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 Trans/Form/Açã o, São Paulo, 29(2): 155-180, 2006 155 PAUL RICŒUR LEITOR DE HUSSERL 1 Marcos NALLI 2 RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em inventariar de que modo Paul Ricœur lê e se apropria de elementos da filosofia husserliana em seu projeto her- menêutico. Assim, busca-se primeiramente caracterizar em linhas gerais a his- tória da hermenêutica contemporânea. Num segundo momento, estabelece-se uma primeira delimitação da hermenêutica de Ricœur caracterizando alguns de seus problemas centrais. Por fim, num terceiro momento, procuramos observar como Ricœur retoma a filosofia husserliana para dar conta de suas próprias refle- xões hermenêuticas. PALA VRAS-CHAVE: Ricœur; Husserl; Fenomenologia; Hermenêutica; Mundo do Texto. Introdução Antes de qualquer coisa, urge precisar aqui qual é o nosso objetivo com este artigo: basicamente, consiste em inventariar de que modo Paul Ricœur lê e se apropria de elementos da filosofia hu sserliana em seu projeto hermenêutico. Obviamente, em face da exigüidad e de tempo e espaço para um trabalho mais detalhado, deteremo-nos apenas em alguns de seus arti- gos – alguns sobre sua concepção hermenêutica; outros, estudos específi- cos sobre a filosofia husserliana. Esta delimitação se faz necessária por dois 1 Nossos sincero s agra decime ntos, à Prof . a  Jeanne Marie Gagnebin, pela sua amabilidade em ler e criticar o artigo. Entretanto as limitações do texto são de nossa inteira responsabilidade. 2 Professor Adjunt o do Departame nto de Filosofia da Uni versidad e Estadual de Londrina -UEL. Ar- tigo recebido em jun/06 e aprovado para publicação em nov/06.

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Paul Ricoeur leitor de Husserl

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  • Trans/Form/Ao, So Paulo, 29(2): 155-180, 2006 155

    PAUL RIC UR LEITOR DE HUSSERL1

    Marcos NALLI2

    RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em inventariar de que modo PaulRicur l e se apropria de elementos da filosofia husserliana em seu projeto her-menutico. Assim, busca-se primeiramente caracterizar em linhas gerais a his-tria da hermenutica contempornea. Num segundo momento, estabelece-seuma primeira delimitao da hermenutica de Ricur caracterizando alguns deseus problemas centrais. Por fim, num terceiro momento, procuramos observarcomo Ricur retoma a filosofia husserliana para dar conta de suas prprias refle-xes hermenuticas.

    PALAVRAS-CHAVE: Ricur; Husserl; Fenomenologia; Hermenutica; Mundo doTexto.

    Introduo

    Antes de qualquer coisa, urge precisar aqui qual o nosso objetivocom este artigo: basicamente, consiste em inventariar de que modo PaulRicur l e se apropria de elementos da filosofia husserliana em seu projetohermenutico. Obviamente, em face da exigidade de tempo e espao paraum trabalho mais detalhado, deteremo-nos apenas em alguns de seus arti-gos alguns sobre sua concepo hermenutica; outros, estudos especfi-cos sobre a filosofia husserliana. Esta delimitao se faz necessria por dois

    1 Nossos sinceros agradecimentos, Prof.a Jeanne Marie Gagnebin, pela sua amabilidade em ler ecriticar o artigo. Entretanto as limitaes do texto so de nossa inteira responsabilidade.

    2 Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina-UEL. Ar-tigo recebido em jun/06 e aprovado para publicao em nov/06.

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    motivos bvios: primeiramente, porque a obra de Ricur, j bastante exten-sa, e suas tematizaes sobre sua concepo hermenutica ainda gera fru-tos. E em segundo lugar, porque so muitos os textos que versam explicita-mente sobre a filosofia de Edmund Husserl; para tanto, basta observar quePaul Ricur foi o tradutor e, por assim dizer, o introdutor3 das Ideen I emsolo francs; e recentemente, mais precisamente em 1986, foi publicado emlivro uma coletnea de artigos, intitulado A lcole de la Phnomnologieque, mesmo assim, no rene a totalidade dos estudos ricurianos sobreHusserl.

    Deste modo, para contemplar nosso objetivo, procuraremos primeira-mente caracterizar em linhas gerais a histria da hermenutica contempo-rnea. Num segundo momento, visaremos uma primeira delimitao dahermenutica ricuriana caracterizando alguns de seus problemas cen-trais. Por fim, num terceiro momento, procuraremos observar como Ric urretoma a filosofia husserliana para dar conta de suas prprias reflexeshermenuticas.

    Caracterizao genrica da hermenutica contempornea

    Ainda que parea razoavelmente passvel de delimitao, a hermenu-tica , em si mesma bastante problemtica. Tanto em termos conceituais,quanto nas formas que assume dentro de sua prpria histria. Se historica-mente considerarmos suas formas mais antigas, ou clssicas, o que pronta-mente encontramos um mpeto tcnico que visa solucionar um problemaque no propriamente filosfico, mas sim principalmente teolgico-religi-oso no sentido em que o fenmeno religioso ainda dizia respeito intimi-dade do ser-humano como tal, uma vez que lhe era fundamental compreen-der e interpretar os textos sagrados adequadamente sua vida. Grossomodo, isto valia tanto para interpretar os orculos gregos e latinos ,quanto as Sagradas Escrituras crists. Neste contexto, Agostinho de Hipo-na um dos casos paradigmticos (Gadamer, 1992a, p.95; Coreth, 1973,p.5ss). Ora, tais mensagens no eram claras e evidentes por si mesmas; isto, seu sentido era de difcil compreenso, carecendo de um processo de de-cifrao da o seu mpeto tcnico, com a qual a hermenutica clssica (ea hermenutica em geral) se relaciona; como Gadamer atesta:

    3 O trocadilho proposital. Ele se refere tanto ao fato de que a traduo das Ideen I ao francs foiacrescida de uma introduo bastante interessante, como ao fato de que, graas a este empreen-dimento de Ricur o pblico francs teve acesso em sua lngua a este texto de Husserl, filsofofundamental filosofia francesa do Ps-Guerra. Infelizmente, no pudemos contar com o textodesta introduo para incorpor-la a nosso estudo.

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    A hermenutica designa antes de tudo uma prxis artificial. Isto sugere comopalavra complementar a tecn. A arte de que aqui se trata a do anncio, a tradu-o, a explicao e a interpretao, e inclui obviamente a arte da compreenso quesubjaz no que se requer quando no est claro e inequvoco o sentido de algo. (Ga-damer, 1992a, p.95)

    Schleiermacher e a reabilitao filosfica da hermenutica

    Contudo, a hermenutica s vai ganhar contornos tericos mais defini-dos com Schleiermacher e seu projeto de uma hermenutica universal. Atele, especialmente na cristandade, a discusso limitava-se a resolver o pro-blema prtico e efetivo de como interpretar as passagens obscuras da Sa-grada Escritura. Com ele, porm, a hermenutica galga o estgio de umateoria da compreenso e da interpretao at ento jamais visto, e com elea hermenutica ganha estatuto filosfico (Gadamer, 1992a, p.100; 1993,p.237-252; Coreth, 1973, p.18). Vejamos um pouco mais detidamente emque consiste este projeto de uma hermenutica universal, consoante ex-posio de Gadamer.

    Diversamente de Espinosa (Gadamer, 1993, p.233s e 237), para Schlei-ermacher o problema da incompreensibilidade ganha um significado outroe universal. Primeiramente, deve-se observar que Schleiermacher estabele-ce um deslocamento daquela para a problemtica do mal-entendido. Aquesto do mal-entendido obriga uma interpenetrao entre interpretaoe compreenso de tal forma que aquela perde seu estatuto pedaggico parase restringir a um problema de compreenso. Mas a compreenso no umprocesso que se d desregradamente, cujo mecanismo automtico eimediato donde, Schleiermacher exige que se desenvolva um cnon regu-lativo do compreender, uma verdadeira preceptiva do compreender comvistas a evitar o mal-entendido. O mal-entendido, e no o obscuro ou o mis-trio, o que determina o incompreensvel. Este no portanto o que nopode ser compreendido, mas o que num processo comunicativo no tevexito. Estas regras hermenuticas, estas regras da arte de evitar o mal-en-tendido (Schleiermacher; citado por Gadamer, 1993, p.238) so de duas or-dens: regras gramaticais e regras psicolgicas. Gadamer se detm apenasem considerar estas ltimas em sua exposio, para poder explicitar o queh de mais especfico em Schleiermacher.

