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Ballestê, R. & Portugal, F. T. 30 Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014 I Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), Brasil Visualidade Moderna: Reflexões acerca da Obra de Goethe e Schopenhauer Modern Visuality: Reflections about Goethe’s and Schopenhauer’s Works Rômulo Ballestê I Francisco Teixeira Portugal I Resumo Este artigo indica a importância do Doutrina das cores (1810), de Johann Wolfgang von Goethe, para o surgimento de um novo regime de visualidade no século XIX, o modelo de visão subjetiva na cultura ocidental. Sua postura radicalmente nova diante do fenômeno cromático defende o olho como um órgão vivo e, com isso, funda a visualidade como produto da ação fisiológica do olho. Schopenhauer, influenciado pelo trabalho de Goethe, desenvolverá a visão subjetiva por meio da divisibilidade retiniana. Embora Goethe tenha realizado um trabalho inovador, a historiografia da Psicologia moderna, ao se apoiar epistemologicamente no método positivo das ciências naturais, não o incluiu em seu domínio, restringindo-o a uma espécie de excentricidade do espírito do poeta. Acreditamos que a história da Psicologia possa ser repensada. Palavras-chave: Psicologia da percepção; modernidade visual; Goethe; Schopenhauer. Abstract is article points out the value of the Johann Wolfgang von Goethe’s eory of Colours (1810) for the emergence of a new visuality regime in the 19th century, the pattern of subjective vision in the Western culture. His radically new attitude towards the chromatic phenomenon stands that the eye is a living organ and, therewith, it founds the visuality as a product of the physiological action of the eye. Schopenhauer, influenced by Goethe’s work, will develop the subjective vision through the retinal divisibility. Although Goethe carried out a innovative work, the historiography of the modern Psychology, by supporting itself epistemologically on the positive method of the natural sciences, did not include Goethe’s work in its domain, restricting it to a sort of eccentricity of the poet’s spirit. We believe that the history of Psychology can be rethought. Keywords: Psychology of perception; visual modernity; Goethe; Schopenhauer. Este artigo pretende discutir a compreensão subjetiva de óptica a partir da crítica de Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) à concepção física elaborada por Isaac Newton (1642–1727) e contribuir para a revalorização do trabalho do primeiro para a Psicologia moderna. A crítica de Goethe incide diretamente sobre a proposta mecanicista que concebe a produção das cores como efeito do grau de refringência dos raios luminosos. A separação entre interior e exterior pressuposta na óptica newtoniana é abolida pela formulação goetheana de cor. Nela, as cores são produzidas por uma ação do próprio olho concebido como órgão vivo em unidade com a luz. A tese newtoniana da segmentação das cores resulta da compreensão de que elas derivam de ações da luz realizadas no espaço exterior ao observador, exterior ao olho, portanto. Para Goethe, em contraste, as cores tornam-se uma realidade por uma ação fisiológica, isto é, por uma ação corporificada que necessita do olho do observador. Há uma atividade de fabricação própria e intrínseca ao olho. Deste modo, segundo Goethe, “o olho se põe em atividade logo que percebe a cor e é de sua natureza produzir imediatamente, de forma tão inconsciente quanto necessária, uma outra [cor] que, juntamente com a primeira, compreende a totalidade do círculo cromático” (Goethe, 1810/1993, p. 146). Essa ideia formulada por Goethe exercerá impacto no pensamento do jovem Arthur Schopenhauer (1788– 1860), que pretenderá dar continuidade ao trabalho do poeta de Weimar. Schopenhauer, diferentemente da concepção doutrinária de Goethe, tentará desenvolver uma espécie de teoria matematizada da divisibilidade da ação retiniana. Além da opção pela teorização que o distanciava da preferência de Goethe pela doutrina das cores, Schopenhauer sofrerá ainda influência de fisiólogos e filósofos do materialismo francês de sua época. Dessa forma, nosso trabalho está organizado da seguinte maneira: primeiro, apresentaremos a concepção newtoniana de óptica e a decomposição dos raios luminosos em diferentes cores; em seguida, exporemos a crítica feita por Goethe à elaboração de Newton e a originalidade da posição defendida no Doutrina das cores ao encarnar no organismo a atividade da produção das cores. Por fim, indicaremos como Schopenhauer, além do esforço de teorização, aprofunda a ruptura realizada por Goethe em relação DOI: 10.5327/Z1982-1247201400010004

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Ballest, R. & Portugal, F. T.30Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014IUniversidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), BrasilVisualidade Moderna: Reflexes acerca da Obra de Goethe e SchopenhauerModern Visuality: Reflections about Goethes and Schopenhauers WorksRmulo BallestIFrancisco Teixeira PortugalIResumoEste artigo indica a importncia do Doutrina das cores (1810), de Johann Wolfgang von Goethe, para o surgimento de um novo regime de visualidade nosculoXIX,omodelodevisosubjetivanaculturaocidental.Suaposturaradicalmentenovadiantedofenmenocromticodefendeoolho comoumrgovivoe,comisso,fundaavisualidadecomoprodutodaaofsiolgicadoolho.Schopenhauer,infuenciadopelotrabalhode Goethe, desenvolver a viso subjetiva por meio da divisibilidade retiniana. Embora Goethe tenha realizado um trabalho inovador, a historiografa da Psicologia moderna, ao se apoiar epistemologicamente no mtodo positivo das cincias naturais, no o incluiu em seu domnio, restringindo-o a uma espcie de excentricidade do esprito do poeta. Acreditamos que a histria da Psicologia possa ser repensada.Palavras-chave: