Veganismo e ética

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Sobre o Veganismo e a Ética

Antes mesmo de atendermos à sensibilidade/insensibilidade e à senciência/não-senciência

como argumentos válidos para poupar a vida de um ser vivo e, consequentemente, para ser-se

Vegan, há que discernir SE esses argumentos são realmente válidos. Ao fazê-lo chegaremos, creio

eu, a três simples conclusões.

Em primeiro lugar, que esses argumentos são automaticamente encarados como válidos

porque tratam-se de projecções pessoais. E, como meras projecções que são, não há nada na

natureza que justifique ou que consubstancie logicamente essa tomada de posição. Ou seja,

preocupa-mo-nos com o sofrimento e a senciência de um animal porque o próprio homem sente e é

senciênte, mas não porque a natureza nos ensine algo nesse sentido. Aliás, a multiplicidade de

dietas existentes por entre os outros animais no meio natural (que vão do puro carnivorismo, ao

herbivorismo, passando pelo omnivorismo e o canibalismo) indicia algo em sentido completamente

oposto: aqueles que sentem/sofrem, só por causa dessa condição, não derrogam à regra: a

determinada altura da cadeia alimentar poderão igualmente servir de alimento a um outro ser vivo.

Pergunto: porque é que haveriam de derrogar?

Em segundo lugar, dar-nos-emos igualmente conta de que não é possível justificar porque é

que, objectivamente, há que considerar a vida de um ser vivo que não sente como tendo menor

valor ou como merecendo menor apreço que a vida de um ser que sente. Na natureza, toda a vida é

uma vida - um conjunto de processos biológicos e químicos que permitem ao indivíduo ser

autónomo - sendo que as particularidades que giram em volta dela não passam disso mesmo, de

particularidades. Por certo, um ser vivo mais pequeno não merecerá menos viver ou menor respeito

do que um outro que é gigante. Ora aquele que não sofre tem menor mérito para viver do que

aquele que sofre? Quid das pessoas que são atingidas por uma insensibilidade endémica à dor?

Poderão elas então ser comidas? Por outro lado, mesmo para os que sentem, tal particularidade pode

ser desconsiderada quando 1) a morte surge sem ou com pouco sofrimento e 2) quando há seres sem

capacidade para sofrer e sentir prazer/dor mas que têm vontade de viver.

Em terceiro e último lugar, acrescentamos que se a vida tem um valor intrínseco (em

desconsideração das particularidades de cada ser-vivo) então o Veganismo não é, nem de perto nem

de longe, algo de mais ético ou se quer de ético - ele desconsidera, prejudica e descrimina um outro

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tipo de vida: a vegetal. Foi por isso que surgiu a dieta frugívora a qual atende e respeita de igual

forma à vida vegetal e procura, mais do que todas as dietas, conformar-se com a ética. Não obstante

isto, há que convir: esta é uma dieta cara, cujo impacto na saúde humana não está devidamente

quantificado/qualificado, e que tem uma muito fraca adesão.

O facto de se argumentar que os seres não-senciêntes merecem o mesmo respeito e

consideração pela sua vida que os seres senciêntes esbarra com a necessidade que temos de os ter

que comer (a vida vive da vida). Por essa ocasião, devo precisar, talvez de forma redundante, que

não se preconiza com isto que eles devam morrer nas mesmas circunstâncias. O “principio da

igualdade”, por entre os homens, acerta que “devemos tratar de forma igual aquilo que é igual, mas

de forma diferente aquilo que é diferente”. Os seres senciêntes e não-senciêntes encontram-se, ainda

assim, em situações diferentes: uns têm a particularidade de sentir/sofrer enquanto que os outros

não (admitamos que as coisas são, assim, radicalmente lineares1). Logo a forma como devemos pôr

termo à vida deles não pode ser a mesma.

