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África da e pela diáspora: pontos para a Educação das Relações Étnico-Raciais

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África da e pela diáspora: pontos para a Educação das

Relações Étnico-Raciais

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ReitorZaki Akel Sobrinho

Vice-ReitorRogério Andrade Mulinari

Pró-Reitoria de GraduaçãoMaria Amélia Sabbag Zainko

Coordenação de Estudos e Pesquisas Inovadoras na GraduaçãoLaura Ceretta Moreira

Núcleo de Estudos Afro-BrasileirosMarcos Silva da Silveira

Coleção Cadernos NEAB-UFPRConselho EditorialDr. Ari Lima – UNEB

Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPGDra. Conceição Evaristo – UFF

Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBADra. Florentina da Silva Souza – UFBA Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE

Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG – UNILABDr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC

Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

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África da e pela diáspora: pontos para a Educação das

Relações Étnico-Raciais

Hilton Costa Paulo Vinicius Baptista da Silva

(Orgs.)

Coleção Cadernos NEAB-UFPR

Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR)

Curitiba 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ.SISTEMA DE BIBLIOTECAS.

BIBLIOTECA CENTRALCOORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS.

Ficha catalográfica

África da e pela diáspora : pontos para a educação das A258 relações étnico-raciais / Hilton Costa, Paulo Vinicius Baptista da Silva (Orgs.). — Curitiba, PR : NEAB-UFPR, 2013. 118p. (Cadernos NEAB-UFPR)

Inclui referências e notas

1. Movimento social. 2. Diáspora africana. 3. África – Antropologia. 4. África – História. 5. Escravidão – Brasil. I. Costa, Hilton. II. Silva, Paulo Vinícius Baptista da. Série.

CDD 22.ed. 303.484

Samira do Rego Elias CRB-9/755

© Hilton Costa e Paulo Vinicius Baptista da Silva

Coordenação editorial

Paulo Vinicius Baptista da Silva

Revisão, projeto gráfico e editoração eletrônica

Reinaldo Cezar Lima

Capa

Símbolo “Nyansapow, yede myasa no esane”, extraído de Adrinkra: sabedoria em símbolos africanos, livro de autoria de

Elisa Larkin Nascimento e Luis Carlos Gá, cujo significado é o nó da sabedoria. É o sábio quem desata o nó da sabedoria. Símbolo da sabedoria, engenhosidade,

inteligência e paciência. Criação da capa: Artes & Textos Editora Ltda.

Direitos desta edição reservados ao

NEAB UFPR

Praça Santos Andrade, 50 – Centro

Tel.: (41)3310-2707 / Fax: (41)3360-5000

80020-938 – Curitiba – Paraná – Brasil

www.neab.ufpr.br

[email protected]; [email protected]

2013

África da e pela diáspora: pontos para a Educação das

Relações Étnico-Raciais

ISBN 978-85-66278-05-7

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SUMÁRIO

ApresentaçãoSobre a educação das relações étnico-raciais no NEAB-UFPRPaulo Vinicius Baptista da Silva

Legislação e movimentação socialPolítica educacional e a lei 10.639/03 Luis Carlos Paixão da Rocha e Débora Cristina de Araújo

Antropologia das populações afro-brasileirasCultura na teoria e na práticaAndré Marega Pinhel

Identidades e identificaçõesAndré Marega Pinhel

Metodologia da Pesquisa EducacionalPesquisa em educação: uma introdução.Nádia Gaiofatto Gonçalves

Arqueologia da África e arqueologia da diáspora africanaArqueologia da África e arqueologia da diáspora africanaLuís Cláudio Pereira Symanski

História da ÁfricaO colonialismo português na África: as políticas de “assimilação”Lorenzo Macagno

A escravidão no BrasilAfricanas e africanos escravizados no BrasilHilton Costa

Tinta nova, casa velha: as várias faces do abolicionismo no Brasil e a pós-aboliçãoHilton Costa

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Apresentação

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1. Palavras iniciais

Esta publicação tem um duplo sen-tido. Por um lado, congregar sínteses de resultados de pesquisa e de reflexões te-órico-conceituais de participantes do Nú-cleo de Estudos Afro-Brasileiros da Uni-versidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR) e colaboradores(as) deste. Para isso, a dis-posição é publicar uma coletânea de forma contínua. Além disso, galga-se mais um passo na formação continuada oferecida pelo NEAB-UFPR, passando à oferta de es-pecialização, e essa coletânea tem também esse sentido, de buscar o encontro entre as pesquisas do NEAB-UFPR e o processo de formação continuada de profissionais da educação.

O processo de formação sobre His-tória e Cultura Afro-Brasileira e sobre Edu-cação das Relações Étnico-Raciais tem al-guns marcos que estão sempre em pauta, como a aprovação da Lei 10.639, de 2003, e o Parecer 03/2004, do Conselho Nacional de Educação. No entanto, a aprovação de tais propostas em instituições importan-tes do Brasil contemporâneo tem raízes bastante anteriores. Poderia ser realizada uma genealogia das proposições que atra-vessasse as formulações dos movimentos negros ao longo do século XX. Dados os objetivos deste texto, trarei breves elemen-tos do processo a partir da abertura polí-

tica e fim da ditadura militar. O final dos anos 1970, com o início da abertura po-lítica, foi momento de reorganização dos movimentos negros no país. Na agenda desses movimentos, a educação encon-trava um papel de destaque e figurava en-tre as proposições a necessidade de des-velar elementos da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Nós, negros(as) brasileiros(as),1 percebíamos a ausência de registros da nossa história social; o proces-so de leitura etnocêntrica e eurocêntrica da História sistematicamente difundido pela escola brasileira; a desvalorização cons-tante de formas de manifestação da nossa alteridade, de aspectos diversos de nossas culturas e raízes. Passou a ser cada vez mais contundente a crítica aos processos de ensino que silenciam sobre os aspectos civilizatórios da África, sobre as diferentes formas de contribuição de nossas nações negras (e indígenas) ancestrais para a for-mação do Brasil, sobre a ausência de re-gistros das práticas de resistência nossas e de nossos antepassados. As reivindicações dos movimentos negros para a educação centravam-se sobre a necessidade de mu-danças curriculares e ensino de História e Cultura Afro-Brasileira.

Entre os(as) intelectuais e ativistas negros(as)2 de então, destaco a liderança exercida por Abdias do Nascimento. No exí-lio, assumira cadeira de “Cultura Africana

Sobre a educação das relações étnico-raciais

no NEAB-UFPR

Paulo Vinicius Baptista da Silva*

* Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP; membro do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR; Coordenador do NEAB-UFPR; Coordenador do GT Educação e Relações Raciais da ANPEd; repre-sentante da Região Sul na Diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN).