Psicologia da percepo; modernidade visual; Goethe; Schopenhauer. AbstractTis article points out the value of the Johann Wolfgang von Goethes Teory of Colours (1810) for the emergence of a new visuality regime in the 19th century, the pattern of subjective vision in the Western culture. His radically new attitude towards the chromatic phenomenon stands that the eye is a living organ and, therewith, it founds the visuality as a product of the physiological action of the eye. Schopenhauer, infuenced by Goethes work, will develop the subjective vision through the retinal divisibility. Although Goethe carried out a innovative work, the historiography of the modern Psychology,bysupportingitselfepistemologicallyonthepositivemethodofthenaturalsciences,didnotincludeGoethesworkinitsdomain, restricting it to a sort of eccentricity of the poets spirit. We believe that the history of Psychology can be rethought. Keywords: Psychology of perception; visual modernity; Goethe; Schopenhauer.Esteartigopretendediscutiracompreenso subjetivadepticaapartirdacrticadeJohann WolfgangvonGoethe(17491832)concepo fsicaelaboradaporIsaacNewton(16421727)e contribuir para a revalorizao do trabalho do primeiro paraaPsicologiamoderna.AcrticadeGoethe incidediretamentesobreapropostamecanicista que concebe a produo das cores como efeito do grau de refringncia dos raios luminosos. A separao entre interioreexteriorpressupostanapticanewtoniana abolidapelaformulaogoetheanadecor.Nela,as coressoproduzidasporumaaodoprprioolho concebidocomorgovivoemunidadecomaluz. Atesenewtonianadasegmentaodascoresresulta dacompreensodequeelasderivamdeaesdaluz realizadasnoespaoexterioraoobservador,exterior ao olho, portanto. Para Goethe, em contraste, as cores tornam-se uma realidade por uma ao fsiolgica, isto , por uma ao corporifcada que necessita do olho do observador. H uma atividade de fabricao prpria e intrnsecaaoolho.Destemodo,segundoGoethe,o olhosepeematividadelogoquepercebeacore de sua natureza produzir imediatamente, de forma to inconscientequantonecessria,umaoutra[cor]que, juntamente com a primeira, compreende a totalidade do crculo cromtico (Goethe, 1810/1993, p. 146). Essa ideia formulada por Goethe exercer impacto no pensamento do jovem Arthur Schopenhauer (17881860),quepretenderdarcontinuidadeaotrabalhodo poetadeWeimar.Schopenhauer,diferentementeda concepodoutrinriadeGoethe,tentardesenvolver umaespciedeteoriamatematizadadadivisibilidade daaoretiniana.Almdaopopelateorizaoqueo distanciavadaprefernciadeGoethepeladoutrinadas cores, Schopenhauer sofrer ainda infuncia de fsilogos e flsofos do materialismo francs de sua poca.Dessaforma,nossotrabalhoestorganizado daseguintemaneira:primeiro,apresentaremosa conceponewtonianadepticaeadecomposio dos raios luminosos em diferentes cores; em seguida, exporemosacrticafeitaporGoetheelaborao deNewtoneaoriginalidadedaposiodefendida noDoutrinadascoresaoencarnarnoorganismoa atividade da produo das cores. Por fm, indicaremos comoSchopenhauer,almdoesforodeteorizao, aprofunda a ruptura realizada por Goethe em relao DOI: 10.5327/Z1982-1247201400010004Visualidade Moderna31Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014ao trabalho de Newton ao enfatizar, curiosamente, a divisibilidade retiniana na produo das cores.Devemosressaltarque,aoindicarmosesses trabalhosrelativamenterarosnahistriadaPsicologia, pretendemos ampliar o campo de discusso da Psicologia dapercepo,possibilitando,assim,umdilogocom avisualidademodernapordiferentesvisadas:esttica, histrica, epistemolgica e de ensino da Psicologia.A ptica de Isaac NewtonPor volta de 1666, Sir Isaac Newton, aos 23 anos de idade, realiza alguns experimentos em ptica quando sededicavatarefadepolimentodediferentesformas de lentes e produz um dos grandes livros cientfcos, o ptica,publicadosomenteem1672.Asexperincias constituemdemonstraesqueeleexibecomoprova paraseusteoremasesuasproposies.A experincia pticarealizadaemseuprprioquartoconsisteem escurec-loefxarumprismatriangularemum pequeno orifcio (foramen exiguum) de sua janela a fm depermitirtosomenteaentradadeumapequena quantidadedaluzdosol.Noquartoescuro,oprisma refrataaluzqueentra pelafendaeformaaimagem na parede oposta a essa pequena abertura. Os aspectos entoproblematizadospercorreroumcaminhoque vaidanaturezadascoresprprianaturezadaluz aque Newtonatribuirumacondiocorpuscular ematerial.Nessasconsideraes h,paraNewton, umainvarinciadaspropriedadesdaluz:elasnoso alteradas, quaisquer que sejam as refraes, refexes ou infexes dos raios luminosos e essa invarincia pode ser verifcada pela permanncia da cor. Assim, da natureza das cores ser propriedade original e inata da luz. Osestudosnewtonianos,decertomodo, reproduziamomodelodacmaraobscura,bastante conhecidodesdeosculoXIV.nasdemonstraes realizadasnessasexperinciasqueeleatribuis propriedades intrnsecas dos raios luminosos a gerao de diferentes cores em detrimento da ideia tradicionalmente aceita de que elas so fruto da mistura de luz e sombras. Nademonstraodasextaexperincia,desenvolvida desde 1666 mais tarde, conhecidacomo experimentum crucis (experincia crucial) , ele conclui que a cor no uma mistura de luz e sombra. Aexperincia foi assim descrita por Newton:Numa sala escura coloquei em um orifcio circularde1/3depolegadadedimetro quefznafolhadajanelaumprismade vidroporondeofeixedaluzsolarque entrasse pelo orifcio pudesse ser refratado paracimaemdireoparedeopostada sala, formando ali uma imagem colorida do sol (Newton, 1704/2002, pp. 54-55). Otrabalhodaptica,deIsaacNewton,est incontornavelmenteapoiadonadivisoentreuma representaointerioreumarealidadeexterior aoobservador.Oaparatodacmeraobscura materialmenteexterioraoprprioobservadorea formaodaimagemdeve-seaojogogeomtrico dosraiosvisuais.Cabeaoobservadorapassividade darecepodosraiosluminosos,poistodoo trabalhodeproduoperceptualdaimagemderiva