USUCAPIÃO NO ESTADO BRASILEIRO: REFLEXÕES SOBRE...
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USUCAPIÃO NO ESTADO BRASILEIRO:
REFLEXÕES SOBRE A VEDAÇÃO DA USUCAPIÃO DE TERRAS PÚBLICAS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO
ADVERSE POSSESSION IN THE BRAZILIAN STATE:
REFLECTIONS ON SEAL PUBLIC LAND ADVERSE POSSESSION IN LAW
Autor, 2015 1
Autor, 2015 2
RESUMO
A usucapião é uma das formas de aquisição originária da propriedade. Uma
vez declarado a usucapião, o usucapiente, adquire o título da propriedade e tem,
plenos direitos de usar, gozar e fruir de um bem. No mesmo raciocínio, tem-se a
função social da propriedade - na qual busca-se dar utilidade à terras não usufruídas
por seus proprietários, provocando o bem comum, Há de se considerar, com isso,
que todo aquele que tiver propriedade imóvel, independente de se tratar de pessoa
física ou jurídica de direito privado ou de direito público, e não realizar no mesmo a
função social da propriedade, definida no artigo 5º, XXIII da Constituição Federal, e,
ocorrendo a posse nos termos legais preceituados, deve ser concedida a usucapião.
Entretanto, o artigo 183, em seu parágrafo terceiro, da Carta Magna, estabelece que
é defeso a concessão de usucapião no que se refere às terras públicas.
Ao conceber-se que não pode haver usucapião em terras estatais, há uma
clara incompatibilidade, com o dispositivo que prega que deve-se dar destinação
social a propriedade. Deste modo, far-se-á necessária a interpretação constitucional,
operacionalizada por princípios que então procedem à justificação valorativa das
regras do direito positivo, tendo este trabalho, através do método hipotético-
dedutivo, buscado observar as disposições normativas e analisar a sua efetiva
aplicação, não se furtando de atentar para os problemas históricos-sociais de nosso
país.
1 �
Autor, 2015. 2 �
Autor, 2015.
PALAVRAS-CHAVE: Usucapião Constitucional. Terras Públicas. Princípios
Fundamentais.
ABSTRACT
The prescription is one way of original acquisition of the property. Once
declared the prescription, the usucapiente acquires title to the property and has full
rights to use, enjoy and enjoy a well. In the same token, there is the social function of
property - in which we seek to make full use of land not taken by their owners,
causing the common good, has to consider, therefore, that anyone who has property
owned, independent of whether they are individuals or legal entities of private law or
public law, and not carry the same social function of property as defined in article 5,
XXIII of the Constitution, and, occurring in possession law, should be granted the
prescription. However, Article 183, in its third paragraph, of the Constitution states
that forbids the granting prescription with regard to public lands.
To conceive that there can be no prescription on state land, there is a clear
incompatibility with the device that holds that should be given social destination
property. Thus far It will be necessary constitutional interpretation, operationalized by
principles then proceed to valuing justification for the rules of positive law, and this
work, through hypothetical-deductive method, sought to observe the normative
depositions and analyze its effective application, be stealing to pay attention to the
historical-social problems of our country.
KEYWORDS: Constitutional adverse possession. Public Lands.. Fundamental
Principles.
RESUMEN
La prescripción es una forma de adquisición original de la propiedad. Una vez
declarada la prescripción, el usucapiente adquiere el título de propiedad y tiene
pleno derecho a usar, disfrutar y disfrutar de un pozo. De la misma manera, no es la
función social de la propiedad - en el que tratamos de hacer pleno uso de la tierra no
se toma por sus dueños, haciendo que el bien común, tiene que tener en cuenta, por
tanto, que cualquier persona que ha sido dueño de la propiedad, independiente ya
sean personas físicas o jurídicas de derecho privado o de derecho público, y no
llevan la misma función social de la propiedad como se define en el artículo 5, y
ocurre en la ley preceituados posesión, debe concederse XXIII de la Constitución, y
la prescripción. Sin embargo, el artículo 183, en su párrafo tercero, de la
Constitución que prohíbe la prescripción en relación con la concesión de tierras
públicas.