    Com este procedimento de estabelecer regras gerais ao processo decompreender, Schleiermacher autonomiza o compreender, conferindo-lheum carter metodolgico, face a Teologia e ao determin-lo como ncleode sua concepo hermenutica, vinculada idia de evitar o mal-entendi-do (fenmeno do insucesso na conversao), ele recoloca o compreenderno na ordem do deciframento e revelao da literalidade das palavras, da

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    Sagrada Escritura, seno tambm a individualidade do falante ou do autor(Gadamer, 1993, p.239). Da porque seu grande mrito consiste em conferirregras psicolgicas hermenutica. Este trao mais genuno de Schleier-macher, segundo Gadamer, consiste grosso modo num processo de re-construo do ato criador, um ato de adivinhar o gnio criador de outrem,uma reconstruo que parte do momento vivo da concepo, da decisogerminal como do ponto de organizao da composio (Gadamer, 1993,241). Neste sentido a criao entendida no como uma coisa pronta e aca-bada, mas como uma obra de arte, uma construo esttica, um pensamen-to potico cuja objetividade dada por sua idiossincrasia frente um pen-samento objetivo comum, de uma coletividade. Trata-se portanto decompreender um pensamento individual que, como tal, livre e destitu-do das amarras comunitrias em seu ato criativo. Mesmo na comunicaoe na conversao, onde esta individualidade se apresenta em relao comoutras individualidades, este gnio esttico, criativo e livre se faz patente:

    A conversao no mais que uma estimulao recproca da produo deidias (e seu fim natural no outro que o progressivo esgotamento do processodescritivo), uma espcie de construo artstica na relao recproca da comunica-o. (Gadamer, 1993, p.242)

    Arte potica e arte de falar se correspondem em Schleiermacher comoformas de comportamento do sujeito/indivduo; e hermenutica correspon-de aqui tanto a um processo reconstrutivo tanto do ato artstico quanto doato de falar, enquanto apreenso do prprio sujeito de tais atos. Ora, comotais atitudes sempre so a expresso de uma individualidade, e como sem-pre se do em comunidade, ou melhor, em alguma forma de comunho, tra-ta-se pois de atitudes gestadas em cogenialidade donde separar o que exclusivo a um gnio livre e criativo e o que prprio a toda a comunidade,determinada por regras, bastante difcil. Assim, todo compreender con-siste sempre num procedimento em dupla via, que se revela como um pro-cesso circular quando se atenta para suas inter-relaes: o processo herme-nutico consiste tanto num processo de apreender o comum que se revelana expresso do ato criador individual, uma vez que cada individualidadetraz em si algo dos demais; como num processo de adivinhao do peculiarde algum em relao comunidade.

    Ao aguar deste modo a compreenso levando-a problemtica da individua-lidade, a tarefa hermenutica se lhe estabelece como universal. Pois ambos extre-mos de estranheza e familiaridade esto dados com a diferena relativa de toda in-dividualidade. O mtodo do compreender ter presente tanto o comum porcomparao como o peculiar por adivinhao , isto , haver de ser tanto com-parativo como divinatrio. Em um e outro sentido seguir sendo no entanto arte,

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    porque no pode mecanizar-se como aplicao de regras. O divinatrio seguir sen-do imprescindvel. (Gadamer, 1993, p.244)

    Deste modo, compreender na hermenutica de Schleiermacher consis-te num processo tanto re-criativo, no sentido que reproduz o ato de criaode um indivduo, como num processo de estabelecimento de uma cogenia-lidade emptica no ato potico da criao que tambm encontrado emDilthey. Compreender , portanto, um ato de identificao entre o autor e ointrprete (Coreth, 1973, p.114) onde este, na sua reconstruo interpretati-va, deve ser capaz de compreender o autor melhor do que ele mesmo (Ga-damer, 1993, p.246s; Coreth, 1973, p.121). Da a possibilidade da compara-o, onde se identifica uma individualidade ao mesmo tempo como sujeitoe como outro.

    De algum modo, estas intuies de Schleiermacher so caras paraRicur, na medida que j coloca tanto a idia de uma vinculao entre umafilosofia reflexiva e a hermenutica, quanto j traz em germe a importnciade uma superao hermenutica da filosofia reflexiva, que postula uma con-cepo egocntrica do sujeito. Isto se faz presente em vrios textos deRicur, talvez pelo menos j desde 1965, com sua interpretao hermenu-tica de Freud em Da Interpretao: Ensaio sobre Freud, onde no ltimo ca-ptulo, Ricur discorre sobre sua teoria das esferas do sentido no libidi-nais; principalmente na esfera do valer/valor, na qual a objetividade a que selana o homem e que o constitui se d mediante a constituio mtua poropinio, onde o eu se constitui mediante o que vale para o outro (Ric ur,1977, p.408). Mas no se trata, seguramente de uma repetio de Schleier-macher; pois para Ric ur no se trata de uma afirmao da subjetividademediante o encontro emptico com o alter-ego, mas da necessria perda danatureza egocntrica atribuda ao sujeito para reencontrar a subjetividadeem si mesma, isto , descentrada (Ricur, 1969, p.24; p.103-104; e p.132).Contudo, ainda no o momento de refletirmos sobre as concepes herme-nuticas de Paul Ric ur; pois at agora no foi possvel em nossa exposioestabelecer um nexo entre a fenomenologia e a hermenutica e muito me-nos em determinar os termos em que Ric ur l Husserl e, por conseguinte,de que modo ele liga o pai da fenomenologia com sua hermenutica.

    A hermenutica sob uma vertente epistemolgica: Dilthey

    Na histria da hermenutica contempornea, cabe a Dilthey a tarefa devincular de maneira mais incisiva hermenutica e histria; e em suas linhasgerais, de estabelecer uma linha de relao entre hermenutica e cincia.Como bem sabido, j quase beirando a trivialidade, Dilthey o filsofo res-

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    ponsvel pela equiparao e distino entre cincias naturais e cincias doesprito (que, atualmente, apressamo-nos em renomear de cincias huma-nas), mediante a determinao e diferenciao de seus mtodos respecti-vos: as cincias naturais explicam o objeto, enquanto as cincias do espritocompreendem o objeto. Em suma, Dilthey estabelece um jogo de equivaln-cia e diferenciao entre explicar e compreender. exatamente no conceitode compreenso na sua completa distino ao processo explicativo,pautado nas relaes causais que caracterizam a natureza que Diltheybusca determinar epistemologicamente as cincias do esprito em geral, e ahistria em particular: enquanto numa relao causal, a causa no se fazpresente mediante seu efeito; diversamente a compreenso como compre-enso de uma expresso, o expressado mesmo est presente na expressoe compreendido quando se compreende esta (Gadamer, 1993, p.284).

    Esta questo da compreenso se fez fundamental para Dilthey, uma vezque no compreender no ocorre uma distino clara entre sujeito e objeto (jque sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu objeto de conheci-mento); e porquanto a partir da compreenso que ele pode intentar umaresposta pergunta de como se eleva a experincia individual e seu conhe-cimento/conscincia ao estgio de uma experincia histrica, consideran-do que a experincia a fuso da recordao e expectativa em um todo navida do esprito (Gadamer, 1993, 281). Em suma, a histria consiste na his-tria das experincias de vida do esprito; se h um objeto histrico, este o que Dilthey denominou experincia (Erlebnis). Mas as experincias vi-tais tomadas individualmente restringem-se a um nvel psicolgico, carentede objetividade. Para ele, era fundamental uma configurao das experin-cias vitais no em conformidade a um indivduo, mas ao que ele chamou deesprito objetivo, conceito to prximo do conceito hegeliano de EspritoAbsoluto, como Dilthey mesmo notou. E apenas mediante o conceito deesprito que se pode colocar objetivamente a questo da conscincia his-trica enquanto uma conscincia que compreende o encadeamento signifi-cativo das experincias vividas, passadas e vindouras, nas quais aquelas serefletem. claro que para atingir tal nvel, a conscincia histrica tem queultrapassar os limites de sua finitude relativa e galgar como possvel o nvelda objetividade do conhecimento espiritual-cientfico (Gadamer, 1993,p.295), que apenas difere do esprito absoluto hegeliano no sentido que suaconscincia/autoconscincia no especulativa mas histrica.

    A possibilidade da superao histrica da individualidade subjetiva, epsicolgica, se d no pela ruptura com esta individualidade, mas em tomaro conceito de vida como conceito fundamental sua concepo de cin-cia do esprito, e como ponto de partida de sua concepo histrica. A vi-da, como a totalidade das experincias do indivduo tem uma natural ten-dncia estabilidade cujo corolrio o conhecimento cientfico, a auto-

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    reflexo filosfica e a realizao esttica. O conhecimento histrico visaapreender de uma forma objetiva esta tendncia estabilidade (que acabapor se configurar como liberdade), j que a vida refere-se reflexo.