daexterioridadeartifcialdaformaodaimagem nacmaraescuraplasmadapormeiodosraios luminosos que penetram a cmera obscura em relao ao observador. Jonathan Crary aponta que, AatividadefsicaqueNewtondescreve com o pronome em primeira pessoa refere-senooperaodesuaprpriaviso, masantesaoseuempregode[sic]um instrumentoderepresentaotransparente e refrativo. Newton menos o observadore maisomontadordeumaparato,decujo funcionamentorealeleestfsicamente separado.Emboraesseaparatonoseja estritamente uma cmara escura ( possvel substituirumprismaporumalenteplana ouumpequenoorifcio),suaestrutura fundamentalmente a mesma: a representao de um fenmeno exterior ocorre dentro dos limites retilneos de um aposento escurecido, uma cmara ou, nas palavras de Locke, uma cabine vazia (Crary, 2012, pp. 46-47).O quarto escuro constitui, consequentemente, o instrumento produtor da representao. Vale insistir quetalrepresentaoresultadocomportamento mecnico da prpria refringncia dos raios luminosos, nada devendo ao observador. Para ilustrar a relevncia dos segmentos geomtricos na concepo newtoniana, reproduziremosaseguirapassagemdoAxiomaVII do Livro I, parte I (seguida de uma fgura extrada da edio brasileira do prprio livro de Newton):Assim,sendoPRarepresentaodeum objeto qualquer sem aberturas e AB uma Ballest, R. & Portugal, F. T.32Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014lentecolocadaemumorifciofeitona folha da janela de um quarto escuro, por ondeosraiosqueprovmdequalquer pontoQdesseobjetosoconvergidos eserenemdenovonopontoq;e segurandoemqumafolhadepapel brancoparaquealuzincidasobreela, aimagemdesseobjetoPRapareceno papel com a prpria forma e as prprias cores. Pois assim como a luz provm do ponto Q se dirige para o ponto q, assim a luz que provm de outros pontos P e R doobjetosedirigemparatantosoutros pontoscorrespondentesper;demodo que todo ponto do objeto iluminar um pontocorrespondentedoquadroepor esse meio far um quadro como o objeto emformaecor;salvoqueoquadro serinvertido.[]Analogamente, quandoumapessoaolhaparaqualquer objeto PQR, a luz que provm de vrios pontosdoobjetorefratadapelapele transparenteepeloshumoresdoolho (isto , pelo revestimento externo EFG, ou tunica cornea, e pelo humor cristalino AB que fca depois da pupila mk), de modo a convergir e se reunir de novo em vrios pontos do fundo do olho, onde forma a imagem do objeto na pele (que se chama tunicaretina)querecobreofundodo olho. Pois os anatomistas, quando retiram dofundodoolhoapelculaexternae muito espessa que se chama dura mater, conseguem ver atravs das pelculas mais fnas as imagens dos objetos vividamente formadasdelas.Eessasimagens,que sepropagamparaocrebroporum movimentoqueacompanhaasfbras dosnervospticos,soacausadaviso (Newton, 1704/2002, pp. 47-48).AFigura1ilustrabem,aindaquedeforma esquemtica,aconcepogeomtricaderaios luminososincidindosobreoolhoparaformara imagem.Taisraiosluminososprovenientesdeum pontoexterioratravessamasdiferentespartesque constituemanatomicamenteointeriordoglobo ocularesofrem,consequentemente,asalteraes prpriasrefraodasdiferentesdensidadespara atingir pontualmente o interior do olho.O Olho GoetheanoJohannWolfgangvonGoethe,apsuma viagemItlia,em1791,realizaumasriede experimentos sobre a natureza das cores, sua relao com a luz e as condies de manifestao dascores utilizandoprismaselentes.Asconsequncias dessesestudoscromticosestonasuaFarbenlehre (DoutrinadasCores)eapresentamumaposio crticaemrelaoconcepodomatemtico ingls Isaac Newton, cuja teoria da divisibilidade da luztaxadadeartifcialistaporGoethe. Talcrtica constituiumpassodeextremaimportnciapara aconstituio de um novo regime da visualidade no qual as cores so produzidas de trs maneiras: fsica, qumica efsiolgica.Aopriorizaraaofsiolgicanaproduo cromtica, Goethe encarna no prprio olho, isto , na aodoorganismo,agnesedascores.A separao entre interior e exterior decorrente do funcionamento dacmaraescuranoqualaluzpenetraerealizaa imagemserradicalmentecriticadapeloescritor alemo.Algunsanosmaistarde,otrabalho doflsofoArthurSchopenhauerenfatizaresse aspectofsiolgicodavisodesenvolvidonaobrade Goethe,propondoadivisibilidaderetiniana.Para podermossituaroleitorquantoimportnciado trabalho de Goethe e tornar mais clara a virada que a percepo encarnada no olho do observador, percepo fundadananoodevisosubjetiva,promovena histriadavisualidadeocidental,apresentaremos brevementealgunstraoscaractersticosdadoutrina elaborada por Goethe. No entanto, no somente um deslocamento do observador externo que o trabalho de Goetherealiza.SegundoJonathanCrary,Goethe abandonaomodelo/regimeepistemolgicoeptico da cmera escura e, dessa maneira, dissolve a distino entreespaointernoeexterno(Crary,1988,p.4). agora, no interior do prprio corpo, que as imagens seproduziro;nacorporeidadedoobservadorque aperceposergerada.Asubjetividadecorporal Figura1.Analogiadacmaraescuracomoolho humano. Retirada de Newton (1704/2002, p. 48)PEmkAGBF QRVisualidade Moderna33Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014doobservador,quefoiaprioriexcludadacmera escura,repentinamentetorna-seolugaremqueum observador possvel (Crary, 1988, p. 4). O interesse de Goethe pela atividade cientfca amplo e vem desde os tempos em que, embora fosse umjovemestudantedeDireito,assistiasaulasde qumica,medicinaeanatomia,almdevasculhar numerososestudosdosculoXVIIIsobrecores. Taisestudos podem ser agrupados em duas tendncias (Roque, 1995, 1996, 2009). Deumlado,tomoucorpoumatendncia cientfcalevadaacabopornaturalistasque pretendiamdesenvolverumsistemalgico quearticulasseascoresentresiapartirdeuma irredutibilidadefundamental,asaber:ascores primriasexpressasnoscrculoscromticosde coresopostas.Atendncianaturalistainaugurada porBufondesenvolveaideiadecoresacidentais, isto,coresformadasporparesdecoresopostas comonosfenmenosdecontraste.Omdico RobertWaringDarwin,paideCharlesDarwin, produzirumarefexosobreascoresacidentaisde