vivencias_caipiras
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Conselho Editorial 5 Elementos - Instituto de Educao e Pesquisa AmbientalAo Educativa - Assessoria Pesquisa e InformaoANDI - Agncia de Notcias dos Direitos da InfnciaAshoka - Empreendedores SociaisCedac - Centro de Educao e Documentaopara Ao ComunitriaCENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educao,Cultura e Ao Comunitria
Conectas - Direitos HumanosFundao Abrinq pelos Direitos da Criana e do AdolescenteImprensa Oficial do Estado de So PauloInstituto KuanzaISA - Instituto SocioambientalMidiativa - Centro Brasileiro de Mdia para Crianas e Adolescentes
Comit Editorial mbar de Barros - ANDI/Midiativa - PresidenteAntonio Eleilson Leite - Ao EducativaEmerson Bento Pereira - Imprensa OficialHubert Alqures - Imprensa OficialIsa Maria F. da Rosa Guar - CENPECJlia Mello Neiva - ConectasLiegen Clemmyl Rodrigues - Imprensa OficialLuiz Alvaro Salles Aguiar de Menezes - Imprensa OficialMaria de Ftima Assumpo - CedacMaria Ins Zanchetta - ISAMrio Augusto Vitoriano Almeida - Imprensa OficialMnica Pilz Borba - 5 ElementosOscar Vilhena - ConectasRosane da Silva Borges - Instituto KuanzaRosemary Ferreira - Fundao AbrinqSilvio Barone - Ashoka Empreendedores SociaisTas Buckup - Ashoka Empreendedores Sociais
Vanda Noventa Fonseca - CENPECVera Lucia Wey - Imprensa Oficial
Esta publicao foi possvel graasa um programa de ao social da
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PLURALIDADE CULTURAL E DIFERENTES
TEMPORALIDADES NA TERRA PAULISTA
VIVNCIAS CAIPIRAS
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GovernadorSecretrio-Chefe da Casa Civil
Geraldo AlckminArnaldo Madeira
Diretor-presidenteDiretor Vice-presidente
Diretor IndustrialDiretora Financeira e Administrativa
Chefe de GabineteNcleo de Projetos Institucionais
Hubert AlquresLuiz Carlos FrigerioTeiji TomiokaNodette Mameri Peano
Emerson Bento PereiraVera Lucia Wey
IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SO PAULO
DireoCoordenao geral
Edio dos textosEdio de arte
Ilustrao da capa
Fotos dos depoentes
Maria Alice SetubalMaria do Carmo Brant de Carvalho
Carlos Eduardo Silveira MatosEva Paraguass de Arruda CmaraJos Ramos NtoCamilo de Arruda Cmara RamosPaulo de Andrade
Entrevistas concedidas Srgio Roizenblitz e Tatiana Lohmann
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM
EDUCAO, CULTURA E AO COMUNITRIA
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PLURALIDADE CULTURAL E DIFERENTES
TEMPORALIDADES NA TERRA PAULISTA
VIVNCIAS CAIPIRAS
Maria Alice Setubal
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Foi feito o depsito legal na Biblioteca Nacional (Lei n 1.825, de 20/12/1907)
Imprensa Oficial do Estado de So PauloRua da Mooca, 1.921 - Mooca03103-902 - So Paulo - SPTel.: (11) 6099-9800Fax: (11) 6099-9674
i fi i l b
Centro de Estudos e Pesquisas emEducao, Cultura e Ao ComunitriaRua Dante Carraro, 6805422-060 - So Paulo - SPTel.: (11) 2132-9000
Setubal, Maria AliceS522v Vivncias caipiras: pluralidade cultural e diferentes temporalidadesna terra paulista / Maria Alice Setubal. So Paulo : CENPEC / Imprensa Oficial doEstado de So Paulo, 2005.
144p. (Coleo Terra Paulista)
ISBN no85-7060-355-X (Imprensa Oficial do Estado de So Paulo)ISBN no85-85786-54-X (Cenpec)
1. Cultura caipira - So Paulo (Estado) 2. Cultura caipira -Aspectos sociais I. Ttulo
b
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NOSSA DIMENSO CAIPIRA
Caipira, no senso comum e preconceituoso, o habitante de nosso interior atrasado,de instruo precria e costumes ultrapassados. Para os especialistas, contudo, caipira aparcela de nossa populao que resultou da miscigenao original entre brancos, ndios e,mais tarde, negros, principalmente em So Paulo, e cuja cultura rstica, emboratransformada e ressignificada, permanece como parte integrante da cultura nacional.
impossvel, sustentam esses especialistas, compreender nossa formao histrica e nossarealidade atual sem incorporar as contribuies culturais dessa populao,costumeiramente esquecida e marginalizada.
A obra da professora Maria Alice Setbal sobre os modos caipiras de vida no estadode So Paulo , por isso, valiosa para desfazer preconceitos e ampliar o conhecimento denossa histria e da complexidade estrutural de nossa sociedade. Mesmo num estado
desenvolvido, como So Paulo, mas caracterizado por sensveis diferenas demogrficas eculturais entre a capital e o interior, e entre os municpios de cada uma de suas regies,como pensar a formao de cidados, indaga provocativamente a autora, sem levarem conta esses aspectos simblicos que norteiam a vida de grande parte da populao?
Alguns discordaro dos pressupostos tericos do trabalho. Outros colocaro em
dvida sua proposta de sermos ns, sendo outros, ou seja, de valorizarmos nossas razesculturais e nossa identidade nacional sem cairmos em isolacionismos e imobilismos. Difcil que algum questione a qualidade do esforo realizado pela professora Maria Alice paraintegrar, em nossa viso da realidade brasileira e paulista, uma dimenso social e culturalgeralmente negligenciada.
O esforo de sntese e simplificao, conseguido pela professora Maria Alice, tem
ainda outro mrito: demonstra que um livro pode ser profundo, sem deixar de seracessvel e atraente.
Hubert Alqures
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Para o Paulo, com quem aprendi a distinguir os cheiros,
as cores, contornos e os silncios da natureza,
entender a riqueza no modo simples de ser,
viver a intensidade de cada momento do cotidiano.
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SUMRIO
Apresentao 10
Introduo 12
1 - VIDA CAIPIRA DO SCULO XVIII A MEADOSDO SCULO XX: ORIGENS E CONSTRUO DEUMA CULTURA 19
Cotidiano e trabalho 20Olhares para as comunidades caipiras - 1940/1960 27
2 - ENTRE ESTERETIPOS E DISCRIMINAES:O OLHAR PARA A CULTURA CAIPIRA 31A redescoberta dos homens livres e pobres 35So Paulo: progresso e civilizao 40
3 - CONTEMPORANEIDADE E DIFERENAS CULTURAIS 494 - A VISO HEGEMNICA DA MDIA:
TRANSMUTAES DO CAIPIRA 65Peo de boiadeiro: cowboyou caipira? 76Cowboy/caipira/sertanejo: a trindade misturada 79
5 - PERMANNCIAS E TRANSFORMAES NOSCULO XXI: VALORES, COSTUMES E HISTRIAS
DA CULTURA CAIPIRA RESSIGNIFICADOSNA VOZ DE SEUS PROTAGONISTAS 85A reelaborao de uma herana 88
Terra, natureza e vida na roa 94Simplicidade no modo de ser e nos costumes 98Linguajar caipira 103Religiosidade, misticismo, destino 108
As diferentes dimenses do tempo,as tradies, as festas e o lazer 123
CONSIDERAES FINAIS 131
Bibliografia 137Documentrios e entrevistas 139YL
AU/REPRODUO
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Apresentao
de sonho e de p, o destino de um sFeito eu, perdido em pensamento sobre meu cavalo de lao e de n, de gibeira o jilDessa vida, cumprida a solSou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de AparecidaIlumina a mina escura e funda o trem da minha vidaO meu pai foi peo, minha me, solidoMeus irmos perderam-se na vida custa de aventuraDescasei, joguei, investi, desisti, se h sorte,Eu no sei, nunca viSou caipira...Me disseram, porm, que eu viesse aquiPra pedir em romaria e prece paz nos desaventosComo eu no sei rezar, s queria mostrar meu olharMeu olhar, meu olhar. 1
Romaria de Renato Teixeira
Vivemos, hoje, em uma sociedade complexa e globalizada em que os processos
sociais, tecnolgicos, econmicos, culturais ou polticos so multideterminados,exigindo um esforo grande de adaptao diante da quantidade de informaes a que
se tem acesso e da rapidez das mudanas tecnolgicas, que acabam por interferir
nesses processos.
No que se refere s informaes, para cada estatstica ou nova pesquisa publicada,
possvel levantar outras tantas que podem levar, muitas vezes, a concluses opostas.
O olhar e a anlise dependem de inmeros fatores, que tornam impossvel uma viso
totalizadora ou uma nica interpretao. O lugar, a classe social, a formao dos
autores, as fontes utilizadas e a origem da demanda so apenas alguns exemplos de
fatores que interferem nos resultados de anlises que envolvem relaes sociais em um
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Introduo
A complexidade da sociedade globalizada atual pressupe a busca e a anlise doselementos determinantes da relao entre o global e o local. Assim, podemos afirmar,ainda que em termos genricos, que a cultura globalizada ultrapassa o territrio e seexpressa primordialmente nos movimentos migratrios e religiosos, nos meios decomunicao, na tecnologia, no mercado, no turismo e na moeda.
Podemos dizer que todos os aspectos destacados aqui apresentam dois veculos
fundamentais: a indstria cultural de massa, espao em que os padres das elites e os interesses do
capital tm hegemonia;
os sistemas de informao e comunicao, entre eles o celular e a Internet.
A busca para se captar os processos e os grupos que muitas vezes esto margem
desse eixo hegemnico leva anlise da outra ponta do global, mais intrinsecamenterelacionada a ele, que o local, o lugar, conforme destaca Milton Santos2, como espaovivido, carregado de memrias e significaes.
O lugar o local onde essas relaes do social, do econmico, do poltico acontecemconcretamente. Portanto, cada lugar contm elementos do global e ao mesmo tempodialoga com eles, reorganizando-os a partir de caractersticas prprias, que so
construdas em um contexto especfico de valores, formas de ser, de trabalhar e de lazer.Enfim, de sua cultura.
Como destaca Chartier3, no existe o popular puro, assim como no existe umaoposio entre popular e erudito, mas, sim, cruzamentos e tenses que compem
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e outras manifestaes na Frana antiga, o autor mostra as influncias recprocas daschamadas culturas popular e erudita, destacando o fato de que a cultura popular, apesarde sufocada e reprimida, renasce das cinzas, resistente e configurando um espao prprio,ainda que mesclado com outros elementos, como analisaremos no decorrer deste texto.
