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VINHO VELHO EM ODRES NOVOS:Uma anlise da experincia de integrao da segurana pblica no Par (1995-2004).

por

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia PPGSA, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia). Orientador: Prof. Dr. Michel Misse

Rio de Janeiro Junho, 2004

VINHO VELHO EM ODRES NOVOS:Uma anlise da experincia de integrao da segurana pblica no Par (1995-2004).

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto Orientador: Prof. Dr. Michel Misse

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia).

Aprovada por: __________________________________ Presidente, Prof. Dr. Michel Misse IFCS/ UFRJ __________________________________ Prof. Dr. Luiz Antnio Machado da Silva IFCS/ UFRJ __________________________________ Prof. Dr. Roberto Kant de Lima ICHF/ UFF

Rio de Janeiro Junho, 2004

Oliveira Neto, Sandoval Bittencourt de Vinho velho em odres novos: uma anlise da experincia de integrao da segurana pblica no Par (1995 2004) / Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2004. xv, 142 f., il.; 29,7 cm. Orientador: Michel Misse. Dissertao (mestrado). UFRJ/ IFCS/ Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia, 2004. 5 f. 1. Segurana Pblica. 2. Sociologia da poltica de integrao da segurana pblica do Par. 3. Polcias estaduais. 4. Ethos policial. I. Misse, Michel. II. UFRJ/ IFCS/ PPGSA. III. Vinho velho em odres novos: uma anlise da experincia de integrao da segurana pblica no Par (1995 2004).

Para Samantha, com amor.

AGRADECIMENTOS

Ao longo da elaborao desta dissertao, numerosas foram as pessoas que contriburam para sua realizao, portanto, seria impossvel fazer meno todos que me ajudaram. Citarei aqui somente os que me deram os principais incentivos necessrios para o desenvolvimento cientifico e prtico deste trabalho de pesquisa. Peo sinceras desculpas aos que infelizmente deixo de mencionar. Primeiramente, devo agradecer queles sem os quais minha dissertao jamais poderia ter sequer comeado: Coronel PM RR Mauro Luiz Calandrini Fernandes, ex-comandante geral da Polcia Militar do Par, que generosamente me concedeu sua autorizao, confiana e incentivo para iniciar a nova caminhada, abrindo mo dos meus servios policiais no momento em que mais precisou de ajuda. Um homem digno e altrusta. Professor Dr. Michel Misse, cuja sabedoria me ofertou a possibilidade de trilhar a vida acadmica. Orientador paciente e rigoroso, que me ajudou a abrir um vasto horizonte de reflexo, mostrando-me a direo para conduzir a pesquisa. Professor Dr. Roberto Kant de Lima, em nome de quem agradeo aos demais professores com os quais tive o privilgio de muito aprender no Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense, e no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seus ensinamentos foram imprescindveis para a minha empreitada cientfica.

Faz-se necessrio, igualmente, agradecer a duas pessoas muito especiais que, indiretamente, muito me ajudaram: Coronel PM Eledilson Renato Costa Oliveira, diretor de ensino da Polcia Militar do Par, que soube compreender a importncia dessa jornada acadmica tanto para mim quanto para a prpria corporao. Oficial superior a quem estou diretamente subordinado, sempre me deu grande apoio e estmulo para que prosseguisse com a pesquisa. Ana Monteiro Diniz, ex-assessora especial de governo responsvel pelo rigoroso controle estratgico da poltica de integrao, o que lhe fez ser conhecida entre os policiais como a dama de ferro da segurana pblica do Par. Mulher austera, objetiva e de rara sinceridade, que se mostrou sempre atenciosa comigo nas inmeras e descontradas conversas em que me presenteou com sua inteligncia, longa experincia burocrtica e perspiccia poltica.

Enfim, agradeo aos meus familiares, que sempre estiveram presentes me apoiando com suas afetivas e incentivadoras palavras: Ao meu pai e amigo, Joo Sandoval Bittencourt de Oliveira, professor Dr. que sempre me deu bons exemplos, evidenciando a importncia da seriedade intelectual e da determinao nos estudos. Igualmente, minha me, Maria Anunciada, pelo companheirismo e ateno a mim dedicados desde sempre. Especialmente, a minha amada esposa, Samantha Nahon, principal responsvel pela reviravolta nos meus valores, crenas e objetivos de vida. Sem seu amor, carinho e compreenso, nada me seria possvel.

Ningum deita remendo de pano novo em vestido velho porque semelhante remendo rompe o vestido e faz-se maior a rotura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; alis, rompe-se os odres e entorna-se o vinho, e os odres estragam-se; mas, deita-se o vinho novo em odres novos e assim ambos se conservam.Mateus 9: versculos 16 e 17.

NDICE

Lista de Grficos....................................................................................................... Lista de Modelos....................................................................................................... Lista de Planilhas...................................................................................................... Lista de Tabelas Lista de Anexos........................................................................................................

XI XI XI XII XIII

Resumo .................................................................................................................... XIV Abstract..................................................................................................................... XV Pg. INTRODUO Insegurana pblica e polticas de segurana pblica no Brasil. Integrao. Um olhar sociolgico. A metodologia. Organizao da dissertao. 1

Primeira parte: A GNESE DA SEGURANA PBLICA DEMOCRTICA NO ESTADO DO PAR CAPTULO I O ESPRITO DA SEGURANA PBLICA E O PAPEL DA CRTICA 1.1. Uma definio mnima do sistema de segurana pblica. 1.2. O autoritarismo da segurana pblica no Brasil: males de origem. 1.3. A necessidade de um esprito para a segurana pblica. 1.4. O papel da crtica. 17

CAPTULO II A REFORMA 2.1. Fontes de informao sobre a reforma da segurana pblica no Par. 2.2. Contextualizando a reforma. 2.3. Sem utopias nem revolues. 2.4. A paz social. 2.5. Onde esto os policiais? 2.6. Construindo a integrao. 2.7. A massa crtica.

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Segunda parte: A INTEGRAO E SUAS CRTICAS CAPTULO III DESTERRADOS E RESTAURADORES 3.1. Imposies negociadas. 3.2. Feudos policiais: democratizando a corrupo. 3.3. A hierarquizao das comunicaes. 3.4. O arquiplago e os dspotas. 3.5. A caa s bruxas. CAPTULO IV OUTROS OLHARES 4.1. Avaliao do policiamento comunitrio na RMB: opinio pblica maro/ 2000. 4.2. As expectativas das comunidades da RMB em relao polcia integrada maro/ 2004. 4.3. O gerenciamento do processo de integrao das polcias estaduais nas seccionais/zonas de policiamento da RMB maio/ 2004. 84 61

Terceira parte: ETHOS TRADICIONAIS E O ESPRITO DA SEGURANA PBLICA INTEGRADA CAPTULO V QUANDO MENOS MAIS 5.1. Condomnios da segurana pblica. 5.2. O sucesso da integrao. 5.3. Os indicadores do sistema de segurana pblica. 5.3.1. O indicador de produtividade da polcia civil. 5.3.2. O boletim estatstico de operaes do comando de policiamento metropolitano, da polcia militar. 5.3.3. Os indicadores de desempenho operacional do CIOp. 5.4. Confiabilidade e validade: interpretando os indicadores. 5.5. Desempenho virtual. 101

CONCLUSES REPENSAR A REFORMA PARA REFORMAR O PENSAMENTO REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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Lista de GrficosPg. Grfico 1 Integrao PC - PM... crimes contra a pessoa... 1998/ 1999. Grfico 2 Integrao PC - PM... crimes contra os costumes... 1998/ 1999. Grfico 3 Integrao PC - PM... crimes contra o patrimnio... 1998/ 1999. Grfico 4 Comparativo BGP x PI x META, 1o sem/ 2001, Grande Belm. Grfico 5 Comparativo BGP x PI x META, 2o sem/ 2001, Grande Belm. Grfico 6 Registros policiais... Belm... crimes contra a pessoa, jan/ out 2001. Grfico 7 Reg. policiais... Belm... crimes contra o patrimnio, jan/ out 2001. Grfico 8 Op. policiais militares realizadas na Grande Belm, CPM/ 2001. Grfico 9 Operaes barreira realizadas na Grande Belm, CPM/ 2001. Grfico 10 Operaes nibus realizadas na Grande Belm, CPM/ 2001. Grfico 11 Operaes patrulha realizadas na Grande Belm, CPM/ 2001. Grfico 12 Op. realizadas por zonas de policiamento, CPM/ abril/ 2001. Grfico 13 Percentual de chamadas recebidas, CIOp/ 2001. Grfico 14 Ocorrncias policiais geradas, CIOp/ 2001. Grfico 15 ndice de ocorrncias geradas por 100 mil habitantes, CIOp/ 2001. Grfico 16 ndice ocorrncias geradas 100 mil para cada ZPOL, CIOp/ 2001. Grfico 17 Crimes contra o patrimnio, furto, mdia mensal, 1996/2002. Grfico 18 Crimes contra o patrimnio, roubo, mdia mensal, 1996/2002. Grfico 19 Crimes contra o patrimnio, latrocnio, mdia mensal, 1996/2002. 103 103 104 111 111 112 113 115 115 115 116 116 118 121 122 122 126 126 127

Lista de ModelosPg. Modelo 1 Boletim de Ocorrncia Policial, Polcia Civil do Par, 2002. Modelo 2 Relatrio de Registro de Ocorrncia Policial, CIOp, 2002. Modelo 3 Indicadores de desempenho operacionais do CIOp, dez/ 2001. 107 118 119

Lista de PlanilhasPg. Planilha 1 Comparativo Procedimentos, Belm, Polcia Civil, 1o sem/ 2001. Planilha 2 Comparativo Procedimentos, Belm, Polcia Civil, 2o sem/ 2001. Planilha 3 Boletim Estatstico de Operaes, CPM/ 2001. XI 109 110 114

Lista de TabelasPg. Tabela 1 Que conceito d ao trabalho da PMPA junto comunidade. Tabela 2 A PMPA faz policiamento no seu bairro? Tabela 3 Aciona a PM quando est em dificuldade? Tabela 4 Confia no trabalho executado pela polcia militar? Tabela 5 Horrio mais freqente em que voc encontra o policiamento... Tabela 6 Qual o horrio de maior incidncia de ocorrncias em ... Tabela 7 Voc v falha da PMPA na execuo do policiamento? Tabela 8 Voc acha que a PMPA, no controle da criminalidade ? Tabela 9 Como voc v o PM na execuo do policiamento? Tabela 10 Quais as mais provveis restries a PM? Tabela 11 Acha que a PMPA, na execuo do policiamento, trata todos ... Tabela 12 Voc participa de reunies comunitrias em seu bairro? Tabela 13 Caso afirmativo, o CMT da unidade policial militar de sua rea ... Tabela 14 Caso afirmativo, com que freqncia os problemas de segurana ... Tabela 15 O que voc entende por Policiamento Comunitrio? Tabela 16 Nos ltimos 12 meses, o policiamento (a segurana)? Tabela 17 Conhece a integrao policial? Tabela 18 Sabe o que zpol? Tabela 19 J procurou alguma zpol? Tabela 20 Avaliao do grau de atendimento na zpol. Tabela 21 Presena da polcia (na rua) aumentou? Tabela 22 Eficcia do atendimento policial (ostensivo) melhorou? Tabela 23 Atendimento de ocorrncias policiais (190) agilizou? Tabela 24 ndice de criminalidade diminuiu? Tabela 25 Sentimento de segurana aumentou? Tabela 26 Aes policiais civis e militares conjuntamente coordenadas Tabela 27 Participao da sociedade civil no gerenciamento da segurana ... Tabela 28 Investimento compartilhado entre as instituies policiais. Tabela 29 Controle institucional. Tabela 30 Idade. Tabela 31 Tempo de servio policial. Tabela 32 Controle de Produtividade mensal dos delegados por UPC, 2002. XII 86 86 86 86 87 87 87 88 88 88 88 89 89 89 90 90 91 91 91 92 92 93 93 93 93 96 97 97 98 99 99 112

