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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS

CSSIA SCHEINBEIN

LNGUAS EM EXTINO: O HAKITIA EM BELM DO PAR

BELO HORIZONTE 2006

CSSIA SCHEINBEIN

LNGUAS EM EXTINO O HAKITIA EM BELM DO PAR

Dissertao apresentada ao Programa de Psgraduao em Estudos Lingsticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Lingstica. rea de Concentrao: Linha B Estudo da Variao e Mudana Lingstica. Orientadora: Profa. Dra. Maria Antonieta Amarante de Mendona Cohen

BELO HORIZONTE 2006

Dissertao intitulada Lnguas em extino: o hakitia em Belm do Par, de autoria da mestranda Cssia Scheinbein, aprovada em ____________ pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

_______________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Antonieta A. M. Cohen FALE/UFMG - Orientadora

________________________________________________________________

_________________________________________________________________

Dedico esta dissertao a meu pai Moiss, que partiu no ano passado.

AGRADECIMENTOS

Para iniciar esta parte, devo agradecer ao Prof. Dr. Carlos Gohn que foi o meu primeiro contacto na rea de Letras. Ele me apresentou minha futura orientadora e a partir da tudo comeou. De uma prova de ingls, e conversas sobre lnguas, especialmente o hebraico, surgiu a semente do que eu apresento neste trabalho. Agradecimento maior fica para a minha orientadora Profa. Dra. Maria Antonieta Amarante de Mendona Cohen ou Tilah, que me acompanhou desde o incio de carreira acadmica at o presente momento, me introduzindo num tema fascinante, sempre me orientando, apoiando, estimulando, e se colocando disposio para aquilo que fosse necessrio. parte da questo profissional, no devemos nos esquecer dos momentos de trocas de conversas descompromissadas e agradveis durante o processo formal. Aos meus pais, agradeo por me darem a oportunidade de fazer tudo aquilo que sempre quis, sem objees. Com certeza, eles sabiam que eu estava no caminho certo. Estudar nunca demais e amplia os horizontes. No que se refere a Belm, devo agradecer Rivka Katri, de Belo Horizonte, que me encaminhou sua irm Sara e seu esposo, que por sua vez me introduziram na comunidade sefardita local. Agradeo aos meus informantes: Moiss, Bonina, Bendayan, Messody, Beliza, Thyago, Incio, e aqueles que me deram informaes e material sobre o hakitia. Obrigada ao Paulo de Oliveira, de Belm, que me deu informaes prvias sobre a comunidade. Agradeo aos que me receberam de braos abertos em seus lares e instituies, em Belm, uma comunidade receptiva e acolhedora. Obrigada aos professores do curso e a todos que direta ou indiretamente tiveram alguma participao na minha formao. Obrigada CAPES, pela concesso da bolsa de estudos durante o segundo ano da pesquisa.

RESUMO

Esta dissertao tem como objetivo descrever o processo de extino do hakitia, uma lngua romnica e judaica, na comunidade sefardita de Belm do Par, Brasil. A pesquisa visou identificar em que estgio de extino essa lngua se encontra, quais de seus elementos ainda resistem, e assim compreender o que acontece com uma lngua minoritria, em fase de restrio de uso frente ao portugus brasileiro. Faz-se uma contextualizao histrica do hakitia, voltando-se a sua origem na Espanha, com a expulso dos judeus em 1492, e suas vrias rotas de exlio, dentre elas, o Marrocos no norte da frica, e, a partir da at a Amaznia. A pesquisa tem como base metodolgica pressupostos gerais da sociolingstica laboviana; no que se refere ao contato lingstico apia-se em Thomason & Kaufman (1991). Os dados trabalhados so fornecidos por um corpus constitudo para esta pesquisa, que compreende a transcrio de sete entrevistas com informantes de trs faixas etrias de ambos os gneros, da cidade de Belm. O trabalho mostra que o que ainda resiste do hakitia em Belm do Par insere-se na estruturao das sentenas portuguesas. Foram classificados elementos lingsticos, dentro do sistema verbal e nominal e tambm extra-lingsticos, como o uso do hakitia como fator de identidade e lngua de ocultao, dentre outros. As frases comuns e os provrbios so tambm registrados, mas relativamente poucos se comparados aos arrolados na literatura. Palavras-chave: hakitia, sefardita, contato lingstico, extino, Belm do Par.

ABSTRACT

The main goal of this work is to describe how the process of extinction of Hakitia, as a Jewish and Romance language, is taking place in the Sephardic community of Belm in the state of Par, Brazil. The research aimed to identify what is the stage of extinction in which the language finds itself, which of its elements still resist, and also to understand what happens to a minority language in restriction of use in face of Brazilian Portuguese. A historical contextualization that goes back to the 15th Century expulsion of Jews from Spain in 1492 is made. The expelled Jews followed various routes of exile, including Morocco, in the north of Africa, from where the Brazilian Amazon was reached. The research is based on the general Labovian sociolinguistics methodological presuppositions and those present in Thomason & Kaufman (1991), as far as linguistic contact is concerned. The data are extracted from a corpus built up for the present research, which consists of seven interviews with informants of three age groups from both genders in Belm. The present work shows that what still resists in Hakitia is embedded into Portuguese sentences, that is, in the verbal system, in noun phrases or in other linguistic features, as well as in extra-linguistic factors, such as speakers attitude towards the language, among others. Some expressions and proverbs still resist, in certain measure, but less than is usually registered in the specialized literature. Key words: Hakitia, Sephardi, linguistic contact, extinction, Belm of Par.

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Mudana de lngua induzida pelo contato......................................................... 63 Quadro 2: Verbos utilizados em hakitia............................................................................. 118 Quadro 3: Lista dos adjetivos............................................................................................. 124 Quadro 4: Lista dos substantivos....................................................................................... 124

LISTA DE MAPAS

MAPA 1: Judeus na Pennsula Ibrica, sculos XIII a XV...............................................

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MAPA 2: Espanha em 1492............................................................................................... 30 MAPA 3: Movimentao demogrfica, sculos XIII a XVI.............................................. 32 MAPA 4: Comunidades judaicas no Marrocos.................................................................. 37 MAPA 5: Rede escolar da Aliana Israelita Universal, 1862-1910................................... 42 MAPA 6: Mapa do Estado do Par.................................................................................... MAPA 7: Mapa do Estado do Amazonas.......................................................................... MAPA 8: Lnguas e dialetos da Pennsula Ibrica............................................................ 55 56 76

LISTA DE TABELAS

TABELA 1: Faixa 1 (15 a 39 anos)................................................................................... TABELA 2: Faixa 2 (40 a 60 anos)................................................................................... TABELA 3: Faixa 3 (maiores de 61 anos)........................................................................ TABELA 4: Lngua de ocultao...................................................................................... TABELA 5: Como o hakitia considerado pelos informantes......................................... TABELA 6: O hakitia como fator de identidade............................................................... TABELA 7: Atitude positiva em relao ao hakitia.......................................................... TABELA 8: Uso do hakitia com pessoas de fora da comunidade judaica........................

84 85 85 93 96 100 102 105

TABELA 9: Mescla do hakitia com o portugus e / ou espanhol...................................... 107 TABELA 10: Utilizao de eufemismos.......................................................................................... 111

TABELA 11: Conhecimento da modalidade escrita.......................................................... 113

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

adj. - adjetivo adv. advrbio A.I.T. - Aliana Israelita Universal ch. - sentido chulo dim. - diminutivo exp. - expresso heb. - hebraico I - informante I S - informante S ints.- intensificador interj. - interjeio P - pesquisador pj. - sentido pejorativo pl.- plural pr. indef. pronome indefinido ps. - pessoa RASHI - rabino Salomo Yitzchaki rcs.- reconstitudo (*) s.f. - substantivo feminino s.g - singular s.m. - substantivo masculino v. - verbo V - verdadeiro

SUMRIO

INTRODUO................................................................................................................ CAPTULO 1 APRESENTAO DO PROBLEMA............................................... 1.1 O hakitia uma lngua em extino............................................................................. CAPTULO 2 CONTEXTUALIZAO HISTRICA........................................... 2.1 Os judeus na Espanha.................................................................................................. 2.2 Os judeus no Marrocos................................................................................................ 2.3 O xodo judeu-marroquino.......................................................................................... 2.4 A presena judaica na Amaznia................................................................................. 2.4.1 Antecedentes histricos no Brasil............................................................................. 2.4.2 As correntes migratrias........................................................................................... 2.4.3 As geraes de judeus na Amaznia......................................................................... a) Primeira gerao os pioneiros..................................................................................... b) Segunda gerao o boom do ciclo da borracha (1850 a 1910)................................... c) Terceira gerao o xodo do interior para Belm e Manaus....................................... d) Quarta gerao poca dos doutores e profissionais.................................................... 2.5 A Amaznia: o Estado do Par.................................................................................... 2.5.1 Belm........................................................................................................................ CAPTULO 3 PRESSUPOSTOS TERICO-METODOLGICOS...................... 3.1 Teorias relevantes........................................................................................................ 3.1.1 Consideraes sobre diglossia, bilingismo, bilingualidade.................................... 3.1.2 Lnguas judaicas........................................................................................................

15 19 25 28 28 37 39 43 43 44 48 49 50 51 52 54 57 61 61 69 72

3.2 A hiptese da existncia de uma lngua judaica na Hispnia Medieval....................... 3.3 Metodologia da coleta de dados................................................................................... 3.3.1 Consideraes gerais................................................................................................. 3.3.2 Seleo dos informantes............................................................................................ 3.3.3 Lista dos informantes................................................................................................ 3.3.4 Entrevistas................................................................................................................. 3.3.5 Transcrio das gravaes......................................................................................... 3.3.5.1 Critrios de transcrio.......................................................................................... 3.3.6 Transliterao do hakitia........................................................................................... 3.3.6.1 Critrios de transliterao...................................................................................... CAPTULO 4 DESCRIO E DISCUSSO DOS DADOS.................................... 4.1 Fatores extralingsticos.............................................................................................. 4.1.1 Lngua de ocultao.................................................................................................. 4.1.2 Perspectiva dos informantes...................................................................................... 4.1.3 Fator de identidade................................................................................................... 4.1.4 Atitude lingstica..................................................................................................... 4.1.5 Uso do hakitia com outras pessoas........................................................................... 4.2. Fatores lingsticos.................................................................................................... 4.2.1 Mescla do hakitia com portugus e/ou espanhol...................................................... 4.2.2 Uso expressivo da lngua........................................................................................... 4.2.2.1 Maldies/bendies.............................................................................................. 4.2.2.2 Xingamentos........................................................................................................... 4.2.2.3 Eufemismos............................................................................................................ 4.2.3 Modalidade escrita....................................................................................................