A revalorizao do patrimnio cultural e a afirmao das identidades locais presentesno mundo atual acontecem em contraposio ao processo de globalizao, confirmando,portanto, a importncia das trocas culturais. Contrariando expectativas, sem a fora e a
potncia da globalizao, muitas dessas manifestaes culturais regionais talvez noestivessem hoje em evidncia. A rapidez das comunicaes, das informaes e dasmudanas tecnolgicas traz alteraes nos sistemas por meio de novas descobertas que seimpem. Isso faz com que essas trocas culturais tenham de estar sempre se reajustando,de forma a se criar comunidades, que, na maioria das vezes, so temporrias ou pontuais,como veremos nos captulos a seguir.
Nesse sentido, em Terra Paulista4, afirmamos que a cultura no se forma fechada em simesma, mas, sim, na relao com o outro, processo decisivo para o grupo se representarpara si mesmo e para o outro. Essa relao tambm um espao de troca e conflitos, noqual os grupos e as pessoas continuamente definem e reelaboram as prticas sociais queconstituem seu modo de existir.
Assim, todo grupo cultural com razes em So Paulo traz em si marcas de outros
grupos com os quais se relaciona, no existindo uma identidade nica e pura, masdiferentes identidades criadas ao longo do tempo, repletas de marcas que formaram avida cultural na terra paulista, fruto de diferenas baseadas na mestiagem. O processo bem conhecido. Inicialmente, a mestiagem se deu entre os europeus (especialmente osportugueses) e os ndios, gerando os mamelucos. Mais tarde, foi acrescida pelos povosnegros, quando do uso de maiores contingentes de escravos na lavoura. E, em tempos
mais recentes, houve a incorporao de diferentes povos, especialmente outros gruposeuropeus e asiticos, pelo processo de imigrao, e tambm os prprios migrantes deoutras regies brasileiras, especialmente do Nordeste.
Na mestiagem, possvel falar de uma unidade na diferena, uma vez que pressupe
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em que as mudanas podem gerar uma cultura criativa e inovadora. Obviamente, no casodo Brasil, e sobretudo em So Paulo, assiste-se hoje ao domnio de uma matriz culturalbranca e ocidental. No entanto, importante levar em conta a influncia das culturasligadas aos indgenas e aos africanos, demonstrada em diversos estudos5, dos quaisdestaco os de Srgio Buarque de Holanda. Ele lembra que, no Brasil, no houve apenasum processo de europeizao, mas tambm, e especialmente at o sculo XVIII, umprocesso de americanizao do colonizador, em que europeus se apropriaram de algunscostumes indgenas para a sobrevivncia da colonizao.
Este estudo buscou focalizar o modo de vida da gente de So Paulo, principalmentedaqueles grupos oriundos do interior do Estado, designados de maneira geral comocaipiras, e que, de alguma forma, vivem ou preservam algumas histrias, costumes etradies paulistas. Esses caipiras, fruto da miscigenao original entre brancos, ndios e,mais tarde, negros, podem ser considerados como os primeiros paulistas. Ainda que no
tenham caractersticas fsicas relativamente homogneas, eles se destacam por se sentirligados a um modo de viver rstico que se desenvolveu no interior paulista, que, emboradiferente ao longo do territrio do Estado e mesmo que marcado por uma srie detransformaes ao longo da histria, permanece como a fonte de construo dos traosde identificao. E, como veremos nos captulos a seguir, nas falas que identificam oscaipiras, h traos culturais oriundos dessa mestiagem presentes at os dias de hoje,
contrapondo-se ao cosmopolitismo dominante na capital paulista.Aqui se colocam inmeras questes que nortearam a elaborao do Projeto. Por ora,
basta a idia de que, apesar da marginalizao sofrida pelos caipiras, que se estendedesde as pocas mais remotas da colnia, mesmo como homens livres, eles viviam margem do sistema agroexportador das grandes fazendas paulistas. E traos de suacultura permanecem vivos e de certa forma constituem-se como fontes de identificao
para os todos paulistas, que descendem desse universo cultural.
Este estudo tem como foco de anlise o caipira como um grupo que se reconhececomo tal e que reconhecido pelos outros desta maneira, enfatizando as caractersticas eos modos de vida que formaram as vrias identidades caipiras, construdas e reconstrudas
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LAU/REPRODUO
Nosso objetivo delinear, por meio da anlise da literatura sobre o tema e dosdepoimentos coletados para o Projeto Terra Paulista, como o caipira se v, ou seja, comoele reconhece a si mesmo e ao grupo ao qual pertence. Procurou-se, em especial,investigar os aspectos valorizados como singulares para que o grupo/pessoa se reconheaainda hoje como caipira e avaliar como alguns desses aspectos se descaracterizam e sedesintegram na relao com o outro, principalmente com outras culturas, enquantooutros permanecem, mesmo que de forma ressignificada, em constante reelaborao.
Buscou-se, ainda, verificar em que medida esses aspectos constituem-se como traosculturais com os quais muitos paulistas e muitos paulistanos identificam em si elementosdo universo caipira, mesmo que toda a comunicao de massa dominante esteja emdireo contrria.
Os depoimentos utilizados para anlise fazem parte dos documentrios produzidospelo Terra Paulista, que buscaram desvendar e desconstruir mitos, dando voz a uma
multiplicidade de sujeitos concretos, annimos, muitas vezes excludos no s das polticaspblicas, mas tambm, ainda que com algumas excees, de pesquisas e estudosacadmicos. Buscar suas particularidades e singularidades, que se concretizam tambmpor meio de papis informais, foi um de nossos objetivos, ressaltando suas prticasreligiosas ou de lazer, assim como as manifestaes artsticas e de artesanato.
Os documentrios buscaram registrar essas manifestaes em
trs regies do Estado de So Paulo, seguindo um eixo da
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formao histrica do territrio: Vale do Mdio Tiet, Vale do Paraba e Oeste Paulista. o reconhecimento de uma multiplicidade de tempos coexistentes na mesma conjunturahistrica, com duraes simultneas, que reconstitui a imbricao de temporalidadesplurais.
Nessa perspectiva, as gravaes dos depoimentos coletados buscaram ressaltar aconvivncia entre o rural e o urbano; o moderno e o tradicional, os eventos de massa eaqueles particulares e realizados artesanalmente. Enfim, uma pluralidade temporal: muitas
vezes quem vive nas grandes cidades no se d conta desse universo to mais amplo, epor vezes tambm vivido, obscurecido pela viso homogeneizante dos meios decomunicao e reforado pelas instituies globalizadas.
Assim, nossas tentativas de desconstruo so permeadas por um processo contnuode uma construo sempre em movimento, desvendando indcios em que o passado e opresente so constantemente reinterpretados.
Nesse contexto, retomamos o tema do caipira, figura polmica do imaginriobrasileiro, especificamente paulista, e recortamos esse foco como tema especfico dopresente trabalho. Em todos os depoimentos, enfatizaram-se as questes: o entrevistadose considera caipira? O que significa ser caipira? No senso comum, como seramplamente analisado mais adiante, podemos afirmar que, de um lado, a figura docaipira evoca o preconceito, especialmente do paulistano, que o considera atrasado,ignorante e aqum dos padres civilizados do mundo desenvolvido. A conseqncia dessepreconceito a desvalorizao do caipira, seu desconhecimento ou sua marginalizaodos processos decisrios e culturais. Mas, de outro lado, o caipira despontaconcretamente como uma figura inerente ao desenvolvimento do paulista e, portanto, parte integrante no s do interior, mas tambm das razes paulistanas. precisamentesob essa perspectiva que a anlise da cultura caipira, em especial de seu modo de ser, seus
valores e seu modo de vida, nos interessou como objeto de estudo.
Para isso, buscamos utilizar uma bibliografia prpria das reas da histria e dascincias sociais. Em alguns momentos, autores da comunicao e da psicologia nosauxiliaram a complementar anlises que se entrecruzaram com os depoimentos coletados
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LAU/REPRODUO
Nosso objetivo no foi a elaborao de um trabalho acadmico stricto sensu,mas, sim,o dilogo com o pblico em geral. Por isso, no nos detemos em querelas especificamenteacadmicas, como a eterna discusso das cincias sociais relativa cultura popular emoposio cultura erudita e todos os diferentes enfoques decorrentes desse debate6.
importante enfatizar apenas que, assim como no consideramos a existncia demodelos nicos e totalizantes explicativos da sociedade atual, tambm no consideramosa existncia de uma cultura popular, ou especificamente caipira, como nica, homognea
e monoltica, mas como mltipla e heterognea, em que se podem destacar alguns traoscaractersticos que a conformam. Contudo, esses traos culturais podem adquirirdiferentes significados dependendo docontexto. Portanto, nosso estudobuscou uma fundamentao histricaque analisasse o caipira no quadro maisamplo das condies sociais,econmicas e polticas da sociedadebrasileira.
Outro fator relevante para essadiscusso a oralidade dessa cultura, oque nos caracteriza sempre como um
interlocutor letrado que interpreta essesdepoimentos e essa cultura de formageral, levando em conta as falas dessessujeitos e uma literatura acadmica quetem buscado analisar e entender essasquestes. Assim, nossa abordagem
buscou criar um dilogo entrediferentes formas e manifestaesculturais, assim como entre aspluralidades temporais e espaciais queconformam a cultura caipira ou o modo
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Casa de Caboclo,Agostinho Batista de FreitasEscritriodeArte-MarliaCarvalhoFran
co-www.dearte.com.brMarliaAugustadeCarvalhoFranco-CludiaPaulaSantos
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1VIDA CAIPIRA DO SCULO XVIII
A MEADOS DO SCULO XX:ORIGENS E CONSTRUO DE UMA CULTURA
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Cotidiano e trabalho
A mistura do sangue de um povo de marinheiroscom o sangue de tribos errantes produziu
um homem pobre, analfabeto, de modos grosseiros,
mas com toque de austeridade e de herosmo.7
No trabalho Terra Paulista, De Francisco8busca caracte-rizar, a partir de literatura sobre o tema, uma genealogiacaipira caracterizada pela mestiagem entre portugueses endios e, mais tarde, com a introduo de escravos africa-nos, a incorporao de negros na constituio dessa gente.
Esses estudos evidenciam que o mundo caipira comeoua se estabelecer com a fixao das moradias no interior pau-lista, a partir das bandeiras que se adentravam no serto.