Bufon,sugerindoumaexplicaosistemticados fenmenossubjetivosdacorapartirdaexistncia defbrasmuscularesqueatuariamcomoagentes naretina.Outrosnaturalistasquedesenvolvero estudosimportantessobreofenmenocromtico so Moses Harris e Schifmller. Deoutrolado,edifcou-seumatendncia esttica,realizadaporaquelesqueseenvolviamde forma prtica com o trabalho com as cores. Dentre os artistas do sculo XVIII interessados pelo estudo dascores,encontramosogravadoralemoLeBlon e o pintor francs Claude Boutet. Tanto a tendncia naturalistaquantoaestticasefortaleceramno sculoXIXeoconceitodecorescomplementares marcaropontohistricodessecruzamento. Acomplementaridadecromticaestarpresente,a partir do sculo XVIII, em diversas teorias e crculos cromticostantodosnaturalistasquantoporparte dos tericos da pintura, na tentativa de composio de uma melhor harmonia entre as cores. A propagao daquestodascorescomplementaresclaramente encontrada no trabalho de Michel-Eugne Chevreul1 Lei de Contraste Simultneo das Cores (1861). Nele, a estreitaligaodascorescomplementarescom avisosubjetivaelaboradaprincipalmenteno quedizrespeitoaofenmenodeps-imagem. AconcepodecorformuladaporGoetheno seenquadraemnenhumadessasduastendncias dosculoXVIII.Seutrabalhocaminhaporuma viabastantediferenteeseesforaparaafastara DoutrinadasCoresdaexignciadematematizao edeformalizaogeomtricacorriqueiranaptica inglesa.Odistanciamentodamatemticaproposto no livro leva a uma aproximao dos coloristas e de suas tcnicas de tingimento. Se nos distanciamos do trabalho do matemtico, procuramos, ao contrrio, a tcnica do colorista (Goethe, 1810/1993, p. 130). Kestler(2006)destacaoaspectocientfcoda obradeGoethecomocondiofundamentalparaa compreenso da obra potica. Dessa forma, podemos ver que no estudo da botnica, nas investigaes anterioressobreaanatomia,ageologia eazoologia,eposteriormentena investigaosobrealuzeascoresem suaFarbenlehre,quevaiserevelandoe delineandoopropsitodeGoethede tentar apreender o processo formativo da natureza viva como modelo de qualquer forma artstica (Kestler, 2006, p. 46).As conversas com seu secretrio Johann Peter Eckermann demonstram que o interesse de Goethe pelofenmenocromticonoestrestritoquilo quefoidesenvolvidonoseuDoutrinadasCores, masseinscreveemumconjuntonosistemtico detrabalhosacercadediversostemascientfcos. O comentador Gnter Kollert (1992), investigando textos originais de Goethe, revela a dimenso desses trabalhos sobre as cores. Kollert afrma que o trabalho cromticodeGoetheestdivididoemtrspartes: uma parte didtica Doutrina das Cores, publicada em1810,umapartepolmicaRevelaessobre a TeoriadeNewton,nopublicadaporGoetheem decorrncia da crtica demasiadamente pesada e com tomdeescrnio(oRevelaessveioapblicoem 1831poucoantesdesuamorteem1832),euma partehistrica,totalizandomaisde700pginas (Kollert, 1992, p. 10).Paracompreendermosopassodadopela Doutrinadascoresnaconstituiodeummodo devisibilidade,faz-senecessrioentendermosa experinciarealizadaporGoethe.Apesardeutilizar 1A respeito do trabalho do qumico francs Michel-Eugne Chevreul e da lei dos fenmenos de contrastes de cores a partir do tingimento detecidos,bemcomoodesdobramentocientfcoeartsticoque essetrabalhoteve,pode-seconsultarolivro:Roque,G.(2009). Art et science de la couleur: Chevreul et les peintres, de Delacroix labstration. Paris: ditions Gallimard.Ballest, R. & Portugal, F. T.34Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014oquartoescuro,assimcomoNewton,oprincpio defuncionamentodacmeraescurafoisubvertido. Extramosotrechoemqueoautordescreve oexperimentoedemonstraoefeitofsiolgicona produo de imagens circulares. Num quarto o mais escuro possvel, deixe queosolbrilhe,porumafrestadetrs polegadasdedimetronajanela,sobre um papel branco e olhe de certa distncia fxamenteparaocrculoiluminado. Quando fechamos a abertura e olhamos paraapartemaisescuradoquarto, vemosdiantedensumaimagem circular.Omeiodocrculoparecer claro, incolor, tendendo moderadamente aoamarelo;aborda,entretanto,logo parecerprpura.Demoracertotempo para que essa cor prpura possa encobrir, da borda para o centro, o crculo inteiro, eliminandofnalmenteporcompleto ocentroclaro.Assimqueoprpura aparecenocrculointeiro,aborda comea a se tornar azul, encobrindo por suavezgradualmenteacorprpura. Quandoaimagemestcompletamente azul,abordasetornaescuraeincolor, demorandomuitoparaqueaborda incolor expulse o azul e todo o espao se torne incolor (Goethe, 1810/1993, p. 62).OefeitoconstatadoporGoethedecorredo fechamento da pequena entrada de luz e da manuteno da observao do local em que a luz incidia na parede oposta.Oexperimentomostracertapermannciadas coresmesmonaausnciadaluz.Aaovisual,soba forma de transformaes cromticas, requer que o olho agoraorgnico,corporifcadosejacorresponsvel pelaproduodascores.Oenraizamentodavisono corpohumanoencarnaoobservadornamaterialidade orgnica e fsiolgica do organismo e desloca em direo aumacinciadavisotantoosesforosintelectuais eadiscursividadesobreavisocomoaelaborao dosaparatosmecnicosdaluz.Umnovoestatuto devisualidadeseinstauraquandoovisvelescapada ordemincorpreaeatemporaldacmeraobscuraese torna apresentado em outros aparatos, dentro da instvel fsiologia e da temporalidade do corpo humano (Crary, 1988,p.5). Veremosmaisadiantequeapassagemda viso subjetiva encontrada em Goethe para a fsiologia dos sentidos no ser direta ou contnua.Avisosubjetivaconferemaisimportncia participaoativadoaparatofsiolgicodo observador do que s qualidades sensveis prprias ao objeto perceptual. Ela desarticula a dependncia restritaaosstimuliexternosparaaproduodo percepto.Humdeslocamentodaexterioridade doobjetoperceptualparaasubjetividadedo observadoretaldeslocamentorepresentauma mudanadeparadigmadevisualidade.Isto, humamodifcaodeumapticaoufsicada percepo para uma Psicologia da percepo2.Avisosubjetivasignifca,principalmentea partir dos estudos de cores de Goethe, um