Versão Final Mestrado

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 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO GABRIEL DE OLIVEIRA RIBEIRO DO VALLE CORRÊA Há diferença? Se há diferença, desmancha-se... Representação da sociedade fluminense na série de crônicas Gazeta de Holanda, de Machado de Assis. São Paulo 2012

Transcript of Versão Final Mestrado

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    GABRIEL DE OLIVEIRA RIBEIRO DO VALLE CORRA

    H diferena? Se h diferena, desmancha-se... Representao da sociedade fluminense na srie de crnicas Gazeta de Holanda,

    de Machado de Assis.

    So Paulo 2012

  • GABRIEL DE OLIVEIRA RIBEIRO DO VALLE CORRA

    H diferena? Se h diferena, desmancha-se... Representao da sociedade fluminense na srie de crnicas Gazeta de Holanda,

    de Machado de Assis.

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP) para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    rea de Conhecimento: Teoria Literria e Literatura Comparada.

    Orientador: Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka.

    So Paulo 2012

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    MODELO: Catalogao da Publicao

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da FFLCH So Paulo USP

    Corra, Gabriel. F272e H diferena? Se h diferena, desmancha-se... Representao da

    sociedade fluminense na srie de crnicas Gazeta de Holanda, de Machado de Assis / Gabriel de Oliveira Ribeiro do Valle Corra. So Paulo, 2012.

    272 f.

    Dissertao de Mestrado Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Universidade de So Paulo. Orientador: Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka.

    1. Literatura. 2. Crnica. 3. Gazeta de Holanda. 4. Machado de Assis, 1839-1908. I. Ttulo.

    CDD 972.91064

  • Nome: CORRA, Gabriel de Oliveira Ribeiro do Valle

    Ttulo: H diferena? Se h diferena, desmancha-se... Representao da sociedade fluminense na srie de crnicas Gazeta de Holanda, de Machado de Assis.

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo (USP) para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    rea de Conhecimento: Teoria Literria e Literatura Comparada.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka (Orientador) Instituio: USP FFLCH

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. Sidney Chalhoub Instituio: UNICAMP - IFCH

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. Valentim Aparecido Facioli Instituio: USP FFLCH

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________________

  • A Carine Dalms

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, sobretudo, ao Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka pelo compromisso, seriedade e constante disponibilidade para o dilogo, mesmo nas conversas iniciais, antes de aceitar orientar este trabalho. Alm disso, pela compreenso de minhas qualidades e limitaes acadmicas, fazendo da orientao um rico processo de aprendizagem, pautado pela confiana com a qual sempre estimulou minha autonomia.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela bolsa concedida, que possibilitou a aquisio de todo o material utilizado, assim como a dedicao exclusiva pesquisa.

    Ao Prof. Dr. Valentim Aparecido Facioli e ao Prof. Dr. Hlio de Seixas Guimares, que participaram da banca de qualificao, pela atenta leitura e pertinentes apontamentos e sugestes. Mas, principalmente, pelas crticas e questionamentos, os quais foram

    determinantes para aprofundar e esclarecer elementos estruturais do texto. Aos professores Ana Paula S e Souza Pacheco, Andrea Saad Hossne, Cilaine Alves

    Cunha, Ivan Prado Teixeira, Joaquim Alves de Aguiar, Jorge Mattos Brito de Almeida, Jos Antonio Pasta Jnior, Jos de Paula Ramos Jnior, Marcelo Pen Parreira, Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos e Vagner Camilo, que de diferentes maneiras contriburam direta e fundamentalmente desde a elaborao do projeto at a finalizao deste trabalho.

    equipe do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da Universidade de Campinas, pela prontido do atendimento e eficiente disponibilizao de seu acervo, viabilizando a digitalizao das fontes.

    A Luiz de Mattos Alves, assim como a todos os funcionrios da Secretaria de Ps-Graduao do departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada da FFLCH, por toda sorte de auxlios e, principalmente, de galhos quebrados.

    Aos meus irmos, Paulo e Rafael, assim como aos amigos e colegas, pelo incentivo

    como acompanharam este trabalho. A Carine Dalms, pelas conversas, carinho, pacincia e incansvel apoio e

    contribuio para elaborao desta pesquisa desde seu princpio.

  • RESUMO

    CORRA, Gabriel. H diferena? Se h diferena, desmancha-se... Representao da sociedade fluminense na srie de crnicas Gazeta de Holanda, de Machado de Assis. 2012. 272 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    O objetivo desta pesquisa a anlise e a interpretao da srie de crnicas Gazeta de Holanda, escritas por Machado de Assis e publicadas entre 1 de Novembro de 1886 e 24 de fevereiro de 1888, em um dos jornais de maior tiragem do Rio de Janeiro na poca, a Gazeta de Notcias. Para a abordagem, consideramos a articulao entre dois elementos bastante visitados pelo tradio crtica brasileira: a produo de crnicas em grande volume e variedade pelo escritor brasileiro mais estimado de seu tempo; e a crnica como um gnero literrio relativamente novo, se comparado aos demais j reconhecidos pela tradio, o que faz dele algo generalizadamente menos estimado, mas, certamente, bastante popularizado e praticado pelos principais autores brasileiros. Alm disso, priorizamos o campo de comunicao em que esses textos foram elaborados, principalmente, para no descartarmos a priori dados potencialmente significativos para interpretao dos textos. No caso de Machado de Assis, mesmo que em muitas das crnicas analisadas no haja referncia direta a fatos e acontecimentos publicados nos jornais da poca, podemos afirmar que a estrutura significativa de seus textos est em dilogo direto com a potencialidade do campo comunicacional em que est inserido. Assim, discorreremos nesta pesquisa sobre: o gnero dentro de seu contexto social, fundamentando a ideia generalizada na crtica brasileira que o associa a algo como gnero nacional; e a anlise formal da Gazeta de Holanda, sugerindo o rendimento literrio dos textos, enquanto unidades autnomas e enquanto conjunto de textos seriados; e, por fim, apontando sua significativa pertinncia dentro da produo do cronista.

    Palavras-chave: Machado de Assis; Gazeta de Holanda; Crnicas; Representao Social; Sculo XIX.

  • ABSTRACT

    CORRA, Gabriel. Is there a difference? If there is a difference, dissolve it... Representation of the fluminense society in the series of chronicles Gazeta de Holanda, by Machado de Assis. 2012. 272 f. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    The objective of this research is the analysis and interpretation of the chronicles Gazeta de Holanda, written by Machado de Assis and published between 1st November 1886 and February 24, 1888, in the newspaper of largest circulation in Rio de Janeiro at the time, Gazeta de Notcias. For this purpose, we have considered the relation between two elements frequently cited by the brazilian literary criticism tradition: the chronicle gender was produced in large quantity and variety by the most esteemed Brazilian writers; besides, the brazilian chronicle was a literary genre relatively new, if compared with others already recognized by the tradition, which has transformed it in something less estimated, but certainly yet very popular and practiced by the major of the brazilian authors. In addition, we prioritized the social context in which these texts were produced, mainly, to do not ignore a priori information potentially significant for the interpretation of the texts. In the case of Machado de Assis, even that in many of the chronicles analyzed there is no direct reference to facts and events published in the newspapers of the time, we must say that the significant structure of their texts is in direct dialogue with the capability of the context in which it is inserted. Thus, we will discuss in this research: the genre within its social context, trying to understand the general idea that the brazilian critics linked the chronicles with something like a "national genre"; the formal analysis of the Gazeta de Holanda, suggesting the literary relevance of these texts, as isolated units and as set of texts; and, finally, pointing its significant relevance within the chronicler production.

    Keywords: Machado de Assis; Gazeta de Holanda; Chronicles; Social Representation; Nineteenth Century.

  • LISTA DE SIGLAS

    GN Gazeta de Notcias CS Comentrios da Semana AA Ao Acaso

    H15D Histria de quinze dias H30D Histria de trinta dias BE Balas de Estalo A+B A+B

    GH Gazeta de Holanda BD Bons Dias

    AS A Semana

  • SUMRIO

    Introduo .............................................................................................................................. 11

    1 Consideraes sobre o Gnero Crnica ................................................................... 15 1.1 Localizao: o folhetim na linha do tempo brasileira ................................................. 15 1.2 O Gnero: de castel velha patusca .......................................................................... 18 1.3 No Brasil: o trabalho do cronista e o descompasso moderno ..................................... 23 1.4 Nota: o cronista Machado de Assis ............................................................................. 34

    2 Sugesto de um movimento ...................................................................................... 38 2.1 Leitura da primeira crnica: o anncio de um programa ......................................... 38 2.1.1 Primeiras estruturas da srie ........................................................................................ 46 2.1.2 A abertura da srie ....................................................................................................... 52 2.2 Verificao do pressuposto de conciliao nos primeiros textos ................................ 58 2.2.1 Perspectiva de anlise e Confraternizao Fluminense ........................................... 74 2.3 Dcima primeira crnica ............................................................................................. 80 2.3.1 Smbolo da srie: o bordo popular ............................................................................. 84

    3 Matizes do movimento .............................................................................................. 90 3.1 Desregramento do programa inicial ......................................................................... 90 3.1.1 Questo Servil: pauta do debate pblico ................................................................. 97 3.1.2 Informalidade: documentos, estatutos, leis, regimentos etc. ..................................... 123 3.1.3 Subjetividade ressentida: os outros punhais de Martinha ...................................... 127 3.2 Procedimentos e temas comuns. Articulao especfica .......................................... 147

    Consideraes finais: duas questes em aberto ................................................................ 157

    Referncias Bibliogrficas .................................................................................................. 162

    Anexos .................................................................................................................................. 168

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    INTRODUO

    O objetivo desta pesquisa a anlise e a interpretao da srie de crnicas Gazeta de Holanda, escritas por Machado de Assis e publicadas entre 1 de Novembro de 1886 e 24 de fevereiro de 1888, em um dos jornais de maior tiragem do Rio de Janeiro na poca, a Gazeta de Notcias. Consagrado como romancista e contista, Machado de Assis tambm foi reconhecido ainda em vida como exmio cronista da imprensa fluminense, chegando a assinar, ao longo de quatro dcadas, dezenas de sees regulares com comentrios literrio-jornalsticos sobre os fatos cotidianos presentes nos peridicos da cidade. Temos aqui, portanto, um ponto de articulao entre dois elementos bastante visitados pelo tradio crtica brasileira: primeiro, a produo de crnicas em grande volume e variedade pelo escritor brasileiro mais estimado de seu tempo, e certamente um dos mais determinantes de nossa literatura; e, segundo, a crnica, um gnero literrio relativamente novo, se comparado aos demais j reconhecidos pela tradio, o que faz dele algo generalizadamente menos estimado, mas, certamente, bastante popularizado e praticado por boa parte dos principais autores brasileiros nos sculos XIX e XX. justamente a articulao entre as especificidades do autor e do gnero que temos como horizonte para anlise de nosso recorte de pesquisa, e que buscaremos sugerir brevemente nesta introduo.