75 82 82 84 86 87 88 89 90 90 92 92 92 96 99 102 105 106 107 109 110 110 111 112

4.2.4 Sistema verbal........................................................................................................... 4.2.5 Sistema nominal........................................................................................................ 4.2.5.1 Sobrenomes............................................................................................................ 4.2.5.2 Adjetivos e substantivos......................................................................................... 4.2.6 Hebrasmos................................................................................................................ 4.2.6.1 Palavras.................................................................................................................. 4.2.6.2 Termos compostos de duas palavras...................................................................... 4.2.6.3 Verbos....................................................................................................................

117 123 123 124 125 125 125 125

4.2.7 Adaptaes fnicas/morfolgicas resultantes do contato.......................................... 126 CAPTULO 5 CONCLUSO...................................................................................... 128

REFERNCIAS................................................................................................................ 134 ANEXOS ANEXO 1 Glossrio de hakitia....................................................................................... ANEXO 2 Provrbios e Frases comuns.......................................................................... ANEXO 3 Roteiro para entrevistas................................................................................. ANEXO 4 - Transcrio das sete entrevistas..................................................................... ANEXO 5 Documentao complementar....................................................................... Cpia de carta em hakitia....................................................................................... Primeira verso ortogrfica................................................................................. Segunda verso - transcrio.................................................................................. Final da segunda verso e exemplos de conversaes........................................... 140 146 149 153 332 332 332 333 334

Traduo de uma cano em aramaico da festa de Pessach................................... 335

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INTRODUO

Este trabalho tem como objetivo descrever como est se processando a extino do hakitia, judeu-espanhol ocidental ou variante marroquina do judeu-espanhol, na comunidade judaica de Belm do Par, onde ainda h remanescentes dessa lngua. A pesquisa visou identificar em que estgio de extino essa lngua se encontra, quais de seus elementos ainda resistem, e compreender o que acontece com uma lngua minoritria, em fase de restrio de uso de mais baixo prestgio frente a uma lngua dominante o portugus brasileiro. Como hiptese desta dissertao, considerou-se que os elementos que resistem extino numa lngua so os xingamentos, as expresses ou refres, as palavras de cunho afetivo, utilizadas em situaes informais, corriqueiras, em famlia ou entre amigos e tambm usados como lngua de ocultao. O trabalho envolveu uma pesquisa de campo na cidade de Belm, pelo motivo desta cidade possuir um nmero representativo de judeus sefarditas. Alm de entrevistas com representantes das 3 faixas de idade selecionadas, de ambos os sexos, houve a participao da pesquisadora nos eventos da comunidade. A dissertao ser estruturada em 5 captulos. O captulo 1 constar da apresentao do problema. O hakitia ou judeu-espanhol ocidental apresentado como a lngua dos judeus sefarditas que vieram do Marrocos para o norte do Brasil, mais especificamente para Belm do Par. Neste captulo, o judeu-espanhol, lngua romnica e judaica que nasce com a dispora daqueles judeus expulsos da Hispnia Medieval pelos reis catlicos Fernando e Isabel em 1492, ser descrito em suas modalidades:

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oral e escrita. Por sua vez, a modalidade oral divide-se em ocidental, objeto desta dissertao, e em oriental. Sero apresentadas as diferentes denominaes da lngua, caracterstica esta de lnguas em vias de extino, que no pertencem a um territrio definido. H uma apresentao de vrios autores e os temas especficos do judeu-espanhol por eles tratados: gramtica, provrbios, poesias, histria, lnguas no territorializadas, ladino e o hakitia propriamente, na comunidade de Belo Horizonte. A questo da rehispanizao ser tambm abordada. O captulo trar ainda uma subseo: o hakitia - uma lngua em extino, composta de definies de autores como Labov, Graur, Martinet, Edwards, Terracini, Meillet, sobre a morte ou extino de lngua. O captulo 2 ser dividido em cinco subsees: a primeira apresentar a contextualizao histrica dos judeus na Espanha, bem como do surgimento do judeuespanhol e a sua expanso para vrios pases. Posteriormente, na segunda subseo, ser dada uma descrio da vida dos judeus no Marrocos, onde houve o encontro dos judeus expulsos da Espanha com os judeus autctones. Os mapas apresentados contribuiro para a visualizao dos lugares onde viveram e se dirigiram os judeus espanhis. Dando continuidade histria, haver a 3 subseo que tratar do xodo judeu-marroquino at chegar na 4 subseo, ou seja, na presena judaica na Amaznia, que vir precedida dos antecedentes histricos no Brasil, necessrios para apresentar o contexto da poca. Uma instituio de relevante importncia ser mencionada neste captulo, j que ela contribuiu muito na educao dos judeus, e especialmente as escolas de Tnger e Tetuan que ajudaram na preparao dos futuros lderes judeus da Amaznia. A presena judaica na Amaznia ter como itens: as cinco correntes migratrias de judeus para a Amaznia, a partir de 1810; as geraes de judeus na Amaznia, em que so apresentadas a primeira, a dos pioneiros; a segunda em pleno boom do ciclo da borracha; a terceira caracterizada pelo xodo do interior para Belm e Manaus, e a quarta, caracterizada pela poca dos doutores e

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profissionais; a Amaznia: o Estado do Par, onde sero fornecidas informaes pertinentes a este estado e a sua capital Belm, cidade enfocada neste trabalho. Alm das informaes bsicas, sero descritas as entidades judaicas presentes na cidade, os dois grupos de judeus: os ashkenazitas e os sefarditas, estes representando a maioria. Para finalizar, haver uma viso pessoal da pesquisadora com relao comunidade. O captulo 3 ser constitudo dos pressupostos terico-metodolgicos. Estes pressupostos adotados sero baseados em Labov, no que se refere pesquisa sociolingstica e em Thomason & Kaufman, no contato lingstico, j que o hakitia em Belm do Par um produto do contato da lngua com o portugus brasileiro. Para tratar da mudana de lngua induzida pelo contato, ser feita uma reviso dos conceitos diglossia, bilingismo, bilingualidade, pois estes variam conforme o autor. Uma subseo ser direcionada para as lnguas judaicas, e em especial para a discusso das duas possibilidades para o hakitia: a existncia dessa lngua judaica na Hispnia Medieval ou uma criao ps-expulso dos judeus da Espanha. Na metodologia da coleta de dados, sero explicitados os critrios para a seleo dos informantes, a realizao das entrevistas, assim como aqueles relacionados transcrio e transliterao do hakitia. O captulo 4 ser dedicado descrio e discusso dos dados. Nele sero abordados os fatores extralingsticos e os lingsticos. Os extralingsticos sero constitudos dos seguintes temas: lngua de ocultao, viso dos informantes, fator de identidade, atitude lingstica, uso do hakitia com outras pessoas. Os lingsticos abordaro: a mescla do hakitia com portugus e/ou espanhol, os eufemismos, a modalidade escrita, os sistemas verbal e nominal, os sobrenomes, os adjetivos e substantivos, os hebrasmos e as adaptaes fnicas/morfolgicas. O captulo 5 apresentar as concluses obtidas atravs desta pesquisa. Em seguida, viro as referncias bibliogrficas.

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A parte dedicada aos anexos constar do anexo 1, um glossrio de hakitia elaborado a partir do material coletado para esta dissertao. Similarmente, o anexo 2 ser constitudo de provrbios e frases comuns recolhidas da fala dos informantes do presente trabalho. O anexo 3 ser o roteiro para entrevistas. O anexo 4 ser composto da transcrio das gravaes das sete entrevistas realizadas em Belm do Par. O anexo 5 ser constitudo da documentao complementar. Esse anexo constar da cpia de uma carta em hakitia em duas verses: a primeira ortogrfica e a segunda transcrio, de exemplos de conversaes e da traduo de uma cano em aramaico da festa de Pessach.

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CAPTULO 1 APRESENTAO DO PROBLEMA

A presente dissertao ocupa-se dos remanescentes do hakitia ou judeu-espanhol ocidental - lngua dos judeus sefarditas que vieram do Marrocos, para o norte do Brasil, mais especificamente para Belm do Par. O judeu-espanhol uma lngua romnica e judaica, que nasce do espanhol com a dispora dos judeus da Hispnia Medieval. a lngua desses judeus expulsos pelos reis catlicos Fernando e Isabel em 1492. Essa lngua tambm denominada: judezmo, djudezmo, djidyo (jidiyo), djudyo (judiyo), espanyol, spanyol, espanyolit, judeo-espanyol, judeuespanhol, ladino, e outros. O judeu-espanhol apresenta duas modalidades: oral e escrita. A modalidade oral apresenta dois grupos: a variante oriental, falada pelos judeus que seguiram exlio para Portugal, Holanda, Frana, Inglaterra, Alemanha, Imprio Otomano, que atualmente compreende pases como: Grcia, Turquia, Iugoslvia, Bulgria, Romnia, Israel, e a variante ocidental - o hakitia, dos judeus marroquinos. A modalidade escrita o ladino. A questo do nome ladino dupla: a) dentre os estudiosos do judeu-espanhol h os que, como Sphiha (1982), distinguem o ladino ou judeu-espanhol calco como a lngua escrita religiosa, utilizada pelos judeus da Espanha medieval, na traduo palavra-por-palavra dos textos religiosos, do hebraico para o espanhol. Por ser uma lngua de traduo, o autor enfatiza que o ladino no deve ser confundido com o judeu-espanhol oral, que recebe todas as denominaes apresentadas acima.

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b) h tambm os romanistas que denominam ladino a um dialeto do retoromnico, como os lingstas italianos: Renzi e Tagliavini, por exemplo. H os romanistas que designam ladino ao judeu-espanhol, sem fazer distino entre a lngua calca e o judeu-espanhol propriamente. Dentre as modalidades de judeu-espanhol existentes, a que ser objeto da presente dissertao a variante marroquina, acima mencionada o hakitia, cujos remanescentes so ainda existentes em algumas comunidades sefarditas espalhadas pelo mundo. No Brasil, h remanescentes dessa lngua nos estados do Amazonas, Par, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, So Paulo. A comunidade que nos interessa mais de perto a de Belm do Par, que apresenta nmero expressivo de sefarditas, no Brasil. Bendelac (1995), em seu Dicionrio do Judeu-espanhol dos Sefarditas do Norte do Marrocos1, constata a coexistncia anrquica de vrias denominaes para esta lngua: o hakitia, a hakita, a hakitiya, a haketiya, a haketa, a jaketa, a jaqueta e a haqueta, assim como o h para a denominao geral do judeu-espanhol. O nome a ser adotado nesta pesquisa ser - o hakitia.2 O uso de tantas denominaes nos chama a ateno, pois essa mesma situao ocorre para lnguas que esto em vias de extino e que no pertencem a um territrio definido. O judeu-espanhol oriental e a lngua dos ciganos so exemplos de lnguas que sofrem este mesmo processo, com uma enorme variedade de nomes. Segundo Bentes (1981, p.68), a hakitia reconhecida pela Real Academia de Letras da Espanha como um dialeto judeu-hispano-marroquino, integrado por vocbulos hebreus, espanhis e rabes, tendo umas poucas palavras em ladino, aramaico e caldeu.

