Uso Da Calorimetria Isotrmica Na Investigao de Problemas- Denise a. Silva

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Uso da calorimetria isotérmica na investigação de problemas de desempenho de sistemas cimentícios Denise Antunes da Silva (1); Lawrence Roberts (2); Humberto R. Benini (3) (1) W.R. Grace & Co., [email protected] (2) Roberts Consulting Group Ltd., [email protected] (3) Grace Brasil Ltda., [email protected] RESUMO Apesar do conhecimento sobre o comportamento de sistemas cimentícios ter avançado de forma importante nas últimas décadas, ainda há uma grande lacuna no entendimento dos mecanismos fundamentais que regem a interação entre fases do cimento, adições minerais e aditivos químicos. Essa falta de entendimento pode levar à tomada de decisões inadequadas em campo, resultando em problemas de desempenho dos produtos cimentícios, especialmente no estado fresco. Este artigo combina a apresentação de exemplos de problemas típicos de aplicação de materiais cimentícios em campo com informações disponíveis na literatura, objetivando demonstrar a utilidade da calorimetria isotérmica como principal ferramenta de investigação e de prevenção de tais problemas. Demonstra-se que a sub-sulfatação de argamassas e concretos, que pode ser agravada pela presença de adições minerais e aditivos químicos, e a ocorrência de pré-hidratação do cimento, podem ser responsáveis por problemas de pega, comportamento reológico e desenvolvimento de resistência dos sistemas cimentícios. Palavras-chave: calorimetria isotérmica, balanço de sulfatos, interação cimento/aditivos, pré-hidratação do cimento.

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Uso da calorimetria isotérmica na investigação de p roblemas

de desempenho de sistemas cimentícios

Denise Antunes da Silva (1); Lawrence Roberts (2); Humberto R. Benini (3)

(1) W.R. Grace & Co., [email protected]

(2) Roberts Consulting Group Ltd.,

[email protected]

(3) Grace Brasil Ltda., [email protected]

RESUMO

Apesar do conhecimento sobre o comportamento de sistemas cimentícios ter

avançado de forma importante nas últimas décadas, ainda há uma grande lacuna no

entendimento dos mecanismos fundamentais que regem a interação entre fases do

cimento, adições minerais e aditivos químicos. Essa falta de entendimento pode

levar à tomada de decisões inadequadas em campo, resultando em problemas de

desempenho dos produtos cimentícios, especialmente no estado fresco. Este artigo

combina a apresentação de exemplos de problemas típicos de aplicação de

materiais cimentícios em campo com informações disponíveis na literatura,

objetivando demonstrar a utilidade da calorimetria isotérmica como principal

ferramenta de investigação e de prevenção de tais problemas. Demonstra-se que a

sub-sulfatação de argamassas e concretos, que pode ser agravada pela presença

de adições minerais e aditivos químicos, e a ocorrência de pré-hidratação do

cimento, podem ser responsáveis por problemas de pega, comportamento reológico

e desenvolvimento de resistência dos sistemas cimentícios.

Palavras-chave: calorimetria isotérmica, balanço de sulfatos, interação

cimento/aditivos, pré-hidratação do cimento.

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Use of isothermal calorimetry to investigate perfor mance

issues of cementitious systems

ABSTRACT

The knowledge on the performance of cementitious systems, such as mortars

and concretes, has importantly progressed over the past several decades. However,

persisting gaps on the understanding of fundamental interactions between key

elements of the systems (cement, mineral additions, and chemical admixtures) and

on the impact of field conditions such as temperature and mixing energy are

responsible for the occurrence of several performance issues in actual systems. This

article combines the presentation of examples on typical performance problems

observed in the field with information available in the literature, aiming to demonstrate

the value of isothermal calorimetry to investigate and prevent such problems. It is

shown that undersulfated systems are the root cause of many problems, and that the

presence of chemical admixtures and mineral additions can trigger or worsen the

problem. In addition, it is shown how setting times, rheologic behavior, and strength

development can be severely affected by cement pre-hydration in the presence of

chemical admixtures.