modelo devisoqueremeteaoaspectofsiolgicodo corpo.Podemosdefnirvisosubjetivacomoa [...] noo de que a qualidade de nossas sensaes dependemenosdanaturezadosestmulosemais da constituio e funcionamento de nosso aparato sensorial(Crary,1994,p.21).Otrabalhode Goethepossuiumadiferenadenaturezaem relao ao realizado por Newton, o que aponta para um corte radical no que diz respeito ao estatuto da visualidadeclssica.Goethepretendeuinvestigar ascondiesnecessriasparaamanifestaodo fenmeno das cores. Isto , no realizou nem uma fsicadofenmenoluminosonemumalgicadas cores,comofezomatemticoingls.Aexistncia dacorserealizacomoumfenmenoquenose restringeFsica,sendopensada,portanto,como algoqueescapaaessedomnio.Ofenmenoda cor, no sentido goetheano, deve ser articulado com a prpria experincia da cor:Ascoresquevemosnoscorposnoso algocompletamenteestranhasaoolho, como se de algum modo fosse a primeira vez que tivesse tal sensao. Ao contrrio, essergosempresedispeaproduzir, por si mesmo, as cores, e desfruta de uma sensao agradvel, quando externamente se apresenta algo adequado a sua natureza esefxademodosignifcativosua capacidade de ser determinado numa certa direo (Goethe, 1810/1993, p. 140).2O detalhamento histrico que permite compreender as diferenas existentes entre uma fsica da percepo, uma fsiologia da percepo e uma Psicologia da percepo demandam um trabalho bem mais extensoemrelaoaospropsitosdesteartigoeseroobjetosde estudos ulteriores.Visualidade Moderna35Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014Sobre esse ponto incidir a produo discursiva deumsujeitopsicolgicodapercepo pelas disciplinas empricas ao longo do sculo XIX, dentre asquaisseencontraaPsicologiadapercepo. Tais disciplinas,queFoucault(2007)chamade cincias empricas, produzem no apenas um objeto, masdiferentesobjetosquesurgem,setransformam, coexistem e se articulam num espao comum, cujas relaes delimitam e especifcam os prprios objetos. Essessistemasderelaessoasregrasmesmasque caracterizam um discurso sobre a visualidade, no sculo XIX;umaformaodiscursivaatravsdediversos documentoscientfcos,flosfcos,pictricos,que confguram um saber acerca da visualidade moderna. Portanto, uma srie de prticas discursivas instaurou avisualidadenaprpriaorganicidade.Essesujeito psicolgico ser inseparvel de um observador ativo, produtorautnomodoscontedospercebidospor ele. A viso subjetiva realizar a inseparabilidade entre esseobservadorposicionadoeativoeumsujeito psicolgico.Issoserlevadoadiantepelostrabalhos da Fisiologia e da Psicofsica, que proliferaro durante osculoXIX,sobostemasdaateno,percepo, memria,pensamentoquecompemosprocessos mentais bsicos. Para Crary, prpria do modelo moderno da viso uma espcie nova de observador. Ele forjado noencontrodosnovosdiscursosdisciplinaresa respeitodavisocomnovosaparatostcnicos, produzindo,comisso,adimensodeumespao internoautnomoetambm,deformaativa,da prpria realidade visual. A viso possuir um carter dissociadodomundoobjetivoeseuresultado, portanto,noprovenienteexclusivamentedos dadosqueafetamoaparelhosensorial,poisa atividade do organismo que confere o efeito da viso. ParaCrary,seosdiscursosdovisvel,nossculos XVIIeXVIII,abafarameesconderamtudooque ameaasse a transparncia do sistema ptico, Goethe assinalaumainverso,porafrmaraopacidade doobservadorcomocondionecessriaparao aparecimento do fenmeno (Crary, 1988, p. 6).AsexperinciasdeGoetheinterlaama criatividadedasformascientfcaeestticaacerca dofenmenocromtico,levandoacaboum processoinvestigativodiferentedomodeloanglo-saxo.Goetheapresentaumacontraposios teoriaspticasdefendidas100anosantespor IsaacNewton.Assim,contrrioposiofsico-matemticadefendidaporNewton,queGoethe lanarsuacrticaaoreducionismoinerenteao modelocientfcodeexplicaodavisoapartir deumconjuntodeprismaselentes.ADoutrina dasCorespertenceaesseesprito,quesefunda numagravecrticaaomaisrigorosocientifcismoe mecanicismo presentes em toda a fsica newtoniana. Naconcepodepolaridadedacromatognese, termo usado por Kollert (1992, p. 34), Goethe retira o aspecto negativo da no luz (trevas) que a cincia dapticaafrmavaeconcebeumasolidariedade qualitativamenteprprianoluzeluzna produo da cor. A cor um atributo fenomnico.AanlisedeTantillo(2007)examinaas qualidades dinmicas inerentes polaridade, a partir dodesenvolvimentodoolhogoetheanopresentena DoutrinadasCores.Paresdeopostosquehabitam adivisoclssicanaFilosofasoreinterpretados pelopensamentodeGoethe,quandoelepostula umarelaodefuideznaligaoentreospolos quecontemplaapossibilidadedereversibilidade dasposies.OspolosSujeitoxObjeto, Sensualidade x Razo,IdealxReal,dentre vriosoutros,tornam-seinseparveis,comonas polaridadesdeumim.A presenadaexterioridade dada no interior do corpo prprio, cabendo ao olho mesmofabricar a realidadeexterior num dinamismo intrnseco visualidade. Nodesenvolvimento da obra sobre cores, isso fca claro, pois, como nos diz Tantillo, TodaaestruturadeFarbenlehrede Goetheestbaseadanoprincpiopolar. Otextocomeadescrevendoascores como Taten und Leiben (aes e paixo) daluz.Logosetornaevidentequetoda anaturezaparticipadepolaridades, quesecaracterizamcomooSprache [linguagem]danatureza(Tantillo, 2007, p. 271).Comopaixeseaesdaluz,ascoresse constituemnaaodoprprioolhoqueasproduz. Goethe desfaz a exterioridade prpria contemplao clssica do observador. No h um mundo de objetos, ou mesmo a natureza, a servir contemplao. As cores esto por toda parte, desde as superfcies dos objetos visveis,eexistemnacoexistnciadepolaridades naatividadefsiolgicadoobservador,atravsdos fenmenosdeps-imagem,dapermannciada imagem,contrastescromticoseoutrosquesero abordados no ltimo captulo da Doutrina das Cores, Ballest, R. & Portugal, F. T.36Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014bemcomotambmnaculturacomoumtodo,por meio de seus aspectos sensveis e morais. NoensaiointituladoGoetheandKantian Philosophy,ErnstCassirer(1970)mostra,em