VICTIMOLOGIA-3

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Revista do Curso de Direito da FSG Caxias do Sul ano 3 n. 6 jul./dez. 2009 p. 183-194 Reinaldo Andres Marques da Silva* Airton Lemos** Breve histórico da vitimologia: análise de caso acerca da influência da conduta da vítima para o ato ilícito do agente Resumo: Embora ainda pouco aprofundado, o estudo da vítima, na gênese do crime, vem tomando larga perspectiva no Brasil. É nesse comando que, através de uma análise objetiva da legislação, e principalmente da doutrina, à luz do que já consagrou o tema em outros países, tentaremos auferir a influência da conduta da vítima no ato ilícito do agente. Para tanto, dispomos de breve argumenta- ção daquilo que conceitua a vítima, bem como a prospecção do que antes era a gênese do crime, compreendida sem maiores concepções da vítima, no binômio crime-criminoso. Hoje, com a evolu- ção do estudo do elemento vítima, desenvolvemos este trabalho sob a óptica triangular para o en- tendimento criminal: criminoso-crime-vítima. Essa conjuntura torna a validar tal apresentação sob a óptica da vítima, antes deixada à sua sorte. Palavras-chave: Vitimologia. Conduta da vítima. O ilícito do agente. Brief history of the victimology: a case study about the influence of the behavior of the victim to promote the agent illicit act Abstract: Although victimology, in the origin of the crime, is a topic that has not been deeply stud- ied, it has been recently highlighted in Brazil. Through the analyses of the legislation and particu- larly the doctrine in the light of what have been studied in many other countries, we examined the behavior of the victim that can contribute to the agent’s illicit attitude. Thus, we presented the concept of the victim, as well as how the victim behavior was not considered in the genesis of the crime in the past. Nowadays, considering the evolution of the studies of the victim, we analyze the phenomenon in a perspective that takes into account three aspects in order to understand it: mur- der-crime-victim. So, we present those topics, from the victim perspective that was not relevant in the past. Key words: Victimology. The victim’s behavior. The agent’s illicit act. * Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha – FSG – Caxias do Sul, RS. E-mail: [email protected]. Artigo apresentado como atividade prática supervisionada na disciplina de Português Instrumental, orientado pela Profª Magaly Ferrari, no semestre 04/2009. ** Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha – FSG – Caxias do Sul, RS. E-mail: [email protected]. Artigo apresentado como atividade prática supervisionada na disciplina de Português Instrumental, orientado pela Profª Magaly Ferrari, no semestre 04/2009.

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victimologia uma necessidade

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  • Revista do Curso de Direito da FSG Caxias do Sul ano 3 n. 6 jul./dez. 2009 p. 183-194

    Reinaldo Andres Marques da Silva* Airton Lemos**

    Breve histrico da vitimologia: anlise de caso acerca da influncia da conduta da vtima para o ato ilcito do agente

    Resumo: Embora ainda pouco aprofundado, o estudo da vtima, na gnese do crime, vem tomando larga perspectiva no Brasil. nesse comando que, atravs de uma anlise objetiva da legislao, e principalmente da doutrina, luz do que j consagrou o tema em outros pases, tentaremos auferir a influncia da conduta da vtima no ato ilcito do agente. Para tanto, dispomos de breve argumenta-o daquilo que conceitua a vtima, bem como a prospeco do que antes era a gnese do crime, compreendida sem maiores concepes da vtima, no binmio crime-criminoso. Hoje, com a evolu-o do estudo do elemento vtima, desenvolvemos este trabalho sob a ptica triangular para o en-tendimento criminal: criminoso-crime-vtima. Essa conjuntura torna a validar tal apresentao sob a ptica da vtima, antes deixada sua sorte. Palavras-chave: Vitimologia. Conduta da vtima. O ilcito do agente.

    Brief history of the victimology: a case study about the influence of the behavior of the victim to promote the agent illicit act Abstract: Although victimology, in the origin of the crime, is a topic that has not been deeply stud-ied, it has been recently highlighted in Brazil. Through the analyses of the legislation and particu-larly the doctrine in the light of what have been studied in many other countries, we examined the behavior of the victim that can contribute to the agents illicit attitude. Thus, we presented the concept of the victim, as well as how the victim behavior was not considered in the genesis of the crime in the past. Nowadays, considering the evolution of the studies of the victim, we analyze the phenomenon in a perspective that takes into account three aspects in order to understand it: mur-der-crime-victim. So, we present those topics, from the victim perspective that was not relevant in the past. Key words: Victimology. The victims behavior. The agents illicit act.