Tabela 33 Ocorrncias policiais ... nos ltimos doze meses, CIOp/ 2001. Tabela 34 ndice de ocorrncias geradas por 100 mil habitantes, CIOp/ 2001. Tabela 35 ndice ocorrncias geradas 100 mil para cada ZPOL, CIOp/ 2001. Tabela 36 As dez ocorrncias de maior incidncia ... CIOp/ 2001. Tabela 37 Dez bairros de maior incidncia de ... Belm, CIOp/ 2001. Tabela 38 Dez logradouros maior incidncia ocorrncia policial, CIOp/ 2001. Tabela 39 Dez logradouros maior incidncia ... ZPOL, CIOp/2001. Tabela 40 Indicadores de criminalidade mdia mensal 1996/ 2002.

121 122 122 123 124 124 124 125

Lista de AnexosPg. Anexo I Anexo II Anexo III Anexo IV Anexo V Anexo VI Anexo VII Anexo IX Anexo X Anexo XI O Estado do Par. Circunscrio das seccionais urbanas e zonas de policiamento. Propostas...Congresso Nacional...segurana pblica, 1989 - 2001. Fontes e recursos das pesquisas de campo. CONSEP (2002). Instituto de Ensino de Segurana do Par (2002). Diviso das atividades da Polcia Militar do Par. Membros do CONSEP (1996 a 2002). Evoluo da remunerao mdia e ... pessoal (1995 2002). Denncias feitas Ouvidoria (1998 - 2001) 148 152 166 175 191 192 193 194 195 196 197

Anexo VIII Oramento executado na rea da defesa social (1995 2002).

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RESUMO VINHO VELHO EM ODRES NOVOS: Uma anlise da experincia de integrao da segurana pblica no Par (1995-2004). Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto Orientador: Prof. Dr. Michel Misse Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia - PPGSA/ IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia). A dissertao se prope a analisar as transformaes ideolgicas e operacionais que acompanham a experincia de integrao do sistema de segurana pblica do Estado do Par. Descreve o movimento crtico que deu suporte a reforma do sistema de segurana pblica tradicional e a crtica decorrente do processo de mudana. Reflete sobre o desdobramento setorial da poltica de integrao no gerenciamento da oferta de policiamento sociedade, especificamente nas seccionais/ zonas de policiamento da Regio Metropolitana de Belm, e aponta que os atuais indicadores policiais esto em desacordo com a integrao, comprometendo a formao de um novo esprito democrtico na segurana pblica. Evidencia, ao final, que a viabilidade da democratizao da segurana pblica no Par implica imperativamente na existncia de um quadro lgico, pretendente de validade universal e orientado ao bem comum, que seja suficiente para justificar o engajamento individual dos policiais estaduais paraenses. Palavras chaves: Estado do Par; Belm; poltica de segurana pblica; integrao; reforma; polcia militar; polcia civil; seccional urbana; zona de policiamento; ideologia da segurana pblica; esprito da segurana pblica; ethos policial; crtica; democratizao; indicadores de desempenho policial.

Rio de Janeiro Junho, 2004

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ABSTRACT OLD WINES IN THE NEW WINESKIN: an analisys of the Pars public security integration (1995-2004). Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto Orientador: Prof. Dr. Michel Misse Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia - PPGSA/ IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Sociologia (com concentrao em Antropologia). This dissertation intends to analyze ideological and operational transformations that follow the integration experience of the public security system of the State of Par. It describes the critical movement that gave support for the system of traditional public and the decurrently critic of changing process. The study reflects on the sectarian unfolding of the integration policy in the management offers of policing to the society, in particular the seccionais/ zonas de policiamento of Belm Metropolitan Region, and points that the current polices pointers disagree with the integration, compromising new spirit formation in the public security. It evidences that the viability of the democratization of Pars public security implies imperatively in the existence of a logical structure pretending of a universal validly and guided to the social welfare, enough to justify the individual enrollment of the Pars policemen. Key-words: State of Par; Belm; public security policy; integration; reform; military police; civilian police; police department; policing area; ideology of the public security; spirit of public security; critic; democratization; police performance pointers.

Rio de Janeiro Junho, 2004

XV

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INTRODUO

Nos dias de hoje vivemos em um mundo de riqueza sem precedentes que no se limita apenas esfera econmica. As pessoas vivem em mdia mais tempo. Estabeleceu-se o regime democrtico e participativo como modelo de organizao poltica. A retrica prevalecente assegura a propagao dos direitos humanos, das liberdades individuais e polticas e das novas formas de participao cidad. Por outro lado, as diferentes regies do globo esto agora mais estritamente ligadas do que jamais estiveram, no s nos campos da troca, do comrcio e das comunicaes, mas tambm quanto a idias e ideais interativos (Cf. Sen, 2000, p.9). A revoluo dos meios de comunicao massifica o acesso e a divulgao de informaes, proporciona maiores perspectivas para a descentralizao de decises e, igualmente, concorre para uma possvel eroso das identidades culturais. So crescentes a homogeneizao e internacionalizao dos padres de consumo e de produo, a magnitude e interdependncia dos movimentos de capital e a exposio externa das economias nacionais. Predominam vitoriosas as foras de mercado, potencializadas pela velocidade das mudanas tecnolgicas e seus impactos na base produtiva, no mercado de trabalho e nas relaes e estruturas de poder (Cf. Guimares, 1998, p. 47). Entretanto, no limiar do sculo XXI, todo esse crescimento econmico, contraditoriamente, no correspondeu ao desenvolvimento da humanidade.

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Vivemos em um mundo de privao, destituio e opresso extraordinrias. Existem problemas novos convivendo com antigos a persistncia da pobreza e de necessidades essenciais no satisfeitas, fomes coletivas e fome crnica muito disseminadas, violao de liberdades polticas elementares e de liberdades formais bsicas, ampla negligncia diante dos interesses e da condio de agente das mulheres e ameaas cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e a sustentabilidade de nossa vida econmica e social. Muitas dessas privaes podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em pases ricos como em pases pobres (Sen, 2000, p. 9). Nas sociedades onde o capitalismo global se estabeleceu dominante, a concorrncia no mais a velha concorrncia, a competitividade tem a guerra como norma, (e se) h, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar (Santos, 2000, p. 46). As transformaes parecem apontar a gradativa passagem da sociedade panptica (Foucault, 1999, passim) para uma nova ordem que se caracteriza pelo dilema do prisioneiro da teoria dos jogos. Isto , mesmo sendo vantajoso para a sociedade que todos obedeam lei, para o indivduo pontual existe uma vantagem adicional sobre os demais, se desobedecer lei enquanto todos outros membros do grupo a obedecem (Cf. Silva, 1997, p. 106). Esse crescente individualismo niilista, envolto em atmosfera blas (Simmel, 1902, p. 16), concorre para potencializar os efeitos da violncia e criminalidade.

INSEGURANA PBLICA E POLTICAS DE SEGURANA PBLICA NO BRASIL

A criminalidade acompanha o homem desde a sua origem. Contudo, atualmente, o crime, em especial o violento, manifesta-se como um problema social que atinge universalmente a sociedade e que vem ganhando espao cada vez maior no debate poltico, na mdia e no cotidiano das relaes domsticas. Modifica o comportamento das pessoas, reflete-

3 se na arquitetura e urbanizao das cidades (Cf. Nahon, 2003, passim), bem como no desempenho das atividades econmicas. O Brasil no est fora dessa realidade. Alis, no pas, os efeitos negativos da modernizao so agravados pelo fato de que as mudanas que ocorreram em longo tempo nos outros pases, aqui foram transies rpidas. A modernizao acelerada do pas ocorreu principalmente entre 1850, quando o caf se tornou dominante no pas, e 1980, quando o desenvolvimento industrial se estanca e tem incio a crise do Estado. Mas, ainda que de forma muitas vezes perversa, a modernizao continuou a ocorrer aps esta data, de forma que hoje o pas radicalmente diferente do Brasil de h um sculo ou sculo e meio. Possui uma economia mais rica, uma sociedade mais diversificada, um Estado mais democrtico, uma administrao pblica menos patrimonialista e mais gerencial. Mas a modernizao no foi acompanhada pela diminuio da injustia, o desenvolvimento no levou a convergncia com os pases ricos. A transio foi profunda, mas incerta. No apenas porque a acelerao extraordinria do progresso tcnico tornou o futuro mais difcil de predizer, mas tambm porque os insucessos dos ltimos 20 anos no plano econmico levaram os brasileiros a serem menos confiantes no futuro (Bresser Perreira, 1996, p. 223). A emergncia do crime como problema pblico est relacionada ao consenso geral da incapacidade dos cidados em tratar do assunto e da conseqente atribuio de sua propriedade ao Estado (Cf. Beato, 1998, p. 2). Em outras palavras, ao poder estatal delegada a autoridade de buscar solues para criminalidade atravs dos seus rgos legiferantes e do sistema de administrao da justia. Como questo pblica, o problema da criminalidade deve ento ser resolvido atravs de polticas de segurana pblica pautadas ... por metas claras e definidas a serem alcanadas, por instrumentos de medidas confiveis para avaliao desses objetivos e pelos meios disponveis para sua realizao de forma democrtica (Silva, 1997, p. 68). Poltica de segurana pblica, esta ser a temtica da presente dissertao. Um tema complexo e, de certo modo, pouco estudado no Brasil. O limitado interesse acadmico talvez encontre explicao nas dificuldades que comprometem as pesquisas: a heterogeneidade dos

4 fatos sociais envolvidos e a escassez de informaes que possibilitem estudos comparativos, seja pela limitao quantitativa de dados ou pela baixa confiabilidade desses, fazem com que a pouca clareza analtica e a pobreza terica da sociologia tendam a ser substitudas pela retrica da indagao moral (Paixo, 1995, p.2); e a crescente adoo de modelos importados de controle social que reforam o Estado policial e penitencirio, e acabam por estabelecer uma ditadura sobre os pobres (Cf. Wacquant, 2001, p.47). Ocupando os espaos deixados pelo limitado interesse acadmico1, as informaes sensacionalistas veiculadas pela imprensa e as desconexas opinies dos mais diversos setores da sociedade, sobretudo as emanadas de representantes do poder pblico, acabam por criar o equivocado senso comum de que todos entendem de segurana pblica. Tem-se, assim, a atualizao do dito popular que afirma sermos todos, como bons brasileiros, competentes tcnicos de futebol, mdicos e, agora, peritos em segurana pblica. Diante da crescente presso da opinio pblica por mais segurana e das dificuldades dos governos em lidar com o aumento da criminalidade, que resiste ao seu tradicionalmente improdutivo investimento na aquisio de mais armas, viaturas e efetivo, o Congresso Nacional passou a ser o palco das discusses. Os parlamentares lanaram mo do assessoramento dos mais diversos estudiosos da criminalidade, por vezes amparados em teorias pseudocientficas, produzindo uma significante quantidade de projetos de emendas constitucionais propondo alteraes na segurana pblica, no Brasil.

