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    A teoria da pessoa de Tim Ingold

    A TEORIA DA PESSOA DE TIM INGOLD: MUDANA OU

    CONTINUIDADE NAS REPRESENTAES OCIDENTAISE NOS CONCEITOS ANTROPOLGICOS?*

    Regina Coeli Machado e Silva

    Universidade Estadual do Oeste do Paran Brasil

    Resumo: O objetivo deste artigo discutir a proposta analtica de Tim Ingold para

    compreender a noo de pessoa, que pretende superar a dualidade mente/corpo. Essa

    dualidade repensada atravs da objeo ao conceito de representao coleti-

    va, em favor de uma abordagem que incorpora elementos biolgicos na explicao,

    concebendo a noo de pessoa como um aspecto da vida orgnica. O argumento aqui

    desenvolvido que a incorporao desses princpios como uma tentativa de superar

    o dualismo mente/corpo nos obriga a enfrentar de modo renovado as questes a

    colocadas, mas questiona se o resultado no seria reiterar explicaes das propostas

    analticas que quer refutar. Isto , a base epistemolgica da escola sociolgica fran-

    cesa que postula o fundamento social da cognio. Para isso, este artigo est organi-

    zado em trs partes. A primeira, introdutria, apresenta o contexto social recente e o

    desenvolvimento das cincias cognitivas como condies propiciadoras da retomada

    do tema em questo. A segunda apresenta a perspectiva analtica de Ingold para

    compreender a noo de pessoa que, ao mesmo tempo, pretende ultrapassar dualis-

    mos como natureza e cultura, mente e corpo. Finalmente, na terceira parte, discute

    as implicaes tericas e ideolgicas do argumento analtico proposto por Ingold.

    Palavras-chave: cognico, mente versus corpo, pessoa, Tim Ingold.

    Abstract: The aim of this paper is to discuss the analytical proposition of Tim Ingold

    in understanding the notion of Person who wants to overcome the duality of mind and

    * Agradeo ao Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte a leitura e as sugestes para a elaborao deste artigo,como tambm agradeo a um leitor annimo, parecerista desta revista, pelas observaes atentas e pro-

    veitosas, que muito me beneficiaram na reviso do mesmo.

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    body. This duality is rethought through the objection to the concept of collective

    representation, in favor of an approach that incorporates biological principles in ex-

    plaining, to conceive the person as an aspect of organic life in general. The argumentdeveloped here is that the incorporation of these principles as an attempt to overcome

    the mind / body dualism forces us to confront the issues in a new way. And it also

    questions whether the result would not renew analytical explanations that he wants to

    refute. It means: the epistemological basis of the french sociological school in relation

    to the postulate of the social foundation of cognition. This article is organized into

    three parts. Thefirst, introductory, presents the social context and the recent develop-

    ment of the Cognitive Sciences conditions in the resumption of the theme. The second

    part presents the analytical perspective of Ingold understanding the notion of Person

    that intends to overcome dualisms such as nature and culture, mind and body. Finally,

    the third part, discusses the theoretical and ideological implications of the analytical

    argument proposed by Ingold.

    Keywords: cognition, mind versus body, person, Tim Ingold.

    Introduo

    Parte de um debate desenvolvido na antropologia contempornea, cen-trado em fundamentos tericos de diferentes questes analticas que se des-dobram a partir das relaes entre natureza e cultura, o ensaio de Tim Ingold(1991)Become persons: consciousness and sociality in human evolution estinserido em uma teorizao mais ampla e sistmica, cuja especificidade pressupor uma totalidade indivisvel entre organismo e ambiente. Nela es-to desenvolvidos desafios direcionados antropologia cultural e cincia

    biolgica, pois concebe um mtuo envolvimento entre cultura e natureza eentre pessoas e organismos que, em sinergia, do lugar ao e conscinciadentro de um processo contnuo da vida (Ingold, 1990, 1991, 1994, 2002a).Embora esse ensaio seja de 1991, artigos posteriores retomam, enfocandosob outros ngulos e temas, desdobramentos do conceito de organismo/pes-soa, refinando-o por meio de uma reflexo que o articula ao ambiente. Nessaarticulao, a centralidade da habilidade prtica como um modus operandido organismo humano um importante interesse analtico de Ingold, evi-

    denciando a indissociabilidade mente/corpo, visvel nos estudos da ao e da

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    percepo, dos sentidos, da linguagem, da tecnologia e da arte, para compre-enso das formas de engajamento e de desenvolvimento no mundo (Ingold,

    2002a, p. 289-419, 2004).O ensaio Become persons consiste em uma disposio de questionar a

    especificidade ontolgica do social, fundamento epistemolgico do pensa-mento sociolgico tradicional. Em seus pressupostos, se ope frontalmente ideia de que a origem do pensamento lgico, das classificaes, das categoriase das representaes seja constituda social e historicamente, pretendendo as-sim tanto evidenciar quanto resolver os resduos inexplicveis deixados pelateoria sociolgica da cognio.1 Ingold (2003, p. 186) explora as implicaes

    do paradoxo mais geral que repousa no corao do pensamento ocidental,que no tem nenhuma forma de compreender os seres humanos no mundo,exceto por tir-los fora dele. Para o autor, as capacidades de pensar e agirsurgem como propriedades emergentes de todo um sistema total de desen-volvimento constitudo por meio da disposio da pessoa para estar, desde oprincpio, dentro de um campo de relacionamentos com o mundo e com outraspessoas (Ingold, 2003, p. 20). Para a antropologia, especialmente a que se filia tradio sociolgica francesa inaugurada por Durkheim, a inseparabilidadeentre a cognio e as condies sociais que a tornam possvel sempre foi umadas preocupaes nucleares, at mesmo quando as origens do pensamentointelectual foram colocadas como ponto de chegada, a exemplo das obras deClaude Lvi-Strauss (1997). Desse modo, poderamos sugerir que qualquerempreendimento antropolgico traz necessariamente consigo uma sociologiado conhecimento duplicada, pois supe tanto a elaborao de uma epistemolo-gia derivada da compreenso de como os fenmenos cognitivos so possveise inseparveis dos seus objetos quanto uma reflexo sobre seus prprios fun-damentos, mesmo quando as opes tericas so divergentes, como no artigo

    aqui proposto. Essas divergncias, entre a proposta analtica de Ingold e ainaugurada por Durkheim, no so, portanto, vistas apenas como divergnciasentre posies individuais ou entre tradies toricas. Elas so parte de umdesenvolvimento mais amplo na antropologia contempornea, comprometi-do com a relativizao de seus prprios fundamentos, no qual o primeiro se

    1 Trata-se do postulado adotado pelos fundadores da sociologia, sobre a natureza social e histrica do

    pensamento, base constituidora das cincias sociais no final do sculo XIX.

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    insere e dialoga ao retomar inquietaes do segundo.2 Por essa razo, o objeti-vo aqui refletir sobre as implicaes toricas envolvidas na compreenso do

    organismo/pessoa da recente proposta analtica de Ingold, refletindo tambmsobre seu posicionamento na tenso universalismo/racionalismo versus singu-larismo romntico que caracteriza todo empreendimento antropolgico.

    evidente que estamos a no horizonte amplo da cultura ocidental,noo que vem sendo cada vez mais problematizada pela antropologia, jun-tamente com a cincia3 em geral e, particularmente, com as cincias hu-manas. Bruno Latour (1994) tambm expressa essa problematizao atravsde uma crtica mais geral ao que ele denominou as Duas Grandes Divises.

    Segundo este autor, a antropologia foi constituda pelos modernos ocidentaispara compreender aqueles que no o eram, tendo interiorizado, em suas ques-tes, em seus conceitos e em suas prticas, esta diviso entre ns e eles. Taldiviso, naturalizada como diferena, foi elevada a um princpio fundador dasociologia do conhecimento, aparecendo em dois nveis. O primeiro nvel des-sa partilha, externo, corresponde diviso entre Ns (ocidentais) e Eles (noocidentais) e o segundo, interno, a partio entre a natureza e a cultura doNs e a imbricao cultura e natureza do Eles (Latour, 1994, p. 98).

    nos desdobramentos dessa crtica geral desenvolvida na antropologia,externa e internamente, que se insere a crtica de Tim Ingold (1990, 1991, 1994,2002b) aos antroplogos, pois ele pretende romper com os modelos cannicosde explicao legados por Marcel Mauss e mile Durkheim, em diferentesplanos de anlise epistemolgico e terico-metodolgico. Segundo Ingold,os antroplogos esto preparados para admitir que a diviso entre natureza ecultura produto de uma construo cultural, mas no esto preparados paraver que suas prprias noes descansam precisamente nessa mesma funda-o ontolgica. Assim, prossegue ele, a confuso ameaa dissolver o argu-

    mento inteiro em uma infinita regresso se as categorias opostas de naturezae cultura so elas mesmas construes culturais, assim deve ser a cultura que

    2 O autor faz a crtica no somente a diversas filiaes da tradio antropolgica, mas s abordagensda biologia neodarwinista. Ele prope uma abordagem relacional para a antropologia, incorporando abiologia de desenvolvimento (de Oyama), a psicologia ecolgica (de Gibson) e a fenomenologia (deMerleau-Ponty). Essas apropriaes so desenvolvidas a partir da reformulao e da problematizao deoutras contribuies antropolgicas, como as de Bateson e de Bourdieu (Ingold, 2002a, p. 3-7, 2002b).