    Pois todas as formas de expresso que dominam a vida humana so em seuconjunto conformaes do esprito objetivo. Na linguagem, nos costumes, nas nor-mas jurdicas o indivduo est j sempre elevado acima de sua particularidade. Asgrandes comunidades ticas em que vive representam um ponto fixo no qual se com-preende a si mesmo frente fluida contingncia de seus movimentos subjetivos. Pre-cisamente a entrega a objetivos comuns, o esgotar-se em uma atividade para a co-munidade libera o homem da particularidade e do efmero. (Gadamer, 1993, p.297)

    E neste objetivo de superar o subjetivo e o relativo, tanto as cinciasnaturais quanto s cincias do esprito no se identificam mas comparti-lham da mesma comunidade genuna, a da tendncia natural de realizaoda vida. E ao reportar a esta idia de uma comunidade, Dilthey retomaSchleiermacher no sentido de que a hermenutica uma espcie de deci-framento que deve estabelece o nexo de uma ntima unidade entre os mem-bros, entre o leitor e o autor, entre o historiador e o mundo histrico enquan-to um texto que exige uma postura de deciframento (Gadamer, 1993, p.302s;e 1982, p.50).

    Novamente poderamos pensar uma analogia entre Dilthey e Ricur,uma vez que este retoma a polmica sobre a distino entre compreender eexplicar, pelo menos duas vezes, a saber, em seu artigo Explicar e Compre-ender, publicado em Du Texte lAction, e tambm em Le Discours delAction, captulo IV, seo C. Mas ao que parece, a tematizao de Ricurse faz mais patente como uma leitura hermenutica (e sob alguns aspectosfenomenolgica) da filosofia analtica, especialmente de G. H. von Wright esua teoria da ao, expressa em Explanation and Understanding, de 1971(Ric ur, 1989b, p.170; e 1977, p.104). Mesmo assim, a despeito desta espe-cificidade, Ricur, refletindo sobre seu prprio projeto hermenutico (dotexto) percebe o mrito de Dilthey:

    No esprito de um Dilthey, o mais tpico representante alemo da teoria doVerstehen, no incio do sculo, no se tratava, de modo nenhum, de opor um obscu-rantismo romntico qualquer ao esprito cientfico proveniente de Galileu, de Des-cartes e de Newton, mas de dar compreenso uma respeitabilidade cientfica igual da explicao. Dilthey no podia, pois, limitar-se a fundamentar a compreenso nanossa capacidade de nos transferirmos para um vivido psquico estranho com baseem signos que outrem d para serem apreendidos, quer sejam os signos directos dogesto e da fala ou os signos indirectos constitudos pela escrita, pelos monumentose, de um modo geral, pelas inscries que a realidade humana deixa atrs de si. Steramos direito de falar de cincias do homem se, sobre este compreender, se pu-desse edificar um verdadeiro saber que conservasse a marca da sua origem na com-

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    preenso dos signos, mas que, todavia, tivesse o carcter de organizao, de estabi-lidade, de coerncia de um verdadeiro saber. (Ricur, 1989b, p.164s; cf. tambmRic ur, 1969, p.8s)

    Reconfigurao ontolgica da hermenutica: Heidegger

    com Heidegger que, de fato ocorre uma radical aproximao entre fe-nomenologia e hermenutica, j desde Ser e Tempo (1927), principalmentese atentarmos para alguns pargrafos extremamente importantes para odeslocamento ontolgico da hermenutica, como por exemplo (mas no ex-clusivamente) o 7, O mtodo fenomenolgico da investigao, e os 31e 32, Ser-a compreenso e Compreenso e interpretao respectiva-mente. Em suma, com ele que de fato se pode falar numa hermenuticafenomenolgica, ou numa fenomenologia hermenutica.

    Com Heidegger assim como tambm com Gadamer, como observaRic ur ocorre uma veemente atitude de ruptura, de fratura da clausura dalinguagem, pautada na convico da precedncia dum ser-a-dizer em re-lao ao nosso dizer (Ric ur, 1989a, p.45; cf. tambm Ric ur, 1969, p.20).A descoberta de Heidegger se d a partir de uma inflexo para com a filo-sofia husserliana, e de certo modo tambm com relao Dilthey, no senti-do que deixa de priorizar a questo da compreenso deslocando-se para aquesto de seus fundamentos. Sua descoberta consiste, basicamente, emperceber no crculo hermenutico do compreender uma positividade onto-lgica. Mais do que estipular metodicamente o processo hermenutico dacompreenso, o que Heidegger faz refletir sobre a estrutura ontolgicasubjacente ao prprio compreender, cujo principal mrito uma superaoradical da velha e tradicional dicotomia entre sujeito e objeto, bem comouma superao da filosofia reflexiva.

    A faticidade do ser-a, a existncia que no suscetvel nem de fundamenta-o nem de deduo, o que deve erigir-se em base ontolgica do delineamento fe-nomenolgico, e no o puro cogito como constituio essencial de uma generalida-de tpica: uma idia to audaz como comprometida. (Gadamer, 1993, p.319)

    O comprometimento de Heidegger no nem com a filosofia transcen-dental de Husserl nem tampouco com a filosofia vitalista de Dilthey, massim com uma recuperao positiva da ontologia, superando sua histria deesquecimento gradativo do Ser, isto sua histria metafsica, que deve pre-viamente ser destruda. Sua descoberta que o humano tem uma estru-tura ontolgica fundamental que antecede sua condio subjetiva e, por-tanto, supera tambm a clssica oposio entre sujeito e objeto. Estadescoberta fundamental porque restabelece a intrnseca e necessria li-

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    gao entre este ente fundamental o ser-a (Dasein) e o ncleo da onto-logia, o Ser. E esta unio, que a unio da pergunta pelo Ser e por seu sen-tido, uma unio que se d no tempo, antes mesmo de se dar na histria.Esta pergunta pelo Ser exige uma postura especfica: a compreenso e odeciframento do Ser pelo ser-a. Mas a compreenso no somente um pro-cedimento para Heidegger, e sim um modo de ser, o modo de ser fundamen-tal e originrio do ser-a: compreender o carter ntico original da vidahumana mesma (Gadamer, 1993, p.325). Isto porque todo o compreendervisa ao mesmo tempo um algo e o agente do visar, isto , todo compreender um compreender-se, que se d na temporalidade do ser-a. Por isto, todoato de compreender consiste numa pr-compreenso de seus pr-juzos eseus pr-conceitos, ou seja, de tudo aquilo que este ente traz em sua hist-ria individual antes do prprio pr-se em atitude compreensiva. exata-mente esta tematizao das pr-condies do compreender que permiteuma objetividade da compreenso. Mas no se trata de aceitar estas pr-condies, mas sim de tambm compreend-las devidamente numa dispo-sio de abertura ao visado hermeneuticamente.

    A tarefa hermenutica conclui Gadamer se converte por si mesma em umaexposio objetiva, e est sempre determinada em parte por este. Como isso a em-presa hermenutica ganha um solo firme sob os ps. Quem quer compreender nopode entregar-se desde o comeo sorte de suas prprias opinies prvias e ignoraro mais obstinada e conseqentemente possvel a opinio do texto. (...) uma cons-cincia formada hermeneuticamente tem que mostrar-se receptiva desde o princ-pio para a alteridade do texto. Mas esta receptividade no pressupe nem neutrali-dade frente s coisas nem tampouco auto-aniquilamento, seno que inclui umamatizada incorporao das prprias opinies prvias e prejuzos. O que importa ose encarregar das prprias antecipaes, com a finalidade de que o texto mesmopossa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontarsua verdade objetiva com as prprias opinies prvias. (Gadamer, 1993, 335s)

    Mas justamente nessa exposio da pr-estrutura da compreensoem termos ontolgicos que Ric ur identifica uma limitao da hermenuti-ca heideggeriana (e, de certo modo tambm de Gadamer). Ele a identificacomo a via curta de se fundar a hermenutica na fenomenologia, uma vezque desconsidera todas as discusses metodolgicas das hermenuticassobre a interpretao correta, restringindo-a a uma ontologia em que o com-preender mais que um modo de conhecer, e sim um modo de ser. O pro-blema hermenutico torna-se assim uma provncia da Analtica deste ser, oDasein, que existe compreendendo (Ric ur, 1969, p.10). Que esta inflexode uma abordagem epistemolgica para uma abordagem ontolgica da her-menutica tenha seu aspecto revolucionrio, disto Ricur no discorda.