    * Acadmico do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gacha FSG Caxias do Sul, RS.

    E-mail: [email protected]. Artigo apresentado como atividade prtica supervisionada na disciplina de Portugus Instrumental, orientado pela Prof Magaly Ferrari, no semestre 04/2009.

    ** Acadmico do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gacha FSG Caxias do Sul, RS. E-mail: [email protected]. Artigo apresentado como atividade prtica supervisionada na disciplina de Portugus Instrumental, orientado pela Prof Magaly Ferrari, no semestre 04/2009.

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    Introduo

    Crime todo fato tpico e antijurdico. Sem mais profuso ao conhe-cido conceito de crime e sim conjuntura da prpria gnese do crime, a partir dos estudos criminolgicos de Benjamin Mendelsohn e Hans Von Hentig, dois precursores do estudo da vtima, passamos a desenvolver o que seria uma viso subjetiva da conduta da vtima. Desde a escola clssica, os estudos criminolgicos debruavam-se apenas no entendimento dos elementos do crime como constritos entre delito-delinquente-pena, dan- do-se vtima carter de mera consequncia, um apndice queles elemen-tos. a partir do holocausto da segunda guerra mundial, com os aprofun-dados estudos de Mendelsohn, que a apreciao da vtima dentro do con-texto da gnese do crime toma novo rumo para o entendimento criminals-tico, surgindo o estudo essencialmente vitimolgico. Contudo, no ofus-cou o importante trabalho de Hans Von Hentig, que anteriormente, em-bora no empregando o termo vitimologia nos seus escritos, delineou considerveis traos vitimais. Dentre as contribuies destes grandes auto-res, temos o delineamento de importante classificao acerca da vtima, sendo ambos considerados os pioneiros da vitimologia. Partindo da nova sistemtica, onde a vtima vista como elemento na gnese do crime, que os estudos vitimolgicos tomaram novos rumos.

    Na Amrica do Sul, tais estudos abrem caminho atravs da obra de Jimnez Asa, a partir da segunda metade do sculo passado. No Brasil, a jurisprudncia ptria fez mais uma vez o grande papel introdutrio do as-sunto. As primeiras doutrinas apontam para Edgard de Moura Bittencourt e, posteriormente, para Ester Kosovski, Eduardo Mayr e Heitor Piedade Jnior, em Vitimologia em debate, obra baseada em escritos nacionais e internacionais. Hoje, mesmo que j difundida em outros pases, no Brasil, o estudo da vitimologia possui vasto campo ao conhecimento.

    Em vitimologia, necessria a observncia de todas as subjetividades envoltas na ao da vtima diante da ao do agente criminoso. Somente aprofundando o estudo nessa subjetividade, respeitando a multi e a inter-disciplinaridade para o intento, que chegaremos a um denominador posi-tivo e de uma ao jurisdicional mais justa.

    Assim, diante de to importante tema e de uma nova problemtica, nada obsta ao instinto acadmico deslindar de forma proveitosa o que se entende sobre a vtima atravs da vitimologia. nessa tentativa que im-portante quantificar a conduta da vtima, como elemento do crime, para se vislumbrar o quantum esta contribui (ou no) para a atividade lesiva do

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    agente/delinquente. Sendo este o objeto do trabalho, resta-nos a sabedoria de que esgotar o tema no a pretenso destes autores, mas sim contribuir didaticamente na forma de futuros operadores dos mecanismos jurdicos que necessariamente faro uso destes instrumentos.

    1. Vtima

    A ttulo legal e de modo geral, a definio que mais se aproxima do conceito de vtima : Pessoa que, individual ou coletivamente, tenha so-frido danos, inclusive leses fsicas ou mentais, sofrimento emocional, per-da financeira ou diminuio substancial de seus direitos fundamentais, como consequncias de aes ou omisses que violem a legislao penal vigente, nos Estados-Membros, includa a que prescreve o abuso de po-der.1 Em que pese a simplicidade do objeto a ser definido, o conceito de vtima relativizado luz do foco, perspectiva ou estudo a que vai ser a-bordada. De qualquer forma, o conceito pode ser sociolgico, antropolgi-co, legal, extensivo, restritivo, etc.

