sistema Nacional de Meio Ambiente UFPa: Universidade Federal do Par UHE: Usina Hidreltrica UTE: Usina Termeltrica WCD: World Commission of Dams

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INTRODUOO debate em torno da construo de usinas hidreltricas na Regio Amaznica tem-se estabelecido, ao longo das ltimas dcadas, de maneira intensa e abrangente. Um conjunto numeroso de variveis e de atores sociais que se inserem na polmica criada reveste a questo central de um grau de complexidade crescente. Projetos dessa magnitude provocam, invariavelmente, posicionamentos radicais, opinies exacerbadas, tenses e choque de interesses. Os conflitos, portanto, estaro necessariamente presentes em cada uma das etapas do processo de implantao de uma usina, mesmo que em diferentes magnitudes. As experincias anteriores de intervenes na realidade amaznica permitem antever aqueles conflitos que provavelmente emergiro. Os estudos sobre a compreenso das dinmicas social e econmica regionais, por sua vez, possibilitam confirmar algumas daquelas previses e considerar outras, a partir da identificao adequada dos atores, sejam estes locais ou externos. Entretanto, no inconsciente coletivo da maioria dos atores envolvidos, existe a convico de que os conflitos sero resolvidos, necessariamente, a favor do empreendedor, desconsiderando as solues que contemplem positivamente o maior nmero possvel de atores com a maior amplitude possvel para os seus interesses. Trata-se de um fatalismo que s se justifica, se que isto razovel, quando se atribui possvel construo de uma hidreltrica na Amaznia um conjunto de caractersticas de um mal que deve ser evitado e, neste caso, a natureza do conflito no permite o dilogo, reduzindo-se a um improdutivo choque de convices.

2 A histria do setor eltrico no Brasil evidencia contrastes entre os benefcios advindos dos projetos hidreltricos e os custos sociais e ambientais de sua implantao. Em geral, o territrio de ocorrncia dos benefcios no tem sido o mesmo daquele onde incidem os custos. Em especial na Amaznia, as hidreltricas geram controvrsias - em escala planetria quanto idia de um desenvolvimento sustentado para a regio, pois os interesses e anseios das populaes favorecidas pelos benefcios no so os mesmos das populaes impactadas pelos custos. Assim, criou-se um processo gradual de resistncia aos aproveitamentos estudados pela Eletrobrs1. Enquanto isso, a cultura do setor impulsionou suas aes no sentido da criao de enclaves que atuaram como um catalisador para a oposio, sempre crescente, aos novos empreendimentos. O contraste criado pelas condies scio-econmicas dos habitantes da regio contrapostas quelas oferecidas aos funcionrios das usinas gerou um quadro de reao, centrado na discusso dos verdadeiros benefcios criados e os seus reais destinatrios. Em outro front, os embates de natureza ambiental se multiplicaram. As presses exercidas por parte de organismos financiadores internacionais, como o Banco Mundial, resultaram, no final da dcada de 1980, em modificaes significativas em ambos os grupos antagnicos. De um lado, os defensores da causa ambiental, tanto conservacionistas quanto preservacionistas, encontraram recursos humanos e materiais para sua cruzada. De outra parte, empresas do setor eltrico, sendo companhias estatais profundamente dependentes de capital externo, foram obrigadas, sob pena de no terem acesso aos recursos necessrios aos seus projetos, a montar, em ritmo acelerado, departamentos, divises e assessorias voltados para a gesto, para o planejamento e para o monitoramento ambiental.

1 Empresa estatal criada em 1961 com a funo de ser a holding das empresas do Setor Eltrico Brasileiro

3 Eis um quadro de anlise extremamente instigante. Surgem recursos imprescindveis para a elaborao de estudos ambientais que so destinados tanto a um lado quanto a outro do conflito. As estatais contratam um conjunto significativo de tcnicos e pesquisadores oriundos de universidades e institutos de pesquisa por meio de uma exceo, criada no Governo Jos Sarney (1985 a 1990), proibio de contratao de pessoal sem concurso para o setor pblico. Essa exceo imposta como condio para o vultuoso emprstimo ao Setor Eltrico feito pelo Banco Mundial em 1987. Por outro lado, a Secretaria Especial de Meio Ambiente - Sema, a Superintendncia de Desenvolvimento da Borracha - Sudhevea, a Superintendncia de Desenvolvimento da Pesca Sudepe - e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF so fundidos, a toque de caixa, em um nico rgo ambiental da Unio, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis - Ibama2. Esse rgo recebe, a partir de ento uma demanda crescente por fiscalizao e licenciamento ambiental, uma demanda para a qual no tinha e at hoje no tem estrutura, seja em termos quantitativos do pessoal qualificado, seja em termos de recursos materiais. Tendo como palco a Amaznia, tem incio um rico processo de discusso em torno do desenvolvimento sustentvel da regio que, no entanto, apresenta dois pecados originais: o aodamento dos atores envolvidos, provocado pelo grande nmero de projetos a serem estudados nos inventrios hidreltricos da Eletrobrs e a falta de sistematizao do conhecimento (e at mesmo a sua inexistncia) de intervenes relacionadas construo de hidreltricas em florestas tropicais midas. Retornando poca do incio do projeto da Usina Hidreltrica de Tucuru, em 1973, significativo perceber que neste momento s existia no Estado do Par a usina de CuruUna, construda pelas Centrais Eltricas do Par Celpa, em local prximo a Santarm. Este um empreendimento de pequeno porte, sobre o qual a comunidade cientfica ainda

2 A criao do Ibama foi uma das aes que integravam um conjunto de medidas lanadas pelo Governo do Presidente Jos Sarney em 1989 e que recebeu o rtulo de Projeto Nossa Natureza.

4 no havia se debruado para obter um diagnstico que permitisse obter informaes para novos projetos. Nesse contexto, uma empresa estatal, a Eletronorte, comea o processo de consolidao de sua rea de atuao a partir do incio operao de Tucuru, em um quadro poltico-institucional construdo e controlado por um regime de exceo. Predomina, poca, a mentalidade tecnocrtica e o modelo supostamente exportador que sempre caracterizou a economia brasileira, dando ao projeto caractersticas de fornecedor de carga para as indstrias eletrointensivas a serem instaladas no Par e no Maranho. A dimenso scio-ambiental do empreendimento ento relegada a um plano secundrio e a correlao de foras no cenrio poltico-institucional brasileiro mais do que suficiente para anular qualquer reao implantao do projeto com suas caractersticas originais. Mais ainda, a legislao ambiental brasileira ainda se encontrava dispersa, sendo que o processo de licenciamento ambiental no estava ainda devidamente estruturado. Tucuru entrou em operao no ano de 1984, apenas trs anos aps da Lei 6938/813 ser aprovada no Congresso Nacional. Na outra trincheira, um movimento ambientalista ainda desarticulado e voluntarista cinge-se a denncias esparsas e localizadas que pouco ou nada repercutiam em um cenrio de apoio popular idia de Brasil Grande, com projetos como o da Rodovia Transamaznica e da expanso da fronteira agrcola. A preocupao com o futuro da Amaznia passa a ser tema prioritrio para o embate entre setores nacionalistas brasileiros e uma das faces que compunham a sustentao do regime militar, denominada pelos seus adversrios como "entreguista". Com isso, a Eletronorte e, em especial, um megaprojeto como o de Tucuru, passam a simbolizar para

3 A Lei 6.938 foi aprovada em agosto de 1981, definindo o que se convencionou chamar de a Poltica Nacional do Meio Ambiente.

5 muitos o avano da ditadura sobre a floresta amaznica, esta agora vista como cone da resistncia nacionalista. O cenrio internacional, por sua vez, se apresenta com a incorporao de uma retrica materializada na Conferncia de Estocolmo (1972) e dos avanos da legislao ambiental nos pases centrais como o National Environmental Policy Act (NEPA), nos Estados Unidos. So estabelecidos indicadores e diretrizes ambientais, adequados a ecossistemas caractersticos de pases do Hemisfrio Norte. E esses so os nicos elementos disponveis para embasar os recm-surgidos e combativos ambientalistas brasileiros. Instituies de pesquisa do porte do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia Inpa e o Museu Paraense Emlio Goeldi so chamadas a intervir na avaliao dos possveis impactos ambientais de Tucuru, agora j em fase de operao. A Eletronorte, por sua vez, passa a firmar convnios e contratar consultorias com a finalidade de atender legislao ambiental, nascente a partir da citada Lei 6938/81 que, apesar de elaborada em tempos de exceo no que diz respeito s liberdades democrticas e aos direitos do cidado incorpora significativos avanos no trato das questes ambientais. Influenciada positivamente por textos legais de pases da Europa e Amrica do Norte, a lei estabelece um processo de licenciamento ambiental que, para empreendimentos em operao como a UHE Tucuru, determina procedimentos diferenciados daqueles previstos para novos projetos. Ainda assim, a usina sofre pesadas crticas e objeto de previses extremamente pessimistas quanto ao seu futuro, sobretudo no que se refere aos impactos ambientais associados. Algumas questes naturalmente surgem a partir desse ponto e foram consideradas para esta pesquisa: Aps tantos anos de operao, confirmam-se as previses feitas poca? possvel confirm-las ou desmenti-las com os dados existentes?Hidreltricas na Amaznia so um mal necessrio ou, por princpio, um mal a ser evitado a qualquer preo?