Para concebir que no puede haber prescripción en tierras del Estado, hay una
clara incompatibilidad con el dispositivo que sostiene que la propiedad de destino
social, se debe dar. Hasta ahora Será necesaria la interpretación constitucional,
operacionalizado por principios a continuación, proceder a la valoración de la
justificación de las normas del derecho positivo, y este trabajo, a través del método
hipotético-deductivo, procurado observar las declaraciones normativas y analizar su
aplicación efectiva, debe robar a prestar atención a la problemas histórico-sociales
de nuestro país.
PALABRAS CLAVE: Prescripción constitucional. Las tierras públicas. Principios
fundamentales.
INTRODUÇÃO
A falta de redistribuição territorial durante a colonização até mesmo após a
proclamação da independência do Brasil e a vinda do regime republicano, alinhado
ao fato da rápida urbanização brasileira, sobretudo nas últimas décadas, não foi
acompanhada de políticas públicas voltadas ao planejamento territorial urbano, à
habitação e à inclusão social dos menos favorecidos, o que acarretou proliferação de
assentamentos irregulares, completamente despidos de infraestrutura, de
equipamentos e de serviços.
A gestão urbana e a regularização fundiária avançam no Brasil com a
Constituição Federal de 1988, sua regulamentação pelo Estatuto da Cidade, além da
edição da Medida Provisória nº 2.220/2001 dispõe sobre a concessão de uso
especial de que trata o § 1o do art. 183 da Constituição). Embora os grandes
avanços introduzidos, a regularização fundiária de interesse social, como meio
capaz de garantir o direito social fundamental à moradia, condição básica para a
dignidade da pessoa humana, não alcançou a efetividade esperada, principalmente
no que diz respeito à regularização da posse, impondo-se o estabelecimento de
outras formas que possam alcançar esse desiderato.
Assim, a má divisão fundiária na história brasileira desencadeou uma série de
problemas de ordem social e econômica, presentes na vida de toda a sociedade
brasileira, sendo motivo, indireto e direto, da alta criminalidade dos centros urbanos,
da fome, tão presente nas zonas rurais afastadas, do desemprego, assim como da
falta de moradia de parte considerável da sociedade.
Outrossim, a ordem jurídica deve garantir o direito à propriedade individual,
mas deve ser exercido dentro de certos limites, sem abusos, principalmente no que
concerne ao não aproveitamento do bem, muito embora diga respeito também à
atuação positiva, à direta utilização. O proprietário deve considerar que há um
interesse geral a ladear o seu interesse particular, tendo, portanto, que alinhar o bem
à sua função social.
Inclusive, a Constituição Federal no artigo 6º, define em seus princípios
fundamentais a defesa do direito à moradia. Já a dignidade da pessoa humana e dos
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa estão presentes no artigo 1º, do
mesmo diploma.
Sendo assim, enquanto o Estado e a sociedade mudaram, alterando
substancialmente a Constituição, os códigos civis continuaram ideologicamente
ancorados no Estado liberal, persistindo na hegemonia ultrapassada dos valores
patrimoniais e do individualismo jurídico. Nesse contexto, segundo o autor Paulo
Lôbo (2013),no artigo “Constitucionalização do Direito Civil”, os estudos mais
recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia dessa visão estática, atemporal e
desideologizada do direito civil. Ou seja, não se trata somente em estabelecer a
necessária interlocução entre os variados saberes jurídicos, com ênfase entre o
direito privado e o direito público, concebida como interdisciplinaridade interna.
Pretende-se não apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídico
positiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser
extraídos.
Partindo desse contexto, a norma que proíbe a usucapião de terras públicas,
que, apesar de locada na Lei Magna, trata de clara matéria de Direito Civil, ainda
tenta manter o condão liberal civilista, não se atentando a valores constitucionais
maiores, conseguidos, após séculos de luta da sociedade, para uma verdadeira
evolução da sociedade e, por conseguinte, do Estado.
