Utopia da Comunicação

4
Teorias e Modelos da Comunicação A Utopia da Comunicação… como resposta aos problemas da sociedade A ideia de uma sociedade de comunicação vem à luz em meados do século XX. De maneira ainda mais precisa, as teorias da comunicação surgem a partir de 1942, data que marca a virada definitiva do conflito mundial rumo à barbárie. Qualquer pesquisa que venha a ser feita sobre a matéria não deveria levar em conta essa aparente coincidência e dar conta de um contexto onde o vínculo social foi ameaçado em tal profundidade? Diversos indícios nos sugerem a existência de ligações subterrâneas entre a guerra que sacudiu meados do século passado, a escalada das técnicas de comunicação e a formação de uma nova utopia em torno da comunicação. Wiener insiste muito sobre o "naufrágio" que, para ele, espreitava a sociedade. A associação desses dois ápices da barbárie, que são, de um lado, os campos de concentração e, de outro, o uso da bomba atómica é, para ele, fruto de uma concepção global da sociedade que não pode conduzir senão à sua decadência. A ideia utópica de uma sociedade de comunicação ideal nascerá pois como uma tentativa de responder, a partir desse ponto de vista, a uma questão contemporânea. Isso tudo conduz a um caminho até agora pouco explorado: a noção de comunicação, nascida no interior das fronteiras estruturais do mundo científico, e que aí poderia ter ficado circunscrita, não tomando toda a sua força moderna, toda a sua carga utópica, do facto de convergir com um contexto histórico particular? Antes de examinar como os grandes temas contemporâneos da comunicação se difundiram em seguida a essa convergência, é necessário fazer um paralelo com o conteúdo que Wiener dá à nova utopia e, mais globalmente, com o contexto ao qual essas novas teorias darão ressonância. 1 Pós-graduação: Tic 2009/2010

description

Teorias e Modelos da ComunicaçãoA Utopia da Comunicação… como resposta aos problemas da sociedadeA ideia de uma sociedade de comunicação vem à luz em meados do século XX. De maneira ainda mais precisa, as teorias da comunicação surgem a partir de 1942, data que marca a virada definitiva do conflito mundial rumo à barbárie. Qualquer pesquisa que venha a ser feita sobre a matéria não deveria levar em conta essa aparente coincidência e dar conta de um contexto onde o vínculo social foi ameaçado

Transcript of Utopia da Comunicação

Page 1: Utopia da Comunicação

Teorias e Modelos da Comunicação

A Utopia da Comunicação…

como resposta aos problemas da sociedade

A ideia de uma sociedade de comunicação vem à luz em meados do século XX. De maneira ainda mais precisa, as teorias da comunicação surgem a partir de 1942, data que marca a virada definitiva do conflito mundial rumo à barbárie. Qualquer pesquisa que venha a ser feita sobre a matéria não deveria levar em conta essa aparente coincidência e dar conta de um contexto onde o vínculo social foi ameaçado em tal profundidade?

Diversos indícios nos sugerem a existência de ligações subterrâneas entre a guerra que sacudiu meados do século passado, a escalada das técnicas de comunicação e a formação de uma nova utopia em torno da comunicação.

Wiener insiste muito sobre o "naufrágio" que, para ele, espreitava a sociedade. A associação desses dois ápices da barbárie, que são, de um lado, os campos de concentração e, de outro, o uso da bomba atómica é, para ele, fruto de uma concepção global da sociedade que não pode conduzir senão à sua decadência. A ideia utópica de uma sociedade de comunicação ideal nascerá pois como uma tentativa de responder, a partir desse ponto de vista, a uma questão contemporânea.

Isso tudo conduz a um caminho até agora pouco explorado: a noção de comunicação, nascida no interior das fronteiras estruturais do mundo científico, e que aí poderia ter ficado circunscrita, não tomando toda a sua força moderna, toda a sua carga utópica, do facto de convergir com um contexto histórico particular? Antes de examinar como os grandes temas contemporâneos da comunicação se difundiram em seguida a essa convergência, é necessário fazer um paralelo com o conteúdo que Wiener dá à nova utopia e, mais globalmente, com o contexto ao qual essas novas teorias darão ressonância.

O projecto utópico que se articula em torno da comunicação é ambicioso. Desenvolve-se em três níveis: uma sociedade ideal, uma outra definição antropológica do homem e uma promoção da comunicação como valor. Esses três níveis se concentram em torno do tema do homem novo, que chamaremos de Homo communicans.