    Em primeiro lugar, o gnero crnica apresenta caractersticas ambguas de relevncia e desvalorizao no campo dos estudos literrios. No apenas Machado de Assis, mas uma parte significativa dos escritores brasileiros, desde Alencar, Bilac e Joo do Rio, passando por Graciliano, Drummond e Bandeira, at Clarice Lispector, tiveram na produo de crnicas em peridicos um episdio significativo em suas carreiras literrias. Apesar disso, mais do que um argumento baseado no nmero e na continuidade de cronistas, as modificaes passadas pelo gnero entre os sculos XIX e XX tambm influenciaram e foram influenciadas por caractersticas mais relevantes e difundidas pela literatura brasileira. Basicamente, ao longo da virada do sculo, o gnero foi saindo da justaposio de fatos e mergulhando na fico, chegando no sculo XX consolidao da chamada Crnica Moderna, na dcada de 1930, mais fluida e mais potica.1

    1 CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

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    O crtico ingls John Gledson faz importantes consideraes que ajudam a mapear alguns pontos iniciais dessa virada no tom das crnicas, tratando especificamente dos textos jornalsticos de Machado de Assis. Ele ressalta a mudana da justaposio de referncias diretas aos assuntos do cotidianos, que marcam o gnero em meados do sculo XIX, para um tom, ainda pautado pelas notcias dos jornais, mas de ficcionalizao tanto dos assuntos abordados, quanto das vozes ligadas ao pseudnimo com que assinava seus textos.2 E, no apenas Gledson, mas outros estudos igualmente importantes j comprovaram como Machado acabou por aproveitar em sua produo ficcional, de romances e contos, as estruturas formais experimentadas e ensaiadas em crnicas escritas anteriormente.3 Um exemplo da impregnao do gnero romance pelo gnero crnica apontado com grande aproveitamento crtico por Roberto Schwarz, em sua anlise do romance Memrias Pstumas de Brs Cubas. Sem tocarmos o comentrio especfico sobre aquela obra, vale apontar que, segundo Schwarz, a lista de traos comuns crnica hebdomadria e s Memrias grande e poderia ser encompridada vontade.4 Porm, no nos cabe, ainda, apontar quais seriam esses traos do gnero crnica. Estes sero devidamente abordados ao longo deste trabalho.

    Em segundo lugar, considerando as especificidades da srie Gazeta de Holanda, podemos j adiantar que se tratam de textos marcados por uma peculiaridade formal, em relao ao restante do domnio da prosa em geral associada ao escritor: trata-se de uma srie de crnicas, de assunto majoritariamente poltico, mas escritas em versos. O que pode corroborar a hiptese de que o escritor passasse por uma fase de experimentao formal naquela poca.

    Por exemplo, na breve srie imediatamente anterior, A+B, com durao de apenas sete textos, o cronista j experimentara pela primeira vez sistematicamente compor seus comentrios em forma de dilogos. Alm disso, se levarmos em conta que essas duas sries so contemporneas publicao interrompida de Quincas Borba, teremos mais um indcio

    2 GLEDSON, John. Intr. In: ASSIS, Machado de. Notas Semanais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

    3 Dentre outros trabalhos, inclusive citados ao longo desta pesquisa, destacamos o de Lcia Granja, sobre as

    sries que Machado publicou no Dirio do Rio de Janeiro, na dcada de 1860, o qual a pesquisadora constatou a presena de uma srie de ferramentas formais que futuramente iriam ser reelaboradas pelo romancista, sobretudo, em Memrias Pstumas de Brs Cubas. GRANJA, Lcia. Machado de Assis, escritor em formao: a roda dos jornais. So Paulo; Campinas, SP : FAPESP: Mercado de Letras, 2000. Tal ideia tambm desenvolvida em ensaios de Snia Brayner, no qual argumenta como a produo em prosa de crnicas e contos foi determinante na preparao dos romances do escritor. BRAYNER, Snia. Metamorfoses Machadianas. In: BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis. So Paulo: Editora tica, 1982. 4 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. So Paulo: Ed. 34, 2008, p. 232.

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    do possvel impasse artstico pelo qual passava o escritor no perodo que imediatamente antecedeu a Abolio da Escravatura e a queda da Monarquia, conforme argumenta Gledson.5 Segundo o crtico, na srie de crnicas Bons Dias!, publicada imediatamente aps a srie Gazeta de Holanda, Machado teria escrito programaticamente, em suas edies iniciais, sobre diversos temas explicitamente vinculados questo servil.6 Porm, passadas as crnicas em torno de maio de 1888, e tendo esfriado o debate no parlamento brasileiro e na imprensa sobre questes paralelas, tais como os projetos de reforma agrria, o tema recorrente da questo servil foi deixando Bons Dias!. Sua temtica inicial foi sendo substituda por uma vasta gama de assuntos cotidianos, que, em geral, tinha como horizonte a emergncia do tema republicano, estendendo-se at o fim da srie, semanas antes da queda da monarquia. Tendo em vista tal interpretao, a anlise especfica da Gazeta de Holanda poderia tambm ajudar a compreender tanto parte das referncias usadas por Machado em Bons Dias!, quanto o contexto em que teria sido formulado o plano de escrita executado nas primeiras edies dessa srie seguinte.

    Por fim, vale a pena adiantarmos alguns dos pressupostos metodolgicos que guiaro nosso trabalho: trata-se da definio do campo do comunicao que, por sua vez, definir nossa concepo do gnero.7 Mesmo levando em conta que cada enunciado particular individual e nico, importante salientar que cada campo de comunicao, ou seja, o contexto que possibilita e sustenta qualquer significao desse enunciado, elabora seus tipos de textos, tornando-os relativamente estveis e possibilitando reconhecermos um conjunto deles como um gnero especfico. No caso da nossa pesquisa, identificamos cada edio da Gazeta de Holanda como pertencente ao mesmo gnero literrio, o qual denominado crnica. Por isso, tendo em vista que os enunciados aqui pesquisados foram publicados originalmente em jornais fluminenses do final da dcada de 1880, ser fundamental levar em conta o campo de comunicao em que esses textos foram elaborados. Nossa interpretao sobre o gnero crnica ser devidamente apresentada ao longo da pesquisa, porm, pode-se adiantar que ela leva em conta os demais textos publicados e supostamente compartilhados pelos leitores da imprensa fluminense, principalmente, por duas razes: por se tratar de parte

    5 GLEDSON, John. Quincas Borba. In: Machado de Assis: fico e histria. So Paulo: Paz e Terra, 2003.

    6 Idem. Intr. In: ASSIS, Machado. Bons Dias! So Paulo: Hucitec, 1990; Idem. Bons Dias! In: Machado..., op.

    cit. 7 A ttulo de esclarecimento, a utilizao neste trabalho dos conceitos de campo de comunicao, gnero do

    discurso e enunciado se dar nos termos expostos por Bakhtin. BAKHTIN, Mikhail. Os gneros do discurso. In: Esttica da criao verbal. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

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    do campo de comunicao original em que os textos foram elaborados; segundo, para no descartar a priori dados potencialmente significativos para interpretao dos textos.8 Destacamos potencialmente, pois nem todo texto crnica constri-se necessariamente em referncia objetiva ao seu contexto imediato. Porm, no caso de Machado de Assis, podemos adiantar que mesmo que em muitas das crnicas analisadas no haja referncia direta a fatos e acontecimentos publicados nos jornais da poca, o cronista constri a estrutura significativa de seus textos em dilogo direto com a potencialidade do campo comunicacional em que est inserido. Esperamos que a anlise da srie exemplifique e esclarea esse ponto introdutrio aqui sugerido.

    Isto exposto, vale adiantar que discorreremos nesta pesquisa sobre: a identificao do gnero dentro de uma linha do tempo, em contexto nacional; sua significao em relao aos demais gneros literrios estimados, passando de referncia crnica histrica-nacional e eloquente, para materializao em crnica em tom familiar coloquial e cotidiana; e sua especificidade e os fatores que permitiram sua aclimatao no Brasil, fundamentando a ideia generalizada pela crtica brasileira que a reconhece como gnero identitrio nacional. Posteriormente, poderemos partir para a anlise formal da srie Gazeta de Holanda, de modo a sugerir o rendimento literrio do conjunto dos textos: casando-o com a perspectiva de identificao dos pressupostos do gnero crnica no Brasil, no fim do sculo XIX; e apontando sua significativa pertinncia dentro da produo do cronista Machado de Assis.

    8 Um exemplo de estudos relevantes que tomam caminhos diversos devido, principalmente, talvez, concepo

    do gnero so dois estudos que valorizam as crnicas ligadas a contextos bastante diversos: transpostas e compiladas em livro ou junto s informaes de seu prprio contexto de origem, respectivamente, em COUTINHO, A. Ensaio e crnica. In: A literatura no Brasil. v. 6. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1986; e GLEDSON, John. Bons Dias!. In: Machado de Assis: fico e histria. So Paulo: Paz e Terra, 2003.

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    1 Consideraes sobre o Gnero Crnica

    1.1 Localizao: o folhetim na linha do tempo brasileira

    Antes da anlise especfica do corpus do trabalho, vale fazermos em traos gerais algumas consideraes de carter cronolgico a respeito da introduo do gnero crnica no pas.

    O nascimento da crnica no Brasil est necessariamente vinculado a um evento at ento indito, sem o qual a criao de tal gnero jornalstico-literrio estaria essencialmente comprometida: o estabelecimento do trabalho jornalstico e propagandstico, pautado pela introduo de empreendimentos comerciais similares aos europeus da primeira metade do sculo XIX.

    Entre outras adaptaes e solues tcnicas trazidas do velho continente para produo dos peridicos, parte dos jornais fluminenses da poca reservaram sistematicamente na estrutura de suas folhas um espao voltado, supostamente, ao entretenimento com o intuito, entre outros, de conquistar maior nmero de leitores e de assinaturas, e, assim, financiar sua produo diria que recm chegava casa dos milhares de exemplares. As empresas jornalsticas brasileiras, a partir da dcada de 1830, encontraram no modelo do feuilleton francs uma maneira de produo textual programtica destinada a cumprir tal funo.9 Ao consideramos o espao-funo 10 do entretenimento nas pginas do jornal, os feuilletons franceses e folhetins brasileiros em sua origem no traziam matria ou assunto especfico vinculado ao seu formato, podendo tais sees tratarem desde comentrios sobre fatos da semana, peas e peras, at trazerem novos poemas ou romances publicados em captulos.