Nesse caso, há um claro conflito de hierarquia interna das normas
constitucionais. Considerar a superioridade de princípios constitucionais em
detrimento de princípios infraconstitucionais é um tanto quanto óbvio, porém, a
questão da possibilidade de hierarquia entre princípios é de certo complicada.
De fato, se nos pautarmos no critério axiológico, valorativo, parece indubitável
que há hierarquia entre tais princípios. Afinal, como o princípio da dignidade da
pessoa humana valeria menos do que o princípio da proteção à propriedade? Aliás,
todos os princípios e regras decorrem, ainda que indireta e mediatamente, do
princípio mor da dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo, além de chamar a atenção
para as consequências nefastas do uso irregular do solo, demonstrar que os
instrumentos instituídos por esses modos de adquirir propriedade poderão, se bem
interpretados e aplicados, dar efetividade à regularização fundiária de interesse
social em imóveis urbanos e rurais, incluindo socialmente milhões de brasileiros que
vivem na informalidade.
2 DO HISTÓRICO DA DIVISÃO DAS TERRAS BRASILEIRAS
Historicamente, a divisão de terras no Brasil não foi realizada
democraticamente. Isso porque, durante a colonização do Brasil, a Coroa
Portuguesa se ateve a agraciar apenas parte da população – sendo esta aquela que
detinha excelentes condições financeiras -, concedendo terras - através das
chamadas concessões de sesmarias e cartas de data – com o intuito de que fossem
medidas, demarcadas e cultivadas
Ao contrário do exemplo francês, pós-revolução, no qual houve a devida
redistribuição de terras, alcançando uma evolução invejada, o Brasil jamais havia se
preocupado, em seus diversos governos, em incluir as parcelas mais pobres da
população em programas de inclusão, principalmente no caso de concessão de
moradia.
Nesse contexto, não se pode deixar de ressaltar as condições em que ocorreu
a abolição da escravatura no Brasil. A Lei Áurea assinada pela princesa imperial
regente, Isabel, declarou extinta a escravidão, entretanto não estabeleceu modos de
inclusão desta população tão explorada e maltratada por décadas em terras
brasileiras, se sujeitando a todo tipo de tortura e trabalho subumanos, circunstâncias
tão claras na história nacional que não precisam de maior esclarecimento.
Como se não bastasse, ao invés de os afrodescendentes continuarem em
seus postos de trabalhos, o Estado Brasileiro passou a providenciar maiores
campanhas de migração na Europa, além de outros continentes, com o objetivo de
que novas demandas populacionais adentrassem às terras brasileiras para ocupar
as vagas que os escravos antes preenchiam.
Enquanto houve uma distribuição de terras a estrangeiros, principalmente nas
regiões sul, centro-oeste e norte do Brasil, para que fossem devidamente ocupadas,
no receio de que fossem anexadas por outros países limítrofes ou para que
houvesse maior equidade na densidade demográfica, aqueles mais abastados não
foram agraciados em nenhuma dessas formas, deixados totalmente pelo governo,
como se não bastassem às péssimas condições de saúde, educação e trabalho
vigentes nesses tempos.
Nessa perspectiva, muitas das questões sociais e econômicas discutidas
diariamente, hoje em dia, por nós brasileiros, como a violência, desemprego,
miserabilidade, péssimos sistemas de saúde e educação, são cristalinas
consequências deste passado nefasto e excludente da população brasileira.
Enquanto grandes latifúndios estão concentrados nas mãos de poucos, muitos não
tem sequer um imóvel residencial próprio, sendo essa a situação passada e atual do
Brasil, conforme explica Edésio Fernandes e Betânia Alfonsin:
A origem dessa desigualdade encontra-se no passado colonial e nas instituições coloniais relacionadas à escravidão e ao controle político da colonização e distribuição das terras. Nenhum outro fator, entretanto, contribuiu historicamente de maneira tão significante para os atuais níveis de desigualdade econômica e política na América Latina quanto a desigual distribuição de terras. Apesar da crescente urbanização e da perda de poder político das elites rurais em muitos países da região, o problema de distribuição de terras não foi resolvido. Nas regiões não urbanizadas, a desigualdade no acesso à terra e aos serviços essenciais de infra-estrutura tem contribuído para a proliferação dos assentamentos precários e irregulares em áreas inadequadas ou impróprias à moradia. (ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio. 2006, p. 17-18.)