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Retirado do site http://www.sefarad.org/publication/lm/057/html/page9.html La Haquetia. Hakitia ora mencionado no feminino ora no masculino, dependendo do autor. Adota-se como masculino nesta dissertao o hakitia, da mesma maneira como se trata o espanhol, o francs, o hebraico, etc.

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O autor (op. cit., p.71) atribui duas origens etimologia da palavra hakitia. A primeira sugere que Hakita viria de Hakito, abreviatura de Izhakito, diminutivo de Izhak, muito usado pelos judeus de origem espanhola, e significaria: - idioma dos Haquitos, fazendose desta palavra uma espcie de apelativo comum a todos aqueles judeus. Bentes considera esta etimologia cmoda e pueril, para ser aceita como evidente. A segunda, mais aceita por BENTES (op. cit., p.71) sugere que:A palavra hakitia poderia ter sido formada de raiz rabe e terminao castelhana; o que tanto mais provvel quanto que na mesma Hakita figura no raras vezes a voz Hekaia ou Hekaiata e o plural Hekaiat com a significao do dito agudo, ocorrncia feliz, ao ou pilhria digna de chamar a ateno; e derivada do verbo Haka, conversar, falar, dizer, narrar; cujo passivo, como se sabe, palavra consagrada no princpio de qualquer narrativa.

Em 1919, Manuel Ortega (apud BENHARROCH B., 2004) menciona a palavra haqueta em Los hebreos de Marruecos. O termo haqueta se consagrou com a obra de Jos Benolel - Dialecto judeo-hispano-marroqu o haqueta, publicado no boletim da Real Academia de Lngua Espanhola entre 1926 e 1952. A lngua dos sefarditas falada no Marrocos o hakitia, um exemplo de situao lingstica resultante do contato dos falantes de dialetos da Espanha medieval com o rabe do norte da frica e o hebraico. uma lngua minoritria, socialmente estigmatizada, com nmero pouco expressivo de falantes, de certa forma no territorializada, por no ser lngua oficial de nenhum pas, seus usurios emigraram, no tem normatizao, no teve literatura e textos escritos, embora contos e estrias tenham sido compilados e publicados em outras lnguas. O hakitia considerado pela maioria dos estudiosos como uma lngua oral, falada no recesso dos lares, na intimidade das conversaes, nos mercados, nos ptios das sinagogas. Segundo esses, era usado na fala diria, servia para discutir, ofender, arrepender-se, ou seja, os contextos de uso em que se manifesta uma forte carga afetiva, so realados pelos autores. Esta lngua grafa do norte da frica, divide-se em dois subdialetos: o subdialeto de Tnger e

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arredores e o subdialeto de Tetuan e arredores. uma lngua muito rica em expresses que variam da mais irnica, cmica mais exaltadamente religiosa, dos conjuros s maldies. rica de refres, ditos jocosos, de provrbios que falam de abandono, de ingratido, de vinganas, mortes, de maldio. Por outro lado, est presente nas canes, nos romances. A lngua muito usada em momentos de forte carga emocional, como nas situaes de xingamentos, na expresso de sentimentos variados sejam positivos ou negativos. H pouco material escrito em hakitia. Benoliel (1977), Bentes (op.cit.) e Sabb Guimares (1998) descrevem a sua gramtica. O hakitia e o seu mecanismo gramatical tm a sua origem no castelhano. Como todas as lnguas faladas, a sobrevivncia do hakitia depende da fidelidade de seus falantes e da sobrevivncia das comunidades que o criaram e o usaram. Ocorreu uma rehispanizao massiva do hakitia, a partir das ltimas dcadas do sculo XIX e por volta do sculo XX, com a ocupao de partes do Marrocos pela Espanha. Estas comunidades foram expostas a um contato mais intenso com a Espanha e influncia do espanhol peninsular moderno. Para Bendelac, o idioma chegou a assemelhar-se ao espanhol, em sua forma exterior e em seus sons, at chegar ao ponto de seus falantes perderem a conscincia de falar um idioma diferente. Estes por sua vez, viviam com a convico de que falavam espanhol, sem se darem conta de tudo o que ficava do hakitia em sua fala natural. A quantidade variava conforme os indivduos, seu ambiente social e seu nvel de educao. Um fator importante para o enfraquecimento do hakitia foi o uso do francs, com a criao das escolas da Aliana Israelita Universal por todo o Marrocos, com a primeira aberta em Tetuan em 1862. Com a disseminao das escolas francesas, o francs passa a exercer uma influncia marcante sobre a lngua oral e principalmente escrita, em peridicos e livros. A rehispanizao e o abandono progressivo do hakitia no aconteceu ao mesmo tempo em todas as comunidades, nem no mesmo ritmo. Os povoados mais isolados da

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penetrao europia conservaram-no melhor e por mais tempo. Em uma mesma comunidade, a modificao do uso lingstico se fez segundo a gerao, a situao socioeconmica e o nvel de instruo de seus membros. As geraes mais recentes e as camadas sociais mais abastadas ou instrudas abandonaram o hakitia mais rapidamente, assim como o rabe,

quando seus filhos educavam-se em escolas francesas, espanholas, italianas, alems. A disperso da populao judaica marroquina pelo mundo nos anos 50/60 fez com que as famlias se separassem e as comunidades se fragmentassem, desaparecendo assim o terreno cultural e o modo de vida que eram a fonte de que se alimentava a lngua. Aflalo (1999) apresenta o hakitia como uma lngua que uma mescla de espanhol, castelhano antigo e andaluz, de rabe e hebraico, salpicada de algumas palavras inglesas e portuguesas devidamente adaptadas. Segundo a autora, o Haketa era e a nica forma possvel de expressar determinados sentimentos, estados de nimo que no encontrou em outras culturas. O judeu-espanhol marroquino foi escolhido como tema desta dissertao, por ser uma lngua em extino, que tem pouca divulgao nos meios acadmicos e oferece a possibilidade de ricos conhecimentos. Os centros que dedicam-se ao seu estudo so: Nova York, Los Angeles, Israel, Turquia, Frana, Blgica, Espanha e Brasil. No Brasil, existem alguns estudos. H o trabalho de Bentes (1981) que descreve detalhadamente o hakitia e sua gramtica. Um dos trabalhos existentes sobre o judeuespanhol, a tese de Sabb Guimares (op.cit.), pioneiro no meio acadmico, trata do judeuespanhol em geral. Tambm ressalta a importncia do hakitia, fornecendo informaes relevantes e descrevendo sua gramtica, baseada em Benoliel (1977). Scliar-Cabral (1991) trabalhou com a Traduo potica do ladino. Guimares (1997) pesquisou A importncia dos provrbios no judeu-espanhol. O trabalho de Cohen, Menache, Guimares (1998) baseou-se nos remanescentes do judeu-espanhol na comunidade

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de Belo Horizonte, onde procurou-se conhecer a vitalidade dessa lngua entre 18 informantes. No houve distino entre aqueles informantes que comprovadamente so descendentes dos antigos judeus expulsos da Espanha dos que se consideram sefarditas pelos costumes e prticas rituais. Guimares (2000) trabalhou com Reanlise de estruturas locativas no Judeuespanhol oriental em sua dissertao. Cohen (2002) tratou da Reanlise do s final e o drift romnico: o caso do ladino. Duchowny (2003) fez um percurso histrico do judeuespanhol, descrevendo a histria da lngua dos judeus espanhis antes de 1492 at o sculo XX. Cohen (2003) trabalhou com as lnguas no territorializadas: o haketa, o judeu-espanhol oriental e a lngua dos calons. A autora apresentou os aspectos da interao de algumas lnguas minoritrias com o portugus no espao geogrfico de Minas Gerais. Em Scheinbein (2003), trabalhou-se com Mudana lingstica na famlia romnica: dados do judeu-espanhol calco ou ladino. A pesquisa visou coleta de dados do ladino, a lngua das tradues literais do hebraico para o espanhol antigo, com vistas comparao estrutural das duas lnguas hebraico/ladino e a posterior identificao de fenmenos de mudana lingstica que sejam resultado de mescla entre as duas lnguas. Os dados foram coletados na Bblia de Ferrara, redigida em caracteres latinos, editada em 1553, na verso de Lazar (1992). Scheinbein (2003, 2004) trata de lngua em extino: o Hakitia. Esse trabalho enfocou a vertente ocidental do judeu-espanhol, a variante marroquina, na pequena comunidade de sefarditas de Belo Horizonte. Constatou-se que os descendentes dos sefarditas marroquinos no falam essa lngua fluentemente, mas apresentam grande interesse pela mesma, seja se informando atravs de livros especficos ou pela comunicao muita restrita, nos seus lares, entre parentes e amigos. Os informantes se utilizam de palavras, expresses e palavres no cotidiano. Alm dos trabalhos mencionados, Scheinbein (2001), como resultado de pesquisa de iniciao cientfica realizada na comunidade de descendentes marroquinos judeus em Belo Horizonte, constatou, atravs de inquritos sociolingsticos baseados em Harris (1994) com

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modificaes, aplicados a seis informantes, que os xingamentos, as expresses e o uso de palavras de cunho afetivo so os elementos que ainda persistem, que, resistem, portanto, extino. Considerei esse aspecto relevante para dar continuidade pesquisa do tema, e para isto, apresento nesta dissertao, uma outra viso, da comunidade de Belm do Par, onde existem mais descendentes falantes do hakitia. uma comunidade com maior potencial de informantes, que podem contribuir significativamente para o fornecimento de material e consequentente para o conhecimento dessa lngua.

1.1 O hakitia uma lngua em extino

O hakitia est em vias de extino. A morte de lngua, termo mais comumente usado, afeta principalmente as minorias ou lnguas tnicas - lnguas de pouco prestgio faladas por apenas uma pequena parte da comunidade da populao, em oposio outra lngua dominante ou lnguas da mesma comunidade ou pas. Na metade do sculo XIX, havia a idia da lngua ser considerada um organismo natural, que nasce, cresce, se desenvolve, envelhece e morre, segundo determinadas leis cujo controle escapa vontade humana. No entanto, essa concepo de lngua como um organismo vivo no se manteve na historiografia lingstica. Conforme Graur (apud HARRIS, op. cit., p.251):Nenhuma lngua morre bruscamente, exceto em raros exemplos de extino dos membros da comunidade falante. No ocorre ao mesmo tempo para todos os falantes. um processo gradual que dura vrios anos. acompanhado por um longo perodo de bilingismo instvel, que serve como um estgio intermedirio antes da morte ou extino da lngua original.

