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69 climáticas são muito diferentes. A latada tem como uma de suas características a preservação da umidade. No clima semidesértico de Mendoza até pode fazer sentido. Mas na região de Bento Gonçalves, com seu índice pluviométrico médio ao redor de 1.200 mm a 1.400 mm/ano, não faz. O sistema de espaldeira é o mais indicado, ideal para absorver a luz do sol e aproveitar a ventilação. E S D Os Lídio Carraro foram pioneiros na Serra Gaúcha no processo de conversão do sistema de latada para o de espal- deira. O projeto começou em 1998. Eles estavam cansados de vender uvas às grandes vinícolas a preços irrisórios por mais que zelassem pela qualidade, e ainda que produzis- sem uma Merlot bastante diferenciada na região, ainda que em latada. Estudaram as parcelas de terras que tinham à disposição em seus dez hectares e partiram para o plantio de variedades que julgavam ser as melhores escolhas para cada tipo de solo. Também foram os primeiros a montar uma cantina onde os processos de vinificação ocorrem por gravidade, outra tendência moderna. No início, Lídio e Isabel chamaram os filhos Patrícia e Juliano e pergunta- ram se poderiam contar com eles. Patrícia recorda-se desse momento como um “turning point”, um daqueles marcos inesquecíveis da vida. Prevaleceu o sentimento de união e assim é até hoje, diz ela. Há três anos, com as primeiras garrafas produzidas, ela e seu irmão vieram a São Paulo para participar da Expo Vinis. Não havia dinheiro para estandes. A certa altura encontraram Fernanda Teixeira, assessora de imprensa do setor. Fernanda os convidou a deixar os vinhos em sua adega e ofereceu uma parte do espaço que tinha para que eles mostrassem seu produto. No ano seguinte, já com um estande, encontraram o crítico inglês Steven Spurrier, que escreve para a respeitada revis- ta inglesa Decanter e é o mentor do cérebre Julgamento de Paris, uma degustação em que californianos bateram os famosos vinhos de Bordeaux em 1976. Spurrier estava curioso e provou diversos vinhos brasileiros. Mas passou grande parte do tempo com Patrícia e Juliano. O resultado dessa conversa foi publicado na Revista Decanter. A Lídio Carraro mais uma vez era a pioneira. A vinícola mantém a estrutura familiar. Adota o conceito de boutique. As tarefas são divididas. O pai Lídio Carraro, 57, mantém o foco na viticultura. A mãe Isabel cuida do atendimento aos turistas, recebi- dos na própria casa onde moram. Patrícia, arquiteta de 27 anos, dedica-se ao marketing e passa a maior parte do tempo em São Paulo. Juliano, 26 anos, de- pois de estudar Agronomia, migrou para a Enologia. Divide essa tarefa com Mônica Rosseti, a enóloga da casa, ex-Chandon, que está na Itália estudando e tra- balhando na empresa que faz os espumantes Ferrari. O caçula Giovani, 18 anos, cursa Enologia em Bento Gonçalves e já está no negócio. E o futuro? Patrícia diz que as mudanças essenciais na viticultura já estão feitas. A Lídio Carraro também tem se destacado como a única vinícola brasileira a não fazer o envelhecimento do vinho em carvalho. Se- gundo Patrícia, a madeira, em muitos casos, atrapalha os vinhos brasileiros. Mas essa determinação, segundo ela, ainda pode ser flexibilizada, mas muito criterio- samente. A madeira, diz ela, não pode ser dominante, Quando decidiu produzir vinhos de qualida- de, a gaúcha Lídio Carraro optou pelo foco na viticultura. Aos olhos de hoje, a decisão pode pare- cer óbvia e fácil. Nada mais natural a se esperar da família que produzia uvas desde 1890, quando seus antepassados chegaram da Itália à Serra Gaúcha. Mas, na prática, a de- cisão foi uma revolução, não só na vida dos Lídio Carraro mas importante para a história do vinho brasileiro. Atentos ao que acontecia na Itália e nas principais regiões produtoras do mundo, eles sabiam que deve- riam mudar radicalmente as técnicas de produção. Os tradicionais vinhedos em latada, incapazes de garantir a qualidade que desejavam, deveriam ser substituídos por vinhedos em espaldeira. Tomaram então a decisão de eliminar as parreiras, que sempre deram sustento à família, e replantá-las com ou- tra técnica. Teriam de esperar por quatro anos para a primeira colheita. O sistema de latada, ou pérgola, é ainda muito utilizado ao redor do mundo. Na Argentina, por exemplo, há exten- sos parreirais pergolados. Na Serra Gaúcha, o panorama era parecido até pouco tempo atrás. Mas as condições A GAÚCHA LÍDIO CARRARO ENFRENTOU O DESAFIO DE ROMPER A TRADIÇÃO E COLHE OS FRUTOS, RECONHECIDA NO BRASIL E NO EXTERIOR PELA QUALIDADE DE SEUS VINHOS por RUI ALVES E FRANCISCA STELLA FAGÁ O PIONEIRISMO DA 68 VINÍCOLA

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climáticas são muito diferentes. A latada tem como uma de

suas características a preservação da umidade. No clima

semidesértico de Mendoza até pode fazer sentido. Mas na

região de Bento Gonçalves, com seu índice pluviométrico

médio ao redor de 1.200 mm a 1.400 mm/ano, não faz. O

sistema de espaldeira é o mais indicado, ideal para absorver

a luz do sol e aproveitar a ventilação.