6 Uma estatal do setor eltrico deve ser o agente de desenvolvimento principal da regio amaznica ou esse papel cabe hoje iniciativa privada? Um modelo de privatizao do setor contribuiria para a correo das distores ou para o seu agravamento? A Eletronorte tem desempenhado, ao longo das ltimas dcadas, um papel relevante na consolidao de plos de desenvolvimento regionais, percebido pela extensa relao de pleitos dirigidos empresa, muitos dos quais relacionados com temas marcadamente distintos daqueles de sua rea de atuao? Trata-se de um conjunto de questes de grande relevncia para a construo de um projeto nacional para o Brasil, na medida em que a interseo dos temas energia, meio ambiente e Amaznia se configura como um instigante desafio para o conceito de desenvolvimento sustentvel. Cada uma delas mereceria uma tese para se obter uma resposta convincente. No entanto, no contexto deste trabalho, algumas das causas dos diversos conflitos associados a tal interseo devem ser buscadas em um contexto ainda mais amplo, no qual o direito informao historicamente prejudicado em pases perifricos como o Brasil um componente de grande relevncia. H que se considerar no apenas a ausncia de informaes, mas tambm e principalmente a inoculao de falsas informaes. No meio do fogo cerrado da Guerra Fria, fomos induzidos a acreditar em conspiraes que nunca existiram, e impedidos de enxergar outras, reais e, muitas vezes, mais nocivas segurana mundial. Isso nos leva a uma questo passvel de descrio quase matemtica: se na gesto ambiental a sociedade deve decidir ento a sociedade tem que saber sobre o que vai decidir; ento necessita de informaes consistentes e claras sobre o que decidir; ento as informaes devem ser provenientes de estudos consistentes; e ento transmitidas em linguagem compreensvel para a sociedade.

7 Portanto, falar em participao da sociedade na gesto e no planejamento ambiental s possvel se considerarmos modelos que contemplem formas de legitimidade, transparncia e eficcia para o processo. Assim, a legitimidade das representaes, a transparncia das informaes e a eficcia da gesto e do planejamento ambiental constituem um conjunto de trs variveis de grande importncia para a conceituao e delimitao de um problema de pesquisa relacionado com intervenes em grandes ecossistemas. Desse modo, este trabalho se volta para anlise da atuao do setor eltrico na Amaznia, dando nfase aos mecanismos de interao com a sociedade, aos processos de negociao dos empreendimentos, s caractersticas dos conflitos criados e sua mediao. Por isso mesmo, tornou-se necessrio eleger um projeto que reunisse elementos significativos para a construo de um problema de pesquisa que trouxesse luz as questes associadas a esses aspectos enfatizados. O projeto da usina hidreltrica Belo Monte se mostra como portador de um conjunto de caractersticas exemplares para uma investigao dirigida a essa discusso. Mais adiante, sero descritas essas caractersticas. Neste ponto, importante ressaltar que este trabalho procura analisar as causas e conseqncias daquele conflito, em uma busca da compreenso dos impasses surgidos ao longo do processo. Atualmente, estimula-se a participao da sociedade nos processos de tomada de deciso uma verdadeira poo mgica para muitos. Instrumentos para essa participao j existem na legislao ambiental, tais como as audincias pblicas e os relatrios de impacto ambiental. Todavia, a questo da transmisso de informaes para o adequado funcionamento desses instrumentos permanece sem soluo, provocando impasses e conflitos cujas causas se localizam, freqentemente, em mecanismos ineficazes e ineficientes de comunicao social. Tal fato se torna especialmente relevante quando se analisa a interseo do setor eltrico com a Amaznia.

8 Uma investigao sobre as possveis causas para os avanos e recuos no desenvolvimento sustentvel da Amaznia certamente incorporar a anlise da atuao do setor eltrico na regio, diante da magnitude dos projetos e do grau de repercusso na opinio pblica mundial. As usinas hidreltricas Tucuru, j em operao, e Belo Monte, ainda que como apenas um projeto, no so apenas grandes barragens. So, antes de tudo, dois magnficos objetos espera de uma anlise comparativa que contemple a eficcia das negociaes ao longo dos respectivos conflitos ambientais. Nessa anlise, imprescindvel ouvir o maior conjunto possvel de atores, em prudente distanciamento, no sentido de incorporar pesquisa diversas vises de mundo e, sobretudo, buscar atitudes propositivas e viveis. Entretanto, uma questo se impe como componente essencial da investigao: Como foi estabelecida e implementada a estratgia de comunicao do setor eltrico com a sociedade, no sentido de viabilizar a construo dessas usinas? Aprofundar-se nessa questo procurar respostas para perguntas ainda mais abrangentes: Existiu, em qualquer momento, uma verdadeira participao da sociedade no processo decisrio? Um projeto nacional foi utilizado para sustentar os argumentos pr e contra os empreendimentos? Em que medida os embates polticos e ideolgicos turvaram a tica dos atores envolvidos, a ponto de relegar a um segundo plano a busca pela compreenso do ainda indefinido conceito de desenvolvimento sustentvel para a regio? A negociao dos conflitos foi reduzida a meras barganhas com atores e instituies, em uma limitada tica econmico-financeira? As usinas Tucuru e Belo Monte guardam entre si muitas semelhanas e diferenas. As semelhanas residem, por exemplo, no fato de ambas serem projetos de grandes

9 dimenses desenvolvidos pela Eletronorte como parte integrante do planejamento do setor que, no Brasil, mais se destacou, nas ltimas dcadas, na atividade de pensar estrategicamente, em uma viso de longo prazo. Esses projetos tambm se assemelham em termos de repercusso nos meios acadmicos, de comunicao e das organizaes no-governamentais. Guardam tambm muitas semelhanas nos aspectos socioeconmicos que do origem a efeitos ou impactos derivados do deslocamento de grandes massas de trabalhadores e da relocao de populaes afetadas. As diferenas, porm, so bastante expressivas. Tucuru uma usina em operao, concebida e construda em um perodo no qual a legislao ambiental se encontrava dispersa e inconclusa. Desse modo, muitos erros cometidos so explicveis em muitos casos, justificveis pelo estgio inicial da questo ambiental no Brasil, principalmente no que diz respeito construo de usinas hidreltricas em regies de florestas tropicais midas. Belo Monte , ainda, um projeto, polmico e concebido na dcada de 1980 sob uma orientao distinta da atual. Outra diferena marcante diz respeito ao processo de "venda" de cada usina, tanto no contexto interno do setor quanto nos contextos local, regional, nacional e internacional. Tucuru no encontrou obstculos de grande monta na opinio pblica nem grupos organizados de oposio, a no ser depois da construo. O setor eltrico pde ento levar frente projeto e obra, de modo que parcerias com instituies cientficas e acadmicas s foram estabelecidas regularmente na fase de enchimento do reservatrio. Belo Monte, por sua vez, j encontrou oposio significativa na poca em que se denominava Karara, inclusive de cunho internacional. Nessa poca, o reservatrio previsto era cerca de trs vezes maior que o dimensionado no atual projeto, alagando uma rea muito maior e interferindo substancialmente com a cidade de Altamira, tendo ainda outra barragem a montante, Babaquara, como pr-condio para a regularizao de vazo do rio Xingu.

10 Essas semelhanas e diferenas determinaram uma escolha para esta investigao em que Belo Monte surge como foco da pesquisa e Tucuru como contraponto utilizado de forma intermitente para acentuar os erros e acertos, bem como as convergncias e distores surgidas durante o processo de negociao do projeto de Belo Monte. Um outro aspecto que nos levou a direcionar o trabalho para Belo Monte foi o surgimento, no mbito do setor eltrico e j no final da dcada de 1980, do conceito de insero regional de empreendimentos do setor eltrico. Este conceito se constituiu, embora que restrito at agora ao nvel terico do planejamento setorial, como uma alternativa concepo de enclaves, caracterstica dos empreendimentos hidreltricos desenvolvidos pela Eletrobrs. Analisar o conflito gerado pelo projeto Belo Monte tambm empreender uma discusso a respeito da distncia entre teoria e prtica nos processos de tomada de deciso que envolvem o bioma amaznico e o setor eltrico, pois a insero regional preconizada pelos tcnicos daquele setor como um notvel instrumento de interao com a sociedade, facilitando o dilogo entre os atores sociais e as instituies, em uma viso de articulao e sinergia. Belo Monte tambm era uma escolha natural pelas caractersticas do analista. Embora tendo trabalhado em projetos associados s usinas de Tucuru, Samuel, Manso, Cachoeira Porteira e Balbina todas na Amaznia Legal foi no projeto de Belo Monte que a atuao do investigador se deu de forma mais intensa e especialmente associada anlise do conflito criado na regio de Altamira e Vitria do Xingu. A possibilidade de exercer a dupla condio de observador e participante foi definitiva para a escolha de Belo Monte como campo da investigao empreendida, especialmente quanto aos processos de comunicao com a sociedade. Mais precisamente, como ser possvel observar mais adiante, a pesquisa foi conduzida na condio de um participante do processo, uma vez que o desempenho profissional na regio do conflito fez com que o trabalho se desenvolvesse em paralelo com o curso de doutorado cujo processo seletivo implicou na definio prvia de um projeto de pesquisa com os objetivos que aqui esto sendo descritos.