Mesmo sofrendo todos os males inerentes ao reducionismo de se entender segurana pblica como, to somente, a esfera de responsabilidade e ao das polcias, parece adequado ao esforo cognitivo de apontar as razes do descaso acadmico pelo estudo de polticas de segurana pblica, analisar a interessante explicao de David H. Bayley sobre a constante falha do meio acadmico em lidar com a polcia. Para Bayley, so quatro os fatores que devem ser considerados: (1) a polcia raramente desempenha um papel importante nos grandes eventos histricos; (2) o policiamento no uma atividade glamourosa, de alto prestgio; (3) o policiamento repugnante moralmente; e (4) conduzir estudos sobre a polcia envolve enormes problemas prticos. Para saber mais, ler: BAYLEY, David H. Padres de Policiamento: uma anlise internacional comparativa. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001, p. 17 a 19.

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5 A simples anlise das cem propostas de emenda Constituio Federal e projetos de lei que tratam da segurana pblica, em trmite no Congresso Nacional de 1989 a 20012, possibilita a constatao de que a quase totalidade das iniciativas polticas, isto 96% do total, limita-se a propor mudanas estruturais no sistema de segurana pblica e desconsidera um tratamento mais objetivo de estratgias alternativas para o emprego racional das polcias estaduais, dentro do modelo dicotmico atual3. Grande parte dessas propostas estruturais aborda a questo da municipalizao das polcias estaduais ou a transformao das guardas municipais em polcias municipais. Porm, a garantia de que os problemas da segurana pblica no Brasil se resolvero a partir da municipalizao das polcias incerta, pois tal eficincia no encontrada sequer nos EUA (Cf. Bittner, 2003, p. 29), cujo modelo alguns polticos brasileiros querem copiar. Afinal, a notria necessidade da maior aproximao entre a polcia e o cidado no obriga fundamentalmente municipalizao das polcias estaduais ou tampouco a inviabiliza. Uma proposta polmica que aterroriza as polcias militares a desmilitarizao. Apoiados no passado histrico repressivo da instituio, os defensores dessa tese entendem que a condio de militar reproduz o aparelho policial como a expresso de fora do Estado e um instrumento de coero do cidado. Em adio, a existncia da Justia Militar Estadual4 e o fato do modelo organizacional das polcias militares ser idntico ao do Exrcito brasileiro5 tornam fortes os argumentos daqueles que pretendem a desmilitarizao. Contudo, no se pode desconsiderar que dentro do atual modelo, as polcias militares so foras auxiliares do Exrcito, ou seja, representam a retaguarda da defesa nacional. Assim, a desmilitarizao

Ver o Anexo Propostas de Lei no Congresso Nacional. A existncia histrica de duas polcias estaduais: uma civil outra militar. 4 Aqueles que defendem a desmilitarizao da polcia militar entendem que o exerccio da funo policial militar de natureza civil, portanto, quando um policial militar transgride a lei no exerccio de sua atividade policial, deve ser julgado pela Justia comum. 5 O Exrcito existe para defender a soberania do pas em caso de ameaa externa e para tal se organiza institucionalmente. Uma vez que o papel das polcias militares a defesa do cidado, no h razo para que sigam o mesmo modelo organizacional.3

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6 implicar, necessariamente, na profissionalizao e modernizao das foras armadas do pas ou na criao de uma Guarda Nacional. As polcias civis tambm tm seu fantasma. Uma corrente poltica defende a criao dos Juizados de Instruo, com o ministrio pblico comandando as aes investigativas da polcia judiciria, o que para os delegados de polcia representaria a inaceitvel diminuio dos seculares poder e status profissional. Polemizando a questo, as polcias militares vem com bons olhos a criao dos juizados de instruo, pois assim conseguiriam, enfim, a independncia da polcia judiciria para consumao do ciclo completo da atividade policial6. Todavia, basta uma s pergunta para por em dvida tal proposta: considerando que, nos dias de hoje, o ministrio pblico no consegue exercer a contento todas as suas funes, estaria ele em condies de exercer mais uma, sobretudo de tal magnitude? Outros falam em extino de uma das policiais estaduais para a criao da polcia estadual nica ou ainda, com maior repercusso, na unificao das polcias estaduais. Todavia, o prprio entendimento de unificao no homogneo. No poucas so as pessoas adeptas da unificao que, instadas a explicar o seu posicionamento, no conseguem demonstr-lo objetivamente, isto quando sabem como se organizam e o que fazem as duas polcias. Uns entendem por unificao a subordinao das duas polcias a um nico secretrio. Outros, quando falam em unificao, esto na realidade com a idia da fuso das duas polcias numa s. Outros falam em comando nico, significando uma s secretaria, mas com duas polcias separadas (Da Silva, 1999, p. 111). Apesar do esforo dos legisladores, tais propostas no se mostraram capazes de prevenir aes arbitrrias do aparelho policial ou de possibilitar o aprimoramento do sistema de segurana pblica em direo oferta de segurana e justia para a sociedade brasileira. Da mesma forma, desconsideravam a participao da sociedade civil nesse processo.

O policial atende a ocorrncia, detm o suspeito, conduz o detido a sua unidade policial e l consuma a priso, atravs da lavratura do procedimento judicirio.

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7 Uma soluo alternativa problemtica da segurana pblica se destacou no cenrio nacional, chegando Secretaria Nacional de Segurana Pblica (SENASP), que passou a defend-la como o modelo desejado para o pas, conforme afirmou o ento secretrio nacional de segurana pblica, Lus Eduardo Soares, durante seu pronunciamento oficial numa reunio do conselho regional de segurana pblica do Meio Norte, o COMEN7, realizada em Belm. Trata-se da poltica de integrao, adotada no Par a partir de 1995, nos governos de Almir Gabriel8. Tal poltica tem como pretenso, segundo seus idealizadores, integrar os rgos do sistema de segurana pblica do Estado, incluindo a sociedade civil no processo, visando assim, em ltima instncia, a oferta de segurana pblica de modo igualitrio e universal a toda sociedade paraense. INTEGRAO Para o ento novo governo estadual do Par, a poltica de segurana pblica foi idealizada como um instrumento de mudana, traduzido em diretrizes e aes direcionadas s suas instituies, orientando-as quanto ao caminho a seguir para alcanar a paz social. A grande viabilidade da integrao, segundo seus defensores, consistiu em dispensar complexas e morosas alteraes legislativas, pois preserva a integridade das instituies, suas tradies e personalidades, oferecendo resultados mais rpidos para a sociedade e mais vantagens na relao custo-benefcio para o Estado: tambm o processo mais eficiente de quebrar a endogenia corporativa, sem que as instituies percam a identidade prpria, pelo fato de que passam a perseguir um objetivo comum. (...) Altera, sem quebrar a tradio. E, com isso, melhora os graus de confiana da populao nas instituies. No pode haver integrao se no houver discusso e negociao. Ela no pode ser imposta, tem que ser construda e o passo inicial para isso a clareza de objetivo. Este objetivo deve articular as diferentes misses institucionais num s alvo. Por isso, a integrao um processo que se inicia com a discusso ampla sobre alguns tabus.7

O COMEN visa integrar as estratgias estatais de segurana pblica na regio norte, ultrapassando os limites dos prprios Estados, administrando a troca de informaes e experincias no mbito operacional. 8 Primeiro mandato (1995 - 1998) e sua reeleio (1999 - 2002).

8 O primeiro tabu que haver perda de espao ou de poder, uma vez que integrar exige concesses. Um trabalho de convencimento precisa ser desenvolvido para clarear integralmente o que se pretende. No se pode temer em discutir alguns temas considerados tabus. (...) A quebra de paradigmas existentes e enraizados nas instituies outro obstculo a ser superado. (...) Na verdade, necessrio pacincia para demonstrar as vantagens de fazer de forma diferente e melhor o que fazamos sem pensar. 9 Dentre vrios objetivos estabelecidos, a poltica de integrao busca, sobretudo, comprometer as instituies policiais paraenses com suas misses constitucionais especficas, para pr fim histrica dualidade operacional e fortalecer a conscientizao coletiva da complementaridade do Sistema de Segurana Pblica, para reformar o tradicional modelo repressivo de Polcia do Estado, colocando enfim o cidado paraense no patamar de cliente dos servios prestados pelas foras policiais estaduais, na oferta do bem pblico segurana.

UM OLHAR SOCIOLGICO Certamente, os pesquisadores concordam com David H. Bayley quanto aos problemas prticos que afetam a conduo dos estudos que envolvem as instituies policiais, isto , o problemtico acesso s polcias e a precria documentao catalogada e disponvel nas bibliotecas e arquivos, o que exige uma pacincia desmedida para coletar informaes (Cf. Bayley, 2001, p. 19). Minha condio peculiar me possibilita transpor tais dificuldades. O fato de ser oficial superior da Polcia Militar do Par, com treze anos de servio, possibilita-me interagir com diferentes policiais civis e militares do Brasil e do exterior. Especificamente no Par, minha atividade profissional me permite o acesso s comunidades paraenses, ao longo de quase toda a extenso territorial do Estado. Assim, acompanho em posio privilegiada o processo de integrao desde a sua implementao e, de certo modo, em toda a sua abrangncia.

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PAR. Secretaria de Segurana Pblica. Integrao: uma opo para a Segurana Pblica, setembro, 1999, p. 18 e 19.

