Valorizar o Feito a Mão

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Peter Dormer — Capítulo 6 — Valorizar a Produção Manual 1/34 Peter Dormer Os Significados do Design Moderno. A caminho do século XXI Capítulo 6 — Valorizar a Produção Manual Sumário das matérias neste capítulo : 1 — Artesanato de atelier e significado do seu estilo 2 — David Pye 3 — O percurso do artesão 4 — Libertação face ao mercado 5 — Realização pessoal 6 — O estilo do artesanato 7 — Uma estética de oposição? índice geral da obra Artesanato de atelier e significado do seu estilo Um dos argumentos do capítulo anterior era que a expressão "feito à mão" era poderosa porque implica uma relação de poder entre o comprador e o executante. Esta relação é tradicional; é antiquíssima e nela o cliente exprime a sua superioridade financeira (e "moral") sobre outrem, exercendo a sua capacidade de comprar trabalho desnecessário. Outro argumento, não contraditório e contemporizador, refere-se à capacidade dos artesãos trabalharem em equipa com um artista ou um designer-chefe, colocando o projecto do grupo acima da sua própria expressão criativa, entusiástica e livremente. Mas o tema deste capítulo é diferente. Nele abordaremos a inserção social de outro tipo de artesãos, cuja actividade, apesar de aparentemente tradicional, é de facto uma invenção do século XX. Trata-se do trabalho desenvolvido pelo artista ou designer-artesão de

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Capítulo 6 do livro de Peter Dormer

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 1/34

Peter Dormer

Os Significados do Design Moderno. A caminho doséculo XXI

Capítulo 6 — Valorizar a Produção Manual

Sumário das matérias neste capítulo:

1 — Artesanato de atelier e significado do seu estilo

2 — David Pye

3 — O percurso do artesão

4 — Libertação face ao mercado

5 — Realização pessoal

6 — O estilo do artesanato

7 — Uma estética de oposição?

índice geral da obra

Artesanato de atelier e significado do seu estilo

Um dos argumentos do capítulo anterior era que a expressão "feito à mão" era

poderosa porque implica uma relação de poder entre o comprador e o executante.

Esta relação é tradicional; é antiquíssima e nela o cliente exprime a sua

superioridade financeira (e "moral") sobre outrem, exercendo a sua capacidade de

comprar trabalho desnecessário. Outro argumento, não contraditório e

contemporizador, refere-se à capacidade dos artesãos trabalharem em equipa com

um artista ou um designer-chefe, colocando o projecto do grupo acima da sua

própria expressão criativa, entusiástica e livremente. Mas o tema deste capítulo é

diferente. Nele abordaremos a inserção social de outro tipo de artesãos, cuja

actividade, apesar de aparentemente tradicional, é de facto uma invenção do

século XX. Trata-se do trabalho desenvolvido pelo artista ou designer-artesão de

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classe média, também chamado artesão de atelier. O ponto de partida é a

realização da criatividade e da expressão pessoal do artesão, que, acima de tudo,

segue os seus próprios designs e não os do cliente, ou de outro artista ou designer.

O debate central faz-se em redor do fabricante individual e não do cliente.

Apesar disso, o papel do consumidor destas peças de artesanato de atelier não

deixa de ter importância e interesse.

A actividade artesanal é intrigante. Em certa medida é artificial, mas há a realçar,

como aspecto positivo, o facto de proporcionar uma alternativa estética ao design

industrial e apresentar uma nova perspectiva num Mundo por vezes

excessivamente povoado pelas "realidades" do cepticismo deste final de século. O

artesanato é uma entre várias estratégias populares, que permite aos homens e

mulheres inteligentes voltarem costas ao cepticismo e enveredarem por caminhos

de esperança.

O capítulo começa por uma breve descrição do trabalho e das ideias do

professor David Pye. Os valores de que ele fala nos seus livros e que demonstra no

seu trabalho de marcenaria (nos torneados e entalhes) são fundamentais para a

ideologia da principal corrente do artesanato moderno. Além disso, as suas ideias

são de grande utilidade porque abrangem quer o artesanato, quer o design

industrial. Segue-se uma panorâmica geral do artesanato de atelier. Apresento em

seguida a minha teoria de que o artesanato contemporâneo é uma invenção do

século XX, debatendo o papel positivo daquilo a que chamei "artesanato

conservador". O papel do artesanato enquanto conjunto de estética alternativa

encerra o capítulo.

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David Pye

Às vezes, trago comigo uma pequena caixa redonda de madeira. Cabe à vontade

no bolso. .É uma bonita peça de artesanato, feita à mão, uma bela manifestação de

inteligência na execução que encanta muita gente. A tampa tem um padrão de

estrias bem marcadas que reflectem a luz, ao abrir-se a caixa. O rebordo da tampa

tem pequenas pérolas esculpidas, que se destacam nitidamente da superfície; a

sua forma é perfeita, não se alterando sequer no ponto de contacto com a base da

tampa.

O impecável encaixe da tampa transmite uma agradável sensação quando a

separamos do resto da caixa. O interior desta é liso, escuro e bem acabado; o

exterior tem uma suavidade que lhe é dada pelo efeito da luz — em parte reflectida

e em parte absorvida — sobre o pau-rosa delicadamente acetinado, com tons de

avelã e um toque de lilás.

A caixa é minúscula e tem pouca utilidade prática, salvo para guardar objectos

mínimos, mas é uma lição sobre as possibilidades de tratamento de superfícies e

um testemunho do alto valor da habilidade humana.

As manifestações de virtuosismo têm grande valor em si mesmas. Não

precisamos de justificar ou tentar explicar o nosso enlevo ao escutarmos um

brilhante violinista; do mesmo modo, a evidência física de como a mente, os olhos e

as mãos de alguém produziram, contra todas as dificuldades, um trabalho de

grande qualidade pode transmitir-nos um grande prazer. Aquilo que admiramos é a

capacidade de criar beleza no limite do risco. A essência de trabalhar o risco está

na emoção de evitar o fracasso.

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David Pye, escritor, designer e artesão, éfamoso pela extraordinária qualidade dassuas caixas esculpidas em madeira. Mestre dasuperfície de madeira, constatou que oconhecimento que as pessoas têm dassuperfícies se encontra atrofiado pelo hábitode recorrerem a fotografias, em vez deefectuarem um reconhecimento empírico.

Foi David Pye quem fez esta caixa. Pye nasceu em 1914. Formou-se em

arquitectura na Architectural Association de Londres e, até se alistar na Marinha,

durante a Segunda Guerra Mundial, especializou-se em projectos de edifícios de

madeira. Depois da guerra, foi convidado a ensinar na Escola de Design de

Mobiliário do Royal College of Art, onde passou a ser professor de Design de

Mobiliário, em 1963. Reformou-se em 1974. Em 1968, publicou "The Nature and Art

of Workmanship" e, em 1978, "The Nature and Aesthetics of Design".

Há quatro áreas em que a influência de Pye, enquanto artesão, escritor e

professor, se revela frutuosa: sistematizou as noções de habilidade e as reais

diferenças — e não as supostamente existentes — entre o processo de fabrico em

série e a produção exclusiva ou limitada. Questionou, a nível prático e filosófico, os

conceitos de função e utilidade. Chamou a atenção para a importância da superfície

e de diversas superfícies em particular. Não deixou que as suas ideias, nem as dos

seus estudantes, se transviassem da trilogia que, necessariamente, molda o design

— a saber, as propriedades científicas do material, os conhecimentos do artesão e

as qualidades que procuramos para

alcançarmos a civilização.

Mas se, para além das suas caixas e

taças esculpidas, David Pye fosse

recordado por uma única coisa, essa

seria sem dúvida a sua afirmação de que

existe uma distinção entre o trabalho do

risco e o trabalho da certeza.