11 Finalmente, pode-se dizer que o estudo centrado no projeto de Belo Monte um desafio que no se materializa apenas na percepo de novos e futuros conflitos, mas tambm em admitir que estudo do passado e de sua comparao com o presente seria a melhor contribuio para se resolver o futuro, este entendido como a tentativa de ser obter uma forma de interveno que, vivel para o empreendedor, seja a mais conveniente para os atores atingidos direta ou indiretamente pelo empreendimento e, acima de tudo, concebida como parte de um conjunto integrado de projetos e programas que visem a um desenvolvimento da regio assentado em formas de negociao legtima com o conjunto de atores envolvidos e, mais ainda, no qual estejam definidas de modo inequvoco as formas de coordenao e as instncias hierrquicas correspondentes. No que se refere ao trabalho desenvolvido, ele foi dividido em cinco captulos e uma concluso. O Captulo 1 apresenta a viso de mundo do investigador, a metodologia adotada na conduo da pesquisa, um modelo relativo a conflitos e outro relativo a como gerenciar grandes intervenes em ecossistemas e/ou biomas, a exemplo da construo de hidreltricas e, por fim, os mtodos utilizados para a coleta e a anlise dos dados. O Captulo 2 analisa a questo da informao entendida como conjunto de dados de natureza cientfica, tcnica, poltica e histrica. Dois aspectos principais acerca da informao so considerados: a origem dos dados que a compem e a interpretao dada a esses dados pelos diversos atores do processo com o qual a informao considerada est relacionada. Mas, a maior importncia dada questo dos mecanismos de validao de informaes. O Captulo 3 discute algumas das possveis "Amaznias" que surgem como conseqncia da extrema diversidade da regio e analisa a repercusso nos meios de comunicao dos conflitos na Amaznia em especial na mdia impressa e na Internet. So privilegiados os aspectos da difuso de informaes.

12 O Captulo 4 apresenta uma anlise descritiva dos principais conflitos do setor eltrico brasileiro na Amaznia, envolvendo, alm dos aspectos do setor como um todo, as Amaznias do captulo anterior e as especificidades da Eletronorte, uma empresa que sintetiza todos os elementos do conflito investigado. O Capitulo 5 discute o conflito associado ao projeto do Complexo Hidreltrico Belo Monte, buscando uma sntese dos problemas apontados nos captulos anteriores. Contudo, importante ressaltar que esse conflito discutido ao longo de toda a tese, no sendo o Captulo 5 aquele onde se chega questo central do trabalho, uma vez que as suas caractersticas so abordadas de forma gradativa nos captulos anteriores. A Concluso est estruturada de modo a se constituir em um fechamento do trabalho, ao qual foram adicionadas informaes obtidas na fase final da elaborao, como o caso daquelas relativas aos resultados das eleies municipais de 2004, na regio de influncia de Belo Monte. Com isso, essa concluso no se configura como uma relao de associao direta e linear com as questes formuladas na pesquisa, procurando ir alm dessa formatao. Finalmente, cabe ressaltar que foram relacionadas apenas as referncias bibliogrficas efetivamente utilizadas na elaborao da tese, mesmo que, eventualmente, no tenham dado origem a citaes no texto.

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CAPTULO 1: TRAANDO RUMOS

1.1 INTRODUO A escolha do tipo de investigao desenvolvida pelo presente trabalho incorporou significativamente observaes feitas durante a experincia profissional do investigador, junto aos primeiros processos de licenciamento ambiental de hidreltricas no Brasil. A proximidade com o tema desta pesquisa aconteceu de forma marcante e em um cenrio de incertezas e inseguranas quanto aplicabilidade de normas ambientais recmestabelecidas no Brasil, especialmente aquelas relacionadas com a elaborao de Estudos de Impactos Ambientais EIAs e seus respectivos Relatrios de Impactos no Meio Ambiente - RIMAs. Assim, a to necessria paixo do pesquisador pelo seu tema de pesquisa surge, nesse caso, a partir de experincias profissionais e pessoais muito intensas relacionadas com a arena onde se desenvolve o conflito que aqui ser analisado. Esse fato pode se constituir tanto como uma vantagem significativa dada a situao de o pesquisador ser mais do que um possvel observador participante, quanto como um risco de interferncias "contaminadas" de subjetividade excessiva na anlise empreendida. Portanto, torna-se necessrio, inicialmente, estabelecer a viso de mundo do autor, pois esta determinou a forma de abordagem, a metodologia, os modelos e, sobremodo, os mtodos utilizados na pesquisa. Vencida esta discusso, o passo seguinte do captulo foi a considerao sobre a metodologia adotada no desenvolvimento da pesquisa. Neste sentido, como sabido, o resultado do trabalho de elaborao de uma tese profundamente dependente da relao estabelecida entre orientando e orientador.

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Essa relao , constantemente, menos valorizada na prtica do que deveria, seja por caractersticas pessoais de orientador e orientando, seja pela prpria natureza do trabalho de pesquisa acadmica que, para muitos, deve procurar um distanciamento entre os dois atores principais desse processo de elaborao, em benefcio de uma suposta cincia neutra. Pelas razes que sero aqui expostas, a viso de mundo que determinou a escolha do problema e de sua abordagem implicou uma identificao significativa com as escolhas feitas pelo orientador desta tese em seus trabalhos acadmicos. Por isso mesmo, a opo metodolgica adotada foi, naturalmente, fortemente influenciada pelos caminhos seguidos pelo orientador em suas anlises a respeito do processo de Avaliao Ambiental Estratgica tema este que guarda estreita relao com o desenvolvimento desta pesquisa. Assim, os aspectos ontolgicos e epistemolgicos que do forma metodologia utilizada fazem com que esta, no contexto deste trabalho, procure expressar e tambm guiar a forma com que o pesquisador descreve e explica seu objeto de pesquisa. Essa forma foi determinada a partir de uma premissa de que valores sempre medeiam o questionamento, impregnando todas as camadas da cincia. Mais ainda, os indivduos so considerados como construtores da realidade, mas os diferentes contextos institucionais, de vrias formas, so, aqui, vistos como elementos facilitadores ou complicadores de suas aes. Desse modo, na tomada de deciso metodolgica, foram evitadas as abordagens humanista e estruturalista, no sentido de maximizar as virtudes da sntese pregada por Sztompka (apud Egler, 1998), para quem o clima intelectual de hoje parece favorecer esforos sintticos no nvel das grandes teorias da mais alta generalidade.

15 Afinal, se, como em Sztompka, a busca pela sntese dos muitos posicionamentos est claramente no ar, certamente essa busca se justifica nas anlises das questes ambientais. Tendo discutido os aspectos que foram relevantes para a escolha da metodologia e tambm os aspectos que a caracterizam, o captulo apresenta a seguir dois modelos que foram adotados na pesquisa como instrumental para a anlise de conflitos e para a anlise da integrao entre cincia e poltica, tendo como objeto para esta integrao o meio ambiente. Concludo o desenvolvimento dos itens anteriores, a tarefa final do captulo a apresentao dos procedimentos adotados para coletar e analisar os dados obtidos ao longo do trabalho. No entanto, um detalhamento maior se faz necessrio, tanto no sentido de uma contextualizao adequada, quanto na introduo da dimenso temporal. Tal dimenso , no caso desta pesquisa, bastante relevante, na medida em que a coleta e a anlise dos dados se deu em um contexto de intensos debates sobre a reformulao do modelo a ser adotado pelo setor eltrico brasileiro nos prximos anos, bem como em um perodo que abrangeu a campanha presidencial de 2002 e os primeiros 18 meses do Governo Lus Incio Lula da Silva.

1.2 VISO DE MUNDO O jornalista Lus Edgar de Andrade (2002) nos conta, em artigo publicado no Jornal do Brasil, que o lendrio e tambm jornalista Pompeu de Souza, ao concluir um estgio nos Estados Unidos, introduziu no velho Dirio Carioca um bem-intencionado manual de estilo. Dentre suas recomendaes estava a de reduzir o emprego de artigos ao estritamente necessrio quando da elaborao das manchetes do jornal. A sugesto daquele experiente jornalista, cone de toda uma gerao de profissionais da imprensa, assumiu carter de dogma com o passar dos tempos. Andrade nos ensina, com seu texto leve e conciso, que, apesar de consagrada, a supresso do artigo nas manchetes

16 em lngua inglesa significa economizar quatro espaos o que, obviamente, no ocorre nas lnguas neolatinas. Ttulos curtos podem ser obtidos sem a supresso do O, do El dos espanhis, do Le dos franceses, do Il dos italianos. No entanto, suprimindo artigos por inrcia, o uso de tal expediente chegou ao jornalismo do rdio e televiso, a ponto de outro jornalista referencial no Brasil, Armando Nogueira, se insurgir contra a prtica. No Manual de Telejornalismo da Rede Globo, de 1985, Nogueira, segundo Andrade, determinava o uso obrigatrio do artigo, apontando enfaticamente uma herana oriunda dos jornais em lngua inglesa que, via jornalismo radiofnico, chegou televiso. Conclua, ento, definitivo: Notcia de televiso linguagem falada, conversa. E, na conversa, ningum fala em linguagem telegrfica, suprimindo artigos". Andrade que inicia seu texto lembrando de uma provocao feita por jornalistas portugueses quanto a esse estilo brasileiro termina o seu alerta com uma intrigante afirmao: O problema talvez esteja numa deformao profissional: ns, jornalistas, hoje em dia, j no escrevemos para os leitores, escrevemos sem querer em jornals (sic) para os outros jornalistas". Introduzir a descrio de uma viso de mundo do pesquisador com tal episdio , certamente, um tanto inusitado. Afinal, trata-se aqui de uma pesquisa destinada a discutir, entre outros aspectos, a eficcia e a legitimidade das atuais formas brasileiras de participao da sociedade na gesto ambiental, a negociao social de usinas hidreltricas na Amaznia e os conflitos associados aos grandes projetos no Brasil. No entanto, talvez seja possvel encontrar algum sentido em comparar processos que tm sua origem em outras terras, que no sofreram uma reviso crtica consistente por parte da maioria dos atores envolvidos, que padecem de males provenientes da utilizao de linguagens estranhas ao pblico definido como alvo, e, principalmente, que passam ao largo da sociedade real.