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    Contudo, a onde se d esta revoluo mesma, ocorrem tambm dois proble-mas que Heidegger simplesmente desconsidera. Primeiramente, a herme-nutica fundamental, de recorte heideggeriano, desconsidera por completoos problemas epistemolgicos inerentes hermenutica e j devidamenteconsiderados (o que no quer dizer devidamente respondidos) antes mesmode Heidegger suprimindo-os. Ao deslocar a hermenutica do problema daconscincia histrica para o da compreenso originria, Heidegger no es-clarece os termos em que a compreenso histrica uma forma derivada dacompreenso ontolgica/originria. Em segundo lugar, Heidegger no con-segue resolver de forma satisfatria como o compreender passa do estatutode uma forma de conhecer para uma forma de ser, j que o compreender en-quanto resultado da Analtica do Dasein, enquanto um modo de ser, consis-te j sempre num modo de se conhecer como tal (Ric ur, 1969, p.14). ParaRic ur, a tentativa desesperada de Heidegger de prescindir da linguagem infrutfera e fadada ao fracasso, justamente porque a linguagem o pr-prio ncleo da hermenutica. E na via longa de uma hermenutica centra-da na linguagem que se deve buscar uma fundamentao fenomenolgica hermenutica caminho este seguido por Ric ur.

    Mas antes de discutirmos a concepo filosfica de Ricur, convmconsiderar ainda um dos mritos de Heidegger para a sua retomada crticada filosofia reflexiva. Segundo Ric ur, um dos mritos de Heidegger est nasua reformulao da questo do sujeito. Com sua Analtica do Dasein, Hei-degger formula uma teoria do sujeito destituda de um trao egocntrico,comum s filosofias da conscincia clssicas desde j, pelo menos, Descar-tes e seu dualismo ontolgico. A novidade que Heidegger possibilita uma nova filosofia do ego, no sentido que o ego autntico constitudopela questo mesma (Ricur, 1969, p.224). Esta nova filosofia do sujeitopostula tanto uma recuperao da questo do Ser e de seu sentido comocentro dessa nova concepo filosfica, quanto uma retomada do sujeitocomo um ente questionante, instigado pela questo do Ser. O sujeito nopode aqui ser compreendido enquanto o ego, conscincia que se descobrecomo clara e evidente, mas enquanto um ente instigado pela dvida e pelanecessidade ntica/ontolgica de compreender o foco filosfico-herme-nutico se desloca do eu penso para o eu sou. deste modo que a Ana-ltica do Dasein recoloca sob uma nova tica a possibilidade de uma filoso-fia do sujeito, a saber, no em termos antropolgicos, mas sim ontolgicos.A primazia do Dasein no coincide com a precedncia idealista da cons-cincia, porquanto aquela diferente desta no consiste numa condiofundamental s coisas e ao mundo, mas sim na constatao de que o Dasein o nico instigado pela questo do Ser; e por esta mediao ( questo doSer) que o Dasein, ou a nossa subjetividade, se constitui como tal.

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    A especificidade do modelo Ric uriano de hermenutica

    exatamente a partir dessa tematizao do sujeito que podemos situara especificidade de Ric ur na histria da hermenutica. Ele mesmo se co-loca na tradio do que denomina filosofia reflexiva: Por filosofia reflexi-va, entendo, em linhas gerais, o modo de pensamento proveniente do Cogi-to cartesiano, atravs de Kant e da filosofia ps-kantiana francesa, poucoconhecida no estrangeiro e da qual Jean Nabert foi, par mim, o pensadormais marcante (Ricur, 1989a, p.37). Em suas linhas gerais e mais radi-cais, a filosofia reflexiva consiste na possibilidade da compreenso de si en-quanto sujeito do conhecimento, tico e esttico (Ricur, 1989a, p.37; eIwata, 1994, p.101).

    Na tica de Jean Nabert, o conceito fundamental exatamente o con-ceito de reflexo, porque a partir dele que se constituem o sujeito mes-mo, bem como seus campos de imanncia sua atividade espiritual. Paraele, a reflexo constituda de dois traos fundamentais, a saber: (a) pelareflexo que o sujeito toma conscincia e apreende a si mesmo, de uma for-ma constante e renovvel, o que lhe d um carter de intemporalidade nopresente da reflexo; (b) a reflexo se d a partir de uma afirmao inicial,radical porque originria enquanto fundante da conscincia da existnciado sujeito, e que se liga da forma mais ntima a sua prpria existncia (Iwa-ta, 1994, p.104s). E como j para Nabert esta tomada de conscincia passapela reflexo da afirmao original eu sou , quer dizer que o ato mesmode constituio do sujeito um ato mediado pelo signo (Ricur, 1969, p.213;Iwata, 1994, p.104 e 107). Mas se em Nabert o signo ocupa apenas uma fun-o coadjuvante face precedncia do ato do esprito, com Ric ur o papeldo signo como mediador da prpria conscincia e da constituio do sujei-to, do si, ganha todo o destaque necessrio a um termo que se torna cha-ve sua concepo hermenutica, enquanto uma tomada de posio crti-ca filosofia reflexiva, sua tradio. Ou dito de outro modo, a filosofiareflexiva tem que se tornar hermenutica: porque a reflexo no uma in-tuio de si para si, ela pode ser, ela deve ser, uma hermenutica (Ric ur,1969, p.221).

    No sentido do papel que cabe ao signo para a filosofia reflexiva deRicur, Gagnebin em seu artigo Uma filosofia do cogito ferido: PaulRicur define assim o que considera a questo central da obra do filsofofrancs: A questo central da obra, pois, poderia ser tematizada como atentativa de uma hermenutica do si pelo desvio necessrio dos signos dacultura, sejam eles as obras da tradio ou, justamente, as dos contempor-neos (Gagnebin, 1997, p.261). Contudo, onde ela identifica um desvio,parece-nos mais condizente em admitir uma mediao, uma vez que no setrata nem de um mal necessrio, nem de uma espcie de alternativa que

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    escolhida por suas vantagens pragmticas frente a outras possibilidades o que implica numa certa concepo pejorativa da mediao do signo. Pa-rece-nos muito mais que a mediao dos signos o nico caminho possvelpara este projeto de uma filosofia hermenutica do sujeito, conforme suafrmula hermenutica, expressa em Da interpretao: no h compreen-so de si que no seja mediatizada por signos, smbolos e textos; a compre-enso de si coincide, em ltima anlise, com a interpretao aplicada a es-tes termos mediadores (Ric ur, 1989a, p.40).

    Alm disto, vale considerar a filosofia de Ricur ainda numa outraperspectiva que lhe extremamente prxima. Claude Geffr situa Ric urno mbito da crise da hermenutica no contexto cultural francs, a partir doadvento e tambm do paroxismo de algumas vertentes estruturalistas eneo-estruturalistas em seu privilgio da leitura em detrimento da interpre-tao hermenutica (Geffr, 1989, p.36-40). Segundo ele, o deslocamentohermenutico de Ricur consiste em colocar-se tanto em reserva diantedas hipteses de base da hermenutica romntica e psicologizante, isto, as propostas hermenuticas tanto de Schleiermacher e Dilthey, bemcomo da leitura estruturalista. No que diz respeito aos primeiros, Ric ur su-pera-os reportando-se s valiosas contribuies de Heidegger e Gadamer,que despsicologizam o processo de compreender para mundaniz-lo.Contudo, estes seguiram o que Ric ur denominou a via curta de fundar ahermenutica na fenomenologia. E no h como menosprezar as contribui-es estruturalistas no campo da leitura dos textos, sem necessariamenteter que aderir s suas interpretaes (formais) do sentido como efeito deri-vado do sem-sentido.4 O que implica em seguir o que ele chamou de vialonga de fundao fenomenolgica da hermenutica, isto , seu projeto filo-sfico. Conforme a interpretao de Geffr,

    Ric ur procura ultrapassar o dilema entre a distncia, ligada objetividade dotexto, e a proximidade ou a pertinncia, ligada compreenso histrica. Ele se es-

    4 Talvez seja interessante lembrar o que Michel Foucault (1994, p.601s) disse, num tom evidentemen-te estruturalista, sobre a sua gerao e sobre si mesmo, contraposta posio defendida porRicur, mas que, por contraste, talvez evidencie a posio do hermenuta francs: Durante osanos cinqenta, como todos aqueles de minha gerao, eu estava preocupado, a exemplo de nossosnovos mestres, e sob a sua influncia, pelo problema da significao. Todos ns fomos formados naescola da Fenomenologia, pela anlise das significaes imanentes ao vivido, das significaes im-plcitas da percepo e da histria. (...) E eu creio que, como em todos aqueles de minha gerao,se produziu em mim, entre os anos cinqenta e cinqenta e cinco, uma sorte de converso que pa-recia insignificante, por um lado, mas que na realidade, por outro, nos diferenciou profundamente:a pequena descoberta, ou se preferir a pequena inquietude que estava na origem; foi a inquietudefrente s condies formais que podem fazer que a significao aparea. (...) E, aps 1955, ns nosconsagramos principalmente anlise das condies formais do aparecimento de sentido.