Alguns fatores exerceram ntida influncia nesse processo:terra abundante, mobilidade constante, carter aventureirodo mameluco e relao visceral com natureza. Essa heranaportuguesa e indgena, aliada s constantes expulses daterra por falta de documentao geralmente no caso deposseiros ou agregados e, posteriormente, ao avano dascondies capitalistas no campo, gerou um carter provis-rio de existncia e uma cultura material especfica: moradiaprecria, geralmente com paredes de pau-a-pique e teto desap, poucos objetos, entre eles a rede para dormir, plantiode milho, feijo, mandioca e outras culturas rpidas.
A cozinha era um rancho, fora da casa, e era no cho
que se comia, se proseava e se descansava. Caracteriza-se oque Antonio Candido denominou como mnimos vitaismarcados pela pobreza, uma rusticidade em que a ocupa-o do solo era transitria, a propriedade no tinha registrolegal, o trabalho baseava-se na unidade familiar e havia uma
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A permanncia da culinria caipira como um costume
que se preservou atravs dos sculos um dos indcios da
importncia dessa manifestao cultural na vida paulista,
apesar de toda a incorporao de alimentos e comidas trazi-
dos pelos imigrantes.9As farinhas de mandioca e de milho,
herana indgena que faz parte da alimentao paulista des-
de o sculo XVI, acompanham outras comidas, como a car-
ne seca, o sal, o toucinho e o feijo, dieta bsica dos tropei-
ros. A descrio dos hbitos caipiras analisados por Antonio
Candido nos d uma dimenso da importncia da caa at
meados do sculo XX, uma vez que essa populao se ali-
mentava de animais da regio, como quatis e tatus, sendo
raras as ocasies em que se comia carne de vaca. Havia far-
tura de carne de porco, galinha e ovos em razo da facilida-
de de criao desses animais, mas a dieta tradicional eracomposta de arroz, feijo e farinha, acompanhados de caf.
A fritura muito apreciada pelo caipira, da a presena cons-
tante da banha de porco.
A expanso em direo ao interior das terras paulistas,
ou seja, o desbravamento do serto na busca de novas reas
para as culturas de subsistncia e especialmente para o acar,
no sculo XVIII at meados do XIX, e para o caf, a partir do
sculo XIX, fez com que as fronteiras agrcolas fornecessem
recursos que permitiram a uma pequena elite tornar-se rica
e poderosa. Mas, para os homens livres e pobres, a situao
era diferente, como ressalta Metcalf10, pois os pequenos la-
vradores eram os primeiros a chegar, com suas famlias, nas
fronteiras em busca de sobrevivncia. Eles eram os pioneiros
na luta contra os ndios para abrir florestas e plantar.
No entanto, como no tinham documentos de posse, e
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ger suas terras, acabavam sendo expulsos, o que propiciava
um constante movimento para novas fronteiras. A famlia
era, para os lavradores, a condio bsica para o estabeleci-
mento de unidades domsticas de produo. Eram peque-
nos lares nucleares de casais com filhos em que se trabalha-
va desde pequeno. A cooperao entre pais, irmos, mulher
e vizinhos mostrava-se essencial sobrevivncia.
Foram os sitiantes, posseiros e agregados as camadas
que mais se identificaram com a economia caipira de subsis-
tncia, enquanto os fazendeiros, cujos antepassados comu-
mente partilhavam do mesmo tipo de vida, com a reorgani-
zao da economia cafeeira, composta pela mo-de-obra
escrava e depois imigrante, foram marcando sua diferena
em relao aos agregados e sitiantes, abandonando o siste-
ma de cooperao vicinal e as culturas de subsistncia.
Para Srgio Buarque de Holanda, na histria do Brasil11,
em um primeiro momento, o europeu se adapta ao mundo
americano, num segundo momento, h uma amlgama das
duas culturas e, numa terceira etapa, assiste-se retomada
do legado europeu em novas bases. Esse processo bastan-
te ntido na histria paulista com a colonizao inicial, de-
pois as bandeiras e, finalmente, as fazendas de acar e
principalmente de caf, embora tal sucesso se desse em
ritmo mais lento que no Nordeste. Nessa fase, os fazendei-
ros passam a visitar a Europa e a mandar seus filhos para
estudarem l e para adquirirem novos hbitos e costumes
voltados para o que consideravam sinnimo de progresso e
civilizao, como veremos adiante.
Desde o sculo XVIII, e em especial a partir do sculo
XIX, a produo das fazendas vai progressivamente en-
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comerciais e fabris, que vo substituir o artesanato e a vida
auto-suficiente do bairro rural. Neste, cada famlia tinha sua
roa e sua criao, pois o trabalho era norteado pelos ciclos
da natureza. As fazendas de caf constituram o primeiro
grande abalo cultura caipira, seguidas pelo processo de
industrializao. Assim, enquanto na cultura caipira produz-
se o suficiente para a sobrevivncia, e o tempo livre, o lazer,
parte integrante do modo de vida, com as festas, a moda
de viola, as prosas, a caa e as atividades artesanais, nasfazendas o tempo dirigido essencialmente para a produ-
o de mercadorias e riquezas. Foi essa a origem do rtulo
de preguia que colou na figura do caipira e em seu ritmo de
vida diferenciado, que alterna perodos de intensa atividade
na roa ou na caa com perodos de descanso e lazer.
Como observou Darcy Ribeiro,
O caipira espoliado de suas propriedades e sucessiva-
mente expulsado de suas posses continua resistindo a se
submeter ao regime de fazenda. Toda a sua experincia
o faz identificar o trabalho de ritmo dirigido como uma
derrogao de sua liberdade pessoal, que o confundiria
com o escravo. (...) O caipira se marginaliza, apegando-
se a uma condio de independncia invivel sem a pos-
se da terra.12
Assim, o lavrador pobre, o caipira, era um produtor er-
rante e, por causa dessa provisoriedade, acumulava bens
que no podia levar nos ombros, ou trabalhava na terraalm da roa e do rancho. Autnomo, o caipira vivia fora,
margem da grande economia exportadora colonial, mais
tarde capitalista. Quando no conseguia manter-se como
independente, ainda que de modo precrio, via-se compeli-
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das, abandonando compulsoriamente seu modo tradicional
de vida. Bem diferente era o caso do sitiante, proprietrio
legal que muitas vezes abastecia as grandes fazendas.
Em 1850, com a promulgao de leis que proibiam o
trfico de escravos e restringiam a posse de terras, muda-
ram-se as relaes de trabalho. Assiste-se, tambm nessa
poca, a uma intensa movimentao de gentes, especial-
mente de mineiros e cearenses em direo provncia de
So Paulo. Moura13, estudando a histria de Campinas, res-
salta que, em 1852, a atividade do caf j havia superado a
do acar, o que levou ao incentivo da produo de peque-
nos proprietrios rurais para o abastecimento das grandes
fazendas.
A busca de nova mo-de-obra para substituir o escravona lavoura de caf levou os fazendeiros a impor rigidez e
disciplina de trabalho incompatveis com o modo de vida
caipira, orientado pelo plantio e pela colheita do ano agrco-
la, pela pesca e pela caa. Nas descries de viajantes do
sculo XIX, ressalta-se o nomadismo como caracterstica
dessa populao, mas, como observou Holanda14, o movi-
mento foi um trao constitutivo do paulista, permitindo,
nesse ir e vir, a improvisao de prticas informais de traba-
lho. Assim, diferentemente de um comportamento instvel,
diversos autores vem nessa movimentao uma forma de
enfrentamento da pobreza na procura de novas terras ou
de melhores condies de trabalho, de tarefas pontuais, de
fugas ao recrutamento militar, etc.
Os perodos vacantes de trabalho eram preenchidos
pelas festas, pelas conversas, pelo lazer e tambm pela
constante arte de negociar. Negociavam-se carne, aves,
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pela quantidade de negcios que ele conseguia realizar.
A troca tambm fortalecia laos de compadrio e vizinhana:
a economia dos mltiplos negcios permeou todo o co-
tidiano da pobreza, estabelecendo relaes de compra e
venda entre indivduos pertencentes a todos segmentos
da sociedade da poca. (...) Negociar era prtica comum e
criava sentidos prprios de viver, de relacionamento e de
moral, que conviviam com papis socialmente ditados.15
Apesar dessa representao to negativa do trabalhador
nacional, estudos atuais tm procurado demonstrar as for-
mas de ajuste e convivncia com o sistema da lavoura do
caf quando o lavrador autnomo e a mo-de-obra escrava
realizavam servios intermitentes, como abertura de matas e
caminhos, ou ainda na prpria colheita do caf. At mesmo
em regies de boca de serto, como Araraquara e So Car-
los, foi ele, durante certo perodo, o principal brao de tra-
balho nas fazendas.
De qualquer forma, o fato de algumas regies paulistas
no terem se utilizado da mo-de-obra estrangeira em um
primeiro momento, ou a ela tecerem inmeras crticas, no
apaga o dado de que a lavoura cafeeira foi responsvel direta
ou indiretamente pela vinda de 2,5 milhes de estrangeiros,
na grande maioria italianos. Estes, em especial, mostraram
grande abertura em relao ao modo de vida brasileiro, tan-
to que logo se assistiu a uma caipirizao de seus costumes.
A grande vitria das fazendas paulistas foi conseguiruma mo-de-obra baseada na economia familiar, em regi-
me de colonato, no qual, embora com a possibilidade de
uso de um pedao da terra para plantio e criao, aceitava-
se a eliminao do salrio como remunerao exclusiva
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parceiros, meeiros e camaradas, mas, de forma geral, o pa-
gamento era feito pelo nmero de ps cultivados. Os colo-
nos italianos tambm acabaram por se tornar verdadeiros
nmades, mudando-se ao final da colheita em busca de vida
melhor, de melhores terras e condies de trabalho.16
Todos os fatores analisados at aqui configuram uma
postura contraditria, pois se, de um lado, esse lavrador
brasileiro est definitivamente fincado terra, buscando,
mediante atos de solidariedade, estabelecer relaes de vizi-
nhana e compadrio e, ainda, tendo na natureza o cenrio e
o lugar de suas vivncias, sua espiritualidade, sua imagina-
o e seus assombros, de outro lado, o conflito interpessoal
e a violncia fazem parte de sua vida desde sempre.
Anlises de processos criminais em Campinas17ressaltam
essa convivncia ambivalente, em que agresses fsicas e
verbais eram parte constante do cotidiano, especialmente
nas reunies das vendas, locais de diverso, negociao e de
armao de conluios polticos. As lutas de famlia tambm
estiveram presentes na histria paulista, que teve no conflito
entre as famlias Pires e Camargo um emblemtico exemplo
dos conflitos de sangue que duraram por muitos anos, des-de o sculo XVII.18
A histria do povoamento de So Paulo foi marcada ini-
cialmente pela violncia contra os ndios, seguida pela luta
para expulso dos posseiros e, finalmente, pela adoo do
sistema escravocrata.