Vejamos, como exemplo, o acto de

escrever com uma caneta. Corre-se

sempre o risco de borrar o papel ou de

que a mão escorregue enquanto se

escreve — é o trabalho do risco. Do mesmo modo, quando apreciamos um violinista

e nos maravilhamos com a sua destreza, admiramos também a coragem de

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enfrentar a possibilidade de fracassar. Com o trabalho da certeza, porém, depois de

montado o processo de produção, os resultados são previsíveis: se "x", logo,

necessariamente, "y".

Não obstante, frisa Pye, existe no trabalhar a certeza uma certa dose de risco —

os dispositivos e as máquinas (e agora o software de computador) que

proporcionam a certeza foram, também eles, produzidos através de diferentes

graus de tentativa e erro. Inversamente, a maioria do pessoal que confia na relação

que existe entre as mãos e o cérebro — seja a fabricar mobiliário, potes de barro ou

painéis de carroçaria para um sofisticado carro de desporto —, inventa toda uma

série de máquinas para lhes limitar o risco.

A utilidade comercial de trabalhar o risco está constantemente a ser reduzida em

indústrias evoluídas, à medida que os fabricantes procuram mais sofisticação para

reduzir os fracassos. Mesmo assim, em projectos únicos e de grandes dimensões,

como a construção de centrais nucleares, trabalhar o risco é muito valioso, porque

grande parte do trabalho é novidade — o design existe, mas passá-lo à prática pela

primeira vez requer a resolução de problemas. Muito haverá que não foi previsto

pelos engenheiros.

Ao estabelecer-se a distinção risco/certeza, a subtileza está em desmontar a

falsa oposição mão/máquina — constata-se então que usar ou não usar a máquina

é um mero pormenor. A característica fundamental que distingue um tipo de

trabalho do outro é o ponto da manufactura em que opera a escolha criativa.

Pye destrói as opiniões vigentes. No seu livro "The Nature and Aesthetics of

Design" evidencia uma grave contradição contida na ideia de que "a função

determina a forma" (ideia feita que continua a ter muitos seguidores). Faz ver que o

designer tem mais liberdade relativamente à forma do que à função, subvertendo o

único princípio modernista que se mantinha inviolável. Argumenta ele que a

capacidade dos dispositivos para trabalharem e produzirem resultados depende

menos da sua forma do que se pensa (mesmo num par de esferas de rolamento

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"idênticas" há diferenças entre elas; além disso, não são esféricas) e todos os

nossos dispositivos têm tendência para funcionar de modos que não são os

desejados (os pneus dos automóveis gastam-se, os tampos das mesas riscam-se,

as facas perdem o fio, os aviões caem).

O debate sobre design, de tão repetido, tornou-se análogo à crítica literária;

perguntamo-nos "o que quer dizer design?" e não "o que faz?". E,

concentrando-nos no significado, perdemo-nos num mar de palavras; o objecto real

é esquecido, escapando a uma verdadeira análise de aspectos como a

durabilidade, as sensações transmitidas, ou mesmo a segurança. A "finalidade" é

concebida pela mente humana, os "resultados" existem nas coisas. Pye diz que é

preferível estabelecer uma prática de design baseada em resultados a adoptar uma

teoria assente em intenções.

Meio a brincar, Pye acha que passamos muito tempo a embelezar certas coisas

para compensar o facto de elas não funcionarem suficientemente bem. É

efectivamente só uma meia brincadeira, porque defende a seguir: "Dizer de um

design ‘funcional não é mais meritório nem desprimoroso do que dizer que

determinado indivíduo nunca aldrabou ninguém". Em termos funcionais, todos as

improvisações funcionam, acabando por "desenrascar", mas o que ele pretende de

facto alcançar é um mundo em que as superfícies que trabalhamos revelem perícia

e sejam imaginativamente civilizadas.

As superfícies são tudo para Pye, porque é na realidade o que podemos ver e

tocar. Em "The Nature and Art of Workmanship" , diz: "A extrema pobreza de nomes

para designar as qualidades das superfícies tem, provavelmente, tido o efeito de

impedir uma compreensão generalizada de que elas existem como domínio

independente e completo, quer a nível da experiência estética, quer de terceiro

estado por direito próprio".

Pye diz que aquilo que pretendemos de uma superfície não é a expressão das

propriedades do material, mas as qualidades. As propriedades — continua — estão

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lá e são imutáveis; as qualidades são subjectivas e encontram-se na nossa mente.

Podemos testar esta afirmação muito rapidamente: ao dizermos do carvalho velho

polido que é quente, agradável e intemporal não estamos a referir propriedades;

trata-se de qualidades projectadas por nós (o facto de existir uma relação

causa-efeito comum a um grande número de pessoas face a um pedaço de

carvalho é assunto que merece ser analisado à parte). A resistência à tracção ou a

combustibilidade de um pedaço de madeira são propriedades. Com efeito, a

argumentação de Pye precisa aqui de ser qualificada: os designers e os

engenheiros esforçam-se de certo modo por expressar determinados tipos de

propriedades — uma barra de aço pode ser feita de modo a desempenhar a sua

função como componente de uma construção e, simultaneamente, ao

desempenhá-la, exprimir a sua flexibilidade. Seja como for, o artesão, ao trabalhar

uma superfície, é em certo sentido um artista: deixa a sua marca subjectiva no

modo como decidiu tratar a superfície. Um artesão deve também ser "cientista",

além de artista. O que nos remete de novo para o trabalho do próprio Pye enquanto

artesão. Para se produzirem as melhores superfícies e desempenhos, é preciso

conhecer a fundo o material com que se trabalha: o que é e como se comporta. Não

se pode fazer, como muitos designers e arquitectos, como se se estivesse a olhar o

Mundo do alto, especificando o que é ideal. Veja-se a profundidade dos

conhecimentos de Pye em relação à madeira neste pequeno extracto de um artigo

escrito para a revista Crafts, em Janeiro de 1981. Nesse artigo, Pye fala do estado

de atrofia a que chegou o conhecimento das pessoas relativamente à superfície,

devido a recorrerem a fotografias em vez de observarem directamente o objecto em

si. Fala, seguidamente, da maneira de preparar a superfície da madeira para o

polimento: "Todas as madeiras de folhosas têm canais de seiva ou poros, que são

tubos ocos que percorrem a árvore de alto a baixo. Se se aparelhar um cilindro de

madeira com esses canais dispostos paralelamente ao tomo mecânico, os poros

ficarão expostos, aparecendo como pequenos sulcos, geralmente curtos. Mas se,

sobre esse cilindro, actuar uma raspadeira, assente horizontalmente sobre um

suporte em T, a sua extremidade, sendo paralela à maior parte dos sulcos, prende

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em cada um deles à medida que estes rodam, retirando lascas microscópicas da

sua superfície".

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O percurso do artesão

O trabalho de David Pye contém elementos do designer e do artesão. As suas

taças e caixas são formas fáceis de compreender, não apresentando qualquer das

complexidades com que alguns tipos de arte contemporânea desafiam o

entendimento. Ele representa o design e não a arte aplicada ao artesanato.

É que, em termos gerais, o mundo do artesanato contemporâneo divide-se entre

as pessoas que fazem objectos que podem ser utilizados, ou que parecem poder

ser utilizados, e as que produzem objectos que são manifestamente não utilizáveis

e que têm ambições de serem levados a sério como peças de arte. Trata-se de uma

distinção bastante imprecisa, porque mesmo em relação à função pode haver um

compromisso.