E S D

Os Lídio Carraro foram pioneiros na Serra Gaúcha no

processo de conversão do sistema de latada para o de espal-

deira. O projeto começou em 1998. Eles estavam cansados

de vender uvas às grandes vinícolas a preços irrisórios por

mais que zelassem pela qualidade, e ainda que produzis-

sem uma Merlot bastante diferenciada na região, ainda que

em latada. Estudaram as parcelas de terras que tinham à

disposição em seus dez hectares e partiram para o plantio

de variedades que julgavam ser as melhores escolhas para

cada tipo de solo. Também foram os primeiros a montar

uma cantina onde os processos de vinifi cação ocorrem por

gravidade, outra tendência moderna. No início, Lídio e

Isabel chamaram os fi lhos Patrícia e Juliano e pergunta-

ram se poderiam contar com eles. Patrícia recorda-se desse

momento como um “turning point”, um daqueles marcos

inesquecíveis da vida. Prevaleceu o sentimento de união e

assim é até hoje, diz ela. Há três anos, com as primeiras

garrafas produzidas, ela e seu irmão vieram a São Paulo

para participar da Expo Vinis. Não havia dinheiro para

estandes. A certa altura encontraram Fernanda Teixeira,

assessora de imprensa do setor. Fernanda os convidou a

deixar os vinhos em sua adega e ofereceu uma parte do

espaço que tinha para que eles mostrassem seu produto.

No ano seguinte, já com um estande, encontraram o crítico

inglês Steven Spurrier, que escreve para a respeitada revis-

ta inglesa Decanter e é o mentor do cérebre Julgamento

de Paris, uma degustação em que californianos bateram

os famosos vinhos de Bordeaux em 1976. Spurrier estava

curioso e provou diversos vinhos brasileiros. Mas passou

grande parte do tempo com Patrícia e Juliano. O resultado

dessa conversa foi publicado na Revista Decanter. A Lídio

Carraro mais uma vez era a pioneira.

A vinícola mantém a estrutura familiar. Adota o

conceito de boutique. As tarefas são divididas. O pai

Lídio Carraro, 57, mantém o foco na viticultura. A

mãe Isabel cuida do atendimento aos turistas, recebi-

dos na própria casa onde moram. Patrícia, arquiteta

de 27 anos, dedica-se ao marketing e passa a maior

parte do tempo em São Paulo. Juliano, 26 anos, de-

pois de estudar Agronomia, migrou para a Enologia.

Divide essa tarefa com Mônica Rosseti, a enóloga da

casa, ex-Chandon, que está na Itália estudando e tra-

balhando na empresa que faz os espumantes Ferrari.

O caçula Giovani, 18 anos, cursa Enologia em Bento

Gonçalves e já está no negócio.

E o futuro? Patrícia diz que as mudanças essenciais

na viticultura já estão feitas. A Lídio Carraro também

tem se destacado como a única vinícola brasileira a

não fazer o envelhecimento do vinho em carvalho. Se-

gundo Patrícia, a madeira, em muitos casos, atrapalha

os vinhos brasileiros. Mas essa determinação, segundo

ela, ainda pode ser flexibilizada, mas muito criterio-

samente. A madeira, diz ela, não pode ser dominante,

Quando decidiu produzir vinhos de qualida-

de, a gaúcha Lídio Carraro optou pelo foco na

viticultura. Aos olhos de hoje, a decisão pode pare-

cer óbvia e fácil. Nada mais natural a se esperar da família

que produzia uvas desde 1890, quando seus antepassados

chegaram da Itália à Serra Gaúcha. Mas, na prática, a de-

cisão foi uma revolução, não só na vida dos Lídio Carraro

mas importante para a história do vinho brasileiro.

Atentos ao que acontecia na Itália e nas principais

regiões produtoras do mundo, eles sabiam que deve-

riam mudar radicalmente as técnicas de produção. Os

tradicionais vinhedos em latada, incapazes de

garantir a qualidade que desejavam, deveriam

ser substituídos por vinhedos em espaldeira.

Tomaram então a decisão de eliminar as parreiras, que

sempre deram sustento à família, e replantá-las com ou-

tra técnica. Teriam de esperar por quatro anos para a

primeira colheita.