    O importante definir, no mbito penal, o que se entende por vti-ma. Segundo Kosovski, pode-se definir vtima como aquele que sofre a ao ou omisso do autor do delito, (sujeito ativo, agente) e sinnimo de ofendido, lesado ou sujeito passivo.2 Alm dessa definio, outras podem ilustrar nosso objetivo. Assim, para Separovic,3 vtima [...] qualquer pes-soa, fsica ou moral, que sofre como resultado de um desapiedado desgnio, incidental ou acidentalmente; e para Manzanera4, [...] o indivduo ou grupo que sofre um dano, por ao ou omisso, prpria ou alheia, ou por caso fortuito. No presente trabalho, como se trata de uma anlise sob a perspectiva penal, entendemos que vtima toda pessoa que tem lesado algum bem ou direito protegido ou no pelo Estado.

    Em sede penal, atravs da vitimologia, a vtima analisada pelos mesmos parmetros criminolgicos que o elemento delinquente, assim como o nexo de causa ou objeto do crime. Quer dizer que todo o estudo

    1 Resoluo 40/34 da Assembleia Geral das Naes Unidas, de 29/11/1985. 2 KOSOVSKI, Ester. Fundamentos da vitimologia. Disponvel em

    . Acesso em: 29 de jul. 2009.

    3 SEPAROVIC, Z. Paul. Victimology. In: PIEDADE JNIOR, Heitor. Vitimologia. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos. 1993. p. 89.

    4 MANZANERA, Luis Rodrigues. Victimologa: estdio de la vctima. In: PIEDADE JNIOR, Heitor. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos. 1993. p. 90.

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    criminolgico interdisciplinar, voltado para a subjetividade da ao do delinquente, tambm aplicado vtima a fim de se estabelecer o conjunto criminis, objetivado pela ao delituosa concluda. Traar os caracteres sociais, psicolgicos, antropolgicos, psiquitricos, de animosidade, etc. fundamental agora em relao vtima e atravs da vitimologia, sempre com o objetivo ampliativo de descrever a participao dos elementos do crime nos fatos transcorridos no delito. Dessa forma que, na instncia jurisdicional, o magistrado poder exercer a aplicabilidade daquele que foi o precursor legal na cincia penal amparada pela vitimologia, ou seja, o Cdigo Penal, com redao dada pela Lei 7.209, de 11.07.1984:

    CAPTULO III DA APLICAO DA PENA Fixao da pena Art. 59 O juiz, atendendo culpabilidade, aos antecedentes, conduta social, personalidade do agente, aos motivos, s circunstncias e consequncias do crime, bem como ao comportamento da vtima, estabelecer, conforme seja ne-cessrio e suficiente para reprovao e preveno do crime: I [...] [grifo nosso].

    Assim o direito penal ptrio classifica de relevante importncia para o conjunto do delito e para quantificar o dolo ou a culpa do delituoso a apreciao do comportamento da vtima na perpetuao do delito, aten-dendo ao mandamento legal que majora ou minora a pena a ser aplicada ao agente. Alm do mais, com a complexidade dos desdobramentos sociais, e consequentemente dos delitos, hoje questo controversa em vitimologia o papel que a vtima exerce para a realizao do crime em seu prprio pre-juzo ou benefcio.

    2. Vitimologia

    Vitimologia o estudo da vtima sob todos os aspectos dentro da gnese do crime. Para isso, tal estudo, com carter multidisciplinar e in-terdisciplinar, verifica a subjetividade da conduta da vtima dentro do contexto dos fatos transcorridos para o crime. No crime, tais subjetivida-des devem ser delineadas no propsito nico de traar em essncia todos os fatores motivantes, tanto do agente quanto da vtima, objetivando a medida contributiva de cada um daqueles elementos para o delito.

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    Afinal, vitimologia muito bem suscitada na clebre frase de Vasile Stanciu:5 Se nem todos os rus so culpados, nem todas as vtimas so inocentes.