9 Por outro lado, minha condio atual de aluno do programa de ps-graduao em sociologia e antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro me fez estranhar o que antes era to familiar e agora, oportunamente, possibilita-me examinar sociologicamente a segurana pblica paraense. Assim, teoricamente embasado e em posio privilegiada, explorei preliminarmente o processo de integrao da segurana pblica no Par. certo que minha experincia enquanto parte do prprio objeto estudado influencia a abordagem. Portanto, a alteridade no pode ser uma questo estruturante neste estudo, no sentido de que no existe posio de exterioridade. H, simplesmente, o policial militar mestrando em sociologia. A observao das inovaes introduzidas no campo da segurana pblica paraense revela que, por um lado, as iniciativas polticas do governo, bem como o discurso dos gestores executivos e comandantes policiais evidenciam um momento de transformao, conforme evidenciou pioneiramente Jean Franois Deluchey10, ao defender a tese de que, atravs da poltica de integrao, est se instalando uma nova ordem democrtica na segurana pblica no Par, que almeja a oferta igualitria e universal do bem-pblico segurana pblica. Por outro lado, um olhar sociolgico sobre o cotidiano das instituies policiais tambm revela que o discurso da integrao, to forte na elite governamental, no ecoa com o mesmo vigor entre as fileiras policiais, apesar dos quase nove anos de construo e amadurecimento do processo de integrao. Os prprios dados estatsticos do desempenho das polcias apresentados pelas instituies policiais como resultados positivos da integrao so insuficientes para sustentar a interpretao que lhes dada pelo governo estadual11. Pelo contrrio, esses dados evidenciam, de fato, um descompasso das polcias com a proposta10

O cientista poltico Jean-Franois Deluchey pesquisou as inovaes da poltica de integrao da segurana pblica implementada no primeiro governo de Almir Gabriel, 1995 a 1998, no Estado do Par. Para saber mais, ler: DELUCHEY, Jean-Franois. Scurit Publique et Ordre Dmocratique au Brsil: LEtat du Par. 2000. 575 p. Tese (Doutorado em Cincia Poltica). Universidade de Sorbonne Nouvelle (Paris III). Paris. 11 Por exemplo, se para o governo o aumento do nmero de inquritos policiais indica o melhor desempenho policial, para outro analista pode representar o incremento das taxas de crime.

10 poltica da integrao de afirmao do cidado como foco dos seus servios, pois se observa empiricamente que o cidado desconsiderado pelas polcias do Par, uma vez que, na aferio do desempenho da polcia civil basta a quantidade de inquritos policiais tombados e para a polcia militar suficiente o nmero de operaes realizadas. Por sua vez, apesar dos esforos e modificaes notoriamente operacionalizadas nos governos de Almir Gabriel, a sociedade paraense no expressa de forma clara e inquestionvel o reconhecimento da integrao como um processo de construo da segurana pblica democrtica. Tal paradoxo foi percebido pela prpria equipe de governo, atravs do ento Delegado Geral de Polcia Civil, Lauriston Ges, que sensvel questo e buscando explicao para tal realidade, classificou a sociedade paraense como uma grande massa silenciosa 12, cujo silncio interpretou como uma manifestao tcita de aprovao. Deve ficar claro, desde j, que no pretendo pr em dvida as intenes democrticas do governo de Almir Gabriel ou mesmo a competncia de sua equipe gestora. Tais pontos so para mim inquestionveis. O que me proponho investigar se a vigorosa retrica, boa vontade e estratgias poltico-administrativas de alguns foram suficientes para levar frente a audaciosa proposta poltica da integrao ou se cada polcia paraense, reativamente, acabou por incorpor-la sua maneira, moldando-a sob a fora das suas tradicionais ideologias13, em dissonncia com o projeto de segurana pblica idealizado para o Estado do Par. A partir dessa preliminar abordagem, formei a suposio de que h fortes contradies entre a implementao do processo e o projeto poltico de integrao, tornando falso o pressuposto da integrao como instrumento vivel de democratizao da segurana pblica. Meu esforo consistir, ento, em analisar contradies lgicas na poltica de integrao do Par, abordando desde as suas condies de implantao s transformaes ideolgicas ehttp://www.pa.gov.br/entrevistas/lauriston_goes1.asp. Acesso em: 16.MAI.2002. Nesta dissertao, tomo por ideologia o proposto por Luis Dumont (in Boltanski e Chiapello, 1999, p. 35), ou seja, dun ensemble de croyances partages, inscrites dans des instituitions, engages dans des actions et par l13 12

11 operacionais resultantes dessa poltica, focalizando principalmente o discurso dos agentes polticos e operadores do sistema de segurana pblica, para evidenciar neles tanto a crtica que motivou a reforma quanto crescente crtica a essa crtica reformadora.

A METODOLOGIA Restou bem definido que esta dissertao tem por objeto de estudo as transformaes ideolgicas e operacionais que esto acompanhando as recentes mudanas no Sistema de Segurana Pblica do Par, que tiveram incio com a chegada de Almir Gabriel ao Governo do Estado do Par, perpassaram seus dois mandatos consecutivos (1995-1998 e 1999-2002), e perduram movidos pela poltica de integrao ainda vigente, passado pouco mais de um ano da sua substituio no poder estadual pelo atual governador Simo Jatene, ex-membro de sua equipe gestora e companheiro poltico no Partido Social Democrata Brasileiro PSDB. Devo agora esclarecer a metodologia escolhida para tal abordagem. Ao longo da pesquisa sero destacadas as caractersticas especficas da integrao construda no Par, em oposio ao precedente e tradicional modelo de segurana pblica brasileiro, dando mais importncia s variaes que s constncias. A proposta apresentar no apenas uma abordagem descritiva das mudanas ocorridas no sistema de segurana pblica, mas, sobretudo, um quadro terico mais geral que possibilite a compreenso das contradies entre a forma como esto se modificando as atividades de segurana pblica no Estado do Par e a ideologia da poltica de integrao. Por outro lado, isso no implicar numa descrio exaustiva de todos os elementos constituintes da integrao. Em sntese, a abordagem focalizar a poltica da segurana pblica a partir de dois conceitos centrais da reflexo: integrao e crtica.

ancres dans le rel. Por outro lado, ideologia ser entendida conceitualmente de forma anloga ao que se quer propor como esprito. Assim, por vezes, os termos sero alternadamente empregados.

12 Integrao consiste no movimento de reforma do sistema de segurana pblica do Par. A crtica cujo sentido decorre do diferencial entre o estado desejado das coisas e o estado real aqui entendida como o motor das mudanas (Cf. Boltanski e Chiapello, 1999, p. 69) e figura como o principal material analtico do estudo. Ela ser captada no discurso dos principais polticos, gestores e operadores do sistema. Algumas narrativas ocasionais que evidenciam resistncias integrao, registradas em conversas casuais com policiais estaduais ao longo da elaborao da dissertao, sero contrastadas com os discursos integradores para enriquecer a discusso terica proposta. A sociologia da reforma do Sistema de Segurana Pblica do Par, de 1995 a 2004, tratar fundamentalmente de cinco questes: 1. Qual a ideologia da poltica de integrao e que mudanas promoveu na reforma do Sistema de Segurana Pblica? 2. Existe resistncia ao processo de integrao? Essa resistncia resulta de uma postura crtica? Em caso afirmativo, em que consiste essa crtica? 3. As prticas policiais no Par reproduzem a poltica de integrao? 4. A integrao produzir efeitos mais benficos para a sociedade do que o modelo tradicional de segurana pblica? 5. Est em formao um novo esprito democrtico nas polcias paraenses que possibilite a institucionalizao das inovaes democrticas? Na busca das respostas para as questes acima, muito se falar sobre mudana e transformao. Assim sendo, chamo a ateno para a importante diferenciao conceitual desses dois vocbulos, pretendida nesta dissertao. Transformao supe uma novidade ligada construo de uma sntese dialtica, que mesmo valorizando as razes e o passado, j outra realidade, com diferenas na forma e no esprito, na mecnica e no contedo. J mudana, altera corretivamente as conjunturas ou no mximo as estruturas funcionais dos sistemas, havendo apenas retificao de rumo, mas no profunda alterao de cultura (Balestreri, 2002, p.47, o grifo meu).

13 O pressuposto central da anlise que a consolidao do processo de mudanas na Segurana Pblica do Estado Par isto , uma verdadeira transformao ideolgica tem como condio necessria existncia de um autntico esprito integrador, ou melhor, um esprito democrtico que se estabelea a partir de princpios claramente definidos, robustos e universais, orientados justia e ao bem comum (Cf. Boltanski e Chiapello, 1999, p. 62). Lanando mo do meu estudo preliminar sobre a segurana pblica paraense (Oliveira Neto, 2002, passim), observo que as polcias civil e militar do Par esto se moldando poltica da integrao preservando dissimuladas suas ideologias autoritrias, atravs de arranjos institucionais prprios que ocultam os valores tradicionais das instituies policiais. Atravs da pesquisa bibliogrfica, utilizo textos de outros pesquisadores para evidenciar que o processo de transformao da segurana pblica autoritria em democrtica encontra a forte resistncia decorrente da prpria concepo de segurana pblica no Brasil. As mudanas no Par seguem seu curso assumindo configuraes que destoam da pretendida reforma democrtica da segurana pblica e isto se deve, conforme evidenciarei, a inexistncia de mecanismos estruturais de facilitao de justificativas individuais no seio das instituies que compem o sistema para motivar o engajamento dos policiais paraenses no processo de integrao da segurana pblica. Da minha experincia pessoal, idiossincrsica, frente ao processo de integrao da segurana pblica paraense, resulta enfim a hiptese de que a poltica pblica de integrao da segurana pblica preserva no apenas a estrutura dicotmica policial estadual, mas seus tradicionais ethos repressivos, inviabilizando, com isso, a oferta igualitria e universal de segurana pblica sociedade.

14 Para comprovar minha hiptese, escolhi trabalhar sobre um dos referenciais polticoadministrativos da integrao apontados por Deluchey14: a imposio de exigncias de eficcia e da prestao da segurana pblica como servio pblico, forando a profissionalizao das foras policiais. Nessa direo, esmiuarei a metodologia dos atuais indicadores de desempenho da atividade policial impostos s seccionais/zonas de policiamento da Regio Metropolitana de Belm RMB, para evidenciar a permanncia dissimulada dos ethos tradicionais das polcias paraenses no processo da integrao. A escolha dessas unidades policiais integradas se d em razo de que: ... elas representam um micro-modelo de gesto da segurana pblica onde cotidianamente intervm as diferentes presses decorrentes do conflito natural entre os indivduos e onde esse jogo poltico se desenvolve em toda a sua totalidade, mas numa escala to pequena que se torna fcil apreend-lo. Por outro lado, as Seccionais/Zonas de policiamento se situam privilegiadamente no exato momento de transformao das polticas governamentais de segurana pblica em estratgias operacionais dos seus mais significativos agentes, ou seja, onde as polticas se materializam na ao dos policiais de oferta do bem pblico segurana populao, de maneira direta e, portanto, mais perceptvel sociedade paraense (Reis, 2004, p.).

A ORGANIZAO DA DISSERTAO A dissertao se divide em trs partes. A primeira, intitulada A Gnese da Segurana Pblica Democrtica no Par, composta pelos captulos I e II que tratam desde os momentos que antecederam criao da poltica da integrao at os primeiros meses de 2004, aps a sada de Almir Gabriel do governo do Par.

O cientista poltico Jean-Franois Deluchey pesquisou as inovaes da poltica de integrao da segurana pblica paraense dentro de trs temas: (1) a consonncia entre governos federal e estadual na definio constitucional de segurana pblica como dever do Estado, direito dos cidados e responsabilidade de todos; (2) o aperfeioamento dos controles tradicionais internos e externos das atividades policiais estaduais; e (3) a profissionalizao das foras policiais, atravs da imposio de exigncias de eficcia e da prestao da segurana pblica como servio pblico.