    3 Vale lembrar aqui as profundas implicaes do advento da cincia como um fenmeno ocidental, apon-

    tadas pela literatura antropolgica e sociolgica clssicas.

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    as construiu como opostas. , portanto, uma iluso, segundo Ingold (1991,p. 362, traduo minha), supor que consideraes no ocidentais e ocidentais

    possam ser comparadas em termos de nveis, como construes alternadasda realidade, pois a primazia ontolgica das contribuies ocidentais osuposto da cultura versus natureza, mente versus corpo est implcita emtodo o projeto que os rene como objeto para comparao. Isso resulta emuma concepo antropocntrica da humanidade, dualista, que a v em partenatureza, em parte cultura (Ingold, 1994).

    As razes para essa crtica so atribudas, s vezes, a uma autorreflexomais radical da antropologia em sua volta para casa,4 mas tambm se ins-

    crevem em um contexto de questes surgidas bem recentemente, propiciadaspelo encontro das cincias da informao e da inteligncia artificial com ascincias fsico-qumicas e biolgicas, formando um conjunto de disciplinasdedicadas s questes do conhecimento (Atlan, 1998). Esse empreendimento,que passou a ser denominado mais amplamente como cincias cognitivas,deixou filosofia as especulaes sobre o conhecimento e passou a dar lugars experimentaes, utilizando processos computacionais para tentar simularo que ocorre na mente/crebro durante a atividade cognitiva. Mesmo partindode estudos dos processos gerais que regem as atividades parciais do tratamen-to da informao (percepo, transformao, armazenamento, recuperao eutilizao) ou simulando os processos mentais, o que subjaz aos modelos te-ricos das cincias cognitivas a tentativa de compreender as representaesmentais. De maneira complementar, as representaes ou os fenmenos men-tais so objeto da biologia gentica e molecular (Searle, 1992, 1998), assimcomo da neurobiologia (Damsio, 1995).5

    Todo esse contexto afeta, em vrias direes, a base epistemolgicada antropologia e aparece em vrias discusses contemporneas que vm

    4 Essa volta para casa faz parte de um amplo movimento de crtica dentro da antropologia, induzido pormudanas no contexto histrico e social, tais como a reestruturao das relaes entre as naes ps-colonialistas. Esse movimento, presente na Inglaterra, nos EUA e na Frana, questionava as noes desubjetividade e racionalidade, buscava um realinhamento da assimetria verificada entre sujeito e objeto,bem como alargava seus interesses de investigaes atravs de um deslocamento de seus temas e objetos(Latour, 1994; Sangren, 1988).

    5 Em dois ensaios publicados recentemente no Brasil, Geertz (2001) expe a proliferao de teorias e m-todos que deu origem ao que ele denominou revoluo cognitiva e seus desdobramentos na antropolo-gia em torno das questes que tentam resolver as dificuldades envolvidas na compreenso das diferentes

    equaes dadas para a relao mente x cultura e sua polarizao, como expomos aqui.

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    colocando sob suspeita a determinao social e unvoca entre representaoe cognio. Como afirma Sperber (1992a), o ponto de partida e o pivotdas

    cincias cognitivas so as tentativas de dar uma resposta nova ao velho pro-blema das relaes entre corpo e alma, discusso retomada pela descobertalgica dos dispositivos de tratamento da informao, que permitiriam compre-ender como uma matria pode pensar.6 Assim, alguns autores (Block, 1989;Ingold, 1990, 1991; Sperber, 1992a) vm apontando o quanto h de obscuroe no analisvel na noo de representao coletiva, tomada, segundoeles, como um dado desde Durkheim. As sadas desta nvoa ontolgica,na expresso de Sperber, desembocam no problema de base da antropologia,

    a cognio, e esse problema pode ser visualizado por meio de dois polos ex-tremos e antagnicos, embora haja diversas posies entre eles: de um lado,o universalismo acessvel pelos dispositivos mentais (Block, 1989; Sperber,1992a) e, de outro, a submisso/negao desses dispositivos a recortes diver-sos de singularizao e atualizao atravs de noes como experincia e en-gajamento no mundo (ver Ingold, 1991, 2002b). Entre esses polos extremos,na tenso estruturante e inescapvel que caracteriza todo empreendimento an-tropolgico, h diversas formulaes elaboradas com roupagens empiristas.

    justamente sobre o segundo polo que este artigo se concentra, tendocomo tema principal discutir a proposta analtica de Ingold: superar o dua-lismo mente/corpo pelo postulado de que h um contnuo entre a cultura e anatureza pelo vis da biologia. O argumento que pretendo desenvolver que oestudo da cognio incorporando princpios explicativos no inteiramente so-ciolgicos a base biolgica do organismo e os estados mentais subjetivos daderivados no chega a abalar a base epistemolgica da antropologia clssica.Ao contrrio, pelo prprio movimento que supe a adoo de uma perspectivaantropo-lgica, a ideia deste artigo mostrar que os esforos analticos de

    Ingold para superar a especificidade ontolgica do social na compreenso damente e da cognio deixam entrever os fundamentos que quer negar, sendo

    6 A retomada dessa velha discusso, segundo Sperber (1992a), no foi desenvolvida em torno de umadescoberta emprica, nem engendrada por uma descoberta maior e, muito menos, por um mtodo.Sublinhando que a metodologia das cincias cognitivas ecltica, este autor afirma que a nica novi-dade importante que ela comporta a utilizao das simulaes dos computadores. Entre seus efeitosimportantes Sperber destaca a reintroduo do estudo dos fenmenos mentais, que se desdobrou em ummaterialismo maximalista, exemplificado pela neurobiologia, e em um materialismo minimalista,

    que tenta demonstrar como um processo mental pode ser realizado materialmente.

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    reintroduzidos em sua anlise, especialmente quando demonstra o processode tonar-se pessoa como um processo integral de tornar-se um organismo.

    Certamente no podemos desconsiderar essas formulaes que nos obrigama retomar questes conhecidas e a enfrent-las, com nimo renovado, sobre-tudo diante desta possibilidade, aberta por Ingold, de pensar a antropologiacomo uma espcie de subrea da biologia. Nesse caso, a biologia que procuradesvendar os processos de crescimento e amadurecimento que do origems formas e s capacidades dos organismos no como meras expresses dedesenhos ou modelos que j foram estabelecidos por uma seleo natural eque so transmitidos a cada organismo com seu complemento de genes

    no momento da concepo. Como Ingold argumenta, essa biologia concebeas caractersticas do organismo no como expressas, mas geradas no cursodo desenvolvimento, surgindo como propriedades emergentes dos campos derelacionamento estabelecidos por sua presena e atividade em um ambienteparticular. essa biologia que ajuda Ingold a sustentar o ponto de vista doorganismo/pessoa crescendo e se desenvolvendo em um ambiente propiciadopelo trabalho e atividade e presena dos outros. Tal biologia aproxima-se dapsicologia ecolgica, que estuda a percepo, pois ambas tomam como pon-to de partida o desenvolvimento do organismo/pessoa no ambiente. Trata-se,segundo Ingold (2004, p. 220, traduo minha, grifo do autor), de ofereceruma nova forma de pensamento sobre seres humanos e seu lugar no mun-do, centrado nos processos de desenvolvimento e nas propriedades dinmicasde campos relacionais que poder inaugurar uma nova era da antropologiacomo uma cincia do engajamento no mundo relacional.7

    Tornar-se pessoa como um processo integral de tornar-se um organismo

    com o objetivo de remover os resduos que teriam sido deixados pelafundao ontolgica da lgica conhecida como ocidental (Ingold, 1991,p. 356, traduo minha) que separa natureza e cultura e outras dicotomias

    7 No original, a genuine new way of thinking about human beings and their place in the world, centredon process of development and the dynamic properties of relacional fields, that not only promises a newreintegration of social and biological anthropology, but also sets a radical evolucionary agenda for thetwenty-first century. It will, I hope, inaugurate the coming-of-age of anthropology as a science of enga-

    gement in the relational world.