Ou seja, se discutimos até aqui a ética por detrás da possibilidade de matar um ser senciênte,

vamos agora debruçar-nos sobre a ética na forma de o matar... Para aqueles que não sofrem, pesa

sobre nós o dever de os “matar” da forma mais rápida e definitiva possível, mas tal não levanta a

preocupação de saber se estamos ou não a fazê-los sofrer. Por assim dizer, é mais fácil e

despreocupado o exercício de matar aquele que tem uma inerente incapacidade de sentir/sofrer

(algo que pode ser perigoso por essa mesma razão, mas não nos percamos com isso). Para aqueles

que sofrem, a sua capacidade de sentir/sofrer dor levanta porém essa verdadeira problemática. É

uma problemática em si porque lidamos, aqui sim, com questões éticas.

Antes de passar às explicações do porquê disso mesmo, desejaria lembrar que essa não é

uma preocupação exclusivamente Vegan - nem de perto, nem de longe - e que ela está muito aquém

de o ter que ser. Aliás, o Veganismo não tem sequer vocação a combater todos os estados ou

situações que provocam sofrimento. Para além das situações naturais em que o sofrimento animal

1 Na verdade, as coisas são bastante mais complicadas do que essa simples e ignorante dicotomia entre

seres sencientes e não-senciêntes. Ver, sobre o sistema neuro-biológico da planta, a seguinte publicação:

The First Symposium on Plant Neurobiology. Ente cassa di Risparmio di Firenze: Florença [Italia], 2005.

Realizado pela Universidade de Bonn e pela Universidade de Florença, e premiado pelo “Prosperitati

Publicae Augendae”. Acedido aqui http://www.plantbehavior.org/files/Symposia_BookofAbstracts.pdf.

[Acedido a 07/01/2013].

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ocorre (pela doença, a imprudência, o predador) não podemos descurar o facto de que, na sociedade

humana, há sofrimento animal derivado de uma exploração que não pode ser paliada através de uma

alteração de dieta ou mesmo através de uma alteração isolada de comportamento. Seria necessário,

sim, a refundição de todo o sistema social e económico.

A este titulo, há que reparar que os animais são “usados” em determinadas circunstâncias

porque, para o uso que o homem lhe dá, não há alternativa barata, imediata, continua e duradoira

para os substituir (daí o facto do código civil ter reticências em deixar de considerar os animais

como coisas): a vaca que trabalha a terra, os huskies e o cavalo que transportam o homem, o burro

que leva cargas, o porco que procura cogumelos, o cão como instrumento de investigação criminal,

o pombo-correio, são exemplos de situações em que os animais são usados como coisas e, muitas

vezes, abusados até ao sofrimento, mas às quais o Veganismo não pode dar resposta.

Seria necessário conceder a essas pessoas respostas tecnológicas viáveis e duradoiras. Essas

pessoas, com certeza, não recusariam a possibilidade de ver cumprido o trabalho que têm de realizar

pelas máquinas. Somente isso poderá não ser possível, de forma sustentável e sustentada, sem que

haja alteração do nosso paradigma económico. Tanto mais agora, num momento em que as

dificuldades vão acentuar-se, em que não há dinheiro para comprar tecnologias, e em que a

preocupação pelo sofrimento animal passará para segundo plano... Assim devo por fim dizer que

não basta contestar as consequências (ou seja, denunciar o mal) mas perceber e atacar aquela que é

a essência da questão (a causa) - a qual é sempre a mesma - ou seja, o sistema económico. A

economia, consoante promova a abundância ou a escassez, promove mentes abertas ou mentes

conservadoras, liberdade animal ou prisão2. Quando a economia falha todos os animais tendem a

ser explorados. Todos. Até o próprio animal que é o homem. Aliás, diria até, o homem até mais do

que todos os outros.

Mas porque é que é não-ético fazer sofrer um animal? Não basta declarar, é preciso

justificar. Ainda que eu não soubesse nem pudesse saber o que é sofrer, poderia contudo perceber

que tal não é algo que o outro Ser aprecie. Este entendimento pode ser conseguido através de gestos

2 Não por acaso as sociedades que dizemos serem mais protectoras dos animais e até das plantas, são

sociedades que tenderam a conservar de forma continuada um elevado padrão de qualidade de vida para

os seus cidadãos. A Suíça, tida como pioneira na matéria, e a Alemanha, são ambos Estados que estão por

entre os mais ricos do mundo...