Keywords: isothermal calorimetry, sulfate balance, cement/chemicals

interaction, cement pre-hydration.

INTRODUÇÃO

A complexidade das misturas à base de cimento, em termos de diversidade das

matérias-primas e dos materiais constituintes, é bem maior nos dias de hoje do que

no passado. A tendência é de que essa complexidade se intensifique ainda mais em

conseqüência das medidas reguladoras de emissões poluentes sendo praticadas em

muitos países, levando a uma maior utilização de adições minerais de diversas

fontes em substituição parcial ao cimento Portland e à utilização de combustíveis

alternativos na produção dos cimentos. A escassez de agregados naturais de boa

qualidade, e o conseqüente maior uso de agregados contaminados ou agregados

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artificiais, é outro fator a contribuir para o aumento da complexidade. Finalmente,

com o aumento da complexidade dos sistemas, a presença de aditivos químicos de

diversas funções em argamassas e concretos se torna cada vez mais necessária, e

sua presença pode aumentar a sensibilidade desses sistemas às condições de

aplicação.

Quanto maior a complexidade dos sistemas cimentícios, maior é o número de

variáveis que afeta o desempenho desses sistemas, e mais difícil fica o controle de

qualidade na sua produção. Diferenças de temperatura e energias de mistura, por

exemplo, podem ter um efeito muito mais intenso do que o observado no passado.

Fica mais provável, então, a ocorrência de problemas de desempenho, como perda

inesperada de trabalhabilidade, aumento excessivo dos tempos de pega e

desenvolvimento inadequado de resistências(1).

Dentre as técnicas de controle de qualidade disponíveis ao produtor de

materiais à base de cimento, a calorimetria isotérmica se destaca por ser uma

ferramenta precisa e que permite, via simulação de condições reais de aplicação,

detectar potenciais problemas de desempenho dos sistemas que podem ocorrer em

campo. Isso se tornou possível especialmente nos últimos anos, em função das

melhorias na sensibilidade dos equipamentos e na conveniência de uso. Hoje, a

calorimetria isotérmica permite acompanhar o consumo das fases sulfáticas de uma

forma que não era possível anteriormente sem que fosse necessário o uso de

técnicas complexas de extração da água de poro de análise química. A técnica

permite demonstrar que o consumo de sulfatos pode ser muito mais rápido do que

antes se imaginava, especialmente em sistemas que contenham certos aditivos

químicos(2).

Como demonstrado por Sandberg e Walsh(3), a técnica pode ser utilizada para

a seleção de materiais para novas misturas cimentícias (concreto projetado, no caso

do estudo dos autores), e também para diagnóstico de problemas de desempenho.

Através da descrição de exemplos, este artigo demonstra a importância da

utilização da calorimetria isotérmica como ferramenta de diagnósticos de problemas

de desempenho de sistemas cimentícios, e como ferramenta de controle de

qualidade para os produtores intermediários e finais de argamassas e concretos.

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CALORIMETRIA ISOTÉRMICA DO CIMENTO PORTLAND

A Figura 1 mostra uma curva típica de liberação de calor de hidratação de um

cimento Portland comum. Ao entrar em contato com a água, o cimento

imediatamente inicia reações de dissolução das fases mais ativas e formação de

alguns produtos de hidratação. Esta hidratação inicial, indicada pela letra “A” na

Figura 1, ocorre nos primeiros minutos após a mistura com água e é devida,

principalmente, às reações de hidratação das fases aluminato do cimento. Na

presença de quantidade suficiente de íons sulfato na água de amassamento, os

aluminatos reagem para formar principalmente etringita (trissulfoaluminato de cálcio

hidratado). A taxa de hidratação decresce rapidamente levando à fase de indução,

indicada pela letra “B” na Figura 1. A formação da etringita previne a ocorrência de

pega instantânea, que ocorreria na ausência de quantidade suficiente de sulfatos no

sistema devida à formação de aluminatos de cálcio hidratado. Após algum tempo

(normalmente de 1 a 3 horas em cimentos Portland puros), a hidratação da alita

(forma impura do silicato tricálcico ou C3S) se intensifica, e uma liberação de calor

importante ocorre, formando aquilo que será o principal pico de hidratação do

cimento, indicado pela letra “C”na figura. A pega do cimento normalmente ocorre na

parte inicial desse pico. A hidratação da alita e do aluminato continua de forma

simultânea no sistema, com formação de produtos de hidratação como portlandita

(hidróxido de cálcio), C-S-H e sulfoaluminatos de cálcio hidratados, até que o

sistema não tenha mais sulfatos solúveis para alimentar as reações de hidratação.