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Lembremo-nos que a essa sociedade foram dedicadas incontveis linhas, pregando a sua participao nos processos de tomada de deciso. Portanto, uma boa comparao com o episdio descrito pode ser feita com a situao em que se introduziram os EIAs e RIMAs no cenrio ambiental brasileiro, pois estes so uma "importao" feita com os melhores propsitos, diga-se poca do estabelecimento das bases conceituais que resultaram para atual legislao brasileira. A aplicao desses instrumentos, contudo, com o passar dos anos, foi relegada a um papel burocrtico e fragmentado, desassociado dos instrumentos de planejamento, tanto estatais quanto privados. Assim acontecendo, oxal seja possvel perguntar, como fez Andrade em seu artigo, quem tem medo do medo de discutir o estgio atual da participao da sociedade na gesto ambiental? No ser possvel que, em algum lugar do passado, o discurso da participao tenha se transformado em uma unanimidade acrtica? Muito pior, essa participao pode estar sendo reduzida, na prtica, a um processo gerador de conflitos cujas razes no so encontradas no projeto que demanda uma tomada de deciso? Uma outra razo para se utilizar introdutoriamente o texto de Andrade baseada na profunda admirao do autor deste trabalho pelo grande Machado de Assis. Essa admirao trouxe a um texto acadmico o desejo de que fosse estabelecida uma cumplicidade com o leitor, evidente em Machado, por exemplo, nas pginas iniciais das Memrias Pstumas de Brs Cubas, onde o brilhante escritor, mesmo em dvida se deveria ser considerado um autor-defunto ou um defunto-autor, estabelece na primeira pgina de sua obra uma premissa por demais inslita para os padres da poca.

18 Nem por segundo, aqui se imagina atingir a perfeio do texto do admirvel mulato. O que, modestamente, se deseja buscar a elaborao de um texto que obedea aos padres da Academia, mas cuja construo seja feita com a utilizao de recursos estilsticos prprios do jornalismo e da literatura. Nesse sentido, o texto de Andrade tem a funo de prevenir o leitor quanto a escolhas, digamos, estilsticas, que foram feitas ao longo deste trabalho. Essas escolhas tanto se explicam pelo prprio objeto da pesquisa e da abordagem escolhida, como pela viso de mundo do investigador, cuja origem na rea das comumente denominadas Cincias Exatas, mais especificamente na Qumica, no impediu um constante namoro com as Humanidades, resultando na busca de uma sntese que se revelou de grande utilidade no trabalho que aqui se buscou empreender. Um grande obstculo, talvez seja melhor dizer um grande risco, reside na resistncia das elites intelectuais para fazer concesses na linguagem empregada em seus trabalhos cientficos e acadmicos, mesmo nas oportunidades em que estes cumprem a misso ou deveriam cumprir de repassar sociedade conhecimentos que podero se transformar em instrumentos valiosos para a melhor compreenso de seu cotidiano futuro. Na origem dessa resistncia se encontram setores que defendem a tradio histrica da Academia, cultivando um distanciamento em relao aos demais setores da sociedade no intuito de preservar sua independncia e a sua cultura caracterstica. Essa tendncia para a clausura dos campi e dos ambientes de pesquisa pode levar os membros dessas comunidades a torres de marfim, situadas a quilmetros de distncia dos mortais, justificando-se essa postura pela necessidade do uso de um discurso especfico de cada disciplina, para compreenso recproca entre os membros das respectivas comunidades

19 No entanto, imagine-se uma disciplina cujo contedo faz com que se considere natural o uso de uma linguagem que no pode descer do Olimpo, por sua prpria natureza. Por exemplo, a Fsica. Werner Heisenberg, Prmio Nobel de Fsica em 1932, autor do famoso Princpio da Incerteza, discute a suposta inaplicabilidade da linguagem cotidiana ao pensamento cientfico:

Uma das caractersticas mais importantes do desenvolvimento e anlise da fsica moderna a experincia a demonstrar que os conceitos da linguagem quotidiana, mesmo imprecisamente definidos como eles so, parecem exibir uma estabilidade maior na expanso do conhecimento que os termos precisos que a linguagem cientfica ostenta, decorrncia de uma idealizao a partir de grupos limitados de fenmenos. Isso, por si s, no motivo para surpresa, pois os conceitos da linguagem natural so cunhados pela associao direta com a realidade: eles representam a Realidade. bem verdade que eles no so bem definidos e podem, tambm, passar por transformaes no correr dos sculos, da mesma forma que ocorre com o conceito de realidade; eles, todavia, jamais perderam a ligao direta com a Realidade que espelhavam. (...) Sempre que procuramos passar do conhecido ao desconhecido (que nutrimos a esperana de entender) poderemos ser obrigados, ao mesmo tempo, a atribuir um novo sentido palavra entender. Sabemos que todo entendimento deve, em ltima conseqncia, basear-se na linguagem comum, pois somente atravs dela que estaremos seguros de tocar a Realidade. (Heisenberg, 1987)

Quando um dos maiores fsicos da Histria assim se pronuncia, legtimo especular se realmente inadequado e desaconselhvel ousar na linguagem empregada nos trabalhos acadmicos. Mais ainda, quando se est empreendendo uma pesquisa que envolve processos que apesar de, infelizmente, no possurem um suficiente conjunto de critrios definidos para sua implementao visam participao da sociedade em tomadas de deciso. Nesse ponto, torna-se importante estabelecer que sero consideradas distines entre as tipologias representadas pelo discurso tcnico ou cientfico e pelo discurso jornalstico,

20 em virtude de a anlise que aqui se desenvolve ter a informao (e suas formas de transmisso) como ncleo. Leibruder (2000) distingue os dois discursos enfatizando que o cientista, a fim de divulgar sua pesquisa no interior da comunidade cientfica, o far atravs da elaborao de um artigo ou paper, constitudo de um relato sobre o experimento desenvolvido, a ser publicado num peridico ou revista especializada. Esse relato deve ser organizado, por sua vez, sobre uma estrutura rgida, segundo a qual, primeiramente, o pesquisador dever descrever os materiais utilizados no experimento, passando, em seguida, para os objetivos e procedimentos empregados, sendo que resultados, concluses e propostas ocupam a ltima seo do artigo. A autora considera que, como a circulao deste discurso circunscrita ao prprio meio cientfico, produzido por e para especialistas, a elaborao do paper fundamentar-se- nas convenes lingsticas prprias ao jargo cientfico. E isto face a que o emprego de uma linguagem objetiva, concisa e formal, prpria da modalidade escrita da lngua, constitui o pressuposto bsico referente feitura de um artigo cientfico. Para Leibruder:A utilizao de tais mecanismos, na medida em que afasta o eu do discurso cientfico, camuflando quaisquer ndices de subjetividade nele existentes, objetiva, em ltima instncia, atribuir-lhe um carter de neutralidade.

Enquanto que:O discurso jornalstico, enquanto um discurso de transmisso de informao, caracteriza-se, num primeiro momento, pela objetividade, clareza e conciso da linguagem. Dentro desta modalidade discursiva, o fato que ocupa a posio central, cabendo ao jornalista apenas notici-lo. Neste sentido, poderamos mesmo comparar o discurso jornalstico ao cientfico, na medida em que ambos procuram camuflar a presena do autor, emprestando voz s prprias coisas.(Leibruder, 2000)

Definitivamente, essa no foi a escolha feita para o trabalho que aqui se inicia. A viso de mundo nele embutida no contempla neutralidade e expe constantemente o autor,

21 pois se considera aqui que a objetividade, a clareza e a conciso da linguagem no impedem que se empreenda, com xito, um trabalho cientfico no colidente com a tradio acadmica. Lembremo-nos de Foucault, para quem:Em toda sociedade, a produo do discurso , ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade.(Foucault, 1998)

