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    direitos humanos, etc.) lhes permite anlises melhores ou mais perspicazes do que as mi-nhas (ver Deleuze 1990).

    A segunda transio (da poltica para a religio), entretanto, revelou a natureza maisprofunda do problema. Por que aparentemente mais fcil ouvir o que os nativos dizemsobre deuses do que sobre polticos? Talvez porque, como sei que os deuses no podemexistir, nada do que digam pode efetivamente confrontar meu saber, e posso, rapidamente,reduzir tudo o que tm a dizer a crenas. Ao contrrio, certo de que a democracia existe,ou ao menos pode vir a existir, o que eles dizem pode me chocar, pode perturbar mais oumenos profundamente uma das minhascrenas.

    Se a primeira transio levava a indagar como a antropologia das crenas poderiacontribuir para o estudo de instituies, valores ou processos que a sociedade qual per-tence o antroplogo parece considerar centrais, a segunda coloca a questo do grau de

    verdade que somos efetivamente capazes de aceitar no discurso nativo. Pois, se h algumasingularidade na antropologia, esta consiste em uma disciplinada subordinao aos pon-tos de vista que se imagina que aqueles que estudamos adotam.

    No h nenhum romantismo ou ingenuidade aqui. Sei perfeitamente que a condiopara que aquilo que meus amigos dizem sobre religio ou sobre poltica receba um mni-mo de ateno que eu seja capaz de traduzir o que dizem e fazem para uma forma acei-tvel ou, pelo menos, dicil de recusar por parte de intelectuais e acadmicos. Ou, emoutras palavras, que eu seja capaz de funcionar como antroplogo-intercessor para elesna medida em que busco simetrizar seus saberes com aqueles dominantes (ver Deleuze1990).

    Quando escrevo sobre o candombl, por exemplo, tenho, pelo menos, duas obrigaes.Por um lado, claro, devo explicar o que observei. Mas explicar aqui no deve ser en-tendido em seu sentido forte, como tentativa de determinao de relaes causais, fun-cionais ou estruturais estveis entre os acontecimentos. Deve ser entendido no sentidofraco que Paul Veyne (1978: 67-68, 118) atribui explicao histrica como quandoexplicamos para algum o que nos aconteceu ao longo do dia. Sou obrigado a faz-loporque a maior parte dos que eventualmente me lero no sabe nada ou quase nada sobreo candombl de que estou falando.

    Ao mesmo tempo, contudo, devo provocar algumas transformaes no que ouvi daspessoas do candombl, pois, se no o izer, seu discurso e suas prticas diicilmente sero

    levados a srio pelos leitores. Assim, devo, por vezes, utilizar palavras que meus amigosno utilizam, exagerar alguns pontos, traar paralelos, fazer comparaes, e assim pordiante. Por exemplo, e como Joanna Overing (1985: 23, traduo minha) sugeriu h muitotempo, traduzir, em termos de ilosoia, ontologia ou epistemologia aquilo que es-cutei em outros termos pelo menos um modo de comear a superar a represso ou orecalcamento das teorias indgenas, reconhecendo a seriedade e a respeitabilidade dosdiscursos nativos em lugar de se contentar com a diviso tradicional ns temos nossasilosoias, eles tm suas cosmologias. Isso signiica que a utilizao desses termos no apenas uma questo epistemolgica ou metodolgica, mas faz parte de um posiciona-mento tico e poltico.

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    Aps todas as saudaes, o orix do pai-pequeno se dirigiu at a orix da me de santopara reverenci-la. No sei bem como, mas ele segurava em uma das mos uma palmatria,

    a qual geralmente ica pendurada em um dos quartos de santo e que, na vspera, o prpriopai-pequeno havia ixado acima dos atabaques, ao lado de alguns cips de caboclo, expli-cando-me que tudo isso devia funcionar como smbolo da disciplina no candombl. Apsas saudaes, seu orix entregou a palmatria orix da me de santo, que a recusou pe-remptoriamente; ele, ento, se ajoelhou e, apoiando-se sobre uma das mos, usou a outrapara bater violentamente por trs vezes com a palmatria na mo sobre a qual se apoiava.A palmatria s foi retirada das mos do orix com a interveno das demais pessoas quehaviam corrido ao se darem conta do que estava acontecendo, mas antes de se levantar eleainda bateu no cho violentamente com as duas mos por umas trs vezes.

    Nesse momento, a me de santo, ainda possuda por sua orix, passou a ser possuda

    por sua cabocla; do mesmo modo, seu ilho passou a ser possudo por um mano, um dosespritos com que por vezes entra em transe. Foi esse esprito que anunciou: chega detristeza, agora festa. Ao mesmo tempo, percebi que a cabocla ordenava algo a algum.Imediatamente, cadeiras e ventiladores que estavam no meio do barraco foram retira-dos, os atabaques foram descobertos, e teve incio uma festa para caboclos que durou odia inteiro.

    Retrospectivamente, o que mais me impressiona nesse episdio a minha diiculdadeem lidar com ele. Por que imaginei ser capaz de abreviar essa reunio a qual eu simples-mente no conseguia suportar? Por que imaginei, em diversos momentos, que ela estavapara acabar? De onde vinha, enim, meu profundo mal-estar com a situao, assim como adiiculdade de realmente entender o que estava ocorrendo?