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    que lhes so subjacentes, como as que separam corpo/mente, humano/no hu-mano e organismo/pessoa, presentes no pensamento antropolgico que Tim

    Ingold (2002b) direciona sua crtica tanto aos bilogos neodarwinistas quantoaos antroplogos filiados tradio torica durkheimiana. Para os primeiros,prossegue ele, que veem os padres de interao, cooperao e comunicaoentre indivduos como expresses fenotpicas de um cdigo gentico, disposi-es herdadas no curso da filogenia evolucionista, a sociedade seria mantidae trazida biologicamente dentro de cada indivduo. Para os segundos, que re-jeitam os apelos aos imperativos biolgicos, as relaes sociais pressupema emergncia de regras dentro de um modelo de instituies, constituindo um

    fenmeno sociocultural (Ingold, 2002b). Essa separao que subscreve, naacademia, a diviso de trabalho entre humanidades e cincias naturais e,dentro da antropologia, a diviso entre os extremos biolgicos e sociocultu-rais repousa na distino entre os domnios subjetivos (o mundo interno damente e do significado) e os domnios objetivos (o mundo externo da matriae da substncia). A consequncia dessa separao uma posio ortodoxa,identificada por Ingold em Sahlins, que coloca a essncia humana em umpedestal no qual a natureza pode ser apropriada conceitualmente e mesmo

    transformada fisicamente de acordo com os prprios modelos de significa-dos dos possuidores dessa existncia humana (Ingold, 1991). Desse modo,quando se pensa no conceito de pessoa, h, pelo menos, trs principais con-sequncias dessa fundao ontolgica, segundo Ingold. A primeira que,desde que a distintividade repousa na parte em que o ser humano ultrapassao organismo, o organismo humano parece ser essencialmente indiferenciadodos organismos de outras espcies. A segunda consequncia que essa sepa-rao supe o desenvolvimento da pessoa como decorrente do processo de

    socializao ou enculturao, processo pelo qual a pessoa alcana sua huma-nidade. Finalmente, a terceira, que os organismos (humano e no humano)so especificados pela sua constituio dos genes. Para o no humano, estaltima especificao realiza o conjunto de suas possibilidades de desenvol-vimento, e para o ser humano, (parte organismo, parte pessoa), estabelecepr-requisitos para aquisio de uma personalidade do tipo programa paraaprender (Ingold, 1991, p. 357-358).

    Contrapondo-se investigao da gnese moral da noo de pessoa

    elaborada por Marcel Mauss (2003b), Ingold procura demonstrar como esta

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    pressuposio toma oselfcomo um locus de experincia individual cuja for-ma e significado so dados pela estrutura moral da sociedade, dando lugar

    distino entreselfindividual e ser social, entre substncia e experincia. Paraele, essa distino que fornece o argumento do projeto antropolgico paracomparar a construo cultural ocidental e no ocidental da realidade psico-lgica. A concluso inequvoca desse projeto, para Ingold, que o supostoda construo cultural aparece como sua pr-condio. Assim, essa noo depessoa traz consigo uma dicotomia, pois supe a noo de pessoa pertencente classe genrica como um fato universal da natureza humana e a noodoselfculturalmente percebido. Se tal dicotomia construda culturalmente,como quer o projeto antropolgico, ela deixa um resduo irredutvel, pois su-pe considerar a dicotomia derivada de uma dicotomia anterior e, assim, adinfinitum. Segundo Ingold, o resduo torna-se visvel pela ideia de que devehaver um domnio verdadeiramente biolgico, distinto do culturalmentepercebido, visibilidade que no resolve o problema, mas, ao contrrio, s con-tribui para manter essa incoerncia solipsstica.

    As concluses possveis da reproduo desse dualismo ontolgico, almda regresso infinita anteriormente apontada, so previsveis, mantendo a co-erncia dos argumentos apresentados por Ingold. Uma delas, segundo ele, simplesmente aceitar esse dilema bsico do organismo/pessoa como uni-versal, observando as diferenas entre os ocidentais e no ocidentais comoculturalmente construdas. Assim, ou haveria concordncia entre organismo/pessoa como culturalmente percebidos, ou oselfverdadeiramente biolgicoseria deixado fora da equao. S oselfculturalmente percebido seria relevan-te (Ingold, 1991, p. 366).

    Para Ingold (1991), colocar esse dualismo em questo considerar a pes-soa tanto como organismo comoself. Sem deixar o organismo para os bilo-gos e a psicologia para os psiclogos, como ele pretende, a ideia mostrar que

    [] a individualidade no se inscreve mais noselfdo que no organismo. Maisque isso, a pessoa oself, no no sentido do privado, do ntimo, fechado em simesmo, confrontado com o mundo externo, pblico, da sociedade e de seus re-lacionamentos, mas no sentido de sua posio como umfocus de agenciamentoe experincia dentro de um campo social relacional []. (Ingold, 1991, p. 367,

    traduo minha).

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    E isso atravs de seu engajamento direto no mundo das pessoas e dosrelacionamentos reais.8 O self ento equivalente ao que, segundo Ingold

    (1991), Jean Lave denomina deperson-acting. Isto , oself muito diferentedo significado da pessoa como parte de um sistema compreensivo de repre-sentaes mentais construdas do mundo social, e da ideia de que as pessoaspodem consultar/observar tais representaes internalizadas e serem autoresde sua prpria ao, interpretando as aes dos outros como indivduos auto-contidos. Por essa razo, tambm no se pode considerar o desenvolvimentoda pessoa como resultante de um processo de socializao. Ao contrrio, essedesenvolvimento para os organismos humanos, assim como para outros orga-

    nismos, a presena e contribuio de outros indivduos

    vital para o desenvolvimento ontogentico normal tanto nos perodos pr-natalcomo ps-natal dos ciclos de vida. Consequentemente, o processo de tornar-seuma pessoa o desenvolvimento dos poderes da conscincia, da autoconscin-cia e intencionalidade pelos quais cada um de ns capaz de ter um papel ativoe responsivo na formao da nossa vida e de outros parte de um processo

    biolgico de tornar-se um organismo. Este processo no interrompido em umponto qualquer ou quando se atinge a maturidade. Ao contrrio, ele permanece

    ao longo de todo curso da vida, sendo verdadeiramente a vida. (Ingold, 1991,p. 369, traduo minha).

    Se os poderes da conscincia so parte de um processo biolgico, no hsustentao, na prtica, para a distino organismo/pessoa. Assim, por exem-plo, a capacidade para falar inata, intrnseca ao organismo humano, mas alinguagem particular de uma pessoa tem sua fonte na comunidade social eseu lugar na matriz relacional. Do mesmo modo, se pode ver que uma sriede aptides humanas incorporada e no retirada de um sistema internaliza-

    do de regras mentais e representaes (Ingold, 1991, 1993, 1994). A prpriaindividualidade emerge dentro de um desenvolvimento do organismo humanoem seu ambiente, no qual organismo e ambiente so biolgicos. Interessante

    8 For what non-western peoples are telling us, in their thought and practice, is that neither as organismsnor as selves do humans come into being in advance of their entry into social relationships. Like orga-nisms, selves become, and they do so within a matrix of relations with others. The unfolding of theserelations in the process of social life is also theirenfolding within the selves that are constituted withinthis process, in their specific structures of awareness and response strutures which are, at the same time,

    embodiments of personal identity. (Ingold, 1990, p. 222, 1986, p. 207 apud Ingold, 1991, p. 367).

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    mencionar que, para Ingold (1993, 2006), a relao entre organismo e ambien-te uma propriedade emergente do processo de desenvolvimento da evoluo,

    de modo que o desenvolvimento do organismo tambm o desenvolvimentode um ambiente para o organismo.

    Se tornar-se pessoa um processo integral de se tornar um organismo,continua Ingold (1991, p. 372), ns no poderamos mais ver o desenvolvi-mento da pessoa como resultante de um processo de socializao. Essa arazo pela qual a ideia de aprender adquire um papel diferente, pois o sig-nificado do mundo no mais recebido e nem depende da aquisio deum esquema construdo. Aprender e perceber understanding in pratice,

    conforme expresso de Lave (1990, p. 310 apud Ingold, 1993, p. 463-464),que inseparvel do fazer, e ambos esto embebidos no contexto de um enga-jamento prtico no mundo e com outros. Em outras palavras, aprender umaeducao da ateno, definio de Gibson (1979, p. 254 apud Ingold, 1991,p. 371; Ingold, 2002b), um problema no de enculturao, mas de se tor-nar apto, experiente (enskillment) (Ingold, 1991, p. 371).

    Um dos exemplos desse tipo de aprendizagem dado por Ingold aocomparar a aquisio da linguagem com o do desenvolvimento de aptidesperceptivas. Enquanto a aquisio da linguagem vista como inseparvel dodesenvolvimento dos poderes da fala, o desenvolvimento de aptides percep-tivas que ns aprendemos para conhecer os outros se desenvolve estando aten-tos para aquelas tramas sutis que revelam as nuances do nosso relacionamentocom eles. O padro de relaes sociais da pessoa torna-se, assim, incorporadona estrutura de seu sistema perceptivo, como uma sedimentao de uma hist-ria passada, de envolvimento interativo mtuo e direto.