1 Passamos a utilizar o genérico masculino no restante do texto.2 Será utilizado, a partir deste ponto, o genérico masculino, como forma de aliviar o texto.

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no Novo Mundo” na Universidade do Estado de Nova York, Bufallo, determinando que, mais que travar conhecimento com os Es-tudos Afro-Americanos, fôssemos sujeitos desse processo. De volta ao Brasil, assu-miu mandato de deputado federal e apre-sentou o Projeto de Lei 1.332, de 1983, que dispunha sobre “ação compensatória visando à implementação do princípio da isonomia social do negro”. Vejamos o texto do artigo que propõe o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na íntegra:

Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades negras e com inte-lectuais negros comprovadamente engajados na matéria, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis (primário, secun-dário, superior e de pós-graduação), no sentido de:I – Incorporar ao conteúdo dos cur-sos de História brasileira o ensino das contribuições positivas dos afri-canos e seus descendentes à civili-zação brasileira, sua resistência con-tra a escravidão, sua organização e ação (em níveis social, econômico e político) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no período pós-abolição;II – Incorporar ao conteúdo dos cur-sos sobre História Geral o ensino das contribuições positivas das civi-lizações africanas, particularmente seus avanços tecnológicos e cultu-rais antes da invasão européia do continente africano;III – Incorporar ao conteúdo dos cur-sos optativos de estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das re-ligiões de origem africana (candom-blé, umbanda, macumba, xangô, tambor de minas, batuque etc.);IV – Eliminar de todos os currículos referências ao africano como “um povo apto para a escravidão”, “sub-misso” e outras qualificações pejo-rativas;V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem

o negro de forma preconceituosa ou estereotipada;VI – Incorporar ao material de en-sino primário e secundário a apre-sentação gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma e a sua famí-lia, retratada de maneira igualmente positiva àquela que se vê retratada a criança branca;VII – Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os níveis em que são ensinadas, o en-sino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em regime opcional;VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centros ou Ins-titutos de Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro/Brasileiros, como parte integral e normal da estrutu-ra universitária, particularmente nas universidades federais e estaduais. (NASCIMENTO, 1983, p. 5163).

O texto do Projeto de Lei revela as-pectos bastante interessantes. Primeiro, pode-se constatar que as propostas leva-das a termo atualmente, tanto a formação de professores para ensino de História e Cultura Afro-Brasileira como a estruturação de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, são a concretização de uma agenda antiga. Nas comemorações do centenário da abolição em 1988; na Assembleia Nacional Consti-tuinte do mesmo ano; na “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cida-dania e pela Vida”, em 1995; nas discus-sões sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nos anos que antecederam a sua aprovação em 1996; nos eventos prepara-tórios à Conferência de Durban de 2001; e nas sugestões advindas da própria Confe-rência, as proposições na mesma direção se renovaram. Vinte anos transcorreram – de 1983 a 2003 – até que as proposições do Projeto de Lei 1.332/83 fossem corpo-rificadas de modo mais enfático. Desse modo, somente com a Lei 10.639/03 (que modificou a LDB) e sua posterior regula-mentação com o Parecer 03/2004 do CNE, iniciou-se processo de inserção sistemá-tica de conteúdos e de formação inicial e

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continuada de professores sobre História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais.

Na proposta original do então Depu-tado Abdias do Nascimento, pode-se infe-rir a relação com os propósitos dos movi-mentos da Negritude e do Pan-Africanismo. Como movimento concomitantemente li-terário e social, na negritude se propôs um retorno às raízes. A ideia foi a de que a imersão nas tradições e na estética, nas produções culturais, na literatura em geral e na poesia em particular, nas representa-ções plásticas e na dramaturgia operasse no sentido de valorizar a tradição afro. As proposições do NEAB-UFPR são herdeiras desta tradição de busca de expressão da ancestralidade afro como manifestação da alteridade, da liberdade e da diversidade. No caso específico da formação de profes-sores para a Educação das Relações Étni-co-Raciais, os objetivos transcendem aos de informar sobre o movimento literário, sendo muito mais uma busca dos próprios ideais que inspiraram o movimento, tanto da expressão estética quanto dos valores e da busca de transformação social.

A negritude é uma subjetividade. Uma vivência. Um elemento passio-nal que se acha inserido nas catego-rias clássicas da sociedade brasilei-ra e que as enriquece de substância humana. Humana, demasiadamen-te humana é a cultura brasileira, por isso que, sem desintegrar-se, ab-sorve as idiossincrasias espirituais, as mais variadas. A negritude, com seu sortilégio, sempre esteve pre-sente nesta cultura, exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério, embora só hoje por efeito de uma pressão uni-versal esteja emergindo para a lú-cida consciência de sua fisionomia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o de ter-se constituí-do no berço da negritude. (RAMOS, 2003, p. 117, grifos do autor).

As ideias do Pan-Africanismo, em grande medida elaboradas por negros na ou da diáspora, objetivam, de forma simi-lar, estabelecer a África como referência fundamental para os negros do mundo, estejam eles dentro ou fora do continen-te, positivando a imagem do continente, das suas tradições, histórias e diferentes aspectos das culturas. Com isso, contra-põem-se às postulações até então hege-mônicas, e que ainda sobrevivem, da Áfri-ca como o continente selvagem, primitivo, atávico. A unidade dos países africanos é pensada como estrutura que mantenha a autonomia dos países por um lado e que, por outro, permita a esses mesmos uma atuação conjunta, seja no âmbito das rela-ções internacionais, seja para a resolução de problemas comuns. O texto de justifi-cativa relativo ao art. 8° do Projeto de Lei 1.332/83 é revelador:

O conteúdo da educação recebida por aquelas crianças negras que têm oportunidade de estudar representa outro aspecto da desigualdade racial anticonstitucional na esfera da edu-cação [...] a civilização e história dos povos africanos, dos quais descen-dem as crianças negras, estão au-sentes do currículo escolar. A crian-ça negra aprende apenas que seus avós foram escravos; as realizações tecnológicas e culturais africanas, sobretudo nos períodos anteriores à invasão e colonização européia da África, são omitidas. Também se omite qualquer referência à história da heróica luta dos afro-brasileiros contra a escravidão e o racismo, tan-to nos quilombos como através de outros meios de resistência. Comu-mente, o negro é retratado de for-ma pejorativa nos textos escolares, o que resulta na criança negra em efeitos psicológicos negativos am-plamente documentados. O mesmo quadro tende a encorajar, na crian-ça branca, um sentimento de supe-rioridade em relação ao negro. O art. 8º deste projeto de lei objetiva a correção desta anomalia e a im-plementação do direito à isonomia

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assegurada pela constituição. (NAS-CIMENTO, 1983).