    Certamente h razes psicolgicas e mesmo sicas para isso. Como contei, o calor erainsuportvel, e, alm disso, nunca agradvel para um antroplogo que pretende se re-lacionar bem com todos os nativos perceber que estes so, simplesmente, como todomundo, ao mesmo tempo parecidos e diferentes entre si e prontos para entrar nas dispu-tas mais violentas em torno de temas os quais outros podem considerar banais.

    A hiptese do livro que comecei a escrever que meu mal-estar, assim como minhaincompreenso, provinham, antes, do que eu chamaria de naturezapolticada minha pr-pria posio. E digo poltica no sentido mais clssico do termo, ou seja, o que assumecomo premissa que situaes como a presenciada por mim se resumem a disputas entre

    seres humanos como eu e que, portanto, qualquer divergncia pode ser equacionada e tal-vez superada pelo livre debate e por acordos e pactos. por isso que a hiptese, levantadapor alguns, de que por trs de tudo o que estava em jogo era a disputa pelas presidnciasda Associao civil do terreiro e do Bloco afro a ele ligado me agradava tanto. E por issoque eu pensava que meus apelos ao bom senso e relexo serviriam para alguma coisa.

    No entanto, como o desenrolar dos acontecimentos me lembrou do modo mais diretopossvel, um terreiro de candombl no um espao poltico no sentido da noo inven-tada pelos gregos. Ou seja, no um espao exclusivamente humano, onde seres suposta-mente racionais se defrontam apenas com eles mesmos. Um terreiro est repleto de ou-tros seres e de outras foras, e estes e estas entram em ao mesmo quando o antroplogono quer.

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    Ora, do mesmo modo que ao deinir o espao poltico os gregos dele excluram mulhe-

    res, crianas, escravos, estrangeiros e tambm as foras naturais e os seres sobrenatu-rais , creio que ao delimitar o escopo de suas investigaes, ou de suas explicaes, osantroplogos dele excluram uma boa parte daquilo que constitui o mundo para a maiorparte dos povos os quais estudam. Tomemos um exemplo dos grandes.

    No incio do quarto, e central, captulo de seu magnico livro sobre a feitiaria entre osAzande (intitulado A Noo de Bruxaria explica Infortnios), Evans-Pritchard escreveu:

    Descrevi algumas das caractersticas mais proeminentes da feitiariano pensamento Zande. Outras sero desenvolvidas neste e nos prximoscaptulos. Das descries Zande a respeito da bruxaria, tira-se a inevi-tvel concluso de que no se trata de uma realidade objetiva. A condi-o isiolgica considerada o lugar da bruxaria, e que eu acredito no sernada mais que a comida passando pelo intestino delgado, uma condi-o objetiva, mas as qualidades que eles atribuem a ela e o resto de suascrenas sobre ela so msticas. Bruxos, como os Azande os concebem,no podem existir. No entanto, o conceito de bruxaria fornece a eles umailosoia natural por meio da qual so explicadas as relaes entre os ho-mens e os infortnios, e meios, prontos e estereotipados, para reagir aesses infortnios. As crenas em bruxaria compreendem, alm disso, umsistema de valores que regula a conduta humana (Evans-Pritchard 1937:63, traduo minha).

    Na edio abreviada do livro (elaborada por Eva Gillies), o trecho, resumido noque se tornou o segundo captulo, ainda mais direto: Da forma como os Azande os con-cebem, bruxos no podem evidentemente existir (Evans-Pritchard 1976: 18, traduominha). No sei dizer por que ou como o advrbio evidentemente (clearly, claramen-te) foi introduzido no que se tornou a primeira frase do pargrafo. Mas isso no alterasubstancialmente o muito que h a dizer sobre esse trecho.

    Em primeiro lugar, que ele no foi escrito por qualquer um, mas pelo, talvez, maioretngrafo de todos os tempos, capaz de fornecer uma descrio empiricamente rica e ana-liticamente esclarecedora de um conjunto altamente complexo de fenmenos. O trecho ci-tado abre um captulo que se segue a trs outros, onde a bruxaria zande minuciosamente

    descrita, captulos que seguem, por sua vez, uma introduo que apresenta os Azande e olivro a seus leitores.

    Pouco suspeito de falta de empatia com seus nativos, Evans-Pritchard chega mesmo aescrever que uma vez vi a bruxaria em seu caminho (Evans-Pritchard 1937: 34, traduominha) os Azande sustentando que, sob certas condies, a bruxaria pode ser vista peloshumanos sob a forma de uma luz que se desloca. Desconiado de que se tratava da lan-terna de algum, Evans-Pritchard constata, na manh seguinte, a impossibilidade dessahiptese, enquanto alguns Azande garantem a ele que se tratava mesmo da bruxaria e quea morte de duas pessoas naquela mesma noite s podia conirmar o diagnstico. Poucoconvencido, Evans-Pritchard conclui que: Nunca descobri sua origem real, que possivel-

    mente era um punhado de grama incendiada por algum em seu caminho para defecar,

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    mas a coincidncia da direo seguida pela luz e a morte subsequente combinavam bemcom as ideias Zande (Evans-Pritchard 1937: 34, traduo minha).