Para exemplificar o controle do discurso acadmico, podemos recorrer a Galbraith , com seu humor canadense, temperado pela folclrica ironia inglesa:Na vida acadmica de nossos dias, os estudiosos devem sua distino antigamente, deviam sua promoo ao juzo que deles fazem seus colegas. Nesse sentido, ento, as conversas em que se incluem os auto-elogios constituem verdadeira manifestao artstica. Em Harvard, aquele que tiver feito crticas tmidas sobre um trabalho sem importncia escrito sobre um estudioso de menor importncia ainda, mas integrante da Associao de Lnguas Modernas, voltar ao clube dos professores para contar, en passant , que devastou um scholar realmente importante da Antioquia. Um testemunho incoerente prestado em uma comisso qual s compareceu o presidente da subcomisso pode, ao ser relatado posteriormente por um economista, transformar-se em um polmico triunfo de propores histricas. (Galbraith, 1981)

necessrio, portanto, estabelecer previamente que estas reflexes estejam sendo feitas por um analista disposto a correr os riscos da ousadia na forma e no estilo e que se posiciona como totalmente favorvel a uma gesto ambiental que incorpore a voz dos atores que efetivamente estejam sendo afetados por quaisquer tipos de empreendimentos ou que estejam na iminncia de s-lo. Desse modo, todo o trabalho impregnado, ora de forma perceptvel, ora subjetivamente, de uma preocupao com as informaes e com a linguagem utilizada para transmiti-las, bem como dos mecanismos que as validam. Nesse sentido, torna-se inevitvel que a forma utilizada para desenvolver o contedo da pesquisa revele uma opo prvia por

22 um aprimoramento constante da comunicao entre interlocutores, com rebatimentos na construo do prprio texto da pesquisa. Por outro lado, a postura crtica diante de inverdades difundidas pelos meios de comunicao, por exemplo, no podem ser guardadas no mesmo embornal onde repousam idias saudosistas ainda existentes no setor eltrico brasileiro de tempos tais em que se decidia a localizao de barragens em simples sobrevos de helicptero. Considera-se, por outro lado, uma das caractersticas mais assustadoras do atual estgio das discusses acerca da sustentabilidade do desenvolvimento o fato de se poder observar um intenso, indiscriminado e largamente disseminado uso de expresses associadas adjetivao do desenvolvimento na mdia, entre os membros da classe poltica, nos crculos empresarias, nos exames vestibulares e, muito pior, nos meios acadmicos. Seria um procedimento aceitvel se esses diversos conjuntos de atores tivessem algum consenso em torno dos conceitos repetidos sistematicamente nos mais diversos eventos e publicaes, por exemplo. No parece estar ocorrendo tal fato, pois o conceito de desenvolvimento sustentvel, por exemplo, sendo adotado de forma praticamente unnime pelos representantes dos mais diversos matizes ideolgicos, no Brasil, adquire um valor positivo no contestvel. Em outras palavras, ningum capaz de dar uma entrevista, por exemplo, se declarando contra o estabelecimento de um desenvolvimento sustentvel para a sua regio. Para realar a estranheza de tal situao, podemos verificar que existem setores da sociedade que so a favor da pena de morte, da separao de um determinado estado do restante da Federao, do aborto, da eutansia, da legalizao do jogo, das drogas etc. Ora, todos estes so temas polmicos que rendem, muitas vezes, a perda de votos em eleies ou uma alta dose de rejeio por parte da sociedade, tanto manifestada em comcios quanto nas sees de cartas redao de jornais e revistas, por exemplo. Mas, tais oposies no impedem que aqueles que defendem essas idias se exponham em embates de grande repercusso.

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Desenvolvimento sustentvel, ao contrrio, uma unanimidade surgida no se sabe onde nem quando, mas que, em um trocadilho irresistvel, se sustenta como um dogma. Uma histria curiosa contada por militares h tempos. Ao assumir o comando de um quartel, um coronel indagou de seu oficial imediato o porqu da existncia, na relao dos postos de sentinela, de um soldado permanentemente colocado frente de um banco de praa, na entrada principal. O major no soube responder e chamou o capito. Este tambm no sabia e chamou o tenente que, ignorando o fato, chamou o sargento. Novamente, perplexidade. O cabo foi convocado e, como tambm no tinha a resposta, sugeriu que fossem todos falar com o soldado mais antigo do quartel. Foram todos e l chegando obtiveram a resposta ansiosamente aguardada. O soldado explicou que, h muitos anos, aquele banco fora pintado e uma sentinela foi providenciada para evitar que algum, inadvertidamente, sentasse sobre a tinta fresca e desde ento nunca mais o posto ficou sem vigilncia. Da mesma forma, desenvolvimento sustentvel, participao, democratizao da informao, entre outros, so termos que se transformaram, na sociedade, em uma espcie de "grife" da moda, sem que houvesse uma busca consistente da origem e do significado de tais conceitos, mesmo em certos setores acadmicos. Ningum senta no banco do quartel, mas ningum sabe o porqu. De forma semelhante, em algum momento da histria do ambientalismo brasileiro e, tambm, em boa parte das anlises feitas na Academia ficou estabelecido que hidreltricas na Amaznia so, a priori, empreendimentos que devem ser combatidos. Essas decises tiveram claras componentes ideolgicas e polticas, muitas vezes de natureza circunstancial.

24 Tambm em algum momento da histria do setor eltrico brasileiro ficou estabelecido que o aproveitamento das quedas existentes nos rios amaznicos, principalmente aqueles situados na margem direita do Amazonas, era inquestionvel. E isto tanto pela necessidade do suprimento das demandas inevitveis que o desenvolvimento econmico nacional criaria, quanto por uma viso nacionalista segundo a qual a opo no-integrao da regio ao restante do pas seria a "entrega" dos recursos naturais aos interesses estrangeiros, ao capital internacional. Nesses casos, fixou-se a sentinela junto ao banco, como no folclore das casernas. Ou, se preferirmos, abandonou-se o uso de artigos nas manchetes de jornais, como nos disse Andrade. A viso de mundo que norteia esta pesquisa no contempla uma adeso incondicional a qualquer condenao prvia a um procedimento cientfico ou tecnolgico. Principalmente se essa condenao for baseada em informaes no-validadas por um mecanismo confivel. Aqui tambm se considera que o grau de confiabilidade dos mecanismos de validao das informaes pode ser questionado a partir da presena de importantes fatores associados s escolhas de natureza ideolgica, filosfica, poltica ou mesmo cultural. A atitude mais recomendada, nesse caso, se valer do respaldo fornecido por aqueles acadmicos e/ou intelectuais que so vistos como referncias nas respectivas reas do conhecimento. Todavia, quando se empreende um trabalho de natureza acadmica, uma exagerada admirao pelas obras dos grandes pensadores e pelos pontos de vista daqueles que dominam os saberes relacionados pesquisa que se quer empreender se origina, em boa parte dos casos, na convico de que, por nossas limitaes, nada poderemos fazer para dar continuidade ou complemento ao estabelecido com tanta competncia.

25 A devoo excessiva aos supostos cones de determinado campo, ou campos, do saber tem suas razes tanto nos sentimentos de justia e reconhecimento quanto na to necessria humildade do investigador. Em demasia, contudo, corre-se o risco de tolher iniciativa e estmulo para a construo de uma investigao original. Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram utilizados alguns referenciais provenientes de uma viso de mundo que procura se sustentar em um ponto de equilbrio entre a ousadia e o respeito a saberes legitimamente construdos. Desse modo, o acadmico e o lavrador, o ambientalista radical e o engenheiro cartesiano, o ativista poltico e o empresrio, bem como todas as dicotomias possveis, fazem parte de um campo de investigao em que no h verdades pr-fixadas, nem censura prvia falsamente justificada por convices ideolgicas. A busca pela sntese justifica deixar de "enriquecer" a pesquisa com profuso de grficos, tabelas e citaes. A heterodoxia nas comparaes ou analogias se destina a uma originalidade que no um fim em si mesma, muito antes se destina a diminuir o hermetismo do texto e a buscar uma leveza que no seja confundida com superficialidade. Finalmente importante frisar que, no desenvolvimento deste trabalho, foi lembrado o professor Roberto Bartholo que, em suas aulas do curso de doutorado do Centro de Desenvolvimento Sustentvel da UnB, costumava se referir, irnica e pejorativamente, ao que denominou de "fisiculturismo intelectual", ou seja, uma excessiva demonstrao de erudio na introduo dos trabalhos acadmicos, especialmente nas teses das chamadas cincias humanas. Aos olhos do eminente professor, trata-se de um pr-requisito dispensvel, na maioria dos casos, para a apresentao dos fundamentos que orientaro o autor. Em concordncia com tal percepo, esta apresentao da viso de mundo do pesquisador tenta ser parte integrante de um conjunto integrado de idias e descobertas e no um mero conjunto de citaes ou de opinies pessoais. Ou seja: uma alternativa ao fisiculturismo cultural apontado por Bartholo.

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Considera-se aqui a defesa de textos menos ridos em trabalhos dessa natureza como uma forma de diminuir a distncia entre as reas distintas do conhecimento e entre a Academia e os setores no-acadmicos entre outras razes. Essa viso est em sintonia fina com os objetivos do presente trabalho, principalmente porque este envolve conhecimento e linguagem, informao e poder, participao e reverncia. Podese dizer que a viso de mundo que influencia decisivamente a escolha do problema a ser investigado e da abordagem utilizada na investigao se sustenta na admisso prvia de que, enquanto no for possvel solucionar um problema, sugerir novos modos de enxerg-lo pode ser uma contribuio importante para a busca da soluo.

