video ergo non sum: sobre a imagem própria e os espelhos

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trabalho de conclusão de curso

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Design do Centro Universitár io Senac Santo Amaro, como requis ito parc ia l à obtenção do t í tulo de Habi l i tação em Comunicação Visual .

Or ientador : Prof. Luciano Mariussi.

S O B R E A I M A G E M P R Ó P R I A E O S E S P E L H O S

F E R N A N D O L O P E S

São Paulo

2012

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“ E s t o u s ó e n ã o h á

n i n g u é m n o e s p e l h o . ”

J o r g e L u i s B o r g e s

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O presente trabalho de conclusão de curso tem por objetivo a produção de uma videoinstalação que re!ita sobre a imagem-própria no espelho e nas imagens reproduzidas por câmeras. No início do texto, com base nas re!e-xões de Umberto Eco e Edgar Morin, discutimos a veracidade da imagem especular e seu poder revelador do duplo do sujeito. Em seguida, com fun-damentação em Philippe Dubois, abordamos o desvelamento do duplo a partir de imagens produzidas por re!exo: a fotogra"a, o cinema e o vídeo. Por "m, apresentamos o projeto da videoinstalação.

P A L A V R A S - C H A V E :Duplo, espelho, imagem-própria, vídeo.

R E S U M O

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#is graduation project proposal is to produce a video installation that re!ects about the self-image in the mirror and in images reproduced by cameras. First, based on Umberto Eco’s and Edgar Morin’s re!ections, we discuss the truth of the mirror image and its power to reveal the double. #en, grounding in Philippe Dubois, we approach the double’s disclosure in re!ection based images: photography, "lm and video. Finally, we present the video installation project.

P A L A V R A S - C H A V E :Double, mirror, self-image, video.

A B S T R A C T

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I N T R O D U Ç Ã O 10

D A I M A G E M E S P E C U L A R : E N T R E O E U E O O U T R O 14

D O S E S P E L H O S C O N G E L A N T E S : F O T O G R A F I A , C I N E M A E V Í D E O 22

O P R O J E T O 30

R E F E R Ê N C I A S 41

L I S TA D E F I G U R A S 43

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S U M Á R I O

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I N T R O D U Ç Ã O

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Seja no re!exo da água, na sombra ou no espelho, a experiência com a imagem própria causa fascínio há tempos. O Mito de Narciso é conhecido desde o início da civilização ocidental e deu origem ao termo narcisismo e seu uso em teorias psicanalíticas.

De acordo com o mito, Tirésias já havia declarado que Narciso teria uma longa vida desde que não visse seu re!exo – a descoberta de sua bele-za, ou, ver-se como os outros o viam seria seu "m. Ao duplicar o eu em um outro, nos vemos em uma ambígua situação de identi"cação e estranha-mento, que é base para a formação do Eu:

O eu é como Narciso: ama a si mesmo, ama a imagem de si mesmo (…) que ele crê no outro. Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo é a fonte do amor, da paixão, do desejo de reconheci-mento, mas também da agressividade e da competição (QUINET, 1995:7 apud SANTAELLA e NÖTH, 2005:189).

O tema do presente trabalho é a captura da imagem pelo sujeito, no espelho e em imagens reproduzidas pelas câmeras fotográ"ca, de cinema e de vídeo. A re!exão teórica e as referências artísticas que discutem a du-plicação do indivíduo são a base para a construção do trabalho audiovisual que explore a relação de um sujeito com a sua imagem.

No primeiro capítulo, introduzimos a imagem especular plana e apontamos as características que nos interessam: o espelho plano parece ser uma janela para um mundo duplicado. Em seguida, discutimos e for-mulamos que a imagem que vemos no espelho não é um signo – não repre-senta algo ausente – e portanto, diz a verdade, re!ete os raios luminosos exatamente como chegaram ao espelho.

Por ser um fenômeno praticamente único, no qual vemos o mundo visível re!etido, apresentamos as relações entre essa experiência e a nossa percepção: enquanto bebês, temos a primeira experiência marcante com o espelho – conhecida como estádio do espelho. Então, discutimos o cará-

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ter revelador que tal experiência proporciona aos adultos, aqueles que já compreendem a natureza e usam o espelho em seu dia-a-dia: o espelho é o desvelador do duplo. Aqui, apresentamos o conceito de duplo e re!etimos acerca do que este interfere na formação do sujeito: a relação de distancia-mento e aproximação consigo mesmo, ou o reconhecimento do eu-outro da imagem duplicada.

O segundo capítulo aborda as tentativas de produzir imagens mate-riais com o poder de duplicação dos espelhos. Tomando como "o condutor uma analogia feita por Umberto Eco entre espelhos e fotogra"a, cinema e vídeo – os possíveis espelhos congelantes – apresentamos as caracterís-ticas e diferenças de cada um desses meios em relação ao interesse deste trabalho: a imagem própria, agora paralisada na fotogra"a, reproduzida com movimento no cinema ou copiada em tempo real pelo vídeo.

O capítulo 3 apresenta o processo de concepção da videoinstala-ção relacionado-a às re!exões produzidas nos capítulos anteriores – bem como as etapas da produção videográ"ca e diretrizes para a montagem do espaço instalativo.

Anexo a este volume, há um cd com uma simulação em vídeo da videoinstalação. Essa simulação também pode ser vista online em http://videoergononsum.tumblr.com. A versão do site pode estar mais atualizada pois serão feitos ajustes após o fechamento deste impresso.

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D A I M A G E ME S P E C U L A R :E N T R E O E U

E O O U T R O

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O espelho é considerado uma das maiores invenções da humanidade e sempre foi visto como objeto que tem poderes sugestivos, mágicos e mí-ticos. Até o Renascimento, quando começaram a ser produzidos em Vene-za do modo que conhecemos hoje (vidro laminado com prata), o homem só podia ver seu re!exo em metal polido ou na água (estática e deposi-tada horizontalmente) – desse modo, praticamente não havia a possibi-lidade de nos depararmos com nossa imagem apresentada verticalmente (RONCALIO, 2003).

Tais superfícies planas re!etem por completo os raios luminosos incidentes e nos dão uma imagem virtual, correta, invertida e de tamanho igual ao do objeto re!etido. Os espelhos convexos, por exemplo, apresen-tam uma imagem também correta e invertida, mas menor que a do re-ferente real (ECO, 1989). Reconhecemos com mais facilidade os espelhos convexos como objetos propriamente ditos, enquanto que os planos, dão a impressão de janela para o virtual, um mundo especular e de especulação sobre a realidade – e é justamente por isso que nosso estudo se foca nesse tipo de experiência.

Eco (1989) propõe que, assim como são os óculos e binóculos, os espelhos são próteses para os nossos olhos e con"amos neles. A imagem especular é tão verdadeira que causa certa confusão: ao vermos nosso re-!exo, entramos no mundo do espelho e esquecemos que estamos vendo apenas nossa imagem e não nós mesmos.

Notamos tal mal entendido quando pensamos, por exemplo, que o relógio que usamos no punho esquerdo, está na direita, na imagem espe-cular. O autor explica que

O espelho re!ete a direita exatamente onde está a direita, e a es-querda exatamente onde está a esquerda. É o observador (ingênuo, mesmo quando físico por pro"ssão) que, por identi"cação, imagina ser o homem dentro do espelho (ECO, 1989:14).