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    fora, por isso, para escapar alternativa que ainda est presente no prprio ttuloda grande obra de Gadamer: verdade e mtodo (...) o ttulo de Gadamer exprime umaalternativa e que, de fato, sacrifica uma teoria epistemolgica da interpretao hermenutica, no sentido epistemolgico. Ric ur faz um esforo desesperado paraconciliar os dois. De um lado, d razo ao estruturalismo, ao aceitar passar pela lon-ga via dos mtodos exegticos, a fim de estabelecer a objetividade do texto. Mas, dooutro, resiste desconstruo do sentido praticada pelo estruturalismo. Ele no re-nuncia, com efeito, compreenso hermenutica, isto , finalmente, procura daverdade. Mas, para ele, o texto como obra que mediatiza a verdade a compreender.(Geffr, 1989, p.49)

    neste contexto de luta terica entre a via curta da hermenutica, decunho ontolgico na qual se elimina a pretenso de se estabelecer umaepistemologia da hermenutica e o desconstrucionismo enquanto verten-te mais radical do estruturalismo lingstico (entenda-se, segundo Geffr),que Ricur constri sua teoria da via longa, bem como seu conceito demundo do texto. a partir destas reflexes propositivas que Ric ur podeestabelecer uma conexo entre a fenomenologia husserliana e sua concep-o hermenutica. Mas antes de adentrarmos nesta questo mais especfi-ca, vejamos sucintamente em que consiste sua teoria da via longa.

    A via longa da fundao fenomenolgica da hermenutica

    Obviamente, quando Ric ur critica Heidegger considerando sua abor-dagem ontolgica da compreenso como uma via curta que ele no pre-tende seguir , no quer dizer que ele a descarte por completo. Apenas jul-ga que ela demasiadamente apressada em culminar numa ontologia,direta, sem a necessidade de alguma forma de mediao. Ric ur tambmvisa, ao menos de uma forma pressuposta, uma ontologia. Mas ele visa umaontologia da compreenso enquanto esta requer uma semntica e uma for-ma reflexiva; isto , enquanto ela passa pela mediao do signo e, por con-seguinte, a partir dela possibilitando uma reflexo nos termos j apresenta-dos aqui (Ric ur, 1969, p.10s).

    Com Heidegger, j assistimos a uma converso da epistemologia dahermenutica numa ontologia da compreenso. Em vez de buscarmos oscnones metodolgicos da interpretao, reconhecemos que na compreen-so e na interpretao h um sujeito que se descobre como ser-interpretan-te. Ou seja, a compreenso passa a consistir em um modo de ser de nsmesmos. Ric ur chama a ateno para o fato de que esta descoberta nopode prescindir da linguagem; e mais que isso, depende dela (ainda queno exclusivamente) para chegar com xito a tal descoberta (Ric ur, 1969,p.14s). A tal ponto que mais tarde, em Da interpretao, ele diz em termos

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    mais genricos, j recorrendo a uma teoria da mediao dos signos (parainstaurar uma especificidade de sua hermenutica, a mediao do texto):Mediao pelos signos, por ela afirmada a condio originariamente lin-gustica de toda a experincia humana (Ric ur, 1989a, p.40).

    A apresentao da via longa em 1969, com Existncia e hermenuti-ca, j trabalha com a tese da mediao da linguagem. Entretanto, sua ex-posio limita-se a uma teoria do smbolo, em virtude da necessidade deapreender hermeneuticamente o sujeito que se constitui por relaes lin-gsticas bastante complexas; comportando duplos sentidos e at mesmoexpresses multvocas,5 a despeito dos modelos artificiais construdos pe-los lgicos onde reina o princpio da univocidade. Ainda que sua noo desmbolo permanea a mesma a saber, toda estrutura de significaoonde um sentido direto, primrio, literal, designa alm disso um outro sen-tido indireto, secundrio, figurado, que apenas pode ser apreendido atravsdo primeiro (Ricur, 1969, p.16), isto , as expresses de duplo sentido,quer criados por uma cultura quer criados metaforicamente por um indiv-duo em particular (Ric ur, 1989a, p.41) sua teoria hermenutica se mos-trou por demais limitada; exigindo, portanto, tanto de uma melhor temati-zao, na qual se compreendesse que h antes uma mediao pelos signose de que, por fim, mediante uma definio restritiva em termos de exten-so, mas de ganhos tericos considerveis (definio intensiva), culminas-se numa descoberta da mediao pelos textos; que o que ele estabelece,quase vinte anos depois, com Du texte lAction (1986). precisamentenesta redefinio da mediao da linguagem enquanto mediao pelos tex-tos que Ricur d uma de suas maiores contribuies ao movimento her-menutico, a despeito da crise da fenomenologia diante do movimento dereviravolta da voga estruturalista.

    A mediao do texto

    justamente a partir de seu dilogo com o estruturalismo que Ric urpode falar de mundo do texto. Obviamente, como veremos, o seu dilogocom o estruturalismo apenas parte do processo, mas no tem um papelexclusivo, j que no basta para sua teoria do mundo do texto. Seguramen-te, h tambm um papel fundamental da fenomenologia com Husserl eHeidegger na elaborao da mesma.

    5 Introduzimos aqui este neologismo para no incorrermos apressadamente na noo de vagueda-de lingstica e conceitual, e para enfatizar a possibilidade dos mltiplos sentidos que pode assu-mir a linguagem em toda sua fora simblica, fundamental para o exerccio hermenutico.

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    Com o conceito de mundo do texto, Ric ur pode manter a devida dis-tncia do movimento estruturalista, apreendendo aspectos tericos funda-mentais do mesmo, sem se deixar confundir, nem inebriar, por alguns deseus radicalismos. No caso do conceito de mundo do texto, Ric ur atribuiao discurso um elemento fundamental do ponto de vista semntico, e quefoi recusado como relevante, ou ao menos relegado a um plano secundriopela semntica estruturalista: a existncia de uma referncia para a qualtodo o discurso enquanto um sistema de signos estruturado sempre seremete. Para o estruturalismo, via de regra, o que importa considerar odiscurso como um sistema de signos, cujo impacto terico digno de notaconsiste em tom-lo autonomamente frente aos mbitos no-lingsticos,ou extra-lingsticos. Em outros termos, o estruturalismo limita-se a umaanlise do texto, desconsiderando por completo sua relao com a realida-de, e considerando o texto como jogo diferencial de significantes (Geffr,1989, p.50). Ao tomar como central em sua teoria hermenutica da media-o pelo texto, Ricur ainda sustenta a importncia da referncia,bemcomo o fato de que para ele o texto diz algo acerca da realidade; ou dito me-lhor, ele um conjunto especfico de signos que porta significado.

    Mas este dizer algo sobre a realidade no deve ser compreendido novelho sentido proposto pelas hermenuticas romntica e psicologizante.Este dizer algo sobre a realidade, este exigir um mundo como referncia,no considera uma intencionalidade do autor, quer dizer subjacente ao tex-to uma espcie de pr-texto que deve ser desvelado a partir da interpre-tao hermenutica do mesmo. O texto no hermeneuticamente conside-rado como fruto de uma criao genial, mas como um dado que tem suaprpria autonomia e independncia. Deste modo, mediante o conceito demundo do texto, como se Ric ur ficasse a meio caminho entre dois ex-tremos radicais: entre a autonomia absoluta do discurso e a dependnciaabsoluta do texto do autor. Ainda que ele considere o texto como autnomoem relao ao gnio criador, o texto reclama uma referncia para significar.