Outrossim, o rápido crescimento da população urbana no Brasil se deu em
parte pela explosão demográfica, mas especialmente pelo êxodo rural, causado pela
ausência de políticas consistentes de reforma agrária. É de conhecimento geral o
quanto os aglomerados urbanos são uma comunidade a parte, não existindo ali,
muitas vezes, uma interferência de fato do Estado, muito menos de cunho
jurisdicional.
Como forma de comprovar os supramencionados fatos, seguem dados
fornecidos pelo Economic Commission for Latin America and the Caribbean, em
português, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, citados em obra:
O déficit habitacional quantitativo da região chega a 17 milhões de moradias, enquanto o qualitativo atinge 21 milhões de moradias. Transpondo-se esses números para proporções, pode-se dizer que apenas 60% de cada 100 famílias possuem uma moradia adequada, enquanto 22% vivem em casas que requerem melhoramentos e 18% precisam de novas casas. (Cities in a Globalizing World: global report on human settlements. 2001, p. 197.)
Pela definição da Organização das Nações Unidas, a favela (ou aglomerado)
é uma área degradada de uma determinada cidade caracterizada por moradias
precárias, falta de infraestrutura e sem regularização fundiária. Segundo a essa
instituição, a porcentagem da população urbana que vive em favelas diminuiu de
47% para 37% no mundo em desenvolvimento, no período entre 1990 e 2005. No
entanto, devido ao crescimento populacional e ao aumento das populações urbanas,
o número dos moradores de favelas ainda é crescente. Aproximadamente um bilhão
de pessoas no mundo vive em favelas e esse número provavelmente crescerá para
cerca de dois bilhões até 2030.
De acordo com dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), coletados durante o Censo de 2010, cerca de 11,4 milhões de pessoas (6%
da população) vivem em "aglomerados subnormais", a definição do governo para
áreas do país de ocupação irregular, com mais de 50 habitantes e com falta de
serviços públicos e de urbanização. O IBGE identificou 6.329 favelas em todo o país,
localizadas em 323 dos 5.565 municípios brasileiros. A comparação com
levantamento realizado há vinte anos indica que quase dobrou no período a
proporção de brasileiros que moram nessas áreas, em condições precárias. Em
1991, 4,48 milhões de pessoas (3,1% da população) viviam em assentamentos
irregulares, número que aumentou para 6,53 milhões (3,9%) no Censo de 2000.
3 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE
1988 E O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
No Direito Romano, costumava-se estabelecer a propriedade como um
direito individual, possuindo o dono do bem liberdade ampla para agir ou deixar de
agir nele de acordo apenas com sua própria vontade e convicção. Havia ali o
absolutismo da propriedade, em seu extremado individualismo, assim como aquele
Direito.
Em nosso ordenamento, na Constituição Brasileira de 1946, no artigo 147
enunciava que o uso da propriedade seria condicionado ao bem-estar social e que a
lei, sem quebra pelo respeito ao direito de propriedade, deverá promover a justa e
distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.
Continuamente, a reforma constitucional de 1967 não deixou de explorar tal
assunto, reaparecendo no enunciado de seu art. 157, abrindo o título “Da Ordem
Econômica” e assentamento as finalidades dessa na realização da justiça social,
com base em certos princípios, como a liberdade de iniciativa, a valorização do
trabalho como condição da dignidade humana, a função social da propriedade, a
harmonia e a solidariedade entre os fatores de produção, o desenvolvimento
econômico, a repressão ao abuso do poder econômico. Sendo a mesma tendência
empregada no art. 160 da Reforma de 1969.
A função social da propriedade veio para estabelecer um objetivo ao
proprietário, que deve visar o bem comum e o retorno do exercício de sua posse a
todos os outros membros da sociedade. A posse, como elemento e instituto mais
amplo que a propriedade, conforme leciona o Professor Juventino Miranda, deve ter
uma função social direcionada e não mais ser exercida à revelia da vontade de seu
possuidor.