A argumentação é explícita. Trata-se de estabelecer a oportunidade ao alunado brasileiro de obter informações e reconhe-cer elementos da complexidade do conti-nente de origem de metade (pelo menos) de nossa população; de estabelecer “luga-res de memória” (NORA apud KING, 1996, p. 77) sobre o passado afro; de possibilitar a identificação positiva dos alunos negros brasileiros com aspectos de seu passado; de possibilitar ao alunado brasileiro, de to-das as cores, reconhecer a diversidade e a complexidade do continente africano e as profundas contribuições das populações africanas à humanidade.

Importante observar que a propos-ta de estudar as contribuições afro se re-laciona com a estruturação da identida-de do negro brasileiro (MUNANGA, 2004; MUNANGA; GOMES, 2006). A percepção é que ideias restritivas e manipuladas sobre a história e as tradições africanas e afro--brasileiras, sistematicamente difundidas pela escola, pelos currículos e pelos livros didáticos (que operam tanto por informa-ções restritivas ou equivocadas quanto pela omissão) atuam para criar nos alunos uma predisposição à hierarquia racial. Pos-sibilitar aos alunos negros, brancos, ama-relos e indígenas o conhecimento de Histó-ria e Cultura Afro-Brasileira teria o objetivo de reconhecer os elementos civilizatórios das culturas africanas e africanas da diás-pora, possibilitando aos alunos em geral o reconhecimento do processo civilizatório dos povos africanos e, aos alunos negros em particular, a construção de identidade pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de pertença e sobre si mesmos.

O movimento de apagar os “lugares de memória” das matrizes afro foi bastante

efetivo, de forma que a colonização cultu-ral opera, em diferentes níveis, em todos nós, manifestando-se em hipervalorização de tradições europeias e desvalorização de aspectos da cultura de matriz africana. Possivelmente em função disso, o trabalho de formação de professores é uma “tarefa zumbílea”,3 pois na nossa formação esco-lar, educacional e cultural as informações mais simplórias sobre nosso passado afro foram sistematicamente negadas ou subs-tituídas por informações estereotipadas. Estamos, portanto, em um movimento ini-cial de descoberta da riqueza, da pluralida-de, dos valores, do desenvolvimento tec-nológico, do alto desenvolvimento social, de um sem-fim de aspectos civilizatórios de nossos antepassados africanos e africa-nos da diáspora.

Para a compreensão desse proces-so na educação, é caro o conceito de “alfa-betismo da diáspora” tal como formulado por King (1996), com o sentido de conhe-cimento e ressignificação da “nossa histó-ria”, da história do povo negro na diáspo-ra. O alfabetismo da diáspora consiste na aprendizagem da leitura de signos cultu-rais das heranças africanas para além das distorções, da parcialidade e das ausências determinadas pela hegemonia cultural e por séculos de dominação.

O sentido de alfabetismo é de pro-cesso inicial e provisório. A luta contra a discriminação racial que percorreu o sécu-lo XX se deparou com diversos processos de racialização, entre os quais o estabe-lecimento de conceitos e formas de com-preensão distorcidos e restritivos sobre a tradição africana e afro-brasileira. As pro-posições do racismo científico, para além de sua rejeição após a Segunda Guerra Mundial, conformaram operadores impor-tantes no campo simbólico. Por exemplo, no imaginário, a Europa se impôs como

3 Termo que emprestamos de Edna Roland, então coordenadora da Área de Combate ao Racismo e Discriminação da UNESCO no Brasil.

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modelo e centro da civilização e civilidade e a África como sua negação, o locus do primitivo, que teve suas origens como terra dos proscritos, dos descendentes de Cam (na interpretação da igreja que justificava a escravidão), a ser compreendida como sinônimo da ausência de civilização e pro-ximidade com a natureza (numa forma ain-da mais acentuada do etnocentrismo euro-peu). Essas noções reducionistas, parciais, sem contradições, ainda são marcadores sociais importantes no plano simbólico, como será analisado mais à frente no texto. Por exemplo, as nações, impérios e civili-zações de nossos antepassados africanos4 foram e são denominadas tribus.

A busca de “alfabetização da diáspo-ra”, de recuperação de “lugares de memó-ria”, define boa parte das atividades de for-mação de professores que desenvolvemos no NEAB-UFPR. Passamos de levar a termo eventos de curta duração para priorizar o desenvolvimento de cursos de média du-ração. Os eventos servem principalmente para mobilizar, para aguçar a curiosidade. Contudo, uma formação em que o proces-so de alfabetização da diáspora se inicie precisa de carga horária mínima para dar início à formação. Os cursos de extensão ofertados pelo NEAB-UFPR para professo-res da rede estadual do Paraná (parceria com a APP – Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do Paraná) e da rede municipal de Curitiba (parceria com o SISMMAC – Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba) têm car-ga horária variando de 120 a 180 horas, que considero o mínimo para dar início à formação de professores sobre os Estudos Afro-Brasileiros.

Na etapa atual, nos lançamos a outro desafio, de realizar a formação continuada de docentes no nível de especialização. O processo foi articulado, além dos sindicatos

citados, com o Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Araucária (SISMAR) e com o Fórum Permanente de Educa-ção e Diversidade Étnico-racial do Paraná (FPDERER). Também foram constituídos como parceiros a Secretaria Estadual de Educação (SEED) e as secretarias munici-pais de Curitiba, Araucária e Pinhais. A pro-posta é de formação de especialistas que possam utilizar o conhecimento científico acumulado sobre a temática com objetivo de atuarem de forma qualificada nas redes e nas unidades escolares, concretizando a meta de implementação da Educação das Relações Étnico-Raciais.

Nesse primeiro volume, reunimos textos de docentes da parte inicial do curso que revelam um pouco de sua trajetória de pesquisa e que foram organizados como textos de leitura para a formação continu-ada na pós-graduação. Os artigos iniciais, como essa introdução, apresentam ques-tões teórico-conceituais sobre a temática. No capítulo 1, “Política educacional e a Lei 10.639/03”, os autores Luis Carlos Paixão da Rocha e Débora Cristina Araujo apre-sentam e discutem esse instrumento legal que é a Lei Federal que instituiu novo arti-go na LDB. Os capítulos 2, “Cultura na teo-ria e na prática”, e 3, “Identidades e iden-tificações”, são constituintes da análise de André Marega Pinhel sobre a Antropologia das Populações Afro-Brasileiras. O capítulo 4, “Pesquisa em educação: uma introdu-ção”, de Nádia G. Goncalves, oferece ele-mentos para a compreensão e reflexão so-bre a pesquisa educacional. O capítulo 5, de Lorenzo Gustavo Macagno, analisa pro-cesso de assimilação realizado em colô-nias portuguesas na África. O Capítulo 6, “A arqueologia da África e das diásporas afri-canas”, de Luís Cláudio Pereira Symanski, traz uma série de informações sobre as origens das populações na África e sobre

4 Também os americanos, sendo que estudar História Pré-Colombiana das Américas é outro impe-rativo para uma visão mais elaborada da diversidade.