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Apesar desse estranhamento com tamanha similaridade que essa experiência proporciona, Eco (1989) declara que os humanos já sabem usar o espelho: temos consciência que não existe um homem dentro do espelho e que devemos atribuir direita e esquerda ao homem que mira o espelho, e não aquele que parece mirar o observador.

Para entendermos melhor a natureza da imagem especular, aponte-mos aqui duas de"nições de um mesmo dicionário:

“Espelho, sm. ‘qualquer superfície re!etora’ ‘(Opt.) superfície re-!etora constituída por uma película metálica depositada sobre um dielétrico polido’” (CUNHA, 2010:264).

Em ambas as de"nições apontadas, há a palavra superfície. O que vemos no espelho é superfície, é uma imagem bidimensional, assim como as fotogra"as, pinturas e gravuras. Esse tipo de imagem representa um objeto, ideia ou emoção e tem, de forma evidente ou não, a intenção de quem a produz. Como apresenta Peirce, representar é “estar para, quer di-zer, algo está numa relação tal como um outro que, para certos propósitos, ele é tratado por uma mente como se fosse aquele outro” (PEIRCE apud SANTAELLA e NÖTH, 2005:17).

Gravuras, pinturas e fotogra"as são signos. Como esclarecem San-taella e Nöth (2005:16), “O conceito de representação encontra-se prin-cipalmente no conceito inglês representation(s) como sinônimo de signo”. Eco (1989) inicia seu ensaio Sobre os espelhos, justamente questionando se a imagem especular é um signo, ou seja, se é fenômeno semiósico. O autor apresenta: “A semiose é o fenômeno, típico dos seres humanos (...) pelo qual – como diz Peirce – entram em jogo um signo, seu objeto (ou conteúdo) e sua interpretação.” (ECO, 1989:11).

Para ser tomada como ícone, é necessária “uma ima-gem que contenha todas as propriedades do objeto representado” (IBIDEM:19). Podemos, ingenuamente, confundir a imagem especular com este tipo de signo denominado ícone. Porém, o autor de"ne: a ima-gem do espelho é duplicata do que está no seu campo estimulante e um desenho, por exemplo, é um ícone feito para realizar algo que não pode ser feito sem um espelho.

Para que algo seja tomado como signo, deve existir uma relação na qual um fenômeno antecedente seja o revelador do consequente ausente, sendo essa uma implicação de ordem lógica e não necessariamente crono-lógica. Se vemos fumaça (antecedente) e não vemos uma chama (conse-quente), tomamos a fumaça como revelador de um evento que não pode-mos ver: o fogo. No caso, a chama não está ao meu alcance perceptivo ou ela não existe mais – caso eu pudesse ver a fumaça saindo da chama, não precisaria identi"cá-la como signo do fogo (ECO, 1989).

A relação entre fumaça e fogo, é uma formulação lógica que cons-truímos generalizando: o fogo produz fumaça, portanto se vemos fumaça, há de ter existido ou existir fogo, sem que necessariamente essa fumaça que vejo seja de determinada chama: a relação ocorre entre tipos, e não

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entre ocorrências. Além disso, posso fazer fumaça quimicamente sem ter existido fogo, ou seja, o signo pode ser usado para mentir (IBIDEM).

Segundo Eco (1989), no caso do espelho, o referente do re!exo não pode estar ausente. “É relação entre duas presenças, sem nenhuma me-diação” (ECO, 1989:25). A ligação entre o antecedente e o consequente é causal: vejo este homem por ele estar, nesse momento, a frente do espe-lho – portanto, é relação entre ocorrências. Não posso usar o re!exo do espelho para mentir sobre uma presença. Já que não posso ver a imagem de tal homem se ele não está próximo ao espelho, a imagem especular não é reveladora de algo ou alguém ausente, e, portanto, não é signo e não se enquadra como semiósica.

O Dicionário Etimológico na Língua Portuguesa do qual tiramos a de"nição de espelho anteriormente sustenta essa distinção entre as ima-gens sígnicas e a especular:

Imagem, sf. ‘representação de um objeto pelo desenho, pintura, escultura etc.’ ‘reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu’ ‘re!exo de um objeto no espelho ou na água’ (CUNHA, 2010:350).

Como aponta Eco (1989:17), “partimos sempre do princípio de que o espelho ‘diga a verdade’”. O espelho sequer inverte a imagem, como acon-tece nas fotogra"as reveladas, para dar maior ilusão de realidade: apresen-ta uma duplicata absoluta do que se põe a frente do seu campo estimulan-te. Já por volta do ano 8, em Metamorfoses, de Ovídio, o caráter revelador que a experiência com o espelho proporciona já havia sido identi"cado:

E Helena choraAo ver que seu rosto tem rugas, quando se olha no espelho:Poderia essa velha mulher ter sido arrebatadaPor duas vezes? O tempo devora todas as coisasJunto com a idade invejosa (OVÍDIO, 2003:310).

Eco (1989:17) apresenta exemplo similar: “Ele diz a verdade de modo desumano, como bem sabe quem – diante do espelho – perde toda e qualquer ilusão sobre a própria juventude”.

Por ser uma experiência única, na qual nos enxergamos duplicados em imagem simultânea e nos percebemos como os outros nos vêem, La-can a"rma que “a percepção (ou pelo menos a percepção do próprio corpo como unidade não fragmentada) e a experiência especular caminham lado a lado” (LACAN apud ECO, 1989:12). Os estudos deste autor levaram-no a identi"car um período na formação da criança que "cou conhecido como estágio do espelho, estádio do espelho ou fase do espelho.

O estágio do espelho (ECO, 1989) acontece a partir dos seis meses de idade e é dividido em três momentos: a criança se vê no espelho e con-funde a imagem re!etida com a realidade; depois, entende que o que se vê é, de fato, uma imagem; e por último, compreende que é ela própria que está sendo re!etida. Esse reconhecimento (COSTA, 2006) deixa a criança em um

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estado de júbilo, e fazendo gestos diante do espelho “a criança reconstrói os fragmentos ainda não uni"cados do próprio corpo” (ECO, 1989:12).

A criança nasce (MILLER, 1977 apud SANTAELLA e NÖTH, 2005) prematura, incompleta, em desamparo, e esse estado jubiloso é consequ-ência da sua completeza formal antecipada em relação a formação do su-jeito, que só se efetivará, como apresenta Costa (2006), com a aquisição da linguagem e o convívio social – a identidade só se formará no confronto entre a realidade e a alteridade. Desse modo, (MILLER, 1977 apud SANTA-ELLA e NÖTH, 2005) a imagem que a criança vê é sua, mas também é um outro. Costa (2006:8) sustenta:

(...) o espelho assume por diversas vezes o papel de revelador e, ao mesmo tempo, de velador do duplo, desnudando o ser ao lhe contrapor os diversos seres que nele coexistem. Re"rimo-nos ao objeto que revela ao ser humano a sua incompletude, a possibilida-de de existência de várias identidades alienantes, as quais podem ser formadas por meio do reconhecimento de si no momento em que se mira no espelho.