Nesse contexto, o princípio constitucional da função social da propriedade
está inserido no artigo 5, inciso XXIII e artigo 170, inciso III da Constituição Federal
de 1988, o que faz dele um princípio-garantia, com status de norma cogente,
vinculante, de cumprimento obrigatório, até porque foi estabelecida sanção em caso
de inobservância desse preceito constitucional.
O primeiro percursor desta ideia de que a propriedade gerava para o seu
titular o dever de empregar riqueza no interesse da sociedade foi Leon Duguit, em
1914, na obra Las Transformaciones Generales Del Derecho Privado desde el
Código de Napoleón. O teórico afirma que a propriedade é uma instituição jurídica
que se formou para responder a uma necessidade econômica, assim como todas as
instituições jurídicas, e que evoluciona necessariamente com as necessidades
econômicas.(DUGUIT,1920, p. 231)
Ao notar que a sociedade moderna se transformava rapidamente e também
o conceito jurídico da propriedade deveria acompanhar esta transformação, a fim de
assegurar seu relevante papel econômico, ele acreditava que a sociedade deixou de
ser um direito individual para converter-se em uma função social. Dessa forma,
Duguit pregava a necessidade de leis inéditas que impusessem ao proprietário a
obrigação de cultivar o campo, de conservar a casa, de dar à riqueza que tinha em
mãos uma utilidade econômica e social, defendendo que seria legítima a intervenção
do Estado, através do legislador, para evitar que grandes latifúndios se prestassem à
especulação, de forma que seus donos deveriam lhe dar uma destinação produtiva.
No artigo 185, inciso II, da Constituição Federal de 1988, encontra-se um
dos vestígios da função social da propriedade, ao se impedir a desapropriação para
fins de reforma agrária quando há propriedade produtiva, fazendo jus ao art. 3º,
inciso III, do mesmo diploma, que visa a erradicação da pobreza para reduzir as
desigualdades regionais e sociais, trazendo, assim, a harmonia da função social da
propriedade e os princípios fundamentais.
A propriedade era tradicionalmente aceita como direito individual, vide art.
5º, caput, da Carta Magna. Todavia, a partir de Duguit vinculou-se a propriedade à
função social, como se vê no artigo 5º, XXI e XXIII e artigo 170, incisos II e III, da Lei
Maior.Ao estarem assim dimensionadas, a propriedade e a posse molduram os
princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade
social. Nesse sentido, a função social da propriedade e da posse veio para estreitar
o equilíbrio entre os interesses dos particulares e da coletividade.
De fato não se afeta, de modo prejudicial, os interesses do titular
proprietário, que continua com seu direito de possuir, gozar, usar e reivindicar, mas
não mais de forma absoluta, como outrora quando se exercia o use abutendi.
Destarte, o Estado também contribui para a função social da propriedade, caso
contrário permaneceria a insegurança e o egoísmo, extremando as desigualdades
sociais. Através do poder de polícia, a sociedade, por meio de seus cidadãos e
organizações não governamentais, deve fiscalizar as ações de empresas públicas e
particulares de maneira a coibir abusos e desperdícios de bens.
Por todas as razões explicitadas, a função social da propriedade veio para o
ordenamento jurídico brasileiro como um modo de diminuir as desigualdades
presentes atualmente em questão de divisão de terras, visto que, apesar de a
quantidade de terras no território brasileiro ser extensa, estão pessimamente
distribuídas. Essa função social, defendida tanto na Constituição Federal quanto no
Estatuto da Cidade, exige que todos utilizem devidamente seus terrenos, fazendo jus
a devida destinação socioambiental, conforme defendido no art. 225 da Carta
Magna, devolvendo à sociedade os frutos desse uso, não podendo deixá-la em total
abandono apenas por ser de sua propriedade.
O Estado, como garantidor primeiro dos princípios fundamentais, incluindo o
princípio fundamental social à moradia e, em um contexto humano fundamental, do
direito fundamental à propriedade, deveria ser o maior garantidor da função social da
propriedade, devendo buscar sempre uma destinação socioambiental em cada
propriedade, independente de ser propriedade privada ou pública, visto que suas
consequências sempre afetarão a todos.