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o estudo das populações africanas e africa-nas da diáspora via arqueologia. No capítu-lo 7, “Africanas e africanos escravizados no Brasil”, Hilton Costa discute processos de escravização e da resistência à mesma no Brasil. Finalmente, no capítulo 8, intitulado “Tinta nova, casa velha: as várias faces do abolicionismo no Brasil e a pós-abolição”, o mesmo autor analisa o processo de abo-lição da escravidão e o momento do país logo após a aprovação da Lei Áurea.

2. Algumas considerações finais

No Parecer 03/2004 está expresso que o ensino de História e Cultura Afro--Brasileira dever-se-á realizar, nas diversas etapas e níveis (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Superior) e modalidades (Regular, Educa-ção de Jovens e Adultos e Educação Espe-cial) de ensino; que as diversas disciplinas devem inserir em seus conteúdos elemen-tos de História e Cultura Afro-Brasileira; que o ensino de História e Cultura Afro--Brasileira abrange o ensino de relações raciais no Brasil,

de conceitos e de suas bases teóri-cas, tais como racismo, discrimina-ções, intolerância, preconceito, es-tereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multi-culturalismo; de práticas pedagógi-cas, de materiais e de textos didá-ticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais. (BRASIL, 2004).

No plano teórico-conceitual, adota--se o conceito de raça como construção social e conceito analítico fundamental para a compreensão de desigualdades so-ciais – estruturais e simbólicas – observa-das na sociedade brasileira (SILVA, 2008). O uso do conceito de raça ajuda a atribuir realidade social à discriminação e, con-sequentemente, a lutar contra a discrimi-

nação. No Brasil, as relações raciais estão fundadas em um peculiar conceito de raça e forma de racismo, o “racismo à brasilei-ra” (GUIMARÃES, 2002), cujas especificida-des são significativas para a compreensão das relações entre os grupos de cor e as desigualdades associadas. Particularidades como a relação entre raça e classe social na hierarquização das pessoas, as ideias sobre o “embranquecimento”, o “mito da democracia racial”, construídos na história das relações raciais brasileiras, mantêm-se atuantes. O “racismo à brasileira” se cons-trói e reconstrói mantendo desvantagens para a população negra no acesso a bens materiais e simbólicos (PAIXÃO, 2003). Prá-ticas cotidianas de discriminação consti-tutivas da sociedade brasileira cumprem o papel de reinstituir a subalternidade da população negra brasileira. A educação é partícipe importante nesse processo.

Diversas vezes professores que fre-quentaram nossos cursos afirmaram que não imaginavam o quanto eram ignorantes em relação a aspectos diversos das “afri-canidades”. Ao trabalharmos com profes-sores das redes públicas estadual e muni-cipais muitas vezes nos deparamos com suspiros e outras manifestações de perple-xidade em face de um conjunto complexo de informações sobre os estudos afro-bra-sileiros. Em variadas ocasiões, em alto e bom tom, nossas aulas foram espaços para perguntas inconformadas sobre o porquê de a escola não ter difundido tais informa-ções. O processo de formação sobre estu-dos afro-brasileiros muitas vezes tem sido o pilar para novas pesquisas e para o pro-cesso de formação continuada de todos os envolvidos com a temática, ou seja, somos partícipes do alfabetismo da diáspora. So-bre nós mesmos, pesquisadores e “militan-tes” pela igualdade racial, diversas vezes o processo de reconhecimento dos valores e tradições afro teve impacto de ressignifica-ção sobre o ser negro no Brasil contempo-râneo. Assim, a alfabetização da diáspora

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atinge, de forma recíproca, professores e alunos em processo contínuo de formação.

No entanto, as lacunas são muitas e o processo de formação é inicial. Os resul-tados que conquistamos no NEAB-UFPR, na formação continuada, convivem com o pouco avanço na formação inicial de professores. Poucas vezes conseguimos a aprovação de conteúdos específicos sobre História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de formação de professores. Mais frequente é a aprovação de disciplinas op-tativas, ou seja, continuaremos formando professores que necessitarão de nossos cursos de formação continuada para obte-rem informação mínima.

Além disso, faltam especialistas para diversos conteúdos e são muitas as lacu-

nas que existem em conteúdos que pode-riam ser trabalhados e aprofundados, tanto no que se refere à História da África quanto a aspectos variados da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Em exemplos que certa-mente poderiam se multiplicar, os cursos do NEAB-UFPR mal tocam em informações sobre o Teatro Experimental do Negro e pouco vão além das proposições de de-senvolver estudos mais específicos sobre Literatura Africana de Línguas Portuguesa, Francesa e Inglesa, como também de auto-res da diáspora brasileira e das Américas.

Enfim, essa conclusão é de que bas-tante temos feito, porém muito mais temos a fazer para operarmos uma mudança de con-cepção curricular que leve à formação de pro-fessores e profissionais da Educação numa perspectiva de multiculturalismo crítico.

Referências

BRASIL, Conselho Nacional de Educação (CNE). Parecer 03/2004, de 10 de março de 2004. Conselho Pleno do CNE. Brasília: MEC/SEPPIR, 2004.

GUIMARÃES, Antonio S. A. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.

KING, Joyce Elaine. A passagem média re-visitada: a educação para a liberdade hu-mana e a crítica epistemológica feita pelos Estudos Negros. In: SILVA, Luiz H.; AZEVE-DO, José C.; SANTOS, Edmilson S. (Orgs.). Reestruturação curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 75-101.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

______; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. 1. ed. São Paulo: Global/Ação Educativa, 2006.

NASCIMENTO, Abdias. Projeto de Lei n. 1.332 de 1983. Diário do Congresso Na-

cional. Brasília: Câmara dos Deputados, 15 de junho de 1983, p. 5162-5165.

______. Edição fac-similar do jornal Qui-lombo. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2003.

PAIXÃO, Marcelo. Desenvolvimento huma-no e relações raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

RAMOS, Guerreiro. Apresentação da negri-tude. Quilombo, ano II, n. 10, p. 11, junho--julho, 1950. In: NASCIMENTO, Abdias. Edi-ção fac-similar do jornal Quilombo. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2003. p. 117.

SILVA, Paulo Vinicius Baptista. Relações ra-ciais em livros didáticos de Língua Portu-guesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

TELLES, Edward E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Tradu-ção de Nadjeda Rodrigues Marques e Ca-mila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Duma-rá/Fundação Ford, 2003.