Neste momento, um novo pico de calor, indicado pela letra “D” na Figura 1, ocorre

devido à formação de aluminatos de cálcio hidratados no sistema. A intensidade

desse pico irá depender da reatividade do aluminato anidro ainda presente no

sistema.

3. BALANÇO DE SULFATO

O intervalo de tempo decorrido entre o máximo do pico de hidratação da alita

(indicado pela letra “D” na Figura 1) e o momento de extinção do sulfato (indicado

pela letra “E” na Figura 1) é um importante indicador do comportamento do cimento

em condições reais de aplicação, como no preparo de argamassas e concretos em

campo. Quando o pico “F” ocorrer antes ou durante o pico “D” (como mostrado na

curva verde da Figura 2) são esperados problemas relacionados com a pega, tais

como retardo ou aceleração, e perda de trabalhabilidade em concretos e

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argamassas, podendo resultar em grandes prejuízos financeiros para a indústria(1). A

temperatura da mistura, a energia das operações de mistura, transporte e

lançamento, e também a presença de aditivos químicos são fatores que,

isoladamente ou em conjunto, podem acelerar o pico “F”.

Figura 1 – Curva típica de evolução de calor de hidratação de cimento Portland

(Fonte: ASTM C1679-09(4)). Legenda: (A) pico de calor inicial associado à dissolução

e hidratação inicial do cimento; (B) período de indução ou dormência, associado com

pouca liberação de calor em fase de hidratação controlada e lenta; (C) pico principal

de hidratação, associado principalmente com as reações de hidratação da alita que

contribuem para pega e desenvolvimento de resistências iniciais, com máximo em

(D); (E) ponto de extinção de sulfatos solúveis, seguido pela reação acelerada do

aluminato de cálcio (pico em F).

A detecção do ponto de extinção do sulfato (indicado pela letra “E” na Figura 1)

pode ser muito difícil em alguns cimentos, e especialmente na presença de adições

minerais e aditivos químicos. Para facilitar a localização desse ponto, deve-se fazer

uma adição de gradual sulfato de cálcio solúvel ao sistema (como gipsita ou hemi-

hidrato, por exemplo) em testes de calorimetria, como mostra a Figura 2. No sistema

exemplificado nesta figura, o teor ótimo de SO3 a ser adicionado para um balanço de

sulfatos ótimo, além daquele oriundo da produção do cimento, é de 1,0% (curva

vermelha).

Apesar do objetivo principal da adição de sulfatos à produção de cimento ser o

de controlar as reações de hidratação dos aluminatos (principalmente o C3A), sabe-

se que a hidratação dos silicatos pode ser significativamente afetada pelo teor de

sulfatos. De fato, Lerch(5) demonstrou, ainda em 1946 e usando calorimetria

Idade de hidratação

Flu

xo d

e ca

lor

(mW

/g

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isotérmica, que o pico de liberação de calor atribuído à hidratação do silicato

tricálcico (alita ou C3S) e’ dependente não somente da quantidade e características

dessa fase no cimento, mas também da presença de diferentes teores de sulfatos

solúveis, como mostra a Figura 3. Quando há quantidade de sulfato solúvel

suficiente para as reações com o aluminato, o pico de hidratação do silicato

apresenta sua máxima intensidade, como indicado pelas flechas vermelhas nas

curvas 4 e 5 da Figura 3. Entretanto, em condições de sub-sulfatação (ou seja,

quando há “falta” de sulfatos solúveis no sistema), a intensidade do pico de

hidratação do silicato é inferior à máxima, como mostrado para as curvas 1, 2 e 3 na

mesma figura. Nesses casos, problemas relacionados a longos tempos de pega e

rápida perda de trabalhabilidade de argamassas e concretos são comuns. Além

disso, as resistências podem não se desenvolver de forma adequada após a pega(1).