Segundo Wiener, esse homem novo corresponde a nada menos do que a tentativa de recolher, com materiais marginais, os fragmentos

1 Pós-graduação: Tic 2009/2010

Page 2: Utopia da Comunicação

Teorias e Modelos da Comunicação

que uma civilização derrotada. O Homo communicans é um ser sem interior e sem corpo, que vive numa uma sociedade sem segredo; um ser totalmente voltado para o social, que só existe através da troca e da informação, numa uma sociedade tornada transparente graças às novas "máquinas de comunicação". Essas qualidades de homem da comunicação, que contribuem para fomentar o ideal do homem moderno, surgem como alternativas à degradação do humano produzida pela tormenta do século XX.

Wiener tinha consciência de ser um pensador utópico? Provavelmente, não. Na sua concepção das coisas, ele não faz aí senão exercer sua responsabilidade científica. Entretanto sua obra ‘’The Human Use of human beings ‘’ inscreve-se muito bem na longa tradição de obras utópicas. As análises e proposições que ela contém respondem muito bem à definição dada à utopia por Lesjek Kolakowski: ou seja: "a de uma fé numa sociedade onde não apenas as fontes do mal, do conflito ou da agressão são evitadas, mas onde ainda se realiza uma reconciliação total entre o que o homem é, o que ele se torna e o que o envolve", uma crença tripla de que "o futuro, misteriosamente, já estaria lá, [...] de que nós disporíamos de um método de pensamento e acção seguro, susceptível de nos conduzir a uma sociedade sem defeitos, conflitos e insatisfações [...] e de que nós saberíamos o que o homem realmente é, em oposição ao que ele crê ser".

O programa wieneriano corresponde, quase pontualmente, a essa definição até mesmo no título ("o uso humano dos seres humanos"), que não se pode compreender fora de seu contexto utópico: o problema de todas as utopias é bem o de "fazer qualquer coisa com o homem".

Enquanto aqueles pensadores estavam mais interessados na cidade e no urbanismo enquanto meios superiores de organizar a vida e os costumes humanos, Wiener ocupa-se com uma questão mais subtil: a arquitectura do vínculo social. Para ele, a nova arquitectura deverá privilegiar, como jamais sem dúvida se fizera até então, a "transparência", palavra-chave para entender os fundamentos da sociedade moderna.

As novas concepções articulam-se em torno de dois princípios. Qualquer ser que se comunique num certo nível de complexidade é digno de ver reconhecida sua existência enquanto ser social. Em seguida, não é o corpo biológico que funda essa existência social mas, antes, a natureza "informacional" do ser em questão. De um certo modo, não há mais "ser humano" mas, ao contrário, "seres sociais", inteiramente definidos por suas capacidades de se comunicar socialmente.

2 Pós-graduação: Tic 2009/2010

Page 3: Utopia da Comunicação

Teorias e Modelos da Comunicação

A nova "humanidade" diz respeito pois a todos os homens mas pode se estender, também, a todos os seres candidatos ao estatuto de "parceiro comunicativo" integral. Vê-se bem acerca desse ponto que o novo pensamento antropológico não é um pensamento humanista e que, como tal, ele não coloca o homem no centro de todas as coisas. A "vida" não reside mais no biológico mas na "comunicação".

Portanto não se pode entender o homem senão vendo-o como um "ser comunicativo". Como ele dizia:

"Estar vivo é participar de uma corrente contínua de influências provindas do mundo exterior e de actos que agem sobre ele, no qual não representamos senão um estágio intermediário. Possuir plena consciência dos factos mundanos é participar do constante desenvolvimento do conhecimento e de interagir livremente com ele".

A comunicação introduz-nos directamente num pensamento que não se centra nas qualidades intrínsecas do homem mas na sua relação com outros "seres" (no caso, artificiais). Em resumo, "o homem wieneriano" é totalmente definido em termos de comportamento informacional, não possui interioridade e encontra-se em competição com outros seres, que arriscam vencê-lo sobre o terreno da complexidade.

"O futuro da Terra não será longo se o ser humano não se elevar totalmente ao nível de seus poderes inatos. Para nós, ser menos que um homem é ser menos que algo vivo. Aqueles que não estão totalmente vivos não vivem muito tempo, mesmo em seu mundo de sombras. Indiquei [...] que, para o homem, estar vivo equivale a participar de um vasto sistema mundial de comunicação".

3 Pós-graduação: Tic 2009/2010