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Legislação e movimentação social

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Este breve texto tem como objeti-vo estabelecer algumas considerações e relações sobre a inclusão dos conteúdos relacionados à história e à cultura afro--brasileira, no âmbito curricular, nos esta-belecimentos de ensino do Brasil. Inclusão esta a ser considerada no campo das lutas sociais pela superação do modelo atual de organização social, produtor de desigual-dades raciais, sociais e de outras formas de atrocidades à vida e ao ser humano. Assim sendo, essa reivindicação particular deve ser entendida dentro do interior das lutas dos movimentos sociais pela ampliação do espaço das políticas sociais dentro do Es-tado brasileiro.

Também apresenta considerações sobre a conjuntura da aprovação da Lei 11.645/2008, que acrescenta a obrigato-riedade do ensino de história e cultura in-dígena.1

1. A Lei 10.639/2003

No dia 09 de janeiro de 2003, o Pre-sidente da República, Luís Inácio Lula da

Silva, e o então Ministro da Educação, Cris-tovam Buarque, assinaram a Lei 10.639/03, que, ao alterar dispositivos da Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96 – LDB), tornou obrigatório o en-sino da temática História e Cultura Afro--Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio das redes pública e particular do país.2

As reações à nova legislação foram diversas. Por um lado, setores da educação brasileira questionavam a necessidade de tal medida; por outro, educadores e repre-sentantes do movimento social negro a entendiam como um avanço no campo da política educacional brasileira. Os críticos à nova lei argumentavam que esta era, ao mesmo tempo, desnecessária e autoritária. Desnecessária pelo fato de os conteúdos já estarem previstos na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e autoritária por ferir a autonomia curricular dos esta-dos brasileiros. Estes argumentos podem ser identificados em longo artigo intitulado “O Brasil precisa de lei para ensinar a his-tória do negro?”, publicado na edição do jornal Folha de S. Paulo de 28 de janeiro de

Política educacional e a Lei 10.639.03

Luiz Carlos Paixão da Rocha*

Débora Cristina de Araujo**

* Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Professor de língua portuguesa na rede estadual do Paraná.

** Mestre e doutoranda em Educação na Universidade Federal do Paraná. Professora de língua por-tuguesa na rede estadual do Paraná.

1 Uma versão deste texto pode ser encontrada no material do CURSO EaD DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS. MEC - Ministério da Educação / SE-CAD – Secretaria de Educação Básica Alfabetização e Diversidade / CIPEAD – Coordenação de Políticas de Integração de Educação a Distância / NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal.

2 Ver a redação na íntegra: - Lei 10.639 em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.639.htm> - Parecer 003/2004-CNE em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf> - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para

o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocu-ments/cnecp_003.pdf>.

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2003, dias após a assinatura da Lei. Nes-te, o jornalista Antônio Góis apresenta as principais críticas de especialistas ligados à educação à Lei 10.639/03. Entre esses, Ulisses Panisset (2003), ex-presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, afirma que, além de ser autoritária, a Lei age contra a autono-mia da escola:

Essas medidas se tornam artificiais quando são determinadas de cima para baixo. A LDB deixou os currícu-los mais flexíveis e deu mais liber-dade para as escolas. A liberdade de ensinar, que consta da Lei, é base-ada num artigo da Constituição. No momento em que você começa a determinar muita coisa, acaba trans-formando o currículo numa camisa de força em que tudo é o governo que diz que tem que ser ensinado (PANISSET, 2003).

Guiomar Namo de Mello (2003), tam-bém conselheira do CNE, concorda com Pa-nisset e destaca a preocupação com o en-gessamento do currículo:

Temos uma mentalidade de achar que currículo escolar se faz por le-gislação. Basta escrever uma lei e ela será aplicada. Currículo é assun-to pedagógico. Se não for assim, vira uma árvore de natal. Cada um quer pendurar o que acha importante e sugere o ensino de arte, sociologia ou filosofia, mas ninguém lembra de pensar num currículo harmônico (MELLO, 2003).

Em que pese as considerações dos educadores acima, estes não levam em conta um elemento central da análise das políticas educacionais: ignoram o movi-

mento histórico e político dos movi-mentos sociais. A reivindicação do movi-mento social negro e de educadores com-prometidos com a luta antirracista pela alteração da abordagem dada ao negro no currículo e, consequentemente, pela in-clusão dos conteúdos de história e cultura afro-brasileira no âmbito escolar, vem de longa data.3

Sem a ingenuidade de colocar na escola toda a responsabilidade da supe-ração do racismo, os defensores da nova legislação entendem que este é um espa-ço privilegiado de intervenção. Ao omitir conteúdos em relação à história do país, relacionados à população negra, ao omitir contribuições do continente africano para o desenvolvimento da humanidade e ao reforçar determinados estereótipos, a es-cola contribui fortemente para o reforço de construções ideológicas racistas. Ain-da hoje o negro é apresentado em muitos bancos escolares como o “objeto escravo”, sem passado, passivo, inferiorizado, des-configurado, desprovido de cultura, sabe-res e conhecimentos. É como se o negro não tivesse participado de outras relações sociais que não fossem a escravidão. A re-sistência dos negros à escravidão parece não existir. As contribuições e as tecno-logias trazidas pelos negros para o país são omitidas. Aliás, o cultivo da cana-de--açúcar, do algodão, a mineração, a tecno-logia do ferro eram originárias de onde? Do continente europeu? O continente afri-cano é apresentado como um continente primitivo, menos civilizado. As pirâmides do Egito foram construídas por europeus ou por africanos? Essas lacunas (CHAUÍ, 1980), evidentemente, contribuíram para a constituição da ideologia de dominação

3 Comentário: O artigo de Sales Augusto dos Santos apresenta um panorama da relação da Lei 10.639/2003 e o movimento negro. Ver em: A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta antir-racista do movimento negro. In: EDUCAÇÃO, Ministério da/DIVERSIDADE, Secretaria de Educa-ção Continuada. Alfabetização e Educação Antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 21-39. (Coleção Educação para todos).

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racial e do mito de inferioridade da popu-lação negra.