Tenoutasse(6) confirmou os mesmos resultados de Lerch(5) em sistemas compostos

de C3S, C3A e gipsita (Figura 4).

Figura 2 – Exemplo do efeito da adição de sulfatos solúveis (expressos em %

SO3) em pasta de cimento Portland puro (água/cimento = 0,45) para identificação do

ponto de extinção de sulfatos por calorimetria isotérmica, indicado em cada curva

(Fonte: ASTM C1679-09(4)).

A Figura 5 ilustra, de forma esquemática, os fatores que definem o balanço de

sulfato de um dado sistema cimentício. Os parâmetros básicos do balanço são a

atividade dos aluminatos presentes e a disponibilidade de sulfatos solúveis. Esses

parâmetros, por sua vez, são influenciados por uma série de fatores relacionados às

características do cimento, à presença de outros materiais no sistema (adições

minerais e aditivos químicos) e às condições de preparo e aplicação da mistura. As

Idade de hidratação

Flu

xo

de

calo

r (m

W/g

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reações entre sulfatos e aluminatos são associadas aos problemas mais comuns de

aplicação de sistemas cimentícios em campo.

Figura 3 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando a supressão da

hidratação do silicato em cimento Portland em condições de sub-saturação de SO3

(curvas na parte esquerda da figura). Os picos de hidratação do silicato são

indicados em cada uma das cinco curvas (figura adaptada a partir de Lerch(5) e

publicada por Cheung et al(7)).

Figura 4 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando a supressão da

hidratação do silicato em misturas de C3S, C3A e gipsita (G) em condições de sub-

saturação de SO3 (G ≤ 4%) (figura adaptada a partir de Tenoutasse(6) e publicada

por Cheung et al(7)).

Idade de hidratação (h)

Flu

xo d

e ca

lor

(Cal

/(g.

h))

Idade de hidratação

Flu

xo

de

calo

r (m

W/g

cim

ento

)

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Figura 5 – Fatores que afetam o balanço de sulfato dos cimentos.

Uma alta atividade dos aluminatos não compensada pela presença de

quantidade suficiente de sulfatos solúveis pode causar pega instantânea devida à

formação de aluminatos de cálcio hidratados. Por outro lado, um excesso de sulfatos

solúveis no sistema que não sejam consumidos pelas reações de hidratação dos

aluminatos pode levar à pega falsa, causada pela formação de gipsita ou sulfato de

cálcio di-hidratado no sistema. A Figura 6 ilustra essas diferentes situações em

função da forma de sulfato presente no sistema. Nas situações de equilíbrio, em que

há presença suficiente de sulfatos para reagir com os aluminatos, a hidratação é

mais controlada, e produz etringita. Como seria de se esperar, em qualquer situação

diferente do equilíbrio, as propriedades de argamassas e concreto serão

negativamente afetadas, especialmente no estado fresco.

A disponibilidade de íons sulfatos para consumo pelas reações de hidratação

dos aluminatos depende da quantidade e da forma de sulfatos adicionados ao

cimento. Por exemplo, cimentos produzidos em moinhos de bolas normalmente

apresentam alguma desidratação da gipsita em função das altas temperaturas de

moagem, podendo resultar em quantidades importantes de sulfato de cálcio hemi-

hidratado, que e’ uma fase de dissolução mais rápida que a gipsita. Na ausência de

quantidade suficiente de aluminatos reativos para consumo desses íons sulfato,

haverá a formação de gipsita, gerando pega falsa. Por outro lado, em sistemas com

alto teor de aluminatos ativos (alto teor de C3A ou presença de adições minerais que

contenham aluminatos ativos, como metacaulinita, escória de alto forno, pozolanas

naturais e cinzas volantes), haverá a formação de aluminatos de cálcio hidratados se