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15 O primeiro captulo - O esprito da segurana pblica e o papel da crtica - apresenta uma definio conceitual mnima de segurana pblica. Argumento sobre a necessidade de um esprito para a segurana pblica e discuto o autoritarismo da segurana pblica no Brasil e o papel da crtica na construo das justificaes individuais. O Captulo II, intitulado A reforma, esclarece como se deu a modificao do sistema de segurana pblica, criando o novo modelo integrado. Atravs do discurso dos principais gestores do sistema de segurana pblica, apresento suas justificativas para a evoluo do sistema, frente s resistncias institucionais e individuais. A segunda parte - A integrao e suas crticas - composta pelos captulos III e IV. Trata do movimento crtico que resiste ao modelo de integrao, atravs das representaes das polcias estaduais e da sociedade paraense. Desterrados e reformadores, captulo III, evidencia os dois grupos principais que sustentam as crescentes crticas ao modelo da integrao e analiso os desdobramentos das transformaes institucionais promovidas pela reforma do sistema. O captulo IV, intitulado Outros olhares discute trs recentes pesquisas de campo que trabalharam a integrao em Belm, evidenciando as percepes: da sociedade cliente do servio prestado pelas polcias estaduais; das lideranas comunitrias parceiras das polcias; e dos responsveis pelo gerenciamento da oferta de segurana pblica. A terceira e ltima parte - Ethos tradicionais e o esprito da segurana pblica integrada - composta unicamente pelo captulo IV, Quando menos mais, que descreve e analisa os indicadores de desempenho policial do sistema integrado de segurana pblica, utilizados na RMB, especificamente nas seccionais/ zonas de policiamento, em 2002. O reencontro entre a realidade das polcias paraense e o processo de democratizao da segurana pblica no Estado forma a concluso da dissertao, sob o ttulo Repensar a

16 reforma para reformar o pensamento. Nela, trato da necessidade de mecanismos de fomento do engajamento individual para tornar possvel a construo do esprito policial democrtico. Confesso, enfim, que a segurana pblica me envolve de maneiras paradoxais. Uma dimenso minha atuao na vida pblica como policial militar. Outra o papel de socilogo em formao. Uma dualidade que converge na tenso de ser um intelectual capaz de influenciar a vida pblica, atravs da produo de conhecimento acadmico. A presente dissertao fruto dessa subjetividade e encontra sua justificativa na real necessidade da reflexo sociolgica coerente sobre uma poltica de governo ainda vigente, a fim de contribuir para a verdadeira democratizao da segurana pblica.

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Primeira parte:

A GNESE DA SEGURANA PBLICA DEMOCRTICA NO ESTADO DO PAR

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CAPTULO 1

O ESPRITO DA SEGURANA PBLICA E O PAPEL DA CRTICA

Neste captulo, apresentarei o referencial terico que sustentar minha argumentao. No se pretende exibir habilidade na manipulao conceitual, atravs da extensa apresentao de citaes, autores e obras, mas to somente destacar vrias idias que so produtos de estudos distintos e que formaro as bases conceituais da minha posio analtica, a partir do isolamento e integrao daqueles conceitos que sero mais produtivos para a pesquisa. Em outras palavras, mostrarei agora as lentes atravs das quais enxerguei a realidade da segurana pblica do Par.

Uma definio mnima do Sistema de Segurana Pblica No simples a tarefa intelectual de definir segurana pblica. A busca pelo conceito sinttico margeia um perigoso reducionismo, onde cada tentativa assume diferentes contornos, amplia-se, reduz-se, perde significncia, transforma-se e, ao final, de to abstrato, pouco ou nada esclarece. um conceito amorfo, fludo.

19 Tal problemtica foi observada por Jean-Franois Deluchey (2000), que ressalta existirem, no Brasil, diferentes entendimentos de segurana pblica decorrentes de uma confuso anterior na definio de outro conceito a ele correlato, o de ordem pblica. Na realidade, os juristas brasileiros no entram em comum acordo sobre a definio de ordem pblica. Ela representa alternadamente a ausncia de problemas, uma situao de respeito ao ordenamento jurdico ou um conceito mais amplo, integrando a ordem moral e os costumes. A noo de ordem pblica fica, deste modo, vaga, apesar dos esforos dos juristas em lhe alcanar e definir contornos15 (Deluchey, 2000, p. 58, traduo livre). O conceito de ordem pblica remete, necessariamente, idia de um espao pblico ordenado, regido por regras explcitas e universalmente conhecidas, que devem ser literalmente obedecidas. Um espao construdo por e a partir do consenso. A conseqncia que se esta ordem revelar-se de difcil ou impossvel manuteno, ter sempre que ser renegociada, para incluir os dissidentes e captarlhes a adeso, sem a qual estaro prejudicados pela impossibilidade do convvio social (Kant de Lima, 2002, p. 200). Empiricamente, a necessidade de renegociao da ordem se revela constante. Nunca definitiva e acabada. Um estado potencial de desordem caracterstico do espao pblico (que) se contrape idia de uma sociedade harmnica (Kant de Lima, 2002, p.205), ou seja, mais do que um simples jogo de palavras, o que se vivencia a desordem pblica, no sentido da permanente reconstruo da ordem. Em portugus, pblico uma categoria que remete, fundamentalmente, ao espao apropriado particularizadamente pelo Estado, algo que, portanto, no passvel de apropriao coletiva (...) como o espao de apropriao particularizada pelo Estado, este que o responsvel, em princpio, pela definio das regras para sua utilizao e pelo zelo para que se cumpram (Kant de Lima, 2002, p. 203).

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En ralit, les juristes brsiliens ne saccordent pas sur une dfinition de lordre public. Il reprsent tour tour labsence de troubles, une situation de respect de lordre juridique ou un concept plus large integrant lordre moral et les us te coutumes. La notion dordre public reste dans le flou, mlgre les efforts de ces jurists en definir la porte et en dlimiter les countours.

20 Nessa fluidez conceitual, a definio de segurana pblica segue livre por diferentes caminhos, ora dever do Estado na garantia da vida, liberdade e direito de propriedade dos cidados, ora como possibilidade dos cidados se defenderem dos abusos do poder desse mesmo Estado, quando ele no for mais o confivel protetor. Conforme Deluchey (2000, p. 59), como recurso final para encerrar o dilema, o bom senso popular e a doutrina jurdica parecem entender, tradicionalmente, segurana pblica como coisa de polcia, afinal, a polcia , em princpio, a instituio designada, (...) para fazer cumprir, em ltima instncia, empiricamente, as regras de utilizao dos espaos pblicos (Kant de Lima, 2002, p. 204). Este entendimento simplista no inofensivo. Ao transpor o plano das idias e alcanar o cotidiano da permanente construo da ordem pblica, tal concepo reforar o carter autoritrio e repressivo das autoridades governamentais na negociao dos conflitos nos espaos pblicos. Da aceitao do entendimento popular de que segurana pblica sinnimo de polcia, chegamos, enfim, pretendida definio mnima de Sistema de Segurana Pblica: o conjunto das instituies policiais coordenadas entre si e que funcionam como uma estrutura organizada mantenedora da ordem pblica, atravs da regulao prtica do uso dos espaos pblicos. Sem dvida uma definio simplista, mas, por ora suficiente.

O autoritarismo da Segurana Pblica no Brasil: males de origem Para o devido entendimento do histrico autoritarismo da segurana pblica no Brasil, eu retorno discusso sobre o conceito de pblico. Conforme ensina Kant de Lima (Ibid, p. 199 a 219), no pas, o espao pblico no passvel de negociao ou apropriao

21 coletiva. apropriado particularmente pelo Estado. Resulta, ento, de um acordo forado onde os indivduos no so apenas diferentes, mas so tambm desiguais, pois possuem poder poltico diferenciado. A interveno estatal ser justificada como necessria manuteno da ordem, atravs do balanceamento das desigualdades existentes. Da, segundo Kant de Lima, caber ao sistema de segurana pblica, ou seja, polcia, no apenas forar o cumprimento da lei, mas identificar os conflitos e minimizlos, quando possvel, ou reprimir fortemente para extingu-los, por se constiturem uma ameaa potencial a todo o ordenamento social harmnico. A legitimidade da ao policial estar, ento, associada interpretao do que deseja o Estado para a sociedade brasileira e no do que a sociedade deseja para si mesma. A polcia , assim, eminentemente interpretativa, pois busca identificar cada um dentro da estrutura hierarquizada da sociedade, para tratar desigualmente os estruturalmente desiguais, aplicando a lei geral de forma particular, caso a caso. Como as regras que regem a sociedade so particulares, isto , no inteiramente explcitas, criam-se espaos de clandestinidade (Cf. Misse, 1999) onde a suspeio rege a ao policial e os direitos civis so tranqilamente ignorados. O Estado e a polcia definem-se, assim, como instituies (...) separadas do conjunto de cidados que precisam no apenas controlar, mas, fundamentalmente, manter no seu devido lugar, reprimir. A suspeio sobre as intenes de descumprir regras (...) caracteriza a ao da polcia (Kant de Lima, 2002, p. 207).

O esprito autoritrio e repressivo da segurana pblica brasileira no recente. Remonta suas origens criao da instituio Intendncia Geral de Polcia, em 10 de maio de 1808, no Rio de Janeiro, devido transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil.

22 A nova instituio baseava-se no modelo francs introduzido em Portugal, em 1760. Era responsvel pelas obras pblicas e por garantir o abastecimento da cidade, alm da segurana pessoal e coletiva, o que inclua a ordem pblica, a vigilncia da populao, a investigao dos crimes e a captura de criminosos. Assim como os juzes do tribunal superior de apelao do Rio, o intendente ocupava o cargo de desembargador, sendo tambm considerado ministro de Estado. (...) Ele representava, portanto, a autoridade do monarca absoluto e, coerentemente com a prtica administrativa colonial, seu cargo englobava poderes legislativos, executivos e judiciais (Holloway, 1997, p. 46). Frente necessidade permanente de contar, na colnia, com uma fora capaz de responder a situaes de emergncia - uma vez que, mesmo sendo possvel convocar as tropas do Exrcito Real, nos fortes e quartis, elas poderiam estar indisponveis para as funes policiais durante longos perodos, por se encontrarem ausentes em treinamento ou em campanha foi criada a Guarda Real, em maio de 1809, aos moldes da instituio de Lisboa. A misso permanente da nova instituio era manter a ordem pblica atravs do policiamento ininterrupto do espao pblico do Rio de Janeiro. Seus oficiais e soldados provinham das fileiras do Exrcito regular e, como tropas militares, recebiam apenas um estipndio simblico, alm de alojamento e comida nos quartis e do uniforme (...) Escolhidos a dedo em funo do tamanho e da truculncia, batiam em qualquer participante (das reunies de pessoas comuns, na maioria escravos, que confraternizavam, bebiam cachaa e danavam ao som de msicas afro-brasileiras at tarde da noite), vadios ou tratantes que conseguissem capturar (...) Depois de problemas disciplinares recorrentes (...) cada patrulha policial consistia em dois homens da Guarda Real e um da milcia ou do Exrcito regular, sendo o ltimo considerado o freio dos primeiros (Holloway, 1997, p. 48 e 49). O esprito autoritrio, decorrente da gnese da segurana pblica no pas, perdurou ao longo dos tempos, chegando aos dias atuais, reforado, no Brasil, seja pelos valores de nossa cultura judiciria, seja pelo ethos16 militar que tem definido a atuao das polcias militares, tanto antes de 1964, quanto depois desta data (Kant de Lima, 2002, p. 207).