Henrique Cunha Jr. apresenta dados importantes que desmistificam os equívo-cos sobre a imagem do continente africano como local “primitivo”. Veja o que ele afir-ma sobre a escrita:

Sobre a África costuma-se dizer que é um continente oral, sem entender-mos o que representa esta oralida-de como método de transmissão do conhecimento na África. A oralidade não é a ausência da escrita. A escri-ta faz parte das culturas africanas desde as civilizações egípcias. Pelo menos são quatro os alfabetos de-senvolvidos no conjunto das civili-zações africanas, em áreas diversas do continente. Ademais, anterior a 1500 a África processou uma imen-sa utilização do árabe como língua comercial e cultural, dada pela ex-pansão do Islamismo em 2/3 do continente a partir dos anos 600, sendo comum a existência de do-cumentos em árabe para a história africana. As escritas em árabe che-gam ao Brasil, onde os escravizados participantes da revolta dos malês, em 1831, escrevem panfletos e se comunicam em árabe. É necessário mais cuidado nas com-parações entre a história africana e a europeia. Faz-se necessário maior informação sobre uma e outra para escaparmos das idealizações e re-duções impostas pelos processos de dominação racistas. Nesta informa-ção, a Europa aparece como fonte do saber e a África, como fonte de ignorância (CUNHA Jr., 1997, p. 63).

Além do mais, a ausência dos conte-údos, numa perspectiva crítica, relaciona-dos à história do negro africano e brasileiro faz com que a educação escolar traga uma visão míope da vida brasileira. Segundo o professor Henrique Cunha Jr., não é pos-sível conhecer a História do Brasil sem o conhecimento da história e da origem dos povos que deram início à nação brasileira.

O argumento principal para o ensino da História Africana está no fato da impossibilidade de uma boa com-preensão da história brasileira sem o conhecimento das histórias dos atores africanos, indígenas e euro-peus. As relações trabalho-capital realizadas no escravismo brasileiro são, antes de tudo, relações entre africanos e europeus. A exclusão da História Africana é uma dentre as vá-rias demonstrações do racismo bra-sileiro (CUNHA JR., 1997, p. 67).

2. Intervenção do movimento social negro

É de longa data a reivindicação do movimento social negro pela inclusão da História da África e da Cultura Afro-Brasi-leira no currículo das escolas brasileiras. Exemplo disso é a realização do I Fórum sobre o Ensino da História das Civilizações Africanas nas Escolas Públicas, em 1991, na Universidade Estadual do Rio de Janei-ro:

É antiga a preocupação dos movi-mentos negros com a integração dos assuntos africanos e afro-brasi-leiros ao currículo escolar. Talvez a mais contundente das razões este-ja nas conseqüências psicológicas para a criança afro-brasileira de um processo pedagógico que não refle-te a sua face e de sua família, com sua história e cultura própria, impe-dindo-a de se identificar com o pro-cesso educativo. Erroneamente seus antepassados são retratados apenas como escravos que nada contribuí-ram ao processo histórico e civiliza-tório, universal do ser humano. Essa distorção resulta em complexos de inferioridade da criança negra, mi-nando o desempenho e o desen-volvimento de sua personalidade criativa e capacidade de reflexão, contribuindo sensivelmente para os altos índices de evasão e repetência (NASCIMENTO, 1993, p. 11).

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A preocupação do movimento so-cial negro com a educação teve reflexos nas suas reivindicações efetuadas junto às estruturas do Estado. Destacam-se aqui algumas ações do movimento no último período. Na década de 1980, por ocasião do processo constituinte, várias atividades e debates foram realizados pelas organi-zações negras. Um dos focos centrais de atuação do movimento social negro foi o da educação. O objetivo era o de incluir no capítulo da educação da nova Constituição ações visando ao combate do racismo.

Em 1977, no 2º Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, em La-gos – Nigéria, impedido de apresentar seus estudos que denunciavam o que chamou de “Genocídio do negro brasileiro”, Abdias do Nascimento (2002) conseguiu, por meio do relatório do Grupo IV do Colóquio, in-formar a todos os países participantes do evento sobre as desigualdades raciais da época. Na explanação, com base em da-dos históricos, estatísticos e sociológicos, Nascimento já apresentava propostas rele-vantes em relação à educação básica bra-sileira:

Que o Governo Brasileiro, no espí-rito de preservar e ampliar a cons-ciência histórica dos descendentes africanos da população do Brasil, tome as seguintes medidas: – permita e promova livre pesquisa e aberta discussão das relações ra-ciais entre negros e brancos em to-dos os níveis: econômico, social, re-ligioso, político, cultural e artístico; – promova o ensino compulsório da História e da Cultura da África e dos africanos na diáspora em todos os níveis culturais da educação: ele-mentar, secundária e superior.Que os governos dos países onde exista significativa população de des-cendência africana incluam nos cur-rículos educativos de todos os níveis (elementar, secundário e superior) cursos compulsórios que incluam História Africana, Swahili e Históri-co dos Povos Africanos na Diáspora (NASCIMENTO, 2002, p. 68-69).

Neste sentido, segundo Rodrigues (2004), foram acatados dois artigos dentro da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte:

Art. 4º. A educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e todas as formas de discri-minação, afirmando as característi-cas multiculturais e pluriétnicas do povo brasileiro. Art. 5º. O ensino de “História das Populações Negras do Brasil” será obrigatório em todos os níveis da educação brasileira, na forma que a lei dispuser.

Ao ser apresentada à Comissão ge-ral da Ordem Social e à Comissão de Sis-tematização, a proposta ganhou outra re-dação:

Art. 85. O poder público reformula-rá, em todos os níveis, o ensino da História do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contri-buição das diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do povo brasileiro.

No entanto, com argumentação de que o artigo deveria ser regulamentado em legislação específica, a redação final ficou desta maneira:

Art. 242. O ensino de história do Brasil levará em conta as contribui-ções das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.

A reivindicação pela inclusão dos conteúdos de história e cultura afro-bra-sileira continuou presente na intervenção dos segmentos comprometidos com a luta antirracista. Em 20 de dezembro de 1995, por ocasião da realização da Marcha Zum-bi dos Palmares, um dos marcos da atua-ção do movimento social negro, em docu-mento entregue ao governo federal deno-minado Programa de superação do racis-

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mo e da desigualdade racial, a temática da educação é destacada. O movimento reivindica alterações nos currículos esco-lares.4

Refletindo os valores da sociedade, a escola se afigura como espaço privi-legiado de aprendizado do racismo, especialmente devido ao conteú-do eurocêntrico do currículo esco-lar, aos programas educativos, aos manuais escolares e ao comporta-mento diferenciado do professorado diante de crianças negras e brancas. A reiteração de abordagens e este-reótipos que desvalorizam o povo negro e supervalorizam o branco re-sulta na naturalização e conservação de uma ordem baseada numa su-posta superioridade biológica, que atribui a negros e brancos papéis e destinos diferentes. Num país cujos donos do poder descendem de es-cravizadores, a influência nefasta da escola se traduz não apenas na legi-timação da situação de inferioridade dos negros, como também na per-manente recriação e justificação de atitudes e comportamentos racistas. De outro lado, a inculcação de ima-gens estereotipadas induz a criança negra a inibir suas potencialidades, limitar suas aspirações profissionais e humanas e bloquear o pleno de-senvolvimento de sua identidade racial. Cristaliza-se uma imagem mental padronizada que diminui, exclui, sub-representa e estigmatiza o povo negro, impedindo a valora-ção positiva da diversidade étnico--racial, bloqueando o surgimento de um espírito de respeito mútuo entre negros e brancos e comprometendo a idéia de universalidade da cidada-nia (MARCHA ZUMBI DOS PALMARES, 1995).