A morte ou extino de lngua causada por uma cadeia de eventos (DENISON, 1977), onde diferentes combinaes de fatores podem ocasionar ou apressar o

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processo. Para esse autor, claro que no so as lnguas que vivem e morrem, mas aqueles que as falam. So as comunidades falantes que vivem e morrem. Segundo o autor, a causa direta da morte de lngua vista como social e psicolgica: os pais deixam de transmitir a lngua para os seus descendentes. Para Martinet (apud NINYOLES, 1972), as lnguas nem vivem nem morrem: so ou no so usadas. O seu futuro depende da vontade dos homens. Edwards (apud HARRIS, op. cit., p.265) assim descreve o processo:As lnguas por si prprias, obviamente seguem ordens no orgnicas, mas seus falantes sim. As lnguas no vivem ou morrem. Elas claramente tm uma vida dividida que dada, no pelas leis da natureza, mas pela sociedade e cultura humana. Se as lnguas enfraquecem ou morrem simplesmente por causa das circunstncias dos seus falantes terem alterado. O cenrio mais comum aqui o que est envolvendo contato de lngua e conflito: uma lngua suplanta a outra.

Terracini (1951, p.14) tem uma perspectiva diferente para a morte de lngua:Ento, morrer uma lngua, isso , mudar uma lngua, significa o momento no qual uma forma particular de civilizao se retrai mais ou menos violentamente frente a formas novas. Considerada desde este ponto-de-vista, a vida de uma lngua tem seus limites, assim como qualquer perodo de histria os tem, embora esses limites so muito movedios e nada fceis de captar.

Meillet (apud TERRACINI, op.cit., p.15) prope: Uma lngua morre quando o falante tem o sentimento de hav-la trocado por outra. Para este autor, esta proposio talvez parea mais clara se se analisar o caso de morte de uma lngua microscpica (sic), uma agonia mais que uma morte. Uma lngua se extingue de vrias maneiras, uma delas quando desaparece por parte dos falantes o interesse de continuar a fal-la, cultiv-la, de pass-la para as novas geraes, pela assimilao3, pela imigrao para regies onde a falta absoluta de contato leva ao esquecimento pelo silncio, pela falta de oportunidade de praticar a lngua etc. Segundo o sociolingista Labov (1994), o estudo da morte de lngua uma fonte importante para a compreenso da estrutura da linguagem e da mudana lingstica. OA assimilao judaica ocorre quando as pessoas vo se adaptando ao meio onde vivem e vo deixando de praticar ou se identificar com a sua cultura e religio, seja pela falta de vivncia judaica, de conhecimento, de respostas as suas dvidas, por negligncia ou por vontade prpria.3

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estudo das lnguas em extino nos conta sobre a estrutura lingstica em geral, ao demonstrar como as lnguas se mantm ou como no conseguem se manter. No captulo 2, apresentaremos a contextualizao histrica do surgimento do judeu-espanhol e sua expanso para vrios pases, dentre eles, Portugal e Marrocos, a partir da Espanha. Em seguida, esboaremos os antecedentes histricos anteriores chegada dos sefarditas marroquinos na regio norte do Brasil, que o foco desta dissertao. Como parte dessa contextualizao histrica, sero abordadas tambm as outras correntes de imigrantes judeus, as atividades profissionais dos recm chegados sefarditas, at o momento atual, assim como todos os assuntos relevantes a essa prspera cultura do passado.

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CAPTULO 2 CONTEXTUALIZAO HISTRICA

2.1 Os judeus na Espanha

MAPA 1 Judeus na Pennsula Ibrica Fonte: Caminhos do Povo Judeu Berezin & Mezan, 1975:174.

A histria dos judeus na Espanha foi marcada por todo tipo de restries, perseguies, opresses, esplios, expulses, matanas e converses foradas. Com a assinatura da bula Exigit sincerae devotionis affectus no dia 1 de novembro de 1478, pelo Papa Sisto IV, fundou-se uma nova Inquisio na Espanha. Conforme Bethencourt (2000, p.17):Essa bula reproduzia os argumentos rgios sobre a difuso das crenas e dos ritos mosaicos entre os judeus convertidos ao cristianismo em Castela e Arago, atribua

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o desenvolvimento dessa heresia tolerncia dos bispos e autorizava os reis a nomear trs inquisidores (entre os prelados, religiosos ou clrigos seculares com mais de quarenta anos, bacharis ou mestres em teologia, licenciados ou doutores em direito cannico) para cada uma das cidades ou dioceses dos reinos.

At ento, a nomeao dos inquisidores estava a cargo do papa. Alm de nomear, os reis catlicos tinham a permisso de revogar e substituir os inquisidores. No ano de 1480, o sanguinrio Tribunal da Inquisio, o Santo Ofcio, comeou a exercer as suas funes nos reinos de Castela e Arago, agora unidos pelo casamento dos reis Fernando e Isabel. Esse Tribunal tinha como funo descobrir e punir com torturas e a fogueira os cristo-novos que teimavam em judaizar ocultamente. Estes cristos-novos foram aqueles judeus obrigados a se converter ao catolicismo, que ocultamente se mantinham na f judaica. Eram tambm conhecidos como marranos ou cripto-judeus. Essa instituio tinha por finalidade identificar e punir os indivduos que traziam a heresia para dentro da Igreja Catlica e contaminavam os seus correligionrios. Nesse grupo de indivduos se enquadravam, alm dos judaizantes, os praticantes de feitiaria, de crimes de natureza sexual (bigamia e sodomia), protestantes (luteranos), os islamitas. Como nos informa Izecksohn (1967), os reis haviam chegado convico de que o motivo pelo qual a maioria dos cristos-novos espanhis persistia na prtica oculta do judasmo, ocorria devido ao fato de continuarem a conviver com judeus no convertidos, que se esforavam em manter acesa a chama da religio antiga em seus ex-irmos. Os reis e inquisidores acreditavam que, com a expulso dos judeus, os conversos no teriam contato com a f antiga e assim se integrariam definitivamente na religio catlica. Em 31 de Maro de 1492, os judeus habitantes da Pennsula Ibrica que no aceitaram converter-se ao Catolicismo, sob pena de morte e confisco dos bens, foram expulsos da Espanha pelo Rei Fernando e pela Rainha Isabel. O decreto assinado nesta data ordenava a sada dos judeus do reino dentro de quatro meses.

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MAPA 2 - Espanha em 1492

A expulso dos judeus ocorreu no mesmo ano em que Cristvo Colombo, de possvel ascendncia judaica, partiu para a descoberta da Amrica, financiada com dinheiro confiscado dos judeus. Estima-se que entre 100.000 e 175.000 judeus foram forosamente exilados. Esses exilados, que passaram a ser conhecidos por sefarditas, j que Sefarad significa Espanha em hebraico, que tinham o conhecimento dos dialetos hispnicos basicamente do fim do sculo 15 e do princpio do sculo 16, seguiram trs rotas principais de exlio: (Cf. mapa 3) a) A maioria dos judeus expulsos da Espanha em 1492 imigrou para o Imprio Otomano. A sua histria e o desenvolvimento de sua lngua muito diferente dos

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sefarditas ocidentais. Estima-se que 125.000 exilados assentaram em vrias regies do Imprio Otomano. Esses assentamentos eram localizados nas regies da Pennsula Balcnica que compreende os pases atuais: Grcia, Turquia, Iugoslvia, Bulgria, Romnia, e Israel. Esses judeus so conhecidos como sefarditas orientais. As comunidades sefarditas orientais gradualmente perderam todo o contato com a Espanha e Portugal e consequentemente no sofreram influncias lingsticas da Pennsula Ibrica, aps a expulso. Assim, o espanhol dos sefarditas orientais nos Balcs preservou muitas das caractersticas do castelhano falado e escrito no fim do sculo 15 e do incio do sculo 16 na Espanha. Conforme descreve Harris, os judeus do Imprio Otomano se viram cercados de uma cultura menos avanada que a deles e no sentiram necessidade de aprender as lnguas locais. Estes gozavam de alto prestgio especialmente nas reas de comrcio, medicina e artesanato. Muitos judeus no-sefarditas, bem como no-judeus, aprenderam a lngua dos sefarditas. Ao mudarem de regio para regio, os judeus dos Blcs absorveram palavras locais e expresses, bem como sofreram influncias morfolgicas e sintticas em sua fala. Durante os anos, o espanhol desses judeus adquiriu um nmero considervel de palavras balcnicas emprestadas e elementos estrangeiros, especialmente turco, grego e eslavo, que expressavam novos conceitos e objetos das regies balcnicas. Elementos italianos e franceses tambm foram adicionados a sua fala, isto como resultado da introduo das escolas francesa e italiana nos Blcs, em meados de 1800.

b) Um certo nmero de judeus expulsos refugiou-se em Portugal, mas ou foram submetidos a um batismo forado ou foram expulsos de l em 1497. Com outros judeus portugueses, esse grupo foi principalmente para a Holanda, Frana,

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Inglaterra, Alemanha, e outros pases europeus ocidentais. Esses sefarditas ocidentais mantinham contato com a Espanha e Portugal e foram expostos literatura, s lnguas e outras influncias da Pennsula Ibrica. Assim, continuaram a falar a lngua portuguesa como a desenvolvida em Portugal. Devido ao fato dos pases europeus ocidentais terem um alto nvel de cultura, os sefarditas ocidentais foram levados a adotar a lngua local como o holands, o francs, o ingls e o alemo.

c) Norte da frica, especialmente no norte do Marrocos, construindo considerveis comunidades sefarditas em cidades como Tnger, Oran, Fez, Tetuan, e Meknes. A lngua que se formou a, o hakitia, mesclou o espanhol com o hebraico e o rabe.

MAPA 3 Fonte: Caminhos do Povo Judeu Berezin & Mezan, 1975:202.

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No fim do sculo XV, estima-se que a Espanha contava com cinco milhes de habitantes, dentre os quais havia um milho de judeus e cristos-novos, a quinta parte. Conforme Izecksohn (op.cit.), como a populao de Portugal era igual a um quinto da espanhola, ela se constitua de um milho de habitantes ou pouco mais, onde aproximadamente duzentos mil eram de religio judaica. Um recenseamento efetuado 50 anos mais tarde por ordem de D. Joo III, indicou um total de 1.326.000 habitantes, incluindo os mais de duzentos mil judeus espanhis que entraram no pas em 1492. O autor (op.cit.) informa que uma comisso de judeus espanhis chefiada por Isaac Aboab chegou em Lisboa em abril de 1492, para implorar ao rei D. Joo II a permisso para que os judeus espanhis pudessem estabelecer-se em Portugal. D. Joo II, interessado em aumentar o tesouro real, imps condies: cada famlia que pretendesse fixar residncia definitiva em Portugal deveria pagar a taxa de cem cruzados de ouro (um cruzado correspondia a uma libra esterlina sic). Aos que no desejassem ou pudessem enfrentar tal exigncia, era-lhes concedida uma licena para entrar no pas e nele residirem por oito meses, desde que cada chefe de famlia pagasse a quantia de oito cruzados de ouro por essa autorizao temporria. Aps esse prazo, os judeus deveriam abandonar o pas, em barcos fornecidos pelo monarca, mas esses mesmos assumindo as despesas de viagem. Os judeus que no se submeteram s exigncias entraram clandestinamente em Portugal ou foram para outros locais. Durou pouco o tempo de felicidade espiritual dos exilados judeus. O rei D. Joo II queria impedir a sada da grande massa de judeus. Um dos motivos era que esses pretendiam dirigir-se ao Marrocos, nao inimiga, cujo poderio iriam aumentar. O rei, no honrando os seus compromissos, forneceu um nmero nfimo de navios, que dariam transporte apenas a poucos banidos. Os navios tinham como destino os portos portugueses no norte da frica, verdadeiros pontos de degredo, de onde passariam para as terras marroquinas. Os banidos