Segundo Eco (1989), o simbólico a que Lacan se refere, é o semiósi-co – ainda que esteja se referindo à linguagem verbal – e a"rma que a fase do espelho é um fenômeno-limiar entre o imaginário e o simbólico, já que a experiência especular surge do imaginário, mas só efetivará a forma-ção do sujeito quando este participar do sistema simbólico. Como apontou Lacan (1996:98), em sua famosa conferência sobre o estágio do espelho em Zurique, Suíça:

A assunção jubilatória de sua imagem especular pelo ser ainda mergulhado na impotência motora e da dependência da lactância pelo homenzinho neste estádio de infans nos parecerá desde então manifestar, em uma situação exemplar, a matriz simbólica onde o eu precipita-se em forma primordial antes de se objetivar na dialé-tica da identi"cação ao outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.

Eco (1989) defende que a re!exão sobre a fase do espelho não exclui a importância de investigar o uso que os adultos fazem do espelho – se o espelho é marcante na ontogênese do sujeito, é também revelador na vida daquele que já produz signos e já se sente indivíduo. Morin (1997) exami-na que a estranheza do espelho é atenuada pela sua grande presença em nosso cotidiano e ainda sugere:

Só uma grande tristeza ou um grande choque, só a infelicidade nos faz quedarmo-nos espantados perante esse rosto estranho e esga-zeado que vemos re!ectido: o nosso rosto. É necessária a surpresa nocturna dum espelho para que o nosso fantasma, subitamente, dele se destaque, desconhecido, quase inimigo (MORIN, 1997:47).

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Costa (2006) ressalta que o escritor argentino Jorge Luis Borges, em Espelhos Velados, revela seu pânico aos espelhos. Para Borges, os espelhos trazem espanto mas também permitem a descoberta do seu outro – são uma ameaça à realidade e àquilo que se conhece de si. Estes objetos nos levam de encontro à identidade perdida e recobram a memória dispersa, pois ao re!etir sobre a realidade podemos alterá-la ou somente duplicá-la:

Quando menino, conheci esse horror a uma duplicação ou multi-plicação espectral da realidade, mas diante dos grandes espelhos. Seu infalível e contínuo funcionamento, sua perseguição de meus atos, sua pantomima cósmica eram então sobrenaturais, desde que anoitecia. Um de meus instantes de rogo a Deus e a meu anjo da guarda era o de não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietude. Algumas vezes temi que começassem a divergir da re-alidade; outras, ver neles meu rosto des"gurado por adversidades estranhas (BORGES:182 apud COSTA, 2006:53).

O espelho, ao duplicar em imagem o homem que se apresenta em seu campo estimulante, tem o poder de revelar o seu duplo: “A magia universal do espelho, que já estudamos algures, não é outra senão a do duplo” (MO-RIN, 1997:47). Com tal revelação, nos deparamos com a ambiguidade de um distanciamento – é desse jeito que o outro me vê – ao mesmo tempo de uma aproximação consigo mesmo – é assim que eu sou (RONCALIO, 2003).

O termo duplo, no sentido de duplicidade de um mesmo sujeito, surgiu no Romantismo Alemão e foi consagrado como Doppelgänger, cunhado por Jean-Paul Richter em 1876 e sua tradução remete a duplo ou segundo eu. A tradução literal é companheiro de estrada ou aquele que caminha do lado (COSTA, 2006). Morin (1997) a"rma que essa descoberta é uma experiência ao alcance de todos e não há dúvidas sobre presença e a existência do duplo: é visto no re!exo, na sombra, sentido no vento e presenciado nos sonhos. Sustenta: “cada um vive acompanhado do seu próprio duplo: não tenho uma cópia exacta, mas mais, contudo, que um alter ego: ego alter, um eu-próprio outro” (MORIN, 1989:44).

A qualidade do duplo é projetável sobre tudo: não somente em ima-gens mentais, como alucinações e sonhos, mas também em imagens mate-riais – a mão artesanal projeta o duplo em desenhos, pinturas e gravuras. Toda a tradição artística desde a pré-história tem um caráter de imitação, de duplicação, às vezes minuciosa, às vezes quase fotográ"ca. Porém, o re-!exo no espelho é fenômeno particular: para os homens primitivos, é o pró-prio duplo que se faz presente no re!exo do espelho ou da água (IBIDEM).

Destarte o inconsciente ser uma presença que chama para o duplo, a Psicanálise foi uma das correntes de pensamento que mais contribuiu para o estudo do duplo na modernidade. Sigmund Freud, em seu ensaio Das Unheimliche (O estranho), defende que a estética é uma teoria das qualidades do sentir, e não apenas uma teoria da beleza, e comumente estuda-se apenas o que é belo em detrimento do que pode horrorizar. A pa-lavra estranho não é facilmente de"nida, acaba por coincidir com o que é assustador e provoca medo. O psicanalista (FREUD apud COSTA, 2006:6)

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de"ne o estranho “como aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. No texto original, o termo uti-lizado é unheimlich, que signi"ca o que não pertence a casa, sobrenatural, misterioso e que suscita temor. Em contraponto há o adjetivo heimlich, que remete ao mesmo tempo a familiar e agradável, e o que está oculto ou fora da vista (COSTA, 2006).

O estranho evidenciado por Freud não é o que causa horror por ser desconhecido, mas sim por ser algo estranhamente familiar, assim como é o estranhamento que, por vezes, sentimos ao encararmos nosso duplo no espelho. De certa forma, esse estranhamento é causado pela relação de aproximação e distanciamento citada anteriormente. Para Lacan, “o eu é o ponto de máximo desconhecimento do sujeito, nenhum indivíduo pode ter uma visão totalmente objetiva de si mesmo” (LACAN apud RONCALIO, 2003:online). “Não se trata de saber se eu falo de mim conforme ao que sou, mas se, quando eu o falo de mim, sou o mesmo que aquele de quem eu falo” (IBIDEM: online). Em relação a analogia feita por Eco (1989:21):

se as imagens do espelho tivessem que ser comparadas às palavras, essas seriam iguais aos pronomes pessoais: como o pronome eu, que se eu mesmo pronuncio quer dizer “mim”, e se uma outra pes-soa o pronuncia quer dizer aquele outro

podemos acrescentar que tanto no uso do pronome quanto no uso do espelho, há a coexistência do distanciamento e da aproximação de si: quando enunciamos uma frase utilizando eu, há um rompimento, deixo de ser para me identi"car como um alguém e dizer algo sobre esse outro.

Morin (1997:44) ressalta que o duplo é “efectivamente universal na humanidade primitiva” e talvez seja o único grande mito universal. Uma das mais famosas referências ao duplo na mitologia é no mito de Narciso. Costa (2006) resume que Narciso era um jovem que, por sua beleza, era desejado por jovens, ninfas e deusas na Grécia. A mãe de Narciso regozi-java a sua beleza mas também sentia a angustia de não saber até quando poderia viver um ser tão belo. As divindades que se sentiam atraídas e eram desprezadas pelo jovem pediram a Nêmesis que este fosse condena-do a um amor impossível. Em certa caçada, Narciso se distanciou dos seus companheiros e, com muita sede, se aproximou de uma fonte e viu seu re!exo nas águas. Apaixonou-se pela sua própria imagem: “Estou seduzi-do, vejo (video), mas o que vejo e que me seduz, não posso pegar [assim é o narcisismo: Eu (me) vejo, portanto não sou, cesso de ser, renuncio – video ergo non sum]”(OVÍDIO apud DUBOIS, 2010:145). Sem escolha, ele se atira na água e se transforma em uma !or amarela com pétalas brancas no cen-tro, efetuando a ordenança de Nêmesis: o amor impossível era ele mesmo.