O sistema social das grandes fazendas era de extrema
violncia. A expulso dos posseiros, a defesa dos limites
imprecisos das propriedades, a superviso da fora de tra-
balho escravizada, o controle social dos que no tinham
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recrutados como capangas, uma polcia particular que
guardava as divisas e executava qualquer ato violento que
o fazendeiro lhes ordenasse, at mesmo assassinatos.19
O conflito e a violncia tambm atravessam a vida co-
tidiana do caipira, para quem a honra manchada se lava
com sangue, assim como a defesa de sua independncia,
de seu modo de vida. A coragem pessoal , no entanto, en-
tremeada por uma humildade hospitaleira, de forma que a
violncia no destri os valores do respeito e da solidarieda-
de caractersticos da cultura caipira, ou seja, o mnimo de
sociabilidade, como define Antonio Candido, concretizados
no espao do bairro rural por meio das relaes mantidas no
armazm, das festas para celebrar a colheita ou os santos
padroeiros e dos mutires entre a vizinhana.
Olhares para as comunidadescaipiras (1940-1960)
Pesquisas sociolgicas influenciadas pela sociologia funcio-
nalista norte-americana, fundada em estudos de comunidade,
tomaram como objeto de anlise municpios paulistas como
Itaipava (Willems, E.), Cruz das Almas (Pierson, D.), Cunha
(Shirley, R.) e Itapetininga (Nogueira, O.)20, buscando carac-
terizar os modos de vida caipira j em transformao diante
dos processos interligados de urbanizao e industrializao.
A descrio do modo de vida dessas populaes possibi-
lita apreender a simplicidade de seus costumes, tanto em
relao moradia como aos hbitos alimentares e ao ves-
turio. As festas, a religiosidade e as crenas, assim como os
laos de compadrio e solidariedade, so mostrados em situa-
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a Igreja e as tradies ainda regulavam as normas e os cos-
tumes da populao.
Vale tambm o registro de elementos identificados
como propulsores de mudanas: como a produo comercial
voltada para as cidades; a maior importncia dos ncleos
urbanos e o conseqente enfraquecimento dos costumes
mais conservadores; a criao, nas cidades, de clubes consi-
derados como sinais de progresso e civilizao, copiados
da capital; o aparecimento de religies ou seitas que que-
bram a homogeneizao da Igreja Catlica e contribuem
para a desintegrao de crenas mgicas. No entanto, de
modo geral, esses estudos polarizaram uma comunidade
rural perpassada pelas tradies que sobreviveram em razo
do isolamento e da auto-suficincia em que se encontra-
vam, em contraposio zona urbana, norteada pelo pro-
gresso, pela modernidade e pelo futuro.
Pereira de Queiroz21, ao estudar quatro bairros rurais
paulistas, busca entend-los no de forma isolada, mas na
sua relao com a sociedade mais ampla, diferenciando-se,
assim, da sociologia americana explicitada anteriormente. A
autora mostra tambm como a cultura dos imigrantes e de
seus descendentes foi assimilada no modo de viver caipira.
Sem dvida, com o estudo de Antonio Candido22sobre
o municpio de Bofete, clssico na literatura sociolgica, que
foi possvel empreender uma anlise mais profunda da vida
social, econmica e cultural do habitante do interior paulis-
ta, delineando-se com maior clareza o universo caipira e
suas transformaes, ainda que a pesquisa no estabelea
relaes com o entorno do municpio. O autor analisa as
origens e a histria do povo paulista, mostrando seu carter
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de terras. A articulao entre trabalho, religio e lazer
aprofundada no estudo, podendo-se detectar, a partir da, a
configurao essencial do modo de viver caipira.
Para o autor, a urbanizao de So Paulo intensifica as
relaes com a cidade, ligando o homem do campo ao ritmo
da economia geral, desarticulando aquela economia de sub-
sistncia baseada na vida do bairro e rompendo as relaes
sociais estabelecidas. Isso causa insegurana em relao
ocupao da terra, gerando um movimento de mudana em
direo capital ou s cidades mais prximas. Essa nova
cultura que vai surgindo valoriza tudo o que da cidade e
desprestigia a vida rural. Para Antonio Candido, esse proces-
so leva ao desaparecimento da cultura caipira, pois descon-
figura as condies de sua formao, existncia e apoio.
Tambm interessante mencionar um estudo realizado
em Pedrinhas, na regio da Alta Sorocabana, acerca de uma
comunidade rural italiana, situao no peculiar no Estado
de So Paulo, onde a maioria dos italianos empregava-se
como colonos nas fazendas.23A famlia era a unidade de
produo e consumo, e no o indivduo. O autor destacacomo causas do sucesso dos italianos o fato de serem uma
comunidade relativamente aberta ao processo de acultura-
o, em que a religio catlica, com a incorporao do so-
brenatural e da mstica caipira, foi um fator de integrao
aos costumes brasileiros, e ainda o fato de possurem uma
concepo econmica da vida dirigida para o progresso e a
valorizao do futuro como conquista. Essa concepo de
progresso est aliada valorizao do perfil do italiano
como um heri que vence as adversidades, em contraste
com a imagem dos brasileiros, considerados sem ambio,
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Casamento caipira, Wilma Ramos
EscritriodeArte-MarliaCarvalhoFra
nco-www.dearte.com.brMarliaAugustadeCarvalhoFranco-CludiaPaulaSantos
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2ENTRE ESTERETIPOS E DISCRIMINAES:
O OLHAR PARA A CULTURA CAIPIRA
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O caipira aparece em Cmara Cascudo como designaopara relacionar os habitantes do interior sem instruo ou tra-
to social, que no sabem se vestir nem se apresentar em p-blico. E, de maneira genrica, refere-se ao habitante do inte-rior brasileiro, mais especificamente o paulista e o mineiro.De qualquer modo, essa generalizao do caipira escondetoda a histria plural e a diversidade rural brasileira e paulista.
Como vimos anteriormente, a herana da colonizao
portuguesa constituiu-se em peso importante na configura-o da cultura brasileira e, no caso especfico deste trabalho,da cultura paulista. Os modelos valorizados so aquelesoriundos da metrpole e, conseqentemente, a culturamaterial e imaterial do povo da colnia desqualificada,gerando perda da auto-estima, da criatividade, etc.
Roberto Gambini enfatiza a negao das razes dos po-vos nativos como fundamento da construo da nao bra-sileira, ideologia concretizada na pedagogia jesutica, que,segundo o autor, se expressa como se dissesse ao pequenocurumim: esquea quem voc , quem so seus pais e deonde voc veio. Isso tudo no vale nada. Abandone sua
identidade, desvencilhe-se de sua alma, olhe para mim, es-pelhe-se em mim, queira ser como eu e fique igual a mim.1
interessante atentarmos para a importncia dos jesu-tas na formao dessa mentalidade, que nos sculos subse-qentes ter outros fatores para refor-la. Neves2analisa oque chamou de a modernidade nas aulas jesuticas. O au-tor descortina essa pedagogia desenvolvida nos colgios je-suticos, nos quais o professor tinha como misso moldar aalma plstica da juventude no servio e no amor de Deus.Foi sistematizada em um tratado de nome Ratio Studiorum,
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inovadora para a poca. Como enfatiza Neves, a novidadetrazida pelos jesutas foi a percepo de que se poderia mol-
dar mais facilmente os jovens naquilo que se desejava, epara isso propunham etapas de uma verdadeira operao:desde o isolamento dos alunos do espao em que nasceram,e a conseqente substituio dos seus referenciais culturais,at a adoo de nova lngua (latim ou, no caso paulista, alngua geral). Com o objetivo de se opor ao avano protes-
tante, segundo esse autor, os jesutas acabam por ser os pre-cursores de uma metodologia que enfatiza a fora do con-vencimento em detrimento da fora bruta e que est na ori-gem das ideologias modernas.
Assim como essa herana colonial marcou fortemente anossa cultura, as idias de progresso e civilizao herdadas
no sculo XIX, especialmente da Europa, e adotadas comeuforia pelas elites paulistas tero impacto decisivo no modode vida e na priorizao de valores, costumes e especialmen-te na implementao de polticas econmicas e sociais.
O desvendamento das origens dos esteretipos referen-tes ao povo caipira nos leva anlise de diferentes fontes,iniciando-se pelos relatos dos viajantes estrangeiros que par-ticiparam de expedies cientficas ou artsticas e nos lega-ram um material rico em descries e imagens, especial-mente do sculo XIX. No entanto, um olhar mais cuidadososobre esse material identifica descries de paisagens, ima-gens de cidades, especialmente do Rio de Janeiro, descriesde casas e fazendas de senhores das elites e, em alguns ca-sos, relatos sobre festas e escravos. Mas a figura do homemlivre e pobre quase no aparece ou, quando ali est, a pers-pectiva assumida denota uma viso discriminatria, subal-
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O olhar dos viajantes marcado pelo binmio trabalho/propriedade imperante na Europa, considerada o mundo
civilizado da poca. A ausncia de terras legalizadas, depatro e de um trabalho sistemtico e disciplinado era ca-racterstica que fugia da compreenso desses europeus,que s podiam entender essa situao a partir de sua visoetnocntrica:
Esses homens, embrutecidos pela ignorncia, pela pre-guia, pela falta de convivncia com seus semelhantese, talvez, por excessos venreos primrios, no pensam:vegetam como rvores, como as ervas do campo. pri-meira vista, a maioria deles parecia ser constituda porgente branca, mas, a largura de suas faces e a proemi-nncia dos ossos destas traam, para logo, o sangue in-
dgena que lhes corre nas veias, mesclado com o daraa caucsica.
Ainda Saint-Hilaire, naturalista francs que viajou por di-versas provncias do Brasil no sculo XIX, em outra parte desua viagem descreve moradores de pele mestia de negros,
como miserveis, abobados e estpidos: Parece que essesinfelizes tinham muita preguia para o trabalho, s cultivan-do o estritamente necessrio satisfao das prprias ne-cessidades, e a seca do ano anterior levou ao cmulo a suamisria.3
Diferentemente do caipira, depreciado e marginalizado, o
viajante descreve os senhores da terra como homens de no-breza de estilo, coragem, firmeza e franqueza de esprito. Jus-tificando-se, assim, toda violncia e arbitrariedade cometidascontra o ndio, o negro e os homens livres e pobres em geral.
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neo, ressaltando a complexidade e a ambigidade prpriasdo esteretipo, afirma que o objetivo do discurso colonial
apresentar o colonizado como uma populao de tiposdegenerados com base na origem racial, de modo a justifi-car a conquista e estabelecer sistemas de administrao einstruo.4
O autor realiza uma anlise profunda dessa relao entreesteretipo, discriminao e discurso colonial, que ao mes-mo tempo reconhece a diferena e a recusa ou mascara,gerando uma crena mltipla e contraditria.