1.3 A ESCOLHA METODOLGICA E DISCUSSO DE DOIS MODELOS UTILIZADOS NA PESQUISA 1.3.1. Metodologia da Pesquisa Inicialmente, importante destacar que a discusso sobre e a escolha da metodologia desta pesquisa foi fortemente influenciada pelos trabalhos de Egler (1998), Singleton Jr., Straits e Straits (1988), Guba (1990) e Silverman (1995) e, quando necessrio, as referncias foram enfatizadas no texto. Nesse contexto, possvel iniciar essa discusso com Morin (2000), para quem o conhecimento cientfico, conquanto poderoso meio de deteco de erros, controlado por paradigmas que podem desenvolver iluses. Com isso, nenhuma teoria cientfica est imune para sempre contra o erro e, portanto, o conhecimento cientfico insuficiente para lidar com problemas epistemolgicos, filosficos e ticos. A lgica de qualquer sistema de idias resistir mudana ou informao que no lhe convm.

27 Kuhn (2001) argumenta:Mas a experincia dos sentidos fixa e neutra? Sero as teorias simples interpretaes humanas de determinados dados? A perspectiva epistemolgica que mais freqentemente guiou a filosofia ocidental durante trs sculos impe um "sim!" imediato e inequvoco. Na ausncia de uma alternativa j desdobrada, considero impossvel abandonar inteiramente essa perspectiva. Todavia ela j no funciona efetivamente e as tentativas para faz-la funcionar por meio da introduo de uma linguagem de observao neutra parecem-me agora sem esperana. (Kuhn, 2001)

Kuhn considera que talvez ainda se chegue a elaborar uma linguagem de observao pura, mas:Trs sculos aps Descartes, nossa esperana que isso ocorra ainda depende exclusivamente de uma teoria da percepo e do esprito. Por sua vez, a experimentao psicolgica moderna est fazendo com que proliferem rapidamente fenmenos que essa teoria tem grande dificuldade em tratar. (Kuhn, 2001)

Assim, para o autor, tanto no sentido metafrico como no sentido literal do termo "viso", a interpretao comea onde a percepo termina.Os dois processos no so o mesmo e o que a percepo deixa para a interpretao completar depende drasticamente da natureza e da extenso da formao e da experincia prvias. (Kuhn, 2001)

Kuhn considera que a superioridade de uma teoria sobre outra no pode ser demonstrada por meio de uma discusso e sim por meio da persuaso.Num debate sobre a escolha de teorias no cabe recorrer a boas razes; a teoria deve ser escolhida por razes que so, em ltima instncia, pessoais e subjetivas; alguma espcie de apercepo mstica responsvel pela deciso a que se chega. (Kuhn, 2001)

Devemos considerar a escolha de uma teoria a partir de premissas e regras de inferncia inicialmente estabelecidas? H que se considerar como uma vantagem o fato de que, em havendo conflito de concluses por parte dos analistas, sempre ser possvel refazer o caminho, guiado por regras iniciais. Mas, novamente em Kuhn:

28No existem algoritmos neutros para a escolha de uma teoria. Nenhum procedimento sistemtico de deciso, mesmo quando aplicado adequadamente, deve necessariamente conduzir cada membro de um grupo a uma mesma deciso. (...) Dois homens que percebem a mesma situao de maneira diversa e que, no obstante isso, utilizam o mesmo vocabulrio para discuti-Ia, devem estar empregando as palavras de modo diferente. Eles falam a partir daquilo que chamei de pontos de vista incomensurveis. Se no podem nem se comunicar como podero persuadir um ao outro? (Kuhn, 2001)

Assim, a prtica da cincia pode ser vista como dependente da habilidade, adquirida por meio de exemplares, para agrupar objetos e situaes em conjuntos semelhantes, primitivos no sentido de que o agrupamento efetuado sem que se defina um referencial para essa semelhana. Como conseqncia, Kuhn considera que problemas surgiro, inicialmente na comunicao, mas que, no sendo meramente lingsticos, no podem ser resolvidos simplesmente atravs da estipulao das definies dos termos problemticos. Restaria, portanto, aos interlocutores que no se compreendem mutuamente a alternativa de reconhecerem-se uns aos outros como membros de diferentes comunidades de linguagem e, a partir da, tornarem-se usurios de mecanismos de traduo, instrumento potente de persuaso e converso. Considerando que persuadir algum convenc-lo de que nosso ponto de vista superior e por isso deve suplantar o seu, Kuhn considera que, ocasionalmente, chega-se a esse resultado sem recorrer a nada semelhante a uma traduo. E, na ausncia desta, muitas explicaes e enunciados de problemas endossados pelos membros de um grupo cientfico sero opacos para os membros de outro grupo. Esse um aspecto determinante para a apresentao da escolha metodolgica do presente trabalho, na medida em que no sua inteno discutir qualquer metodologia social e/ou poltica, devido a, basicamente, dois motivos. O primeiro deles que o objetivo principal deste trabalho discutir as possibilidades e restries aos processos de negociao empreendidos pelo setor eltrico na Amaznia,

29 sob uma tica da importncia dos processos de comunicao com a sociedade que foram ou so utilizados e no desenvolver uma metodologia para analisar as circunstncias sociais e polticas desses processos. importante ressaltar que isso no significa isentar o trabalho do necessrio rigor metodolgico, mas tambm que a metodologia no um fim em si mesma. O segundo motivo que essa discusso, apesar de importante e pertinente, pertence queles que tm habilidades e vocao para construir modelos e abordagens para descrever e explicar os eventos sociais que ocorrem ao seu redor. Enfatize-se que o desenvolvimento e uso de paradigmas para descrever e explicar o mundo social e poltico, atualmente, se encontra em uma dimenso maior do que a que possui o nosso campo de anlises, sendo extensivo e disponvel para ser apropriado por aqueles que somente buscam descrever e explicar um evento social e/ou poltico especfico caso deste trabalho. Nele, portanto, deve-se considerar previamente a adoo de uma metodologia que, de acordo com o modo com que o autor enxerga a realidade, a melhor para descrever e explicar os eventos sociais e polticos, em uma escolha que , basicamente, um caso de afinidade, onde a metodologia escolhida se encaixa com a forma que o analista descreve e explica o mundo. O primeiro aspecto metodolgico a ser considerado enfatizar o seu significado, para que seja definida uma abordagem geral para estudar um tpico de pesquisa. Ou seja, o estabelecimento de como o analista ir estudar um fenmeno qualquer. A metodologia, sobretudo no contexto das cincias sociais e polticas, relacionada com a forma com que o pesquisador descreve e tambm explica os eventos polticos e sociais. Tendo em conta a natureza do mundo social e poltico e do ser social em particular e a natureza da explicao adequada e vlida de um evento, efeito ou processo poltico como sendo componentes ontolgicas e epistemolgicas que descrevem os aspectos

30 complexos que marcaram e tambm diferenciam as abordagens metodolgicas distintas, presentes no campo das cincias sociais, quatro paradigmas empregados em investigao social emergem: positivismo; ps-positivismo; teoria crtica; e construtivismo. Considerados como os principais paradigmas de investigao utilizados para guiar as pesquisas sociais e polticas, distinguem-se ao considerarem a natureza da realidade, a relao conhecimento/ conhecedor e a forma como o conhecimento deveria ser descoberto. No positivismo, realidade algo que existe e dirigida por leis de causa e efeito que ns podemos conhecer e utilizar em investigao que pode ser livre de valor, sendo que nossa hiptese pode ser empiricamente testada. No ps-positivismo, realidade tambm algo que existe, mas no pode ser completamente entendida ou explicada, por existir uma multiplicidade de causas e efeitos. Desse modo, objetividade um ideal, mas requer uma comunidade crtica, principalmente em relao ao experimentalismo. Enfatiza abordagens, teoria e descoberta qualitativas. Na teoria crtica, a realidade, embora exista, no pode ser completamente entendida ou explicada. H uma multiplicidade de causas e efeitos e os valores fazem mediao da investigao. Deve ser eliminada a falsa percepo, participa-se e facilita-se a transformao. No construtivismo, a realidade existe como construes mentais e relativa queles que as possuem, sendo conhecimento e conhecedor parte da mesma entidade subjetiva, na qual as descobertas so resultado da interao. Identifica, compara e descreve vrias construes que existem (hermenutica e dialtica). A opo por um desses paradigmas para esta pesquisa deve ser feita de modo a permitir que se avance sobre o problema sem abandonar o uso de argumentos consistentes nem, tampouco, a possibilidade de eventuais erros serem corrigidos por meio da experincia. Assim procedendo, pretendeu-se distinguir a opinio racional de preconceito,