O sistema de latada, ou pérgola, é ainda muito utilizado

ao redor do mundo. Na Argentina, por exemplo, há exten-

sos parreirais pergolados. Na Serra Gaúcha, o panorama

era parecido até pouco tempo atrás. Mas as condições

A G A Ú C H A L Í D I O C A R R A R O E N F R E N T O U O D E S A F I O D E R O M P E R

A T R A D I Ç Ã O E C O L H E O S F R U T O S , R E C O N H E C I D A N O B R A S I L E N O E X T E R I O R

P E L A Q U A L I D A D E D E S E U S V I N H O S

por RUI ALVES E FRANCISCA STELLA FAGÁ

O P I O N E I R I S M O D A

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VINÍCOLA

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1. RESERVA DA SERRA BRUT (R$ 27)

Produzido com Chardonnay e um

tempero de Pinot Noir. É um típico bom

espumante nacional. Amarelo verdeal,

boa espumatização, aromas cítricos,

fresco em função da boa acidez,

corpo médio/bom, tem o tradicional

ligeiro amargor final.

Nota WS 82.

2. RESERVA DA SERRA MOSCATEL (R$ 27)

Apesar de não ser um tipo de vinho

muito bebido em alguns círculos,

o Moscatel démi-sec, docinho, tem

o seu lugar no mercado. Com as mesmas

qualidades do anterior em relação

ao frescor e ao corpo, este tem

também um aroma de mel.

Nota WS 82.

3. RESERVA DA SERRA 2005 (R$ 27)

Merlot (75%) e Cabernet Sauvignon

(25%) – a safra de 2005 foi boa na Serra

Gaúcha. A Merlot tem sido

a uva preferida e tende a se tornar

a referência das cepas tintas na região.

É um vinho púrpura, com aromas

de frutas vermelhas, toques de

especiarias e pimentão. Tem boa acidez,

equilíbrio e persistência. É um vinho

simples, com qualidades.

Nota WS 80.

4. LÍDIO CARRARO ELOS 2005 (R$ 45)

Cabernet Sauvignon (80%) e Malbec

(20%) – 12,8%. De cor rubi, aromas

de frutas vermelhas em compota,

pimentão, toques animais e de couro,

corpo médio/bom, bem equilibrado.

Patrícia explica que outra característica

de seus vinhos é ser gastronômicos, não

tão alcoólicos como alguns

vinhos modernos.

Nota WS 83.

5. LÍDIO CARRARO MERLOT 2004 (R$ 60)

12,5%. De cor púrpura, médio halo

de evolução, aroma intenso de fruta

em compota, bom ataque, redondo,

corpo médio, com bom equilíbrio,

persistência e elegância. É um vinho

feito apenas em safras boas. Não foi

produzido em 2003.

Nota WS 85.

6. LÍDIO CARRARO QUORUM 2004 (R$ 65)

Merlot (35%), Cabernet Sauvignon

(30%), Cabernet Franc (15%), Tannat

(20%) – 12,7%. Violeta, aroma intenso

de fruta em compota, couro,

animal, mentolado, corpo bom,

equilibrado, taninos finos, elegante,

vinho gastronômico.

Nota WS 86.

Vinhos degustados por Francisca Stella Fagá e Rui Alves em março de 2007:

R U I A LV E S É A D V O G A D O , D I R E T O R D A A B S - S P, C O -

L U N I S TA D O J O R N A L D C I - D I Á R I O D E C O M É R C I O ,

I N D Ú S T R I A E S E R V I Ç O S E D A G O W H E R E G A S T R O N O -

M I A . F R A N C I S C A S T E L L A F A G Á É J O R N A L I S TA .

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não pode passar por cima da qualidade das uvas.

O trabalho da Lídio Carraro tem sido reconhecido,

apesar de os primeiros vinhos só terem chegado ao mer-

cado há apenas três anos. Ela foi escolhida pelo Comitê

Olímpico Brasileiro como a vinícola dos XV Jogos Pan-

Americancos. Foi também a primeira vinícola a ter seus vi-

nhos vendidos nas lojas do Free Shop do país. E já exporta

para a Tchecoslovaquia e a Alemanha.

A vinícola quer se expandir. Os dez hectares já não ca-

bem em seus planos. Os preços das terras na Serra Gaúcha

estão muito altos, variando de R$ 100 a 300 mil, o hecta-

re, graças também ao desenvolvimento do enoturismo. A

vinícola tomou a direção da Serra do Sudeste, na cidade

de Encruzilhada da Serra, a 230 km de Bento Gonçalves,

onde comprou 200 ha. Lá os preços giram em torno de

R$ 8 mil/ha e estão subindo.

Os lançamentos vão de vento em popa. A linha Reserva

da Serra chegou para apostar no segmento de base, com

a qualidade da vinícola. Os preços são melhores, na faixa

de R$ 25 a 30, bem abaixo dos R$ 60 cobrados pelo Lídio

Carraro e dos R$ 65 do Quorum.