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foram vtimas de abusos por parte da marinhagem grosseira. No desembarque, foram alvos de vexames no meio da soldadesca que lotava os presdios. Mulheres e filhas foram desonradas, os poucos bens, roubados. Tudo isso e as notcias sobre atrocidades praticadas pelos mouros causavam pnico entre os judeus espanhis que esperavam por navios prometidos pelo rei portugus. Os exilados no insistiam em sair de Portugal, mas temiam por no saber os intuitos do rei, que tinha o objetivo de converter os judeus ao cristianismo. Os primeiros visados eram os judeus que tinham sido escravizados por terem entrado ilegalmente no pas e aqueles que tinham voltado de Tnger e de Arzilla. Foram obrigados a converter-se, caso contrrio, teriam os seus filhos tomados. Isso no representava uma violao do compromisso do rei com os judeus, porque os atingidos estavam fora da lei. Muitos cederam, continuaram com seus filhos e readquiriram a liberdade. Outros sofreram essa agonia, para continuarem no judasmo. D. Joo II faleceu em 1495. O seu primo, D. Manoel o duque de Beja, assumiu a coroa. Em trs perodos na vida de D. Manoel, o primeiro e o terceiro foram caracterizados por tolerncia e compreenso. O segundo, por questo de ambio e poltica, foi marcado por crueldade e foi decisivo para o futuro dos judeus em Portugal. D. Manoel queria se casar com a viva do prncipe D. Afonso, filho de D. Joo, que falecera antes de seu pai. Por ela ser a filha mais velha dos reis catlicos, possibilitaria a D. Manoel herdar o trono espanhol, unindo assim as duas monarquias, no caso da morte de D. Joo, que estava doente. Para a realizao desse casamento, foram feitas exigncias. A princesa pretendia que todos os criptojudeus condenados pela Inquisio da Espanha, que haviam fugido para Portugal, fossem devolvidos para aquele pas. Os reis catlicos no podiam admitir que no

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reino vizinho ao seu houvesse um regime de tolerncia para com os judeus. A filha no podia reinar num pas onde a religio judaica era permitida oficialmente. Portanto, dariam sua filha em casamento a D. Manoel, se este obrigasse todos os judeus a se converterem, e expulsasse os obstinados. O rei portugus aceitou as exigncias, apesar da maioria de seus conselheiros ser contrria sua atitude, pois achavam que seria faltar palavra empenhada por D. Joo II em 1492, e desfazer os compromissos assumidos. Tambm argumentavam que as converses foradas no teriam qualquer valor jurdico perante a Igreja, nem prtico, j que se verificava na Espanha que a maioria dos conversos praticava ocultamente o judasmo. Alm disso, os judeus que no se sujeitassem e resolvessem emigrar, dariam prejuzo a Portugal e vantagens ao Marrocos, para onde iriam com seus haveres, suas indstrias e sua atividade. Em dezembro de 1496, o rei ordenou a sada do reino de todos os judeus que no se convertessem. Deu um prazo de dez meses. Os que preferiram emigrar eram em grande nmero, pois o sulto do Marrocos tinha dado ordens para que os cristos-novos que fugiam da Espanha fossem bem tratados, e o mesmo aconteceria com os judeus que sassem de Portugal. Em abril de 1497, foram dadas ordens para que se tirassem os filhos menores de quatorze anos aos judeus que se negassem a renunciar sua crena. Esses filhos seriam internados em patronatos onde receberiam aulas de religio catlica. Essa ordem atingia no apenas as famlias dos cativos, fora da lei e do contrato. Ela abrangia todos os judeus, os que haviam pago a taxa de entrada, os que haviam adquirido o direito residncia permanente e os prprios judeus portugueses, que, por sculos, no haviam sofrido restries quanto a seu credo. O rei queria obrigar os judeus converso, a todo custo. Izecksohn (op.cit.) ainda relata que D. Manoel s voltou tolerncia, quando viu os seus projetos rurem, assim que as Cortes votaram como herdeira do trono da Espanha, a

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segunda filha dos reis catlicos a princesa Joana, e no a filha mais velha com quem era casado. No fim do ano de 1497, no existia nenhum judeu declarado em Portugal. Todos haviam sido convertidos em cristos-novos. Segundo Ralzman (1937), os anos de 1498, 1506 e 1536 caracterizaram-se pela violncia das perseguies aos semitas. O ano de 1536 marca o estabelecimento do Tribunal da Inquisio em Portugal, por autorizao de D. Joo III. Conforme o autor, a ao inquisitorial no Brasil foi limitada, embora houvesse grande nmero de judeus e outro inocentes martirizados e condenados pelos autos de f. Essa no teve a eficcia e a minuciosidade que os inquisidores pretenderam. A vastido da colnia, a ateno que devia se prestar continuamente aos ndios, a luta interna entre os jesutas e o Santo Ofcio foram fatores poderosos para quebrar e enfraquecer os planos da Inquisio no Brasil. A expulso dos judeus da Espanha e de Portugal e a sua disperso pelo mundo criou uma nova realidade em cada pas que os recebeu. Havia judeus nos pases que receberam os portugueses e os espanhis. Apesar do encontro com a cultura dos judeus autctones, os judeus provenientes da Pennsula Ibrica procuraram manter a sua particularidade, atravs da preservao de sua lngua, seus costumes e suas tradies. A chegada na frica do Norte na Tunsia, Arglia e Marrocos culminou no encontro cultural entre as duas comunidades judaicas, com influncia recproca em vrias reas da vida em comum. Os exilados absorveram e assimilaram expresses da cultura dos judeus locais. Em Fez, a utilizao de termos judeu-rabes em determinadas situaes significa, alm da mescla lingstica, uma necessidade prtica, fenmeno comum em sociedades em que duas ou mais lnguas coexistem.

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O judeu espanhol pertence a um judasmo que sobreviveu a vrias converses foradas, conviveu cerca de oitocentos anos com cristos e muulmanos e sofreu influncia dessas duas religies e culturas. atento e respeitoso aos preceitos religiosos judaicos e s tradies familiares. Tem esprito aberto s ocorrncias do meio que o cerca. Um trao marcante o vnculo ao seu pas natal e sua cultura, o que explica de certa maneira, o esforo dos exilados em preservar, desenvolver a lngua espanhola e as suas tradies ancestrais, nos pases onde se estabeleceram.

2.2 Os judeus no Marrocos

O mapa seguinte mostra a distribuio dos judeus nas diversas cidades marroquinas.

MAPA 4 - Comunidades judaicas no Marrocos

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Bemerguy (1998) menciona que o Marrocos j havia sido refgio para os judeus, em decorrncia de perseguies religiosas na Espanha, feita pelos reis visigodos nos sculos VI e VII. Nos sculos XV e XVI, deu-se o maior contingente migratrio para este pas, isto em funo dos problemas gerados pela Inquisio na Pennsula Ibrica. Os judeus vindos da Ibria ficaram confinados em guetos denominados melachs, de Tetuan, Fez, Marrakesh e outras vilas e cidades, onde tambm sofreram constrangimentos, humilhaes, confisco de bens e at foram vtimas de massacres. A escolha do Marrocos deu-se em funo da sua proximidade com a Pennsula Ibrica. Os expulsos a ficaram por 300 anos, falando espanhol, portugus e hakitia. Reconstruram as suas comunidades em Tetuan, Tnger, Fez, Rabat, Sal, Marrakesh, Arcila, Larache, Ceuta e Melila. Saram da guezer (sentena maldita) da Ibria para o guechinam (inferno) do Marrocos. No Marrocos houve o encontro dos judeus espanhis e portugueses, expulsos e refugiados, conhecidos como megorashim, com os irmos nativos os tochabim. Ayoun (1996, apud BENCHIMOL, 1998, p.30) diz:Os expulsos megorachim trazem consigo a lngua castelhana, sua cincia, suas instituies comunitrias, usos e costumes, seu esprito empreendedor, que fazem deles em relao aos tochabim judeus nativos, moradores e autctones um grupo social dominante: a elite cultural e a burguesia dos notveis que desempenharo um grande papel nos domnios do comrcio, das finanas e da diplomacia.

Segundo Liberman (1989, apud BEMERGUY, 1998), os judeus exerceram vrias profisses: foram fazendeiros, plantadores de tabaco, arroz, pequenos comerciantes, mascates. Trabalharam na indstria de cera de abelha, comercializaram borracha, l, penas de avestruz, peles, especiarias, mel e artigos exticos. Consta que os muulmanos cederam aos judeus a comercializao do vinho, das pedras preciosas e a sua lapidao. At 1912, a maior parte do comrcio e o monoplio sobre certos portos eram controlados por uma forte sociedade de judeus mercadores.

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A situao econmica acima no era a mesma para todos os judeus marroquinos, j que esta variava conforme a regio e a maioria da populao sofria privaes. Os megorashim no foram bem recebidos pelos judeus nativos os tochabim, porque os recm-chegados assumiram a liderana nas juderias e melachs e progrediram em seus negcios e profisses, ao contrrio dos judeus nativos, que empobrecidos por sculos de dominao dos mouros e berberes, sem oportunidades de educao e profissionalizao, temiam os espanhis devido rivalidade comercial e sua superioridade tcnica. Os megorashim chamavam seus irmos judeus nativos de forasteiros (estrangeiros em relao comunidade judia de origem espanhola). As rivalidades e divergncias entre os dois grupos de judeus deu-se no campo social, comercial e religioso. Os judeus espanhis e portugueses de Tnger e Tetuan se achavam superiores pela sua posio social, por seu status econmico e profissional. Essa rivalidade e divergncias so tambm levadas para a nova dispora, o norte do Brasil, no incio do sculo XIX, como veremos mais adiante.