Em 1996, durante o debate sobre a nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional), a então senadora Be-nedita da Silva, representando o movimen-to social negro, traz de volta a proposta de alteração curricular, apresentada no pro-cesso constituinte. Sendo assim, o pará-grafo 4º do artigo 26 da nova LDB ficou com a seguinte redação:

Art. 26 - § 4º: O ensino de História do Brasil levará em conta as con-tribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo bra-sileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia.

Porém, a proposta do movimento social negro só veio a ser atendida, em grande parte, em 9 de janeiro de 2003, com a assinatura da Lei 10.639/03, oriun-da do Projeto de Lei nº 259, apresentado em 1999 pela deputada Esther Grossi e pelo deputado Benhur Ferreira.

A nova legislação acrescentou dois artigos à Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional (Lei 9.394/96):

Art. 26-A – Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-ciais e particulares, torna-se obriga-tório o ensino sobre História e Cul-tura Afro-Brasileira.Parágrafo primeiro – O conteúdo programático a que se refere o ca-put deste artigo incluirá o estudo da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áre-as social, econômica e política, per-tinentes à História do Brasil. Parágrafo segundo – Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro--Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar, em especial nas áreas de Educação

4 A “Marcha Zumbi dos Palmares – contra o racismo, pela cidadania e a vida” foi organizada com êxito pelo Movimento Negro, em 1995, para ser um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zum-bi dos Palmares, o líder do maior, mais duradouro e mais famoso símbolo da luta da população negra no Brasil contra o regime escravocrata: a República/Quilombo dos Palmares, que resistiu por um século na Ser-ra da Barriga, no Estado de Alagoas. Ver mais em: <http://www.leliagonzalez.org.br/material/Marcha_Zum-bi_1995_divulgacaoUNEGRO-RS.pdf>.

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Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras. Art. 79-B – O calendário escolar in-cluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Ne-gra”.

3. Ideologia de dominação racial

A Lei 10.639/03 pode constituir-se como uma ferramenta importante para o combate ao racismo e, consequentemente, para a superação do quadro de desigual-dades raciais e sociais presente na socie-dade brasileira. Infelizmente, para a gran-de maioria dos envolvidos no processo de educação escolar, a relação entre raça/racismo e educação passa despercebida. Esta parece ser invisível, aos olhos dos brancos, amarelos, índios e dos próprios negros. Perpassa pelos bancos escolares uma névoa ideológica, “quase imperceptí-vel”, de sustentação à crença de inferiorida-de do grupo negro e de naturalização das desigualdades. Para tanto, a Lei 10.639/03 deve atuar no sentido de desvelar cons-truções ideológicas que deram suporte à efetivação do quadro de exclusão social da população negra no país, como a da infe-rioridade do negro e a do mito da demo-cracia racial brasileira.

Para compreender a situação da po-pulação negra no país e estabelecer ações para transformá-la, é preciso compreender e superar essa “névoa ideológica” produzi-da pelas relações de dominação no Brasil. Os colonizadores e, em seguida, a recém--formada elite capitalista brasileira utiliza-ram-se de uma série de ideias para justifi-car a escravidão de africanos, bem como manter os negros à margem das novas relações sociais oriundas com o trabalho livre. No primeiro momento, é constituído um conjunto de ideias no campo da ciên-cia, do Estado e da religião, a fim de justifi-car a escravidão e facilitar a administração dos escravos. Esse conjunto de ideias, aqui denominado “Ideologia de Dominação

Racial”, construiu uma imagem do negro ir real, porém, hegemônica para os domi-nantes da época. Assim, os negros e indí-genas eram considerados seres inferiores e não civilizados.

No campo da ciência, difundiram-se estudos que propagavam a inferioridade dos negros e a superioridade dos brancos. Um deles, o Ensaio sobre as desigualda-des das raças humanas, do Conde de Go-bineau, que ganhou certa notoriedade no Brasil, afirmava que “quanto mais diluído o sangue branco/ariano maior a decadên-cia!”. Desta forma, as raças menos huma-nas precisariam estar a serviço dos proje-tos de sociedade das raças superiores.

A legitimidade para a escravidão também foi justificada por uma interpre-tação bíblica feita pela igreja. Por esta, os africanos seriam um povo amaldiçoado, descendente de Cam, filho de Noé, que te-ria cometido um pecado grave ao espiar o pai nu. Para além da justificação, duran-te a escravidão, religiosos se aprofundam em sermões e publicações sobre métodos de administração dos escravos. Em 1700, é publicado o livro do padre Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no gover-no dos escravos, que tinha como objeti-vo ensinar aos senhores de escravos como ampliar os ganhos, através de uma boa ad-ministração de seus escravos. Benci (1977, p. 50) propõe uma verdadeira pedagogia para a dominação do escravo: “Haja acoi-tes, haja correntes e grilhões, tudo ao seu tempo e com regra e moderação devida e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos. Porque as prisões e açoites, mais de qualquer outro gênero de castigos, lhes abatem o orgulho e que-bram os brios”.

Outro elemento que corroborou a difusão do mito da inferioridade do negro foi a campanha oficial para o embranque-cimento da população brasileira, realizada pelo governo brasileiro e por intelectuais da época. Acreditavam estes que o país só

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progrediria se a sua população ficasse mais branca. Assim, o Estado brasileiro investiu pesadamente em programas de imigração de europeus. “A albumina branca depura o mascavo nacional...” O lema da campanha fala por si só.

Nas últimas décadas, diversas das reivindicações do movimento social negro têm suscitado debates polêmicos sobre as políticas afirmativas, sobretudo a Lei de Cotas, que institui, por tempo provisório, reserva de vagas em concursos públicos e vestibulares para pessoas afrodescenden-tes. Ao se conhecer a história da imigração europeia no Brasil e os subsídios recebi-dos, é possível afirmar que as primeiras políticas afirmativas instituídas no país fo-ram para a população imigrante da Euro-pa?