    Desse modo, as habilidades ou aptides para a ao, como caminhar,falar, ouvir e tocar instrumentos musicais emergem dentro do processo de

    desenvolvimento do organismo/pessoa,9 processo que longe de construir oindivduo particular, inicialmente fechado para o mundo, em um conjunto derelacionamentos baseados nos membros de uma coletividade inclusiva tem,

    9 Rather, the abilities both to speak and to read and write emerge within a continuous process of bodilymodification, involving a fine-tuning of vocal-auditory and manual-visual skills together with corres-ponding anatomical changes in the brain, and taking place within the contexts of the learners engage-ment with other persons and diverse objects in his or her environment. Both capacities, in short, are the

    properties of developmental systems. (Ingold, 2002g, p. 377).

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    como pr-condio, a imerso individual, no momento exato do nascimento(e no antes) em um campo social relacional.

    Um conceito importante de Ingold que esclarece a ideia de que tornar-se pessoa um processo integral de se tornar um organismo a socialidade.Ela entendida como imanente ao campo de relaes dentro do qual cadavida humana inaugurada e mediante a qual procura-se completar; dessemodo, a socialidade o potencial gerador de um campo relacional, na qualtodo ser humano cresce (Ingold, 2003, p. 20) e tem como premissa o ativoengajamento do ser no mundo, mais que nossa separao dele. Dentro domovimento da vida social, nos contextos de entrosamentos prticos dos seres

    humanos uns com os outros, e com os seus ambientes no humanos, queformas institucionais so geradas inclusive aquelas formas que usam o nomede sociedade. (Ingold, 2003, p. 127-128; ver tambm Ingold, 2002d; 2002e).Assim, toda criana vem a ser situada dentro desse campo relacional, cresce,e desenvolve suas prprias estruturas de conscincia e padres de resposta,emergindo, assim, como um agente autnomo, com a capacidade de iniciarfuturos relacionamentos. Tornar-se uma pessoa , ento, reunir relaes so-ciais na estrutura de conscincia.10 Ao recusar o argumento da socializao,por entend-la como separada da aprendizagem da vida social, Ingold adotao conceito de socialidade como uma qualidade constitutiva de relacionamen-tos, que est nas e atravs das relaes que pessoas vm mantendo em suasatividades e na vida social. Persons, then, are nodes in this unfolding, andsociality is the generative potential of the relational field in which they aresituated and which is constituted and reconstituted through their activities.(Ingold, 1991, p. 372). Os relacionamentos, por sua vez, constituem o movi-mento temporal que circunscreve as interaes sucessivas como momentos deum processo simples. Alm do mais, como as relaes sociais se transformam

    no curso da ao social,

    10 Em diversos ensaios Ingold exemplifica esse processo. Ele escreve que, quando era criana, seu pai, que um botnico, costumava lev-lo para passear no campo, indicando a forma pela qual todas as plantas efungos especialmente os fungos cresciam esparsos. s vezes, o pai o convidava para cheir-los, oupara experimentar seus sabores caractersticos. A maneira do pai ensin-lo era mostrando-lhe as coisas.Se ele deixava de perceb-las, o pai dirigia sua ateno para reconhecer os sinais, cheiros e sabores e,dessa forma, o autor descobria por si mesmo muito do que o pai sabia. Como antroplogo, ele reconhe-ceu a mesma experincia na leitura de etnografias sobre o processo de aprendizagem e de conhecimentode geraes nas sociedades aborgenes australianas (Ingold, 2002b). O mesmo acontece com o aprendiz

    de violoncelo, como com um jogador de xadrez que, supostamente, usa de imaginao (Ingold, 1993).

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    elas so encapsuladas na conscincia da pessoa, que a estrutura do ser. A co-nexo entre as relaes sociais e a conscincia deve ento ser compreendida em

    termos de abertura e fechamento mais do que como relaes de causa e efeito e em termos de processos mais do que relaes entre entidades separadas.(Ingold, 1991, p. 373, traduo minha).

    Esta perspectiva sugere que possvel que as pessoas se engajem umascom as outras na base da experincia perceptiva formada antes da objetivaoda experincia em termos das representaes coletivas codificadas pela lin-guagem e validadas pelo acordo verbal (Ingold, 1991, p. 373, traduo mi-nha). Ento, a socialidade possvel na ausncia da linguagem e de qualquertipo de autoconscincia que dependa da linguagem. Mais claramente, ela uma dimenso crucial da vida social humana, est ligada ao que pode ser cha-mado de orientao normativa da conduta, segundo expresso de Hallowell(1960, p. 346 apud Ingold, 1991, p. 373) e sua regulao e julgamento sedo em termos de padres ideais comumente aceitos. A vida social pode sercomparada a uma atividade artesanal (craft skill), pois ambas envolvem enga-jamento ativo com o material, em um caso, e com pessoas, no outro; ambasdependem de uma sintonia fina com as habilidades perceptuais (Ingold, 1991,

    p. 373-374). Ento, a vida social no simples processo de transcrever a for-ma ideal de relacionamento na realidade comportamental. As duas coisas vojuntas a ao intencional e a monitorao intencional da ao. Isso supetanto o engajamento direto de pessoas com outros agentes dotados de inteno(em contextos de ao onde relacionamentos sociais so gerados e reprodu-zidos), quanto a representao discursiva e a interpretao da experincia deengajamento para si e para os outros (Ingold, 1991).

    O conceito-chave dessa proposta analtica que permite a Ingold vislum-

    brar a superao da dualidade entre organismo e pessoa e a oposio entreindivduo e sociedade o de engagement, espcie de princpio operador quedissolve a oposio entre natureza e cultura e seu derivado, a dualidade or-ganismo/pessoa. Isso possvel em funo da adoo da teoria da evoluo,pensada em termos de potencial transformativo do campo relacional dentrodo qual o desenvolvimento ocorre. Assim, ser uma pessoa um aspecto doser um organismo. Central para essa concepo que o organismo/pessoa(como um agente criativo e intencional, vindo a ser, e mantendo o desenvol-

    vimento dentro de um contexto de relaes com outros organismos/pessoas

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    atravs de suas aes) contribui para o contexto de desenvolvimento daquelesoutros com os quais se relaciona. O comportamento social, ento, no ser

    visto como causado por genes, nem pela cultura, mas pelo agenciamento doorganismo todo em seu ambiente. Portanto, para Ingold (1991, 1993, 1994),essa nova compreenso da evoluo supe que a causao estaria no processoevolucionrio imanente. Sob esse prisma,

    a evoluo o processo no qual os organismos se tornam seres com suas formase capacidades particulares e, mediante suas aes ambientalmente situadas, es-tabelecem condies de desenvolvimento para seus sucessores. Seres humanos

    so to aprisionados neste processo quanto os organismos humanos. Crianas,assim como os jovens de muitas outras espcies, crescem em ambientes provi-dos pelas geraes anteriores, e assim como fazem, carregam as formas de seusmodos de vida em seus corpos nas habilidades especficas, sensibilidades edisposies. (Ingold, 2003, p. 20).

    Enquanto seres no mundo, as atividades de seres humanos fazem partee so parte da autotransformao do mundo. Desse modo, considerando oorganismo/pessoa como ponto de partida, possvel tambm dissolver a dico-

    tomia entre evoluo e histria, pois essa passa a ser vista como um exemploespecfico de um processo que est prosseguindo no mundo orgnico.

    Representaes ocidentais e conceitos antropolgicos na teoria da pessoa

    Como se pode observar nas sees acima, Ingold retoma, por outra via,uma das inquietaes que estiveram na base da escola sociolgica francesaque, justamente, demarcou seu campo de saber, afirmando, como Durkheim e

    Mauss o fizeram, a origem histrica e coletiva das categorias do entendimen-to ou das representaes coletivas. Basta apenas lembrar que as proposiesanalticas de Durkheim, voltadas para a explicao da sociedade, trouxeramconsigo a prpria fundao epistemolgica da disciplina, explorando a fecun-didade de todo empreendimento antropolgico que fosse, tambm, uma so-ciologia do conhecimento ao no separar o sujeito do objeto da investigao.Sob esse prisma, os conceitos explicativos, mesmo universalizveis, podem,a rigor, ser igualmente representaes coletivas (Durkheim, 1970). Da a im-

    portncia fundamental do pensamento antropolgico relativizar a si mesmo.