2.3 O xodo judeu-marroquino

Fatores polticos, econmicos, sociais, religiosos e educacionais foram os motivos que desencadearam a onda migratria dos judeus sefarditas e dos chamados forasteiros marroquinos para a Amaznia. A vida dos judeus no Marrocos atingiu um grande nvel de pobreza nos melachs, em cidades como Tetuan, Tnger, Fez, Marrakesh, Sal, Arcila e outras. Poucas famlias judias sefarditas de Tetuan e Tnger (portos do Mediterrneo e do Atlntico), em frente a

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Gibraltar, desfrutavam de melhor posio social e econmica. A maioria vivia confinada nos melachs e insalubres juderias, sujeitas a doenas e epidemias. Laredo (1935, apud BENCHIMOL, 1998) menciona que o estado de pobreza dos judeus era to grande que existiam 22 sociedades judias de beneficincia e de socorro. As condies sanitrias das cidades marroquinas eram pssimas e piores nos melachs. Diversas epidemias ocorreram em vrias ocasies, dentre elas, de clera. A fome agravava as enfermidades. O apedrejamento de judeus, tanto em vida como na morte, era prtica comum de perseguio e de hostilidade entre os rabes. As sinagogas eram freqentemente apedrejadas pela populao quando havia conflitos, revolues, mudana de sultes, bombardeios, invases, e outros eventos que enfureciam as multides, de maioria rabe-muulmana, que desprezavam e tinham cimes daqueles lderes judeus que alcanavam certa posio econmica e social, em alguns governos. Na substituio de algum sulto ou pach amigo por um inimigo, sempre ocorriam saques e perseguies. Nas aljamas, juderias e guetos da Ibria e da Europa era constante a presso para que os judeus filhos da maldio, deicidas, prias, e excludos fossem catequizados ou convertidos forosamente. Dessa maneira, criaram um novo tipo de meio-judeu e meiocristo, ou seja, os marranos, cristos-novos e cripto-judeus. No Marrocos, essa presso tambm se fazia sentir, para que os judeus aceitassem a crena de Maom e substitussem a Tor4 pelo Alcoro5, para torn-los Judid-al-Islam muulmano por fora e judeu por dentro. Muitos casos de converses foradas ou de martrios ocasionados pelas recusas ocorreram. Um exemplo o caso de Sol Hachuel, nascida em Tnger no ano de 1820, que se tornou4

Tor, ou os cinco livros de Moiss, so pergaminhos manuscritos de um s lado, costurados de forma contnua e enrolados em dois cabos de madeira, designados poeticamente de a rvore da Vida. Esta referncia baseia-se num antigo dito hebraico segundo o qual A Tor a rvore da Vida para aqueles que a ela se dedicam. O conjunto que engloba os cinco livros de Moiss, Gnese, (Bereshit), xodo (Shemot), Levtico (Vaikr), os Nmeros (Bamidbar) e Deuternomio (Devarim) chamado Sefer Tor. Alcoro ou Coro o livro sagrado do Islo. Os muulmanos acreditam que o Alcoro a palavra literal de Deus (Al) revelada ao profeta Muhammad (Maom) ao longo de um perodo de 22 anos. A palavra Alcoro deriva do verbo rabe que significa ler ou recitar; Alcoro , portanto, uma "recitao" ou algo que deve ser recitado.

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herona e sadik santa do povo judeu Tangerino, por recusar-se a se converter ao islamismo. Esta moa de 14 anos foi degolada em praa pblica, em Fez, no ano de 1834. A sua ltima orao antes de morrer foi: Shm Israel Adonai Elochenu Adonai Echad (Ouve Israel, Adonai nosso Deus, Adonai um s), a profisso de f judaica. Uma instituio que foi de fundamental importncia e que muito contribuiu para a educao de judeus deste pas foi a Aliana Israelita Universal, fundada em Paris, em 1860, por J. Carvalho, I. Cahen, N. Leven, A. Cremieux, A. Astruc e o poeta E. Manuel, apoiada financeiramente pelo Baro Maurice de Hirsch. A Aliana teve como objetivo solidarizar com os judeus, trabalhar pela sua emancipao e progresso moral, oferecer ajuda e assistncia s vtimas do anti-semitismo, encorajar a publicao de livros que promovessem esses objetivos. Sua ao se fazia nos nveis diplomticos, na assistncia a emigrantes, e educao, sobretudo para os judeus orientais vtimas de perseguies. A cole Normale Isralite Orientale criada em Paris em 1867 tinha como funo treinar diretores e professores para as suas escolas no exterior. Escolas da A.I.U. foram fundadas em: Tetuan, em 1862, em Tnger, em 1869, seguidas de mais cinco escolas no Marrocos. Em 1870/1885 foram fundadas escolas na Bulgria, Srvia, Rumnia, Turquia, Sria, Iraque, Egito, Jerusalm, Algria, Tunsia e outros paises do Mediterrneo. A Escola Israelita Universal forneceu formao em todos os nveis de ensino, lnguas (francs, espanhol, ingls e hebraico), cincias, histria, geografia, ofcios e profisses. As mulheres aprendiam costura, trabalhos manuais, msica, alm das matrias citadas.

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MAPA 5 - Rede escolar da Aliana Israelita Universal, 1862-1910.

A importncia dada ao ensino do francs, espanhol, ingls e hebraico nas escolas da Aliana, no ajudou na fixao do hakitia, uma vez que este no foi considerado relevante no processo educacional, tendo seu uso restrito aos ambientes familiares e sociais judaicos. As escolas de Tetuan e Tnger desempenharam papel importante na educao e preparao de judeus, tirando-os da pobreza e ignorncia, e estimulando-os a emigrar para outros pases com melhores oportunidades. A A. I. U. do Marrocos ajudou na preparao dos futuros lderes judeus da Amaznia que se tornaram importadores e exportadores.

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2.4 A presena judaica na Amaznia

2.4.1 Antecedentes histricos no Brasil

Em 28 de janeiro de 1808 foi assinada a Carta Rgia da Abertura dos Portos s Naes Amigas. J em 18 de junho de 1814, o Prncipe Regente D. Joo assinou um novo decreto, abrindo os portos luso-brasileiros em carter definitivo a todas as naes amigas, sem exceo. Em 19 de fevereiro de 1810, foram feitos dois tratados, um de comrcio e navegao e outro de aliana e amizade, alm de uma conveno sobre o servio de navios entre Brasil e Gr-Bretanha. O Tratado de Aliana e Amizade determinava que, no futuro, no haveria mais no Brasil o Tribunal da Inquisio (BENTES, 1987). Falbel (1997) assinala que este tratado constitui um marco e um sinalizador para que os judeus do Marrocos e de outros pases pudessem vir para a Amaznia. No ano de 1821, D. Joo VI, enfrentando as represlias do clero e da igreja, extingue a Santa Inquisio e os Tribunais do Santo Ofcio em todo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O Imperador D. Pedro I proclamou a Independncia do Brasil em 7 de setembro de 1822. A Constituio Imperial de 1824 reconheceu a Igreja Catlica como a religio oficial do Estado, permitindo o culto domstico ou particular de outras religies em casas sem forma alguma exterior de templo. As sinagogas poderiam funcionar em casas de famlias judaicas, como ocorreu no incio.

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Com a Proclamao da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, em 15 de novembro de 1889, o governo provisrio baixou o Decreto 119 que aboliu a unio legal da Igreja com o Estado, e instituiu o princpio da plena liberdade de culto. A emigrao sefardita marroquina para Belm deu-se por volta de 1810. O Brasil abriu suas portas para acolher os fugitivos e exilados e se apresentou como um novo lar, uma nova ptria livre das perseguies e temores para aqueles sados do Marrocos. Os fatores polticos, as leis, atraram migrantes. Outros fatores atuaram tambm como atrao para a Amaznia: a intensificao da navegao do exterior, propiciando o maior comrcio de importao e exportao, cargas e transportes de passageiros e migrantes; a navegao interior subsidiando e propiciando a interiorizao das correntes migratrias judaicas ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes; o ciclo da borracha que tambm atraiu ingleses, franceses, alemes, portugueses e os flagelados e retirantes do nordeste, que fugiam das secas de 1877 e 1888. A combinao dos fatores de expulso e atrao fez com que os judeus sassem do Marrocos e fossem viver na Amaznia.

2.4.2 As correntes migratrias

Benchimol (1998) divide a presena judaica na Amaznia, a partir de 1810, em cinco correntes: - os sefarditas expulsos de Portugal, Espanha e Marrocos, que falavam portugus, espanhol e hakitia;

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- os forasteiros nativos do Marrocos, que falavam rabe e berbere6; - os serfatitas7 de Alscia e Lorena, de fala francesa e alem; - os ashkenazitas da Alemanha, Polnia e dos pases da Europa Oriental, que falavam alemo e idiche; - os foinquinitas (foinquinos, que em hebraico e hakitia significa Fencia) do Oriente Mdio, que falavam ladino e rabe.

Segundo Bemerguy (1998), o provvel primeiro fluxo migratrio dos judeus marroquinos Provncia do Gro-Par antecede ao ano de outorga da Constituio de 1824. Esta constituio permitiu o culto domstico ou particular de todas as religies no Brasil. A autora diz haver registro da presena de judeus marroquinos no Par j no ano de 1820. Em 1842 os judeus j possuam necrpole israelita na capital da Provncia. A primeira sinagoga da cidade de Belm Shaar Chashamaim8, provavelmente do ano de 1824, alm de sua funo religiosa, atuava como agregadora do grupo. Era o local onde se encontravam as famlias e onde os recm-chegados podiam travar conhecimentos. As datas de fundao so controversas bem como qual seja a primeira sinagoga de Belm. Benchimol (1998) afirma que a primeira sinagoga foi fundada em 1823 ou 1824 a Essel (Eshel) Abracham9, enquanto a Sinagoga Shaar Chashamaim provavelmente foi fundada em 1826 ou 1828. Com o advento da explorao da borracha, a emigrao judaica para a regio amaznica aumentou bastante e os judeus de origem hispano-portuguesa que haviam fugido para o Marrocos comearam a chegar cada vez em maior nmero para o Estado do Par e para o Estado do Amazonas, onde se estabeleceram nas capitais e no interior dos dois estados. Graas a esses imigrantes, surgiram as primeiras sinagogas e os primeiros cemitrios judaicosBerbere era a lngua dos povos primitivos que habitavam o interior do Marrocos, que os sefarditas chamavam de arbia, porque nem mesmo os judeus fluentes em rabe conseguiam entender o seu linguajar nativo. 7 Serfaty (heb.) francs. 8 Shaar Chashamaim (heb.) Porta do Cu. 9 Eshel Abracham (heb.) Bosque, Arvoredo ou Pousada de Abracham.6

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na regio, pois fiis que eram sua f religiosa, preocupavam-se em conservar e transmitir as suas tradies aos seus descendentes (INGBER, 1969, apud BENTES, 1987). Das cinco correntes apresentadas, os grupos mais numerosos e influentes que aportaram na Amaznia foram os judeus sefarditas e forasteiros que emigraram do Marrocos, no perodo de 1810 a 1910. Bentes (op.cit.) afirma que essa imigrao foi de carter individual, inicialmente, em sua quase totalidade, por jovens entre 13 e 18 anos de idade, com a cultura relativa sua maioridade religiosa em nvel bastante adiantado, e os conhecimentos gerais de matemtica, cincias e letras, no mnimo do curso primrio completo e muitos deles com o curso ginasial concludo. Alguns sobrenomes das pessoas que ali se instalaram foram: Abecasss, Azulay, Benchimol, Bengi, Benoliel, Chocrn, Cohen, Israel, Levy, Pazuello, Serfaty, Serruya. Essas pessoas, aps terem conseguido uma aceitvel condio econmica, mandavam buscar suas famlias ou eles mesmos iam constitu-las nas suas cidades de origem, trazendo- as para o Brasil. Posteriormente, j se casavam com as filhas dos seus correligionrios vindas com seus pais ou j nascidas na Amaznia, mantendo assim suas tradies e a sua fidelidade religiosa. Esses imigrantes no foram financiados por nenhuma organizao oficial do governo brasileiro. Vieram por conta prpria com seus parcos recursos pessoais, ou por emprstimos que posteriormente pagariam, feitos por comerciantes correligionrios que se encontravam no Brasil e lhes proporcionavam empregos, ou por comerciantes que lhes adiantavam os recursos para a sua viagem e instalao. Eidorfe Moreira (apud BENTES, op.cit.) ratifica que a imigrao judaica para a Amaznia foi espontnea e voluntria, sem onerar o governo brasileiro nem qualquer entidade particular. Os judeus que tinham ido para o Par e a progredido iam visitar suas famlias e amigos em sua terra natal, exibindo suas excelentes condies econmicas com seu luxuoso