    A alternativa da inteno ou da estrutura v. Porque a referncia ao texto oque chamo a coisa do texto ou o mundo do texto no nem uma nem outra. Inten-o e estrutura designam o sentido; o mundo do texto designa a referncia do dis-curso, no o que dito, mas aquilo sobre que ele dito. A coisa do texto o objetoda hermenutica. E a coisa do texto o mundo que o texto desdobra diante de si.(Ric ur, Hermneutique de lide de rvlation, p.38-39; apud Geffr, 1989, p.51)

    Uma referncia que no do mesmo tipo do proposto pelas concepeslogicistas da linguagem, com sua reduo da referncia da linguagem auma relao entre palavra (nome) e objeto. No se trata para ele, segura-mente, de estabelecer uma relao bipolar entre nome e objeto; at porque

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    muitas vezes, o objeto no est empiricamente dado no campo de nossassensibilidades (como no empirismo de Russell), ou no est dado no campolgico dos fatos (cf. o Tractatus Lgico-Philosophicus de Wittgenstein).Deus, por exemplo, se enquadra neste aspecto referencial da linguagemnos moldes propostos por Ric ur, que exige uma ateno redobrada aostextos, modelos de signos que implicam em relaes bem mais complexasde concatenao semntica do que as previstas numa anlise lgica de fun-es proposicionais.

    neste sentido que Ricur situa o paradigma do texto nos quadrosconceituais do discurso. Ora, o discurso acontecimento de linguagem,diferenciando-se tanto da prpria lngua quanto dos signos da lngua namedida que, dentre outras caractersticas, enquanto os signos da lnguaremetem apenas para outros signos no interior do prprio sistema, e en-quanto a lngua dispensa o mundo como dispensa a temporalidade e a sub-jectividade, o discurso sempre acerca de qualquer coisa. Refere um mun-do que pretende descrever, exprimir, representar (Ricur, 1989d, p.186).Este mundo referido pelo texto (linguagem escrita) no o resultado de umjogo ostensivo, em que o objeto mostrado quer por atos, quer por signos;isto , o que Ric ur chama de Umwelt. O mundo do texto Welt o con-junto de

    referncias no situacionais que sobrevivem ao desaparecimento dos precedentes eque, doravante, se oferecem como modos possveis de ser, como dimenses simb-licas do nosso ser-no-mundo. Tal , para mim, o referente de toda a literatura: j noo Umwelt das referncias ostensivas do dilogo, mas o Welt projectado pelas refern-cias no ostensivas de todos os textos que ns lemos, compreendemos e de que gos-tamos. (...) este alargamento do Umwelt s dimenses do Welt que nos permite fa-lar das referncias abertas pelo texto; seria melhor dizer que estas referncias abremo mundo. Mais uma vez a espiritualidade do discurso se manifesta pela escrita, li-bertando-nos da visibilidade e da limitao das situaes, abrindo-nos um mundo, asaber, novas dimenses do nosso ser-no-mundo. (Ric ur, 1989d, p.190)

    A interlocuo com Husserl no mbito da mediao do texto

    Apesar do evidente tom heideggeriano dessa concepo de mundoem sua teoria referencial no-ostensiva do texto, procuraremos mostraragora o quanto ela tambm devedora da fenomenologia husserliana, semcontudo perder de vista a sua singularidade. Vale relembrar aqui queRicur, embora compartilhasse com Heidegger da tese geral de seu projetohermenutico a saber, a de investigar a possibilidade do compreendernuma ontologia hermenutica , distinguia seu prprio projeto da preten-so heideggeriana acerca dos fundamentos da hermenutica no aspecto

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    metodolgico, isto , de que para o filsofo francs no se pode prescindirda mediao da linguagem para fundamentar, ou enraizar como ele mesmodiz algumas vezes, a hermenutica na fenomenologia. Ou dito de outro mo-do, para Ric ur no se poderia abrir mo de uma abordagem acerca da lin-guagem com mediao necessria e inevitvel para o compreender (e mes-mo para o ser, em particular, ser-no-mundo). E neste caso especfico,linguagem consiste num projeto hermenutico que contemple a media-o pelo texto como modelo privilegiado (Ric ur, 1989a, p.45).

    No mbito deste projeto de fundar a hermenutica na fenomenologia que se deve buscar demarcar a leitura Ric uriana da filosofia de EdmundHusserl.6 Ainda que parea precipitado, parece-nos que a leitura queRicur efetua da filosofia de Husserl tem algumas peculiaridades que me-recem ser destacadas. A primeira delas, e a mais evidente e se conside-rarmos sua introduo e traduo Ideen I, e se considerarmos os textoscontidos em A lcole de la Phnomnologie, bem como tambm Fenome-nologia e Hermenutica: no rastro de Husserl , de que Ric ur concen-trou sua ateno no na fase esttico-descritiva da fenomenologia husser-liana;mas sim principalmente na sua fase gentica, ou como algunscomentadores tambm denominam, sua fase transcendental,7 que temcomo seus principais elementos, a apresentao e defesa tanto de uma teo-ria da constituio quanto de uma redefinio explcita da fenomenologiaem termos idealistas.

    A contraposio hermenutica s teses idealistasda fenomenologia

    No j mencionado artigo Fenomenologia e Hermenutica: no rastro deHusserl, Ricur apela a uma estratgia argumentativa de contrapor seu

    6 Saliente-se, porm, que est para alm de nossas pretenses considerar e analisar a obra deRicur integralmente. Nosso objetivo bem mais modesto, uma vez que pretendemos apenas si-tuar como Ric ur l a obra de Husserl no contexto especfico de sua teoria hermenutica da me-diao do texto compreenso ontolgica de si. Para uma exposio mais detalhada dessa rela-o entre Ricur e Husserl, parece-nos mais apropriado recomendar a leitura do interessanteartigo de Bernard Stevens, Lvolution de la pense de Ric ur au fil de son explication avec Hus-serl (1990).

    7 Obviamente isto passvel de ser questionado. Mas nosso intuito em afirmar qual a fase de Hus-serl que interessa a Ric ur no implica que ele apenas leu os textos da fase gentica e transcen-dental, isto , a fase idealista de Husserl; mas sim que seguramente a fase que mais lhe geroupossibilidades de interlocuo, sempre com vistas a superar o idealismo husserliano sem perder,contudo, o mrito de suas intuies metodolgicas. Sobre a sua leitura, por exemplo, das Inves-tigaes Lgicas o texto mais lgico da fase esttica da fenomenologia husserliana, ainda que vi-sando suplantar o idealismo das Meditaes Cartesianas, conferir de Ric ur a seo 2 de seu ar-tigo Fenomenologia e hermenutica (Ric ur, 1989c, p.71-76).

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    projeto hermenutico s prinipais teses idealistas da fenomenologia hus-serliana. O seu intuito geral consiste, vale lembrar, em interrogar sobre odestino da fenomenologia, hoje; postulando duas teses gerais: (a) a herme-nutica desbaratou as teses do idealismo husserliano; e (b) entre herme-nutica e fenomenologia h uma pertena mtua, em que uma pressupe aoutra (Ric ur, 1989c, p.49s).

    Ric ur identifica cinco teses idealistas na fenomenologia de Husserl,principalmente a partir da leitura do Nachwort s Ideen. E ope a cada umadelas uma releitura hermenutica.8

    A primeira tese idealista da fenomenologia husserliana consiste empostular que o ideal de cientificidade que a fenomenologia reivindica, noest em continuidade com as cincias, a sua axiomtica, o seu empreendi-mento fundacional: a justificao ltima que a constitui de outra ordem(Ric ur, 1989c, p.51). Ric ur se contrape a esta tese afirmando seu limitefundamental na condio ontolgica da compreenso (Ricur, 1989c,p.54). O idealismo husserliano esbarra numa concepo limitada da relaosujeito-objeto, que restringe extremamente os alcances de sua descobertada intencionalidade. O que a hermenutica descobre para aqum do em-preendimento fundacional do idealismo husserliano que toda fundamen-tao e justificao reclamam como seu precedente uma relao que no a do tipo sujeito-objeto, mas sim a relao de pertena que engloba tantoum sujeito pretensamente autnomo e um objeto pretensamente adverso:antes de qualquer subjetivao ou objetivao, h a prpria experinciahermenutica da pertena (Ric ur toma este conceito de Gadamer), oude ser-no-mundo (a expresso de Heidegger).

    A segunda tese idealista da fenomenologia husserliana consiste emque a fundao principal a ordem da intuio; fundar ver (Ricur,1989c, p.52). A intuio imediata. Ric ur observa que esta tese o exatocontraditrio da tese hermenutica de que toda a compreenso necessa-riamente mediatizada por uma interpretao. Ora, a tese da intuio s temvalidade no contexto especfico da fundao numa subjetividade transcen-dental (como se pode deduzir da terceira tese); mas a descoberta da herme-nutica de que antes que se instaure axiomaticamente um sujeito, elese funda na relao de pertena. Ou dito de uma forma mais clara, a subje-tividade se instaura no mbito de uma relao que sempre a precede noem termos lgicos ou em termos histricos, mas em termos hermenuticose ontolgicos (Ric ur, 1989c, p.56). Neste sentido, toda interpretao e todacompreenso tm um carter universal ante a constituio do sujeito e do

    8 Ns nos limitaremos em apresentar as citaes referentes s teses idealistas de Husserl para, emseguida, reconstruirmos a crtica hermenutica de Ric ur a tais teses.