Costa (2006) defende que o mito interessa ao estudo do duplo por apresentar mais um caso do recorrente uso que autores fazem: o espelho é usado para revelar algo do homem. No caso de Narciso, era ocultada a sua própria beleza, e o re!exo na água desvendou seu destino e foi caminho para o autoconhecimento. As águas – que serviram de espelho a Narciso – agiram como oráculo involuntário: o jovem jamais se vira, então a imagem

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vista não é tomada como sua, mas a de um outro pelo qual ele se apaixona. Desse modo, o outro, o duplo, não é imediatamente identi"cado, mas esse conhecimento se dá a partir de um estranhamento inicial que esse outro ser nos causa – algo similar ao início da fase do espelho nos bebês.

Dessa forma, “podemos dizer que os espelhos são ‘realistas’, e que, ao ampliarem os espaços físicos, aplicados à alma humana, têm o poder de alargar a própria compreensão do viver humano.” (ROHDEN, 2008:342). Morin sintetiza com belas palavras esse poder adormecido que o desvela-mento do duplo estimula:

Essa qualidade de redução ou de ampliação, que lhe advém do des-dobramento, pode apresentar-se atro"ada ou adormecida devido ao próprio estado atro"ado ou adormecido do duplo; mas não dei-xa, por isso, de se encontrar potencialmente em todo e qualquer ser, em toda e qualquer coisa, mesmo no próprio universo, desde que eu seja visto através do espelho, do re!exo ou da recordação. A imagem mental e a imagem material ampliam ou reduzem po-tencialmente a realidade que dão a ver; irradiam a fatalidade ou a esperança, o nada ou a transcendência, a amortalidade ou a morte (MORIN, 1997:48-49).

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Desde os primórdios, o homem tenta projetar em imagens materiais a qualida-de de duplicação da realidade que os espelhos engendram. Já na pré-história, identi"ca-se uma “tendência realista através da reprodução "el das silhuetas e da verdade das formas” (MORIN, 1997:46). Apesar de pouco similares com a imagem que chega até nossos olhos, essas imagens eram verdadeiros duplos mediadores e possibilitavam ações sobre os originais (IBIDEM).

Qualquer imagem produzida pelo homem, requer uma tecnologia para poder ser concebida. Apesar do vocábulo ser comumente relacionado às in-venções e instrumentos da informática, originalmente o termo remete, sim-plesmente, a um saber-fazer. Desse modo, mesmo as imagens de mãos nega-tivas na caverna de Pech Male (datadas de dezenas de milhares de anos), são “produtos tecnológicos”, pois são oriundas de um dispositivo técnico: um tubo vazio, pigmento em pó, o sopro, um muro-tela, uma mão modelo e uma dinâ-mica particular de usar todos esses elementos (DUBOIS, 2004).

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Nos últimos dois séculos, algumas invenções introduziram em seu dis-positivo uma dimensão maquínica de maneira crescente: a fotogra"a, o cine-matógrafo e a televisão/vídeo. Cada uma encarna uma tecnologia e, de certa forma, traz uma inovação radical em relação à surgida anteriormente (IBI-DEM). Essas tecnologias permitem que a duplicação da aparência do mundo se dê de forma automatizada, sem a necessidade do longo processo da criação manual das imagens, como na pintura ou no desenho – são frutos de re!exo:

(...) a imagem é o resultado do registro sobre um suporte quími-co ou eletromagnético (cristais de prata da foto ou a modulação eletrônica do vídeo) do impacto dos raios luminosos emitidos pelo objeto ao passar pela objetiva (SANTAELLA e NÖTH, 2005:165).

e portanto, nesse sentido, são similares às imagens que vemos no espelho.

A fundação dessa forma de "guração mimética se deu no Renasci-mento, com os instrumentos ópticos como a camara obscura e a tavoletta, os quais utilizavam o recente modelo perspectivista monocular e a luz re!e-tida pelos objetos para orientar os artistas na reprodução do visível. Eram instrumentos de ver, ajudavam a organizar o olhar do pintor ou desenhista, mas nenhum projetava efetivamente sobre um suporte (DUBOIS, 2004).

Com a imagem fotográ"ca, no início do século XIX, a máquina não somente organiza a visão e facilita a apreensão do real, mas por meio de reações químicas com materiais fotossensíveis, registra a aparência do que se põe a sua frente. O processo de constituição da imagem é “automático”, “objetivo”, o gesto manual do pintor é substituído pelo gesto de condução da máquina (IBIDEM). Em sua “Ontologia da imagem fotográ"ca”, André Bazin ressalta:

A originalidade da fotogra"a em relação à pintura reside em sua objetividade essencial. (...) Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação, nada se interpõe a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, auto-maticamente sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo (BAZIN apud DUBOIS, 2004:41).

Eco (1989:13) propõe imaginarmos uma experiência fenomeno-lógica: imaginemos um espelho congelante, no qual a imagem permanece mesmo quando o referente desaparece. A relação de ausência entre an-tecedente e consequente "nalmente acontece: “espelho congelante é a chapa fotográ"ca” (IBIDEM).

A chapa reproduz em altíssima de"nição, com comprimentos de onda, relações de intensidade e contornos – porém, é vestígio, é um re-gistro, ou seja, é semiósico. Todavia, temos uma convicção pragmática de que a câmera diz a verdade como o espelho e atesta a presença do objeto que causou a imagem (IBIDEM). Contudo, há o programa da máquina fo-tográ"ca, as diferentes objetivas e seus resultados visuais, as especi"cida-des do "lme, entre outras variáveis que sabemos que in!uem no resultado

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fotográ"co e não permitem atestarmos a fotogra"a como algo que diz a verdade tal qual a imagem especular.

Não podemos ignorar, porém, o fato de que “a chapa traduza os raios luminosos em outra matéria” (ECO, 1989:33), ou a “(...) própria na-tureza da fotogra"a, misto de re!exo e de sombra. Se abstrairmos da cor, a fotogra"a é puro re!exo, análogo ao do espelho.” (MORIN, 1997:50). A imagem fotográ"ca tem, assim como o espelho, a qualidade de apresentar o sujeito duplicado em imagem – o homem se reconhece na fotogra"a e se vê de fora, pelo ângulo da câmera. Porém, há aí a novidade: o re!exo é congelado e torna-se um objeto. “É o tema bem conhecido da ‘revelação ‘fotográ"ca: a fotogra"a mostra o mundo de uma maneira invisível a olho nu, permite ver ‘coisas normalmente não vistas’” (AUMONT, 2002:307). Nesse processo semiósico, há a introdução de uma dimensão temporal na duplicação, algo que não existe na relação especular – o recorte espaço-temporal da fotogra"a vira memória de um instante do duplo.