Dar uma função social às terras públicas causaria grande evolução
econômica no país, porquanto não há como haver crescimento e cumprimento dos
demais direitos fundamentais sem haver um devido espaço, uma devida moradia,
para evolução e concretização disso.
Oportuno se faz analisar, dentro do contexto da constitucionalização da
ordem civilista, o fenômeno jurídico da repersonalização do Direito Civil, que
conforme ensina Lôbo (1999), consiste no fenômeno contemporâneo que retira o
patrimônio do centro do ordenamento jurídico para colocar a pessoa humana em seu
lugar.
Do mesmo modo que são permitidas constitucionalmente desapropriações,
como uma forma de aquisição de propriedade, por parte do Estado, para adequação
ao bem-estar comum e para atender a um maior interesse público, em detrimento do
interesse particular do desapropriado, o inverso também deveria ser aplicado em
face do Estado. Ora, se a função social é exigida pelo Estado aos particulares por
qual motivo não deveria também ser exigida pela sociedade ao Estado?
Conforme demonstrado em item anterior, a história da distribuição de terras
no Brasil foi claramente injusta e excludente, necessitando, hoje, de medidas mais
drásticas para concretizar o que está amplamente previsto no art. 5º, caput, da Lei
Maior, qual seja, o princípio da igualdade, eis que “todos serão iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza”, devendo-se incluir nessa visão, portanto, o
Estado. Sem a atuação fiscalizatória desse, seja interna ou externamente, jamais
será cumprida, de forma adequada, a tão necessária em um Estado Democrático
função social da propriedade.
4 DIREITO À MORADIA CONTRAPOSTO AO DIREITO À PROPRIEDADE
Para José Afonso da Silva, o direito à moradia é definido como “em primeiro
lugar, não ser privado arbitrariamente de uma habitação e de conseguir uma e, por
outro lado, significa o direito de obter uma, o que exige medidas e prestações sociais
adequadas à sua efetivação”. (SILVA, 1981, p. 33)
De forma mais ampla, esse direito necessita também que seja cumprido
dignamente, ao ser fornecida a devida infraestrutura para a vivência com dignidade
ali, o que não observamos, muitas vezes, em diversas moradias precárias ao longo
das zonas urbanas e rurais por todo o país, explicitando a condição de país
subdesenvolvido.
Partindo-se da análise do texto constitucional, verifica se que o legislador
simplesmente previu o direito à moradia sem lhe fazer qualquer acréscimo relativo
ao seu alcance, conteúdo e significado, o que faz com que, aplique-se o artigo 5º, §
2º da Constituição Federal, ao estabelecer que os direitos e garantias previstos na
constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios adotados e,
também, dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte:
Considerando que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil (artigo 1º, inc. III) e o combate à pobreza,
marginalização e desigualdades sociais são os seus objetivos (artigo 3º, inc. III),
podemos traçar o objetivo do que está disposto em relação ao direito fundamental à
moradia, incluído pela Emenda Constitucional número 64, do ano de 2010, qual seja,
a garantia de moradia digna a todos, sem exceção, sendo dever do Estado zelar
para o devido cumprimento dessa diretriz.
Embora haja uma oposição entre o direito fundamental à moradia e o direito
fundamental à propriedade, no que tange à usucapião de terras públicas, há que se
dispor algumas particularidades. Primeiramente, como já mencionado, a
propriedade, nos dias atuais, não carrega mais aquela definição liberal e
individualista presente na noção antiga de Direito Reais, advinda dos romanos.
Assim, deve obedecer ao cumprimento da função social da propriedade, não
havendo nada expresso sobre eximir o poder público de cumprir esse preceito, e,
mesmo que houvesse, seria inconstitucional, ao passo que a Lei Maior declara,
através do Princípio da Igualdade (art. 5º, caput), que todos serão tratados
igualmente, independente de sua natureza, ou seja, não importa se o sujeito ativo ou
passivo seja público ou privado, deverá cumprir os demais deveres impostos pelo
sistema jurídico.