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    Os paradoxos a previsveis advm da tenso constitutiva que atravessa,em vrias direes, o desafio colocado compreenso da unidade e diversida-

    de da humanidade, derivada, naquela poca, das premissas evolucionistas que,na expresso de Dumont (1985, p. 187), era uma armao provisria paraunir conjuntos distintos, antes que pudessem ser incorporados num mesmotodo. Talvez por isso, entre os corolrios que sustentavam essa ambio es-tava a busca das origens, impossveis de serem alcanadas porque beirandoo absoluto, e a curiosidade com sociedades que estariam nas extremidadesdos movimentos da evoluo, a serem explicados sociologicamente atravsdo princpio comparativo, modo de revelar o que seria comum a diferentes

    sociedades. Como exemplos paradigmticos do esforo em compreender estatenso constitutiva entre ns e eles (reaparecendo na relao entre nature-za e cultura, indivduo e sociedade, fsico e moral), pode-se apontar, em jus-taposio e no que se refere aos temas diretamente tratados por Ingold, tantoo ensaio de Durkheim (1979) sobre a educao como processo socializadorquanto o de Mauss (2003b) sobre a noo de pessoa.

    , portanto, com as referncias analticas de Durkheim e Mauss que que-ro sublinhar algumas proposies de Ingold que, a meu ver, esto inseridas naideologia moderna ocidental. Como qualquer empreendimento antropolgi-co, trata-se de um posicionamento interno essa ideologia que o autor buscaultrapassar, mas, de certa forma, est por ele condicionado. fundamentalressaltar que cada afirmao de Ingold mereceria longos comentrios, masaqui pretendo explorar, sobretudo, os principais desdobramentos trazidos dacrtica antropologia cognitivista, feita por ele. Tais desdobramentos podemser visualizados em trs nveis inseparveis de problematizao.

    O primeiro deles, mais geral, relativo prpria constituio do soloepistemolgico que d pertinncia proposta de Ingold, por um lado inserida

    na tendncia dominante da antropologia contempornea de rejeitar a perspec-tiva culturalista e reguladora da sociedade (Viveiros de Castro, 2002) e nocrescente interesse por um conjunto de temas ligados prtica, interao, experincia e performance, bem como seus correlatos, como agente, selfe ator (Ortner, 1984). Por outro, a proposio de uma teoria evolucionista,que no nem a das abordagens da cultura do ponto de vista exclusivamentebiolgico, isto , da teoria gentica da evoluo como mudana na frequnciados genes em populaes, nem das abordagens exclusivamente culturalistas,

    que desconsideram a vida orgnica e o ambiente. A teoria de Ingold (2006)

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    concebe o potencial gerador que a prpria vida orgnica, vista como ativa,desdobrando-se criativamente em um campo total de relaes no interior do

    qual os seres aparecem e tomam suas formas particulares, uns em relao aosoutros.

    O segundo nvel de problematizao, que demonstra a vulnerabilidadedessa abordagem de Ingold, a prpria concepo do fazer antropolgico,que tem implcita uma concepo geral das cincias e, correlativamente, dascincias sociais.

    O terceiro nvel de problematizao refere-se ao que est subentendi-do nessa tentativa de unificar organismo/pessoa elaborada por Ingold, prin-

    cipalmente o fato de deixar em aberto questes to nucleares para a nossacultura contempornea como a considerao da ideologia individualista e anecessidade de relativizar suas proposies no interior da mesma. Alm disso,tambm deixa em aberto outras possibilidades de singularizao, correlatas aconfiguraes de ideias-valores de contextos sociais especficos

    No deixa de ser interessante enfatizar que, para Ingold, uma das conse-quncias da dicotomia que separa mente e corpo, natureza e cultura, justa-mente uma posio ortodoxa que coloca a essncia humana em um pedestalno qual a natureza pode ser apropriada conceitualmente e mesmo transforma-da fisicamente, de acordo com os prprios modelos de significados dos pos-suidores dessa existncia humana. Pois foi justamente essa uma das principaisrazes de a biologia ter sido o ltimo domnio da vida intelectual a incorporara viso de mundo evolutiva, como apontam Lewontin e Levins (1985) isto, por causa da ameaa direta ao princpio da superioridade nica do homem.Eles tambm apontam a viso evolutiva parte essencial dos sistemas naturais como uma ideologia intrnseca a uma sociedade vista como estando em cons-tante modificao ou marcada por uma estabilidade dinmica, possibilidade

    antes inconcebvel na sociedade feudal, com suas relaes hereditrias fixase com uma viso de mundo que admitia apenas mudanas ocasionais comoresultado de redistribuies irregulares da graa divina. Paradoxalmente, ecomo que demonstrando as dificuldades de uma proposta analtica que rejeitaa preeminncia do social, importante lembrar que, dentre as cosmologiasevolutivas, a ecologia biolgica justamente a que mais prxima est da des-crio ideolgica da evoluo como um modo de organizar o conhecimentodo mundo, pela concepo do universo como estando em constante expanso,

    aumentando sua complexidade intrnseca. Essa concepo contrria da

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    gentica evolutiva, que concebe a mutao e a recombinao de genes se fa-zendo ao acaso, razo pela qual a mudana vista como oscilante, pois lenta

    durante longos perodos e rpida num perodo muito breve. Como afirmaramLewontin e Levins (1985, p. 240),

    entre todos os processos evolutivos, s a evoluo gentica das populaes e atermodinmica estatstica tm uma estrutura matemtica slida. Outros dom-nios, como por exemplo, a ecologia evolutiva, so fortemente matematizados,mas a dinmica em que suas estruturas matemticas assentam inteiramentehipottica e, por isso, as suas teorias so fices elaboradas (apesar de poderemcontar muitas verdades). Na ausncia de uma teoria exata da evoluo, as di-rees dos processos evolutivos so definidas a priori e so consequncias deorientaes ideolgicas preexistentes.

    Os autores demonstram que as concepes do universo seja em expan-so oscilante ou em estabilidade dinmica so uma espcie de espelho dasuposta evoluo da sociedade moderna.

    bem verdade que essas afirmaes de Lewontin e Levins no apenasrestituem as premissas do pensamento antropolgico, mas ajudam tambm a

    esclarecer o que est em jogo nas proposies de Ingold, atravs de questesdiferentes, embora interligadas: a primeira questo a tentativa de utilizarprincpios de uma interpretao biologizante para fundamentar tanto a basebiolgica do organismo quanto os estados mentais da derivados, pressupondoum contnuo entre homens e ambiente, e a segunda a prpria dificuldadeenvolvida, quando se trata da cultura, de definir a verdade de um fenme-no cultural independente das relaes histricas e sociais nas quais ele estinserido, mesmo considerando a pretenso do paradigma biolgico hegem-

    nico, com as conquistas do projeto do genoma humano, o refinamento dastcnicas de reproduo assistida e a possibilidade de clonagem de seres hu-manos. Como lembraram Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999), este um dos maiores equvocos das anlises sociolgicas, que compromete suasreflexes, pois encontra sua raiz em uma representao falsa da epistemologiadas cincias da natureza e da relao que essa epistemologia mantm com aepistemologia das cincias humanas, pois tende a se apropriar de uma ima-gem caricaturada das cincias da natureza. Tanto em um caso quanto noutro,

    o objeto da cincia construdo como um sistema de relaes conceituais que

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    tenta desfazer a iluso da transparncia entre o objeto da cincia e o real,imediato e percebido. O objeto s pode ser definido e construdo em funo

    de uma problemtica terica que permita submeter a uma interrogao siste-mtica os aspectos da realidade colocados em relao entre si pela questo quelhes formulada (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 1999, p. 48), formu-lao tambm feita anteriormente por Weber atravs das suas consideraesmetodolgicas, demonstrando ser possvel a superao positivista da cinciasem perder o rigor e a objetividade do conhecimento.

    Algumas consequncias tericas e metodolgicas do equvoco desses ti-pos de anlise a que se referem Bourdieu, Camboredon e Passeron ocorrem

    tambm no pensamento de Ingold. Elas so visveis, primeiro, na afirmao deque no existe natureza e cultura, mas realidade, ou de que no h modeloscognitivos sociais, mas propriedades especficas do real, o que revela a on-tologia realista que fundamenta sua abordagem. Em segundo lugar, esforosanalticos como este que tratam de temas especficos da cultura atravs datransposio do saber epistemolgico das cincias da natureza para as cinciashumanas correm o risco, como apontam Bourdieu, Chamboredon e Passeron(1999, p. 17) de aparecer sempre como uma afirmao dos direitos impres-cindveis da subjetividade, como tambm de se apresentar como expressoideolgica do individualismo, sobretudo quando consideramos as especifici-dades da relao sujeito/objeto da investigao antropolgica. Sob esse pris-ma, as anlises de Ingold seriam mais do que fices bem elaboradas, comotento mostrar a seguir.