A redescoberta dos homens livrese pobres
O esquecimento, ou a excluso, dos homens livres dascamadas pobres nos estudos histricos sobre o Brasil foiuma constante no apenas no discurso mas tambm nahistoriografia oficiais. O magnfico Homens livres na ordemescravocrata5, estudo sociolgico de Maria Sylvia de Carva-
lho Franco publicado pela primeira vez em 1969, que foca-liza, entre outros aspectos, a violncia como atitude deafirmao dos indivduos pobres margem da produoescravista, talvez possa ser visto como exceo que confir-ma a regra. Afinal, na dcada de 1990, os pesquisadorescomearam a rastrear suas histrias.
A definio desse contingente no tarefa fcil, poistransita-se por um universo social no qual negros, bran-cos e mestios pobres e livres vivem dos mantimentos desuas pequenas roas, e agregados a algum proprietrio
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aos stios ou a propriedades maiores, mas tambm haviatrabalhadores para ajud-los em suas roas, seus ne-
gcios e suas empreitadas, alugavam escravos e, nessasprticas, teciam uma trama cotidiana perpassada porinmeros arranjos urdidos por relaes de parentesco,solidariedades vicinais e por toda uma ordem moral deacertos e tratos que criavam formas diversas de remune-rao, como a permisso para ocupar parte da proprie-
dade, heranas por receber ou o fortalecimento dos afe-tos e dos laos sociais necessrios.6
Acrescente-se a esse quadro o empobrecimento e a cai-pirizao de muitas famlias, que, com a morte do patriarca,viam suas propriedades divididas em pequenos lotes, o queacarretava perda de poder e prestgio.
O modo de vida caipira e seu ritmo diferenciado do tra-balho da terra, seguindo os ciclos da natureza, eram de im-possvel compreenso para o fazendeiro de caf, o que ge-rou inmeras crticas e principalmente uma viso estereoti-pada sobre o lavrador nacional, visto quase sempre comovadio e inepto para o trabalho, justificando, assim, a poltica
de imigrao para a criao de uma mo-de-obra disciplina-da, sistemtica e estvel.
Moura observa que alguns proprietrios, atentos aomodo de vida dos lavradores e com interesse de manteresses trabalhadores na terra, pagavam salrios melhores,atenuando a dureza do trabalho com a utilizao de ma-quinrio e instaurando uma racionalizao maior de suaorganizao, assim como uma distribuio do tempo, tor-nando possvel a criao de condies para negociao ecirculao. No entanto, de modo geral, o estudo sobre
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procurados para tarefas intermitentes, como abertura dematas e colheita. Os ofcios de pedreiro, carpinteiro, ser-
vente, madeireiro etc. eram funes bastante requisitadase que permitiam flexibilidade profissional.
A relao entre trabalhadores brasileiros e italianospautou-se, de modo geral, por uma convivncia pacfica, eos italianos se integraram ao pas de modo bastante satis-fatrio.
Como aponta Durham7, a grande mobilidade social dositalianos na zona rural acarretou a formao de uma cama-da de sitiantes e a ascenso de alguns deles estrutura do-minante. Para a autora, alguns elementos contriburam parauma adequada adaptao e para o sucesso dos italianos:conhecimento de tcnicas de cultivo e plantio; trabalho fa-
miliar, com a permanncia dos filhos na casa mesmo depoisde casados e a incluso do trabalho feminino na lavoura;esprito de poupana; mais oportunidades no comrcio domercado local por deterem esse conhecimento ou por valo-rizarem a educao; e a conseqente possibilidade deaprendizagem nesse setor.
A questo da mo-de-obra livre nacional necessita aindade mais estudos para sua plena compreenso, uma vez que,em regies de fronteira, as chamadas boca de serto, comoAraraquara e So Carlos, parece ter havido o emprego dotrabalhador nacional nas propriedades de caf, tanto naabertura dessas fazendas e na construo de estradas como
na ampliao da lavoura, uma vez que a imigrao se deuem momento posterior. Na dcada de 1850, os fazendeirosdessa regio
reclamavam que os trabalhadores europeus eram indis-
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bebida, violentos e avessos ao cumprimento de certastarefas quando estas no se achavam especificadas no
contrato. Recusavam-se a fazer cercados para suas pas-tagens a no ser mediante indenizaes. Pouco produti-vos, no eram capazes de ocupar-se de mais de 1.500 ou2.000 ps de caf. No cuidavam da manuteno doscafezais depois da colheita. Na colheita, no tinham omenor cuidado, misturavam bagas verdes e maduras.8
Ao se levar em conta as afirmaes dos fazendeiros acer-ca da preguia e da indolncia do trabalhador livre, h curio-sidade de indagar: a partir de quais parmetros so feitasessas observaes? Como parece no haver registros na his-toriografia sobre a dureza do trabalho executado pelo fa-zendeiro, minha hiptese de que ele acreditava que os
agricultores deveriam trabalhar como os escravos, ou seja,numa jornada de trabalho extensiva, durssima e espoliativa.Relatos de viajantes, ou mesmo dirios antigos, descrevemas jornadas de trabalho de escravos e feitores, assim comode mulheres vivas ou sozinhas, que, ao arcar com todas astarefas da fazenda, acabam cumprindo uma extensa jorna-
da de trabalho na maioria das vezes no reconhecida. Go-vernar tamanha casa, com seu numeroso pessoal, era traba-lho que enchia os dias da dedicada mame; dias estes torna-dos mais longos pelo bom costume de se levantar muitocedo.9
Mais rigoroso o relato de Ina von Binzer, preceptora
alem que trabalhou para diversas famlias paulistas:Neste pas, os pretos representam o papel principal;acho que no fundo so mais senhores do que escravosdos brasileiros. Todo trabalho realizado pelos pretos,
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brasileiro no trabalha e, quando pobre, prefere vivercomo parasita na casa dos parentes e de amigos ricos
em vez de procurar ocupao honesta.10
Ela observa, ainda, que:
O brasileiro, menos perspicaz e tambm mais orgulhoso,embora menos culto, despreza o trabalho e o trabalhador.Ele prprio no se dedica ao trabalho se o pode evitar e
encara a desocupao como um privilgio das criaturaslivres. Como esperar que o escravo, criado em animalescaignorncia, mas de acordo com essa ordem de idias, sejacapaz de adquirir outras por si, formando sua prpria filo-sofia? Ele imita servilmente o branco e trabalha o menosque pode; aqui, no prprio local e diante da amenidadedessa natureza, que se pode avaliar quanto diminutoo esforo dessa gente de inacreditvel indolncia.11
importante relativizar esses comentrios, pois, obvia-mente, trata-se de um olhar europeu, germnico, cuja rigi-dez e padres de comportamento diferiam bastante dobrasileiro. Mas, de qualquer maneira, fornece uma viso
sobre os costumes da terra.Voltando s representaes da elite brasileira a respeito
do trabalhador nacional, destacamos um discurso feito naAssemblia Legislativa em 1887, em que o presidente daProvncia de So Paulo expressa, sem nenhum pudor, a ver-gonha que a elite paulista sentia pela populao pobre,
como se essa situao fosse responsabilidade exclusiva dospobres e a elite no tivesse culpa pelas condies materiaisimpostas a essa camada da populao, que assume a confi-gurao de
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Lavrando as piores terras, e que ainda assim no lhespertencem, sujeitos ao alvedrio e aos caprichos dos pro-
prietrios. Quando so agregados, no constroem casaspara morar, contentam-se com mseras choupanas ligei-ramente edificadas. Sendo muito restritas suas necessi-dades, pois desconhecem os gozos da civilizao, notrabalham seno o suficiente para satisfaz-las. , pois,um elemento semibrbaro que reclama ser civilizado
pelo trabalho encaminhado para novos hbitos e costu-mes a fim de constituir foras ativas e criadoras em vezde ser uma inutilidade, ou antes um entrave ao progres-so econmico do pas.12
Talvez essa citao no soasse estranha se estivesse data-da no sculo XXI.
So Paulo: progresso e civilizaoSituando essa discusso na capital paulista, podemos di-
zer, com base em estudos histricos, antropolgicos e socio-lgicos, que o imaginrio paulistano pautado, a partirde meados do sculo XIX, pelas idias de progresso e mo-
dernidade. Essa concepo foi mais amplamente difundidaa partir da Repblica, com o repdio das elites ao passadocolonial e imperial, considerado como formas atrasadas devida. Assim, a busca pelo progresso destruiu a maior partedo patrimnio cultural paulista, trazendo as referncias eu-ropias, e posteriormente as norte-americanas, como pa-
dro a ser seguido.No final do sculo XIX e comeo do sculo XX, o concei-
to de civilizao foi considerado como o grande objetivo aser atingido pelas elites brasileiras, especialmente a carioca e
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europeus, assim como pelo fato de se ser branco e republi-
cano. No se propagava uma democracia social, mas, sim, o
reforo de valores aristocrticos pela descrena na capacida-de da populao negra e na negao das origens mestias
de nacionalidade. Excludos, rebeldes, negros, imigrantes ou
trabalhadores que resistissem ou se opusessem eram clas-
sificados como incapazes ou ignorantes, pois no sabiam
reconhecer os benefcios da civilizao: eram brbaros. As
camadas livres e os setores populares que no apoiassemesse projeto eram vistos como uma ameaa, criando-se, as-
sim, a mxima de que a questo social era uma questo de
polcia.13
Martha Abreu14destaca a viso nacionalista de Melo
Moraes Filho, autor que, no final do sculo XIX, j denun-
ciava e ironizava os estrangeirismos que dominavam o Pas:
na intimidade desse povo inculto, na convivncia diretacom essa gente que conserva os seus usos adequados,que melhor se pode estudar a nossa ndole, o nosso ca-rter, deturpado nos grandes centros por uma pretendi-da e extempornea civilizao que tudo nos leva, desde
as noites sem lgrimas at os dias sem combate. E nemse diga que somos um povo que no tem passado nemtradies, que no tivemos costumes prprios comoqualquer outro, s porque o pedantismo medra nos cen-tros mais populosos, sombra da tolerncia que tudodesvirtua e aniquila.(...) Mas o Brasil um pas adianta-
do; acha ridculas as tradies e desfaz-se delas; absol-vendo os demais povos dessas futilidades que envergo-nham, trata de encobri-las e mostra-se srio.
Na lgica civilizadora, a oligarquia cafeeira tinha papel
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como feitos exclusivos dessa elite regionalista, ora como um
feito de todos, mas numa situao em que o progresso e a
riqueza tornaram-se acessveis a qualquer brasileiro graas generosidade dos paulistas.