determinadomomento,queaideiademorfologia concebidaporGoetherepresentaumaimportante modifcaometodolgicaparaaBiologiadosculo XVIII e marca o incio da Botnica. Tal concepo de morfologiaculminaemsuateoriadametamorfose. Nesta,atransformaoeformaodanatureza orgnica est diretamente ligada transio da viso genricadasplantas,ouseja,humapassagem daclssicaexpressodosistemadanaturezade Linnaeus em sucessivos arranjos para a viso gentica danaturezaorgnicaenquantoprodutora,isto, dotadadeumacapacidadeinternadeprodutividade num processo de autoengendramento. Cassirer afrma queaideiademetamorfosetorna-seoguianeste grande processo de produtividade interna da natureza (1970, p. 92,). Portanto, o olho goetheano, que a prpria aodaretinaenquantorespondendoativamentepela imagemproduzida,estemsintoniacomacapacidade deformaoetransformaodanaturezaorgnica que Goethe chama de morfologia. A cromatognese est diretamente ligada a sua ideia de morfologia.A noo goetheana de visualidade funde aspectos poticos,cientfcoseliterrioserealizaumolho queapossibilidadedeunifcaodaexterioridade nasubjetividade.Ummonismoontolgicoocorre apartirdaaoorgnicadoolhonaproduodas cores. Ao defender o olho como um rgo vivo e no separado da natureza, Goethe inaugura uma postura radicalmente nova em relao ao fenmeno cromtico. Ele compreender que um fundamento da experincia sensvelintrinsecamenteligadoexperinciada cor.Poressarazo,Goetheacusarotrabalhode Newtondeartifcialismo,poiseste,aotomaracor comoumfenmenopuramentefsico,desconsidera aorganicidadeeaatividadeprpriaaorgona atividadeperceptual.Aefetividadedaaosobreo mundoestdiretamenteimplicadanopensamento doliteratoalemonumaunidadeentreluz,olhoe natureza; portanto, a equivalncia da retina parede do quarto escuro revela um completo afastamento da vida.OolhogoetheanodoqualfalaasuaDoutrina das Cores o olho responsvel pela viso subjetiva. Isso quer dizer que a percepo est encarnada no prprio olho do observador. O olho produzido pela luz, ele [...] deve a sua existncia luz [] a luz produz um rgoquesetornaseusemelhante.Assim,oolho seformanaluzeparaaluz(Goethe,1810/1993, p.44). Para Goethe, as cores so aes e paixes da luz (1810/1993, p. 35) e, dessa forma, relacionam-se numa harmonia imanente.Maisumavez,noensaiodeCassirer sobreGoethe(1970),fcaexplcito,emalgumas correspondnciaspessoais,oesforoquefazGoethe para evitar qualquer forma de simbolismo numrico nacompreensoenoentendimentodosfenmenos da natureza; to forte a sua repulsa ao caminho da matemticaqueeleafrmaterplanosdesubstituir uma notao numrica pelas notas musicais (Cassirer, 1970, p. 81). nesse ponto, sobretudo, que Goethe irdiscordardotrabalhodeSchopenhauer,como discutiremos logo adiante.A Divisibilidade de SchopenhauerO tratado Sobre a Viso e as Cores (1816/2003), deSchopenhauer(1788-1860),foipublicadoem 1816, seis anos aps a publicao Doutrina das Cores, esofreuexplcitainfunciadotrabalhodeGoethe. Comoafrmamosanteriormente,Goetheeracrtico daposiocientifcistaacadmicaquepretende tomarumaposiodeexterioridadeemrelaoao fenmeno estudado. O prprio ttulo do trabalho de Goethe afrma essa posio, pois o vocbulo doutrina (Lehre)3apresentaofatodequeascoresnodevem seranalisadasteoricamente,massimexperienciadas narealidadedavivnciacromtica.Noentanto,a primeiraconsideraodeSchopenhaueremrelao ao Doutrina das Cores diz respeito sua incompletude decorrente, ainda segundo o autor, do fato de Goethe ter se restringido dimenso da experincia. importanteenfatizarmosadiferenaentre doutrinaeteoria,nosentidoestabelecidopor Goethe, para pensarmos a relao entre visualidade e Psicologia moderna. O termo doutrina aponta para a 3A traduo brasileira de Marco Giannotti (1993) adverte para esse aspecto e toma o termo alemo Lehre como doutrina, isto , o toma na sua acepo mais prxima da pensada por Goethe, que inclusive fazumusopejorativodotermoTeorieaolongodeseuescrito. DiversasediestraduzemFarbenlehrecomoTeoriadasCores, masseguiremosatraduocitadaanteriormenteporjulgarmosa coerncia na adoo do vocbulo doutrina com o restante da obra. Como o tradutor da obra de Goethe faz a apresentao da traduo brasileira do livro Sobre a viso e as Cores, de Arthur Schopenhauer, encontramos uma nota referida questo da traduo do ttulo do livro de Goethe. Essa opo toca diretamente num ponto de crtica feito por Schopenhauer e que nos parece um pouco distante do que se prope a flosofa goetheana. Schopenhauer pretende completar o trabalho de Goethe, realizando uma teoria que ele esperava, mas que nos parece que no caberia mesmo ser realizada por Goethe.Visualidade Moderna37Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014experincia psicolgica que o indivduo de forma intuitiva ou espontnea pode ter, enquanto o termo teoriacapturaaexperinciacomoexperimentao analtica, repetitiva e artifcial que deve ser postulada necessariamentepelalinguagemmatemtica.Para Goethe, a experincia no era separvel da teoria numa relaomtuaentreosfenmenoseasexplicaes dessesfenmenos.Assim,emboraasuainvestigao cientfca seguisse o mtodo intuitivo, ela no era uma investigaonave,poistodaproposiocientfca deveterseulugarfxo,numsistemadefnidoe objetivamente fundado. AinfunciadoconsagradopoetadeWeimar sobreArthurSchopenhauer,jovemflsofoento, surge durante seus encontros nos sales literrios que eram organizados pela me do flsofo. Essa infuncia eadmiraoexpressanoensaiointituladoSobre aVisoeasCores(1816/2003),deSchopenhauer, quepretendeconciliardeterminadoaspectode teorizaoequantifcaodofenmenocromtico comumacertacontinuidadedavisosubjetiva desenvolvidaporGoethe.Schopenhauerseguea novaviaaberta porGoetheaoatribuircapacidade orgnica da retina a produo das cores. importante destacaresseaspectodotrabalhodoflsofopara nossoargumento.Assim,devemosatentarparaa nfase atribuda por Schopenhauer ao papel da retina naproduodascores,ouainda,paraoaspecto subjetivo da viso cromtica. Dessa forma, ele partir