Após das máquinas de pré-visão (que ajuda a olhar e a desenhar a imagem) e das máquinas que permitem, além disso, a inscrição (a fotogra-"a), surgiu o cinematógrafo, no qual a máquina se faz necessária para a re-cepção da imagem: só podemos ver a imagem-movimento cinematográ"ca pela projeção. Sem a projeção, vemos o rolo cinematográ"co composto por imagens "xas, ou seja, sua parte fotográ"ca (DUBOIS, 2004).

Eco (1989) propõe uma segunda experiência com espelhos congelan-tes: a imagem congelada se move. Porém, é vestígio, o referente não está pre-sente, como é o caso do espelho – além de da inevitável gramática da monta-gem, que permite efeitos de mentira e universalização. Para Morin (1997:55),

A projeção e a animação acentuam, conjuntamente, as qualidades de sombra e de re!exo implícitas na imagem fotográ"ca. Se é um facto que a imagem do ecrã se tornou impalpável e imaterial, tam-bém adquiriu, ao mesmo tempo, uma maior corporalidade (graças [...] ao movimento).

O cinematógrafo expõe à humanidade as primeiras imagens em movimento com fantástica impressão de realidade. Esse recorte espaço-temporal inaugurado pelo cinematógrafo apresenta, na perspectiva deste estudo da imagem-própria, a mesma pragmática que mídias posteriores como o videotape e o vídeo digital. Segundo Eco (1989:35):

Uma transmissão televisiva em vídeo-teipe não se distingue, quanto ao comportamento pragmático a que induz, de uma proje-ção cinematográ"ca, exceto por diferenças na de"nição da imagem e no tipo de estímulo sensorial veiculado até os olhos.

Essa pragmática de desvelamento do duplo é, assim como na foto-gra"a, uma "xação do duplo em um tempo passado e que se torna memó-ria e documento (ao contrário da duplicação fugidia do espelho), porém, esse congelamento apreende não apenas uma fração de segundo, mas um período de tempo – que ao ser assistido, mostra-se animado, com movi-

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mentos muito similares ao que foi visto no momento próprio que a câmera entrou em ação.

Ao nos vermos na tela, surgimos exteriores a nós próprios e ao mesmo tempo, idênticos. Ao ouvirmos nossa voz gravada, ela é sempre estranha, semiestrangeira. É essa a contraditória sensação que o cinema-tógrafo proporciona: “eu e não-eu, ou seja, no "m das contas, ego alter” (IBIDEM:57). Jean Epstein (apud MORIN, 1997:57) questiona:

Para melhor ou pior, o cinematógrafo, ao registrar e reproduzir um indivíduo, transforma-o e recria-o sempre numa personalidade segunda, cujo aspecto pode perturbar a consciência ao ponto de esta perguntar a si própria: quem sou eu? Qual a minha verdadeira identidade?

Morin (1997) cita o exemplo de um nômade iraniano que, ao ver-se na tela, levanta-se e exclama: “olhem, lá estou eu!”, e a"rma que nesse mo-mento está perceptível o duplo sentimento de alteridade e de identidade. Em um mesmo instante, o iraniano espanta-se com seu duplo estranho, admira-o e então assimila-o, com orgulho. O autor sustenta que esse sentimento é evidenciado nas manifestações que temos perante nós próprios na tela: rimos, e o riso é reação polivalente de emoção. Pode signi"car embaraço, vergonha camu!ada ou a súbita sensação de nosso ridículo. Na maior parte das vezes, agimos como se a câmera fosse arrancar nossa máscara o"cializa-da e desvendar, a nós e aos outros, a nossa alma inconfessável.

Com o recurso da projeção, a história das máquinas de imagens con-cluiu uma trajetória de pré-visão, inscrição e pós-contemplação – cada uma adicionando uma dimensão maquínica à máquina anterior. Mas esse movi-mento não estagnou, e o advento da televisão ao vivo e posteriormente do vídeo, promoveu um quarto estrato maquínico, superpondo os três anterio-res: a possibilidade de transmissão a distância, ao vivo e multiplicada.

A transmissão em vídeo é similar a uma série de espelhos que tra-zem aos nossos olhos a imagem de um objeto a distância – tem relação absoluta com o referente. No lugar dos espelhos, há um aparato que trans-forma os raios luminosos do objeto em sinais elétricos e um outro que retransforma em sinais ópticos (IBIDEM). Segundo Flusser (1991: online):

A genealogia do vídeo nada tem a ver com a representação sim-bólica da realidade, com “arte”, como o é o caso do "lme. A árvore genealógica do "lme é: afresco-pintura-fotogra"a. O do vídeo é: superfície da água-espelho-lente. O vídeo é, por sua origem, ins-trumento epistemológico: instrumento para ver a realidade.

A imagem videográ"ca da transmissão ao vivo é animada e tem a impressão de realidade de uma "ta gravada ou de um "lme cinematográ-"co, porém, não é registro do passado. Se apresenta em tempo real, re-!etindo quase instantaneamente o que se põe a frente da câmera, assim como o espelho re!ete imediatamente o que está a frente do seu campo estimulante. À essa duplicação imediata análoga ao espelho, o vídeo em

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tempo real acrescentou a possibilidade da separação entre o que é re!etido e onde este é re!etido – no espelho, o campo estimulante corresponde à área que a re!exão é mostrada. Nesse sistema de vídeo, o sujeito pode ser copiado e mostrado em outro espaço, ao mesmo tempo. Além disso, essa duplicação difere-se da especular e aproxima-se das citadas anteriormente na forma de construção da imagem: é codi"cada com base na perspectiva arti"cial. Portanto, é como se trouxesse a instantaneidade do espelho para a impressão de realidade do cinematógrafo ou das "tas de vídeo.

Essa utilização do vídeo como prótese não parou de crescer e hoje estamos acostumados a ver diariamente, além da televisão ao vivo, seu uso em vídeo vigilância e em comunicação via internet, por exemplo.

Já nos anos 60, surge um uso interessantíssimo desse dispositivo de transmissão ao vivo a "m de investigar o duplo. Depois da expansão da transmissão ao vivo da televisão, houve a popularização dos aparelhos portáteis de vídeo. Com esse aparato mais acessível, os artistas percebem o seu potencial de duplicação que não havia na fotogra"a ou no cinema, como examina Dubois (2001:21 apud MELLO, 2007:141) “trata-se da mí-mese do tempo real, já que o tempo eletrônico da imagem é sincronizado em tempo real”. Rosalind Krauss, já em 1976, em seu artigo Vídeo: a esté-tica do narcisismo, investiga o medium do vídeo em comparação às outras artes – para ela, normalmente pensamos medium como algo físico, como o pigmento que cobre a superfície na pintura ou a luz que passa pelo celulói-de em movimento no cinema. O vídeo, para ser experienciado, obviamente depende de um mecanismo físico, que corresponde ao mecanismo da te-levisão. Porém, seu medium não deve ser encerrado neste aspecto. Krauss sustenta que o medium do vídeo se caracteriza de modo mais psicológico do que físico: o medium do vídeo é o narcisismo. Para a autora, há dois as-pectos que sustentam sua posição:

A projeção e recepção simultâneas de uma imagem, e a psique hu-mana usada como canal, pois a maioria das obras produzidas no brevíssimo período de existência da videoarte utilizaram o corpo humano como seu instrumento central. No caso de obras com ima-gens gravadas, o corpo do próprio artista foi o mais frequente. No caso das videoinstalações, foi mais usado o corpo do espectador participante (KRAUSS, 1976:146).