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    objeto: o sujeito apenas se coloca diante de um objeto no contexto especfi-co da pertena, onde se instaura o crculo hermenutico entre o leitor e osmltiplos sentidos de um texto (para alm das intenes originais do autor),numa relao de inmeras e renovveis polissemias o que implica na in-trnseca incompletude da tarefa hermenutica. O ideal husserliano da intui-o fundante, ou do que Gadamer chama de mediao total ou seja, deuma imediatez original contraposto pela descoberta hermenutica deque toda interpretao coloca o intrprete in medias res e nunca no incioou no fim. Ns surgimos, de certo modo, a meio de uma conversa que j co-meou e na qual tentamos orientar-nos, a fim de podermos tambm forne-cer-lhe o nosso contributo (Ric ur, 1989c, p.58).

    A terceira tese idealista na afirmao de que o lugar da intuitividadetotal a subjectividade. Toda transcendncia duvidosa, s a imanncia indubitvel (Ric ur, 1989c, p.52). A hermenutica descobre que, a despei-to da tese idealista da fenomenologia husserliana, imanncia tambm du-vidosa, uma vez que no se pode contar com uma subjetividade apodtica eprecedente a tudo e a todos; j que tambm ela instaurada no prprio atohermenutico da compreenso e da interpretao. Assim como Husserl exi-gia uma crtica do objeto que culminasse numa teoria da Dingkonstitution(constituio da coisa), a hermenutica Ricuriana valendo-se tanto dacrtica das ideologias quanto da psicanlise efetua uma crtica do sujeito,coextensiva quela proposta por Husserl. Esta crtica do sujeito s poss-vel a partir da denncia e do abandono da tese husserliana de que o conhe-cimento de si no presuntivo. O que a hermenutica descobre que o co-nhecimento de si sim presuntivo, porquanto um conhecimento que sed sempre no mbito precedente da relao, caracteristicamente lingsti-ca o sujeito se constitui sempre na relao comunicativa falando de algopara algum, na qual este algo tambm pode ser o prprio sujeito, querenquanto um dos plos da conversao, quer enquanto o assunto da discus-so.9 Um caso bastante paradigmtico pode ser encontrado na literatura:Luigi Pirandello, em Um, Nenhum e Cem Mil, conta-nos a histria do ho-mem que se descobre a partir de uma observao de sua esposa acerca deseu nariz.

    A quarta tese postula que a subjectividade, assim promovida cate-goria do transcendental, no conscincia emprica, objecto da psicologia

    9 O que a hermenutica pode fazer , pautando-se na crtica das ideologias, refletir sobre a influn-cia de outros elementos estranhos a ideologia na apreenso do objeto cultural. neste sentidoque Ricur recorre ao conceito de distanciao como correlato e corretivo da pertena eletambm define a distanciao como um momento da pertena que implica no numa alienao(como Gadamer supe a partir do conceito de Verfremdung), mas numa mediao criadora, ten-do o texto como seu modelo. Para tanto, conferir Ric ur, 1989c, p.61.

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    (Ric ur, 1989c, p.52). exatamente recorrendo teoria do texto como mo-delo hermenutico, que se pode questionar de forma radical o primado dasubjetividade que, alis, j vem sendo gestada desde a crtica primeiratese idealista de Husserl. Uma vez que o texto no uma extenso da foracriadora da subjetividade, de um autor, mas sim que seu sentido dado apartir da diferena entre o que ele diz a saber, sobre o mundo que ele abree descobre e como diz para algum (o leitor), a tarefa fundamental da her-menutica consiste na descoberta polissmica deste dizer o mundo. Mascomo j vimos, este dizer o mundo no se pauta nem se restringe teoriaartificial, porque lgica, da referncia de primeiro grau (a relao de nome-ao). A teoria hermenutica da mediao pelo texto, ainda que admita ateoria fenomenolgica da intencionalidade, no aceita sua hipstase dasubjetividade. Deste modo, a teoria do texto desloca a questo da intencio-nalidade para a tarefa de dizer o mundo, j no como um conjunto de ob-jectos manipulveis, mas como horizonte da nossa vida e de nosso projecto,numa palavra, como Lebenswelt, como ser-no-mundo (Ricur, 1989c,p.62). Ainda que Ric ur no o diga explicitamente, o dizer o mundo en-quanto uma proposta e uma explicitao do ser-no-mundo, ou do Le-benswelt, um dizer constitutivo. No mais no sentido, porm, em que re-mete a uma subjetividade como condio fundamental da constituio(uma vez que o texto autnomo em relao ao seu autor), mas tambm nono sentido de que o mundo dado previamente. Para Ric ur, o dizer o mun-do uma constante atividade de configurao e refigurao.

    A quinta e ltima tese do idealismo husserliano estabelece que a to-mada de conscincia que sustenta a obra de reflexo desenvolve implica-es ticas prprias: pelo facto de que a reflexo o acto imediatamenteresponsvel de si (Ric ur, 1989c, p.54). Esta tese conta com imediatez dosujeito e, portanto, de sua primazia. justamente estas imediates e prima-zia que so postas em xeque pela hermenutica de Ric ur, mediante suateoria da mediao hermenutica do texto. Mais do que instaurar, a subje-tividade termo final da mediao do texto, porquanto nele que desem-boca o processo da compreenso. Da o motivo que o ato da subjetividade,enquanto ato final, um ato de apropriao (Aneignung) da compreenso,mantendo-se devidamente distncia tanto da subjetividade original (o g-nio criador), como instncia determinante do sentido; quanto do mundodado quotidianamente como evidente e conjunto de objetos manipulveis(Ric ur, 1989c, p.63). Mas nesta apropriao compreensiva do texto quese pode efetivamente realizar uma hermenutica do si: mediante o textoque se realiza um compreender-se; a condio de prprio da subjetividadese realiza mediante a constatao de que subjetividade se realiza medianteo texto enquanto dizer o mundo, o mundo no qual se insere e ao qual per-tence esta subjetividade. Mas para se originar esta compreenso ontolgica

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    de ns mesmos mediante o texto, urge que a apropriao do texto implicanuma distanciao de si para si (Ric ur, 1989c, p.64).

    Eplogo: dizer o mundo enquanto constituiohermenutica do mundo

    Entretanto, as crticas hermenuticas de Ric ur ao idealismo husser-liano no podem ser interpretadas como uma crtica radical, do tipo que re-futa todo um corpo terico. A crtica Ric uriana consiste muito mais apro-priadamente numa recuperao da filosofia husserliana sem deixar de lheser crtica, isto , no sentido de refutar seu idealismo. Ric ur rompe com afilosofia husserliana mas no com seu mtodo e sua teoria. De maneira maisclara: Ric ur se apropria tanto da anlise intencional (o mtodo) quanto dateoria da constituio do sentido; mas dispensa os pressupostos idealistasde Husserl.10 exatamente em sua relao com a fenomenologia husserlia-na que se pode definir o empreendimento de Ric ur nos seguintes termos:ele tende a se desfazer do idealismo transcendental em proveito de umahermenutica dos textos, a qual implica uma forma de desapropriao doeu [je], em proveito de uma reapropriao do si [soi] (Stevens, 1990, p.11).

    A nosso ver, um caso patente dessa apropriao crtica da fenomenolo-gia husserliana, dispensando apenas seu idealismo, a teoria Ric urianada mediao do texto. A teoria da mediao do texto se constri a partir deuma teoria do signo e da lngua: -lhes correlata, porm sem se confundircom elas, justamente por sua natureza referencial. O texto, enquanto umdiscurso, se refere ao mundo, dizendo-o. No se refere ao mundo, contudo,de modo similar ao discurso oral, que pode recorrer s formas ostensivaspara garantir sua significao.11 O texto, enquanto um discurso escrito, noaponta para uma dada situao de objetos e dados emprico-sensveis. O

    10 Considerando, obviamente, o modo como Bernard Stevens define a fenomenologia: Com efeito,a fenomenologia husserliana indissoluvelmente: um mtodo, uma teoria e uma doutrina filos-fica. de um lado um mtodo descritivo: a anlise intencional. , em seguida, uma teoria daconstituio do sentido: uma problemtica da significao completada pela reduo. enfimuma doutrina filosfica: o idealismo transcendental (Stevens, 1990, p.10s).

    11 H uma limitao terica de Ric ur neste ponto, apesar da pouca relevncia a sua teoria do texto. que ele deixa de considerar o fato de que a designao por extenso, apesar de seu aparenteprimitivismo, no garante semanticamente uma relao entre nome e objeto, mas sim de que jcomo parte integrante de um discurso que ela funciona adequadamente, como Wittgenstein jhavia descoberto com sua teoria dos jogos de linguagem, e sua precedncia semntica. O que um pouco estranho se considerarmos o fato de que Wittgenstein no estranho para Ric ur, queescreveu um artigo aproximando Husserl e o filsofo austraco. Para tanto, cf. de Paul Ricur,Husserl and Wittgenstein on Language, in: Phenomenology and Existentialism, edited by E. N.and M. Mandelbaum, Johns Hopkins Press, 1967; citado por Bernard Stevens.