não houver quantidade suficiente de íons sulfatos disponível, levando à pega

instantânea (perda de consistência imediata e permanente). Da mesma forma, o

balanço pode ser alterado na presença de aditivos químicos que modifiquem a taxa

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de dissolução dos sulfatos e aluminatos, ou que causem dispersão das partículas de

cimento aumentando, assim, a área superficial exposta à água. É importante

ressaltar que a solubilidade e reatividade de todas as fases presentes no sistema

são influenciadas, de forma importante, pela temperatura: em temperaturas mais

altas, normalmente há aumento da solubilidade das fases (com exceção do sulfato

de cálcio) com aceleração das taxas de reação. Essas alterações podem alterar o

balanço do sistema e, por conseqüência, as taxas de enrijecimento e os tempos de

pega.

Em cimentos com baixo teor de C3A e, conseqüentemente, alto teor de C4AF, a

pega instantânea normalmente não ocorre, mas uma rápida hidratação do C4AF e’

possível, levando a uma hidratação lenta dos silicatos.

Dados ainda não publicados gerados em nossos laboratórios indicam que

interações indesejáveis entre cimento e aditivos químicos podem estar relacionadas

a um balanço de sulfatos inadequado, o que resulta em uma falta de controle das

reações dos aluminatos, e que tais reações são prováveis de ocorrerem em campo

se o pico de consumo do sulfato ocorrer antes que o ponto máximo do pico de

hidratação do silicato em um sistema sem aditivos químicos. O presente artigo

apresenta alguns desses dados na forma de estudos de caso, com objetivo de

fornecer informações básicas a projetistas e produtores de sistemas cimentícios para

que exerçam adequado controle de qualidade.

Figura 6 – Esquema ilustrativo do balanço de sulfato e impacto na consistência

da mistura cimentícia (Fonte: Roberts(2)).

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4. EXEMPLO 1: Cimento sub-sulfatado

Como já mencionado, uma quantidade insuficiente de sulfatos resulta em um

cimento de comportamento pouco robusto frente às diferentes condições de

aplicação, sendo esperados problemas relacionados à pega, trabalhabilidade e

desenvolvimento de resistências de argamassas e concretos em campo. A Figura 7

exemplifica esse problema em amostras de um cimento Portland comum disponível

no mercado norte-americano que estava em total conformidade com as normas

técnicas vigentes, mas que apresentava comportamento variado quando utilizado

em campo, especialmente na presença de aditivos químicos.

A Figura 7(a) mostra as curvas de calorimetria isotérmica do cimento produzido

em cinco datas diferentes pela fábrica de cimento, hidratando em água pura (relação

água/cimento = 0,5) a 23oC. Como se pode observar, há pouca diferença entre as

curvas Figura 7(a), sugerindo que a variabilidade na produção desse cimento é

pequena. Já a Figura 7(b) mostra as curvas de emissão de calor dos mesmos

cimentos, desta vez hidratando em água que contém um dispersante químico base

policarboxilato. Como se pode observar, o efeito de retardo do aditivo é

extremamente variado. Isso se deve ao fato do cimento apresentar teor de sulfato

inferior ao necessário para um comportamento robusto.

(a)

(b)

Figura 7 – Curvas de calorimetria isotérmica de pastas de um mesmo cimento

coletado em cinco dias diferentes de produção, hidratando (a) sem aditivos químicos

e (b) na presença de 0.35% de um redutor de água à base de policarboxilato (% em

relação à massa de cimento). O ponto de extinção de sulfatos solúveis no sistema e’

indicado em (a). Temperatura de hidratação = 23oC. Relação água/cimento = 0,5.