O Rio de Janeiro, capital do Pas, embora com um papel e
com caractersticas muito diversas de So Paulo, ter uma
funo simblica de fundamental importncia, pois o fato
de ter se tornado uma cidade reformada, iluminada e mo-
dernizada, permitia aos estrangeiros reconhecer costumes e
valores europeus e, ao mesmo tempo, dava s elites a iluso
de que o Brasil havia finalmente ingressado na era do pro-
gresso e da civilizao. A capital antecipava um futuro que
as elites paulistanas acreditavam ser o seu.15O Rio de Janeiro
tambm era o local de absoro das diversidades regionais
vindas de todos os Estados e ao mesmo tempo o irradiadorde culturas a cultura europia oficial coexistia, por exem-
plo, com as tradies nacionais de influncia negra. Nesse
sentido, o grupo de intelectuais cariocas famosos por sua
vida bomia teve papel importante na ponte que conseguiu
estabelecer entre o popular e o universo das elites. Foi o caso
das festas populares, cujo exemplo principal o carnaval. Areforma urbana do Rio de Janeiro, por Pereira Passos, foi
simultnea de So Paulo, por Paulo Prado.
Analisando o mito tecnizado do viver em So Paulo no
comeo do sculo XX, Maria Inez M. Borges Pinto16dife-
rencia o Rio de Janeiro (capital poltica do Pas) de So Paulo
(a cidade definida pela audcia vertical) ao analisar artigos
e estudos da poca. A figura do bandeirante desbravador de
terras e aventureiro destemido transposta aos fazendeiros,
aos industriais, aos homens que criaram fortunas prprias.
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principais representantes, atuou de forma a incrementar o
mito paulista de Estado futurista, empreendedor, pro-
gressista, em contraposio ao Norte atrasado, cultuadorde um passado regionalista e indianista que deveria ser
superado.
A autora cita especialmente artigos de Menotti Del
Picchia publicados em jornais da poca, enfatizando o
surgimento de uma nova raa, cosmopolita e atualizada,
profundamente diferente do tipo brasileiro convencional:
Peri, Jeca Tatu, tbios resqucios de uma minoria agoni-zante, esto fadados a desaparecer diante do surgimen-to do tipo definitivo do brasileiro vencedor. (...) o brasi-leiro de So Paulo um ser poligentico, mltiplo, forte,vivo, culto, inteligente, audaz, fruto de muitas raas em
combate, resultante de muitos sangues e adaptado pelafora das leis mesolgicas, no meio em que surge, tem-perado pelo clima, plasmado pela fora da fatalidadehistrica; traz no seu organismo uma civilizao multis-secular, uma cultura requintada.17
O tom de discriminao se generaliza medida que ga-
nham fora as noes de progresso e civilizao. Famoso
pela criao da emblemtica figura do Jeca Tatu, amplamen-
te difundida pelo almanaque do xarope Biotnico Fontoura,
Monteiro Lobato pode ser considerado como um dos res-
ponsveis pela popularizao do esteretipo do caipira,
uma vez que sua caricatura veio de encontro imagem j
em construo no imaginrio da elite paulista: Caboclo osombrio urup de pau podre a modorrar silencioso no reces-
so das grotas. S ele no fala, no ri, no ama. S ele, no
meio de tanta vida, no vive18.
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Paulista, existem ao menos trs Jecas Tatus, e as trs faces
desse mesmo personagem revelaro a complexidade cultu-
ral, artstica e ideolgica do seu criador. No entanto, em to-dos eles, ressalta o autor, o que impera o Jeca Tatu de
sempre, um sujeito torto e exilado do seu corpo social.
Conversas ao p do fogo, de Cornlio Pires (1884-1958),busca inverter essa imagem de Lobato ao analisar as condi-
es de expropriao do homem do campo, especialmente
do caipira paulista.
Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza einfelizmente tolhidos pelo analfabetismo, agem maispelo corao do que pela cabea. Tmidos e desconfia-dos ao entrar em contato com os habitantes da cidade,
no seu meio so expansivos e alegres, francos e folga-zes, (...) o caipira puxador de enxada com a maior fa-cilidade se transforma em carpinteiro, ferreiro, doma-dor, tecedor de taquaras e guemb ou construtor depontes. (...) Os caipiras no so vadios: timos traba-lhadores, tm crises de desnimo quando no traba-lham em suas terras e so forados a trabalhar comocamaradas a jornal.
No cuido aqui do caipira da cidade. Esse sabe ler, bom, fino e s lhe falta o traquejo das viagens, o de-senleio e o desembarao adquiridos no contnuo contatocom as populaes dos grandes centros. Esse menos
desconfiado que o do stio, mas revela muita timideznum meio grande e estranho, imaginando que todo omundo o observa chasqueando-o, troando-lhe o andare o jeito.20
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tar a vida rural com palestras acompanhadas de violeiros e
causos caipiras.21Entre suas inmeras atividades, organizou
a Turma Caipira Cornlio Pires com violeiros de Piracicaba,obtendo grande sucesso com a venda de discos e com
shows. A partir de ento, a cidade de So Paulo tornou-seum grande difusor da chamada msica caipira.
Assim, embora com a inteno de enaltecer e muitas
vezes idealizar a figura do caipira, Cornlio acaba por trans-
formar a sabedoria caipira da vida simples e dos segredos danatureza em anedotrio. Criou
esteretipos para identificao, homogeneizando aque-les tipos tnicos com os quais convivia para designar egeneralizar comportamentos, posturas e atitudes, enfim,a cultura do homem do interior paulista; no considerou
que haveria diversidade em outros lugares ou mesmodentro da classificao que props. Salvaguardou a ln-gua, o dialeto caipira, ao menos. Rememorou-o em sualiteratura, aproximando seu leitor da terminologia pr-pria que caracteriza a variao lingstica do paulista,mesmo que em forma de humor e curiosidade.22
Ao lado de Cornlio Pires, o escritor Valdomiro Silveira
(1873-1941) considerado um dos precursores desse movi-
mento a partir da publicao de seu conto Rabicho. Nesse
momento, o caipira valorizado como parte desse universo
intelectual paulista que passa a registrar seus causos, costu-
mes e valores. Essa literatura do interior paulista, em contra-
posio s idias e aos movimentos da capital, ou mesmo
quando incorpora elementos mais cosmopolitas, expressa a
prpria condio de hbitat do campo, destacando seus
costumes, seus modo de vida e os tipos humanos. Mesmo
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Paulo Setbal, a paisagem, o serto e as memrias da fazen-
da continuam presentes de forma viva.
Paralelamente construo de uma figura hilria que
acaba por se tornar motivo de chacota na cidade grande at
os dias de hoje, os autores citados anteriormente que, j nas
primeiras dcadas do sculo XX, buscavam razes regionalis-
tas, exaltando o linguajar caipira para afirmar uma naciona-
lidade ufanista, tornam-se tambm motivo de crticas e go-
zaes por parte de Oswald de Andrade e outros expoentesda corrente modernista. Diante do sucesso e da repercusso
dos modernistas, que se assumem como os verdadeiros re-
presentantes da identidade brasileira, a discriminao e a
marginalizao do caipira, e de tudo o que vinha do interior,
ganham mais fora.
Assim, o caipira visto e transcrito por homens da cida-
de que o definem pelo que ele no tem.
Ele , ponto por ponto, a face negada do homem bur-gus e se define pelas caricaturas que de longe a cidadefaz dele para estabelecer, por meio da prpria diferenaentre um tipo de pessoa e a outra, a sua grandeza. (...)o caipira paulista define-se primeiro por ser natural-mente do lugar onde vive: o campo, a roa, o serto e amata, o lugar oposto cidade. quem no mora empovoao e, portanto, aquele que no possui o preparoe as qualidades do homem da cidade, o civilizador, dequem, a seu modo, o caipira escapa, tanto quanto o
ndio, e mais do que o negro. Se seu lugar de vida ocontrrio do da cidade e o seu trabalho invisvel porser o oposto ao da cidade, o seu modo de ser e a suacultura so o oposto do que a cidade considera civiliza-
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Embora atualmente se assista a uma retomada, em geral
positiva, do significado e da representao do caipira, deve-
se admitir que, em centros como a capital paulista, especial-mente entre as camadas das classes mdia e alta, essa viso
preconceituosa ainda est presente, e com alguns atenuan-
tes, no s para o caipira morador da zona rural, mas tam-
bm para os moradores das cidades do interior. Essa afirma-
o pode ser embasada em comentrios depreciativos acer-
ca do interior, mas principalmente considerando a valoriza-o de costumes e hbitos estrangeiros, tomados como re-
ferncia do modo de vida para esses setores da sociedade.
Acrescente-se a isso uma perspectiva cosmopolita das gran-
des cidades do mundo, nas quais o indivduo vive em meio a
um universo de identidades variadas, da diversidade cultu-
ral, mas preserva sua autonomia como indivduo, morador
de uma grande cidade que espelha a modernidade e o per-
tencimento civilizao ocidental.
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Hoje a festa da vov,Ana Maria Dias
EscritriodeArte-MarliaCarvalhoF
ranco-www.dearte.com.brMarliaAugustadeCarvalhoFranco-CludiaPaulaSantos
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3CONTEMPORANEIDADE EDIFERENAS CULTURAIS
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A realidade do mundo globalizado acaba muitas vezes
reforando alguns processos identitrios tradicionais em vez
de apag-los. No entanto, essa viso nem sempre aparececom clareza nos estudos contemporneos, preocupados
mais em captar o ponto de vista hegemnico das grandes
metrpoles, especialmente daquelas inseridas nos pases
dominantes.
Nessa perspectiva, filsofos e socilogos elaboram mui-
tas vezes teses brilhantes, mas que se configuram comouma anlise homogeneizante de processos, que, na concre-
tude do dia-a-dia, so muito diversos.
Gilles Lipovetsky e Maffei Mafesolli podem ser conside-
rados representantes dessa tendncia. Para Lipovetsky1, vi-
vemos na era do hiperindividualismo refletido no culto
sade, ao corpo e beleza; um tempo de excesso de psico-
trpicos, fanatismo religioso, controle soberano de si e luta
contra o preexistente e o herdado. O poder do novo, das
mudanas, do clip, do efmero e das celebridades se impee a moda a nossa lei. O autor ressalta a sacralizao do
novo, lado a lado dignidade do presente. A tradio,
quando permanece, sem coero, sem a coeso comunit-ria, sem o poder do coletivo, manifestando-se como opo
individual.