Por exemplo, os entusiastas do artesanato podem apreciar uma função

fracassada. Uma famosa ceramista norte-americana, Betty Woodman, produziu

umas chávenas grandes, lindas e abauladas. Sendo um prazer segurá-las com

ambas as mãos, tiveram grande êxito; mas eram terrivelmente instáveis quando

assentes nos pires. Nunca isso teve a menor importância. Um comprador declarou

mesmo que essa falha das chávenas o tomava mais cuidadoso; obrigava-o a fazer

uma pausa e a pensar sobre o acto de beber o chá, tomando-o uma espécie de

ritual. Porém, importa reconhecer que, apesar de grande parte do artesanato ter a

função num lugar bastante mais baixo na sua lista de prioridades do que seria

admissível no design, persiste em grande número de ceramistas, tecelões e

fabricantes de mobiliário a noção de que um bom serviço ao cliente passa por um

objecto ser capaz de bons desempenhos. O mundo do artesanato divide-se entre

os que têm uma ideologia conservadora, dos quais Pye é um bom exemplo, e os

que procuram uma vanguarda das artes decorativas frequentemente baseada numa

negação não só da função mas também da primazia da habilidade. Assistimos, na

década de 80, a um acentuado crescimento da categoria dos artefactos não

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—utilizáveis — uma proliferação de objectos que tendem para a pintura ou para a

escultura.

Se bem que não gostassem de o ouvir, Bernard Leach e Michael Cardew são um

pouco os pais do crescimento verificado nos objectos de artesanato de arte. Isto

porque, desde o momento em que as pessoas se dispuseram a comprar potes

feitos à mão, não porque fossem baratos e úteis, mas porque gostavam da sua

aparência, surgiu uma tendência que permitia que os objectos de artesanato se

vendessem apenas pelo mérito da sua estética. E depois de iniciado este processo,

era (e ainda é) pouco claro onde se deve parar. Depois de ter sido posta de parte a

função como critério determinante, o artesão entra por um caminho peculiar, em

que não há regras: se um objecto já não tiver que conter sopa, que suportar uma

pessoa sentada ou que aquecer, porque não dar-lhe uma forma qualquer, segundo

a fantasia do seu criador?

Vejamos, por exemplo, o caso dos Estados Unidos. Existe neste país um dos

melhores artesanatos do Mundo e o artesão tradicional — ou, melhor dito, quase

tradicional — nos EUA é uma figura prestigiada. Paralelamente, existe uma

significativa e crescente indústria de artesanato, quase todo abstracto ou não

figurativo, todo ele não funcional. O desenvolvimento deste fenómeno nos Estados

Unidos não é surpreendente, porque tem raízes numa invenção peculiarmente

americana: o expressionismo abstracto.

Claro que o artesão, sobretudo o formado em escolas de arte, estava fadado a

fascinar-se pela evolução deste tipo de pintura — mais ainda do que com a pintura

europeia abstracta dos anos 20 e 30, de características mais formais — devido à

presença do gesto, da marca da mão e do braço. A marca da mão é um elemento

muito importante no artesanato do século XX, como veremos adiante. Os artesãos,

ao olharem para a pintura moderna, aperceberam-se de que a pintura não estava já

a desempenhar nenhuma função particular, [imitando-se a estar presente. Quando

reflectiram sobre o papel do trabalho de artesanato, descobriram que, retirando a

uma peça a sua função, o que resta é... uma coisa: "coisa" no mesmo sentido em

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Poucos materiais são tão maleáveis comoo barro; poucos permitem ao artistaimortalizar instantaneamente o gesto deum momento em três dimensões. Esteexemplo de cerâmica gestual é umtrabalho de Irene Vonck (Países Baixos)

que um Jackson Poliock é uma ‘coisa" e, para todos os efeitos, sem muito

conteúdo.

Depois, como viram os artesãos, o que dá conteúdo a um Poliock ou a um Kline

é o gesto e a "expressividade" — naturalmente, o artesão pensou: "Isso posso eu

fazer". O expressionismo possibilitou vários tipos de abstracções — formalismos em

que a textura, a cor, a forma e as linhas são elementos fundamentais. De facto, era

bastante próximo do que se passa com um arranjo de flores.

Como não podia deixar de ser, muita

gente envolvida em actividades artesanais

enveredou por esse caminho. Por exemplo, a

ceramista holandesa Irene Vonck faz

recipientes a partir de rolos de barro. Não se

trata de uma actividade que requeira muita

habilidade, apesar dos resultados serem

extremamente atraentes para o meu gosto.

Toscos e espontâneos, são um "pastiche": à

primeira vista pensamos que foram

ricamente embelezados pela modelação;

olhando mais atentamente, podemos ver os

sulcos ondulados que as mãos da autora produziram ao penetrarem no barro

húmido e repuxando-o.

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Libertação face ao mercado

O final do século XX oferece ao artesão um ambiente económico especial para

trabalhar. O artesanato da cerâmica, da tecelagem ou da marcenaria da nossa

época é feito em condições diferentes das de outros tempos. Deixaram de ser

misteres, mudaram de categoria. Já não são executados pelas classes

trabalhadoras, pelos artesãos tradicionais e tornaram-se numa actividade criativa,

aparentada com a arte, realizada pela classe média. É aparentada com a arte, no

sentido em que os objectos produzidos são feitos e comprados sobretudo para fins

contemplativos. Além disso, o sofrimento físico e moral que parece ter feito parte,

mesmo que só até certo ponto, da actividade do mister foi substituído pela

liberdade criativa.

A libertação do sofrimento é uma das características que distingue a moderna

sociedade civilizada; permite uma criatividade muito maior e é o fundamento do

prazer. As palavras de Elaine Scarry em "The Body in Pain", sobre o sofrimento no

trabalho, são relevantes para o modo como vemos o trabalho do artesão (ver

capítulo 4, págs. 84 a 88).

Scarry defende que o sofrimento intenso, como o da tortura, é destrutivo: à

medida que a dor aumenta, a nossa capacidade de pensar noutra coisa vai

desaparecendo. "O sinal, contínuo e sintomático, de que o corpo sofre,

simultaneamente tão vazio, indiferenciado e cheio de gritante adversidade, contém

não só a sensação de que ‘o meu corpo dói mas também a de que ‘o meu corpo

está a magoar-me".

A dor repetitiva, como a que é induzida por certos tipos de trabalho ou doenças,

reduz sem dúvida o nosso mundo, já porque apresenta uma barreira entre nós e o

Mundo, já porque vira o corpo sobre si mesmo sem cessar, ameaçando

constantemente negar-nos o mundo maior das ideias e dos prazeres. Também o

trabalho é uma espécie de sofrimento. Há-o de vários tipos, e o pior, muito próximo

da verdadeira tortura, é descrito por Karl Marx n'O Capital 2, que documenta a

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rotina de uma mulher que, com 24 anos, fazia dois mil tijolos por dia. Era ajudada

por duas crianças que transportavam dez toneladas de barro, em viagens que se

repetiam ao longo do dia; trepavam, por uma vereda a pique, dez penosos metros,

subindo pelas paredes molhadas do barreiro e percorrendo ainda uma distância de

35 metros. Um suplício.

A industrialização tornou provavelmente menos dolorosos determinados tipos de

trabalho, mas, como sabemos, estes eram e são um fardo para muita gente. Simone

Weil, filósofa francesa cristã, trabalhou em fábricas na década de 30. Num apelo

aos operários que produziam componentes de fogões, escreveu: "Se o trabalho vos

faz sofrer, gritem-no. Se há alturas em que não o podem suportar; se por vezes a

monotonia do trabalho vos agonia; se detestam sentir-se obrigados a trabalhar

depressa; se odeiam estar sempre debaixo das ordens dos capatazes, gritem-no".

Mesmo no trabalho criativo, o prazer depende das condições em que ele é feito.