    9 No ensaio Volteis e Versteis, Marlyse Meyer exemplifica o boom da literatura industrial na dcada de

    1840 ocorrido na Frana atravs do sucesso do romance-feuilleton Os Mistrios de Paris, de Eugne Sue, aumentando significantemente tanto a vendagem de jornais quanto os hbitos de leitura desse gnero. MEYER, Marlyse. Volteis e Versteis, de Variedade e Folhetins se fez a Chronica. In: Boletim Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de Andrade So Paulo, v. 46. So Paulo, 1985. 10

    A importncia dada aqui tanto ao espao ocupado na estrutura do jornal quanto funo assumida pelo folhetim fortemente baseada na argumentao de Meyer, que considera o folhetim, em sua origem, um espao vazio destinado ao entretenimento e de Roncari, que examina a funo do gnero dentro da estrutura dos jornais. Cf. Ibid.; RONCARI, Luiz. A estampa da rotativa na crnica literria. In: Boletim Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de Andrade So Paulo, v. 46. So Paulo, 1985.

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    No caso do feuilleton francs, a segmentao mais relevante assumida por esse espao-funo foram os romances publicados em srie (captulos), alguns, com frequncia diria. De acordo com Marlyse Meyer, no caso do Brasil, grande parte dos folhetins11 , em suas primeiras dcadas, foram espaos nos peridicos reservados traduo dos romances-feuilletons, ou simples comentrios sobre os feuilletons franceses que tratavam de modas, notcias e debates pblicos - o que no deixa de ser outra espcie de traduo.12 No Brasil, ela resume, havia folhetins, mas no havia espao para folhetinistas.13 Dessa forma, a autora

    define e constata a produo esparsa e inferior de folhetins escritos por aqui, sobre a matria brasileira, romances ou no, em contraste crescente moda de tradues estrangeiras. Como manifestao da atividade intelectual contempornea a esse processo, vale exemplificar a atuao dos primeiros propagandistas da literatura nacional na produo dos chamados gneros pblicos.14 Antonio Candido destaca o papel do jornalista Evaristo da Veiga na promoo de jovens que fariam parte da primeira gerao romntica. Veiga fora um dos principais incentivadores da produo de folhetins no Brasil, a qual se adaptava ao clima literrio que cercava a incipiente imprensa. Segundo o crtico, por meio de seu jornal Aurora Fluminense, Veiga estabelece involuntariamente um vnculo sutil entre a sua atividade [jornalstica] e a renovao literria que se anunciava.15 Assim, a face dupla do vnculo estabelecido entre a atividade artstico-intelectual e a produo de peridicos e folhetins pode ser compreendida por meio das duas principais manifestaes de seu entrelaamento. A primeira, baseada no relativo sucesso, sobretudo nas dcadas de 1840-50, da traduo de romances-feuilleton, fazendo com que, mesmo que a produo nacional fosse escassa, se valorizasse cada vez mais o modelo romance-folhetim, criando supostamente o pblico para o romance nacional almejado. E a segunda, na existncia paralela e difundida das demais variantes de folhetins, textos os quais no tinham a mesma

    11 Passemos, a princpio, a nos referir ao gnero no Brasil pelo nome folhetim. Posteriormente trataremos da

    mudana no modo como o gnero passou a ser chamado, pois, dependendo da poca e do contexto estudados, o mesmo gnero pode ser relacionado aos nomes: folhetim, crnica, artigo, ensaio, podendo ser reconhecidos por mais de um simultaneamente. 12

    MEYER, Marlyse. Volteis e Versteis, de Variedade e Folhetins se fez a Chronica. In: Boletim Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de Andrade So Paulo, v.46. So Paulo, 1985. 13

    A autora exemplifica como a questo da traduo de contedos e formas do feuilleton j era um tpico bastante problematizado desde os primeiros textos do gnero. Ela aponta como, aps ser pouco difundido no incio da dcada de 1840, os romances-folhetins brasileiros foram logo superados pela onda de monstros saindo de Paris, os quais, uma vez traduzidos, deitam e rolam, eliminando tudo que no fora eles no mercado nacional do folhetim. Ibid., p. 30. 14

    Antonio Candido se refere aos gneros pblicos, sobretudo, como a Oratria e o Jornalismo do incio do sculo XIX. CANDIDO, Antonio. Os Gneros Pblicos. In: Formao da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. 15

    Ibid., p. 276.

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    potencialidade de valor literrio do gnero romance, pois eram, em geral, meros comentrios sobre assuntos cotidianos e notcias justapostas em tom informal. Assim, na outra face da valorizao literria e da busca por um romance-folhetim de sucesso, os folhetins que traziam comentrios sobre o cotidiano eram necessariamente desvalorizados em relao aos seus modelos estrangeiros, gneros literrios j consagrados. Tratavam-se de textos menores, em termos literrios, co vadios, livres farejadores do cotidiano, muitas vezes sem dono, ou seja, no raro, annimos.16 Em suma, um conjunto de textos que futuramente seria reconhecido como crnica, em seu tipo argumentativo. Assim, de um lado, a possibilidade de realizar um romance nacional de relevncia, do outro, o dever compulsrio de produzir pequenos textos pautados pelos mesmos assuntos veiculados na imprensa e, em geral, fadados a serem logo esquecidos. Apesar da reiterada desvalorizao do comentrio cotidiano, em geral pautada pela contraposio aos demais gneros, no correr das dcadas seguintes, o folhetim, de modo geral, tanto em sua verso romance quanto em sua verso comentrio, consolidou-se nas pginas dos jornais dirios. Com o desenvolvimento dos peridicos fluminenses e seu processo constante de especializao de atividades, o espao ocupado pelo folhetim tambm se ampliou e se diversificou. Ao longo das dcadas de 1860 e 1870, saiu do p da pgina, passou a ocupar colunas fixas, multiplicando-se para especializar-se em diferentes temas, ganhando mais espao e chegando a se tornar produto editorial independente dos jornais, como, por exemplo, em revistas e almanaques vendidos avulsos.17 Assim, como forma de transitar e abarcar sua caracterstica de pluralidade de temas, de modo a garantir sua funo enquanto entretenimento, a tradio crtica reconheceu nos folhetins e nas crnicas a recorrncia de um estilo leve e agradvel, capaz de dar maleabilidade para folhetinistas e cronistas transitarem por todo tipo de assunto. Pensando para alm das pginas dos jornais, tal estilo caracterstico de folhetinistas e cronistas teve relevante difuso entre os leitores brasileiros. Para compreender parte dessa influncia, ainda de modo mais factual, basta pensarmos que muitos desses escritores

    16 MEYER, Marlyse. Volteis e Versteis, de Variedade e Folhetins se fez a Chronica. In: Boletim

    Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de Andrade So Paulo, v.46. So Paulo, 1985. O modo desvalorizado e circunstancial como os folhetins de comentrios do cotidiano eram vistos por seus prprios autores sugerido pelos prprios ttulos que muitas sees assumiam, como, por exemplo, as Pginas Menores, do jornal Correio Mercantil, que chegaram a ser escritas por Jos de Alencar e Manuel Antonio de Almeida. 17

    Ao discutir a crnica, mesmo sob o ponto de vista de dcada 1970, quando teria ocorrido certa decadncia do gnero no pas, Antonio Dimas faz questo de caracterizar tal funo especfica do gnero, um osis ldico em meio aridez das notcias secas, dentro do meio de publicao. DIMAS, Antonio. A ambiguidade da crnica: literatura ou jornalismo. In: Littera: revista para professor de portugus e literaturas de lngua portuguesa. Ano IV, N 12. Rio de Janeiro: Grifo, 1974, p. 47.

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    tambm eram romancistas e poetas, o que acabou contribuindo para um generalizado estilo de amaneiramento acentuado,... de fcil humorismo, de pieguice, que, segundo Candido, chegou a influenciar os melhores nveis de nossa literatura18 e que se associou ao gnero at boa parte do sculo XX.19 Chegando corte da dcada de 1880, com a produo de crnicas j relativamente substanciosa e consolidada, poderamos continuar essa nota e projetar para os anos seguintes uma srie de hipteses interpretativas sobre as modificaes do gnero dentro do conjunto de representaes sociais caractersticas dos centros urbanos brasileiros em expanso. Porm, nos deteremos por enquanto at aqui, dcada de publicao da Gazeta de Holanda.

    1.2 O Gnero: de castel velha patusca

    Assim ele vai, corre, procura. O qu? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitrio dotado de uma imaginao ativa, sempre viajando atravs do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de um simples flneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efmero da circunstncia. Ele busca esse algo, ao qual se permitir chamar de Modernidade...20

    Feito um pequeno panorama histrico, importante enfatizar que o nome do gnero literrio, nosso objeto de pesquisa, desenvolvido a partir da antiga denominao folhetim, se remetendo explicitamente a outro conjunto de textos produzido sculos antes e tambm denominados como crnica. Fazemos questo de recuperar esse argumento, pois ele ajuda a esclarecer um aspecto determinante do nosso objeto pesquisado: a relao pressuposta entre o gnero e o seu tempo.

    18 CANDIDO, Antonio. O Escritor e o Pblico, In: Literatura e Sociedade, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,

    2006, p. 95. 19

    Em relao ao estilo comum entre diferentes espcies de folhetins e romances, h outra abordagem mais biogrfica recorrente na tradio crtica, mas que preferimos no destacar: trata-se dos jornais servirem muitas vezes como laboratrio para escritores brasileiros. Nascidos e ligados pelo mesmo espao-funo na estrutura dos peridicos, tanto o romance-folhetim quanto os comentrios da semana eram, no raro, escritos pelos mesmos autores. Meyer, argumentando nessa direo, refora o vnculo social entre os gneros puramente literrios e os ligados aos folhetins: ...no ser por acaso que os precursores da fico so tambm os redatores dos jornais e os tradutores dos folhetins franceses. MEYER, Marlyse. Volteis e Versteis, de Variedade e Folhetins se fez a Chronica. In: Boletim Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de Andrade So Paulo, v.46. So Paulo, 1985, p. 39. 20

    BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 25.