    De qualquer modo, Lola Aniyar de Castro, criminloga venezuelana, sintetiza muito bem o objeto da vitimologia:6

    1 o estudo da personalidade da vtima, tanto vtima de delinquente, quanto vtima de outros fatores, como consequncia de suas inclinaes subconscientes; 2 O descobrimento dos elementos psquicos do complexo crimingeno existente na dupla penal, que determina a aproximao da vtima e o crimino-so, quer dizer: o potencial de receptividade vitimal; 3 Anlise da personalidade das vtimas sem interveno de um terceiro. Es-tudo que tem maior alcance do que o feito pela criminologia, pois abrange as-suntos to diferentes, como o suicdio e os acidentes de trabalho; 4 Estudo dos meios de identificao dos indivduos com tendncia a se tor-narem vtimas; seria ento possvel a investigao estatstica de tabelas de previ-so como as que foram feitas com os delinquentes pelo casal Glueck, o que permitiria incluir os mtodos psicoeducativos necessrios para organizar a sua prpria defesa; 5 A importantssima busca dos meios de tratamento curativo, a fim de pre-venir a recidiva da vtima.

    A vitimologia como conhecimento surge a partir dos estudos do cri-me difundidos atravs da criminologia. A vtima sempre fez e sempre far parte do crime como elemento deste. Com fundamentao na escola clssi-ca (caracterizada pela anlise pura e fria do delito com certo esquecimento da subjetividade do agente) e na escola positiva (a contra censo da escola classista, caracteriza-se, devido ineficcia do princpio da retribuio, pelo estudo antropolgico do homem delinquente e do crime como fato social, dando maior ateno subjetividade dos elementos criminolgicos), ocor-ria que os estudos criminolgicos deixavam no esquecimento o elemento vtima como componente da trade criminal. O passo dado pela escola positiva escola clssica foi crucial para a nova perspectiva que se delineou. A escola clssica traa o crime como negao ao direito retribudo pela devida pena. J a escola positiva trata crime como fato social, levado a cabo por agente sujeito s influncias e fatores diretos e indiretos ao seu compor-tamento, tomando a pena exclusivamente como medida de defesa social,

    5 STANCIU, Vasile. In. PIEDADE JNIOR, Heitor. Vitimologia. Rio de Janeiro: Biblioteca

    Freitas Bastos, 1993. p. 107. 6 ANIYAR DE CASTRO, Lola. In: PIEDADE JNIOR, Heitor. Vitimologia. Rio de Janeiro:

    Biblioteca Freitas Bastos, 1993. p. 83.

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    observada a ressocializao do agente. Assim, esta adota o homem como centro do fato criminal, ao passo que aquela, o prprio crime como objeto de estudo.

    Este antagonismo das Escolas Penais se caracteriza pela transio de um pensamento objetivo de crime e sua retribuio para o pensamento subjetivo do agente. Com o tempo, a problemtica assume caractersticas, sem dvida, bem diversas. Um maior aprofundamento nas subjetividades dos elementos do crime denota uma nova preocupao das escolas penais. A reparao do dano passa a ser o novo instituto a ser jurisdicionado, dando, a partir da amparo vtima nos seus infortnios, sendo este o precursor filosfico para o estudo da vtima como elemento do crime.

    Agora, conhecido o embrio do pensamento filosfico, voltado tam-bm importncia da vtima na gnese criminal, cabe a citao daqueles que foram os mais considerveis desbravadores do estudo vitimolgico: Hans Von Hentig e Benjamim Mendelsohn.

    Anterior a Mendelsohn, Hentig desenvolveu a perspectiva vitimolgica sob a relao criminoso/vtima, evidenciando apenas o carter relevante de contribuio ou no desta para a realizao do crime. J Mendelsohn apro-fundou o estudo, analisando a vtima como objeto nico de estudo, visando vtima sob a ptica psicolgica e social. Mendelsohn sistematizou o estudo atravs de outras reas do conhecimento, atribuindo vitimologia carter autnomo como cincia. Por isso, Mendelsohn considerado o pai do estu-do vitimolgico.

    Sob a perspectiva de Hentig, criminoso e vtima classificam-se em trs grandes grupos. O primeiro consubstancia criminoso e vtima como uma interpolarizao, ou seja, dentro dos fatos, o criminoso pode tornar-se vtima (Ocorre quando o delinquente passa a sofrer as sanes sociais do seu meio social) ou a vtima torna-se criminoso (quando vitimada continuamente; termina por transformar-se em criminoso). O segundo o caso em que o indivduo criminoso e vtima simultaneamente. Exemplos de simultanei-dade so o suicida, os duelistas, ou quando a lei decide quem o indivduo criminoso ou no. O terceiro grupo formado por desdobramentos da per-sonalidade do agente, transformando-o em vtima ou criminoso, sem carac-terizao precisa de sua qualificao, tamanha instabilidade do indivduo, devido haver, em seus atos, contrariedade ao bom senso. So os atos impul-sivos, repentinos. Para Hentig, estes estados podem ser ocasionais, crepuscu-lares, reflexos e de cegueira, deslumbramento, ofuscao, aturdimento. Em 1957, Hentig, em trabalho sobre a psicologia dos delitos, prope a diviso das vtimas em resistentes, cooperadoras ou coadjuvantes.