    Um dos grandes objetivos de Ingold criticar o dualismo do pensamentoocidental, problema cuja soluo ele encaminha, em um nvel mais amplo,para a considerao da vida como um processo de epignese, que no nemtotalmente dependente dos genes, nem da cultura. Adotando uma concepo

    tanto anticognitivista quanto antirrepresentacionalista, Ingold no utiliza a no-o de cultura e, num movimento de recuo (para tentar expressar o camporelacional no ambiente como uma expresso da vida social), constri as noesde socialidade e de envolvimento como formas de entranhamento radicaldos seres no mundo, modo pelo qual tenta demonstrar a pressuposio da con-tinuidade entre humano e no humano pelo engajamento. A cultura, portanto,no seria condio da ao, e o que chamamos de variao cultural consiste,em primeiro lugar, de variaes nas habilidades (Ingold, 2002a, p. 5). Esse

    recuo aprofundado pelo autor, de modo anlogo, na tentativa de ultrapassar

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    os temas da regulao e da autoridade moral durkheimianas, como instituido-ras da vida social, para dar nfase interao, ao engajamento e experincia

    como formas de habitar o mundo. Ao invs da socializao, conceito da an-tropologia durkheimiana nuclear para a compreenso da relao entre unidadee diversidade da cultura como a educao, por exemplo, vista por Durkeim(1979) como um processo socializador , Ingold prope o conceito de sociali-dade para expressar a qualidade constitutiva de relacionamentos, que est nase atravs das relaes que as pessoas vm mantendo em suas atividades e navida social. So esses relacionamentos, entendidos como um entranhamentoprofundo da ao no tempo, que circunscrevem as interaes sucessivas como

    momentos simples e que, ao contrrio de construir o indivduo, teriam comopr-condio a imerso desse indivduo no momento exato do nascimento emum campo social relacional. A criana situada dentro desse campo cresce e de-senvolve suas prprias estruturas de conscincia e padres de respostas, emer-gindo, assim, como um agente autnomo com capacidade de iniciar outrosrelacionamentos. Transformadas no curso da ao social, essas relaes soencapsuladas na conscincia da pessoa, tornando-se a estrutura do ser.

    necessrio sublinhar aqui a experincia perceptiva como um ncleoatravs do qual as pessoas se engajam e se envolvem umas com as outras, pro-cesso que, segundo Ingold, acontece antes da objetivao da experincia emtermos de representaes coletivas codificadas pela linguagem. Trata-se de umponto fundamental na anlise de Ingold, que vai permitir pensar o organismo/pessoa como se constituindo antes da representao, pois remete ideia de quepodemos ter contato direto com o mundo atravs das percepes, que tempropriedades de desenvolvimento nos remetendo para o mundo externo. Nessestermos, perceber estar consciente do mundo como algo que se constitui de umamaneira ou de outra. Essa experincia perceptiva, que tanto da pessoa quan-

    to do organismo, advm de fatores biolgicos, como o tato, a viso, etc. (verIngold, 1991, 1993, 2002d, 2002f). Com tais argumentos, Ingold (2002c) incluia conscincia como parte da vida orgnica, imanente ao processo evolutivo.

    Esses argumentos, como se pode observar, diluem justamente aquilo quese constituiu como um objeto da escola sociolgica francesa, que precisamen-te o processo de reificao das abstraes da vida social, ou das representaescoletivas, nos termos durkheimianos. No s desconsidera as representaescoletivas, mas faz delas um obstculo epistemolgico ao conhecimento quan-

    do pressupe que h uma diferena entre o concebido e o real. Nos termos de

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    Ingold, as representaes so vistas como um resduo irredutvel, uma conse-quncia do prprio pensamento ocidental que supe a dicotomia entre fatos

    universais da natureza e fatos percebidos de formas culturalmente distintas.Cabe lembrar aqui, justamente sobre isso, que o prprio Durkheim enfatizavaa natureza especfica dos fenmenos sociais e advertia que a compreenso dosmesmos deveria ser orientada por uma conduta metodolgica que os abordassecomo coisas, estabelecendo essa advertncia como uma primeira regra do m-todo sociolgico, em 1895, pois implica admitir as reificaes das abstraesda vida social como exteriores e anteriores aos indivduos.

    Tal problema, das representaes coletivas e de sua origem, foi objeto

    de ateno especfico de Durkheim em 1889. Como parte desse esforo des-comunal para construir a cincia social como um domnio de saber diferenteda filosofia e da psicologia, ele escreveu um ensaio sobre a relao entre asrepresentaes individuais e coletivas no qual afirma:

    [] inegvel que ignoramos a forma como os movimentos podem, combinan-do-se, dar nascimento a uma representao; mas tampouco sabemos como ummovimento intermedirio pode, quando detido, transformar-se em calor e vice-versa. No entanto, a realidade dessa transformao no pode ser colocada em

    dvida. J que assim, o que existe, ento, de impossvel na primeira? Dentrode um conceito mais geral, poder-se-ia afirmar que, caso a objeo fosse vlida,chegaria a negar toda mudana, porque entre um efeito e sua causa, entre umaresultante e seus elementos, h sempre uma distncia. matria da metafsicaachar uma concepo que torne representvel esta heterogeneidade; para ns, suficiente que sua existncia no seja posta em dvida. (Durkheim, 1994, p. 45).

    Como evoquei no incio deste artigo, esse problema, que, poca,Durkheim deixou metafsica, passou a constituir o ncleo norteador das ci-

    ncias cognitivas e permanece, at hoje, quase nos mesmos termos discutidospor Durkheim. Em sua polmica com os pragmatistas, por um lado, e com ospartidrios da teoria epifenomenista, por outro, ambos reduzindo a consci-ncia a um epifenmeno da vida fsica, Durkheim recusa a concluso de queo corpo governa o esprito.11 oportuno lembrar tambm aqui como ele

    11 A ideia de pensar com o corpo e a favor dele tambm est presente em alguns filsofos da mente atu-almente, como, por exemplo, John Searle (1992, 1998), para quem a conscincia uma caracterstica

    biolgica do crebro humano e animal.

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    A teoria da pessoa de Tim Ingold

    aponta o erro dos socilogos biologistas que empregaram mal as analogias,pois eles quiseram

    [] de fato, no apenas controlar as leis da sociologia pelas da biologia, mastambm inferir as primeiras das segundas. Mas estas inferncias acabam notendo valor, porque embora as leis da vida voltem a encontrar-se na sociedade,isso ocorre sob formas novas e com caractersticas especficas que a analogiano permite conjeturar e, menos ainda, atingir, a no ser pela observao direta.(Durkheim, 1994, p. 9).

    Se para Durkheim era suficiente no colocar em dvida a existncia das

    representaes como uma sntesesui generis da vida coletiva, porque tantoas representaes individuais quanto as coletivas eram por ele consideradas denatureza diferente, tanto da soma dos indivduos, no segundo caso, quanto doscentros nervosos ou das clulas ou do crebro, no primeiro caso, mantendoentre elas uma autonomia relativa e possuindo propriedades diferentes. Assim,a mesma afirmao feita para os fatos sociais, de que eles so independentesdos indivduos e exteriores s conscincias individuais, deve ser repetida parao psquico, pois a exterioridade dos fatos psquicos em relao com as clulas

    nervosas no reconhece outra causa seno os efeitos que resultam de umasntese nova. Se o pensamento tem algo de especfico porque sua forma decompor-se no a mesma que a forma cerebral e, portanto, tem uma formade ser peculiar, uma propriedade distintiva que se volta para a vida social.Circunscrever o pensamento clula, como advertia Durkheim, seria retirarda vida mental toda a sua especificidade e retirar da sociologia o seu objetoprprio. Se assim fosse, a sociologia seria uma psicologia aplicada.

    Como se pode concluir, em termos durkheimianos, o desenvolvimentodos poderes da conscincia, da autoconscincia e da intencionalidade atra-

    vs dos quais cada um de ns capaz de ter um papel ativo e responsivo naformao da nossa conscincia e dos outros, como compreende Ingold, assu-me caractersticas representveis. Que esses poderes sejam parte do processobiolgico algo que no afetaria em nada as abordagens de Durkheim, paraquem tanto a vida coletiva quanto a vida mental do indivduo so construdasde representaes coletivas. Como Durkheim reafirmaria em 1914, a dualidademente/corpo um caso particular da diviso entre coisas sagradas e profanasque se encontrariam na base de todas as religies. O sagrado simplesmente a

    ideia coletiva que, em razo de sua origem, se representa sob a forma de foras

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    morais que dominam e mantm os indivduos. Assim, os prprios conceitosso construdos de maneira a serem universalizavis e, mesmo quando obra de

    uma personalidade, so, em parte, impessoais (Durkheim, 1978).Argumentao homloga pode ser utilizada para a ideia da conscincia

    como parte do mundo biolgico/natural, trazida pela suposio de que o orga-nismo dotado de percepo. Mesmo considerando a conscincia como partedo organismo, emergindo em um processo de desenvolvimento no espao eno tempo, tal concepo no chega a invalidar os argumentos da dualidademente/corpo da construo da pessoa como uma categoria do pensamentoocidental. Assim, querendo evitar o antropocentrismo sob a forma de precon-

    ceito da tradio ocidental, as ideias de Ingold parecem induzi-lo aos mesmospecados de que acusa os bilogos o etnocentrismo. S que se trata de umtipo de etnocentrismo expressivo do individualismo, pois a suposio de queo organismo dotado de percepo abre a possibilidade de pensar e realizara experincia no mundo a partir de cada um. A questo aqui no negar quehaja esse tipo de experincia, pois as dimenses do corpo, das emoes e dapercepo foram tambm uma preocupao dos pensadores da tradio an-tropolgica, mas adotando o postulado de pensar os fenmenos fisiolgicos epsicolgicos, simultaneamente, como primeiramente fenmenos sociais.12 O

    que desejo enfatizar nessa possibilidade estudada por Ingold que ela umaentre outras formas diferentes de atualizao do individualismo. Assim, emum mesmo movimento, ele parece, primeiro, reintroduzir a dualidade mente/corpo pela ideia de que somos organismos entre outros organismos e, segun-do, expressa uma das representaes mais comuns da ideia de tornar-se pes-soa, identificada como um agente criativo e intencionado.