    A segunda coisa a observar que o que mais chama a ateno na frase de Evans-Prit-chard no tanto a simples decretao da inexistncia da bruxaria zande como fenmenoobjetivo (poucos antroplogos na dcada de 1930, e mesmo hoje, diriam o contrrio), maso curioso aposto que ele introduz: bruxos, como os Azande os concebem, no podem exis-tir (witches, as the Azande conceive them, cannot exist grifos meus). Isso signiica, porum lado, que inexistncia objetiva dos bruxos o autor sente a necessidade de acrescen-tar a inadequao emprica do saber nativo. Mas parece signiicar tambm que, de acor-do comoutras concepes, bruxos poderiam, quem sabe, existir. Que outras concepesso essas precisamente o que o livro como um todo desenvolve e que o trecho citadoj deixa entrever. Ainal, diz Evans-Pritchard, existe uma condio isiolgica [objetiva]

    considerada o lugar da bruxaria mas esta no nada mais que a comida passando pelointestino delgado; existe uma falta de conhecimento (emprico) dessa situao; e existemqualidades (msticas) atribudas a essa condio objetiva por parte de crenas equivo-cadas e igualmente msticas.

    Nada disso impede, contudo, que a bruxaria exista de uma determinada maneira, que,evidentemente, no a dos nativos. Na ausncia de conhecimentos empricos, a bruxaria que Evans-Pritchard signiicativamente designa como um conceito , por um lado, for-nece aos Azande uma ilosoia natural por meio da qual so explicadas as relaes entreos homens e os infortnios, e meios, prontos e estereotipados, para reagir a esses infort-nios, e, por outro, um sistema de valores que regula a conduta humana.

    O verdadeiro modo de existncia dos bruxos s pode ser, portanto, epistemolgico(sob a forma de um conhecimento empiricamente falso, mas que satisfaz a necessidadede explicar o mundo) e/ou sociolgico (sob a forma de um sistema de acusaes e puni-es equivocado, mas que preenche a necessidade de regular a conduta humana). Aqui,percebe-se, esto as duas vertentes que, desde Evans-Pritchard, pautaram a investigaoantropolgica da bruxaria e fenmenos anlogos, estudados ora como modos (errneos)de explicao, ora como modos (equivocados) de acusao. De toda forma, disso tudo re-sulta que bruxaria s pode existir na medida em que seja outra coisa que aquilo que osnativos pensam que . Ou, se preferirmos, bruxos s podem existir como os antroplogosos concebem.

    Qual seria esse modo antropolgico de conceber a bruxaria? Aqui, creio, abre-se umaimportante bifurcao, e o tipo de antropologia que se faz ser de algum modo deter-minado pelo caminho escolhido. O primeiro, e mais comum, consiste em simplesmenteassumir a inexistncia dos bruxos como os nativos os concebem, como uma espcie deequvoco ontolgico. Ou seja: eles pensam que existe algo que efetivamente no existe e a isso que em geral se denomina crena. Essa operao se sustenta na introduo de umapremissa extra-antropolgica, ou seja, premissa que desconsidera a impossibilidade de,como escreveu Wagner (1981: 12, traduo minha), o antroplogo no ter nenhum pre-conceito e, portanto, nenhuma cultura. Ou, nas palavras de Strathern comentando Boon(Strathern 1987: 256, nota 13, traduo minha), o fato de que no h lugar fora de umacultura exceto em outras culturas ou em seus fragmentos e potencialidades(ver, tam-

    bm, Viveiros de Castro 2002).

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    claro que provavelmente todos concordam que essa premissa extra-antropolgicas pode provir de uma cultura especica, a saber, a nossa. Mas talvez j no seja to pro-

    vvel que todos admitam que essa cultura apresente um trao que a distingue de todas asdemais. A saber, o fato de que ao menos em alguns de seus setores ela se imagina, digamos,menos cultural, ou seja, menos arbitrria, do que as demais. Ou, em termos latourianos,que ela imagine coincidir com a realidade objetiva (Latour 1991). De todos os sensos co-muns do universo, o nosso o nico que tambm um bom senso, uma vez que podeapelar para as deinies do real fornecidas pela Cincia (que, alis, nunca a prpriaantropologia) e proclamar seu acesso privilegiado a uma natureza universal qual as de-mais culturas esto submetidas, mas que no conhecem.

    Isso nos parece to bvio eu diria, to culturalmente bvio que nem se experimen-ta a necessidade de explicitar inteiramente a questo. Evans-Pritchard, por exemplo, no

    precisa gastar muito tempo com isso porque sabe que o apelo, explcito ou implcito, anosso bom senso produzir o efeito desejado e que para usar a deinio de Deleuze so-bre imagem dogmtica do pensamento todo mundo sabe, ningum pode negar (De-leuze 1968: 170 ver todo o captulo 3) que bruxos no existem. E, evidentemente, noapenas bruxos, mas o que se quiser considerar como inexistente: divindades, espritose foras misteriosas, certamente, mas tambm raas, tradies inventadas, genealogiasimpossveis, etc.

    Isso no signiica, de jeito algum, que a alternativa a esse tipo de perspectiva seria apura decretao, por parte do antroplogo, de que, sim, bruxos existem e a partir delesque devemos apresentar e explicar o que aprendemos no campo. Primeiro, porque issocontinuaria exprimindo a metasica e arrogante pretenso ocidental de poder triar o queexiste e o que no existe. Segundo, e mais importante, porque, como escreveu CliffordGeertz (1983: 57, traduo minha), uma interpretao antropolgica da bruxaria nodeve ser escrita por um bruxo nem por um gemetra. Mas isso no porque se trata, comoGeertz parece crer, de encontrar o justo ponto mediano entre proximidade e distnciaexcessiva da experincia vivida; e sim porque explicar o que quer que seja pela ao debruxos, espritos ou foras misteriosas incorrer no mesmo erro de explicar o que querque seja pela ao dos genes, do clima, dos impulsos individuais, dos valores culturais,das necessidades sociais, e assim por diante. Ou seja, no se trata de uma questo de exis-tncia ou inexistncia, mas do fato que em antropologia lidamos com relaes, no comsubstncias ou mesmo com aes. Nosso problema, consequentemente, como incluir os

    bruxos (ou o que quer que seja) no conjunto das relaes que descrevemos e analisamos.Quase 20 anos depois da frase sobre os bruxos, de 1937, Evans-Pritchard conclua seu

    terceiro livro sobre os Nuer do Sudo meridional, aquele sobre sua religio, dizendo queos sacricios praticados por esse povo so uma representao dramtica de uma expe-rincia espiritual. E arrematava com as derradeiras palavras do livro:

    O que essa experincia o antroplogo no pode saber com certe-za. Experincias desse tipo no so comunicadas com facilidade mesmoquando as pessoas esto dispostas a faz-lo e dispem, para isso, de umvocabulrio soisticado. Ainda que a prece e o sacricio sejam aes ex-teriores, a religio nuer , em ltima instncia, um estado interior. Esse

    estado externalizado atravs de ritos que podemos observar, mas seu

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    signiicado depende inalmente de uma tomada de conscincia em rela-o a Deus e ao fato de os homens serem dele dependentes e deverem se

    resignar sua vontade. Nesse ponto, o telogo toma o lugar do antrop-logo (Evans-Pritchard 1956: 322, traduo minha).

    A justaposio dessa airmativa com aquela sobre os bruxos Azande pode soar, semdvida, como algo paradoxal. Mas talvez seja preciso reconhecer que, na verdade, a nicacoisa um pouco estranha que elas sejam assinadas pelo mesmo autor que, alis, oscilouentre considerar a antropologia um ramo das cincias naturais, uma disciplina histricae, mesmo, uma forma de arte. Porque esse aparente paradoxo parece, antes, inscrito naprpria constituio da antropologia. Tudo se passa como se, na ausncia de uma reali-dade objetiva ltima que sirva de referente para a proposio indgena (bruxos, como osAzande os concebem, no podem existir), s restasse a opo desse um estado interior

    na verdade to real quanto qualquer referente possvel, ao qual o antroplogo no teriaacesso, mas o telogo sim. A questo saber se a antropologia se joga necessariamenteentre a noo objetivista de uma realidade a que apenas ns temos acesso, e em relao qual os outros tm apenas crenas, e a hiptese apenas aparentemente idealista desseestado interior no qual o que quer que seja pode ser considerado crena.

    Penso, ao contrrio, que a elaborao de um princpio de simetria, ou de simetrizao,propriamente antropolgico, pode ultrapassar essa escolha aparentemente nica. Esseprincpio de simetrizao exige, por sua vez, uma modiicao, de contedo e de nfase, naformulao de Evans-Pritchard sobre os bruxos Azande. Em lugar de dizer bruxos, comoos Azande os concebem, no podem existir, seria preciso sustentar que bruxos s podemexistir como os Azande os concebem ou como algum os concebe. Mas exige, tambm,no coniar em nenhuma teologia para determinar o que essa experincia a qual o an-troplogo no pode conhecer com certeza.

    As frmulas gerais da crena (o que eles pensam que existe eu sei que no existe, ouo que eles no sabem que existe eu sei que existe) ou do ceticismo (eu no sei o que elessabem que existe ou nenhum de ns sabe o que existe) devem dar lugar exploraosistemtica do que eu penso que eles pensam que existe e do que eles pensam que eupenso que existe (com todas as suas refraes: o que eles pensam que eu penso que elespensam que existe e assim por diante). Esta a bifurcao fundamental da antropologia,e ela que determina o tipo de exerccio antropolgico que ser praticado: pretender des-cobrir a verdade dos outros ou cartografar outras verdades.

    Pois essa bifurcao est ligada a uma questo sempre recomeada na histria da an-tropologia, justamente, o grau de verdade que somos capazes de aceitar nos discursos enas prticas nativas. claro que nenhum antroplogo deixa de conceder algum grau deverdade a esses discursos e prticas, mas o problema at onde somos capazes de ir, atonde somos capazes de escutar e de suportar a palavra nativa. E grau de verdade nosigniica aqui, evidentemente, tentar saber se os nativos descrevem corretamente ou nouma realidade objetiva l fora, uma vez que isso exigiria supor a exterioridade de um ob-servador que j sabe de antemo qual a verdade e que a partir desse acesso privilegiadoao real poderia julgar os outros.

    Mas a aceitao da palavra nativa no pode signiicar, tampouco, limitar-se a repeti-la,uma vez que isso s serviria para duplicar todas as diiculdades que ela coloca para ns.

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    O problema, portanto, no apenas at onde podemosseguir a palavra nativa, mas tam-bm o do ponto em que necessariamente devemosdela nos separar. Minha hiptese que

    essa separao tem que se dar na medida em que pretendemos ( nossa escolha) colocarem relao mais coisas do que os nativos pretendem fazer. Como escrevi em outra parte,nosso saber diferente daquele dos nativos, no por ser mais objetivo, totalizante ou ver-dadeiro, mas simplesmente porque decidimos a prioriconferir a todas as histrias que es-cutamos o mesmo valor (Goldman 2006: 25). A capacidade de suportar a palavra nativa,lev-la efetivamente a srio e permitir que conduza a relexo antropolgica at seu limite,parece-me ser as variveis que fazem a diferena na qualidade dos textos antropolgicos.