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O conceito ethos, proposto por Kant de Lima, aqui entendido como o conjunto de formulaes sintticas de caractersticas prprias das atitudes dos indivduos portadores da cultura (Durham, 1984, p. 76).

23 A cultura judiciria brasileira exerce sua influncia negativa ao se caracterizar pela valorizao do saber dogmtico situado em nveis superiores mais destacados da sociedade, bem como pela profunda influncia dos princpios inquisitoriais, que a fazem se relacionar de forma punitiva com a explicitao de conflitos. Quanto ao ethos militar, Kant de Lima (2002) cita sua influncia negativa em pelo menos dois aspectos. Primeiro, por serem as Polcias Militares organizaes subordinadas s Foras Armadas. Em segundo lugar, por manterem da hierarquia militar a estrita obedincia e a negao da autonomia, fundamental para o exerccio profissional da mediao dos conflitos no espao pblico.

Finalmente, tanto o ethos militar como a cultura jurdica influenciam contraditoriamente o desempenho da atividade policial que se destina administrao dos conflitos na sociedade. Pois ambas tem como objetivo, respectivamente, o combate e o extermnio do inimigo ou a inexorvel punio dos transgressores. Em ambos os casos, duas atitudes inadequadas para o ethos policial, que se deve ater interminvel e inevitvel tarefa de administrao dos conflitos que se explicitam na sociedade, sem emitir juzos de valor, a no ser aqueles necessrios para ensejar a aplicao das regras em vigor (Kant de Lima, 2002, p. 211).

A necessidade de um esprito para a segurana pblica Luc Boltanski e ve Chiapello (1999), ao refletirem sobre o capitalismo, consideram-no um sistema absurdo por dois principais motivos: (1) os assalariados perderam a propriedade sobre o resultado de seus trabalhos e a autonomia para conduzir suas vidas de forma ativa; (2) os capitalistas se perdem em um processo infinito e insacivel de acumulao. Concluem, ento, que a insero no processo capitalista carece singularmente de justificaes (Boltanski; Chiapello, 1999, p. 41, traduo livre).

24 Para esses autores, a motivao material como justificao se revela pouco estimulante, pois o salrio constitui, quando muito, um motivo para permanecer no emprego, no para nele se engajar (Boltanski; Chiapello, 1999, p. 42, traduo livre). Por outro lado, pode-se pensar no engajamento pela fora, contudo, se existe a possibilidade desta hiptese ser comprovada em certos trabalhos que utilizem mo-de-obra abundante e no qualificada, ela totalmente inaceitvel quando a atividade requer um nvel maior de competncia, autonomia e engajamento positivo do trabalhador. precisamente porque o capitalismo tem uma parte ligada liberdade, no h uma dominao total sobre as pessoas, o que supe a existncia de uma quantidade numerosa de trabalhos no realizveis sem a implicao positiva, em que deve haver razes aceitveis de se engajar. Estas razes esto reunidas dentro do esprito do capitalismo17 (Boltanski; Chiapello, p. 580, traduo livre). A utilizao do modelo analtico de Boltanski e Chiapello possibilita uma interessante reflexo sobre o sistema de segurana pblica. Como ponto de partida, considero o sistema de segurana pblica conflitante por um nico motivo: exige dos seus agentes a implicao positiva plena. Duas situaes so suficientes para evidenciar a exigncia do engajamento absoluto. Tomemos, por exemplo, os policiais estaduais que so os agentes mais ostensivos da segurana pblica, no Brasil: (1) no exerccio cotidiano da atividade policial, o agente se encontra com relativa freqncia na tnue fronteira entre o legal e o criminoso. Isso porque, por um lado, distintas sensibilidades jurdicas (Geertz, 1978, passim) possibilitam diferentes compreenses das normas legais vigentes; por outro, muitas das vezes a polcia combate o crime com as mesmas armas do crime (Monjardet, 2003, p. 29). A manipulao dessas situaes limtrofes cria oportunidades de benefcio particular do prprio agente;

17

Cest prcisment parce que le capitalisme a parti lie avec la libert, na pas une emprise totale sur les personnes, et suppose laccomplissement de trs nombreux travaux non ralisables sans limplication positive, qu il doit donner des raisons acceptables de sengager. Ces raisons sont runies dans lesprit du capitalisme.

25 (2) a atividade policial implica, em considervel grau e com acentuada regularidade, na possibilidade de risco integridade profissional, psicolgica e fsica do agente. A motivao material18 como justificao para o engajamento no resiste ao levantamento emprico. Primeiramente, so baixos os salrios pagos, de modo geral, aos policiais brasileiros. Em segundo, a anlise comparativa entre os diferentes nveis hierrquicos de uma mesma corporao policial ou entre os mesmos nveis hierrquicos de corporaes diferentes no comprova o maior engajamento daqueles de mais altos salrios. Tampouco a fora, ainda que defendida pelas instituies policiais - especialmente as militares, atravs dos rigorosos regulamentos disciplinares19 - que desconhecem at garantias constitucionais -, suficiente para assegurar o engajamento dos profissionais. O exerccio da funo policial requer, portanto, em um incomensurvel nmero de situaes, a implicao positiva do agente que, por sua vez, dever encontrar no sistema razes aceitveis para seu engajamento individual. As razes esto reunidas no que chamarei, de agora em diante, o esprito da segurana pblica, ou seja, a ideologia construda pelas crenas partilhadas, inscritas nas instituies associadas ordem do sistema de segurana pblica que contribui para justificar esta ordem e para sustentar, nos seus agentes, os modos de ao e os dispositivos que lhe so coerentes.

O papel da crtica Para Boltanski e Chiapello (1999, p. 581), o capitalismo necessita de regulaes de ordem moral pelo fato de que ele constitui, por essncia, um processo insacivel. As

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Refiro-me exclusivamente a motivao material consoante com os dispositivos legais, isto , as gratificaes monetrias oriundas da poltica salarial da instituio. Nesta argumentao, no esto sendo consideradas as vantagens decorrentes de atitudes ilcitas ou discordantes dos preceitos legais, ticos ou disciplinares que regulam o exerccio da profisso policial. 19 Por exemplo, o RDPM do Par, que disciplina o exerccio da profisso policial militar estabelecendo as faltas administrativas e as formas de punio. Nas faltas administrativas consideradas graves, admitida a privao temporria da liberdade isto , priso por at trinta dias consecutivos.

26 pessoas precisaro de justificaes para se engajar no processo. O capitalismo padece, ento, de uma inerente instabilidade, fruto de suas propriedades sistmicas. Ora, o capitalismo no pode se desenvolver sem apoiar-se na paixo humana pelo acmulo de ganhos, de poder, de criao e de experincias diferentes. Mas, esta fora de todo modo insuficiente, uma vez que, sem controle exterior, o desejo de acumulao se torna problemtico e tende violncia e autodestruio. O esprito do capitalismo soluciona este problema, pois ativa a instabilidade sobre as formas de excitao e liberao, amarrando-a as exigncias morais que vo limit-la e fazer pesar sobre ela as presses do bem comum. Na relao entre o desejo de acumulao e o bem comum existe uma tenso permanente e, dessa forma, o poder de mobilizao do capitalismo pode diminuir ou crescer. Diminui quando perde seu carter estimulante, isto , o desejo de acumulao e cresce quando so menores os limites reguladores deste desejo, ou seja, quando menor o freio moral do bem comum. Por outro lado, Boltanski e Chiapello tambm observam que as pessoas no deixam de existir fora do trabalho, isto , elas participam de outras redes de sociabilidade e, assim, apiam-se em suas vidas exteriores (domstica, familiar, cultural, poltica etc.) para manter uma distncia crtica do sistema capitalista. Deste modo, as dificuldades encontradas pelo capitalismo so duas: (1) as pessoas esto longe de se sacrificar de forma plena no processo de acumulao, por no se identificarem completamente com o regime; e (2) as pessoas continuam ligadas a uma pluralidade de ordens de valor, fruto do pertencimento simultneo a diversidade de mundos verdadeiros que faro, sempre, de algum modo, os desejos conflitantes. Para sobreviver permanente crtica, o capitalismo se apia em um fundamento moral que toma por emprstimo ordens (ou lgicas) de justificaes que lhe so exteriores e princpios de legitimao que lhe fazem falta (Cf. Boltanski; Chiapello, 1999, p. 61). Ao

27 incorporar a crtica, transforma-se e se fortalece. Mantm-se atual e vigoroso. A crtica , portanto, no uma ameaa, mas sim motor das transformaes no esprito do capitalismo. Retorno agora anlise do sistema de segurana pblica, ou melhor, do modelo tradicional de segurana pblica brasileiro20. A instituio legalmente responsvel pela administrao dos conflitos no espao pblico - ou seja, a polcia militar - tem concepo militarista. Seu efetivo corresponde grande maioria dos policiais estaduais. Decorre, ento, que o ingresso principal no sistema de segurana pblica se d, em geral, atravs das academias e escolas de formao policial militar, em um perodo intenso de socializao, com relativo isolamento. Uma transio abrupta e sbita da vida civil para a vida policial militar, que evidencia a tentativa de ruptura entre os antigos valores e sensibilidades civis, a fim de possibilitar uma nova estrutura de carter (Cf. Castro, 1990, p. 15 a 51). Os sistemas tradicionais de ensino policial militar, partes significativas do modelo autoritrio de segurana pblica, acreditam conseguir, atravs do perodo de formao profissional, criar indivduos unidimensionais, ou melhor, policiais militares puros. Ignoram que as pessoas, apesar de todo o esforo institucional, continuam a existir fora da polcia militar e que assim, naturalmente, participam de outras redes de sociabilidade. Ora, o modelo tradicional de segurana pblica no reconhece a crtica. O sistema de segurana pblica tradicional uma justificao como qualquer outra e, assim, no apresenta um fundamento moral que possibilite o emprstimo das ordens de justificaes exteriores. Ou seja, sua ideologia no contempla a necessidade de ofertar um mnimo de justificaes que, segundo critrios de justia, possam responder s crticas contra o sistema e fazer com que ele continue a ser desejvel. Enfim, no oferece aos seus agentes a possibilidade de justia e segurana mnimas que justifiquem a implicao positiva.