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ou outro tipo de comunicação (nomeadamente verbal) que o esse outro possa desenvolver. Daqui

podemos tirar duas consequências:

1) É aético obrigar um ser munido de alguma autonomia e liberdade a fazer e a sentir algo contra a

sua vontade. Essas particularidades que lhe são próprias não seriam efectivas se elas fossem

caladas pela imposição de determinadas experiências. Consideramos que a morte não cai por

entre as experiências forçadas que foram mencionadas apenas porque apresenta-se, para nós

humanos, como uma necessidade imperativa para a sobrevivência (é preciso comer) e não como

uma escolha. De resto, ela teria que acontecer num caso como no outro (ou seja, quer

decidíssemos comer animais ou plantas).

2) Tendo em conta que o homem e o animal apresentam ambos a capacidade de sofrer, é

igualmente aético fazer sofrer um animal porque tal corre contra aquela que é a própria natureza

do homem. Se o homem sabe o que é sofrer e não gosta, saberá que um animal que sofre não

deve gostar. E se eu não gosto de sofrer (por definição o sofrimento é incompatível com o gosto/

prazer) então eu não vou querer fazer ao outro aquilo que eu não gosto que me façam. Não

quererei fazê-lo porque estarei, por um lado, a promover a indiferença relativamente ao

sofrimento de todos e de cada um - algo que, mais cedo ou mais tarde, pode voltar-se contra

mim - e, pelo outro, porque estou a legitimar a própria acção de fazer sofrer: “se fizeste sofrer,

consideras aceitável sofrer; se consideras aceitável sofrer, podes sofrer; se podes sofrer, então

sofre porque fizeste sofrer”.

Assim a ética justifica-se e deve ser justificada pela lógica (objectividade) e não pelas

projecções pessoais (que são mais ou menos irracionais e mais ou menos variáveis/subjectivas).

Conclusão: o Veganismo, no que toca ao respeito pela vida, é, à partida, até mais aético do

que o omniverismo no que toca ao respeito pela vida pois ela redirecciona o consumo diético

exclusivamente para um tipo de vida. Em consideração do sofrimento, ele dará seguramente algum

reconforto pessoal por saber que, mediante o actual paradigma macro-económico, ele permite evitar

determinados sofrimentos animais. Mas não percamos de vista a outra face da verdade: é

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igualmente possível consumir carne sem sofrimento (nem que fosse carne sintética/artificial3) e

muitas situações, que estão na origem da exploração e do sofrimento animal, são preocupação

comum aos Vegans e aos Omnívoros mas nem um nem outro conseguirão resolverem-nos em si e

por si só. É necessário uma revolução na mecânica económica. Dito tudo isto, remato esta

intervenção observando que o aéticismo primordial do Veganismo (que é o facto de discriminar

tipos de vida por falsas razões) é, todavia, largamente compensado por outros factores de igual ou

superior qualidade ética: o Veganismo comporta vantagens ambientais4 e discutem-se os seus

eventuais benefícios para a saúde.

3 Carne artificial pode começar a ser produzida ainda em 2012: 18/01/2012. Acessível aqui: http://

noticias.terra.com.br/ciencia/pesquisa/carne-art ificial-pode-comecar-a-ser-produzida-ainda-

em-2012,f2285b6db16da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html [Acedido a 07/01/2013]

MIRANDA, Giuliana - Hamburguer artificial vai sair neste ano, diz cientista holandês: 24/02/2012. Acessível

aqui: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1052957-hamburguer-artificial-vai-sair-neste-ano-diz-cientista-

holandes.shtml [Acedido a 07/01/13]

4 VIDAL, John - Food shortages could force world into vegetarianism, warn scientists: 26/08/2012. Acedido

aqui: http://www.guardian.co.uk/global-development/2012/aug/26/food-shortages-world-vegetarianism

[acedido a 07/01/2013]