Em "The Nature and Art of Workmanship", David Pye recorda uma conversa com

um velho carpinteiro que trabalhava ao torno e fabricava colheres de pau que eram

vendidas nas Feiras por tuta-e-meia: "Por esse preço, só dava tempo para,

acabada uma colher , dar uma olhadela para a concha, outra para o exterior e

atirá-la, por cima do ombro, para a pilha, e passar à seguinte". Pye duvida que

possa haver prazer em tal trabalho, apesar das colheres serem, sem dúvida, um

regalo para a vista. No entanto, quando lemos a descrição do trabalho de Pye feita

por si próprio, vemos um homem embrenhado no seu trabalho, gozando a minúcia

que ele exige. É um prazer lê-la porque o trabalho que descreve está isento de

stress salvo o relativo à concentração, necessária em todo o trabalho do risco.

Quando um processo de trabalho se torna comercialmente redundante, desperta

novo interesse naqueles para quem os aspectos comerciais não são importantes.

Na Europa dos anos 20, houve um renovado interesse pela tecelagem, a tingi-dura

e a olaria manuais. Este interesse, manifestado pelas pessoas da classe média,

verificou-se numa altura em que estas artes tinham quase desaparecido e a

produção de panos e potes tinha passado a ser feita mecanicamente.

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Na sua autobiografia "A Pioneer Potter" (publicada postumamente, em 1988),

Michael Cardew explica que, quando em 1926, adquiriu a olaria Winchcombe, em

Inglaterra, era ainda possível produzir rendivelmente as linhas básicas, como os

alguidares e os vasos para flores de grandes dimensões. Mas Cardew enfrentava a

concorrência do comércio organizado. Os alguidares tornaram-se menos populares,

presumivelmente porque as fábricas podiam fornecer alguidares metálicos mais

baratos (com a vantagem acrescida de serem mais leves e resistentes do que os de

cerâmica). Quanto aos vasos maiores, constatou que também estes não podiam ser

produzidos de forma competitiva — as fábricas faziam-nos mais baratos. Mas

Cardew descobriu que a produção de um objecto intermédio (entre o prático e a

arte) era viável. Nasceu assim uma gama de frascos decorados de grande utilidade,

que se venderam bem durante algum tempo — não havia ninguém a competir neste

campo. Cardew, no entanto, não tinha deixado a Universidade de Oxford, nem

largado a sua vida académica e musical (era um apaixonado de Mozart) para

ganhar a vida como oleiro. Não lhe interessava a olaria como um negócio em si —

se assim fosse, teria deitado mãos à obra para industrializar os processos. O que

ele queria fazer (apesar de não existir um mercado para o produto) eram grandes

botelhas de barro para cidra. Levou esse projecto por diante e fez algumas.

Apresentou doze das melhores — a que tinha atribuído preços por ele

considerados muito inflacionados —, na exposição anual da recém-formada (193 1)

National Society of Painters, Sculptors, Engravers and Potters (Sociedade Nacional

de Pintores, Escultores, Gravadores e Ceramistas). A maior farte vendeu-se no

primeiro dia. Um triunfo e, também, uma libertação.

A libertação reportava-se às restrições da concorrência comercial. Os objectos

que são vendidos pelo seu valor estético não estão sujeitos à concorrência dos

preços. Este facto, só por si, tem implicações na natureza do processo de trabalho.

Retirarmos um produto do mundo da concorrência dos preços afasta-nos da

alienação ilustrada por David Pye com o exemplo do fabricante de colheres. É

também factor integrante de mais liberdade e autonomia no processo de trabalho,

libertando-lhe assim parte da sua carga de sofrimento. Se pudermos vender

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algumas coisas pelo seu mérito intrínseco, independentemente dos que outros

produtores estão a fazer, podemos então ter tempo para fazer o produto como

queremos. Mas, na concorrência comercial, a economia competitiva é como uma

máquina, sendo ela, e não nós, que dita as leis.

Daí que um processo de trabalho só se torne interessante para um praticante da

classe média quando o elemento concorrencial desaparece; quando as restrições

comerciais e económicas do preço e da eficiência produtiva são fundamentais, a

margem de manobra da autonomia, da livre escolha e da criatividade vêem-se

muito reduzidas.

Podemos resumir esta posição do seguinte modo:

O artesanato contemporâneo é necessariamente periférico relativamente ao

grosso da actividade económica. Se se tornar demasiado próximo da

actividade comercial, tanto a natureza do trabalho do artesão como a do

artefacto ficam comprometidas pela necessidade de serem competitivas, em

termos de preço, com o comércio.

Fazer artesanato é hoje muito diferente do que quando o artesanato era um

mister. O artesanato é hoje produzido como resultado de uma escolha da classe

média, como expressão de vontade própria destinada a um público com dinheiro —

e informação — suficiente para adquirir objectos inúteis, destinados a serem

contemplados. O que distingue o artesanato do comércio é uma diminuição da

quantidade de dor associada ao processo de produção e um aumento muito

considerável do coeficiente de prazer e de realização pessoal.

Há outro factor a considerar. Muitos artesãos vão buscar apenas uma parte — às

vezes muito pequena — da sua subsistência ao artesanato, se bem que este possa

preencher os aspectos mais importantes da sua vida. A sua subsistência pode ser

assegurada pelo cônjuge ou pelo ensino. Alguns fazem desta actividade um

emprego a tempo inteiro, sobretudo nos locais onde a economia é suficientemente

forte para permitir a existência de um número bastante de clientes com poder de

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compra ou onde, como por exemplo nas cidades de Nova lorque, Chicago e Los

Angeles, haja comerciantes e galeristas interessados em construir, para o

artesanato, um mercado análogo ao da arte.

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Um dos maiores prazeres éentregarmo-nos completamenteao trabalho deixando-nosabsolver por ele. A entrega é aprincipal meta do artesãomoderno. A fotografia mostraJim Patterson na sua fábrica depapel em Watchet, condado deSomerset (Reino Unido).

Realização pessoal

Examinemos com mais pormenor o prazer criativo e outros proporcionados pelo

artesanato de feição conservadora, pondo de lado o artesanato artístico, movimento

vanguardista por vezes contrário ao exercício da habilidade e ao respeito pela

função.

Entendo por conservador aquilo que tem formas imediatamente reconhecíveis,

familiares; em que a perícia é valorizada; em que se verifica um desejo consciente

de servir o cliente, a par de uma intervenção criativa.

O que atrai as pessoas para o artesanato é a

promessa de um "trabalho que representa um fim

gratificante em si mesmo". Trata-se de actividades

em que nos embrenhamos de livre vontade, pelo

prazer de termos a nossa atenção física e mental

completamente absorvida. "Perdermo-nos" no

trabalho é entrar numa espécie de alheamento

activo. Todas as outras ambições que não a de

prestar atenção à execução e ao desenrolar do

trabalho são temporariamente banidas. Aos

artesãos impressiona a ideia de um trabalho

criativo e autónomo ávido de ideais e ídolos do

moderno trabalho criativo. Na sua procura de ideais

e ídolos do trabalho criativo, o artesão europeu e

norte-americano tem procurado heróis em potência, sobretudo no Japão. Na

cerâmica, os mestres contemporâneos, como o oleiro japonês Shoji Hamada, são

adulados, sobretudo entre os norte-americanos, não só pelo que produzem mas

pelo modo como trabalham; os oleiros como Hamada têm uma actividade que é a

verdadeira antítese do penoso trabalho nas fábricas — incluindo o sofrimento do

trabalho organizado das fábricas japonesas de automóveis, por exemplo. Um livro

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 18/34

panegírico sobre Hamada, intitulado "A Potter's Way and Work" ,da autoria de

Susan Peterson, torna claro que são de admirar, em pé de igualdade, tanto os

artefactos como o modo de produção. Hamada goza de uma grande liberdade no

seu trabalho.