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Para maior entendimento do modelo tradicional da segurana pblica, ler: Kant de Lima, Roberto. A polcia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos; 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995.

28 Ao se contrapor o esprito do capitalismo ideologia da segurana pblica, v-se que, para o primeiro, o bem comum se apresenta no como uma fonte de estmulo e prazer que justifica o engajamento individual ao capitalismo, mas sim como um freio moral sua tendncia sistmica de autodestruio. Diferentemente, a ideologia tradicional de segurana pblica v no bem comum a justificativa mais que suficiente para o engajamento individual e, assim, deixa de contemplar arranjos sociais sobre os pontos onde sua lgica carece de um imperativo de justificao, ainda que estes arranjos sociais tendam a incorporar a referncia a um tipo de conveno social pretendente de uma validade universal, em geral, igualmente orientada ao bem comum (Cf. Boltanski; Chiapello, 1999, p. 56). Apesar do autoritarismo da segurana pblica, seus agentes seguem vivendo outros mundos verdadeiros e produtores de crticas. Uma latente capacidade transformadora, ora enfraquecida, ora corrosiva e revolucionria. Fica evidente a insustentabilidade social do modelo tradicional da segurana pblica. Um modelo isolado que parece caminhar rumo ao colapso pela falta de engajamento dos seus agentes. Tal concluso implica na necessidade de instaurao de um novo modelo de segurana pblica que podendo at preservar antigas instituies necessariamente dever estar apoiado em um novo esprito.

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CAPTULO 2 A REFORMA

No processo de mudana social, uma sociedade tender sempre a se ajustar s novas condies atravs das instituies sociais j existentes. Essas instituies sobrevivero, mas com novos valores, dentro de um novo sistema social.William Watson (1958)

Esta abordagem tem como proposta evidenciar o movimento reformador21 do Sistema de Segurana Pblica do Par que buscou, em linhas gerais: aumentar eficincia da mquina estatal atravs da imposio de uma cultura de resultados; valorizar os recursos financeiros do Estado limitando as despesas pblicas; restaurar a autoridade dos atores poltico-administrativos sobre os atores operacionais; estabelecer a transparncia na gesto pblica; estimular a participao da sociedade civil na construo da paz social. Um movimento que teve incio em 1995, com a chegada de Almir Gabriel ao Governo do Estado e se fortaleceu em dois mandatos consecutivos (1995-1998 e 19992002). A abordagem se estende ao incio de 2004, pouco mais de um ano aps sua sada do poder estadual, substitudo pelo atual governador Simo Jatene, ex-membro da equipe de Almir Gabriel e seu companheiro no Partido Social Democrata Brasileiro PSDB.

30 Fontes de informao sobre a reforma da segurana pblica no Par

A reconstruo do curso histrico seguido pelo movimento que reformou a segurana pblica paraense ter duas fontes de informao: (1) os discursos dos principais polticos, gestores e operadores do sistema de segurana pblica do Par, registrados nos materiais publicitrios elaborados pelo prprio governo e, sobretudo, (2) as entrevistas diretas realizadas com esses atores poltico-administrativos, na fase de trabalho de campo. Por outro lado, o ineditismo da poltica de integrao, o novo modelo de gesto do sistema de segurana pblica, a sinalizao da democratizao da segurana pblica e o fervor publicitrio sobre os resultados positivos da nova proposta direcionaram para si inquietos olhares acadmicos. Assim, oportunamente, recorri a duas abordagens, uma das cincias polticas e outra gerencial, que muito contribuem para o entendimento e contextualizao da experincia paraense.

Contextualizando a reforma Segundo Jorge Reis (2004), chegou-se a um momento histrico especial onde a fragilidade das economias capitalistas evidenciou a falncia das idias keynesianas frente a uma imensa crise fiscal. A crise fiscal resultou no problema de financiamento das aes governamentais, forou a retirada dos instrumentos de interveno econmica e fez ressurgir o velho ideal do laissez-faire, do livre mercado e livre concorrncia. A conjuntura que sucedeu este momento caminhou no sentido de uma desregulamentao da economia, isto , de uma reforma da burocracia estatal. Nesse contexto, encabearam essas novas idias os organismos multilaterais de financiamento das economias em desenvolvimento (Reis, 2004).

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Reforma foi o termo escolhido por Almir Gabriel para definir seu governo: Deixei de ser revolucionrio para ser reformista (...) tenho clareza disso (...) o projeto era de reforma (Almir Gabriel, 03.FEV.2004).

31 Muitos pases capitalistas foram obrigados a repensar suas polticas pblicas de desenvolvimento, tendo como participantes naturais dos cenrios polticos os atores supranacionais. O Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional (FMI) tm, hoje, maiores recursos para orientar as polticas pblicas que a mais poderosa coalizo parlamentar (Oszlak, 1998, p. 94). O Estado teve, ento, que se sujeitar nova postura: Um Estado eficiente vital para a proviso dos bens e servios bem como das normas e instituies que permitem que os mercados floresam e que as pessoas tenham uma vida mais saudvel e feliz. Sem isso, impossvel o desenvolvimento sustentvel, tanto econmico quanto social. Muitos disseram a mesma coisa h 50 anos, a tendncia naquela poca era dar a entender que competiria ao Estado a proviso do desenvolvimento. A nova mensagem um pouco diferente: o Estado essencial para o desenvolvimento econmico e social, no como promotor direto do crescimento, mas como parceiro, catalisador e facilitador (Banco Mundial, 1997, p. 1. In: Reis, 2004). No Brasil, os anos 1980 consagram o fim de vinte anos de regime autoritrio com a to sonhada abertura poltica. Sob forte tendncia inflacionria, crise das dvidas externa e interna e o desmoronamento da elite poltica que deu suporte ao governo militar, o pas adota o novo modelo de gesto pblica. O pas teve que se render a uma austera poltica econmica monitorada pelo FMI e decretar o fim das polticas intervencionistas que marcaram o modelo do Nacional-Desenvolvimentismo Brasileiro dos anos 70. Dessa maneira, a burocracia que havia se insulado no mbito da estrutura do Estado Brasileiro se viu obrigada a passar por um processo de encolhimento em nome da eficcia e da eficincia na ao do Estado (Reis, 2004).

Esse novo modelo, conhecido como gerencialismo, caracterizou-se pela: (1) reduo dos gastos pblicos atravs de uma poltica de privatizao de empresas estatais e do fortalecimento de instituies no-governamentais; (2) eliminao da rgida hierarquizao burocrtica; e (3) busca da eficincia da prestao dos servios pblicos.

32 Especificamente sobre a segurana pblica, uma das reas do Estado que constitucionalmente no se pode privatizar, o gerencialismo teve duplo efeito. Por um lado gerou uma implacvel crise de eficincia nas instituies policiais. Por outro, ao diminuir os gastos pblicos na rea social, fortaleceu fatores formadores de conflitos sociais. Ficou evidente a necessidade de um novo modelo de segurana pblica que se adequasse a crescente demanda social por segurana e aos sucessivos cortes oramentrios. Neste contexto, mesmo que as prticas e doutrinas das polcias brasileiras pouco tenham se modificado nas trs ltimas dcadas, a abertura poltica e a reestruturao poltico-administrativa do Estado brasileiro tornaram possvel a incluso nas agendas governamentais de propostas de reforma democrtica da segurana pblica. O Estado do Par um bom exemplo (Cf. Deluchey, 2000, p. 396).

Sem utopias nem revolues Frente crise de eficincia da segurana pblica no Brasil, uma das correntes polticas de maior expressividade nacional defendeu a soluo radical: extino das polcias estaduais para dar lugar a uma nova e nica polcia. Ainda que encontrando apoio em grande parte da sociedade, essa alternativa acabou por se revelar impraticvel frente complexidade dos inmeros fatores envolvidos e a forte presso das polcias estaduais. A tendncia era extinguir tudo o que existia na polcia civil, na polcia militar e criar uma nova polcia. Eu tenho certeza de ter sido a voz que foi capaz de passar aos demais a idia da necessidade de uma maior ponderao para fazer transformaes e no revoluo. Ns no estvamos vivendo uma revoluo. A integrao era uma questo absolutamente necessria. (...) o passo que hoje o Brasil pode dar. Se daqui a cinqenta anos ns tivermos a condio de fazer a polcia nica, tudo bem, mas no atual momento, considero a integrao a forma mais adequada (Almir Gabriel, 03.FEV.2004).

33 A integrao da segurana pblica foi a alternativa escolhida pelo governo do Par para ser implementada dentro do contexto poltico-social brasileiro, justificada segundo os atores polticos pela dificuldade de se mudar atravs da simples ao de um governador, uma realidade construda ao longo de dcadas e regimes autoritrios no Brasil. Ns aproveitamos uma oportunidade que foi aquela discusso que surgiu, logo no incio do governo do Fernando Henrique (1995), no Brasil inteiro, com uma fora muito grande, de unificao das polcias. Aquilo ali criou uma instabilidade em todas as instituies (policiais) do Brasil e a partir dali, voc sentia que estavam todos em busca de alguma coisa que fosse menos radical. Voc sentia claramente isso. Ento, de repente, quando ns comeamos a jogar a idia: vamos caminhar na mesma direo, vamos trabalhar na mesma rea, vamos lutar pela integrao, vamos integrar (...). A gente testou isso, eu particularmente, em vrias reunies que tivemos no Brasil com comandantes das PM e com delegados gerais (...) e voc sentia que o discurso agradava (Sette Cmara, 19.AGO.2003). O processo de integrao da segurana pblica foi implementado no Par, de 1995 a 2002, por Almir Gabriel22 e sua equipe de governo. O novo governador sabia que a integrao colocaria juntas duas instituies que historicamente no se relacionavam muito bem. Ainda que as polcias estaduais estivessem sob os mesmos ditames legais, suas aes eram de ntida separao e hostilidade. Os efeitos desses atritos institucionais eram potencializados por uma questo crtica: estavam todos legalmente autorizados a portar armas de fogo. Ento, sob a gide da integrao, o que antes era um direito especial passou a ser enfatizado como a responsabilidade mais dramtica de cada policial estadual. A reforma do modelo tradicional de segurana pblica para a implantao do modelo integrado teve trs orientaes gerais: (1) a definio de objetivos comuns, cujos fins obrigatoriamente correspondiam ao sistema como um todo complementar; (2) o respeito s especificidades histricas das instituies; e (3) a modernizao do sistema.

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Experiente burocrata, Almir Gabriel apresenta um longo histrico de liderana poltica no Par que remonta a dcada de 60. At o presente, em sua vida pblica foi diretor do Hospital Federal Barros Barreto, diretor do Departamento Nacional de Tuberculose do Ministrio da Sade, secretrio estadual de sade do Par (no governo de Alacid Nunes), prefeito de Belm, senador e, por duas vezes, governador do Estado.