dascoresfsiolgicasdesenvolvidasporGoethepara afrmaraatividadequalitativamentedivididada retina. Schopenhauer pretende completar a doutrina de Goethe, formulando uma teoria sistemtica. Schopenhauer estabelece as cores como atividade qualitativamentedivididadaretina.Ascoresso modifcaes do olho percebidas de modo imediato, so atividades plenas da retina e, por isso, permitem estabelecerasdeterminaesdenmerosinteiros, indicando as cores na totalidade espectral, assim como asmenoresfraesindicamasgradaes,matizese nuanasqueescapamsdelimitaes.Oconceito dedivisibilidadequalitativadaretinacompreende tantoadivisibilidadeintensiva(dinmica)quanto aextensiva(mecnica).Adivisibilidadeintensiva podeserdefnidapelainfunciadaluzoumesmo pelo grau de atividade atenuada da retina gerado pela ao do branco. Assim, a atividade atenuada da retina podeserpenumbra(cinza)ouobscuridade(preto). Poroutrolado,adivisibilidadeextensivadecorreda recepo de mltiplas impresses que afetam pontos daretinae,emconsequncia,aretina,agindocom todaaforasobreosoutrospontos,produzacor complementar cor que inicialmente afetou o olho. Algumasexperimentaessimplesso propostasporSchopenhauerparaapresentarsua teoria.Umprimeiroexperimentoaqueoautor serefereaobservaoatentaeprolongadade umcrculobrancosobreumfundopreto.Apsa observao por cerca de 30 segundos, deve-se desviar oolharparaumfundodecorcinzaclaroe,ento, aimagemquepermanecenosolhosumcrculo negrosobreumfundobranco.Elechamaesse fenmenodedivisibilidadeextensivadaatividade daretina(Schopenhauer,1854/2003,p.58,grifo doautor).Aretinaafetadapelodiscobrancoea exaure nesse ponto por alguns instantes; isso se deve completainatividadedaretina.Elecomplementa aexperinciasugerindoquesecoloqueumdisco amarelo no local do disco branco. E ao ser feito isso primeiro e depois dirigindo o olhar para a superfcie cinza-claro, observamos o efeito de um disco violeta. Naspalavras de Schopenhauer, buscamos a explicao para o fenmeno que acabamos de descrever:Expondoaoolhoodiscoamarelo, comohpoucofzemoscomo branco,aatividadeplenadaretinano foiexcitada,nemfcoumaisoumenos exaurida,aocontrrio,odiscoamarelo conseguiuprovocarapenasumaparte dela, deixando a outra para trs, de modo quetalatividadedaretinasedividiu entoqualitativamente,separando-se emduasmetades,emqueumadelas se mostrou como disco amarelo e a outra, ao contrrio, fcou de fora, e por si mesma segueadiante,semqualquerestmulo externonovo,comoespectrovioleta. Ambos,odiscoamareloeoespectro violeta,comometadesqualitativasda atividade plena da retina separadas neste caso, so em conjunto iguais a ela: por isso e nesse sentido, chamo-os de complemento um do outro (Schopenhauer, 1854/2003, pp. 59-60, grifo do autor).O fenmeno da complementariedade das cores ser fruto da viso fsiolgica nos termos goetheanos ouaindadaaodiretadadivisibilidadeque prpriaretina,segundoSchopenhauer.poressa Ballest, R. & Portugal, F. T.38Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014razoqueJonathanCraryafrmaraexistnciade uma[...]proximidadeimediatadeSchopenhauer com um discurso cientfco sobre o sujeito humano (Crary, 2012, p. 78). Assim, a saturao de parte da retina por uma cor permite a ao da poro restante daretinacomocorcomplementaraessaprimeira. Dessa maneira,Schopenhauerafrmaque[...] asmetadesqualitativas,nasquaissedivideaqui a atividadedaretina,nosoiguaisentresi,sendo a coramarelaumapartequalitativadestaatividade bem maior do que o seu complemento, a cor violeta (Schopenhauer, 1854/2003, p. 60, grifo do autor). AlmdebuscarcompletaraDoutrinadas Cores,oensaiodeSchopenhauerreafrmacomoum engano a tese de Isaac Newton da diviso do feixe de luzsolarproporcionadapelosgrausdarefraoque oraiosofre.Nesseaspecto,Schopenhauerapresenta ascrticasaNewtondeformamaisclaradoque Goethe o fez. Destacamos o pargrafo 8, em que fca claraaconsideraofeitapticadeNewton.Para Schopenhauer:Nosepodenegarqueemtodosos equvocos, como tambm no de Newton, tenhahavidoumanlogodistante, umaprocuradaverdade,oqueresulta justamente a partir do ponto de vistade nossaobservao.quedeacordocom ela,aoinvsdoraiodeluzdividido, temosumaatividadedivididadaretina; []Dessamaneira,deumadivisodo raio solar passaramos para uma diviso da atividade da retina. Foi possvel escolher esse caminho para a observao, porm queretornado objetoobservadoparao observador, do objetivo para o subjetivo (Schopenhauer, 1854/2003, p. 77, grifos do autor).Ainda sobre o ponto da ao da luz e a natureza das cores, ele afrma uma posio segundo a qual [...] partimos da luz para o olho, de modo que as cores para ns no passam de aes do prprio olho perceptveis emoposiespolares(Schopenhauer,1854/2003, p. 78). Schopenhauer continua sua crtica a Newton afrmando que Umadiferenaessencialentreaminha teoria e a de Newton consiste no fato de queesta(comojmencionei)apresenta cadacorcomoumameraqualitas occulta(colorifca)deumadasseteluzes homogneas,dando-lheumnomee abandonando-adepois,deixandosem qualquer explicao a diferena especfca das cores e o efeito peculiar de cada uma. Minhateoria,poroutrolado,esclarece tais peculiaridades e nos faz compreender onderesidearazodaimpresso especfcaedoefeitocausadoporcada cor,ensinando-nosareconhec-lacomo uma parte bem determinada da atividade da retina, expressa por uma frao e, alm disso,comopertencenteaoladomaior ou ao menor da disperso de tal atividade (Schopenhauer, 1854/2003, p. 79, grifos do autor). Schopenhauer dedica-se a realizar um trabalho comoumcomplementoaodeGoethe,levando radicalidadeanoodeumcorpoquetemum papelativo,deumorganismocorporifcadona opacidadefsiolgica.Contudo,Goetheenxergou noesforodojovemflsofoumadiferenato graveeumadeturpaonainterpretaodoseu trabalhoquerompeulaosdeamizades.Emtodaa obra,Schopenhauerreconheceaoriginalidadee aimportnciadotrabalhodeGoethe,masfaz,em umcaptulofnal,algumascorreesdoutrinade Goethe acerca do surgimento das cores fsicas:Apenasemdoispontosminhateoria