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    A classificao de Mendelsohn adota uma postura mais ampla devido ao seu alargamento ao carter multidisciplinar em que est baseada. Pri-meiro Mendelsohn conclui por uma diviso classificatria da vtima em trs grandes grupos:7

    1 Vtima inocente ou ideal, uma vez que no teve a menor participao no resultado; 2 Vtima provocadora, imprudente, voluntria e ignorante, caracterizada pela evidente participao prestada aos fins queridos pelo agente; 3 Vtima agressora, simuladora e imaginria, que na verdade deve ser consi-derada como suposta vtima, uma vez que, na realidade, deve ser tipificada co-mo coautora do resultado querido pelo agente.

    Depois, segundo Ester Kosovski, Mendelsohn complementa a sua classificao na seguinte estrutura:8 1. Mecanismos situacionais

    Do ponto de vista moral e jurdico: a) vtima que colabora; b) vtima que no colabora; c) vtima por ignorncia; d) vtima que pratica o crime. Do ponto de vista psicossocial: a) vtima em cuja conduta est a origem do delito; b) vtima que resulta de consenso; c) vtima que resulta de uma coincidncia.

    2. Mecanismos relacionais Relaes psicobiolgicas, neurticas e genobiolgicas: a) vtima de crimes; b) vtima de si mesma, suicdio, autoacusaes, autopunies.

    Assim se segue uma srie de classificaes acerca da vtima. A conhe-cer a de Jimnez de Asa determinando uma nova tipologia de vtimas, classificadas em indiferentes, indefinidas ou inominadas, e vtimas deter-minadas. No obstante as inmeras classificaes, somos da opinio de que a tipologia de Meldelsohn a mais completa, consequentemente, contribu-tiva ao estudo da vitimologia.

    7 PIEDADE JNIOR, Heitor. Vitimologia. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos, 1993. p.

    100. 8 KOSOVSKI, Ester. Disponvel em: . Acesso em: 29 jul. 2009.

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    3. Vitimizao

    Sem maiores pormenores, vitimizao o processo pelo qual o agente est sujeito a se tornar vtima ou torna-se efetivamente vtima, seja com culpa ou sem culpa. a ao ou efeito de algum (indivduo ou grupo) se autovitimar ou vitimizar outrem (indivduo ou grupo). processo median-te o qual algum (indivduo ou grupo) vem a ser vtima de sua prpria conduta ou da conduta de terceiro (indivduo ou grupo), ou de fato da natureza.9 Segundo Elaine Castelo Branco,10 vitimizao o processo que leva uma pessoa a se vitimizar ou a se tornar vtima.

    Llio Braga Calhau11 separa vitimizao em trs momentos. Vitimiza-o primria ocorre no momento do crime, sendo de sofrimento direto. Secundria ou sobrevitimizao ocorre quando a vtima procura o sistema criminal com o intuito de saber os seus direitos, pedir providncias contra o acusado ou tentar a reparao do dano. Alm disso, a vitimizao terci-ria trata do direito da vtima do sistema prisional.

    Ento, no processo vitimatrio que se molda o perfil vitimal, ou se-ja, consumada a leso ao direito, estabeleceu-se quem vtima e quem vitimrio. Porquanto a vtima, atravs da vitimologia, faz-se uma anlise objetiva (fatos efetivamente produzidos pela ao da vtima) e subjetiva (todos os pormenores delineados pelas motivaes psicossociais da vtima ao resultado) de sua contribuio consumao do fato tpico.

    neste ponto, por exemplo, que o julgador dever levar em conta to-dos os pormenores conduzidos pela vtima, de forma que a anlise totalit-ria dos fatos aponte, embasada na globalidade factual, uma deciso justa.