De fato, a extinção dos sulfatos solúveis, como indicado na Figura 7(a), ocorre

antes do pico de hidratação da alita. Na presença de aditivos dispersantes e em

Idade de

Flu

xo

de

calo

r (m

W/g

Idade de

Flu

xo d

e ca

lor

(mW

/g

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função da desaglomeração dos grãos de cimento, há aumento da área especifica do

cimento exposta à hidratação nos primeiros momentos de contato com a água. Com

isso, espera-se que uma quantidade maior de aluminatos esteja disponível para a

reação com água nos primeiros instantes de hidratação do cimento, antes mesmo

dos íons sulfato entrarem em solução em quantidade suficiente para participar

dessas reações, o que afeta a hidratação das fases aluminato e silicato. Além disso,

sabe-se que muitos aditivos químicos, incluindo dispersantes base policarboxilato,

apresentam grande afinidade pelos aluminatos, sendo adsorvidos pelas superfícies

reativas dessas fases na ausência de sulfatos prontamente disponíveis, e

participando da estrutura hidratada por meio de intercalação, como comentado por

Cheung et al(7).

Este exemplo mostra a importância da execução de testes de controle de

qualidade para produtores intermediários de materiais à base de cimento. Por

exemplo, produtores de argamassas industrializadas utilizam cimentos provenientes

de diferentes lotes, incluem adições minerais e aditivos químicos aos seus produtos

finais e, muitas vezes, não têm controle sobre as condições de aplicação final dos

seus produtos. Entretanto, esses produtores ainda precisam fornecer garantia de

qualidade dos seus produtos e robustez em campo. A calorimetria isotérmica pode

ser utilizada, então, para monitorar o impacto das variações dos materiais

constituintes das argamassas e para o desenvolvimento de formulações robustas às

extremas condições de uso, já que simulações dessas condições (temperatura,

energia de mistura, quantidade de água de mistura, teores de aditivos) podem ser

feitas em laboratório.

5. EXEMPLO 2: Cimento Pré-Hidratado

Desde o inicio da sua produção, o cimento pode ser exposto a condições de

pré-hidratação. O processo normalmente já inicia dentro do moinho, devido a fatores

como a desidratação da gipsita em sulfato de cálcio hemi-hidratado, a adição

intencional de água para resfriamento do moinho, ou a utilização de matérias-primas

que contenham umidade natural, tais como calcário, gipsita e escória de alto forno. A

adição de até 2-3% de água aos moinhos de bola não é incomum.

A pré-hidratação pode também ocorrer durante o armazenamento do cimento

em silos após a sua produção, se a temperatura de armazenamento for alta o

suficiente para promover a desidratação da gipsita em sulfato de cálcio hemi-

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hidratado (ou hemi-hidrato). Essa conversão é acompanhada pela liberação de

vapor d’água dentro do silo, resultando em pré-hidratação do cimento. A pré-

hidratação pode ocorrer também durante o transporte do cimento e seu

armazenamento em distribuidores e usuários finais.

A exposição do cimento ao vapor d’água resulta na formação de produtos de

hidratação na superfície dos seus grãos em conseqüência de reações de hidratação

com suas fases anidras. Essas fases hidratadas atuam como barreira física à

hidratação adicional do cimento, afetando propriedades importantes de argamassas

e concretos, tais como tempos de pega, desenvolvimento de resistências e

comportamento reológico. A extensão da pré-hidratação e, portanto, dos seus

efeitos nas propriedades de engenharia do cimento, dependem, fundamentalmente,

das condições de exposição (umidade relativa do ar, temperatura e tempo de

exposição) e das características do cimento (composição de fases e granulometria).

A calorimetria isotérmica é uma ferramenta de grande utilidade na avaliação do

impacto da pré-hidratação do cimento na cinética da sua posterior hidratação com a

água. A Figura 8, publicada por Dubina et al(8), mostra as curvas de emissão de calor

de dois cimentos industriais expostos a uma umidade relativa de 85% e a uma

temperatura de 24oC durante o período de tempo indicado nas curvas. O cimento

mostrado em (a) tem alto teor de C3A (8,2%) e baixo teor de C4AF (7,8%), enquanto

que o cimento mostrado em (b) tem baixo teor de C3A (1,0%) e alto teor de C4AF

(17,0%), teores esses medidos por difração de raios X quantitativa (refinamento

Rietveld). A solubilidade dos sulfatos presentes também difere para os dois

cimentos: aquele com alto teor de C3A possui sulfatos de alta solubilidade (hemi-

hidrato, anidrita e arcanita), enquanto que, no cimento com baixo teor de C3A, a

forma de sulfato presente é principalmente a gipsita. Quando exposto à pré-

hidratação, o cimento com alto teor de C3A apresenta uma perda ao fogo maior.