    Continuidade e reiterao das representaes ocidentais?

    Esse etnocentrismo expressivo do individualismo aparece, no primeirocaso, na reintroduo da dualidade mente/corpo, visvel tanto atravs da ideiade que somos organismos, entre outros organismos, quanto atravs da imagemda conexo entre as relaes sociais e a conscincia. Tal conexo se d comoabertura e fechamento e no atravs de relaes de causa e efeito ou relaes

    12

    Ver especialmente Marcel Mauss (2003a, 2003b, 2003c), como tambm Louis Dumont (1985, 1988).

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    entre entidades como conscincia e corpo. O fato de entender essa conexocomo processo em um tipo de socialidade, que envolve um engajamento ati-

    vo com outros organismos/pessoas, reencena, portanto, a imagem do espaointerior e exterior, nos termos analisados por Norbert Elias (1994), que aju-da a esclarecer aqui o processo de individualizao no processo civilizatrio.Como demonstrou esse autor, essas imagens do espao interior e do espaoexterior so antteses que refletem valoraes que nos so familiares, emboratenham sido resultantes de uma experincia cumulativa de muitas centenas degeraes capaz de prever, refrear e controlar as foras naturais internas e ex-ternas reciprocamente. Assim, tanto o controle das foras naturais no huma-

    nas pelos seres humanos quanto o autocontrole dos seres humanos formaramum tringulo de funes interligadas que formaram esse padro bsico para aobservao das questes humanas. Elias observou ainda que, se na era mo-derna o smbolo metafsico da individualizao crescente foi a ideia do indi-vduo isolado do mundo exterior, na nossa era, na metafsica popular e atna erudita esse interior est associado ao complexo emocional que cerca apalavra natureza. Nesse caso, o ambiente, no qual se dariam as formas deengajamento organismo/pessoa na superao da dualidade entre o pensamentoe as atividades humanas de interveno no mundo, que so os instrumentos

    analticos utilizados por Ingold, eles mesmos podem ser vistos como parte daconstruo desse esquema bsico concernente autoconscincia e imagemdo homem no mundo.13

    No segundo caso, quanto ideia de tornar-se pessoa entendida comose fazendo antes do processo de representao, to biolgica quanto cultural inegvel que as concepes de Ingold no possibilitam vislumbrar outrosprocessos de individualizao, em um mesmo ou em diferentes pertencimen-tos coletivos, consequncia previsvel derivada de seus prprios princpios

    explicativos. Pensar desse modo tambm o situa em um ponto de vista in-terno ao individualismo como ideologia, como mencionado h pouco, pois

    13 Elias (1994) descreve a construo da interioridade como uma reificao decorrente de um longo pro-cesso civilizatrio, aspecto de um duplo papel das pessoas, exercido em relao a si mesmas e ao mundoem geral. Assim, a atividade de observar e pensar que peculiar ao homem, com seu concomitanteretardamento da ao, o crescente cerceamento dos impulsos emocionais e o sentimento a ele associadode ser desligado do mundo e o oposto a ele, reificaram-se na conscincia como idia de algo que podiaser localizado dentro dos seres humanos, assim como estes pareciam organismos entre organismos emsua condio de objetos observveis do pensamento (Elias, 1994, p. 91). Esse processo culminou, entre

    outras consequncias, no dualismo corpo/mente.

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    o resultado seria uma proliferao infinita de singularidades. Isso porque noprocesso de tornar-se pessoa a criana vem a ser situada dentro de um

    campo, crescendo e desenvolvendo suas prprias estruturas de conscincia ede padro de resposta, emergindo como agente autnomo com a capacida-de de iniciar relacionamentos. A singularidade da pessoa, espcie de patamarzero para inveno de cada um a cada nascimento, viria da aprendizagem eda percepo como partes constitutivas de uma aquisio de aptides atravsde uma percepo direta engajada com os outros. Esse engajamento ativo, deumas pessoas com as outras, faz da socialidade uma atividade comparada shabilidades artesanais porque depende de uma sintonia fina com as habilida-

    des perceptuais. A representao discursiva e a interpretao da experincia deengajamento, para si e para os outros, segundo Ingold, seria inseparvel dessecontexto da ao. Resulta da uma incessante inveno da vida social e da sin-gularidade da pessoa, esta ltima identificada, no por acaso, como um agen-te criativo e intencionado. Precisamente pela interdependncia do organismoe ambiente por meio de um ativo engajamento que, na introduo geral dolivro The perception of the environnent, Ingold (2002a) enfatiza o interesse emtecnologia (e na arte), em parte por sua conexo com linguagem e em partepor reconsiderar o significado dos artefatos como um index da distintividadehumana. Suas pesquisas, segundo ele, colocaram em evidncia a centralidadedas atividades prticas, que no so transmitidas de gerao a gerao, masrecriadas e incorporadas em um modus operandi do desenvolvimento do orga-nismo atravs da experincia deperformances de tarefas particulares.14

    So visveis as implicaes tericas e ideolgicas subentendidas nessesargumentos da teoria da pessoa de Ingold. A primeira delas a reiterao deum dos pressupostos da individualizao que, no problematizado, induz auma noo de pessoa vista como criando a si mesma, dotada de capacida-

    des perceptivas, aptides e possuindo capacidade ilimitada, iniciativa,criatividade e autonomia, valores estes bem pregnantes no individualismo

    14 Um dos exemplos o dos trabalhadores ferrovirios que adquirem habilidade prtica de capturar omomento certo de acelerar ou apertar os freios de um trem, julgando sua velocidade em algum trecho davia e cumprindo de forma segura o horrio, independentemente do relgio. Tal habilidade de lidar commquinas produz, portanto, a prpria identidade pessoal e individual do trabalhador. Com pressupos-tos diferentes, esse mesmo processo de engajamento de operadores industriais foi estudado por Dodier(1995), mostrando os laos criados entre humanos e vastos conjuntos de objetos articulados uns aos

    outros que constituem as redes tcnicas, envolvendo reconhecimento de si pelos outros.

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    enquanto ideologia da cultura contempornea. Essa forma de individualiza-o, remetida ao eu emprico, pode ser compreendida como resultado de

    uma noo de interioridade que derivada das concepes dos objetos e dasrelaes entre eles, tendo como referncia a experincia da percepo (propi-ciada por fatores biolgicos). Se, por um lado, essa experincia universal,15ela aparece, por outro, como ponto de partida para a educao da ateno,forma de aprendizagem que habilita socialidade, aqui comparada a uma ha-bilidade artesanal. O significado de individualidade a construdo est referidoa um tipo de vigilncia cognitiva da pessoa voltada para as situaes externasque se aproxima da forma identificada por Gauchet e Swain (1980) como

    constituindo uma despossesso subjetiva. Assim, a conscincia humana, aautoconscincia e a intencionalidade, nos termos de Ingold, parecem reunirdois movimentos simultneos: elas se tornam um mecanismo de registrar ecombinar sinais exteriores, mas, em sintonia fina com as habilidades percep-tivas, passam pela experincia individual atravs do engajamento diretono campo relacional. Essa forma de conceber a totalizao da pessoa dissol-veria a dualidade organismo/pessoa atravs dos conceitos de incorporao edo engajamento, que tambm so princpios operadores da relao organismo/pessoa com o ambiente natural. So esses conceitos que permitem a Ingoldexplicar a juno de situaes externas, ou ambiente, com a unicidade da vidade cada um. A aprendizagem assume a um significado nuclear para a com-preenso do modo pelo qual a fronteira entre a realidade externa e internaseria desfeita. O imperativo da aprendizagem seria a prpria capacidade decriao ad hoc, de experincias da individualizao. Cabe mencionar aqui ointeresse recente da antropologia cognitiva pela psicologia do desenvolvimen-to no tocante maneira pela qual a criana forma conceitos como resultado deum processo analtico pr-lingustico (Block, 1989) e em suas interaes com

    o ambiente (Lave, 1988; Toren, 1990).16 Tal teoria coerente com a ideia de

    15 A resultados aparentemente semelhantes chegaria Sperber (1992b), advindos de pressupostos tericose metodolgicos divergentes. Para ele, os dispositivos cognitivos, inatos, so tanto universais quantomodulares, pela combinao de configuraes e disposies especficas.