    4. Anlise de caso

    Grande questo doutrinria a violncia presumida estipulada pelo antes artigo 224;12 agora, segundo alguns autores, revogado pelo artigo 217 A, do Cdigo Penal. Consequncia da ampla discusso e, principalmente,

    9 PIEDADE JNIOR, Heitor. Vitimologia. Rio de Janeiro: Biblioteca Freitas Bastos, 1993, p. 90. 10 BRANCO, Elaine. Anlise da vtima na consecuo dos crimes. Disponvel em:

    . Acesso em: jul. 2009.

    11 Promotor de Justia do Ministrio Pblico do Estado de Minas Gerais. Ps-graduado em Direi-to Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela UGF-RJ. Autor do livro Resumo de criminologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

    12 Segundo novas publicaes, revogado pela Lei 12.015 de 2009.

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    do carter desbravador da jurisprudncia, foi a promulgao da nova legis-lao que alterou os dispositivos do Cdigo Penal no que concerne aos crimes contra a liberdade sexual. A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, excluiu definitivamente a presuno de violncia do artigo 224, observan-do a relatividade dessa violncia presumida no CP. Essa considervel mu-dana ao tpico penal se deu luz daquilo que foi, por muito tempo, con-siderado entendimento de vanguarda dos juristas.

    O caso analisado para este trabalho trata de constrangimento conjun-o carnal de menor de quatorze anos, o antes chamado estupro presumido. Houve condenao em primeira instncia. Subido o recurso, o ru foi absol-vido nos termos da sentena. Em conformidade com as provas testemunhais aladas nos autos, o relator exps que a vtima j possua experincia sexual anterior aos fatos consumados na casa do ru, o que foi confirmado pelo prprio depoimento da vtima. Da mesma forma e em primeiro momento, a vtima relata que foi ameaada com revlver pelo acusado, mas acrescenta que faltava aula para ir casa do ru, o que considerou o relato contradit-rio. Somado conduta vitimal, constatou o relator que a citada vtima ia at a casa do ru para prover-se de dez reais por visita, no restando demons-trado ainda a sua incapacidade de oferecer resistncia ante a ao do ora ru; pelo contrrio, instigada por uma amiga que tambm fazia visitas casa do agora ru, a vtima persistia na conduta e no ganho financeiro, tanto que nunca comentou nada com ningum. Outras testemunhas relataram nunca ter visto a vtima sozinha na casa do acusado.

    Diante disso, a sentena absolveu o ru. Sem impacto emocional, devido vtima ter doze anos ao tempo dos

    acontecimentos, no caso analisado, observa-se, por meio da deciso dos desembargadores e principalmente pelo delineamento dos fatos atravs do processo, a relativizao da violncia contra menor de quatorze anos. A deciso data de abril de 2009, portanto anterior Lei 12.015/2009. Ca-be ressaltar que a relativizao da violncia presumida vem sendo aplicada desde muito nos julgados.

    Primeiro, devemos ressaltar a posio do tribunal que, sob o enten-dimento do conjunto dos elementos do crime (acusado/vtima/ato deliti-vo), vislumbra a vtima como inserida no contexto criminal. Foi a partir disso que o entendimento relativizao moldou-se nos tribunais. Tendo sempre em vista o avano da sociedade, entender presuno de violncia pelo parmetro idade, principalmente pela conjuntura atual da sexualidade na adolescncia, no era mais condizente para o Direito.

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    Entender o conjunto dos atos de todos os elementos do crime cru- cial ao julgador para chegar quela concluso sentencial. Assim, no caso em comento, at a consumao do fato (trata-se de crime continuado), todas as atitudes da vtima, no decorrer do tempo, delinearam ao julgador uma postura positiva para a conduta delitiva do ru. Essa conduta positiva facilitadora lascvia do acusado que, vendo a possibilidade de saci-la, praticamente no age, tendo, assim, suprido seu sentimento desejoso.

    Muito embora o ru tenha maior idade, devendo este regrar suas con-dutas pela moralidade legal, abstendo-se ao ato lascivo com uma menor, no este fato que analisamos no momento, caso contrrio apenas verifica-ramos o quantum da culpa do acusado.

    Em vitimologia, estuda-se a conduta vitimal, o que, aplicado ao caso em anlise subsidia, e muito, o discurso. Segundo a classificao de Men-delsohm, podemos assim classificar a vtima do caso como menor que, de espontnea vontade, ia casa do ru, j tendo ela experincia sexual sufici-ente para definir o que estava fazendo e, principalmente, sob expectativa financeira. Podemos dizer que tal perfil se molda ao segundo grande grupo vitimal: Vtima provocadora, imprudente, voluntria e ignorante, caracteriza-da pela evidente participao prestada aos fins queridos pelo agente.