A sociedade exalta a felicidade, o ego e o bem-estar mais
do que a abnegao e os sacrifcios. O que importa o su-
cesso pessoal e a felicidade. Assim, a moral austera substi-
tuda pela moral combinada com festas e celebridades, o
que o autor chama de moral de encantamento, moral
emocional que se manifesta por mais solidariedade, mais
caridade, mas sem exigncias ou obrigaes e, por isso mes-
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ressalta que no h o indivduo absoluto, mas uma tica re-gida pelos direitos humanos, pela tolerncia, pelo respeito
mtuo e pela cooperao. O culto pessoa e a valorizaodo dinheiro e da liberdade individual se combinam com aresponsabilidade pela ecologia do planeta, a ajuda ao outroe a tolerncia.
Lipovetsky traa uma viso otimista da sociedade, espe-cialmente do ser humano nos dias de hoje, e sem dvida
existem segmentos da populao de pases ricos e pobresque se identificam com essas colocaes. No entanto, estaparece ser uma concepo parcial que est distante de refle-tir uma viso da sociedade como um todo, sobretudo nospases pobres ou em desenvolvimento, nos quais setoresmuitas vezes majoritrios ou ao menos bem significativos
vivem margem dos benefcios dessa sociedade. Acrescen-te-se ao quadro a existncia de regies ou mesmo pasesque, movidos por um nacionalismo arraigado ou pelo fortesentimento de identidade, se apegam s suas tradiescomo forma de enfrentar a globalizao contempornea.
Mafesolli2, embora no se preocupe em explicitar dife-
renas culturais especficas que ocorrem em todos os conti-nentes, amplia o debate ao discutir a problemtica da pocaatual sob a dimenso do conflito entre enraizamento e er-rncia. Ele caracteriza a sociedade ps-moderna mais pelaexistncia de tribos (grupos unidos em torno de um interes-se comum) e do nomadismo do que pelo foco apenas no
indivduo ou no hiperindividualismo, como ressalta Lipo-vtsky. Para Mafesolli, esse movimento de desterritorializa-o, por ele designado como nomadismo, no tem apenasmotivao econmica, mas tambm um desejo de evaso,
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permite a vivncia de uma pluralidade estrutural. A possibili-dade de romper fronteiras nacionais, civilizatrias, religiosas
e ideolgicas abre as portas para se viver concretamentealguma coisa do universal. Configura-se, assim, para o au-tor, um desejo de errncia, estabelecendo um enraiza-mento dinmico no qual o nomadismo de alguns alimen-ta o imaginrio coletivo.
Em contrapartida, busca-se cada vez mais o pertenci-
mento a pequenas comunidades pontuais (grupos ligados aalgum interesse comum: esporte, msica, lazer ou hobby),de convvio intenso, gerando alta circulao de sentimentose emoes. As necessidades so preenchidas, segundoMafesolli, por errncias ou pela formao de comunidadesemocionais pontuais dotadas da capacidade de unir proces-
sos aparentemente opostos: religar-se versus desligar-se;permanncia/estabilidade versus movimento/novidade;enraizamento versuserrncia.
Obviamente, as anlises aqui apontadas so apenas umasntese mnima de alguns aspectos estudados pelos dois au-tores de forma bem mais profunda e detalhada. Mas o que
importa destacar que, embora ambos levantem pontosimportantes que contribuem para a anlise da sociedadeatual, ao tentar dar conta de fenmenos muito amplos, aca-bam por construir uma viso homogeneizadora do mundocontemporneo.
Tais anlises deixam de lado as diferenas culturais, a his-
tria dos conflitos socioculturais e dos entrelaamentos en-tre grupos, culturas e processos socioeconmicos que a es-pecifidade das formaes sociais possui. A existncia dessasdiferenas aponta para a investigao de polticas e projetos
i id ifi d i i l
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sintam-se identificados com seus princpios, neles se reco-nhecendo e sentindo-se pertencentes a um grupo, a uma
comunidade, ainda que de modo temporrio, uma vez que,diante do ritmo febril das transformaes em nossos dias,fica difcil falar em instncias fixas.
As sociedades modernas se abrem para as mudanasenquanto as sociedades tradicionais valorizam o passado eos antigos costumes. Todavia, entre um plo e outro, que
resiste mais como categoria que propriamente como fen-meno, existem inmeras nuances e, mesmo em cada umdesses plos, encontram-se elementos diferenciados, ou porvezes ignorados nas anlises mais amplas. Em muitos con-textos do mundo hoje, a globalizao caminha em paralelotenso com o reforo das identidades locais, regionais ecomunitrias.
Cada vez mais, as culturas nacionais esto sendo produ-
zidas a partir da perspectiva de minorias destitudas. O
efeito mais significativo desse processo no a prolifera-
o de histrias alternativas dos excludos, que produ-
ziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista. O que
os meus exemplos mostram uma base alterada para oestabelecimento de conexes internacionais.3
O autor observa que as grandes narrativas capitalistasno do conta de fornecer elementos de identificao paraquestes culturais e de afeto poltico.
Articulao social da diferena, da perspectiva da mino-
ria, uma negociao complexa, em andamento, queprocura conferir autoridade aos hibridismos culturais
que emergem em momentos de transformao histri-
ca. O direito de se expressar a partir da periferia do
i t i d t di l li t d l d d t
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sistncia da tradio; ele alimentado pelo poder da tra-
dio de reinscrever por meio das condies de contin-
gncia e contrariedade que presidem nas vidas dos queesto em minoria. O reconhecimento de que a tradio
outorga uma forma parcial de identificao. Ao reence-
nar o passado, este introduz outras temporalidades cul-
turais incomensurveis na inveno da tradio. Esse
processo afasta qualquer acesso imediato a uma identi-
dade original ou a uma tradio recebida. Os embates
de fronteira acerca da diferena cultural tm tanta possi-
bilidade de serem consensuais quanto conflituosos; po-
dem confundir nossas definies de tradio e moderni-
dade, realinhar as fronteiras habituais entre o pblico e o
privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expec-
tativas normativas de desenvolvimento e progresso.4
O tradicionalismo brasileiro sempre elege grupos popu-lares para ergu-los como smbolos gerais, seja de uma re-gio, seja de uma nao. Uma parte dessas manifestaesidentitrias que existem hoje em dia reacionria em senti-do estrito reagem ao movimento de mudana negando-o,tentando preservar um modo de vida autntico. No casodeste estudo, o discurso de valorizao das tradies popu-lares tem um sentido bem diferente do tradicionalismo con-servador. to-somente um discurso pela valorizao da di-versidade como motor da riqueza cultural, um discurso quequer legitimar parcelas de nossa organizao social e denossa subjetividade e tambm de nossa sensibilidade, por
que no? contra tendncias que as reprimem e as negamcom meios de vida. Olhar para as heranas culturais rurais e para todas as outras olhar para si, se reconhecer nahistria e nos outros, participar da modernidade para in-
Homi Bhabba utilizou o termo fronteira como o lugar
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Homi Bhabba utilizou o termo fronteira como o lugara partir do qual algo comea a se fazer presente. No caso
paulista, Srgio Buarque de Holanda que utiliza a noode movimento e fronteiras5, enfatizando as possibilidadesde encontros culturais, como o fato de o portugus se verobrigado a adaptar-se s condies da natureza e dos ind-genas para ter sucesso na colonizao. Esse espao de fron-teira, constituinte de toda a histria paulista, analisado por
Holanda ao mesmo tempo como espao da violncia e dainterao cultural, sendo, portanto, ambivalente, contradi-trio e heterogneo. uma cultura em aberto, referida peloautor como tendo a consistncia do couro, que se amolda, eno a dureza do ferro.
Assim, a anlise da histria paulista traz em seu bojo o
que hoje se denomina como hibridismo cultural, como es-pao de mestiagens que foram, desde seus primrdios,produtoras de cultura, de algo novo, mas que, com o passardos sculos, cederam lugar fora da cultura do branco, dacultura europia, que paulatinamente aumenta sua influn-cia e sua atuao.
Sem dvida, no caso brasileiro, e especificamente nopaulista, encontramos inmeros exemplos de uma reelabo-rao de smbolos, sincretismos e mestiagens, enfim, dife-renas que se expressam de modos diversos e que tm sidoobjeto de estudo de escritores contemporneos, como oprprio Mafesoli ou Domenico Di Massi, que vem nessas
diversidades um campo rico para o entendimento do mun-do atual. Essas diferenas culturais constituintes da pocacontempornea do lugar a mltiplos significados, que somais ou menos valorizados de acordo com o local onde se
os modismos veiculados pela mdia e outros meios de comu
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os modismos veiculados pela mdia e outros meios de comu-nicao. Nesse contexto, as identidades vo se formando na
interao com os mltiplos significados em que as culturasse interpenetram e esto em um constante ser e tornar a ser,no como algo definitivo, mas como algo mutante, sempreem movimento, sempre em equilbrio provisrio.
So Paulo, a grande cidade, ser o espelho do imaginriosocial regionalista de progresso e civilizao, a concretiza-
o do ideal moderno por sua ausncia de tradies e pre-conceitos. De posse de recursos no-democrticos e comtotal domnio econmico e poltico, essa ideologia dos seto-res dominantes, muito antes da hegemonia dos meios decomunicao de massa, difundiu-se com tal fora por todasociedade, aparecendo como o projeto de todos os paulis-
tas, que at os dias de hoje afirmada e reafirmada median-te constantes atualizaes e ressignificaes.
Confundindo o moderno com o novo, estamos sempredispostos a aceitar o novo sem resistncias, pois isso signifi-ca progresso, modernidade. Claro, tambm uma capaci-dade de adaptao e transformao que denota uma gran-
de qualidade, mas refora a falta de tradio, de marcas cul-turais concretas, de valorizao do local, de quebra do eloentre passado, presente e futuro. Com isso, parece que opaulistano no pode reconhecer outras formas de ser, detrabalho e de valores que no estejam pautadas pela grandecidade como smbolo da modernidade e do progresso. As-
sim, ele desvaloriza o interior do Estado e reconhece o patri-mnio cultural brasileiro em regies do Nordeste, em MinasGerais ou na Amaznia, expressando a um olhar semelhan-te ao do estrangeiro, ou seja, o olhar do extico, do folclri-
A referncia primordial do paulistano est fora do Esta-
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A referncia primordial do paulistano est fora do Estado, fora do Pas desde a linguagem cotidiana, carregada
de expresses e termos estrangeiros, at a moda, os objetos,as msicas e os filmes. Festas populares, religiosidade, arte-sanato, comidas e outras manifestaes culturais aparecemno imaginrio da elite paulistana, tanto econmica quantointelectual, como algo menor, desvalorizado, que evidencianosso atraso e, portanto, devemos ignorar, esconder oumostrar apenas como um exotismo fora dos nossos padresdesenvolvidos, embora So Paulo seja um dos grandes con-sumidores de msica caipira, de raiz e sertaneja.