    Em suma, no se trata nem de criticar a palavra nativa desvelando o que haveria portrs dela, o que realmente se quer dizer e, no limite, instruindo o prprio nativo nem denela acreditar ou simplesmente repeti-la ou glos-la. Trata-se de sua aceitao, no sentido

    de que preciso dela se aproximar ao mximo e com o maior respeito possvel, a im deexplorar os efeitos que produz em nosso pensamento e em ns mesmos em geral.

    Retornemos frase de Evans-Pritchard sobre os bruxos. Aps sustentar que aquilo queos Azande consideram a bruxaria uma condio objetiva (a comida passando pelo in-testino delgado), o autor arremata: mas as qualidades que eles atribuem a ela e o restode suas crenas sobre ela so msticas. No dicil perceber qual a referncia tericadesse raciocnio ou, ao menos, desse vocabulrio. Em 1934, Evans-Pritchard j haviapublicado um artigo sobre a teoria da mentalidade primitiva de Lvy-Bruhl (Evans-Pri-tchard 1934), no qual, alm de reconhecer a importncia de seu pensamento, pretendia,sem dvida, torn-lo mais palatvel para os antroplogos britnicos. Para isso, contudo,Evans-Pritchard se viu obrigado a simpliicar Lvy-Bruhl em um ponto essencial o dosentido do termo mstico, to importante nas primeiras obras desse autor.

    Grosso modo, Evans-Pritchard sustenta que, em certas situaes, propriedades ms-ticas acrescentam-se, de algum modo, s propriedades objetivas que todos os humanosindiscutivelmente reconhecem no mundo. O que faz, claro, com que os primitivos nosejam assim to diferentes de ns, mas trai o pensamento de Lvy-Bruhl em um pontofundamental. No que se tratasse para ele, como tanto se airmou, de aprofundar o fossoentre ns e eles. O problema , sobretudo, da ordem dos modos de conhecimento.

    Confessando, em 1910, utilizar o termo mstico na falta de um melhor, Lvy-Bruhl(1910: 30, traduo minha), se esforava por demonstrar que o que denominava misticis-

    mo primitivo consistia em uma percepo de foras, inluncias e aes, as quais sosentidas como reais, embora no sejam captadas pela sensibilidade propriamente dita.Tudo isso, associado a sensaes, sentimentos e representaes, sentido como um blocoindissocivel, o que quer dizer, segundo o autor, que a realidade em que se movem os pri-mitivos ela prpria mstica (Lvy-Bruhl 1910: 30, traduo minha). Assim, no apenastudo o que existe est dotado de propriedades msticas, como estas so tidas como toobjetivas quanto as sensveis. Isso signiica e este o ponto fundamental que a prpriadistino entre sensvel e mstico no teria muito valor para a mentalidade primitiva.

    por isso que o misticismo que pode ser encontrado na sociedade ocidental (o dohomem supersticioso, frequentemente tambm do homem religioso de nossa sociedade,como escreve Lvy-Bruhl (1910: 67, traduo minha)) no serve para compreender o mis-ticismo primitivo e, ao contrrio, tende a diicultar essa compreenso. Isso porque nosso

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    misticismo dualista, supondo duas ordens de realidades, umas visveis e tangveis, sub-metidas s leis necessrias do movimento, as outras invisveis, impalpveis, espirituais,

    formando uma espcie de esfera mstica que envolve as primeiras (Lvy-Bruhl 1910: 67,traduo minha). O misticismo primitivo, entretanto, monista, uma vez que no supe aexistncia de dois mundos, mas apenas de um: toda realidade mstica, como toda ao,e, por conseguinte, tambm toda percepo (Lvy-Bruhl 1910: 67, traduo minha).

    Como costuma acontecer to frequentemente, ao tentar reduzir a distncia entre ns eos outros, o que Evans-Pritchard acaba fazendo tornar os outros verses um pouco pio-radas de ns mesmos. O esforo de Lvy-Bruhl, ao contrrio, se dirigia no sentido oposto,o de caracterizar uma alteridade que no pudesse ser julgada em nossos prprios termos.O problema, parece, que somos, h muito tempo e mesmo sem pensar nisso, cartesianose, principalmente, kantianos. Mas isso no signiica que todos os humanos, nem mesmo

    ns, tenham que o ser nem mesmo que as condies de possibilidade da realidade sejamas mesmas para todo mundo:

    A nossos olhos o que no possvel no poderia ser real. Aos seus[dos primitivos], aquilo que sua experincia lhe apresenta como real aceito como tal, incondicionalmente. Se reletissem acerca disto, diriamsem dvida que preciso que isso seja possvel, uma vez que isso (Lvy-Bruhl 1938: 101, traduo minha).

    claro, contudo, que o destino do pensamento de Lvy-Bruhl primeiro aceito porms razes, depois interpretado com a pior das ms vontades e, inalmente, colocado noostracismo generalizado deve nos servir de advertncia. Sua recusa em aceitar a condi-

    o fundadora da antropologia (como dizer em termos que s podem ser os nossos o que sempre dito em termos que no so os nossos) explica em parte esse destino e sugereque essa recusa s pode conduzir incompreenso, incomunicabilidade e, no limite, aomutismo. Pois como seria possvel pensar com categorias que no so nossas sem que elasimediatamente tal se tornassem? E, se fosse possvel, como comunicar esse pensamento?Seria o mesmo que se recusar a usar a prpria lngua e, evidentemente, no poder usaroutra porque no pode ser entendida.