Destarte, não haveria nenhuma inserção negativa no direito à propriedade
quando do deferimento dessa modalidade de aquisição de propriedade, visto que o
imóvel público apenas seria passível de sofrer a usucapião, caso o adquirente
preenchesse todos os requisitos presentes nos arts. 183 e 191 da Constituição da
República, onde se encontra prevista a denominada Usucapião Constitucional.
Isto é, haveria a omissão por parte do poder público no exercício de sua
propriedade, uma vez que não forneceu retorno à sociedade daquele terreno,
tornando-o inútil e abandonado, por espaço de tempo suficiente para que uma
família se assente ali e torne aquela terra a sua única moradia, realizando, assim, a
função que era primeiramente do Estado.
A esses, logicamente, deveria caber a propriedade do terreno em questão,
haja vista o preenchimento de todos os requisitos legais necessários para tal.
Entretanto, a Constituição insiste em manter uma norma claramente inconstitucional
ao estabelecer a proibição de usucapião de bens públicos.
Ora, o exercício adequado da propriedade é livre e amplamente segurado
pelas normas constitucionais e civilistas, porém, há de se convir que se deve
analisar também o bem estar comum e qual seria o melhor resultado para toda a
sociedade, principalmente por ser ela a grande sustentadora do sistema estatal, a
sua base de interesses, visto que se trata de um Estado Democrático de Direito.
Diante de todos os dados apresentados no inicio da exposição, entende-se o
quanto é urgente uma medida estatal para diminuição das desigualdades sociais e,
consequentemente, da violência, da miséria e dos demais problemas sociais atuais
presentes no dia a dia dos brasileiros.
Fornecer condições dignas de moradias a população, em detrimento do uso
indevido da propriedade torna-se mais do que necessário nos dias atuais, a começar
pelas terras públicas, nas quais estão grande parte dos aglomerados ilegais.
Os princípios fundamentais da função social da propriedade, da solidariedade,
da proteção à família e da dignidade da pessoa humana demonstram a intenção do
Estado, a partir da Constituição de 1988, de não desamparar os mais vulneráveis, no
mesmo sentido de aplicação dos arts. 183 e 191 do mesmo diploma , que dispõe
sobre a supramencionada Usucapião Constitucional.
Conforme depreendido do texto legal, essas modalidades de Usucapião
dispostas na Constituição da República visam favorecer àqueles que tem o terreno
usucapido como seu único bem imóvel, ou seja, beneficiando aqueles possuidores
de boa fé que dependem daquele espaço de terra para estabelecer sua moradia e
proporcionar uma vida digna à sua família.
Os objetivos da República Federativa do Brasil, demonstrados no art. 3º da
Carta Magna, mostram claramente que o dever do Estado é buscar a igualdade
entre as camadas da sociedade, fornecendo amplo amparo aos desfavorecidos e
buscando a erradicação da pobreza. Sendo assim, nada mais prudente do que o
Estado, também sofrer consequências das suas omissões à função social da
propriedade e conceder usucapião a uma família, que já se encontra desamparada
pelos deveres legais desse mesmo Estado.
5 DAS MODALIDADES DE USUCAPIÃO APLICÁVEIS
A modalidade de usucapião constitucional, presente na Constituição da
República de 1988, foi alocada propositalmente no Capítulo II, das políticas urbanas.
Noutro giro, duas outras modalidades desse instituto surgiram a partir da Lei nº
10.257/2001 - Estatuto da Cidade -, qual sejam, o Usucapião Especial Urbano e o
Especial Rural. Essa carta objetivou a efetivação dos direitos sociais e econômicos,
já previstos na Carta Magna, dentre os artigos 6º a 11º e aqueles inseridos no Título
VII, acerca da ordem econômica e financeira. Referida legislação visa a
regularização da política urbana nacional, principalmente no que tange à situação
dos assentamentos irregulares, comumente denominados de favelas.