A videoinstalação Mem é um circuito fechado com uma câmera e um videoprojetor posicionado obliquamente e muito próximo à parede, projetando deformadamente a imagem de quem se põe a frente da câmera. O sujeito que se aproxima a ponto de estar no campo de visão da câmera, não consegue ver sua imagem por completo. Enquanto isso, um outro pre-sente consegue até, de um certo ponto, ver a projeção sem a deformação.

Segundo Duguet (2009:33), o feedback do vídeo faz o espectador ser objeto de seu olhar instantaneamente:

Campus produz entre o sujeito e essa projeção dele próprio uma re-lação deliberadamente difícil, instável, estreitamente controlada e

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quase impossível. Por meio dessa organização de certa frustração do olhar, ele permite que o espectador experimente uma situação psicológica e perceptiva inabitual, ao mesmo tempo que se sente sujeito da representação.

Fi g u r a 2 - “ Me m”, de Pete r C a mpu s

A obra de Campus é um dispositivo que não permite o sujeito-es-pectador ver seu duplo por completo – ele escolhe ver ou ser visto – e o tra-balho só se efetiva com a presença de um outro, que reconhece a imagem duplicada do que está sendo projetado.

Desse modo, o surgimento da fotogra"a, do cinematógrafo (e da gravação em vídeo) e da transmissão em vídeo ao vivo (seja em vídeo digi-tal, televisão ou em instalações de circuito fechado), inventaram, cada um a sua maneira, modos de desvelar o duplo – seja na "xação em película de uma fração de segundos, seja na imagem-movimento de um tempo passa-do ou na “mímese em tempo real” – modos estes que diferem da nossa ex-periência especular e atestam nosso estar no mundo além do re!exo fugi-dio que vemos no espelho. Para Eco (1989), essas experiências imaginárias com espelhos congelantes nos conduziram a fenômenos que não tem a ver com a re!exão dos espelhos, mesmo sendo difícil ignorar a lembrança da imagem especular que esses invocam e da quais são macacos de imitação.

Apesar das ilusões e confusões, podemos comprovar com um experimentum crucis: ao reproduzir um espelho em uma fotogra"a, em um plano cinematográ"co ou televisivo, essas imagens não funcionam como especulares – são registros (ou signos) de outros espelhos. O autor (ECO, 1989:37) completa: “O universo catóptrico é uma realidade capaz de dar a impressão da virtualidade. O universo semiósico é uma virtualidade capaz de dar a impressão de realidade”.

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O P R O J E T O

03

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A inquietação que deu origem a toda a pesquisa e re!exão dos primeiros capítulos é presente em mim há anos: por vezes, senti uma indescritível sensação de desacreditar na imagem que via no espelho. Não se tratava de não gostar de minha aparência ou de querer parecer diferente, mas sim de me apresentar tão alheio a mim mesmo que não podia acreditar que os ou-tros me viam daquele forma, o tempo todo, e eu, jamais soube que me apre-sentava assim. Nunca entendi o que me levava a alguns dias me ver dessa forma – não é algo que dependia do jeito físico que estou em certo dia, sim-plesmente acordava (e ainda acordo) e não pertencia ao que estava vendo. Tal sensação também sempre me instigou a me procurar em fotogra"as e vídeos – busca essa que sempre proporcionou um estado de estranhamento e completude. Ainda me lembro quando, ainda criança, descobri que podia ligar a câmera VHS de meus pais à televisão pelo conector RCA e ver dire-tamente na tela grande minha imagem de costas ou de per"l, sem precisar articular dois espelhos. Ainda hoje, não consigo ignorar os estranhos en-quadramentos que me encontro em câmeras de segurança.

As ideias de espelho e duplicação, descobrir a imagem-própria e to-mar conhecimento do ambíguo estado de aproximação e distanciamento de si, relacionadas nos capítulos anteriores, são o foco deste projeto. Cito aqui o poema “Jorge Luis Borges”, de José Carlos Mendes Brandão:

O espelho a minha frente é coisa muda,Mas de sua mudez ele me fala:A imagem alheia do outro ladoMe contempla longínqua e interrogante,

Parte de mim, em mim multiplicada,E posta fora do que sou, texturaDe outra pessoa, de outro sonho e forma(No largo sono de um deus tranquilo,

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A voz se cala e deixa que o cristalA memória de um vago ser recrie)Ilusória assim como qualquer cifra.

Existimos, inúteis, re!etidos.Um teatro de sombras, sigiloso:O que somos, em nosso alto crepúsculo.

Com belas palavras, o poema remete a Borges e seu temor aos es-pelhos. O autor sintetizou fantasticamente todo o mistério e o poder do espelho que inspiram este trabalho: o espelho como algo que nos apre-senta e nos transforma em um outro, nos duplica; nos coloca no mundo. “Existimos, inúteis, re!etidos”: não tenho escolha, não sou só aquele aqui dentro em minha subjetividade, e o espelho revela essa materialidade.

Este trabalho de conclusão de curso é fruto de questionamento in-terior e paixão pela re!exão. O processo se deu de forma livre. Desde o iní-cio da pesquisa, nunca soube o que viria a ser a produção "nal – sem pré-vias limitações, deixei as informações e re!exões tomarem conta de mim para poder propor um projeto interessante e que faça sentido às minhas indagações. Nessa etapa de pesquisa, tomei conhecimento de um texto que tive grande identi"cação e que me marcou de um jeito que seria impossível pensar um projeto que não fosse inspirado e que dialogasse com ele. Este texto é o conto “O espelho”, de Guimarães Rosa.

No conto de Guimarães, o narrador inicia questionando o interlo-cutor sobre a veracidade do que se mostra no espelho. O que vemos? Ve-mos nossa essência? Recorre a uma experiência pessoal que o fez pensar no assunto: na infância, em um jogo de espelhos, viu sua própria imagem e sentiu medo, não se reconheceu. Agora descon"ando da imagem especu-lar, começou a educar seu olhar para não ver o que não era sua essência. Conta que todos temos um animal-sósia, no caso, seus traços lembravam a onça. Primeiro passo: não ver nada que lembrasse uma onça. Depois, concentrou-se em ignorar o hereditário, as similaridades com pais e avós. Então, as expressões momentâneas de dor, paixão, medo e raiva. E assim prosseguia a busca pela sua essência. Quase desistiu, "cou meses sem olhar para o espelho. Até o dia em que mirou o espelho e não se viu re!etido:

Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água lim-píssima, à dispersão da luz,tapadamente tudo. Eu não tinha for-mas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O "cto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador. (ROSA, 2001:126)

A imagem do narrador sumira por completo. Questiona sobre a existência de sua essência:

(…) não haveria em mim uma existência central, pessoal, autôno-ma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me "ngia de um

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suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, desoltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de in!uências, e tudo o mais que na imperma-nência se de"ne? Diziam-me isso os raios luminosos e aface vazia do espelho – com rigorosa in"delidade. (IBIDEM:126)

Anos a frente, em ocasião de grandes sofrimentos, “o espelho mos-trou-me”(IBIDEM:128). Viu uma luz com débil radiância e cintilação. Sem explicar, o narrador deixa que o leitor in"ra sobre a luz: “São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, con-forme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho.(IBIDEM:128)”. Eis que o narrador conhece o amor, a alegria e a conformi-dade e se reconhece:

(…) Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma !or pelágica, de nascimento abissal… (IBIDEM:128).