31 uma vez que aquela conseqncia do fato de se levar em conta o conjunto de posicionamentos, de crticas e de discusses que consideram diferentes vises, evitando-se os falsos conceitos destinados a julgar os atores considerados pelo grupo a que pertencem, levando, inevitavelmente, a discriminaes. Para a definio da metodologia, a contribuio de Popper, em seu conjunto, foi considerada, tendo como referncia a sua viso de que quando no admitimos ser possvel chegar a um consenso atravs de argumentos, s resta o convencimento pela autoridade. Como conseqncia, a falta de discusso crtica seria substituda por decises autoritrias, solues arbitrrias e dogmticas para se decidir uma disputa, o que poderia levar, inclusive, a prticas violentas. Reagindo-se a uma falsa neutralidade, exibe-se a responsabilidade quanto uma investigao cuja deciso final ser sempre um ato de valor e que pode ser esclarecida pelo pensamento, por meio da anlise das conseqncias e por posies de determinada deciso. Como a maioria dos problemas estudados pelos cientistas surge a partir de um conjunto de teorias cientficas que funciona como um conhecimento de base, a formulao e a resoluo de problemas naturalmente remetida para quem tem um bom conhecimento das teorias cientficas de sua rea. Na teoria crtica, enfatizado o papel da cincia na transformao da sociedade, ao mesmo tempo em que existe o envolvimento do cientista nesse processo de transformao como objeto de debate. A diferena fundamental entre a teoria crtica e as demais abordagens metodolgicas se situa na motivao poltica dos pesquisadores e nas questes que envolvem, por exemplo, desigualdade e dominao. Como a questo central desta pesquisa est intimamente ligada tanto transmisso quanto validao de informaes, como j foi enfatizado, esse envolvimento e a militncia poltica devem ser explicitados inicialmente como atitudes distintas. Pois, se a abordagem crtica essencialmente aquela que busca investigar os grupos e instituies, de modo a relacionar as aes humanas com a cultura e as estruturas sociais e polticas, bem

32 como tentar entender de que forma as redes de poder so produzidas, mediadas e transformadas, preciso "descontaminar" as anlises e as discusses desenvolvidas na pesquisa de sectarismos e preconceitos. Considerando-se que os processos sociais no podem ser investigados de forma isolada, como instncia neutra, acima dos conflitos ideolgicos da sociedade, a sua ligao com as desigualdades culturais, econmicas e polticas existentes na sociedade no pode servir de pretexto para abandonar-se o procedimento cientfico. Coexistem atualmente diferentes linhas filosficas acerca da natureza do mtodo cientifico e em relao aos critrios para avaliao das teorias cientificas. A pesquisa nas cincias sociais se caracteriza por uma multiplicidade de abordagens que incluem pressupostos, metodologias e estilos diversos e, assim, a escolha metodolgica no independente dos conceitos e bases tericas, envolvidos na pesquisa tanto de modo explcito quanto de modo implcito. Nas obras de Popper, os valores puramente cientficos e os valores extracientficos so objetos de uma tarefa que cabe ao cientista crtico. Demarcando claramente quais os valores que se situam em um e em outro campo, o cientista evita que aspectos extracientficos se confundam com questes de Verdade. Nesse contexto, pode-se dizer aqui que as dificuldades metodolgicas so maiores quando so enfrentados problemas de pesquisa de cunho fortemente interdisciplinar, como as questes ambientais. A teoria tradicional, em um sentido cartesiano, em vigor nas chamadas cincias especializadas, se aplica, de modo confivel, para compor o que se poderia chamar de "linhas da matriz ambiental", ou seja, a Biologia, a Qumica, a Engenharia, entre outras, podem ser utilizadas de modo a que os sistemas das disciplinas disponham os conhecimentos de tal forma que, sob controle, sejam aplicveis ao maior nmero possvel de situaes, de modo tal que a gnese social dos problemas em que a cincia empregada e as razes para sua aplicao, sejam consideradas exteriores.

33 Evidentemente, a matriz ambiental deve ser completada por "colunas" que incorporem, como objeto, os homens como produtores de todas as suas formas histricas de vida. As situaes efetivas, nas quais a cincia se baseia, no dependem apenas da Natureza, mas tambm do poder do homem sobre ela e, portanto, no podem ser entendidas como uma coisa dada, cujo nico problema estaria na mera constatao e previso segundo as leis da probabilidade. Essas ponderaes j existiam, mesmo que no dirigidas diretamente s questes ambientais, na dcada de 1930, na Escola de Frankfurt, particularmente em Horkheimer, quando eram lanadas as bases da teoria crtica, contraposta s outras metodologias. Constitui-se, ento, um processo de confronto com o ideal de conhecimento de uma explicao unvoca, simplificada ao mximo e matematicamente elegante. O objeto, ou seja, a sociedade, no sendo unvoca nem simples, tampouco se sujeita de modo neutro ao arbtrio do sistema de categorias da lgica discursiva. Levando em considerao, como j foi dito, os aspectos da ontologia e epistemologia que do forma metodologia, a descrio e a explicao que esto associadas viso de mundo do analista se acham mais bem situadas no paradigma da teoria crtica, sem que tal fato se constitua como uma adeso incondicional, seja por causa das divergncias existentes no conjunto de pensadores desse corpo terico, seja pelo fato de os denominados "saberes ambientais" ainda no constiturem um conjunto integrado e definido. Thompson (1995) tambm agrega razes para que tenhamos cautela com a adoo da viso social e poltica inerente ao projeto inicial da teoria crtica:Vivendo no final do sculo XX, ns temos a vantagem de poder ver os fatos acontecidos: alguns dos ideais e aspiraes que deram vida ao seu trabalho foram manchados por realidades histricas srias e, algumas vezes, srdidas. Falando de maneira mais geral, podemos duvidar se o marco referencial terico dentro do qual eles tentaram sua anlise das sociedades modernas era adequado para a tarefa.(Thompson, 1995)

34 Thompson admite que se possa suspeitar que a nfase no capitalismo industrial como a caracterstica constitutiva essencial das sociedades modernas fora um exagero que levou ao obscurecimento do significado de outros processos de desenvolvimento e de outras causas que originam a dominao e desigualdade. Tambm admite que se duvide que os riscos ligados socializao dos meios de produo e conseqente burocratizao das organizaes sociais e polticas tenham sido totalmente reconhecidos e apreciados.Podemos perguntar-nos se eles deram suficiente ateno s formas institucionais atravs das quais os indivduos poderiam expressar, da melhor forma, seus desejos e necessidades e pelas quais poderiam proteger-se do uso excessivo do poder do estado. Podemos manifestar dvidas sobre a idia, tomada de Max Weber e concretizada numa viso totalizante de histria, de que as sociedades modernas foram presas de um processo de racionalizao que permeia, sempre mais, cada aspecto da vida social, tornando os indivduos, cada vez mais, dependentes de uma totalidade reificada e administrada que ameaa esmag-los. .(Thompson, 1995)

Mesmo com dvidas e reservas que poderiam ser razes suficientes para que se abandonasse muita coisa do projeto original da teoria crtica, Thompson considera que no estamos obrigados a abandonar a tarefa na qual os primeiros tericos crticos estavam interessados, isto :A tarefa de analisar as trajetrias de desenvolvimento especficas das sociedades modernas, de refletir sobre as limitaes dessas sociedades e sobre as oportunidades possveis de seu desenvolvimento. Esta tarefa conserva sua importncia hoje, mesmo se o referencial dentro do qual ela for pesquisada tenha de ser, fundamentalmente, reformulado.(Thompson, 1995)

1.3.2. Modelos Utilizados na Pesquisa Tendo identificado o principal paradigma empregado na pesquisa, o prximo ponto a ser considerado nesta descrio do modelo terico-metodolgico para a presente pesquisa a identificao de uma abordagem, dentro do domnio da teoria crtica, que melhor se relaciona com a viso de mundo do analista.

35 Assim sendo, como encontrar explicao para um determinado conflito? Como uma conseqncia de intenes e aes dos atores imediatos envolvidos? Nos termos de lgica ou estrutura das mais amplas relaes das quais os referidos atores fazem parte? No mbito da presente pesquisa, a abordagem metodolgica mais adequada implica acreditar que os eventos sociais e polticos sero descritos e explicados como resultantes no somente das aes empreendidas pelos diferenciados atores sociais (como indivduos ou membros de coletividades concretas grupos, associaes, comunidades, etc.), mas tambm devido a uma segunda realidade social, feita de conjuntos sociais abstratos de um tipo super-individual, representando uma realidade social sui generis (sociedades, culturas, civilizaes, formaes scio-econmicas, sistemas sociais, etc.). Egler, apud Sztompka, 19934. Encontramos uma contribuio decisiva para a escolha da melhor abordagem em Thompson (op. cit.), para quem a midiaco da cultura uma caracterstica constitutiva fundamental das sociedades modernas. Assim, sendo uma caracterstica pela qual, entre outras, as sociedades em que vivemos hoje so "modernas", a midiao da cultura um processo que caminhou de mos dadas com duas outras tendncias constitutivas. A primeira o desenvolvimento do capitalismo industrial em conjunto com as tentativas correspondentes de desenvolver formas de organizao industrial no-capitalistas (ou socialistas de estado). A segunda o surgimento do estado moderno e a conseqente emergncia de movimentos polticos de massa com o objetivo de exercer influncia sobre as instituies polticas, junto com a crescente participao nessas instituies. O autor considera que, juntos, esses processos de desenvolvimento moldaram, e continuam a moldar, as principais instituies das sociedades modernas, bem como configuraram as sociedades modernas como entidades relativamente independentes e, ao mesmo tempo, incorporaram essas sociedades num sistema social global.

4 As citaes e referncias do trabalho de Egler foram feitas a partir do original em lngua inglesa, com traduo deste autor.