    Creio que a antropologia entreviu duas solues para esse problema. Uma seria falaruma lngua que no de ningum e que, paradoxalmente, pode ser entendida por todomundo ou ao menos pelos de boa vontade. a soluo universalista, que se exprime seja

    de modo substancialista, procurando encontrar o que h de comum em todas as cultu-ras, seja de modo mais formal, com a determinao das estruturas ou processos comuns,subjacentes a tudo o que h de humano e que permite um entendimento mtuo.

    A segunda soluo no , como se poderia imaginar, a do relativismo clssico. Esteno passa de uma variao sobre o universalismo, em que, no lugar de enfatizar o univer-sal, se sublinha a variao. Como Roland Barthes escreveu, ainda em 1961: num mundoclssico, a relatividade nunca vertiginosa porque no ininita; ela logo se detm nocorao inaltervel das coisas: uma segurana, no uma perturbao (Barthes 1964:139-140).

    Na verdade, tanto no universalismo quanto no relativismo o dualismo de que aparen-

    temente se parte no passa de uma mal disfarada trade, com um dos termos em aparen-

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    te oposio dual ocupando simultaneamente uma posio hierarquicamente superior apartir da qual se pode julgar as demais. Eles fazem parte de uma cultura, ns fazemos

    parte de uma cultura; s que, alm disso, ns tambm temos uma cincia, a qual permi-te decidir em que as culturas so diferentes e semelhantes. Nsaparecemos duas vezes,como rus e como juzes; eless aparecem como rus.

    A nica soluo, ou melhor, a nica sada, parece-me, foi sugerida h tempos por Pier-re Clastres (1979): situar-se na prpria partilha para que o dualismo de partida possaconduzir a formas mais interessantes de pluralismo. Ora, situar-se na prpria partilhasigniica traduzir um sistema em outro sem passar por nenhuma terceira instncia trans-cendente ou transcendental.

    Como traduzir, contudo, outras formas de pensamento e de prtica? Supondo que soda mesma natureza que as nossas? Uma resposta negativa diicilmente ocultaria a arro-

    gncia que, como todo saber ocidental, a antropologia comporta. Claro que no seria dicilimaginar uma sada igualmente hierarquizante, mas invertida. Basta uma maior compla-cncia com a riqueza do mundo vivido e coisas assim, e uma maior nostalgia pela supostaperda de um contato direto com ele, para que nosso pensamento seja convertido em umaforma mais ou menos espria, ou ao menos impotente, de um pensamento humano maisligado ao real, mais espontneo, etc.

    Por outro lado, no estou to certo de que a soluo democratizante nos livre de to-dos os problemas. Ainal, quem disse que para pensar preciso pensar como ns? Quemgarante que o pequeno acidente ilosico grego ou o nascimento das cincias modernaspossuam uma tal dignidade que s eles poderiam assegurar direitos de cidadania a outras

    formas de pensamento? No estaramos aqui s voltas com uma espcie de metaetnocen-trismo, que s recusa o etnocentrismo mais imediato (somos melhores do que eles) coma condio de que eles sejam iguais a ns? Ou com uma dessas formas de tolerncia que,como demonstrou Isabelle Stengers (2003), constituem apenas a outra face da arrognciauniversalista? Tolerncia pronta a aceitar tudo desde que se parea com aquilo que nsmesmos fazemos. Ora, sem hierarquizao e sem democratismo, o que nos resta seno asrelaes transversais de que nos fala Flix Guattari?

    A singularidade da antropologia s pode ser airmada, ento, quando ela concebida,de acordo com as palavras de Tim Ingold (1992: 695-696, traduo minha), como iloso-ia com o povo dentro (Anthropology is philosophy with the people in). Ou como cincia

    com o povo, ou os povos, dentro, porque, ainal, tudo sempre comea com um encontromuito concreto a partir do qual nossos problemas so colocados. Mas uma ilosoia ouuma cincia com o povo ou os povos dentro nos reconduz ao j mencionado carter in-trinsecamente paradoxal da antropologia. No entanto, e ao contrrio de outras cinciashumanas, o fato de lidar com saberes dominados e mundos alternativos fez com que aantropologia, por mais enraizada que esteja na razo ocidental, jamais tenha conseguidose livrar de um impulso que a conduz ao dilogo com o que Clastres denominava as lin-guagens estranhas que o Ocidente no gosta de reconhecer.

    Como observou Stengers, o problema de uma herana no o fato de a recebermos,mas o que fazemos com ela. No me parece, entretanto, que a dupla herana da antro-pologia derive, como se costuma repetir com demasiada frequncia, de sua ligao comtendncias supostamente opostas do pensamento ocidental, Iluminismo e Romantismo,

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    individualismo e holismo, racionalismo e emocionalismo. Porque tudo isso, claro, estdo mesmo lado, o nosso. A originalidade da antropologia s pode provir, como Clastres

    (1979) tambm sugeriu, de seu duplo vnculo com o que ele denominava a grande parti-lha entre a civilizao ocidental e as civilizaes primitivas.