  • 19

    Nos sculos anteriores, antes do desenvolvimento da imprensa, o nome do gnero remetia ao antigo conjunto de textos medievais e renascentistas cujos temas eram os relatos histricos registrados com uso eloquente da linguagem, sendo que um de seus principais autores na lngua foi o cronista-geral do reino portugus, Ferno Lopes (1378?-1459?). Essa espcie de filiao entre o gnero literrio-jornalstico do sculo XIX e o gnero mais antigo no se deu por desenvolvimento do gnero medieval, mas por apropriao do nome antigo, o que nos permite questionar quais elementos associados aos dois gneros justificariam a referenciao indicada pelo nome em comum.

    Alm de Ferno Lopes considerado o melhor de todos outros escritores assumiram a funo de cronista-mor do Reino, at que, na altura do sculo XVI, e j em pleno Renascimento, a Historiografia se afirmasse como gnero definido. A palavra crnica, no entanto, ainda que, posteriormente, viesse a abranger outros sentidos, permaneceu na lngua portuguesa com o sentido antigo de narrativa vinculada ao registro de acontecimentos histricos.21

    Alm do significado dado pela raiz do nome, seu uso comum tambm se justifica pelo pressuposto do registro de fatos histricos a que foi associado o gnero crnica jornalstico-literria, em meados do sculo XIX. Independentemente da exatido e pertinncia das caractersticas do gnero crnica histrica (abordar esse tema fugiria de nosso recorte de pesquisa), nos interessa aqui constatar outro fato: a definio do novo gnero oitocentista teve, em um de seus principais horizontes, a comparao com a pressuposta imagem (irnica ou no) das caractersticas de registro histrico do gnero homnimo mais antigo. Muitos dos crticos em que este trabalho se baseia j se debruaram sobre as definies do gnero, destacando, invariavelmente, seus aspectos estruturais que se relacionavam a diferentes manifestaes de referenciao temporalidade. At onde podemos averiguar, essa associao entre gneros, nunca posta em termos muito claros, nunca foi tambm, e talvez por isso mesmo, alvo de problematizao levada adiante entre os escritores da corte fluminense no sculo XIX, mesmo tendo sido diversas vezes tematizada nas crnicas.22

    21 BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crnica: Histria, Teoria e Prtica. So Paulo: Ed. Scipione. Col. Margens

    do texto, 1993, p. 12. 22

    Tal relao entre os gneros que remetem ao registro histrico antigo e ao jornalismo contemporneo, do sculo XIX, era no s consciente, como objetivado, para Machado de Assis na concepo de algumas de suas sries de crnicas, conforme, por exemplo, foi argumentado por Leonardo Affonso de Miranda Pereira e John Gledson, respectivamente, sobre as sries Histria de 15 dias e Bons Dias! ASSIS, Machado de. Histria de quinze dias. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008; e Idem. Bons dias. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

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    A histria uma castel muito cheia de si e no me meto com ela. Mas a minha comadre crnica, isso que uma velha patusca, tanto fala como escreve, fareja todas as coisas midas e grandes, e pe tudo em pratos limpos.23

    Em trecho de outra crnica anterior, igualmente bastante reproduzida em ensaios que j abordaram o tema, Machado de Assis, em tom de conversa leve e tom jocoso caracterstico de parte de seus textos jornalsticos, j havia jogado com outra alegoria que nos traa uma imagem brincalhona e difundida entre seus contemporneos.

    No posso dizer positivamente em que ano nasceu a crnica; mas h toda a probabilidade de crer que foi coetnea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente comearam a lastimar-se do calor. Uma dia que no pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas s plantaes do morador fronteiro, e logo s tropelias amatrias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fcil, natural e possvel do mundo. Eis a origem da crnica.24

    O principal ponto que esboamos aqui a suposta continuidade entre os dois gneros ser dada por um elemento comum, segundo um consenso suficientemente acatado no sculo XIX: o suposto papel de registro e comentrio sobre eventos histricos contemporneos, segundo os paradigmas sociais de cada poca e contexto. Levando em conta os argumentos de comentadores que j passaram pela questo e a referncia dada pelo batismo desse gnero literrio-jornalstico, interessa-nos, ento, levantar algumas caractersticas de como se manifestava essa necessria relao, de difcil definio, entre as crnicas e o tempo presente na imprensa fluminense do fim do sculo XIX. Citemos ento alguns exemplos, a partir da estrutura do gnero, de como a crnica do oitocentos se caracterizou a partir das relaes temporais que estabeleceu: a) salvo algumas excees, trataram-se de textos com curto espao de tempo entre o acontecimento comentado, sua escrita e sua publicao (para padres do sculo XIX); b) mesmo nestas excees, o cronista acaba levando em conta e construindo seu texto a partir da expectativa do leitor por um pressuposto fato novo que deveria ter sido relatado na crnica; c) assim, em geral, a publicao de novos textos se d em frequncia maior que a produo de outros gneros literrios tradicionais e contemporneos a ela; d) devido ao grande volume e quantidade, tratam-se de textos que logo tendem a ser esquecidos em brevidade de tempo similar ao em

    23 A+B, 16/09/1886. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. V.4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2007. (As

    citaes das crnicas do escritor sero todas retiradas deste volume, e sero referidas como abreviao seguida de data de publicao. Por exemplo, Gazeta de Holanda: GH, dd/mm/aaaa). 24

    H15D, 01/11/1887.

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    que so produzidos; e) por consequncia, a brevidade temporal aparece transposta na brevidade espacial da linguagem, conciso e simplicidade (objetivando e proporcionando uma leitura rpida); f) e, enfim, o assunto comentado reverbera ou reverberao de fatos contemporneos, ou seja, acontecimento e relato do acontecimento so eventos cada vez menos distantes no tempo. A despeito da falta de rigor com que justapomos tais definies feitas por outros comentadores do gnero, interessante aqui observar que a novidade do cronista do sculo XIX est justamente no modo como sua relao com a temporalidade contempornea definidora do gnero que produz, diferentemente de outros gneros literrios estimados at ento, nos quais tais variantes no aparecem como identitrias. Cabe ento pensar em que deriva essa noo de temporalidade registrada por meio de fatos banais, escritos e publicados rapidamente, e em grande quantidade e frequncia. Que relao essa entre o homem e seu tempo que, ao recuperar o nome do gnero antigo, em um contexto completamente diverso, se reconhece tanto como ruptura do passado, quanto como continuidade dele, e assim se impe como aparente novidade? Tratam-se de questes difceis, mas cujas respostas podem ser devidamente iluminadas se olharmos para a causalidade imediata da produo desses textos: a relativamente nova forma de produo textual que se consolida, ou seja, tanto a parcela compulsria como o escritor passa a se relacionar com seu texto, quanto o carter de mercadoria que o texto tem para com o leitor. Assim, as relaes marcadas temporalmente acima citadas, e que ajudam a definir o gnero, se revisitadas, tm parte de sua causalidade material iluminada pelas necessidades da crnica em atender sua suposta funo na estrutura maior do jornal. O que faria do gnero uma parte estritamente vinculada a esse suporte. A crnica no tem pretenses de durar, uma vez que filha do jornal e da era da mquina, onde tudo acaba to depressa, resumiria posteriormente Antonio Candido.25 Partindo dessa ideia difundida da crnica como um gnero ligado ao jornal como empresa industrial e responsvel por produzir o interessante dos fatos contemporneos de modo agradvel para tal empresa, Arrigucci Jr. descreve a relevncia da constante adaptao dos cronistas para com sua matria, definindo um estilo quase padro por seu carter dinmico, gil e borboleteante, no raro ao gnero.

    A matria mutvel e meio monstruosa obrigava o folhetinista a percorrer todo o tipo de acontecimento, com uma volubilidade de 'colibri a esvoaar em ziguezague'. [...]

    25 CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 27.

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    O prprio cronista estava assim metido num processo histrico cuja dimenso era extremamente difcil e complexa de apreender.26

    Compreensvel, portanto, que, espantado consigo mesmo, o gnero tenha tematizado recorrentemente o comentrio metalingustico sobre o prprio processo de escrita. Assim, por ser produto de relaes relativamente novas de trabalho, os comentrios do cotidiano presentes nas crnicas representam eles prprios tambm um fato moderno.27 Resumidamente, argumentamos que, em termos de funo social e de campo de comunicao, os gneros crnica medieval-renascentista e crnica jornalstica do oitocentos so completamente diversos. Porm, tanto no modo como foi batizado, quanto na representao que faz de seu mundo contemporneo, ou em seu papel social determinado, o cronista ligado ao entretenimento jornalstico do sculo XIX filiou-se - no no sentido de tradio, mas no de especfica referenciao - s crnicas antigas, representando em sua funo de registro histrico do cotidiano a prpria inteno de reflexo histrica que simbolizava.

    Porm, mais do que uma situao generalizadamente moderna, um dado histrico nos permite particularizar a discusso em um recorte mais especfico e significativo: importante enfatizar que estamos tratando de um gnero jornalstico-literrio de carter, digamos, nacional, uma vez que at onde pudemos averiguar, trata-se de um gnero com um amplo desenvolvimento sui generis na imprensa brasileira a partir do sculo XIX. Segundo Marques de Melo, em boa parte da imprensa estrangeira, o termo crnica se referiu e se refere ao campo jornalstico, um simples e objetivo relato cronologicamente elaborado, enquanto no Brasil, o termo se popularizou associado a um texto breve, do campo literrio, de formato mais livre, mas ainda relacionado aos assuntos que pautavam a imprensa.28

    Assim, feito esse comentrio sobre a localizao e filiao do gnero, podemos, identificar a especificidade de como a crnica se desenvolveu no Brasil. O que, conforme

    26 ARRIGUCCI JR., Davi. Fragmentos sobre a crnica. In: Enigma e comentrio : ensaios sobre literatura e

    experincia. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 57. 27

    Ibid., p. 53. 28

    MELO, Jos Marques. A Opinio no Jornalismo Brasileiro. Petrpolis, RJ: Vozes, 1985. Poderamos considerar a existncia de textos similares em outros pases: conhece-se nas literaturas de lngua inglesa, por exemplo, composies textuais em grande medida similares pelo nome de ensaio pessoal, informal, familiar, ou sketch. Alm disso, a crnica existe em outros pases, que tm seus chroniqueurs ou columnists. Porm, nossa nfase se deu na associao do gnero com o feuilleton francs, o tipo de texto a que o surgimento da crnica no Brasil esteve diretamente associado.

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    veremos, sua funo de entretenimento, sua caracterstica compulsria e seu carter genrico de mercadoria ainda so insuficientes para tentarmos compreend-lo em contexto nacional.