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modo de vida. Eles necessitavam de pessoas jovens, cultas e civilizadas, de plena confiana, para auxili-los na ampliao de seus negcios, pois no norte do Brasil no encontravam facilmente pessoas capacitadas para esse fim. Os jovens marroquinos tambm queriam ter um futuro prspero como o daqueles que lhes serviam de exemplo. Este foi um dos principais motivos de estmulo para os jovens marroquinos migrarem para o Brasil e para conseguirem o consentimento de seus pais, que sabiam que os seus filhos poderiam obter progresso e teriam apoio de seus correligionrios na Amaznia. As informaes sobre o primeiro fluxo de judeus marroquinos na Amaznia so poucas e h divergncias com relao s informaes e s datas. Sobre o movimento migratrio dos sefarditas para o Brasil, Benchimol (apud BENTES, op.cit.) afirma que as primeiras famlias judaicas estabeleceram-se na Amaznia por volta de 1850, quando o boom da borracha ainda no havia adquirido momentum. Provinham, em sua maioria, do norte da frica, especialmente de Tnger, Tetuan, Rabat, Casablanca, do Marrocos francs e espanhol, e Arglia, bem como de Lisboa e de outras cidades portuguesas, e comunidades sefarditas, que haviam se estabelecido nessa parte do Continente Afro-Ibrico aps a dispora. Visto sob outra perspectiva, diferente da de Bentes, Benchimol (op.cit.) informa que a caracterstica principal desse movimento, residiu no fato de que, ao contrrio da maioria dos outros imigrantes, foi esta uma imigrao familiar, fazendo-se o homem acompanhar da mulher e dos filhos. Isto se deve ao carter gregrio, domstico da vida judaica, milenarmente presa aos valores religiosos e culturais centralizados em torno da famlia, da comunidade, que procuram logo criar, como forma para assegurar a sobrevivncia de sua prpria cultura e tradio. Esses imigrantes localizaram-se, inicialmente, nas pequenas cidades do interior do Par e Amazonas, como Camet, Almeirim, bidos, Santarm, Itaituba, Itacoatiara, Tef,

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Humait, Porto Velho, alm de Belm e Manaus, como empregados em escritrios e estabelecimentos comerciais, ou em atividades mercantis do aviamento e regato10. Mais tarde, no perodo ureo do ciclo da borracha, iniciou-se a fase de sua promoo econmica como arrendatrios e proprietrios dos seringais, no interior, ou como compradores de produtos regionais, nas praas de Belm e Manaus. Bentes (op.cit.) diz que, embora todos os judeus que formaram a comunidade no Par fossem oriundos de territrios africanos limtrofes, todos com a mesma cultura religiosa sefardita, com os mesmos livros de oraes e regulados por um mesmo calendrio religioso, seus idiomas e tambm dialetos familiares, bem como os seus costumes regionais, eram muito diferentes entre si. No norte da frica, o idioma normal, familiar, era o rabe e excepcionalmente o francs. No Imprio Marroquino existiam trs zonas distintas, embora o rabe fosse o idioma nacional oficial. No protetorado francs falava-se a lngua francesa, na zona espanhola, o castelhano era oficial, mas familiarmente entre os judeus, a conversao era em hakitia. Na zona neutra de Tnger, abrangendo tambm Tetuan, falava-se normalmente o espanhol e a conversao familiar era em hakitia.

2.4.3 As geraes de judeus na Amaznia

Benchimol (op. cit.) distribui os judeus amaznicos em quatro geraes apresentadas a seguir.

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Duas so as acepes do termo regato: 1) o comrcio desenvolvido em embarcaes pelo interior da Amaznia, na qual estabelecia-se geralmente o sistema de aviamento, sistema este de crdito baseado na troca de produtos; 2) o indivduo que nele trabalhava, negociando produtos regionais por produtos manufaturados, com a populao ribeirinha. (BEMERGUY, 1998).

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a) Primeira gerao os pioneiros A primeira gerao pioneira foi para o interior como jovens aprendizes, empregados, balconistas e vendedores ambulantes, contratados por firmas judias de Belm e Manaus, em busca de oportunidade de ganho e trabalho. Aviados por algum judeu prspero desses dois lugares, foram para o interior em cidades como: Breves, Gurup, Camet, Baio, Macap, Afu, Alenquer, bidos, Santarm, Parintins, Maus, Itacoatiara, Coari, Tef chegando at Iquitos, no Peru. Outros pioneiros foram se localizar com suas mulheres e filhos no Rio Tapajs, onde formaram as comunidades de Boim, Aveiros e Itaituba. No Rio Madeira, se estabeleceram em Borba, Manicor, Humait, Porto Velho, Guajar-Mirim e Fortaleza do Abun. No Rio Purus, ficaram em Lbrea, Boca do Acre at Rio Branco. No Rio Juru, se estabeleceram no Rio Tarauac como seringalistas, ou foram virar regato at Cruzeiro do Sul. Muitos desses pioneiros comearam como empregados, balconistas, gerentes de depsito, donos de flutuantes, guarda-livros e terminaram como seringalistas e Coronis de Barranco. O primeiro judeu marroquino no Par foi o Sr. Jos Benj, como informa Ingberg (apud BENTES, 1987). Outra referncia bem antiga se deve ao Major Eliezer Moyses Levy. Os judeus foram os primeiros regates da regio. Com suas embarcaes, levavam mercadorias para vender nos seringais em troca de borracha, castanha, blsamo de copaba, sorva, balata, ucuquirana, peles e couros de animais silvestres e outros gneros regionais de exportao. Como diz BENCHIMOL (op. cit., p.81):Eles desafiavam o grande poder e o monoplio dos aviadores (comrcio de venda a crdito para o interior, no vocabulrio amaznico) portugueses e dos Coronis de Barranco Cearenses e Nordestinos, que eram as elites dominantes que fechavam os rios e eram os donos da praa para que o seu monoplio de comrcio fosse mantido.

A gerao dos pioneiros judeus na Amaznia pode ser caracterizada por um trabalho duro, a bordo de pequenas embarcaes que serviam as populaes ribeirinhas, onde os barcos dos grandes comerciantes e aviadores portugueses no conseguiam entrar. Eles

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levavam estivas, tecidos, remdios, bebidas, munies para abastecer os seringueiros e compravam os produtos do extrativismo silvestre, a melhores preos. Os judeus democratizaram o processo de intercmbio comercial no interior da Amaznia e quebraram o monoplio dos aviadores portugueses e exportadores ingleses, franceses e alemes que dominavam o comrcio e os emprios de Belm e Manaus. Com a situao mais consolidada, os pioneiros abandonavam o interior do interior e fixavam nas pequenas cidades onde viviam suas esposas e filhos. Assim foram sendo instaladas as comunidades judaicas, as sinagogas nas casas de famlia, foram fundados os cemitrios judeus. Esses pioneiros viveram intensamente a febre do rush da borracha e participaram dela intensamente, atravs de uma rede capilar de abastecimento e de criao de mercado, enfrentando a concorrncia dos grupos poderosos de Belm e Manaus. Como no tinham chance, meios, oportunidades ou capital para se estabelecerem nas capitais, para enfrentar os grandes, tiveram que buscar o seu lugar no interior.

b) Segunda gerao - o boom do ciclo da borracha (1850 a 1910) Esta gerao composta de judeus que pelo sucesso obtido, graas aos altos preos da borracha, conseguiram se estabelecer em Belm e Manaus, onde se tornaram grandes aviadores e comerciantes donos de emprios e armazns, exportadores de borracha. Estes concorriam com portugueses, ingleses, franceses e alemes. Suas famlias comearam a ter um alto conceito econmico e social. Nesse perodo dos anos dourados do ciclo da borracha, a segunda gerao de judeus recebeu um reforo de novos imigrantes marroquinos de Tnger e Tetuan, que recebiam mesadas e cartas de chamada de seus parentes e correligionrios, contando as vantagens da terra e a fortuna ao alcance de muitos, com o alto preo da borracha.

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O ano de 1910 marcou o fim do apogeu da borracha. Com o fim do monoplio natural da borracha amaznica, encerra-se a segunda gerao de famlias judias, que apesar da decadncia, tentaram sobreviver at os anos 30 e 40, como exportadores de borracha, substituindo os ingleses, franceses e alemes que abandonaram Manaus e Belm. Tambm buscaram trabalhar com outros produtos como castanha, couros, peles e beneficiamento de produtos regionais. Essa segunda gerao de judeus marroquinos teve um fim triste. Famlias inteiras de comerciantes abandonaram suas propriedades em Belm e Manaus. Firmas judias foram falncia e desapareceram. Os principais empresrios judeus que no faliram, sobreviveram modestamente como comerciantes e lojistas. Muitos migraram para outras cidades do Brasil e do exterior.

c) Terceira gerao o xodo do interior para Belm e Manaus A terceira gerao de judeus marroquinos pertence ao perodo de 1920 a 1950. Durante esses 30 anos, a economia amaznica entrou em crise e os descendentes da primeira gerao e pioneiros, iniciaram o xodo para Manaus e Belm, em busca de sobrevivncia. Os judeus paraenses que haviam falido durante a crise da borracha, ou que ficaram muito empobrecidos, tentam reerguer-se em Belm, como empregados e funcionrios pblicos, vendedores, negociantes e lojistas. Alguns se transformaram em grandes exportadores de borracha, sorva, castanha, couros e peles, cumaru, timb e produtos regionais (entre 1930 a 1950). Ente os anos de 50 e 60, uma grande parte de lderes e empresrios paraenses abandonou ou fechou os seus estabelecimentos industriais e mercantis e migrou para o Rio de Janeiro e So Paulo.