    Esse duplo vnculo, contudo, deve aqui ser entendido tambm, e principalmente, nosentido, ao mesmo tempo ameaador e criativo, do double bind, proposto por Gregory Ba-teson. Como se sabe, Bateson deiniu o double bind como uma situao, composta de umasrie de ingredientes, que pode conduzir esquizofrenia:

    1. Duas ou mais pessoas, uma das quais a vtima;

    2. Uma experincia repetida, ou seja, o double bind no uma nica experinciatraumtica;

    3. Uma injuno primria negativa que pode assumir as formas no faa isso e aqui-lo ou eu o punirei ou se voc no izer isso e aquilo eu o punirei;

    4. Uma injuno secundria conlitante com a primeira em um nvel mais abstrato, ecomo a primeira reforada por punies ou sinais que ameaam a sobrevivncia:no veja isso como uma punio ou no questione o meu amor do qual a proi-bio primria (ou no ) um exemplo ou no se submeta s minhas punies[];

    5. Uma injuno negativa terciria proibindo a vtima de escapar do campo: a fuga[] tornada impossvel por meio de certos dispositivos que no so puramentenegativos, por exemplo, promessas inconstantes de amor e coisas semelhantes;

    6. Por im, o conjunto completo de ingredientes se torna desnecessrio quando a v-tima aprendeu a perceber seu universo segundo padres de double bind (Bateson1972: 206-207, traduo minha).

    No nosso caso, ns, antroplogos (vtimas), recebemos repetidas vezes a injunoprimria negativa no se pode entender as outras sociedades do ponto de vista da nossa;uma injuno secundria conlitante, que lembra o tempo todo que a antropologia, ainal, parte da tradio ocidental e no pode sair dela. Enim, uma situao na qual, comoescreveu Bateson (1972: 201, traduo minha), no importa o que algum faa, no podevencer. Assim, se aceitar esses termos, a antropologia j perdeu.

    Por outro lado, Bateson tambm ensinou que o duplo vnculo s conduz esquizofreniaquando no se capaz de saltar do nvel no qual a contradio insupervel para outro emque ela no apenas pode ser superada como se torna produtiva: o nico modo pelo qual acriana pode realmente escapar da situao comentando a posio contraditria em quesua me a colocou (Bateson 1972: 215, traduo minha). Em outros termos, penso quepor double binddeveramos entender no apenas um duplo vnculo, mas uma espcie deduplo vinco ou dupla dobra, no sentido que Deleuze (1988) confere ao termo, o qualsomos obrigados a aplicar no ponto de encontro de diferentes foras do pensamento sequisermos de fato escapar da situao esquizofrenizante e chegar ao polo criativo.

    * * *

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    H um trecho muito famoso na Aula Inaugural, com a qual Lvi-Strauss, em 1960,comeou seus cursos no Collge de France. A primeira parte muito citada: Esta atitude

    emprica de Mauss explica que ele tenha, to rapidamente, superado a repugnncia queDurkheim havia comeado a sentir no que diz respeito s investigaes etnogricas. Oque importa, dizia Mauss, o Melansio de tal ou tal ilha (Lvi-Strauss 1973: 7, tradu-o nossa).

    J a segunda parte no costuma ser to citada assim: Contra o terico, o observadordeve ter sempre a palavra inal; e contra o observador, o indgena (Lvi-Strauss 1973: 7,traduo minha).

    A terceira, enim, talvez explique porque a segunda soa algo estranha vindo de um au-tor como Lvi-Strauss: Enim, atrs das interpretaes racionalizadas do indgena quese institui frequentemente observador e at mesmo terico de sua prpria sociedade de-

    ver-se-o procurar as categorias inconscientes (Lvi-Strauss 1973: 7, traduo minha).Aqui, eu sugeriria seguir a mxima faz o que eu mando, no o que eu fao e focar

    justamente na segunda parte do trecho. Mas no como um grande princpio nem mesmocomo regra metodolgica destinada a solucionar nossos problemas; apenas como algoque faz parte de uma tcnica de composio, algo ao qual o antroplogo deve se submeterininterruptamente quando est pensando ou escrevendo. nesse sentido que as noesas quais os antroplogos sempre tm o cuidado de adjetivar como nativas (ideias, repre-sentaes, categorias) devem ser submetidas ao teste de serem pensadas como se nofossem apenas isso, mas conceitos, teorias, ilosoias Esse tratamento signiica funda-mentalmente que elas servem para desestabilizar nosso prprio pensamento e, para falar

    mais uma vez como Stengers, para nos obrigar mais a aprender do que a julgar.Deleuze & Guattari escreveram que a imagem do pensamento [] a imagem que ele se

    d do que signiica pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento (Deleuze& Guattari 1991: 39-40, traduo minha). Do mesmo modo, e mais modestamente, creioque existam imagens da antropologia, que, ao longo da histria da disciplina, tentamdeinir o que signiica pratic-la. Elas no so sucessivas, mas coexistentes, ainda que suafora varie de poca para poca.

    Assim, quando Tylor (1871: 453, traduo minha) escreveu a ltima frase de PrimitiveCulture Assim, ao mesmo tempo ativa no auxlio do progresso e na remoo dos atra-sos, a cincia da cultura essencialmente uma cincia do reformador , ele no apenas

    fundava uma disciplina como estabelecia uma certa imagem da antropologia. De fato,da administrao colonial s polticas de segurana pblica, passando pelos programasde incluso e de salvamento, essa imagem da antropologia como cincia do reformadorsocial parece ser particularmente renitente. Mais do que isso, parece ser uma imagem daqual nunca conseguimos nos livrar inteiramente: a antropologia como cincia destinada aextirpar as supersties e a contribuir para a ediicao dos ignorantes. Alm do mais, namedida em que o esprito humano um s, os ignorantes no so apenas os primitivosdas outras sociedades, e o mundo, mesmo o civilizado, ainda est cheio de gente que acre-dita em bruxos, fantasmas e outras coisas que no podem existir. A tarefa da antropo-logia seria, pois, no apenas detectar essas iluses, mas viabilizar uma espcie de terapiacapaz de curar as pessoas de sua prpria ignorncia. Na mudana de paradigma que vive-mos atualmente, os bruxos j no importam tanto, mas coisas como raa e tradio sim,