    1.3 No Brasil: o trabalho do cronista e o descompasso moderno

    Da origem ao final do sculo XIX, de ser local de publicao de fico estrangeira a ser caminho comum para publicao de livros nacionais, e de ser comentrio passageiro sobre modas e curiosidades a se tornar anlise de notcias relevantes atravs de formas literrias minimamente complexas, o gnero crnica passou por um processo de acumulao e transformao que o da sua histria no Brasil.29 Alm disso, baseando-nos em comentadores brasileiros que j debateram o tema, notrio o quanto o gnero crnica (enquanto comentrio sobre o cotidiano, em registro potico ou no) se desenvolveu no Brasil e conquistou espao significativo em nossa literatura.

    Em Jos de Alencar, Francisco Otaviano e mesmo Machado de Assis, ainda se notava mais o corte de artigo leve. Em Frana Jnior j ntida uma reduo de escala nos temas, ligada ao incremento de humor e certo toque de gratuidade. Olavo Bilac, mestre da crnica leve e aliviada de peso, guarda um pouco do comentrio antigo, mas amplia a dose potica, enquanto Joo do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo, que contrabalanam um pouco a tara do esnobismo. Eles e muitos outros, maiores ou menores, [...] contriburam para fazer do gnero este produto sui generis do jornalismo literrio brasileiro.30

    Tendo como referncia o panorama sugerido, derivam-se duas perguntas: mais relevante que a presena do gnero no Brasil, quais caractersticas associadas a ele justificam, ou ao menos explicariam, essa classificao difundida da crnica como gnero nacional? E, segundo, quais condies permitiram o desenvolvimento da identificao do gnero em tal direo? Para tentar responder, vale contrapormos a observao do crtico a um famoso comentrio feito pelo jovem Machado de Assis, que, analisando o gnero em outro momento histrico-social, faz uma constatao que, em certa medida, parece ir no sentido oposto do crtico. Trata-se do texto O Folhetinista, de 1859, tambm j bastante referendado, por

    29 ARRIGUCCI JR., Davi. Fragmentos sobre a crnica. In: Enigma e comentrio : ensaios sobre literatura e

    experincia. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 56. 30

    CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 28.

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    representar uma das primeiras fases de tomada de conscincia dos escritores brasileiros sobre a natureza do gnero crnica.

    [] o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequncia do jornalista. Esta ltima afinidade que desenha as salincias fisionmicas na moderna criao. O folhetinista a fuso admirvel do til e do ftil, o parto curioso e singular do srio, consociado com o frvolo. [...] Elemento estranho este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz sria e vigorosa, a reflexo calma, a observao profunda. Pelo que toca o devaneio, leviandade, est tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital prprio. O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal... Todo mundo lhe pertence. [...] Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais cor local, mais feio americana. Faria assim menos mal independncia do esprito nacional, to preso a estas limitaes, a esses arremedos, a esse suicdio de originalidade e iniciativa.31

    O trecho exemplo de como a definio sobre o gnero crnica foi reconhecida por parte daqueles que a praticaram, porm, no feito em termos simples. As observaes progressistas do jovem cronista so marcadas mais pela imagem do hibridismo como o gnero reconhecido, entre til e ftil, srio e frvolo, do que por uma definio objetiva, clara e consensual. Porm, mais do que deixar o problema em suspenso, Machado est reconhecendo, justamente no carter contraditrio associado ao gnero como um todo (e no apenas a alguns de seus textos), a manifestao e irrompimento de um estilo generalizadamente gil, de colibri, capaz de aplanar suas dificuldades e truncagens da matria que trata.

    Alm disso, acompanhando o trecho, ele ainda reconhece um segundo ponto sobre o gnero naquela poca: a limitao de seu desenvolvimento supostamente bloqueado pela dependncia de seu esprito para com um elemento externo, no nacional. Assim, a comparao entre os dois comentrios, no que tange a uma produo com falta de cor local, mas que passaria a ser marcada por certo sui generis, permitiria-nos questionar quais elementos de continuidade e divergncias entre as pocas dos dois diagnsticos (do crtico e do cronista) possam ajudar a responder o que e quais condies permitiram identificar a crnica como um gnero nacional. Machado de Assis no foi claro quanto natureza da proclamada cor local almejada. Porm, olhando para produo de folhetins da poca, dcadas de 1850-1860, podemos supor alguns contraexemplos sobre o que o jovem cronista tratava.

    31 ASSIS, Machado de. O folhetinista. Aquarelas. In: O Espelho. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.

    55-58.

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    Linhas acima, a citao sobre o pintor da vida moderna, de Baudelaire, no foi, claro, fortuita. Muito dela se justifica pela contemporaneidade entre os primeiros cronistas brasileiros e o aquarelista retratado pelo poeta francs, mas, principalmente, por serem personagens significativos de uma brusca reforma no modo de vida urbano e social. Cada qual, em seu devido contexto seja no centro europeu capitalista, seja na periferia desse mesmo e amplo sistema de relaes socioeconmicas. Em primeiro lugar, no caso dos primeiros cronistas brasileiros, estes esto amplamente distantes da idealizao daquele apaixonado pela vida universal que entra na multido como se isso lhe aparecesse como um reservatrio de eletricidade, pintado pelo poeta francs.32 A comparao aqui, porm, nos til justamente como contraposio, para enxergarmos como uma mstica em torno do tipo encarnado pelo aquarelista, e pelo processo social do qual faz parte, serviu tambm aos cronistas brasileiros para se autoconhecerem como manifestao, em tamanho fluminense, do mesmo processo. Um exemplo retirado, no por acaso, de Jos de Alencar, em folhetim-crnica de 1854, tambm bastante citado na discusso sobre o influxo cultural no perodo de estabelecimento do gnero, aponta a conscincia sobre essa problematizao.

    Contudo parece-me que o estado vergonhoso do nosso Passeio Pblico no unicamente devido falta de zelo da parte do governo, mas tambm aos nossos usos e costumes, e especialmente a uns certos hbitos caseiros e preguiosos, que tm a fora de fechar-nos em casa dia e noite. Ns que macaqueamos dos franceses tudo quanto eles tm de mau, de ridculo e de grotesco, ns que gastamos todo o nosso dinheiro brasileiro para transformar-nos em bonecos e bonecas parisienses, ainda no nos lembramos de imitar uma das melhores coisas que eles tm, uma coisa que eles inventaram, que lhes peculiar e que no existe em nenhum outro pas a menos que no seja uma plida imitao: a flnerie. Sabeis o que a flnerie? o passeio ao ar livre, feito lenta e vagarosamente, conversando ou cismando, contemplando a beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada momento de aspectos e de impresses. [...] O que h de mais encantador e de mais aprecivel na flnerie que ela no produz unicamente o movimento material, mas tambm o exerccio moral.33

    Interessante observar que muitos comentadores que passaram por esse trecho acabam apontando nele um exemplo de constatao e crtica sobre como a sociedade fluminense da poca aceitava, como notrio, o influxo cultural francs. O principal indicativo desse fato o trecho: Ns que macaqueamos dos franceses tudo quanto eles tm de mau, de ridculo e de grotesco, ns que gastamos todo o nosso dinheiro brasileiro para transformar-nos em bonecos

    32 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996,

    p. 21. 33

    Ao Correr da Pena, 29/10/1854. In: ALENCAR, Jos de. Ao correr da pena. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

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    e bonecas parisienses; porm, justamente a continuao desse trecho que, alm de confirmar a conscincia sobre o influxo, ainda parece sugeri-lo, em certa medida, como insuficiente.

    Alencar continua o trecho recomendando a transposio da flnerie, hbito associado ao desenvolvimento do cenrio urbano parisiense de meados do sculo XIX, para a corte brasileira da mesma poca, que passava pela urgncia de ruas constantemente enlameadas e falta de iluminao noturna no Passeio Pblico. Ou seja, ao mesmo tempo, ele apresenta e recomenda34 um sedutor exerccio moral estrangeiro, espcie tambm de moda parisiense, que o prprio cronista admite ser de truncada aplicao na realidade material do cotidiano fluminense. Em suma, o que fica do trecho a postura supostamente crtica do cronista diante das polticas administrativas e hbitos culturais de seu tempo, assim como sua consequente autovalorao social e seu alinhamento esfera cultural prestigiada. Por outro lado, um leitor no muito mais atento pode apreender tambm que a provvel crtica de Alencar acaba por, contraditoriamente, reiterar o criticado macaqueamento, mas agora no mais como adornos ou objetos (mercadorias), mas, mais arraigado, como a busca por um estado moral. O que vimos no trecho citado um exemplo do carter de modernidade postulada e justificada por parmetros supostamente externos. Supostamente, pois, a partir do momento que a prtica do exerccio moral moderno macaqueado se d em contexto e de modo diverso daquele como postulado, essa mesma prtica passa a ser compreendida a partir da funo que assume dentro de seu universo prprio de relaes sociais. No caso do trecho de Alencar, a prtica da flanrie evocada pode ser compreendida no como o referenciado por Baudelaire, mas como uma valorizao social bem especfica, pautada diretamente pelo dilogo com o peculiar debate pblico no qual a srie Ao correr da pena faz parte.35 Assim, vemos nesse exemplo a manifestao de um processo peculiar de autorreconhecimento das vozes pblicas da poca em relao prpria sociedade fluminense,

    34 De acordo com o restante do texto e pelo contexto da srie Ao Correr da Pena, no h ironia ou qualquer sinal

    que Alencar no estivesse elogiando o hbito. 35

    Em grande medida, nosso horizonte de interpretao encontra caso similar naquele citado por Roberto Schwarz, ao exemplificar como a intelectualidade brasileira do sculo XIX, de modo geral, reconheceu a questo (tocada por Alencar na crnica) e tentou arremed-la. O exemplo vem de Slvio Romero que teria escrito que mister fundar uma nacionalidade consciente de seus mritos e defeitos, de sua fora e de seus delquios, e no arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que s serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. [...] S um remdio existe para tamanho desideratum: mergulharmo-nos na corrente vivificante das idias naturalistas e monsticas, que vo transformando o velho mundo. ROMERO, Slvio. Ensaios de crtica parlamentar. Rio de Janeiro: Moreira, Maximino & Cia., 1883, p. 15 apud SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 24.

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    medida e avaliada por referncias novas, estranhas e descompassadas, mas que, ainda assim, lhe eram prprias.