obrigou-meadivergirdeGoethe,a saber, no tocante verdadeira polaridade dascores,talcomojfoiexposto,e comrefernciaproduodobranco apartirdascores,fatodoqualGoethe nuncameperdoou,semnuncatambm me ter apresentado, verbalmente ou por carta,qualquerargumentocontrrio (Schopenhauer, 1854/2003, p. 138).Para ns, o mais importante aqui est no corte produzido pela viso subjetiva e os efeitos no campo da percepo bem como na Psicologia moderna. Esse corte aponta para a visualidade moderna interiorizada no corpo fsiolgico e como efeito da atividade desse corpo.APsicologiamoderna,noseuprojetode cincia, ser compreendida por ns nessa posio que produz a percepo moderna. Visualidade Moderna39Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014importantepensarmosqueafrmaraviso subjetivaimplicaproduzirumcorpoenquantolocal noqualresideoobservadoraomesmotempoem queoprprioobservadorpossvelenquantotal. Nessesentido,Schopenhauerbuscarumagenuna aproximaocomosfsilogosdeseutempo.Para Crary,[...]importanteafrmaraproximidade imediatadeSchopenhauercomodiscursocientfco sobre o sujeito humano (2012, p. 78). Nessa mesma direo,Lauxtermann(1987,p.275)afrmarque Schopenhauer,aoidentifcaromundofenomnico com Vorstellung (Representao), faz um acordo com o realismo fsico do materialismo francs de Cabanise, portanto, o interesse de Schopenhauer pelos estudos da pticacaminharnadireodafsiologiadosrgos dos sentidos e do prprio crebro. Se o fenmeno do aparecimentodascoresdizrespeitosfraesda atividaderetiniana,opassoseguinteserconcedera existncia de um papel crucial do crebro no processo de transformao do material sensorial numa percepo e, para isso, Schopenhauer articular sua flosofa com trabalhosdosfsilogosdeseutempo,porexemplo, Georges Cabanis, Xavier Bichat e Franois Magendie. As palavras de Lauxtermann deixam isso claro: Seasensaodecor(ou,porextenso, qualqueroutrasensao)jnoalgo puramentepassivo,massimaatividade (provocada, sem dvida, por um estmulo externo, neste caso, a luz) de um pequeno pedao de tecido nervoso na parte de trs do globo ocular, quanto mais isto deve ser verdadeiroparaasfunesdeumrgo infnitamentemaiscomplicadocomoo crebro humano! Para isto, necessrio um passodecisivoparareconheceracor,que a princpio nada mais do que a sensao do olho, como uma qualidade de um objeto externo que atua sobre o olho. Na sensao dovermelho,nohnadaquenos permitadizeresteobjetovermelho.Tal objetoexisteapenasparaoEntendimento (Verstand), o que uma funo do crebro (1987, p. 283, grifos do autor).ConclusoO olho goetheano marca o aparecimento de um corpo que, na sua dimenso fsiolgica, responsvel pelaproduoativadaviso,dascores,dasformas, do espao e produziu uma importante ruptura com o modelo clssico de viso ao fornecer as bases para as duras crticas concepo newtoniana. Os fenmenos da percepo visual, conforme defendidos por Goethe, tornam-sepossveisapartirdasuaexperincia qualitativaenopodem,portanto,serapreendidos em termos quantitativos e matematizveis. Mesmo em Schopenhauer,quebuscouasevidnciasfornecidas pelomaterialismodafsiologiadesuapoca,ainda vemosumaspectodaexperinciaqualitativada prpria atividade retiniana. importante destacarmos, noentanto,queamaterialidadedaPsicologia moderna, encarnada no organismo, no da mesma ordem que a proposta por Goethe.O encaminhamento dessa discusso na Psicologia daperceponoslevaapensarqueaapropriaodo organismodeformamecnicaincompatvelcomo carterdetransformaoeformaodoorganismo entendidopelavisogenticadeGoethe.Acolocao goetheana desfeita quando se prope um corpo como efeitodoesquadrinhamentopropostopelaatividade experimentalqueestabeleceparmetroseverifcaa atuaodessesparmetrosemsituaesartifciaiss quais essas variveis so submetidas. OtrabalhodeGoethefoinegligenciadopelas psicologiasnorte-americanaeanglo-saxnicaaose apoiaremepistemologicamentenomtodopositivo dascinciasnaturais.Emgeral,asinvestigaesde Goethesocitadasnahistriadascinciasouna histriadaPsicologiacientfca,restringindo-asa umaespciedeexcentricidadedoespritodopoeta. Suadoutrinafrutodeexperinciasindividuaise subjetivasquepodemserrepetidasporqualquer pessoa, mas essas contribuies sequer so lembradas pelo discurso cientifcista que predomina na histria da Psicologia da percepo, como uma maneira positiva depensarosfenmenoscromticos.Manuaisde Psicologia cientfca (Boring, 1950; Guillaume, 1966; Schultz & Schultz, 2005) instituem, frequentemente, a origem desse saber, apoiada em uma recusa radical a qualquer pensamento flosfco, esttico ou artstico. Certamente, a crtica do afastamento da vida por parte da artifcialidade encontrada no mecanicismo eque,comojafrmamosanteriormente,organiza certodiscursocientifcistadaPsicologiamoderna, contribuiparapensarmososfenmenosvisuale cromtico. Portanto, aproximar a noo daproduo de uma espcie de organicidade ativa e produtora da visibilidadesubjetiva,encontradanostrabalhosde Ballest, R. & Portugal, F. T.40Psicologia em Pesquisa | UFJF | 8(1) | 30-40 | Janeiro-Junho de 2014Goethe e de Schopenhauer, dos estudos do fenmeno visualumaboaoportunidadepararepensarmos algunsequvocosquereiteradamentesorepetidos pela histria da Psicologia, bem como para permitir a ampliao do dilogo da Psicologia, da experincia cromtica, com a produo artstica visual, a pintura e a histria da arte. RefernciasBoring, E. (1950). A History of Experimental Psychology (2 Ed.). New York: Appleton.Cassirer,E.(1970).Rousseau,Kant,Goethe:Two Essays. 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Te Subjective Eye: Goethes FarbenlehreandFaust.InE.K.Moore,&P. Simpson(Eds.),TeEnlightenedEye:Goetheand VisualCulture(pp.265-277).Amsterdam;New York: Rodopi.Endereo para correspondncia:Rmulo BallestUniversidade Federal do Rio de Janeiro AvenidaPasteur,250,PavilhoNiltonCampos Praia VermelhaCEP 22290-902 Rio de Janeiro/RJE-mail: [email protected] em 30/07/2013Revisado em 18/01/2014Aceito em 19/01/2014