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    e no faltam aqueles que pretendem ensinar aos ignorantes que essas coisas no existem(ou que existem), independentemente do que eles achem disso. A ideia de que as pessoas

    se enganam a respeito do real e de si mesmas (mas o antroplogo no) parece situada nocorao da antropologia.

    aqui, creio, que se situa o que poderamos considerar a incidncia propriamente an-tropolgica do chamado princpio de simetria. Como se sabe, Bruno Latour seguindoMichel Callon estabeleceu uma distino entre o que denomina primeiro princpio desimetria e princpio de simetria generalizada. Enquanto o primeiro apenas se recusa aaceitar a triagem entre o que as cincias consideram, numa determinada poca, o verda-deiro e o falso, e pretende explic-los com os mesmos termos (Latour 1991: 129, tra-duo minha), o segundo recusa igualmente a possibilidade de que os termos utilizadosprovenham das cincias da sociedade.

    A distino latouriana faz parte do projeto de estabelecer uma antropologia simtri-ca, capaz de estudar os modernos nos mesmos termos em que a antropologia, digamos,tradicional estudaria os outros. O projeto de Latour me parece, entretanto, condicionadopor duas importantes variveis. Primeiro, por uma certa imagem da antropologia dosoutros. Como ele mesmo disse a Franois Ewald, os conceitos desenvolvidos pela antro-pologia me seduziram menos que seus mtodos (Latour 2003: 7, traduo minha). issoo que explica a de outro modo estranha mudana de posio do autor em relao antro-pologia. Pois seJamais Fomos Modernos, de 1991, anunciava uma antropologia simtricae elegia a antropologia em geral como modelo de descrio de uma antropologia de nsmesmos, a sequncia da obra de Latour parece t-lo encaminhado, antes, para uma novasociologia. Assim, em 2005, ele escrever que, para que a sociologia possa enim se tornarto boa quanto a antropologia, necessrio conceder aos membros das sociedades con-temporneas tanta lexibilidade para se deinirem a si mesmos quanto aquela oferecidapelos etngrafos (Latour 2005: 41, traduo minha).

    Essa derradeira e aparente homenagem, contudo, logo se converte em crtica aberta.Pois tudo indica que a sociologia no seja apenas to boa quanto a antropologia, masmelhor do que ela, na medida em que no prisioneira do culturalismo e do exotismoque tornam a antropologia incapaz de passar da metasica da diversidade dos mundos ontologia (Latour 1996: 117, traduo minha) do mundo comum. Incapacidade queacaba por reduzir essas metasicas a simples representaes as quais alimentam um re-lativismo cultural, que, no inal de contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo

    explicvel pela cincia.

    A outra varivel que me parece condicionar o projeto de antropologia simtrica queLatour vai progressivamente abandonando o fato de desconsiderar a assimetria entrea situao de pesquisa da antropologia dos outros e aquela da antropologia de ns mes-mos no, claro, a assimetria entre os outros e ns, cujo reconhecimento e tentativa desuperao esto na base do pensamento de Latour. Assim, a antropologia dos modernos,que deve justamente partir de uma antropologia da cincia, deve superar nossa tendnciaa conferir cincia o direito de deinir nossa realidade e deve evitar conferir aos cientis-tas o poder de impor como pontos de vista privilegiados os recortes e categorias que, aocontrrio, tratam justamente de estudar enquanto antroplogos.

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    O problema que, em geral, a antropologia dos outros parte de uma situao muitodiferente. Os discursos daqueles que estuda, ao contrrio do discurso cientico, so em

    geral considerados falsos ou, em todo caso, como enunciando uma verdade que no anossa e a qual tendemos a imaginar como menos verdadeira. Isso signiica que a simetriaentre a anlise das prticas cienticas e aquelas dos outros s pode ser obtida mediante aintroduo de uma assimetria compensatria, destinada a corrigir uma situao assim-trica inicial. Mais, ou menos, que uma antropologia simtrica, trata-se, ento, de elaborarsimetrizaes antropolgicas. S assim o potencial de desestabilizao que o pensamentodos outros possui em relao a nossos modos de pensar e deinir o real pode ser explora-do e revelado em toda a sua potncia.

    O encontro antropolgico desemboca, pois, sempre em um problema de traduo (verAsad 1986). Mas a traduo antropolgica no tem nada a ver com representao, ex-

    plicao ou compreenso; tem a ver com agenciamentos. Fazer antropologia signiica aconstruo de um discurso indireto livre no qual se imbricam a palavra nativa e aquelada antropologia. Nesse processo, aquilo que se traduz so prticas discursivas e no dis-cursivas minoritrias, quer dizer, aquelas que, como escreveu Foucault (1994: 163-164),foram sepultadas, mascaradas em coerncias funcionais ou em sistematizaes formaise que foram desqualiicadas como no competentes ou insuicientemente elaboradas.Aquilo por meio do que se traduz so noes e conceitos da nossa prpria tradio criadosou escolhidos entre os que apresentam alguma ressonncia com o que deve ser traduzido.Essa traduo torna mais inteligvel e potencializa aquilo que se traduz e, ao mesmo tem-po, perturba e desestabiliza aquilo por meio de que se traduz.

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