    Cabe, ento, pensarmos sobre quais condies sociais tal descompasso peculiar e moderno caracterizou o gnero crnica em suas primeiras dcadas de existncia. No Brasil, como dito, desde seu princpio, a crnica foi produto de uma empresa pouco industrializada, estabelecendo relaes de trabalho consideradas modernas em uma sociedade escravocrata. Dessa constatao podemos traar uma distino fundamental para nos aproximarmos do indito debate pblico formado pela imprensa brasileira em meados do sculo XIX. Baseando-nos na noo liberal-burguesa de esfera pblica europeia (especificamente inglesa do incio do sculo XIX), vemos que a expanso da imprensa peridica no velho continente havia sido o pilar principal no qual se sustentara a noo idealizada de esfera pblica. Independentemente das incoerncias como tal concepo universalizante de esfera pblica se formava no caso ingls, importante ressaltar que a imprensa se mostrava ento como

    principal veculo de incitao formao de uma opinio pblica. Assim, forjava-se por l, reconhecendo-se como tal, um espao igualitrio de crtica e debate cujo fundamento era o argumento e a racionalidade.

    certo que a participao nela [na esfera pblica] pressupunha a propriedade e a distino, o que se tornaria mais claro com o aprofundamento das fissuras sociais e o surgimento de uma contraesfera pblica []. Nas circunstncias iniciais, contudo, parecia que os jornais e peridicos cumpriam papel decisivo no avano do esclarecimento (contra a dominao e a autoridade tradicional) ao fomentar a discusso geral, buscando dar voz opinio pblica.36

    Ou seja, v-se que as noes de debate pblico ou de opinio pblica acabam sendo fortemente determinadas pela prpria concepo de pblico especfico de cada contexto.

    Alm disso, o prprio conceito de esfera pblica37 acaba trazendo em si outras caractersticas que poderemos contrapor ao caso brasileiro. Sua concepo inglesa pressupe o acesso garantido a todos os reconhecidos como cidados, que formariam, assim, um corpo pblico, na medida que tm garantidos os direitos de livre associao e livre manifestao de opinies de interesse geral, sendo a imprensa seu meio de articulao. Assim, a esfera pblica seria aquela que intermedia o corpo estatal e corpo pblico, por meio da garantia e

    36 A ideia e as todas as sugestes de bibliografia sobre a identificao do debate pblico brasileiro pensado a

    partir de sua relativizao e contraposio ideia de esfera pblica inglesa referncia direta a um artigo, ainda no publicado, em que Edu Teruki Otsuka prope a identificao do desenvolvimento do gnero crnica no Brasil. 37

    HABERMAS, Jrgen. The Public Sphere: An encyclopedia article (1964). In: New German Critique, No. 3. (Autumm, 1974), p. 49-55.

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    manifestao da opinio pblica, a qual permite e legitima o funcionamento adequado da esfera pblica e o controle democrtico do Estado. No por acaso, os conceitos de esfera pblica e opinio pblica se desenvolveram no sculo XVIII na Europa, sob condies histricas que permitiram a distino entre opinies particulares e a opinio pblica. Apesar de opinies pontuais (preconceitos coletivos, atitudes normativas, concepes de cultura, valores etc.) continuarem como significativos resqucios histricos manifestados na esfera pblica, a opinio pblica j poderia ser concebida, na medida em que um pblico existisse anteriormente e fosse institucionalmente assegurado, conforme os interesses da sociedade burguesa.38 Assim, voltando a pensar a relao da crnica brasileira com o peculiar debate pblico nacional, vemos que este gnero tem como matria-prima os prprios acontecimentos

    contemporneos, aquilo que poderia ser considerado novidade para sociedade da poca. Recm chegada a uma sociedade essencialmente iletrada, a crnica alcanou um nmero, at ento indito de leitores no pas, e incorporou a si mesma, enquanto novidade, entre os assuntos de que tratava, tornando-se seu prprio objeto de comentrio. Alm disso, a crnica se estabelece acompanhando os demais textos do jornal, como um novo espao, at ento indito tambm, destinado (conforme expectativas exemplificadas nos comentrios do jovem Machado de Assis) a servir ao estabelecimento, igualmente indito, de um vindouro debate pblico. Assim, uma das caractersticas peculiares e modernas do novo produto crnica o prprio contraste entre a expectativa de seu potencial comunicativo e as possibilidades da perifrica sociedade na qual ela se insere. Para melhor exemplificar a aparente contradio, vale lembrarmos o comentrio anterior de Marlyse Meyer sobre a traduo dos romances-folhetins: no Brasil havia folhetins, mas no havia folhetinistas. Isto, pois, se refere

    qualidade, estima e difuso dos folhetinistas brasileiros e sua produo de romances publicados nos jornais. O que no dizer dos comentrios simples, textos menores, co vadios, livres farejadores do cotidiano, muitas vezes sem dono, a que se referiu Meyer? No famoso ensaio de Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar, o crtico exemplifica sua tese sobre as implicaes acerca do funcionamento peculiar dos pressupostos burgueses e modernos no Brasil escravocrata, citando o seguinte caso referente imprensa da corte:

    38 HABERMAS, Jrgen. The Public Sphere: An encyclopedia article (1964). In: New German Critique, No. 3.

    (Autumm, 1974), p. 49-55.

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    Nas revistas do tempo, sendo grave ou risonha, a apresentao do nmero inicial composta para baixo e falsete: primeira parte, afirma-se o propsito redentor da imprensa, na tradio de combate da Ilustrao; a grande seita fundada por Gutenberg afronta a indiferena geral, nas alturas o condor e a mocidade entrevem o futuro, ao mesmo tempo que repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha regeneradora do Jornal desfaz as trevas da corrupo. Na segunda parte, conformando-se s circunstncias, as revistas declaram a sua disposio cordata, de "dar a todas as classes em geral e particularmente honestidade das famlias, um meio de deleitvel instruo e de ameno recreio". A inteno emancipadora casa-se com charadas, unio nacional, figurinos, conhecimentos gerais e folhetins [...]. Caricatura desta sequncia so os versinhos que servem de epgrafe Marmota na Corte: Eis a Marmota / Bem variada / Pra ser de todos / Sempre estimada. // Fala a verdade, / Diz o que sente, / Ama e respeita / A toda gente.39

    Assim, a despeito da situao supostamente adversa, pode-se supor, pelo exemplo, como a crnica se desenvolveu e o estilo gil e familiar dos cronistas brasileiros se difundiu, em paralelo ao reconhecimento pblico de seus principais escritores. Feito esse comentrio sobre as peculiaridades e limitaes desse campo de comunicao que foi a imprensa da corte na poca, e devidamente contrapostas ao caso ingls, podemos voltar a acompanhar algumas etapas de seu processo de complexificao, e as consequncias manifestas no gnero crnica, estruturalmente vinculado aos demais discursos de seu contexto de publicao.

    Um sinal claro de mudana foi a consolidao da denominao crnica, claramente diversa do romance-folhetim, a partir da dcada de 1860. Essa mudana de postura dos cronistas no foi pontual, mas se estendeu pelas dcadas que marcam os comentrios jornalstico-literrios, no raro cmicos e de teor poltico, de autores como Alencar, Machado e Frana Junior.

    Tal mudana tambm no parece derivada de uma maior autonomia destes perante suas redaes. Pelo contrrio, a relao compulsria entre jornal e folhetinista parece se acentuar ainda mais pelas condies sociais brasileiras, que fazem da coluna fixa no jornal tanto uma espcie de palanque para sociedade, quanto, ao mesmo tempo, um caminho encontrado para ascenso social de parcela dos happy few. Dessa forma, devemos considerar, principalmente em se tratando da sociedade brasileira escravocrata do sculo XIX, que o modo relativamente compulsrio do trabalho do folhetinista, e de ampla dependncia do intelectual brasileiro de modo geral, foram faces significativas da produo literria da poca. Carter, no raro assumido pelo escritor, de

    39 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 21-22.

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    apndice da vida social, pronto para submeter sua criao a uma tonalidade mdia, enquadrando a expresso nas bitolas do gosto.40 Voltando para a dcada de 1850, podemos ver o comentrio acima exemplificado no estilo de outro trecho retirado tambm de Ao Correr da Pena, coluna em que Alencar tratou de variado conjunto de assuntos acerca da sociedade fluminense. Neste exemplo, o extenso e longnquo episdio que marcou a Guerra da Crimeia (1853-1856), que havia sido pauta obrigatria na imprensa da corte, dividiu espao com os fatos banais noticiados nos dois anos que durou a seo e que, segundo Alencar, foi um dos acontecimentos mais relevantes da poca: A TOMADA DE SEBASTOPOL: Escrevendo-a, no trao unicamente a crnica da semana, mas a histria do mundo durante um ano41, ironizou o cronista. A despeito da graa sria sobre o acontecimento bastante noticiado poca, na prtica, as novidades de episdios como esse eram servidas ao leitores de modo to frvolo quanto os comentrios sobre os bastidores das duas ou trs salas de teatro existentes na corte, no havendo diferena substancial no tratamento dos assuntos. Em suma, a religio, a cincia, a glria, o amor, a arte, todas essas coisas grandes e sublimes do mundo, tudo num momento dado some-se pelo fundo de um prato, ou pelas bordas de um copo de vinho42, o que, na prtica, era o carter de banquete pblico alegoricamente assumido pelas novidades frescas que Alencar servia aos seus leitores.

    O que, por sua vez, tambm nos permite entrever a concepo de pblico corrente na corte: um agrupamento literrio e intelectual, por diferentes caminhos, privilegiado, e, em algum grau, dependente de autoridades pblicas em uma sociedade majoritariamente iletrada. A matria tratada, no caso especfico desta srie de Alencar, era composta por variado conjunto de fatos e ideias, porm dentro de certos limites: os hbitos sociais valorizados da corte, a epidemia de clera na cidade, as grandes notcias vindas da Europa, as expectativas e debates polticos parlamentares, e principalmente as modas teatrais e literrias comentadas, em suma, os campos de assunto valorizados em seu contexto, mas que, em relao extenso de possvel aprofundamento crtico, eram devidamente planificados nos geis e simpticos jogos retricos a que Alencar se impunha. Assim, segundo Luiz Roncari, uma das marcas da presena de escritores como Otaviano e Alencar (as duas principais referncias de cronistas na poca em que Machado

    40 CANDIDO, Antonio. O Escritor e o Pblico. In: Literatura e Sociedade, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,

    2006, p. 94. 41

    Ao Correr da Pena, 26/11/1854. In: ALENCAR, Jos de. Ao correr da pena. So Paulo: Martins Fontes, 2004. 42Ao Correr da Pena, 27/05/1855. In: Ibid.