Questiona se é esse nosso mundo a intersecção de planos onde se completam de fazer as almas. A"rma que se é verdade, a vida é experiência séria e extrema que despoja-se de tudo que obstrui o crescimento da alma.Em busca de sua identidade existencial, termina indagando: “você chegou a existir?”(IBIDEM:128).

O narrador do conto temia a própria imagem, duvidava da realida-de de sua "gura e de sua corporeidade. A experiência de se olhar ao espelho transformou a sua vida, ampliou seu conhecimento e fez se dar conta: não havia o eu por trás da imagem – a essência. Encontrou o vazio, a falta de re!exo. Só havia a mesma imagem que os outros faziam dele, e por "m reconheceu sua aparência.

O texto de Guimarães Rosa conseguiu chegar ao cerne do questio-namento que impulsiona esse projeto: a misteriosa sensação de separação entre ser e aparência. O intuito desse trabalho é explorar a mesma proble-mática do personagem de “O espelho” através de imagens – ou seja – utili-zando como matéria-prima o próprio visível.

Para tanto, a forma escolhida para o trabalho é imaterial como a duplicação do espelho, é experiência que não se pode tocar a imagem, as-sim como a especular – é videográ"ca – podemos tocar a tela, mas nunca a imagem (é possível tocar uma pintura ou fotogra"a, mas no vídeo ou no cinema, toca-se a tela ou superfície de projeção). Mas o que é o vídeo? Segundo Dubois (2004), o vídeo parece ser um pequeno objeto, !utuan-te, mal determinado, que não tem ampla tradição de pesquisa como a fo-togra"a e o cinema. Do ponto de vista etimológico, video, sem acento, é um verbo na primeira pessoa do singular do indicativo do verbo em latim videre – video é “eu vejo”, ou seja, é o ato de olhar de um sujeito em ação. O vídeo é um estado, não um objeto – um estado-imagem que pensa as outras imagens: “parece mais interessante e produtivo observar o vídeo como travessia, campo metacrítico, maneira de ser e pensar ‘em imagens’.

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Como forma de pensar as imagens em geral, quaisquer que sejam elas” (DUBOIS, 2004:110).

Diante de tamanha liberdade e potencialidade de experimentação que o vídeo proporciona, decidi pela forma videoinstalação, com duas pro-jeções perpendiculares que se encontram no canto das duas paredes-tela. As projeções, aparentemente espelhadas, apresentam uma busca pelo eu por trás das imagens, a ser performada por mim. Durante toda essa ação, do lado direito vemos meus re!exos, e do lado esquerdo, a ausência de re-!exo. O vídeo tem um roteiro a ser executado por mim: como em “O espe-lho”, primeiramente noto a presença de meu duplo. Então passo a seguí-lo, examinando-o, curioso pelo que há por trás desse eu-outro das imagens. Por "m, há a rejeição de minha dimensão visível e o consequente sumiço da duplicação na projeção da esquerda – no "m, as telas se espelham.

A proposta tem grande in!uência das videoperformances iniciadas nos anos 60, nas quais o próprio artista se situava frente à câmera (a es-tética do narcisismo apontada no capítulo 2 deste volume) e de obras que investigam ou reinventam o meio cinematográ"co – o que se chama de ci-nema de exposição ou expandido (cito como exemplo a exposição Cinema Sim - Narrativas e Projeções realizada pelo Itaú Cultural em 2008 – a qual a documentação em catálogo e em vídeo serviu de grande inspiração). No entanto, não se trata de um registro vídeo de uma performance ou de um ato performático de diálogo entre a linguagem do corpo e a linguagem do vídeo, tampouco há a preocupação cinematográ"ca de construção psicoló-gica ou estética de personagem. Há um roteiro, mas sou eu mesmo que me apresento no vídeo: encarno minha leitura de “ O espelho” acrescentando minhas re!exões quanto ao duplo nas imagens capturadas por câmeras.

A tela-espelho – metáfora consolidada do cinema – nesse caso, es-pelha a si mesma e ao mesmo tempo não duplica minha presença. O ver-dadeiro personagem é o próprio duplo – a câmera, o tempo todo, captura re!exos; no espelho, nos vidros, nas fotos e nos vídeos. A câmera não mi-rou diretamente o homem de carne-e-osso, mas a duplicação. É isso que a câmera pode capturar: o que re!ete.

Tal rompimento entre o duplo e seu original – esse jogo de presença e ausência mostrada pelo re!exo sem corpo – está presente, de certa for-ma, na inspiradora obra “Re!ecting Pool”, de Bill Viola. O artista ambienta o vídeo com sons de folhas, passos, água, grilos e uma máquina que não aparece na cena. Um homem sai da !oresta e se põe de frente a uma piscina. Após um tempo, ele salta em direção a água, mas o salto é interrompido – sua imagem "xa-se no ar e seu re!exo na piscina some. Eis que notamos movimentos na água, reverberações do salto, e o re!exo do homem reapa-rece e se movimenta. Com a atenção focada no que se passa na água, não percebemos que o homem "xo no ar, aos poucos, sumiu. Por "m, o re!exo do sujeito some novamente e este sai da água e volta para a !oresta.

A água parece limitar dois mundos: o material, e o virtual, de re!e-xo. O vídeo rompe com a dinâmica do espelho, com a lógica da ação-reação: os re!exos não tem corpos e na água há ondas sem movimentos externos. Viola nos faz pensar sobre a efemeridade da vida e de nossa corporeidade – o re!exo segue independente da materialidade. O tempo congelado do sal-

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to não acompanha a duplicação na água: sem ver o homem "nalizar o salto, só podemos acreditar no re!exo deste que sai da água. Só podemos expe-rimentar pela visão o que re!ete luz – só podemos conhecer pelo re!exo.

Fi g u r a 3 - “ R e f le c t i ng Po ol ”, de B i l l V iol a

R O T E I R O D E F I L M A G E M

C E N A 1 – P L A N O 1 – I N T. S A L A ( S O M B R A N A PA R E D E ) - D I ASombra passando pela sala.

C E N A 1 – P L A N O 2 – I N T. S A L A ( R E F L E X O N O V I D R O D A M E S A ) - D I ARe!exo de mim passando ao lado de uma mesa.

C E N A 2 – P L A N O 1 – I N T. C O Z I N H A ( R E F L E X O N A P O R TA ) - D I APassa pela porta e percebo o meu re!exo. Olho "xamente, encarando-o, estranhando-o.