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d) Quarta gerao poca dos doutores e profissionais A economia amaznica atravessou outro perodo muito difcil entre os anos de 1950 e 1970. As exportaes de borracha tornaram monoplio federal do Banco da Borracha e assim, desestruturou-se toda a economia das empresas judaicas aviadoras e exportadoras desses produtos. A castanha e produtos regionais como o couro de jacar, o leo de pau-rosa, a copaba, a madeira, a juta, que conseguiram manter alguns empresrios vivos. Recomeou o despovoamento e o xodo rural para as cidades grandes. Vieram os patres e depois os pees. Os judeus paraenses e amazonenses, nos anos 50, tiveram que largar e vender seus bens, haveres e terras para educar os seus filhos. Uma das coisas importantes para os judeus marroquinos, alm de terem uma famlia numerosa, era a boa educao dos filhos. As mes judias tinham como projeto para os seus filhos, educ-los para serem mdicos, advogados, engenheiros. O mais velho deveria seguir a profisso do pai comerciante para levar os negcios da famlia. Devido ao fato das famlias judias serem numerosas e no poderem dar educao universitria para todos os filhos, elas desenvolveram uma estratgia muito eficiente. Os pais, geralmente a me, escolhiam o mais brilhante e inteligente para estudar fora. O filho mais velho devia seguir a profisso do pai. Os outros comeavam a trabalhar depois do BarMitzv11, para aumentar a renda familiar. Assim, a famlia podia mandar um segundo filho para estudar fora de Belm e Manaus, obtendo uma melhor formao profissional. Este filho era ajudado pelos irmos mais velhos e pelas irms, que mandavam os seus salrios para completar a mesada dos irmos que estudavam fora. Quando estes se formavam, tinham como obrigao ajudar os mais novos a estudarem em alguma universidade. Formava-se assim uma cadeia cooperativa humilde de auto-ajuda mtua.

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Bar-Mitzv significa a maioridade judaica, quando o rapaz completa 13 anos de idade.

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Nos anos de 50, os judeus de Manaus e Belm comearam o seu xodo para Rio e So Paulo. Os que ficavam, abandonavam a profisso dos seus pais. Tornaram-se profissionais: mdicos, advogados, economistas, contadores, auditores, administradores, engenheiros, consultores, executivos, professores, pesquisadores e outros. A quarta gerao de judeus amaznicos desempenha atualmente importante funo no campo profissional, universitrio, empresarial e poltico. Muitos dos seus membros e descendentes se tornaram senadores, deputados federais, estaduais, vereadores e prefeitos. Foi sobretudo no campo da medicina que eles se destacaram. A escolha por profisses liberais como meio de vida e como instrumento de ascenso social, pode ser explicada como uma forma pela qual as famlias judaicas buscaram encontrar uma maneira de fugir do estigma da imagem do perverso judeu associada ao dinheiro, usura e ao comrcio. A busca de profisses nobres e humanistas, principalmente a de mdico, promove o judeu a um novo status social e econmico. Esquecer o passado de regates, seringalistas, aviadores, lojistas e comerciantes tornou-se uma imposio social e gratificao psicolgica para esta gerao que permanece em Belm, Manaus, ou que se estabeleceu no Rio, So Paulo e outros locais. Benchimol (op.cit.) menciona que esta quarta fase do judasmo amaznico, centrada nas profisses, empobreceu as comunidades judaicas, principalmente a de Belm. Esta perdeu poder econmico para sustentar os servios necessrios e requeridos pela comunidade. As trs sinagogas da cidade, o Centro Israelita do Par e o Clube Benfica (agora A Hebraica) no foram suficientes para gerar receitas e manter coesa a comunidade local. Os judeus de Belm perderam as contribuies e doaes dos seus antigos comerciantes e empresas que emigraram e entraram em decadncia, ou que foram fechadas por falta de sucessores. Nem todos os profissionais alcanaram o nvel de classe alta ou de classe mdia superior. A comunidade paraense entrou em crise, com um aumento de

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assimilao e ainda uma quebra e descontinuidade dos elos judaicos-familiares das tradies e da solidariedade comunitria.

2.5. A Amaznia: o Estado do Par

A maior parte da Amaznia a rea de clima equatorial, originalmente coberta pela floresta amaznica, que cobre cerca de 40% do territrio brasileiro, se estendendo pela regio Norte, norte do Centro-Oeste e o oeste do Maranho, configurando a Amaznia Legal, rea de atuao da SUDAM. Uma caracterstica marcante do quadro natural amaznico a rede hidrogrfica, sendo a Bacia Amaznica a maior do mundo em volume de gua e, provavelmente, o rio Amazonas, o mais extenso do planeta. Como o rio principal localiza-se sobre uma plancie, constitui uma hidrovia de milhares de quilmetros de extenso e devido a topografia da regio, j que, os seus afluentes vem de reas mais altas, a rea possui o maior potencial hidreltrico do pas. O aproveitamento ainda baixo, sendo este um entrave para o desenvolvimento. A regio amaznica possui uma populao muito reduzida, o que aliado a sua grande extenso, determina baixssimas densidades demogrficas. No entanto, nas ltimas dcadas a regio vem tendo, devido as migraes, o maior crescimento populacional do pas, tendo sido, na dcada de 80, de 4,5% ao ano contra a mdia nacional de l,8%. Este grande crescimento populacional fruto em grande parte de migraes rural-rural (expanso da fronteira agrcola), que, no entanto, no impedem a regio de ser predominantemente urbana, com cerca de 55% da populao vivendo em cidades. Esta aparente contradio pode ser

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explicada pela enorme concentrao fundiria e os constantes conflitos pela posse da terra, envolvendo posseiros, grileiros, latifundirios e seus jagunos, comunidades indgenas e populaes extrativistas (seringueiros e castanheiros). O principal aglomerado urbano Belm, a Metrpole Regional, seguida da cidade de Manaus, que vem sendo classificada de metrpole em formao ou metrpole incompleta. Outras reas de crescimento so Rondnia, o sul do Par e Tocantins. A pecuria extensiva uma atividade marcante na Amaznia, havendo grandes projetos ao longo das rodovias, que foram criados com incentivos diretos e indiretos do governo federal, notadamente durante a Ditadura Militar. Mas a produtividade da pecuria na regio muito reduzida. Na verdade a pecuria extensiva utilizada na especulao fundiria, como forma de valorizao e obstculo para a desapropriao para fins de reforma agrria. A biodiversidade amaznica de enorme riqueza, mas pouco se utiliza para pesquisas e desenvolvimento tecnolgico no Brasil. A seguir, apresentaremos os mapas que permitem a visualizao das principais cidades e rios da Regio Norte, por onde os judeus sefarditas passaram e se instalaram.

Mapa 6 - Mapa do Estado do Par Fonte: http://www.brasilrepublica.com

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Mapa 7 - Mapa do Estado do Amazonas Fonte: http://www.brasilrepublica.com

O Estado do Par, com 1.248.042 km2 de extenso, representa 16,66% do territrio brasileiro e 26% da Amaznia. Cortado pela linha do Equador no seu extremo norte, dividido em 143 municpios, onde vivem cerca de seis milhes de pessoas. A economia, tradicionalmente calcada no extrativismo sofreu a primeira grande mudana na dcada de 70, com a poltica de incentivos fiscais definida pelo Governo Federal para estimular o desenvolvimento da Amaznia, que resultou na implantao de vrios projetos industriais, agrcolas e pecurios. Outra grande mudana no perfil da economia paraense comeou a se desenhar em meados da dcada de 90, mais precisamente em 1995, quando o Governo do Par, alm de adotar mecanismos de incentivo implantao de novos projetos produtivos, passou a trabalhar a mudana da base produtiva do estado, a partir das suas reas vocacionais, de modo a garantir um desenvolvimento econmico e social efetivo e permanente. A nova base produtiva do Par est assim calcada em trs grandes reas: agroindstria, verticalizao da produo mineral e turismo.

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2.5.1 Belm

Santa Maria de Belm do Gro Par foi fundada em 1616 por Francisco Caldeira Castelo Branco. A cidade espalha-se pela margem da baa do Guajar e do rio Guam, distante 120 km do oceano Atlntico e 160 km ao sul da linha do Equador. Belm floresceu com pau-brasil e drogas do serto e desabrochou com a explorao da borracha. Sua maior riqueza a floresta bem prxima, com a sua grande biodiversidade que fascina o mundo. a cidade das mangueiras, do aa, do Crio de Nazar, marcada por chuvas quase todos os dias.12 Belm, com 1.065 km de territrio, apresentou no ano de 2005, uma populao estimada de 1.405.871 habitantes, conforme os dados do IBGE. No h dados oficiais sobre a comunidade judaica da cidade, mas conforme Benchimol (1998), Belm teria cerca de 420/430 famlias de judeus de sinal e orgulho, ou seja, daqueles que se identificam como judeus, perfazendo aproximadamente de 1.600/1.800 pessoas. Atravs da pesquisa de campo realizada em 2005, para a presente dissertao, constatou-se que a comunidade judaica constituda aproximadamente de 400 famlias, na sua maioria formada por profissionais liberais. Como ocorre de maneira geral no Brasil, h muitos casamentos mistos, ou seja, de judeus com pessoas de outros credos. A comunidade de Belm possui trs sinagogas: a Eshel Abracham (conhecida como Sinagoga da Rua Campos Sales), a Shaar Chashamaim (conhecida como Sinagoga da Rua Arcipreste), ambas tradicionais, e a do Beit Chabad, que segue a corrente ortodoxa. Elas esto concentradas em regies bem prximas umas das outras. Existe uma boa convivncia

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Cf. Paratur (2005) e Guia Turstico de Belm (ed. 257, agosto 2005, ano 32).

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entre os membros das mesmas. A bibliografia relata que, to logo puderam organizar as suas comunidades e as suas sinagogas, os megorashim os exilados sefarditas de Tnger, Tetuan, Larache, Melila e Ceuta, e os toshavim moradores nativos berberizados e arabizados de Sal, Fez, Marrakesh, Mekne, Rabat e outras vilas e povoados de fala arbia e berbere, procuraram reconstituir o quadro cultural e os valores religiosos de seu grupo de origem. A rivalidade e a dualidade cultural e religiosa pr-existentes no Marrocos foram transferidas para as novas comunidades fundadas na Amaznia a partir do incio do sculo XIX. Por este motivo, foram criadas duas sinagogas em Belm. A Eshel Abracham, uma sinagoga modesta, era a esnoga dos pobres e dos forasteiros toshavim. A Shaar Chashamaim, a sinagoga dos ricos, era freqentada pela elite religiosa, pelos aviadores, comerciantes prsperos, descendentes dos judeus sefarditas megorashim. Ainda conforme Benchimol (op.cit.), a primeira sinagoga fundada em 1824, pode ter acolhido as duas correntes. Com a prosperidade da borracha, a segunda sinagoga, mais imponente, se tornou a sinagoga dos sefarditas megorashim. O Centro Israelita do Par concentra a parte administrativa, que centraliza todas as atividades. Tudo o que precisa ser feito, passa primeiro pelo Centro para depois ser encaminhado a outras entidades. H um clube mais retirado da cidade o Benfica. Benchimol (1998) informa sobre a existncia de quatro cemitrios em Belm: Cemitrio Judeu da Soledade, Cemitrio dos Ingleses, Cemitrio Judeu Antigo do Guam e Cemitrio Judeu Novo do Guam. Apesar de no ser extremamente religi