Tem tempo para decidir o que fazer, quando fazê-lo e a que ritmo (ao contrário

do fabricante de colheres de Pye). É muito dado a comentários aforísticos do

género: "Estes são os melhores potes, se puderem ser feitos nas melhores alturas"

ou "fazer uma taça para chá significa não pensar em fazer uma taça para chá".

E Susan Peterson passa à descrição de Hamada a fazer potes: "Com o pau, faz

girar a roda, que atinge seis revoluções antes de abrandar. O cone de barro

emerge irregularmente, mas é isso que ele pretende. Abre, com a sua mão

esquerda, uma forma no topo do monte. À medida que a taça surge, em forma de

sino, força ligeiramente o barro, provocando uma espiral irregular. De vez em

quando, apoia a palma da mão e dois dedos ao lado esquerdo da mole de barro e

empurra-a suavemente, o que descentra a taça, dando origem a um tremor ou

provocando uma irregularidade no topo. Hamada graceja com o assistente e fala

aos visitantes, explicando como se serve das mãos. Quando as pessoas saem,

acalma-se e fala, num tom diferente, sobre o seu amigo Kanjiro Kawai e da poesia

que escrevia, sobre o que costumavam fazer juntos. As taças parecem surgir

sozinhas do barro, sem pensar, que é a maneira que ele diz ser a correcta".

Este tipo de abordagem quase mística pode ser exagerado: atrai muitos

ocidentais e deve ser encarada com um pouco de cepticismo. No entanto, patenteia

uma realização pessoal que parece de facto ideal, desde que consigamos ler nas

entrelinhas — Hamada beneficia de um grande apoio por parte dos aprendizes e da

família, sobretudo da sua mulher. Sendo japonês, pôde contar com a subserviência

das mulheres que o rodeiam.

Percebe-se bem que uma opção como a de Hamada, verdadeira retirada para

um universo de auto-suficiência, o do trabalho dirigido por si próprio, seja atraente.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 19/34

Uma das características da cultura contemporânea é exigir que o indivíduo se

questione constantemente a si próprio e à sociedade, acto que não só pode trazer

vantagens como é também um instrumento necessário para a sobrevivência cultural

(ver págs. 100 e 101). Mas não há indivíduo nem cultura que possam sujeitar-se a

um questionamento exagerado: para que uma actividade possa ser desenvolvida

com alguma seriedade há que acreditar nos seus valores inatos. As melhores

actividades do Mundo são, obviamente, aquelas de que gostamos. Nelas haverá

trabalho que é não criativo; mas também é possível gostar-se de trabalho não

criativo, o que constitui um importante aspecto do artesanato.

Na sua autobiografia, Michael Cardew analisa o esforço rotineiro de amassar e

preparar o barro antes de o colocar na roda. Escreve: "Cedo descobri que se o

fizesse com o ritmo e a cadência adequados, servindo-me do peso do corpo em vez

de apenas os músculos do braço, podia amassar barro durante muito tempo sem

me cansar... Cheguei à conclusão de que era um dos tais processos manuais,

automáticos, que funcionam como um bónus inesperado para o artesão". O

conceito de trabalho gratificante, seja ele de natureza mecânica ou de tipo

francamente criativo, é uma aspiração de todas as classes de trabalhadores, mas

que os trabalhadores mecânicos raramente atingem, porque o prazer no trabalho,

como todos os outros, depende (normalmente) da liberdade de escolha.

O que para Cardew torna o trabalho menor de amassar o barro num prazer é

uma combinação de inteligência, habilidade e, sobretudo, liberdade de escolha. O

que conta é o facto de ele ter querido fazer os potes, em vez de ter sido obrigado a

fazê-los. A preparação do barro não era uma obrigação moral sua, já que tinha sido

ele próprio a chamar a si esse trabalho: ninguém lho tinha imposto.

O artesanato de atelier não resulta normalmente de uma divisão de tarefas: o

prazer, para o artesão, reside no facto de ser ele a encarregar-se de todo o

processo de produção porque, ao fazê-lo, está a opor-se ao método que coloca a

fábrica ou a instituição sobre o indivíduo, oposição que equivale a uma libertação.

O oleiro moderno, que na Europa é quase exclusivamente originário da classe

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 20/34

média, retira a sua liberdade filosófica e prática do facto de dominar todo o

processo. Alguns oleiros vão ao ponto de cavar o seu próprio barro. No entanto,

são poucos os que conseguem levar a sua independência até ao limite: seria

preciso ser-se extremista para tentar produzir o gás ou a electricidade que alimenta

o forno, ou para tentar moer os minerais (previamente extraídos pelo próprio) de

modo a produzir o vidrado. A verdade é que qualquer cultura fabril exige algum

trabalho de cooperação e divisão de competências.

O facto do artesão moderno decidir trabalhar mais (em vez de menos) porque

isso lhe agrada é uma manifestação da sua liberdade económica.

O artesanato é um exemplo claro de uma instituição em que, segundo

Baudrillard, "a ideologia da competição dá lugar a uma filosofia de auto-realização".

No entanto, no artesanato conservador, do tipo do de Pye, a realização pessoal

é uma actividade tão pública como privada. A realização advém do facto de se fazer

um trabalho que os outros podem julgar, utilizando critérios geralmente aceites e

partilhados por todos. A comunhão de critérios ajuda a reduzir o risco de

arbitrariedade ao tomar decisões relativas ao próprio trabalho. É a base do

conhecimento.

O conhecimento técnico na arte ou no artesanato é comunicado pelo menos de

duas maneiras: como modo de tornar mais claro o conceito de metáfora do trabalho

e como "coisa" a ser admirada por direito próprio. Se, por exemplo, adoptarmos a

olaria manual — para fazer chávenas, canecas, frascos ou tigelas — estaremos a

fazer coisas que encaixam numa tradição. Esta tradição é rica e diversificada nas

culturas que para ela contribuíram. Além disso, as tradições fornecem critérios

claros através dos quais se pode julgar o trabalho contemporâneo.

Assim, quando dizemos que esta tigela é melhor do que aquela, conseguimos

estar de acordo sobre o que estamos a apreciar: talvez a tigela seja um pouco

atarracada, menos graciosa, talvez a proporção da base ao bordo nos pareça

menos feliz. Ou, em presença de um frasco com tampa, podemos argumentar que

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 21/34

esta não encaixa bem, que a pega é desagradável de segurar, ou que todo o

conjunto é pesado de mais para o seu tamanho. Ao olharmos para a decoração,

podemos avaliar a qualidade gráfica do motivo. Podemos tecer uma série de

considerações sobre a natureza e critérios que regem a decoração. O facto de se

conhecerem os critérios, o universo de "regras" existente, imprime confiança e

conduz a um bom trabalho. O artesanato deste tipo oferece uma estrutura clara,

objectivos consensuais, metas comuns.

Os critérios partilhados são a base do reconhecimento da competência e, apesar

de apenas algumas pessoas possuírem a inteligência e destreza necessárias para

fazer um bom trabalho de talha ou de olaria, muita gente pode usufruir do produto

acabado. O prazer que experimentamos pode ser bastante intenso. O que me

entusiasma na pequena caixa esculpida descrita no início deste capítulo é a sua

demonstração de integridade — a demonstração de um homem que ama o seu

trabalho, que o leva o mais a sério que pode. Ficamos com a sensação de

conhecer alguém através do seu trabalho. A ensaísta norte-americana Vicki

Hearne, no seu livro "Adam’s Task" (1986), escreve:

"Normalmente, a nossa percepção de que alguém sabe ou

desconhece determinado assunto tem, entre outras coisas, que ver

com o nosso maior ou menor interesse e respeito pelo assunto — o

que tem tanto a ver com a inteligência como com a integridade. É

preferível que o mecânico que nos trata do automóvel seja alguém

que gosta de carros...".