36 Assim, se vivemos num mundo cada vez mais interligado economicamente e que apresenta caractersticas comuns em termos de organizaes e movimentos polticos e, ainda, que cada vez mais perpassado pelos produtos e instituies das indstrias da mdia, isso se deve ao fato de que nossas sociedades foram moldadas por um conjunto de processos que so constitutivos do mundo moderno. Buscamos em Thompson a ideologia integrada em um referencial terico que focalize a natureza das formas simblicas, as caractersticas dos contextos sociais, a organizao e a reproduo do poder e da dominao. Desse modo o fenmeno da ideologia adquire um novo horizonte e complexidade quando se torna parte da circulao amplificada das formas simblicas ocasionada pela midiao da cultura moderna. Com isso, a anlise de conflitos relacionados a grandes projetos nos pareceu mais atraente sob uma abordagem que considerasse a importncia crescente da dominao no mundo moderno e que, como queriam os criadores da teoria crtica, realasse o fato de os indivduos serem agentes auto-reflexivos que podem aprofundar a compreenso de si mesmos e de outros e que podem, a partir desta compreenso, agir para mudar as condies de suas vidas, como em Thompson que nos diz:Nas circunstancias presentes das sociedades modernas diversidade e diferena esto, geralmente, inseridas nas relaes sociais que esto estruturadas em maneiras sistematicamente assimtricas. No podemos nos cegar pelo espetculo da diversidade a tal ponto que sejamos incapazes de ver as desigualdades estruturadas da vida social. A anlise crtica da ideologia retm seu valor como parte de uma preocupao mais abrangente com a natureza da dominao no mundo moderno, com os modos de sua reproduo e as possibilidades de sua transformao. Isto no significa que o conjunto de problemas ligados anlise da ideologia e da dominao sejam os nicos dignos de preocupao da teoria crtica hoje no h necessidade de adotar-se um enfoque to restritivo. Mas sugerir que ns podemos, agora, deixar estes problemas para trs, trat-los como um resduo do pensamento do sculo XIX que no tem mais vez no mundo moderno (ou "ps-moderno") seria, decididamente, prematuro.(Thompson, 1995)

Entretanto, a pretenso de investigar um conflito scio-ambiental significa realizar um trabalho sobre um dos temas mais antigos da histria da Humanidade, em que diversos

37 campos do conhecimento, desde o ensino de estratgias militares ao estudo da Psicologia, se voltaram para a interpretao das diversas formas de conflitos, sejam elas sanguinrias e violentas ou dissimuladas e predominantemente verbais. Devemos distinguir, para podermos justificar a abordagem metodolgica desta pesquisa, uma questo ambiental de um conflito ambiental. Podemos descrever a existncia de uma questo ambiental de vrios modos. Uma questo, ou um problema, de natureza burocrtica, de licenciamentos ambientais, da mitigao ou da compensao de efeitos ou impactos, da formao e capacitao de agentes de fiscalizao para poder cumprir normas legais e assim por diante. Com isso, no estaremos necessariamente associando a questo ao conjunto das teorias de conflito. Mas, a noo de conflito no pode ser confundida com um simples problema. Ou seja, se queremos investigar um conflito, se este o nosso problema de pesquisa, necessitamos de uma base terica especfica para que seja definido um conflito, bem como a sua tipologia, para podermos apresentar as variveis sujeitas anlise. Lipset (1985) considera duas linhas de pensamento que seriam classificadas como de conflito e de consenso e que se distinguiriam pelo matiz ideolgico. A primeira teria como base um conjunto de autores de formao predominantemente marxista, como o prprio Marx, Althusser e Gramsci e a segunda os funcionalistas e tericos das teorias de sistemas como Durkheim e Parsons, por exemplo. A diferena fundamental entre esses dois grupos, para Lipset, pode ser percebida pelo fato de o marxismo, ao evidenciar o conflito de classe e as contradies estruturais como motores de mudana, pode ser entendido como diametralmente oposto ao funcionalismo, com suas premissas, supostamente conservadoras, de que tudo o que existe necessrio e de que os laos interdependentes entre instituies e prticas significam que as conseqncias sociais da mudana social planejada so imprevisveis e muitas vezes desastrosas.

38 Na viso funcionalista, os conflitos podem ser vistos como tenses normativas que ocorrem no nascedouro da sociedade moderna. Normas devem ser destrudas para que novas normas possam se implementar e, assim, possibilitar o surgimento da estrutura social moderna, onde tanto normas formadoras de mercado quanto normas constitutivas do indivduo e do poder impessoal marcam o nascimento do capitalismo, do individualismo e dos novos costumes. O conflito, nessa viso, entendido como confronto de interesses entre grupos sociais, no qual modernidade representa uma maior complexidade social, com o nascimento de novos grupos fundamentais. As classes sociais detentoras do capital e as da fora de trabalho se enfrentam nos campos econmico, poltico e social, numa forma de conflito caracterizada por interesses divergentes quanto apropriao das riquezas produzidas, quanto ao reconhecimento social e tambm quanto deteno de poder. (Nascimento, 2001). Na noo funcionalista, os conflitos tambm so resultantes da ausncia de normas que ofeream objetivos claros aos indivduos e, assim, os atores no tm interesses definidos nem existe a coliso de antigas e novas normas, mas os comportamentos sociais sem objetivos definidos e destitudos de significado perceptvel constituem reaes de indivduos ou grupos sociais que no se identificam com as novas normas e estruturas em construo, cuja reao um protesto desorganizado contra o que no se compreende. Essa viso se ajusta ao pensamento no qual a recusa a normas e valores constitui o comportamento desviante. Essa noo de conflito envolve disfuno, perturbao, desequilbrio e perda de harmonia, resultando sempre de um mau funcionamento do sistema, que gera problemas para a sociedade moderna. Enquanto a viso marxista impe que a fonte dos conflitos seja buscada nas relaes socioeconmicas, em um permanente processo de coliso e de conseqente mudana do sistema capitalista, a viso funcionalista associa os conflitos natureza humana, mantendo o ideal de uma resoluo por meio da mudana nas relaes humanas.

39 Em Marx, o conflito a tenso entre a base das estruturas sociais e o seu topo, entre a infra e a superestrutura. Entre economia e poltica, ou melhor, entre as formas de produo e as formas de organizao social e poltica, as primeiras so as determinantes do processo social, a base da sociedade e, assim, um conflito central organiza e condiciona a manifestao de todos os outros conflitos: o conflito entre capital e trabalho. Sem conciliao, a soluo a destruio de um dos termos da tenso. A luta de classes, desse modo, funcionaria como um motor da histria da humanidade, responsvel pelas transformaes sociais e pelo progresso, pelo menos nos termos do embate ideolgico que caracteriza o final do sculo XIX e em Hegel o conflito entre capitalistas (tese) e o proletariado (anttese) redundar numa situao em que as classes sociais no mais existiro (sntese). Para Simmel (1983), os conflitos so formas de interao social; constituintes das relaes sociais da sociedade moderna. O conflito necessrio para resolver dualismos divergentes, almejando algum tipo de unidade, mesmo que signifique a aniquilao de uma das partes conflitantes. Os conflitos, portanto, so meios pelos quais os atores sociais dirimem suas divergncias, interesses antagnicos ou pontos de vista conflitantes, possibilitando que a sociedade alcance uma certa unidade. Os conflitos so fatores de coeso social e no de distrbio. Os elementos que os caracterizam, regendo sua evoluo e intensidade, so: natureza, atores sociais, campo especfico, objeto em disputa, lgica ou dinmica de evoluo, mediadores e tipologia. Os atores podem ser definidos como indivduos, grupos ou organizaes de identidade prpria, reconhecidos por outros, com capacidade de modificar seu ambiente de atuao que se posicionam visando promoo, ao apoio, neutralidade, oposio ou ao veto.

40 Esse conjunto de definies nos remete a uma das causas mais comuns de conflitos: as formas de comunicao entre os diversos atores envolvidos, em especial a linguagem utilizada nos processos de interao entre as partes. Kuhn (op. cit.) alerta que:Os que participam de uma interrupo da comunicao no podem dizer: "utilizei a palavra 'elemento' (ou 'mistura', ou 'planeta', ou 'movimento livre') na forma estabelecida pelos seguintes critrios". No podem recorrer a uma linguagem neutra, utilizada por todos da mesma maneira e adequada para o enunciado de suas teorias ou mesmo das conseqncias empricas dessas teorias. Parte das diferenas anterior utilizao das linguagens, mas, no obstante, reflete-se nelas. (Kuhn, 2001)

Tomando o pensamento do autor de forma analgica, uma vez que sua advertncia se dava, nesse texto, em um contexto da discusso de teorias cientficas, podemos considerar suas palavras aplicveis descrio de conflitos inerentes a culturas distintas, como os que so encontrados nos processos de negociao de empreendimentos de grande porte, em que componentes polticos e ideolgicos das "teorias" sustentadas pelas partes conflitantes, embora anteriores s linguagens utilizadas, nelas so refletidos. Por tudo isso, uma teoria de processo poltico pode no ser suficiente para abordar o conjunto de elementos presentes em conflitos e, tampouco, uma nica disciplina do conhecimento ser suficiente para que se possa analis-los. Muitas teorias procuram investigar as caractersticas humanas individuais como causadoras de influncias significativas em um processo de negociao de conflitos. No difcil admitir que as caractersticas individuais dos negociadores, manifestadas tanto por caractersticas psicolgicas quanto pela sua trajetria de vida, sejam determinantes para uma razovel explicao dos mtodos, estratgias e tticas que utilizam. Os estudos da psicologia social, fundamentais para o entendimento do ambiente de conflito, fr