Valença
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Transcript of Valença
Eu estou aqui nessa cidade onde você também já esteve. Imagino a tua Valença
mais elegante, mais promissora. Te imagino andando por essas ruas, cabelos tão
escuros, a roupa branca, fumando um cigarro, distraída. Te vejo amando essa cidade
pequena, tu que nunca gostaste de espaços amplos, vertiginosos. Com teus sonhos
de moça, pensando em casar com teu noivo bonito e ter filhos bonitos para
crescerem aqui entre as montanhas. Não sei bem o que vim encontrar, ando pelas
ruas às vezes deslumbrada pelas pequenas surpresas, pela minha inédita coragem,
por esse estado de vazio e suspensão, por essa solidão absoluta. Talvez eu tenha
vindo buscar apenas minha capacidade de estar longe e só. Estou apaixonada pela
sonoridade desse nome: Valença. Promessa de uma elegância, de uma antiguidade.
Promessa que é belamente rompida pela decadência, pela arquitetura em ruínas.
Valença é bela e decadente, como uma sedutora.
Previsão de chuva. Espero por chuva faz tantos dias, preguiçosamente, desejando
sentir o conforto de estar protegida enquanto tudo inunda lá fora. Agora eu vou estar
fora, me desprotegendo, me molhando. Talvez a paisagem seja mais exata dessa
forma: eu colocando minha pele à disposição do acaso, me expondo aos humores do
céu. Medo de molhar o que levo. Medo de molhar minha pele? Confesso que
imaginava essa viagem luminosa, uma luz antiga, atemporal, testemunha de um
tempo estático, disponível. Mas então será a luz acinzentada, a água, ela sim,
elemento eterno e renovado, meu corpo poroso, permeável. Vou então mais
corajosamente. Que chova.
Sob a influência de poucas horas dormidas, ando pelas ruas de Valença entorpecida
de sono e de uma ânsia de deslumbre. Aqui há dois jardins, o de cima e do baixo,
feito uma Babilônia horizontal, rente ao chão.
Saudade de você. Agora à noite me sinto um pouco triste. Vim até aqui me
sentindo livre e, nesse quarto antigo, suspeitando estar sozinha nesse hotel, nada se
parece com a liberdade. Você sempre me disse de como foi difícil se mudar pra cá e
agora eu entendo melhor. Vê só, já é noite e eu também estou com medo. Penso que
poderia sair, ficar bêbada, conversar com estranhos, forçar essa experiência a algum
extremo. Mas vim cedo para o hotel, até liguei a tevê para sentir o tempo mais banal
e saber que estar aqui, sozinha, vai passar. Valença é tão pequena, tão calma, que
me joga para o mais dentro de mim. O dia de hoje passou muito lentamente e me
cansou. Por não estar atrás de exatamente nada, estive buscando tudo, atenta a tudo
e parece que em algum ponto o real sempre engole a poesia. Sempre assumi que a
liberdade fosse um risco, um perigo, mas aqui a liberdade é pesada e tediosa, como
uma solidão.
Senhora idosa, negra, um pouco corcunda, lenço na cabeça, balde no braço.
Trabalha no cemitério da cidade limpando os túmulos, sabe onde fica cada um de
cor, pelo nome da pessoa e ano de morte.
Te carrego no meu peito, na minha barriga, atravessado na minha garganta, no
fundo do meu sexo. Não te abandono, não te deixo pelo chão ou solto no ar. Sinto
meu corpo sempre um pouco mais pesado, porque te engoli e te mantenho dentro de
mim, como um segundo coração que agora bate acelerado.
Hoje é domingo, o comércio está quase todo fechado e, em uma praça, tem uma
feirinha com ar de medieval. Cacarecos de metal, louças, peças de madeira, objetos
incompreensíveis amontoados no chão. Aves engaioladas, carnes expostas,
estranhas medicinas. A feira é movimentada, olho para os moradores desconfiada de
que todos eles compartilham um segredo, que saber viver aqui é uma rara e
silenciosa sabedoria.
Carlinho caipira, mateiro, entra no mato para buscar plantas. Faz combinados
medicinais, chás, conservas. Me disse que na vida a gente tem que ter vergonha de
roubar e de outras indecências, de puxar conversa não.
Dois buracos no lugar dos olhos. Enxergava o mundo através desses dois furos, que às vezes preenchia de corpos e volumes e às vezes esvaziava
ainda mais, aumentando o oco do seu rosto. Quando tinha os olhos preenchidos, sabia que fazia do mundo uma espécie de prótese, ao modo de
um pirata que acopla um gancho ao braço sem mão e um cotoco de madeira à perna aleijada. O mundo inteiro em suas órbitas esvaziadas se fazia
um grande olho de vidro. Então suas pálpebras mal se fechavam sobre esse volume imenso e igualmente imensos eram os furos que ostentava
quando tirava o mundo do rosto.
A falta de olhos próprios a fazia tanto temida como desejada. Quando estava com os olhos vazados, alguns homens mais brutos ou sensíveis
diziam que ela era fascinante, maravilhosa. O mais sincero disse-lhe que gostaria de fazer amor com ela, pelos olhos. Ela tinha um método
estranho para escolher os homens com quem queria dormir. Gostava de estar com homens pouco atraentes, ou mesmo feios e estranhos. Podia-se
dizer que se punia, dando-se a homens rudes, toscos. Mas, para ela, a excitação estava em extrair prazer da brutalidade, ternura da estranheza. O
que se anunciava facilmente prazeroso e belo lhe parecia triste.