Se fizermos qualquer coisa para que outra pessoa goste e perceba, os critérios

para o êxito deixam de ser arbitrários e passam a ser colectivos. É-nos pedido que

utilizemos a nossa imaginação moral e estética, colocando-nos perguntas como:

esta cadeira é confortável? É resistente? Fácil de deslocar? Qual é a sensação ao

agarrá-la? A sua decoração faz sentido? A decoração está presente para

embelezar ou antes para enganar, disfarçando a pobreza do design ou, pior, uma

deficiente execução?

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 22/34

Seria induzir as pessoas em erro se, ao descrever o artesanato contemporâneo

como uma actividade da classe média, se desse a impressão de que se trata de

uma actividade elitista. Para começar, a "classe média" constitui a maioria na

Europa e nos Estados Unidos. Depois, uma das grandes atracções do artesanato é

poder ser levado a grandes níveis de perfeição como actividade amadora,

desenvolvida a meio tempo. O que dá força ao artesanato é a sua natureza

participativa; faz pouco sentido falar de um designer industrial amador.

David Pye chama ao tipo de amadores a que me refiro "profissionais a meio

tempo", mas estamos a falar do mesmo. Pye, no seu "The Nature and Art of

Workmanship", escreve: "É vulgar pensar-se que um homem não pode aprender a

fazer um trabalho em condições se, à partida, não depender dele para a sua

subsistência e se não adquirir depois uma longa experiência. Não é verdade. Dois

minutos de experiência ensinam muito mais a um homem ávido de saber do que

duas semanas conseguem ensinar a um indiferente. É possível manter os períodos

remunerados e os de criatividade separados, o que pode até constituir uma

vantagem". O próprio Pye é um amador; ganha a vida como professor e escritor —

nos seus tempos livres, esculpe objectos de madeira.

Uma das características de uma revista como a Fine Woodworking é agregar

uma grande quantidade de pontos de vista concordantes, objectivos comuns e até

estruturas, partilhados pelos seus leitores (grande parte deles amadores). A revista

encoraja contributos tanto do público leitor amador como do profissional

(encorajamento que não ocorreria numa revista de belas-artes de estatuto

equivalente). Esta área da actividade artesanal não é polémica nem céptica. É

inteligente e funciona dentro de um conjunto de regras estabelecidas. Há uma

diferença importante entre quem persegue um hobby e um amador. Este não ganha

a vida com este tipo de trabalho, mas poderá querer — na generalidade dos casos

fá-lo mesmo — vender a sua produção a um consumidor; o primeiro pode apenas

querer fazer coisas pelo gozo que elas lhe dão, não precisando de ser

especialmente exigente consigo próprio.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 23/34

Chávena e pires feitos à mão porLjerka Njers, ceramista daJugoslávia, demonstrativos dopapel que podem ter os artigosdomésticos de produçãomanual: o de preencherem umanecessidade de individualismo eidiossincrasia. Este trabalho nãosubverte os valores decorativostradicionais, antes se baseianeles, dando-lhes destaque.

O estilo do artesanato

Mas o que há então no estilo do artesanato contemporâneo conservador que faz

com que os consumidores o queiram, apesar da indústria contemplar tão

inteligentemente os seus desejos e necessidades?

O escritor mexicano Octavio Paz, no seu ensaio

"Seeing and Using: Art and Craftsmanship"

(Convergences, 1987) aborda um ponto

interessante. Diz ele: "O objecto industrial tende a

desaparecer como forma para se identificar com a

função... O objecto industrial proíbe o supérfluo; o

trabalho do artesão delicia-se com o

embelezamento. A sua predilecção pela decoração

viola o princípio da utilidade" 4. Paz não é cem por

cento rigoroso. O design e a indústria ultrapassaram

essa fase — como vimos, o aparecimento das

máquinas comandadas por computadores fez surgir

de novo a decoração, apesar de, fazendo justiça ao

escritor, não ter tido nunca a intenção de interferir

com a perfeita funcionalidade do produto. Em muitos produtos feitos à mão, o

embelezamento pode prejudicar a função, o que é sobretudo verdade na grande

variedade de pegas não ergonómicas que podemos encontrar em objectos de barro

e de vidro.

Mas a chamada de atenção de Paz para o facto de o objecto industrial

desaparecer na sua função é vital. É a este "desaparecimento" que o

artesão-designer (permanece a dificuldade em encontrar uma terminologia

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 24/34

Venda a retalho. Estacena de mercado, colhidaem Filadélfia, é outroaspecto da estética anti--industrial adoptada peloartesanato.

A rudeza da jarra deL u c i e R i eÁ u s t r i a / R e i n oUnido) só poderesultar porque, noséculo XX, temosg a r a n t i d a asuavidade na maiorparte do nossoconsumo.

apropriada) resiste activamente. Assim, o artesanato dos movimentos do século XX

opõe-se ao design industrial em vez de o servir ou

valorizar. O metaforismo do artesanato reside na sua

expressão como modo de trabalho e de vida, raro no

panorama fabril moderno e nas economias ocidentais ou

de estilo ocidental. Os artesãos deste século serviram-se

muitas vezes do exagero de certas características

iconoclastas do seu trabalho como uma diferenciação de

produto. Uma linha hesitante aqui, uma pega ligeiramente

torta acolá recordam ao consumidor que o objecto em

presença é produto da mão.

Nas sociedades fabris e consumistas contemporâneas é

relativamente fácil ser-se iconoclasta no estilo: qualquer

desvio da estandardização quase perfeita da produção

industrial é encarado ora como uma coisa estranha ora especial. A perfeição da

superfície é sinal de uma cultura industrial: nas fábricas, quer

estas produzam automóveis ou barras de chocolate, as

superfícies com defeito serão rejeitadas pelo departamento de

controlo de qualidade, independentemente de isso afectar ou

não o desempenho do produto, a sua durabilidade ou o seu

sabor.

Os pequenos defeitos são mal tolerados no design "abaixo

da linha" e a sua presença é intolerável sempre que atente

contra a segurança ou eficiente funcionamento de uma

máquina. E em todos os artefactos de que depende a nossa

saúde, segurança ou a própria vida, podemos ver que as

linhas e acabamento evitam qualquer suspeita de imperfeição.

As linhas dos equipamentos de transporte, médicos, industriais

e domésticos sugerem suavidade, eficiência e ordem. Desde

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 25/34

Serviço de chá de MarcelloMorandini (Itália), desenhado paraa Rosenthal (Alemanha).

que sejam cumpridas as exigências de suavidade da nossa sociedade — suavidade

das superfícies, suavidade de funcionamento, design industrial de suave segurança

e confiança — podemos dar-nos ao luxo da imperfeição.

A cerâmica e o vidro produzidos manualmente, em particular, têm feito da

"imperfeição" uma virtude. Podemos ver nestas páginas uma jarra de Lucie Rie, que

é uma ode à imperfeição; uma chávena e um pires do fabricante alemão Rosenthal,

que é um óptimo exemplo de um bom design, perfeito, previsível, sem falhas; e

finalmente uma placa de grande qualidade de execução, mas claramente feita à

mão, cheia de conteúdo narrativo, do oleiro norte-americano Frank Fleming.

A Rosenthal representa a estandardização e é a sua existência que permite a

produções como as de Rie sobreviver e prosperar. Se não tivéssemos ainda

atingido a perfeição dos artigos da Rosenthal, ninguém quereria as superfícies

esburacadas de Rie.