Inmeros exemplos retratam essa condio. Na capital,temos a sensao de que a religiosidade brasileira no tem amesma importncia ou, quando aparece, basicamente em
pequenos grupos isolados ou na periferia, por conta espe-cialmente dos evanglicos. Soa anacrnica e desconcertantea apario eventual de uma procisso popular na avenidaBernardino de Campos, ou carroas e cavalos pelas ruas. Ougrupos de Folia de Reis ou Folia do Divino. Apesar se seremmanifestaes antigas e presentes na vida popular da cida-de, sua apario ainda desconcerta.
No entanto, os estudos do Terra Paulista nos permitiramverificar a importncia da religiosidade nas diversas localida-des do interior de So Paulo, expressa de diferentes formas desde a austeridade de Itu, que busca reviver tradiescomo as procisses solenes dos Passos e do Enterro, at as
festas de So Lus do Paraitinga, no Vale do Paraba, comsuas cavalhadas, congadas e moambiques ou, ainda, asromarias para Pirapora e Aparecida.
A comida outro componente fundamental na cultura
grupos de imigrantes e migrantes. interessante notar a for-
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grupos de imigrantes e migrantes. interessante notar a fora desse patrimnio cultural imaterial que, mesmo assimi-
lando continuamente novas referncias, foi capaz de seguirquatro sculos de nossa existncia: alimentos bsicos denosso cotidiano tm origem indgena, como a mandioca e omilho, e os doces caseiros persistem desde a poca do a-car e do caf, nos sculos XVIII e XIX.
Ainda para referendar a fora do simblico, podemos
destacar um elemento muito forte: a nossa capacidade deproduzir mestiagens. As formas de acasalamento, inicial-mente com ndias e depois com negras, tiveram ampla difu-so, e o mesmo ocorreu com a cultura europia, cada vezmais valorizada. Isso desencadeou forte preconceito, acarre-tando diversas formas de branqueamento da populao ao
longo da histria paulista, tais como os elevados dotes paraos portugueses que desposavam filhas mestias de fazen-deiros, nos sculos XVI e XVII, e o estmulo imigrao euro-pia, durante os sculos XIX e XX.
esclarecedora a comparao entre a sobrevivncia dospatrimnios culturais material e imaterial. Enquanto o lega-
do arquitetnico do passado paulista, teoricamente muitomais resistente, foi destrudo em sua quase totalidade, sub-sistiram os elementos simblicos associados a formas sim-ples de viver, mas que fazem parte do modo de ser brasileiroe paulista, pois tm significado e puderam se transformar,atualizando-se de acordo com diferentes influncias decor-
rentes das mudanas da sociedade.A intensa urbanizao e a industrializao exacerbada
de So Paulo, desde o incio do sculo XX, acentuando-seprincipalmente a partir dos anos 1950, traria conseqncias
isolamento relativo do bairro da roa, quase auto-suficiente,
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, q ,de modo a estabelecer relaes com as cidades, que se tor-
nariam cada vez mais importantes e prestigiadas, em con-traposio ao campo e vida comunitria. Esse fator pro-duziu uma massa crescente de migrantes que marcha emdireo s cidades, abrindo mo, em um primeiro momen-to, de seu modo de vida, de seus costumes e valores. Masestes logo seriam, de alguma forma, revividos e ressignifi-
cados nos espaos urbanos onde os recm-chegados, apartir das diferentes realidades locais, criariam seus vncu-los e suas marcas.
Esse processo cada vez mais intenso e rpido, de modoque a sociedade atual, globalizada, cujos eixos norteadoresesto no mercado e nas tecnologias, traz inerente a si um
direcionamento hegemnico que acaba por gerar resistn-cias violentas, mas tambm pacficas, de maneira a salva-guardar particularidades locais ou regionais, assim comovalores, costumes e modos de vida especficos. Nesse senti-do, no se pode reduzir todas as culturas particulares aostatusde marginais ou residuais, uma vez que, ao se afirmar
no espao pblico por meio de demandas, atos polticosou simplesmente pela apresentao de espetculos ou ma-nifestaes festivas populares, elas reivindicam e alcanamum reconhecimento da sociedade. So mltiplos os grupos,as culturas, as regies ou os pases que se encontram nessasituao e que expressam sua identidade das mais diferentes
formas: defesa de cotas para minorias, afirmao de parti-cularismos regionais, isolamento e apelo volta de tradi-es, etc.
Essa dimenso simblica que busca reforar, especial-
Paulo to forte que acaba por esconder, ou diluir, nossa
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q pdiversidade, fruto de histrias culturais diferentes, de sujei-
tos concretos que so marginalizados e esquecidos pela vio-lncia simblica da viso dominante.
Maria Rita Kehl e Eugnio Bucci6, analisando os meios decomunicao no contexto da sociedade brasileira, apontama alienao do homem moderno, que se v sem histria,sem comunidade, sem referncias morais e sem subjetivida-
de, conformando-se em se perder ou se diluir em meio massa, que tem na TV o espelho espetacular de sua vidaempobrecida. a sociedade do espetculo, do culto ima-gem, da dependncia absoluta do olhar do outro, poisdependemos do espetculo para comprovar que existimos.O espetculo como produo de sentido e de verdade.
Os autores enfatizam a especificidade brasileira, na quala TV adquire grande centralidade em razo de seu papel deintegrao nacional, de difusora de hbitos, modos de vida,de vestir, de falar, etc., que passa a ser o lugar do espaopblico. A TV reelabora os microuniversos da sociedade,apropriando-se das falas emergentes e criando a fala institu-
da em outro lugar, ou seja, na prpria televiso, autorizandoo que pode e o que no pode ser falado e mostrado pelaconsolidao de costumes e pela criao do que consideraser uma identidade nacional. uma viso totalizante querecusa enraizamentos, na qual tudo presente, pois a TVtenta tudo abranger de um modo amorfo, pastoso, no
considerando as idias de passado e futuro. Em resumo, oque no aparece na TV no existe. O que no visvel noexiste, no real.
Assim, se a indstria cultural s reconhece aquilo que ela
do com o capital e o poder, tudo o mais est automatica-
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mente excludo, no considerado porque no existe. Nesse
sentido, a maior parte das manifestaes populares que nose enquadram nessas condies excluda. Desse modo,valores, costumes e modos de vida das camadas mais po-bres no aparecem naquilo que a mdia apresenta comomodo de vida a ser seguido, ou seja, modos de vida valida-dos e que tm a aurola de sucesso, de modernidade, de
progresso.Nessa perspectiva, Maria Rita Kehl analisa a sociedade do
espetculo como a centralidade do aparecimento. o impe-rativo da novidade ao apagar as tradies, a histria dosacontecimentos e os jogos de fora e interesses que o deter-minam. Esse imperativo da novidade no produz o novo,
mas, sim, uma repetio renovada deste, dispensando ideaisem favor do consumo. A visibilidade reconhecida no atodo consumo e no na ao poltica. A sociedade que cultuaa imagem e a obsesso pelo corpo em detrimento da hist-ria, das subjetividades, geram o apagamento absoluto dasdiferenas por meio do discurso onipresente da TV.
Nesse contexto da sociedade atual, buscamos realizarum contraponto ao analisar os sujeitos constituintes da his-tria e da cultura paulistas que foram marginalizados e es-quecidos pela histria oficial e pelos meios de comunicaode massa. Interessa-nos aqui entender quem esse sujeitomorador do interior paulista, que est de alguma forma li-
gado ao patrimnio cultural de sua cidade, seja pela partici-pao em festas tradicionais, seja como arteso, artista, etc.Enfim, quem esse sujeito desqualificado por alguns e valo-rizado por outros pelo reconhecimento de sua cultura caipi-
modo de vida, seus costumes e valores constituem-se como
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traos culturais com os quais tanto os paulistas como os
paulistanos se identificam, apesar das presses da mdia emsentido contrrio.
Esse interior est na cidade. Algumas marcas da cidadeimpregnadas de uma cultura caipira ainda so presentes:preges de pamonha; caminhes de fruta; vendedores debiju com matracas; afiadores de faca e seus apitos; vende-
dores de doces em carrinhos; bancas com ervas naturais;avcolas que vendem produtos para horta e at mesmo gali-nhas vivas; casas com pequenas hortas e minipomares; ocrculo de reciprocidade nas trocas das produes de horti-frutos e quitutes caseiros; as repentinas aparies de cavalose carroas no centro expandido; as procisses religiosas; as
festas de sambas de roda, sambas de vela e outros ritmos;as brincadeiras infantis de rua; os inmeros programas derdio AM; o sucesso do programa Viola, minha viola comInezita Barroso na TV Cultura e do antigo Som Brasil, inicial-mente com o Rolando Boldrim e depois com o Lima Duarte;o mercado de discos sertanejos na cidade; os bares de cow-
boys. Sem contar toda a mistura entre o mundo caipira e omundo sertanejo nordestino os largos da Batata e 13 deMaio so ricos nessa mistura de sertes.
H um centro paulistano que se v como a totalidade deSo Paulo e que deixa a imensa periferia num limbo incom-preendido. Acham que a periferia a misria e no ! H
inmeros bairros de classe mdia e mdia-baixa em que vi-vem relativamente bem, consumindo, muitas vezes chegan-do s boas universidades e mantendo relaes comunitriasmuito prximas quelas vivenciadas por pequenas cidades
Tudo isso passa desapercebido pelos grandes modelos
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sociolgicos e por aqueles que acham que o extremo Norte
de So Paulo a Barra Funda; o extremo Leste, o Belenzinho;o extremo sul; Moema; o extremo Oeste, a Cidade Universi-tria para aqueles que acham que, para alm dessa SoPaulo do centro expandido, h uma imensido de misria.
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Treinando para o rodeio, De Marchi
EscritriodeArte-MarliaCarvalho
Franco-www.dearte.com.brMarliaAugustadeCarvalhoFranco-CludiaPaulaSant
os
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4A VISO HEGEMNICA DA MDIA:
TRANSMUTAES DO CAIPIRA
A vida na roa, o negro paulista escravizado ou livre, oimigrante o caipira e seus modos de ser e fazer assim como
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imigrante, o caipira e seus modos de ser e fazer, assim como
as elites agrrias, os coronis e seus sqitos, fizeram partede um Brasil rural, colonial, imperial e republicano que dei-xou inmeras marcas na nossa sociedade, a despeito detodo o processo de urbanizao. Assim, o caipira, como jdemonstramos em outros itens, encarnou diferentes mitos epreconceitos de acordo com a interao a que era referido.Ou seja, ora foi visto como analfabeto, indolente