Indubitavelmente esses direitos são garantidos, através da tutela jurisdicional
ou não, entre pessoas de privado e/ou pessoa físicas. Urge a dúvida, então, acerca
de sua aplicação em detrimento de pessoas jurídicas de direito público ou até
mesmo aquelas sob regime de economia mista. Assim, indaga-se se pode o poder
público se eximir de efetivar uma garantia fundamental à moradia apenas pelo fato
de que há uma exceção sobre os bens públicos?
Esse estudo, cumpre primeiro ressaltar, não objetiva a insegurança jurídica
que seria ocasionada pela permissão de concessão de usucapião em qualquer de
suas modalidades. Visamos fundamentar e elucidar acerca da constitucionalidade de
ocorrência de usucapião somente nas versões denominadas usucapião
constitucional (artigo 183 da Constituição Federal) e usucapião especial urbano e
rural (Estatuto da Cidade), sob o preceito de efetivação direta dos direitos sociais e,
por via de consequência, os direitos econômicos.
Insta mencionar que os direitos sociais possuem aplicação imediata, não
sendo necessária norma programática, conforme assentado posicionamento tanto
da doutrina quanto da jurisprudência e, portanto, o usucapião seria uma das vias
adequadas para sua efetivação direta.
Sobre a possibilidade de ocorrência de usucapião em relação às terras
públicas, houve recente manifestação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em
ação originária da comarca de Conselheiro Lafaiete. No caso em comento, o
Departamento de Estradas e Rodagem de Minas Gerais (DERMG) – autarquia
estadual – ajuizou Ação de Reintegração de Posse. Os réus - mais de cem famílias –
formularam pedido contraposto, pugnando pelo reconhecimento do usucapião e,
alternativamente, a indenização pelas benfeitorias ali levantadas.
Em sentença, foi julgado procedente o pedido contraposto e, por derradeiro,
improcedente o pedido do autor. No julgamento do recurso de apelação interposto
pelo autor, os doutos desembargadores da 5º Câmara Cível daquele Tribunal de
Justiça confirmaram a sentença. Apesar de ter se aviado Recurso Especial e
Extraordinário, o primeiro juízo de admissibilidade, até o momento, não foi realizado.
Insta mencionar que diversas foram as críticas quanto ao julgado afirmando-
se, em especial que é um absurdo a concessão da usucapião com base no
fundamento do princípio da dignidade humana, abrindo-se portas para a concessão
desenfreada de usucapião de terras públicas, o que levaria a uma imensa
insegurança jurídica.
Ocorre que tais críticas se esquecem que existem diversas modalidades de
usucapião, tratando dessa forma de aquisição originária da propriedade como algo
genérico. A referida insegurança jurídica advém apenas se fossem consideradas
todas as modalidades de usucapião, de modo que a dignidade da pessoa humana e
o direito à moradia são garantidos e são fundamentos apenas do usucapião
constitucional e do usucapião especial urbano e rural, objeto da elucidação deste
artigo.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todas as análises, doutrinas e dados expostos, concluímos que na
situação de divisão fundiária em que se encontra o Brasil, é extremamente
necessário uma redistribuição de terras, não podendo o Estado, poder máximo
deposto pela sua própria sociedade, se esquivar a isso eis que, ao contrário, iremos
continuar a padecer dos males que a ausência de garantias sociais causa a todos os
brasileiros, em especial aos mais desfavorecidos economicamente.
Apesar de que seja expressa a proibição à usucapião de bens públicos na
Constituição e na legislação infraconstitucional, uma política para ação do Estado,
nesse sentido, é de suma importância e, para um começo, é primordial.
Não obstante o Estado tenha o dever de buscar uma reforma agrária, nos
termos permitidos constitucionalmente, também deve controlar a si mesmo, no
intuito de evitar supressões, abusos e omissões por parte do público, principalmente
no que tange à sua propriedade, que pertencem a toda a sociedade e que, portanto,
deveriam buscar a garantia do bem estar comum.
Assim, por vir da sociedade o interesse de melhorias nas condições de vida
de toda a população, o Estado tem o dever de garantir ou, ao menos, não abster o
direito fundamental à moradia dos que dela necessitam, como um modo também de
prezar pela dignidade da pessoa humana.
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