Extasiamo-nos perante as suas "imperfeições" porque sabemos que há sempre

uma alternativa. A procura de artesanato, como a de design, baseia-se na

necessidade de nos diferenciarmos dos impulsos gerais da sociedade, embora

sabendo que pertencemos a ela. Assim, para quem

tem um armário cheio de produtos industriais bons

e bem comportados, o artesanato de atelier oferece

um extra reconfortante: uma valorização da estética

do lar ou, se preferirmos, um contraste.

Existe ainda outra categoria de artesanato em

que os objectos demonstram um extraordinário

virtuosismo e uma perfeição minuciosa — com uma

tal redundância de perfeição, que sabemos terem sido necessariamente feitos à

mão, e esta produção manual, das duas uma: ou foi levada a efeito sem ter em

conta imperativos económicos ou alguém muito rico se dispôs a patrociná-la.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 26/34

Os cestos, como aspontes de Ferro semembelezamentos,evidenciam a lógicada sua razão de ser,coisa que poucosa r t e f a c t o sp r o d u z i d o si n d u st r i a l m en t ec o n s e g u e m .Exemplar de DavidDrew, Reino Unido.

Podem encontrar-se exemplos destes em algumas peças de joalharia e em

trabalhos de madeira ou metal.

De facto, um dos resultados interessantes da concorrência entre o artesanato e o

fabrico industrial é o de, em certas áreas do artesanato contemporâneo — no

mobiliário de madeira, por exemplo —, estarmos a assistir a provas de virtuosismo

sem paralelo no trabalho de artesãos de séculos passados. Os modernos

marceneiros decidiram competir com o rigor e previsibilidade dos trabalhos

industriais, indo a pormenores cada vez mais minuciosos. Samblagens perfeitas

não são já suficientes para distinguir o trabalho de uma

máquina moderna do da mão do artesão, já que são hoje em

dia o produto rotineiro de tupias automáticas. Alguns artesãos

produtores de mobiliário em madeira, sobretudo os

norte-americanos, levaram muito longe a sua perícia técnica,

devido à perseguição que lhes é movida pelo constante

aperfeiçoamento da indústria. Adoptaram, pois, estilos que

revelam deliberadamente Samblagens engenhosas, ou que

requerem que a madeira seja trabalhada (esculpida, dobrada

ou torcida) de modo a produzir formas orgânicas ou intrigantes

superfícies geométricas. Muitas das grandes figuras

contemporâneas da marcenaria são norte-americanas, entre

elas Wendell Castle e Sam Maloof. "Perfeito" e "imperfeito"

são termos comparativos. Nem tudo o que é simultaneamente

"não liso" e feito à mão é imperfeito. A cestaria de vime, por exemplo, registou um

renascimento nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha e há uma perfeição "rude"

nos objectos desta indústria que é mais do que aparente. Um cesto feito à mão é

um dos exemplos em que o estilo, a beleza da superfície, o design "abaixo da linha"

e a manufactura se fundem com uma função bem definida e uma grande

durabilidade.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 27/34

Um cesto feito à mão, como o de David Drew que se pode ver acima, peca

apenas pelo custo da mão-de-obra que implica.

Além de serem termos comparativos, "perfeito" e "imperfeito" são também

culturalmente específicos. Por exemplo, o tipo de cerâmica utilizado pelos

japoneses na sua cerimónia do chá é considerado muito bonito por eles, se bem

que aos olhos ocidentais parecer deformado e primário.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 28/34

Uma estética de oposição?

A que se resume o mundo do artesanato na Europa e nos Estados Unidos? É

uma das tais "instituições" sem contornos definidos, que as sociedades ricas com

culturas amadurecidas podem suportar e que oferece um refúgio para as inúmeras

pessoas que. de uma maneira ou de outra, se opõem à sociedade em que estão

inscritas ou que, pelo menos, vivem descontentes com ela. Nada há de

automaticamente subversivo em tal oposição. nem significa uma rejeição total da

sociedade. O que o fenómeno do mundo artesanal contemporâneo oferece às

pessoas é um pouco mais de espaço para se organizarem do modo que desejam.

Ao nível mais básico do artesanato como hobby, podemos ver que a actividade

oferece aos indivíduos conformistas e conservadores urna oportunidade de

construírem o seu próprio mundo no tempo que lhes sobra, depois de servirem a

sociedade como escriturários, professores, técnicos de telefones, etc. Outras

pessoas foram mais longe, montando uma oficina de artesanato, através da qual

tentam, por vezes com êxito, viver iodo o seu tempo de acordo com um padrão e

uma ordem que elas próprias determinam e regulam.

É provável que outras pessoas, igualmente inteligentes e criativas, tenham inveja

dos artesãos; mas, por uma série de razões práticas ou de dever, seguem carreiras

sujeitas a ritmos impostos por terceiros. E são estes "escravos" do salário,

inteligentes mas conformistas, que formam a clientela dos artesãos

contemporâneos. O que os conformistas pretendem — e lhes é fornecido por tantos

artesãos — — é uma estética artesanal viva, revestida de formas familiares:

cerâmica com aspecto de ter sido Feita à mão, com uma presença animada e uma

certa textura, mas quase tradicional no que respeita à forma; o mesmo se passa

com o mobiliário e com os téxteis.

À sua maneira, este trabalho faz parte de uma estética do artesanato de

oposição: opõe-se e é diferente daquilo que as lojas da Baixa e a tecnologia

oferecem. Estas podem fornecer perfeição; o artesanato inclui algumas falhas

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simpáticas (o artesanato contemporâneo, porque não precisa de ser funcional,

pode conter falhas de designou de execução). O objectivo de grande parte do

artesanato não é a perfeição prosaica, que podemos sempre adquirir noutro lugar.

Tem muito mais a ver com pôr outra vez as pessoas a comunicar entre si.

O virtuosismo daquilo que é feito à mão também é comunicação entre pessoas.

O mundo da tecnologia é que é mudo. Saber que alguém está a fazer uma coisa

especialmente para nós é importante, tal como é, do ponto de vista psicológico, ver

num trabalho a marca da mão do executante. A tecnologia é eficiente, mas

profundamente anónima.

O aspecto antiquado da maior parte do artesanato é um componente essencial

para o seu êxito económico. Se a tecnologia se tivesse desenvolvido de outra

maneira — revestindo-se de texturas e formas de uma estética irregular, orgânica,

por exemplo —, o artesanato teria de contrapor um acabamento suave e um

aspecto de "feito à máquina".

Seria, no entanto, inexacto concluir daqui que há uma ruptura total entre o

artesanato e o design industrial. Estão em oposição, mas não em todos os pontos.

De certa maneira, as formas do artesanato tiveram influência na corrente principal

de design — influência que é poderosa na Escandinávia e que, nos Estados

Unidos, aparece e desaparece para voltar a aparecer de novo. Uma breve análise

do design escandinavo do século XX mostra-nos que o design para o lar —

cerâmica, vidro, serviços de mesa, mobiliário e estofos — tem uma linguagem muito

próxima da do artesanato. Mesmo quando são feitos à máquina, os objectos

conservam um aspecto de "feito à mão". Se pensarmos que os países

escandinavos tiveram quase sempre governos sociais-democratas nos últimos

cinquenta anos, seguindo uma política de bem-estar social tendente a criar um

Estado ideal de classe média, e se levarmos em conta que a metáfora do

artesanato conservador é acolhedora, humanista, reconfortante, não é

surpreendente que a estética do seu artesanato tenha conservado uma posição de

domínio.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 30/34

A influência do design escandinavo — com a sua ênfase na ideia do côncavo, da

forma envolvente — é popular nos Estados Unidos desde a década de 20. A

apoteose da influência do design artesanal/côncavo/escandinavo sobre o design

norte-americano foi atingida nas formas do mobiliário apresentado por designers

como Charles Eames e Eero Saarinen nos anos 40 e no princípio da década de 50.