34 A paz social Para Almir Gabriel23, a Constituio de 1988 produto de um momento de ruptura, decorrente de desequilbrios polticos anteriores, sendo natural que esses desequilbrios tenham reflexos e se infiltrem no seio da prpria Constituio. Por exemplo, a ausncia do governo federal em questes da segurana pblica. Ns vnhamos de um perodo autoritrio onde o governo misturava segurana pblica como defesa nacional, porque se dizia que o inimigo se encontrava dentro do Estado, dentro do Brasil. (...) Quando se fez a nova Constituio, coube ao governo federal e as foras armadas apenas a defesa nacional e aos Estados, a segurana pblica. A gente acaba percebendo que no to simples assim. Os fenmenos quando acontecem no respeitam esses limites. (...) Eu diria que indispensvel reler o que foi escrito na Constituio. Respeit-la sim, mas no por isso que o cidado no defenda o Brasil. (...) Todos tm a responsabilidade de defender o Brasil. certo que algumas instituies tm uma responsabilidade maior, no caso a Unio Federal. Do mesmo modo, todos tm a ver com a segurana pblica, o cidado, o municpio, o Estado e a Unio. Eu considero isto fundamental. Por outro lado, falamos o tempo todo em liberdade. Ns queremos democracia e igualdade, mas nem sempre sabemos os limites (...) voc no pode conceber uma sociedade democrtica onde as pessoas tenham o direito de fazer o que quiserem, sem responsabilidade (...) liberdade, democracia, igualdade e responsabilidade andam juntas (Almir Gabriel, 03.FEV.2004). Trs pontos foram fundamentais na concepo do processo reformador no Par, segundo relata Almir Gabriel. Em primeiro lugar, seu entendimento em relao questo da sade, decorrente da sua formao e atuao como mdico. Ela remete a viso de sade e no de doena. De afirmao e no de negao. Por outro lado, remete tambm aos conflitos entre a viso particular e a viso holstica. No sou contra a viso analtica nem sou contra a viso holstica. Eu acho que, dentro de um raciocnio dialtico, h necessidade de se condicionar de maneira correta a questo da anlise (...) sem nunca se perder de vista a questo do que est sendo analisado, dentro de uma viso mais global (Almir Gabriel, 03.FEV.2004).

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Entrevista realizada em sua residncia, no dia 03 FEV 2004, Belm-PA.

35 O segundo ponto de grande importncia tambm deriva da sua experincia na rea da sade. Trata-se da viso epidemiolgica.

Especialmente aos fenmenos repetitivos da sociedade, como, por exemplo, os fenmenos ligados a violncia ou aos problemas da segurana, so fenmenos indispensavelmente necessrios de serem analisados pela viso epidemiolgica. Isto significa dizer que para se fazer um raciocnio de ao, h necessidade de se ter registros estatsticos, para com isso saber que tipo de crime, de violncia, de delito acontece. Tambm em que poca acontece. Em que dias preferencialmente eles se instalam. Em que reas eles podem acontecer. Para que, com essa viso epidemiolgica, leve-se adiante um plano de aes. (...) No se trata apenas de se fazer o levantamento estatstico para estabelecer indicadores, mas a partir deles fazer o acompanhamento e controle dos resultados (Almir Gabriel, 03.FEV.2004). Sob a influncia das concepes holstica e epidemiolgica, Almir Gabriel dividiu o Estado do Par em quatro macro-regies. A meta era desenvolver sem devastar, o que se traduziu em utilizar corretamente as fronteiras j abertas (Almir Gabriel, 03.FEV.2004), de forma complementar e sistmica. Foram determinados eixos de atuao de governo, cujos resultados eram acompanhados atravs de indicadores, a fim de possibilitar a maior eficincia da mquina pblica, inaugurando a cultura de resultados na gesto do Estado. O terceiro ponto fundamental corresponde passagem de Almir Gabriel pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)24. De vertente socialista, foi especialmente influente na construo do seu entendimento sobre segurana pblica.

O Brasil pode assistir, durante a poca autoritria, uma viso de segurana como expresso bsica de defesa do prprio Estado. A viso que a gente tentou construir, ao longo do tempo, sobretudo com influncia do ISEB, de paz social. Ento, entre segurana e paz social, a preferncia a paz social (Almir Gabriel, 03.FEV.2004).

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Localizado na cidade do Rio de Janeiro, segundo Almir Gabriel, o instituto foi notrio na dcada de 60 pela realizao de pesquisas conjunturais da realidade brasileira.

36 O conceito de paz social recorrente na retrica do movimento ideolgico reformador da segurana pblica do Par. No pode ser reduzido aos limites da esfera de ao das polcias. Vai alm, pois corresponde a uma sensao de bem estar, de liberdade, ou seja, de sentir-se tranqilo no espao pblico, que: ... resulta, necessariamente, de melhor educao, de uma maior (e melhor) distribuio de renda (...), da condio de ver o prximo como prximo e no como um adversrio ou inimigo em potencial. Deve fazer parte da cultura de todo o povo (...) como uma coisa pertencente ao indivduo e ao conjunto da sociedade. Definitivamente, no uma questo s de polcia. tudo aquilo que a gente deve procurar alcanar. Se vai ser hoje ou amanh, no sei. Mas, nessa construo que eu acho essencial encaixar toda a ao do Estado, na rea da educao, da sade ou, especialmente, da segurana pblica (Almir Gabriel, 03.FEV.2004). A lgica da paz social implica, fundamentalmente, na reforma do sistema de segurana pblica tradicional, voltado para a garantia do Estado atravs da fora. Nessa reconstruo, no basta repensar o papel das instituies policiais. A sociedade civil tambm tem que participar ativamente, a fim de possibilitar a real democratizao da segurana pblica. Ao final, a segurana pblica deixa de ser concebida como rea exclusiva das polcias e o Estado deixa de ser a razo do sistema de segurana pblica para dar lugar ao cidado, a quem ele deve servir e proteger. Nessa aproximao (com a sociedade civil) indispensvel no s ouvir, mas tambm contribuir para esclarecer a populao sobre o que deve ser feito (...) para que o Estado realmente aproveite a experincia da prpria populao (...) O que considero importante a gente seja capaz de juntar o conhecimento tcnico s experincias do prprio povo, do conjunto da sociedade, e no ser sectrio a ponto de considerar que bom s o que tcnico ou que bom s aquilo que a sociedade pensa. Melhor aquilo que a gente possa somar juntos (Almir Gabriel, 03.FEV.2004). Os desdobramentos setoriais da ideologia reformadora da segurana pblica objetivaram, sobretudo, a profissionalizao das polcias estaduais, dentro de uma imposio de eficincia e respeito aos direitos humanos (Cf. Deluchey, 2000, passim).

37 Onde esto os policiais? Almir Gabriel procurou algum experiente para gerenciar a segurana pblica, com conhecimento tcnico e prtico. Escolheu Paulo Sette Cmara, ex-investigador de polcia civil de Minas Gerais, ex-policial federal e ex-secretrio de segurana pblica do Estado do Par25. Sette Cmara26 recorda: Eu fui policial de rua. Fui policial federal. Fui agente e delegado. Eu passei pela Secretaria (de Segurana Pblica) l atrs, onde s tinha a polcia civil, sozinha, segurando o pepino, sabe? Vivi o perodo pr-revolucionrio. Eu entrei na polcia em 1952. Eu vivi todo esse processo. Todas essas mudanas. Eu estava no meio, no miolo desse troo. Estava em Minas Gerais nos momentos crticos. Eu tambm fiz cursos nos Estados Unidos. Tudo isso a foi me dando alguma viso, mas nada sistematizada. Tinha a viso do que precisava ser feito, mas no tinha idia de como chegar l. Quais os passos para chegar l. (Sette Cmara, 19.AGO.2003). A viso de Sette Cmara sobre a segurana pblica reflete acentuadamente sua formao de policial civil estadual e federal. Assim, ao pensar a integrao, concentrou-se inicialmente na necessidade de preencher a lacuna deixada pela extino das guardas civis27, decorrente da implantao do modelo de segurana pblica no governo militar28. A problemtica pelo novo secretrio residia no fato de que a sada da polcia militar dos quartis, para assumir o policiamento ostensivo do espao pblico, no incluiu a execuo da polcia judiciria ostensiva (Sette Cmara, 19.AGO.2003), antes realizada pela guarda civil. Vejamos melhor esse ponto. Quando algum procura a delegacia para registrar uma queixa qualquer, ser recebido por um policial civil que tomar seu depoimento e instaurar um procedimento

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Sette Cmara foi nomeado secretrio de segurana pblica do Par por Clovis Moraes Rego, em janeiro de 1979. Trs meses depois assume o governo Alacid Nunes, que o manteve na funo at maro de 1982. Neste perodo, esboou os primeiros planos de uma polcia ostensiva desmilitarizada. 26 Entrevista realizada em seu escritrio, no dia 19 AGO 2003, Belm-PA. 27 At 1964, as guardas civis eram responsveis pelo policiamento ostensivo das ruas e estavam subordinadas aos comissrios (civis) de polcia. As polcias militares eram aquarteladas e atuavam basicamente como tropas de choque, destinadas manuteno da ordem e ao controle das classes perigosas. 28 O modelo dicotmico (polcia militar ostensiva e polcia civil judiciria) implantado pelo governo militar, em 1964, perdura at os dias de hoje.

38 investigativo, que implicar em certas aes. Por exemplo, sairo atrs do suspeito, notificaro algum ou talvez faam buscas para identificar os envolvidos. Nem sempre as aes sero sigilosas, seja para garantir maior segurana ou para evidenciar a ao policial e evitar, com isso, os abusos cometidos quando os policiais civis no esto identificados. So essas atividades que Sette Cmara denomina de polcia judiciria ostensiva. Por outro lado, fazia-se necessrio aumentar a atuao preventiva das polcias estaduais no Par. No caso da polcia civil, Sette Cmara determinou a ao preventiva da Delegacia de Policiamento Administrativo - DPA, atravs da fiscalizao das diverses pblicas, armas e munies, oficinas mecnicas, populao mvel nos hotis etc. Um controle que, segundo ele, de algum modo impede que se cometam crimes. Quanto polcia militar, a eficincia preventiva dependeria da maior aproximao com a comunidade, o que, por sua vez, implicaria em novas doutrinas de policiamento e de distribuio espacial dos policiais militares e numa certa subordinao ao cidado, algo extremamente difcil de ser deglutido pela polcia militar (Sette Cmara, 19.AGO.2003). De fato, as mudanas no se mostraram simples, diante de uma instituio construda como fora auxiliar do Exrcito brasileiro e que incorporou a velha doutrina americana do policiamento motorizado. O aumento da eficincia preventiva da Polcia Militar do Par implicaria em uma maior visibilidade e presena no espao pblico. Era, portanto, necessria a melhor distribuio espacial dos seus mais de doze mil homens e no simplesmente a incorporao de novos policiais, pois isso aumentaria o enorme impacto j existente sobre o oramento do governo29. Mas, para redistribuir o efetivo policial seria, antes de tudo, necessrio encontr-lo. Sette Cmara observou que eram poucos os que faziam o policiamento ostensivo no espao pblico. Onde estariam os policiais?

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Sobre o valor das folhas de pagamento, ver o anexo