Essas características dos cimentos não permitirem conclusões sobre o impacto da

exposição dos mesmos a condições de alta umidade. Entretanto, a calorimetria

isotérmica permite, de forma precisa, avaliar os efeitos da pré-hidratação na

reatividade dos cimentos.

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(a) (b)

Figura 8 – Curvas de calorimetria isotérmica de pastas de cimento expostos a

85% de umidade relativa pelo período de tempo indicado nas curvas. (a) cimento

com alto teor de C3A; (b) cimento com baixo teor de C3A. Temperatura de hidratação

= 23oC. Relação água/cimento = 0,5. A perda ao fogo (900oC por termogravimetria) é

indicada para cada cimento (Fonte: Dubina et al(8)).

A pré-hidratação do cimento pode resultar em efeitos inesperados de aditivos

químicos em campo, pois, como já comentado, esses produtos interagem com as

fases reativas do cimento, especialmente os aluminatos. De fato, a Figura 9 mostra o

efeito da pré-hidratação na posterior reatividade de um cimento Portland comum

(Tipo I,II conforme a ASTM C150(9)) em água e na presença de um redutor de

água/retardador químico, medida por calorimetria isotérmica de argamassas

moldadas de acordo com a norma européia EN-196(10). Neste exemplo, a pré-

hidratação foi causada pela exposição do cimento ao ambiente de laboratório (23oC

e 50% de umidade relativa) durante 16 horas, espalhado em uma camada com

espessura de 25mm. A mesma dose de um aditivo redutor de água/retardador está

presente em todas as amostras. A pré-hidratação resultou em um acentuado retardo

de pega do cimento na presença do aditivo (13 horas de retardo em comparação à

amostra de cimento fresco, não exposto à pré-hidratação). A adição de sulfato de

cálcio hemi-hidratado (0,5% SO3 em relação à massa de cimento) recupera um

pouco o retardo, mas em apenas 3 horas, demonstrando que o problema está

relacionado apenas em parte à falta de sulfatos solúveis no sistema.

Tempo de pré-hidratação

Perda ao Fogo

0 0,59% 24h 1,38% 7d 2,78% 14d 3,83%

Tempo de pré-hidratação

Perda ao Fogo

0 1,16% 24h 1,25% 7d 1,46% 14d 1,47%

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Figura 9 – Curvas de calorimetria isotérmica de argamassas EN-196

preparadas com (1) cimento fresco (curva verde); (2) cimento pré-hidratado por 16

horas a 50% de umidade relativa e 23oC (curva amarela); e (3) cimento pré-hidratado

por 16 horas a 50% de umidade relativa e 23oC, com 0,5% de SO3 adicional (na

forma de sulfato de cálcio hemi-hidratado) misturado a seco ao cimento antes do

preparo das argamassas. Todas as argamassas contêm a mesma dose de aditivo

redutor de água/retardador. Temperatura de hidratação = 23oC. Relação

água/cimento = 0,5.

Conforme o exposto acima, a pré-hidratação do cimento pode alterar seu perfil

de hidratação quando utilizado em campo, na presença de aditivos químicos. Em

aplicações industriais, o cimento pode ficar armazenado por vários meses antes do

uso. Por exemplo, o prazo de validade da maioria das argamassas industrializadas

disponíveis no mercado é de seis meses contados a partir da data da fabricação. A

pré-hidratação do cimento pode resultar em alterações nos tempos de pega,

desenvolvimento de resistências e alteração da reologia das misturas. Dessa forma,

a calorimetria isotérmica é uma ferramenta de grande valor para prevenção de

problemas dessa natureza.