C E N A 3 – P L A N O 1 – I N T. B A N H E I R O ( R E F L E X O N O E S P E L H O ) – D I AEntro no banheiro. Encaro, olho a olho, meu duplo no espelho. Analiso lado a lado a minha "gura. Saio do banheiro.

C E N A 4 – P L A N O 1 – I N T. Q U A R T O ( R E F L E X O N O E S P E L H O ) – D I ACom um retrato na mão, olho para o retrato, em seguida para o espelho. Rasgo metade do retrato e coloco essa metade frente ao rosto. Tento encai-xar o duplo da fotogra"a com o duplo no espelho.

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P R O J E T O R A

PROJ

ETOR

B

P A R E D E A

3 . 0 0 m

PARE

DE B

3.00

m

Fi g u r a 4 - Pl a nt a ba i x a d a i nt a l aç ão

C E N A 4 – P L A N O 2 – I N T. Q U A R T O ( T E L E V I S Ã O ) – D I AAssisto a velhos vídeos caseiros em que apareço. Desligo a televisão.

C E N A 4 – P L A N O 3 – I N T. Q U A R T O ( L A P T O P ) – D I AAssisto a vídeos da idade atual. Não me reconheço. Desligo o laptop e saio.

C E N A 4 – P L A N O 4 – I N T. Q U A R T O ( R E F L E X O N O Q U A D R O ) – D I ASem aceitar a minha imagem, tiro o espelho da parede do quarto e troco por um quadro. Passa pelo quadro e ainda vejo meu re!exo. Angustiado, saio andando.

C E N A 6 – P L A N O 1 – E X T. R U A ( J A N E L A R E F L E X I VA D E P R É D I O ) – D I ARe!exo passa sem se olhar pela janela de um prédio.

C E N A 7 – P L A N O 1 – E X T. R U A ( J A N E L A R E F L E X I VA D E P R É D I O ) – D I ARe!exo passa novamente sem se olhar pela janela de um prédio.

C E N A 6 – P L A N O 1 – E X T. R U A ( J A N E L A D E C A R R O ) – D I ARe!exo passa sem se olhar pela janela de um carro.

I N S T A L A Ç Ã O

A instalação é constituída de duas projeções em duas paredes com ângulo de 90º e uma trilha sonora. Os vídeos são em formato HD (1280x720 pixels), em preto e branco, com som estéreo e devem ser exibi-dos sincronizadamente. Cada projeção deve ter pelo menos 3m de largura e 1,68m de altura.

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Fi g u r a 6 - M a k i ng of

Fi g u r a 5 - S i mu l aç ão do es paço i n st a l at ivo

A P R O D U Ç Ã O

A produção do vídeo para a instalação foi feito com uma câmera Nikon D90 em minha própria casa e na de amigos. As externas ocorreram em locais próximos – onde já havia notado a presença de meus re!exos.

A edição, a fotogra"a e o desenho de som foram feitos por mim. Nas gravações contei com o auxílio de Tabata Pieri e Danilo Carneiro na operação de câmera, iluminação e cenário.

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Quanto à linguagem do vídeo, vale apontar alguns aspectos. A foto-gra"a é contrastada e em preto-e-branco, como em um jogo de luz e som-bra – que são a matéria prima das duplicações mais primitivas até à das câmeras de hoje. Como diria Morin (1997:50): “Se abstrairmos da cor, a fotogra"a é puro re!exo, análogo ao do espelho.” O tempo foi desacelerado (efeito slow motion) a "m de ressaltar as fugidias presenças nos re!exos e torná-las algo como um rastro desse eu-outro. O som foi desenhado para ambientar as etapas do roteiro: há o ruído crescente e cada vez mais per-turbador ao longo do estranhamento da imagem própria e um som dife-rente quando passo a não olhar os re!exos.

Fi g u r a 7 - St i l l do v íde o

Fi g u r a 8 - St i l l do v íde o

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Fi g u r a 9 - St i l l do v íde o

Fi g u r a 10 - St i l l do v íde o

V I D E O E R G O N O N S U M

“Vejo, logo não existo” ou “ Vejo, logo não sou.” A expressão em latim que dá título a este trabalho foi cunhada por Phillipe Dubois para apontar o vídeo como algo que de certa forma articula dois grandes cam-pos metafísicos – ele seria a conciliação entre o pensar e o ser visto:

Cabe assinalar, para concluir, até que ponto essa fórmula sintética está atravessada subterraneamente por dois outros preceitos, in"-

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nitamente célebres e, neste caso, "loso"camente deslocados para um terreno que não é o deles: o cogito de Descartes e o percept de Berkeley. O primeiro (Cogito ergo sum, Penso, logo existo), como se sabe, a"rma a existência do sujeito na atividade do pensar: o ser aí é questão de conceito, concepção, conceitualização. O segundo (Esse est percipi, Ser é ser percebido) situa, por sua vez, o ser da perspectiva do percepto – e de forma negativa, ou inversa, passiva: ser é ser percebido (e não perceber) (DUBOIS, 2004:174).

“Vejo, logo não sou.” A frase aponta o distanciamento entre ver e ser – entre ser e aparência. Este distanciamento não é senão um desloca-mento de olhar: de dentro para fora, de fora para dentro. É como se o olhar do outro impregnasse em meus olhos – com a prótese do espelho ou das imagens capturadas. O fascínio e o estranhamento causado pelo imagem própria é fruto desse poder transformador: a duplicação. A duplicação do olhar e a duplicação da presença. A experiência com o duplo atesta a minha própria presença enquanto outro: seja numa fotogra"a, seja numa sombra.

A duplicação das telas perpendiculares é uma provocação para um duplo olhar: um jogo de presença e ausência em que ambos são possíveis visto que não há ninguém de carne-e-osso ali, somente um duplo – que no "nal vai embora. A intalação-espelho carrega a ambígua sensação de apro-ximação e distanciamento que um espelho proporciona: se olho para esse outro que é o duplo, não me vejo ou me reconheço. Se não olho para mim, não existo. Como escreveu Guimarães Rosa: “Você chegou a existir?”.

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Figura 2 – “Mem”, de Peter Campus. Disponível em: <http://www.b".org.uk/whatson/sites/b".org.uk.whatson/"les/images/campus_04.jpg>. Acesso em: 16/10/2011.

Figura 3 – “Re!ecting Pool”, de Bill Viola. Disponível em: <http://stagevu.com/img/thumbnail/dnvkmpgyipgmbig.jpg>.Acesso em: 16/10/2011.

Figura 4 - Planta baixa da intalação. Produção própria.

Figura 5 - Simulação do espaço instalativo. Produção própria.

Figura 6 - Making of. Fotogra"a de Danilo Carneiro.

Figura 7 - Still do vídeo.

Figura 8 - Still do vídeo.

Figura 9 - Still do vídeo.

Figura 10 - Still do vídeo.

L I S T A D E F I G U R A S

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Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido de Agosto de 2011 a Maio de 2012 por Fernando Lopes.http://videoergononsum.tumblr.com

Composto com as famílias tipográ"cas Chaparral Pro e Flama. Impresso pela grá"ca Alphagraphics.

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