    Especificamente, ainda sob a classificao de Mendelsohm, a vtima , atravs dos mecanismos situacionais: do ponto de vista moral e jurdico, vtima que colabora; do ponto de vista psicossocial, vtima em cuja condu-ta est a origem do delito.

    De outro lado, podemos interpretar a espontaneidade da vtima para o crime atravs do estudo antropolgico, sociolgico, psquico, etc., algo que careceria de maior amplitude na historicidade da vtima, o que restringido pelo julgado analisado. De qualquer forma, pode-se depreender que uma possvel vulnerabilidade social da menor seria um fator considervel para a sua conduta. Antropologicamente, devido ao relato da participao de uma amiga da vtima para a conduta, podemos delinear, no caso, uma conduta social conjunta, o que estudado em um conjunto social (adolescentes daque-la localidade) seria, para eles, normal. Pode-se tambm levar em conta a psi-que da menor, que formada por um convvio familiar aberto quanto sexua-lidade, de tal modo que, junto com o fato da proximidade entre vtima e autor, corrobora, em forte probabilidade, a iminncia do crime. Assim, ten-do em vista todos os pormenores das subjetividades na vida da vtima, tanto em seu meio de convvio (fatores sociais) quanto os efetuados que possibili-tam ao agente consumar o crime, estes so muito mais que relevantes, so de

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    extrema importncia. No caso comentado, o julgador, em sede de apelao, subsidiou-se substancialmente atravs das oitivas e dos depoimentos teste-munhais, de forma que, no seu ntimo, restou-lhe, acertadamente em nossa opinio, a deciso inevitvel da absolvio.

    De qualquer sorte, clara a amplitude em que a vtima deve ser visua-lizada dentro do contexto, tanto do ato criminis como na conjuntura social em que ela formada e est inserida. Leigamente pode parecer para alguns uma deciso contrria, por exemplo, aos costumes, mas devemos lembrar que tal posicionamento seria uma mera expectativa social, no sendo con-dizente dentro de uma legalidade formada pela atualidade sociolgica.

    Consideraes finais

    Dentro do exposto, no resta dvida acerca da importncia conjuntu-ral que a conduta da vtima exerce sobre o ato ilcito no qual faz parte. O desenrolar do prprio fato-crime pode depender ou no, no todo ou em parte da vtima, de forma que imprescindvel considerar a vtima como elemento puro e conjunto tanto do crime como da imposio da vontade do agente em relao prpria vtima. Deixar de considerar a vtima nessa perspectiva, levando em conta apenas elementos clssicos de crime, no evoluir na sociologia criminal.

    Qualquer fato penal est alavancado por uma ao ou omisso do homem, portanto, em se tratando da vontade dos agentes, a atuao no prescinde a subjetividade dos sujeitos envolvidos, tanto da vtima como do delinquente. Em relao vtima, o nvel de subjetividade em sua ao ou omisso, ou at mesmo seus atos anteriores e posteriores ao fato de-monstraro a verdadeira face daquela que, por muito tempo, foi tida co-mo mera prejudicada pelo vitimizador.

    Bastante claro o fato de que a sociedade muda constantemente em vicissitudes. Essas so transferidas para todos os atos cometidos por essa sociedade, e, assim, o intelecto e as vontades levam as pessoas s mais impensveis atitudes. Hoje, pela complexidade sistmica social e de Esta-do, obter vantagem ilcita eleva-se a um nvel considervel de conheci-mento. Diante disso, colocar-se em posio do agente do ilcito ou como vtima desse ilcito no compe necessariamente a ordem de quem leva vantagem em qu. Com isso, fica evidente a ateno que deve ser deferida vtima para o estudo criminal.

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    Por fim, no se quer neste trabalho distorcer o entendimento de for-ma a colocar a vtima na mesma vala que o delinquente. O que se demons-tra so consideraes amplas que se deve ter s atuaes dos envolvidos no fato-crime. Definitivamente, j no cabe atribuir vtima apenas o carter consequente do criminoso, mas sim, como um fator determinante para os fatos. O reflexo de tal posicionamento est em sede processual penal que, no exemplo do artigo 59 do CP citado acima, aufere-se uma maior equi-dade na aplicao da pena.

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    Recebido em 21/04/2010, aprovado em 02/06/2010.