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    texto remete s referncias no-situacionais, abertas e projetadas pelo tex-to, enquanto dimenses simblicas do nosso ser-no-mundo (Ricur,1989d, p.190).

    Apesar do tom heideggeriano da expresso ser-no-mundo, a nfasedeve cair na idia de dimenso simblica. Enquanto tal, o mundo no atotalidade dos objetos radicalmente diversos da subjetividade, mas sim atotalidade simblica na qual a subjetividade est imersa, para alm de umasituao, em seu ato compreensivo de um texto. exatamente neste senti-do que o mundo do texto constitudo pelo texto enquanto seu referencial.O dizer o mundo que o texto efetua um constituir o mundo a partir da re-lao compreensiva que se estabelece entre o texto e o leitor, uma relaoque estabelece a pertena a partir do distanciamento entre o texto e o leitor.

    Ora, esta idia da constituio simblica como configurao e refigu-rao do mundo seguramente uma idia de origem husserliana. Ela apa-rece em vrios momentos da fenomenologia gentica de Husserl (e at emalgumas passagens da fase esttica), principalmente nas Ideen II, onde ateoria da constituio apresentada em sua forma mais acabada, e nas Me-ditaes Cartesianas texto-chave para seu idealismo. Tanto numa quantona outra obra, Husserl se vale de uma teoria ambgua da constituio, comoadverte o prprio Ric ur em seu estudo acerca das Ideen II. A constituio por um lado um exerccio de anlise intencional, que sempre parte, comoseu guia transcendental, do sentido j elaborado em um objeto que temuma unidade e uma permanncia diante do esprito (Ric ur, 1987a, p.88).Por outro lado, e a que se evidencia o idealismo husserliano, este sentidos o para uma conscincia, e numa conscincia; o que implica numa de-ciso metafsica radical:

    O retorno ao Ego conduz a um monadismo segundo o qual o mundo primor-dialmente o sentido desdobra meu Ego. Husserl, assumindo lucidamente a respon-sabilidade do solipsismo transcendental, tenta encontrar uma sada no conheci-mento de outrem que dever realizar este extraordinrio paradoxo de constituir emmim o estranho primeiro, o outro primordial: aquele que, subtraindo-me do mono-plio da subjetividade, reorganiza em torno dele o sentido do mundo e inaugura aperipcia intersubjetiva da objetividade. (Ric ur, 1987a, p.89)

    neste duplo jogo da constituio enquanto analise intencional e daconstituio de relaes entre o Ego em trs aspectos/nveis12 constitui-o da natureza material, constituio da natureza animada, e constituioda natureza espiritual na conscincia, que se pode caracterizar aquilo que

    12 Isto porque a teoria da constituio tal como apresentada nas Ideen II deve ser lida tanto comouma exposio gentica, quanto uma exposio estrutural da constituio do mundo.

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    Ric ur denominou de idealismo metodolgico e idealismo doutrinal da fe-nomenologia husserliana. E justamente a questo tematizada da intencio-nalidade que possibilita uma chave de leitura do carter referencial do textona leitura hermenutica de Ric ur.

    A temtica da intencionalidade explicitada por Ric ur em sua anli-se das Meditaes Cartesianas, a partir da Segunda Meditao, 14, emconjunto com a teoria da epoch. E como tal, pela temtica da intenciona-lidade, que a fenomenologia transcendental se apresenta como uma filo-sofia do sentido:

    a excluso do mundo [epoch] no suprime a relao ao mundo mais precisamentea faz surgir como superao do Ego para um sentido que se porta nele. Recipro-camente a reduo transcendental que interpreta a intencionalidade como visadade um sentido e no como algum contato com um exterior absoluto. (Ric ur, 1987c,p.173)

    Portanto, Husserl descobre e desenvolve da forma a mais completapossvel em seu aspecto idealista essa idia da intencionalidade reinterpre-tada luz da reduo transcendental. Afinal o Ego que ele postula no equi-vale ao cogito cartesiano, dado como evidente de uma forma prvia a tudoo mais. O Ego husserliano, enquanto idia, s tem sua evidncia garantidaa partir da constatao de suas cogitaes, isto , a partir da intencionali-dade de suas vivncias. O que no implica na precedncia de um externoao Ego, mas sim que h uma coincidncia entre a constituio da realidadee do Ego:

    Se toda realidade transcendental a via do eu [moi], o problema de sua consti-tuio coincide com a auto-constiuio do Ego e a fenomenologia uma Selbstaus-legung (uma interpretao de Si [Soi]), mesmo quando ela constituio da coisa,do corpo, do psiquismo, da cultura. O eu [moi] no simplesmente o plo sujeitooposto ao plo objeto ( 31), ele englobante: tudo Gebilde da subjetividade trans-cendental, produto de sua Leistung. (Ric ur, 1987c, 194)

    Uma dinmica anloga, Ric ur mesmo o reconhece, acontece com suahermenutica, a partir da dialtica entre a distanciao e a pertena nombito da mediao do texto. Contudo, onde Husserl ainda coloca o Egotranscendental no centro de sua fenomenologia, Ricur assume radical-mente o descentramento do sujeito de algum modo j preconizado porHusserl enquanto superao do dualismo cartesiano, mas reconsiderado nocontexto da teoria do sujeito transcendental, enquanto o universo de senti-do possvel colocando como uma espcie de resultado da mediao dotexto. O dizer o mundo do texto, constitui o mundo enquanto dimensosimblica na em medida que interage com uma subjetividade. No numa

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    relao de exterioridade, mas numa relao de insero; da insero dasubjetividade no mundo constitudo simbolicamente pelo dizer do texto tal como a teoria da constituio do mundo, expressa nas Ideen II e comple-mentada pela Krisis, culmina numa teoria da constituio do mundo en-quanto constituio da Lebenswelt. No toa que Ric ur compreende aLebenswelt como um pressuposto, e mais do que isso, como o paraso per-dido da fenomenologia (Ric ur, 1989a, p.38).

    O dizer o mundo, a natureza referencial do texto, assim, muito diver-sa da tarefa de nomear o mundo. No dizer o mundo, o que o texto faz cons-tiui-lo simbolicamente, sem necessariamente exigir uma subjetividadecomo instncia prvia de sentido e como sua condio fundamental. Massim estabelecendo um locus compreensivo a cada vez que lemos um texto,bem como estabelecendo um plexo de possibilidades de sentido que confi-guram e reconfiguram nossas aes e experincias (Ric ur, 1989a, p.30); eque, portanto, tambm constituem a ns mesmos, enquanto imersos nestemundo simblico, enquanto ser-no-mundo. Da a inevitvel natureza onto-lgica da hermenutica enquanto um processo de auto-reflexo do sujeito,sempre a partir de suas mediaes culturais e, especificamente, textuais. nestas mediaes e por meio delas, suas criaes, que o prprio sujeito seconstitui; no como um processo de auto-constituio, mas como resultadode um algo que se lhe tornou externo e autnomo: o texto.13 E esta consti-tuio de si se d enquanto compreenso de si:

    No h compreenso de si que no seja mediatizada por signos, smbolos e tex-tos; a compreenso de si coincide, em ltima anlise, com a interpretao aplicadaa estes termos mediadores. Ao passar de um para outro, a hermenutica liberta-seprogressivamente do idealismo com o qual Husserl tentara identificar a fenomenolo-gia. (...) O papel da hermenutica, dissemos ns, duplo: reconstruir a dinmica in-terna do texto e restituir a capacidade de a obra se projectar para fora na represen-tao de um mundo que eu poderia habitar. (Ric ur, 1989a, p.40 e 43)

    NALLI, M. Paul Ricur reader of Husserl. Trans/Form/Ao, (So Paulo), v.29(2),2006, p.155-180.

    ABSTRACT: The objective of this article consists of inventorying that way PaulRicur reads and he appropriates of elements of the philosophy of Husserl in hishermeneutical project. Like this, it is looked for firstly to characterize in general

    13 Claro que para Ric ur o sujeito no apenas se constitui mediante o texto, mas atravs de smbo-los e signos culturais em geral. Contudo ao texto que Ric ur confere o carter paradigmticopara sua hermenutica.

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    lines the history of the contemporary hermeneutic. In a second moment, we es-tablished a first delimitation of the hermeneutic of Ricur characterizing someof their central problems. Finally, in a third moment, we tried to observe likeRicur retakes the husserlian philosophy to give bill of their own hermeneuticalreflections.

    KEYWORDS: Ric ur; Husserl; Phenomenology; Hermeneutic; World of the Text.

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