6. EXEMPLO 3: Impacto de adições minerais

Adições minerais que contenham aluminatos ativos, tais como escória de alto

forno, argila calcinada (incluindo metacaulinita), pozolanas naturais e cinzas

volantes, irão afetar a demanda por sulfatos solúveis do sistema cimentício. Se a

adição de desses materiais for feita posteriormente à produção do cimento, a

Cimento fresco com aditivo

Cimento pré -hidratado com aditivo

Cimento pré-hidratado com aditivo e SO 3 adicional

Idade de hidratação

Flu

xo

de

calo

r (m

W/g

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verificação do balanço de sulfatos passa a ser uma medida de prevenção de

problemas de desempenho em campo.

No exemplo mostrado na Figura 10, o ponto de extinção do sulfato do cimento

Portland comum, como indicado pela marca tracejada na curva verde, ocorre antes

do final do pico de hidratação da alita, indicando que o cimento já se apresentava

sub-sulfatado. A introdução de 40% de escória de alto forno (curva amarela)

antecipou ainda mais o ponto de extinção de sulfato, como esperado. Na presença

de um aditivo químico retardador de pega, o ponto de extinção de sulfato não pode

ser mais identificado (curva vermelha). A adição de sulfatos solúveis, além dos

níveis presentes nos materiais originais (cimento e escoria), ajuda a identificar o

ponto de extinção de sulfato (curva azul) e a identificar a quantidade necessária para

um teor ótimo. É importante observar que a área sob a curva de hidratação obtida

quando a quantidade de sulfato ótima é adiciona ao sistema (área sob a curva azul

da figura) indica uma maior intensidade de hidratação, como esperado.

Figura 10 – Curvas de calorimetria isotérmica mostrando o efeito da adição de

escoria de alto forno e sulfato adicional no ponto de extinção de sulfatos (Fonte:

ASTM C1679-09(4)).

7. CONCLUSÕES

Este artigo demonstrou a importância da calorimetria isotérmica para

prevenção de problemas de desempenho de sistemas cimentícios frente a fatores

comuns em campo, tais como variabilidade da produção de cimento, sub-sulfatação

de cimentos, inclusão de adições minerais (escoria de alto forno, cinzas volantes,

metacaulinita, pozolanas naturais), exposição do cimento a ambientes de elevada

umidade relativa do ar, e presença de aditivos químicos.

Idade de hidratação (h)

Flu

xo d

e ca

lor

(mW

/g

cim

ento

)

Page 16: Uso Da Calorimetria Isotrmica Na Investigao de Problemas- Denise a. Silva

É importante salientar que, hoje em dia, as vantagens da calorimetria

isotérmica podem também ser aplicadas no campo: um estudo recente (Cost(11);

Cost e Gardiner(12)) demonstrou o grande benefício da utilização de métodos mais

simplificados de medida de temperatura para a análise de problemas de

desempenho de sistemas cimentícios. Há, atualmente, um grupo de trabalho da

ASTM trabalhando no desenvolvimento de uma normalização desses métodos. No

futuro, espera-se que eles sejam utilizados não apenas para o diagnóstico de

problemas de desempenho, mas principalmente para a prevenção desses

problemas.

Não se deve esperar que os cimentos sejam totalmente robustos às condições

de aplicação em campo, e, da mesma forma, não se pode assumir que aditivos

químicos e adições minerais sejam imunes a problemas de desempenho, pois, na

grande maioria das vezes, é a combinação de dois ou mais fatores a responsável

pelo aparecimento de problemas, como foi demonstrado neste artigo. Problemas de

desempenho podem ocorrer mesmo quando materiais conformes e considerados de

alta qualidade são utilizados. Dessa forma, a identificação das condições críticas e,

portanto, a prevenção dos problemas, é de responsabilidade de todos os produtores

da cadeia. Como demonstrado, essa prevenção pode ser feita pela simulação de

situações de campo utilizando-se a calorimetria isotérmica.

8. AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a contribuição de Paul J. Sandberg (Calmetrix Inc.) pelo

fornecimento de exemplos de campo mencionados neste artigo, assim como pelas

diversas discussões relativas às análises das curvas de calorimetria.

9. REFERÊNCIAS

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