Desde criança buscava comprometer-se com os riscos. Quando tinha oito anos pegou sua bicicleta e pedalou até fora da cidade, voltou pra casa
vendo o céu alaranjar. A surra que levou da mãe só tornou a experiência mais solene. Aos doze, estava tomando um sorvete quando um homem
muito mais velho a convidou para sair. Foram a um bar, ele tomou cerveja e ela uma coca-cola. Quando estavam no carro, ele tentou beija-la e
ela deixou. Ele era grande, gordo e tinha as mãos trêmulas, mãos que a acariciaram por debaixo da blusa e da saia. Aquele homem desconhecido
acariciou todas as partes do seu corpo antes de deixa-la em casa, com o sexo dolorido e o coração batendo forte. Quando fez dezoito anos, fez
uma viagem solitária e teve muito medo de morrer ou enlouquecer com seus pensamentos alados, ciganos. Aos vinte e dois, arrancou os próprios
olhos.
Clara, seu nome era Clara. O que parecia uma piada de seus pais, já que sua pele era escura, assim como seus cabelos, olhos, boca e o bico dos
peitos. Sua mãe havia dito que Clara era o nome de uma santa e, desde que soube disso, Clara rezava para Santa Clara quando se sentia triste ou
muito desejosa. Santa Clara, por favor, me dá a boneca com o vestido brilhante que eu vi na loja, amém. Santa Clara, não deixa minha
cachorrinha morrer. Santa Clara, faz com que tenha sorvete hoje depois do jantar. Quando ficou mais velha, não conseguia acreditar em Deus,
por mais que quisesse, mas continuava, por algum motivo, pedindo e agradecendo à Clara, que podia tanto ser essa mulher antiga como ela
mesma, em sua face divina, luminosa.
Quando percebeu seu talento para o acolhimento do diverso e para o amor sem culpa, Clara decidiu negociar seu corpo. Procurou o único bordel
que sabia existir em Valença, em uma rua lateral do Jardim de Cima. A dona da casa, em princípio, duvidou que os homens se interessariam por
uma mulher cega, e ainda pior, sem os dois globos oculares. Mas resolveu dar-lhe uma chance, com a condição que sempre usasse óculos escuros
para não espantar ninguém. Clara aceitou e virou uma curiosa figura na casa de dona Cristina. Morena, traços finos, ar de moura , de rainha
oriental, os cabelos volumosos e crespos lhe caindo sobre os ombros, grande óculos escuros como os de viúva em filme. Passava as noites
aguardando por alguma solicitação fumando, sentada em uma mesa bebendo cachaça.
Segundo a tradição, o nome de Santa Clara vem de uma inspiração dada à sua religiosa mãe, de que haveria uma filha que iluminaria o mundo.
Clara gostava muito de fazer amor. Mesmo com os homens mais pesados, grosseiros, bêbados ou exageradamente envergonhados. E foi seu
gosto pelo ofício que a fez a moça mais bem sucedida da casa de dona Cristina. Clara explicava que o amor era como entrar no mar, era preciso
enfrentar as ondas com leveza, deixando-se arrastar, deixando o corpo ora leve para que flutuasse e ora pesado para não ser tragado de vez pelo
fundo. Todo corpo a interessava, todo toque lhe inspirava gratidão ou raiva apaixonada.
Foi num dia de Folia de Reis que, ainda muito jovem, ela teve essa inspiração. Conhecia o sertão apenas através de um livro que tinha lido
quando era criança. Ao contrário desses espíritos livres que peregrinam em direção ao mar, Clara deveria ir em direção à seca, ao chão rachado,
ao azul insano do céu. O som dos tambores e das maracas faziam seu corpo tremer e percebia o toque do seu coração desarrumado no compasso
da música imprevisível. As cores das pedrarias, tecidos brilhantes e frestas de pele suada enfeitiçavam o pensamento de Clara que, no meio desse
mar de som e cor, recebeu a revelação que seu destino era ir para o sertão.
Então manchas brancas começaram a aparecer em sua pele. Quanto mais Clara ia ganhando essas manchas, mais lhe parecia forte e necessário ir
para o nordeste. Sentia que o seu desejo pelos tons do chão seco já era tão forte que se manifestava no seu próprio corpo. Aos poucos, Clara ia
virando um arquipélago de ilhas desertas sobre um mar escuro.
Quando se apaixonava por algum homem, fugia por um ou dois dias da casa de dona Cristina e leva-o para ficar com ela em Conservatória, numa
pequena casa perto do mato, que tinha herdado de seus pais. Gostava de viver o amor perto das plantas selvagens, da terra batida, dos bichos. Foi
um de seus amantes, na casa de Conservatória, que lhe falou pela primeira vez da estranha doença que se abatia sobre sua pele. Disse-lhe que
suas mãos estavam ficando manchadas de branco, como uma queimadura ao contrário.
Aos poucos, doença ia se revelando mais uma solução que um tormento.
Quando Clara finalmente conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar a passagem, as manchas claras já haviam tomado mais que metade de
seu corpo. Despediu-se de seus amantes, suas colegas e de dona Cristina. Fez uma mala pequena e embarcou em uma noite quente de Janeiro.
Clara usava um vestido bege, solto. Dias depois chegou em Massapê, uma cidade no interior do Ceará. Antes de procurar abrigo ou pouso, ela
saiu andando, descalça, tocando o solo do chão seco, sentindo seu corpo estremecer. Clara, em seu vestido leve e da cor do chão, andou até ela
mesma ser perdida de vista, misturada ao solo arranhado do sertão.
- Clara, por que foi que tu arrancou teus olhos?
- Para amar sem olhar a o quê.