    16 Um das obras mais significativas sobre esse assunto a publicao do debate entre Piaget e Chomsky,resultante de um encontro realizado em 1975, que reuniu, alm de pesquisadores da lingustica, da psico-logia, e da epistemologia, outros pesquisadores da neurobiologia, da antropologia cognitiva e do domnioda inteligncia artificial. Os debates foram organizados e compilados por Massimo Piattelli-Palmerini

    (1983) e publicados no Brasil em 1983.

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    que o sistema cognitivo construdo na interao. Bourdieu (1983) tambmenfatizou essa possibilidade, mantendo, porm, a ressalva antropolgica de

    que o ambiente no qual a criana cresce , ele mesmo, organizado histrica eculturalmente.

    A segunda implicao terica e ideolgica da teoria da pessoa de Ingold o equivalente lgico implcito na anlise dessa experincia de individualiza-o. Ele aparece de forma visvel na afirmao de que tanto o processo de setornar pessoa quanto a socialidade supem um entranhamento profundo, atra-vs do engajamento, que prescindiria das representaes coletivas. No limite,o risco considerar no mais o coletivo, mas o indivduo como uma unidade

    de reproduo do social no mundo da vida,17

    invertendo assim o postulado deDurkheim de explicar a parte pelo todo.Pois justamente este o desafio proposto aos antroplogos por Dumont:

    descobrir atravs da aparente incoerncia de adotar a premissa da ideologiaindividualista para compreender a cultura contempornea a possibilidade detambm compreender, lgica e socialmente, os deslizamentos e as inversesdo individualismo em direo a diferentes retotalizaes.18 As dificuldades aenvolvidas no so simples, pois implicam adotar uma crtica lgica e socio-lgica aos postulados implcitos que sustentam essa representao da pessoacomo organismo/pessoa. Segue-se da que a crtica de Ingold noo de pes-soa construda socialmente, substituindo-a pela possibilidade de compreendera constituio da pessoa pelas caractersticas biolgicas da organismo/pessoae por seu engajamento em um campo relacional, em tudo se aproxima doconjunto daquelas propostas analticas que Duarte (1995) denomina de empi-rismo romntico.19 A nfase colocada na aprendizagem como um processo

    17 Trata-se de pressuposto semelhante ao de Beck (1992), no qual ele afirma que o processo de individua-lizao teria se tornado ele mesmo o mais avanado sistema de societalizao.

    18 Adotar a perspectiva do individualismo, sob esse prisma, implica reconhecer a tenso que vem cons-tituindo o projeto antropolgico, enfatizada por Duarte (1995, p. 11-12) a partir das contribuies deDumont: O projeto universalista racionalista a expresso gnoseolgica da ideologia central da culturaocidental moderna, o individualismo, e o contraponto romntico no seno a retraduo da percepohierrquica do mundo vazada nos termos de uma resposta ao individualismo (e nesse sentido, literalmen-te um contraponto).

    19 a nfase empirista ou nominalista na induo a partir da observao de fatos individuais concretose nas desconfiana de todos os grandes quadros ou sistemas de pensamento que ensejem o exerccio darazo dedutiva, acrescida do privilgio romntico singularidade (a unidade auto-centrada, irredutvel

    classificao generalizante(Duarte, 1995, p. 16).

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    fundamental da construo da pessoa, que faz do indivduo um indivduo daespcie humana. Para desenvolver-se como ser humano, o organismo/pes-

    soa necessita dos mecanismos biolgicos (experincia perceptiva) ligados aoaprendizado, que movimentaro seus processos de desenvolvimento em umengajamento direto com outros indivduos. Contudo, a advertncia de Ingoldpara entender a representao discursiva e a interpretao da experincia deengajamento, para si e para os outros, como condies inseparveis porqueo biolgico e o social esto juntos d lugar, como foi antes mencionado, auma das formas de individualizao, ou a um dos processos de tornar-se pes-soa, que se repete indefinidamente. Essa consequncia, porm, no poderia ser

    explorada por Ingold, preocupado em entender a conexo da conscincia comas relaes sociais como processos que se atravessam em termos de abertura efechamento, e no resultante de uma anterioridade da socializao.

    sobre este ltimo ponto que a crtica de Ingold aos supostos da funda-o ontolgica do pensamento ocidental pode ser apreendida. Isto , na impor-tncia de atentar para a necessidade de investigaes sobre o que poderamosdenominar uma antropologia da socializao e da infncia que pudesse, talvez,propiciar uma reflexo mais enriquecedora sobre a teoria social da cognio.

    Do mesmo modo, importante considerar a sua crtica dualidade organismo/pessoa como uma representao ocidental, acrescentando-se, porm, a neces-sidade de relativiz-la atravs de um controle epistemolgico rigoroso.

    Consideraes finais

    Como tentei mostrar, Ingold tenta compreender a totalidade da pessoapretendendo ultrapassar dualismos como natureza/cultura e organismo/pes-

    soa. Essa totalidade da pessoa pode ser compreendida como uma das possi-bilidades de individualizao, entre outras possveis, que identifiquei comoremetida ao eu emprico. Sob esse aspecto, suas anlises podem ser enten-didas, nos termos de Duarte (1998, p. 16), como uma expresso operacionalou metodolgica espontnea do individualismo. Essa expresso correspon-de, no nvel analtico, a um retorno do sujeito e da prtica (Gallissot, 1991;Ortner, 1984; Viveiros de Castro, 2002), prprios de algumas formulaes daantropologia contempornea, mas tambm propiciadores de um debate rico e

    instigante entre tradies e abordagens tericas diversas que, para alm das

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    posies que cada uma pode assumir, evidenciam o comprometimento coma relativizao dos seus prprios fundamentos. O desafio interpretativo liga-

    do s questes aqui levantadas permanece aberto. Uma delas seria retomar oque Mauss (2003a) definiu como fenmenos da totalidade em que o fsico, opsquico e o moral so inseparveis, fundamento que tambm permite estudara dualidade corpo/mente como um objeto que assume diferentes represen-taes, como ele evidenciou no ensaio sobre a noo de pessoa. Sob esseprisma, a prpria histria social das cincias biolgicas e da filosofia podeser ilustrativa disto.20 Os diferentes processos empricos subjacentes a essasrepresentaes so, portanto, o que se deve investigar. Um dos caminhos que

    se tem revelado frteis o da verificao das condies de possibilidade derepresentaes da pessoa que emanam dos cruzamentos, deslocamentos e so-breposies entre os diferentes modos de individualizao, ocorridos entreas extremidades dos dois polos complementares da ideologia individualista:os derivados da tradio universalista e os da romntica. Essa chave analticatem permitido acompanhar mltiplas possibilidades de atualizao da noode pessoa sob diferentes modos de interao social, em diversos domnios,com correspondentes representaes das totalidades inclusivas.21 Como vemenfatizando Duarte (1995, 1998),22 se a tenso e a interlocuo entre essasduas tradies do pensamento, expressas ao modo de um paradoxo, esto nainstaurao do pensamento antropolgico como um conhecimento diferencia-do, no h como escapar dessa tenso estruturante, condio que possibilitaesse empreendimento cognitivo.

    20

    O desenvolvimento das cincias biolgicas englobado pelo contexto sociocultural e histrico, e oexemplo mais contundente disso o modo como a histria dessas cincias atravessada pelos tabusrelacionados ao corpo. Do mesmo modo, os corpos cyborgs existem como possibilidades trazidas poruma representao dos corpos hbridos, qualificados como maleveis, flexveis e abertos. O mesmocondicionamento pode ser visto na histria da filosofia atravs das respostas variadas que foram dadasao problema bsico da epistemologia clssica sobre a oposio entre sujeito cognoscente e objetoscognoscveis descrita por Elias (1994).

    21 Essa foi a perspectiva adotada por mim em Silva (1999). Uma primeira aproximao com esses diferentesprocessos de individualizao, na arte, pode tambm ser visualizada atravs do ensaio de Merleau-Ponty(1980) sobre o processo criativo de Czanne cuja anlise muito se assemelha anlise da individuali-zao nos termos de Ingold e dos ensaios sobre Leonardo da Vinci, de Valry (1998), que tende maispara o polo da tradio iluminista, e de Freud (1987), que tende mais para a tradio romntica.

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    Ver tambm Duarte e Giumbelli (1995).

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    Recebido em: 26/10/2010

    Aprovado em: 25/02/2011