Os seus designs continuam a ter influência: com efeito, a forma orgânica, a

concavidade e o ventre materno são ainda poderosas metáforas no design

norte-americano contemporâneo e não há dúvida de que a década de 90 assiste a

um revivalismo ou reinterpretação do look de Eames. Persiste um outro subtema na

história do artesanato, sobretudo nos Estados Unidos, na Alemanha, nos Países

Baixos e no Reino Unido. Tem havido alguma oposição, por parte de certos

artesãos, em aderir à corrente que pretende servir o lar com formas familiares: um

número significativo de artesãos tem rejeitado os valores conservadores e o

artesanato conservador. Daí surgiu um movimento antiperfeição e, sobretudo, um

movimento anti-artesanato como produto de consumo.

No Reino Unido, na Alemanha e nos Países Baixos, homens como Ron Arad

(Israel/Reino Unido) e grupos como o Hard Werken (Países Baixos) têm defendido

que as ideias são muitas vezes mais importantes do que os objectos. Sobretudo em

Inglaterra, registou-se um forte movimento na década de 70 para recusar o

perfeccionismo. A maioria da geração de recém-formados de escolas de arte

inglesas não tem grande capacidade para desenhar, modelar ou fazer bem seja o

que for. Uma das razões para a (temporária) subalternização da habilidade como

ingrediente i importante do artesanato está ligada com uma atitude política. Se a

maior parte do artesanato era comprada pela burguesia, isso devia-se ao facto de

encontrarem nele um certo consolo.

Havia um número significativo de artesãos que, nas décadas de 70 e 80, não

queriam proporcionar conforto aos seus clientes; preferiam incomodá-los. Os jovens

artesãos repudiaram a técnica porque esta era uma exigência burguesa e,

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sobretudo, porque era mais cómodo ignorá-la. Foram também eles que subverteram

as formas familiares.

Do ponto de vista conservador, a recusa de perfeição é mal vista. O reverso da

questão é que o vocabulário posto à disposição do artesão contemporâneo se

alargou. Existe hoje no Ocidente (especialmente em países como o Reino Unido ou

os Estados Unidos, em que as velhas indústrias passaram, subitamente, à história)

muito material "antigo" que ficou de fora do mundo tecnológico. Este "lixo"

antiquado da indústria do século XX, que era, ainda há trinta anos, tecnologia

competitiva, está agora disponível para ser retrabalhado pelo artesanato como

parte de um movimento estético de oposição à actual tecnologia. Assim, o

equipamento eléctrico primitivo e as peças das antigas máquinas estão agora a ser

integradas em objectos de artesanato, por artesãos jovens.

A nostalgia, ingrediente tão importante no artesanato, ganhou terreno. Pode

também dizer-se que os artesãos que adoptaram essas técnicas de montagem nos

anos 80 estavam a repetir a estratégia de alguns dos primeiros artistas da "idade

da máquina", como Marcel Duchamp — fascinado pela beleza da maquinaria e dos

utensílios de cozinha do final da era vitoriana, e que o demonstrou com a sua

recuperação do suporte metálico para garrafas, em 1914.

O imaginário e os artefactos das indústrias do período do carvão são agora tão

ricos em significado artesanal potencial como as velhas olarias e cestarias.

Os jovens foram radicais, filtrando no entulho urbano o imaginário anti-burguês.

Na essência, ajudaram o mundo do artesanato a alcançar a história moderna. Em

certa medida, o artesanato adaptou-se ao ritmo da mudança. O mundo do

artesanato é uma instituição reactiva — reage a mudanças e a tendências,

procurando oferecer uma visão alternativa e uma nova série de metáforas.

Na complexidade do artesanato contemporâneo existem outros extremos, como

seja a realização de objectos únicos, que patenteiam ostensivamente o tempo que

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levaram a ser feitos e que se destinam a adquirir um estatuto de "arte" de nível

idêntico à síndroma do ovo de Fabergé.

Nos Estados Unidos, alguns escultores como Wendell Castle voltaram-se, com

êxito, para a produção de mobiliário e em seguida, à medida que evoluíram,

procuraram alcançar o estatuto de arte para as suas peças, produzindo mobiliário

ostentatório, fabuloso na perícia e nos materiais, qual encomenda de marajá

caprichoso. Castie, no entanto, não se deixou arrastar completamente pela corrente

da tendência efémera, ao contrário de muitos outros designers-executantes, para

quem o modernismo tem sido uma grande fonte de encantamento.

Sendo o pós-modernismo encarado pelos arquitectos, designers e pessoas da

área das artes aplicadas como uma extravagância optimista ou uma série de golpes

de mão à história para roubar bagatelas a estilos passados, não deixa de ser

irónico que, entre os académicos, o debate pós-modernista tenha gerado opiniões

que raiam o niilismo. Os excessos pós-modernistas no artesanato norte-americano

criaram uma "caldeirada": bolas coloridas, pirâmides, pormenores egípcios e/ou

romanos e outro tipo de decoração gratuita foram requisitados para tornarem os

objectos feitos à mão em quase-esculturas.

E assim, talvez com algum pessimismo, o final do século XX vem encontrar os

artistas, os designers, os artesãos e talvez a maioria de nós debatendo-se com uma

situação desestabilizadora. Somos excluídos da verdadeira vanguarda da cultura

contemporânea; fomos todos marginalizados. O fulcro da vanguarda

contemporânea no Ocidente não é o artesanato ou a arte nem o debate entre

modernismo e pós-modernismo; o fulcro é a física teórica e a tecnologia aplicada.

Quantos de nós estaremos aptos a penetrar no panorama conceptual da nova física

ou à vontade na construção de software para computador?

E ainda há mais. Porque, estando à margem da principal corrente da cultura

contemporânea — excluídos não por falta de talento mas por completa ignorância

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 33/34

—, estamos livres para encontrar interesses e diversão onde pudermos. Daqui o

êxito continuado do artesanato do século XX.

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Peter D ormer — Cap ítulo 6 — Valorizar a P roduç ão Manual 34/34

INDICE GERAL DA OBRA:

PREFÁCIO

1 O DESIGN E O ESTILO. A relação entre estilo e engenharia:

Acima e abaixo da linha - Estilos agradáveis à vista - Não há artesãos

2 NOVENTA ANOS DE DESIGN. O estilo em design desde 1900 OS FUTUROS DO DESIGN:

O direito de escolha - A economia norte-americana e o design do século XX

3 COMO DUAS GOTAS DE ÁGUA. O impacte dos novos materiais

Os valores do plástico:

A revolução da supercondutividade- As limitações da carne - E o Homem criou a

máquina - A infra-estrutura incorpórea

4 O PANORAMA DOMÉSTICO ACTUAL. O design e o lar:

Os instrumentos que prolongam o corpo humano - A alma da máquina - Emoções

face ao objecto - Valores em mudança

5 DESIGN DE LUXO. O luxo do design

A deificação do dinheiro - Objectos paradisíacos - Feitos à mão - Objectosde

figuração

6 VALORIZAR A PRODUÇÃO MANUAL. O artesanato de atelier e significado do seu estilo

autónomos?

David Pye - O percurso do artesão - Libertação face ao mercado -

Realizaçãopessoal - O estilo do artesanato - Uma estética de oposição?

7 OS FUTUROS DO DESIGN. Conservação e conservadorismo

Publicidade e ideologia - Ouro de lei - O design e as raízes da sociedade

NOTAS

ILUSTRAÇÕES

ÍNDICE REMISSIVO

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