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    escreveu O Folhetinista) foi a exibio de um domnio retrico raro sobre os fatos comentados. Roncari, que ressaltou a determinncia das relaes intertextuais das crnicas com os demais discursos que compunham o corpo do jornal, assim como com a prpria opinio pblica corrente, considera a crnica como o registro de um discurso proferido de uma espcie de grande palanque social, no caso, da coluna fixa no jornal.43 Tal autorrepresentao da voz registrada nos peridicos se dava, justamente, por meio do estilo, sempre gil, que ritmava um discurso aparentemente negligente: os cronistas, em geral, se referiam a suas sees como um espao literrio merecedor de pouco empenho, o que funcionava quase como um efeito compensatrio se afirmar por meio do desdm (sincero ou no) da prpria posio privilegiada na sociedade.44 Podemos ver, assim, nas constataes mesmas desses diferentes comentadores aos quais recorremos, como tal palanque social almejado e alcanado por membros da imprensa da poca dava um carter mais personalista para seus falantes mais significativos, a despeito da aparncia compulsria da relao entre escritores e peridicos.

    Agora, deixemos o perodo em que Machado escreveu O Folhetinista e saltemos para as ltimas dcadas do XIX. De acordo com Margarida Souza Neves, grande parte dos cronistas da virada do sculo elegeram como matria de seus comentrios as mudanas fsicas e sociais passadas pela cidade fluminense, ou seja, ainda amplamente pautados diretamente pelos acontecimentos contemporneos. Naqueles anos, entre discursos crticos e apologticos, reafirmavam e discutiam o protagonismo social e institucional da capital na consolidao da recm-declarada Repblica. Assim, por meio de crticas ou elogios, o velho Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, Joo do Rio, entre outros cronistas estudados por Neves, estavam de alguma forma comprometidos em discutir a imagem e as mudanas contemporneas da sociedade fluminense e seus desdobramentos em mbito nacional.45

    43 RONCARI, Luiz. A estampa rotativa na crnica literria. In: Boletim Bibliogrfico. Biblioteca Mrio de

    Andrade So Paulo, v.46. So Paulo, 1985, p. 15. Mais dados e argumentaes que demonstram essa relao, principalmente relativos aos anos posteriores, podem ser vistos em SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo: Companhia das Letras, 2003; e MACHADO NETO, Antonio Luiz. Estrutura social da repblica das letras: sociologia da vida intelectual brasileira, 1870-1930. So Paulo: Grijalbo, 1973. 44

    Segundo Brito Broca, uma das razes que teriam levado a sada de Jos de Alencar, e o fim de seu Ao Correr da Pena, das pginas do Correio Mercantil teria sido, entre outras razes, sua insatisfao pessoal e literria em relao s condies de criao limitadas que lhe era impostas pela estrutura do jornal. Alencar ainda confessara, em correspondncia posterior, que sua extinta seo foi uma das principais formas pela qual se projetou social e politicamente. BROCA, Brito. Romnticos, pr-romnticos, ultrarromnticos So Paulo: Polis, 1979, p. 248. 45

    NEVES, Margarida de Souza. Histria da crnica. Crnica da Histria. In: RESENDE, Beatriz (Org.). Cronistas do Rio, Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1995.

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    A Repblica recm-proclamada e os conflitos urbanos imediatamente consequentes, o grande levante social no nordeste protagonizado pela camada mais pobre da populao, o recente predomnio do trabalho assalariado, e, principalmente, o crescimento populacional vertiginoso na capital, seguido por uma reforma urbana de propores inditas. Todos esses eventos, em curto espao de tempo, do exemplo do contraste que foi o desenvolvimento urbano moderno do Rio de Janeiro entre as dcadas de um Alencar e as de um Joo do Rio. Comparando a poca de Ao correr da pena com a virada do sculo, vemos que o gnero crnica acompanhou o ritmo urbano, ganhou flego e se difundiu em novas colunas e novos cronistas conforme se ampliavam seus palanques, configurados na imprensa, mas, principalmente, conforme se acumulava a variedade de fatos e acontecimentos concretos que eram noticiados no pas e na capital. Ou seja, na entrada do sculo XX, trata-se de um contexto social, um campo de comunicao, bem diverso da poca alencarina, quando as crnicas correspondiam a comentrios pautados majoritariamente por modas teatrais e literrias, repercusso de disputas polticas europeias, recomendaes de exerccios morais valorizados, ou simples e/ou irnica descrio de curiosos e banais fait-divers provinciais e fluminenses.

    Uma boa sntese da evoluo do estilo da crnica em geral, que demonstra o constante dilogo entre o gnero e a sociedade, e que vai at meados do sculo XX, escapando do recorte da nossa pesquisa, sintetizada no seguinte comentrio de Antonio Candido:

    Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem est escrevendo toa, sem dar muita importncia. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho. [...] Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a inteno de informar e comentar [deixada a outros tipos de jornalismo], para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lgica argumentativa e da crtica poltica, para penetrar poesia adentro.46

    Compreendemos, assim, como a referencialidade e o discurso objetivo dos primeiros comentadores dos fatos cotidianos foi sendo gradualmente substitudo por um carter alusivo, intermediado pela representao da subjetividade de certo narrador, em textos de elaborao e autonomia artstica cada vez mais complexa. E nesse momento j poderamos entrar nas primeiras dcadas do sculo XX, comentando o prenncio da chamada Crnica Moderna, tipo de relato jornalstico-literrio enraizado na crnica oitocentista, mas cujo

    46 CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 28.

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    comentrio evitaremos nos estender, por se tratar de matria mais extensa e que foge do nosso recorte de pesquisa. Assim, um pouco a partir da ltimas dcadas do sculo XIX, e ostensivamente pelo sculo XX adentro, a crnica foi deixando de ter maior carter de referenciao direta aos fatos cotidianos da realidade e passou a incorporar mais sistematicamente uma nova estrutura textual: a fico. Em suma, a crnica foi perdendo a referencialidade explcita e factual que caracterizou boa parte das crnicas de Otaviano, de Alencar e do jovem Machado, e chegou, enfim, ao estilo mais alusivo e ambguo do velho Machado, aos parnasianismos de Bilac, o sensualismo e decadncia, janela, de Joo do Rio, e uma ampla variedade de estilos que muitas vezes ecoaram o velho exibicionismo retrico ao longo do sculo XX.47

    O que podemos observar nessa sugesto de desenvolvimento do gnero que, a despeito das profundas modificaes urbansticas, sociais e polticas, que marcaram a segunda metade do sculo XIX, e da cada vez mais recorrente ficcionalizao do gnero, alguns elementos da crnica permaneceram e se acentuaram. O mais caracterstico deles ainda seu estilo gil e leve, em tom de conversa familiar com o leitor, para poder, principalmente, seguir nivelando os desnveis entre seriedade e frivolidade de seu contedo. Assim, vale questionar se esse suposto tom de conversa leve das crnicas, que marca tanto o antigo comentrio justaposto quanto a posterior ficcionalizao do gnero, poesia adentro, poderia se revelar como uma criativa compensao artstica sobre o desvalorizado truncamento de sua forma. Em termos mais concretos, vale questionar se a crnica no correspondeu a um produto cultural, cuja lgica prpria de produo e circulao foi intensa a ponto de no poder se sustentar apenas sobre o comentrio relevante sobre o cotidiano fluminense. Mais do que isso, se ela complexificou a justificao para sua existncia por meio do trabalho criativo literrio, em um tom fluido de conversa que, por consequncia, se tornou identitrio ao gnero por aqui.

    Dessa forma, nos questionamos se no foi justamente no aparente descompasso, to moderno, entre as implicaes da velocidade do jornal e as implicaes do ritmo da sociedade fluminense, que os cronistas brasileiros encontraram um espao a ser preenchido pela forma

    47 Segundo Antonio Dimas, a partir do fim do sculo XIX principalmente a partir de Joo do Rio (Paulo

    Barreto), cronista que atende dupla necessidade [da crnica literria]: a cognoscitiva e a sensvel o gnero pde atingir um nvel mais elevado de hibridismo entre literatura e jornalismo, ou seja, sua prtica generalizada pde passar da simples justaposio de fatos, comentrios e fico, que marcou o princpio do gnero poca de Alencar, para a fuso simultnea desses elementos todos, no sculo XX. DIMAS, Antonio. A ambiguidade da crnica. In: Littera: revista para professor de portugus e literaturas de lngua portuguesa. Ano IV, N 12. Rio de Janeiro: Grifo, 1974, p. 50-51.

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    artstica, de variada qualidade e modo. Em outras palavras: entre os pressupostos de criao de uma esfera pblica legitimadora, advinda com a imprensa nos moldes da sociedade burguesa europeia, e a quase inexistncia de um pblico leitor livre e autnomo, capaz de constituir uma opinio pblica que no se confundisse ou dependesse da esfera administrativa do Estado no teria sido a partir dessa relao conflituosa, estruturante e identitria para o gnero, que teria se desenvolvido, assim, uma breve tradio que chegou ao ponto de ser reconhecida como sui generis nacional? Levando em conta nosso breve resumo histrico (e nos restringindo ao nosso recorte de pesquisa), acreditamos que essa seja a face pouco explorada, complementar e problemtica da originalidade com que se aclimatou e a naturalidade com que se desenvolveu tal gnero brasileiro at meados do sculo XX.48

    Para exemplificar parte de tal processo de modificao do gnero, do carter mais argumentativo para o mais ficcional, sem abandonar seu tom familiar, leve e interessante, vale pensar como Machado de Assis, um dos principais autores a influenciar esse panorama, trabalhou suas crnicas em resposta s exigncias da matria social de sua realidade contempornea.

    1.4 Nota: o cronista Machado de Assis

    Ao longo dos cerca de 40 anos em que Machado de Assis atuou como jornalista (majoritariamente entre as dcadas de 1860 a 1890), o gnero crnica foi marcado por modificaes generalizadas entre quase todos cronistas do Rio de Janeiro, entre os quais o autor teve influncia ativa e constante. Se nas dcadas de 1850 e 1860, os comentrios do

    48 CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 28.

    Pensando um paralelo em relao s crnicas, sobretudo na dcada de 1870, podemos expandir a questo citando as semelhanas do desenvolvimento do gnero comparadas a outro produto cultural semelhantemente popularizado e pouco estimado poca: as polcas - dana e msica de origem alem, mas que, aps difundidas na Europa, tambm haviam sido abrasileiradas. Em interessante estudo sobre o conto Um homem clebre, Jos Miguel Wisnik comenta que o mundo em que proliferam as polcas, serelepe e livremente associativo, capaz de incorporar qualquer matria sua lgica vivaz, tocando alegre e irresponsavelmente o nervo agudo e fortuito das coisas, corresponde, ao prprio universo das crnicas, no qual o escritor se permite borboletear. Wisnik justifica sua aproximao entre Polca e Crnica comentando que o contexto da poca, que marca a manifestao de produtos culturais em geral, punha a sociedade fluminense em contato com uma nova realidade, tanto corriqueira, quanto mundial, que se oferecia ao sujeito como mercado, conferindo-lhe o desplante indito de um consumidor universal, dentro, claro, de suas limitaes e especificidades locais. WISNIK, Jos Miguel. Machado Maxixe: O caso pestana. In: Sem Receita. So Paulo: Publifolha, 2004, p. 39.

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    jovem Machado foram marcados pela justaposio de argumentos que variavam entre o engajamento poltico, relativamente inconstante, e a abordagem superficial de modas, discursos e outros acontecimento contemporneos do cotidiano, suas crnicas passaram a representar mosaicos de relaes sociais cada vez mais complexas ao longo das dcadas. A diviso tradicional da obra do autor identifica em Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881) e Papis Avulsos (1882) as duas publicaes que marcam sua passagem para a chamada fase realista, produo madura de obras consideradas de melhor qualidade. Seguindo o difundido argumento, John Gledson sugere um paralelo prximo de inflexo qualitativa significativa na obra do Machado cronista, que teria se dado em poca prxima, podendo ser mais claramente reconhecida, em linhas gerais, a partir das sries Histria de quinze dias (1876) e Notas Semanais (1878). De acordo com Gledson, as crnicas desse perodo podem ser interpretadas como um modo de se melhor compreender que processo corresponde ao salto literrio machadiano.49 Interessa-nos aqui sugerir quais caractersticas da produo anterior do cronista e qual o sentido da linhas de continuidade, modificao e ruptura que marcam as diferentes fases de sua obra. Para isso, apontaremos trs momentos que iluminam nossa interpretao.50

    Em estudo sobre as primeiras crnicas do jovem Machado, Lcia Granja51 argumenta como as duas sries publicadas pelo cronista no Dirio do Rio de Janeiro - Comentrios da Semana (1861-1862) e Ao Acaso (1864-1865) - so carregadas de estruturas textuais que em grande medida antecipam e servem de laboratrio para formas literrias futuramente aplicadas em seus romances e contos. Mais do que reconhecer o espao privilegiado de trabalho que foram as pginas do jornal para o escritor, nos interessa aqui esboar algumas caractersticas especficas destas sries, e que iluminem os estudos sobre as crnicas posteriores. Na dcada de 1860, Machado produziu textos jornalsticos de teor poltico mais explcito, caracterizado, entre outros elementos, pelo uso de ironias de mais fcil interpretao, diferentemente do estilo que o autor aprimoraria nos anos seguintes. Naquela poca, demonstrando uma postura poltica claramente mais combativa, o empenho de esclarecimento, prprio do esprito romntico-progressista da poca, facilmente identificvel em seus textos, que, alm disso, ainda atendiam s necessidades de alinhamento editorial do jornal no trato da

    49 GLEDSON, John. Intr. In: Notas Semanais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 63-64.

    50 Um comentrio mais extenso sobre as sries anteriores seria tentador e pertinente, porm, tal esforo iria alm

    do flego deste trabalho. 51

    GRANJA, Lcia. Machado de Assis, escritor em formao: a roda dos jornais. So Paulo; Campinas, SP: FAPESP: Mercado de Letras, 2000.

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    matria cotidiana comentada. Forando nossa nota de sntese, a autora argumenta como o cronista ensaia o uso de citaes literrias, de pensadores polticos etc., no mais como referencialidade direta para argumentao, mas como distanciamento do discurso o qual pretendia caricaturar, criando para suas crnicas do Dirio do Rio de Janeiro um tipo de concluso que salta desproporcional ao modelo [no caso] literrio evocado.52 Ou seja, o que o jovem cronista fazia era escorar-se na tradio [literria, inclusive nas crnicas histricas,] para elaborar o comentrio mido que cria simultaneamente registros diferentes daqueles esperados.53

    O ponto de virada mais significativo teria ocorrido na dcada de 1870, na srie Notas Semanais, a nica que Machado publica semanalmente entre 1866 at o fim da dcada de 1880. Em estudo sobre esta srie54, John Gledson aponta como, apesar da determinncia e recorrncia de dois temas que pareciam preocupar o cronista poca (a organizao sociopoltica em torno do novo gabinete Sinimbu e a situao cultural da corte e do pas), tais temas no seriam o principal determinante da srie. O crtico ingls aposta no em um tema dos textos, mas na forte ficcionalizao da matria tratada como uma das principais mudanas que fundamentam a estrutura das Notas Semanais. Para ele, as Notas no foram a melhor srie do cronista, mas certamente a mais relevante no processo criativo do autor.55 A recorrncia desse registro ficcional se soma e ganha destaque entre as ferramentas estilsticas utilizadas por Machado dali em diante, ao longo de sua carreira como cronista. O que essas crnicas permitem ver, [...] que Machado de Assis estava consciente das muitas dimenses do dilema que enfrentou [] e que reagiu de forma criativa56, resume, apontando que o caminho encontrado para representar os acontecimentos da realidade brasileira, onde nenhuma doutrina parecia se ajustar ou ter credibilidade, seria a fico uma melhor opo. Basicamente, tratando-se de referncias objetivas, de meros comentrios justapostos como fazia no incio da carreira, o problema se daria em tom irnico ou no, mas sempre de forma truncada. De acordo com Gledson, uma vez trazido para o plano ficcional, o todo poderia se mover finalmente sem dificuldades.

    52 GRANJA, Lcia. Machado de Assis, escritor em formao: a roda dos jornais. So Paulo; Campinas, SP:

    FAPESP: Mercado de Letras, 2000, p. 95. 53

    Ibid., p. 76-77. 54

    GLEDSON, John. Intr. In: Notas Semanais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008. 55

    Ibid., p. 80. 56

    Ibid., p. 77.

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    Por fim, em relao penltima srie, Bons Dias! (1888-1889), o estudo de Gledson57 se pauta mais sistematicamente pelo esclarecimento dos fatos contemporneos publicao das crnicas, no sentido de iluminar o modo como Machado se utiliza de uma forma literria capaz de representar relaes histricas maiores por meio de referncias factuais a acontecimentos pontuais, banais ou no. Ou seja, pode ser que Machado no desse um salto to significativo de capacidade artstica quanto na srie Notas Semanais em relao s crnicas anteriores, porm, certamente, ele estava aprofundando o uso da estrutura ficcional em seus comentrios cmicos e polticos sobre o cotidiano fluminense. Em seu comentrio sobre Bons Dias!, Gledson enfatiza um aspecto dessas srie: a ficcionalizao programtica, evidenciada no primeiro conjunto de crnicas, acerca do pseudnimo que as assina. Apesar de discordarmos das justificativas extratextuais sobre as razes que teriam levado Machado a querer camuflar a autoria real das crnicas (no acreditamos que h dados que sustentem essa interpretao), cremos que o achado principal do comentrio de Gledson recai no reconhecimento do sentido programtico que o cronista deu composio de sua srie, o que demonstra maior grau de elaborao formal dos textos e aprofundamento das mudanas na composio do gnero. Sobre este aspecto especfico da srie Bons Dias!, voltaremos a tratar mais adiante.

    Para concluir essas consideraes iniciais sobre a crnica, e para no parecer superestimarmos o protagonismo de Machado no desenvolvimento do gnero, vale ressaltar que: no incio de sua carreira, grande parte de seu estilo estava diretamente influenciado por Francisco Otaviano e Jos de Alencar; assim como, no final dela, outros cronistas, como Bilac, Lima Barreto e, sobretudo, Joo do Rio, ensaiavam tambm, em suas respectivas sees, solues formais talvez to relevantes quanto as trabalhadas pelo velho cronista.

    57 GLEDSON, John. Intr. In: ASSIS, Machado. Bons Dias! So Paulo: Hucitec, 1990; e Idem. Bons Dias!.

    Machado de Assis: fico e histria. So Paulo: Paz e Terra, 2003.

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    2 Sugesto de um movimento

    2.1 Leitura da primeira crnica: o anncio de um programa

    Ao longo de sua carreira na imprensa, Machado de Assis participou de mais de uma dezena de sries de crnicas literrio-jornalsticas em peridicos fluminenses. E uma de suas sries mais curiosas e pouco abordadas pela tradio crtica foi a Gazeta de Holanda.58 primeira vista, a escassez de estudos sobre ela se deve em parte ao fato de Machado ter seu talento amplamente reconhecido enquanto prosador em outras formas textuais, principalmente em romances, contos e crnicas. Todos os trs gneros, em geral, associados prosa. O que pode despertar a curiosidade em relao Gazeta de Holanda vem do fato de o consagrado prosador estar se experimentado na forma da crnica em versos. Neles, Machado tratou do tema poltico de modo satrico entre 1 de Novembro de 1886 e 24 de fevereiro de 1888, publicando-os no jornal para o qual costumava colaborar na poca, o de maior tiragem do Rio de Janeiro, a Gazeta de Notcias (1875-1942).59 Escrevendo dentro das limitaes literrias da crnica em fins do sculo XIX, e valendo-se de uma forma peculiar para o prprio gnero, Machado de Assis produziu nesta srie 48 textos que acabaram considerados aqum do rendimento literrio da parte j consagrada de sua obra.60

    Assim, levando em conta as observaes j feitas acima sobre o gnero e o esboo traado sobre a obra do cronista, vale agora partirmos para a anlise propriamente da Gazeta de Holanda. Para isso, melhor do que nos estendermos em um comentrio introdutrio sobre

    58Os textos mais importantes para essa pesquisa, dentre os quais abordam diretamente a srie: MAGALHES Jr., Raimundo. Versejador Saudosista. In: Vida e Obra de Machado de Assis. V. 3. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1981; GOMES, Eugnio. Machado de Assis e a Gazeta de Holanda. In: Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria So Jos, 1958; GLEDSON, John. Bons Dias!. In: Machado de Assis: fico e histria. So Paulo: Paz e Terra, 2003; e WISNIK, Jos Miguel. Machado Maxixe: O caso pestana. In: Sem Receita. So Paulo: Publifolha, 2004. 59Com um projeto editorial considerado moderno e inovador para poca em que foi criado, o peridico de Ferreira de Arajo abria bastante espao para literatura, e, com o passar dos primeiros anos, foi se engajando em campan