Aliado ao mito da inferioridade do negro, ocupa terreno na sociedade brasi-leira o mito da democracia racial. A elite brasileira por séculos tentou esconder ou minimizar os efeitos da escravidão e da inserção no capitalismo brasileiro para a população negra, transformando, assim, o quadro de exclusão do negro em algo na-tural. As desigualdades raciais são assim naturalizadas e justificadas. Para o êxito da constituição do mito da democracia racial foi necessário apagar a história da resis-tência dos negros à escravidão, bem como a presença do grupo étnico negro no país. Para tanto, o Estado brasileiro, em 1890, determina a queima dos documentos rela-cionados à escravidão e omite dos recen-seamentos a composição étnico-racial da população. O quesito cor aparece no censo de 1950. É omitido nos censos de 1900, 1920, 1960 e 1970. Retorna em 1980 por reivindicação do movimento social negro. A ideia de que no país não há racismo e da convivência harmoniosa dos grupos

étnico-raciais aqui viventes ganhou noto-riedade em vários países do mundo. Tanto que a própria UNESCO, nos anos 1950, fi-nanciou no país pesquisas de intelectuais como Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira sobre as relações raciais no Brasil, a fim de desvendar a democracia racial brasileira.5

Felizmente, as pesquisas demons-traram que esta era apenas mais um mito estruturante da realidade brasileira. A cons-ciência da desigualdade racial começa a ganhar um pouco mais de espaço no con-junto da sociedade recentemente, a partir das denúncias efetuadas pelo movimento social negro e, especialmente, pela divul-gação de vários estudos e pesquisas sobre as desigualdades raciais no país. Uma boa parte destas incentivadas pelo clima da re-alização da Conferência Mundial da ONU (Organização das Nações Unidas) contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância ocorrida em Durban, na África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.

Porém, estas construções ideológi-cas, estes mecanismos ideológicos de do-minação, continuam presentes, ainda hoje, nas escolas, no livro didático, na formação do professor e do aluno, na consciência so-cial do país.

4. O contexto da Lei 11.645/2008

No dia 10 de março de 2008 foi san-cionada a Lei 11.645, que tem a seguinte redação:

LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008 SÚMULA: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modifica-

5 O artigo “Democracia racial”, de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, apresenta considerações rel-O artigo “Democracia racial”, de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, apresenta considerações rel-evantes sobre o que se concebeu como o “mito da democracia racial”. Ver em: <http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf:>.

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da pela Lei no 10.639, de 9 de janei-ro de 2003, que estabelece as dire-trizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro--Brasileira e Indígena”.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional de-creta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º. O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna--se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1º. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indí-genas no Brasil, a cultura negra e in-dígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e polí-tica, pertinentes à história do Brasil. § 2º. Os conteúdos referentes à his-tória e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de li-teratura e história brasileiras.” (NR) Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008; 187º da Independência e 120º da Repú-blica. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad

Inicialmente, por falta de informa-ções mais consistentes, surgiram interpre-tações equivocadas sobre essa Lei: uma delas dizia respeito à exclusão, no calendá-

rio escolar, do Dia Nacional da Consciência Negra. Na verdade, o que se observa da Lei 11.645/2008 é que ela acrescenta ao invés de suprimir ou omitir qualquer conteúdo da Lei 10.639/2003. Ao propor a alteração da LDB no Art. 26-A não houve qualquer prejuízo ao Art. 79-B, cuja redação expres-sa que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. O entendimento por parte dos sistemas educacionais em ge-ral tem sido de que, ao se instituir uma lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, am-pliam-se as possibilidades de promoção de uma educação que contempla matrizes civilizatórias da formação cultural, social e étnico-racial dos brasileiros e brasileiras.

O próprio Plano Nacional de Im-plementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, uma produção resultante do diálogo com diver-sas instituições públicas e civis, considera que

[...] os preceitos enunciados na nova legislação trouxeram para o Ministé-rio da Educação o desafio de con-stituir, em parceria com os sistemas de ensino, para todos os níveis e modalidades, uma Educação para as Relações Étnico-Raciais orienta-da para a divulgação e produção de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem ci-dadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de inter-agir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de iden-tidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. A compreen-são trazida pela Lei 11.645/2008, sempre que possível, está expressa neste Plano Nacional (BRASIL, s/d., p. 10-11).6

6 É possível acessar esse documento, na íntegra, no link: <http://www.portaldaigualdade.gov.br/.arquivos/leiafrica.pdf>.

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De acordo com nossas pesquisas, características que destacam a atuação do movimento negro em prol da aprovação da Lei 10.639/2003 não se fizeram pre-sentes no contexto de aprovação da Lei 11.645/2008. Foi por meio do PL (Proje-to de Lei) 433/2003 que, cinco anos após (2008), a deputada Mariângela Duarte – SP conseguiu aprovar a sua proposta de al-teração da LDB. Segundo a deputada, a redação da Lei 10.639/2003 apresentava uma “lacuna” ao não contemplar a presen-ça dos povos indígenas:

A sociedade saudou, recentemente, a sanção presidencial à lei que tor-nou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabe-lecimentos de ensino fundamental e médio, oficial e particular. Referida lei foi criticada, no entan-to, pela comunidade indígena, que não foi contemplada com a previsão de disciplinas para os alunos conhe-cerem a realidade indígena do País (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2003).

Levando-se em conta a pertinência de tais críticas, a Lei 11.645/2008 cumpre uma importante função e contribui para uma proposta de educação mais equita-tiva no que se refere à representação das matrizes civilizatórias. Contudo, é possível verificar que equívocos desencadearam problemas de ordem conceitual. Trata-se da redação da Lei 11.645/2008, que apre-senta reflexões muito vagas e até mesmo estereotipadas sobre a cultura e História indígena e afro-brasileira. Observe:

§ 1º. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,

a luta dos negros e dos povos indí-genas no Brasil, a cultura negra e in-dígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e polí-tica, pertinentes à história do Brasil.

É possível notar que a definição de povos indígenas (centenas deles) está sen-do expressa no texto como representantes de uma única etnia, ao lado da outra “et-nia”, os afro-brasileiros. Do ponto de vis-ta dos estudos sobre populações negras no Brasil, há divergências quanto ao uso do termo “etnia” para designar afro-brasi-leiros, já que, dentre outros argumentos, não há o estabelecimento de relações de-siguais entre “etnias” no mercado de tra-balho, na mídia etc. A discussão sobre a etnicidade negra amplia-se para o racialis-mo ou a racialização, termos advindos do racismo científico do século XIX e que foi responsável por “justificar” as diferenças entre brancos e negros. Assim, é tendência de muitos pesquisadores e pesquisadoras utilizar a expressão “étnico-racial”. Sobre as populações indígenas, torna-se inviá-vel, do ponto de vista do reconhecimento e valorização cultural e histórica, a concei-tuação de que os índios compõem no país apenas uma etnia, considerando que esse termo, etimologicamente, designa “mistu-ra de raças com a mesma cultura” (MICHA-ELIS DICIONÁRIO ESCOLAR, 2008).7

Embora críticas tenham sido mani-festadas por estudiosos tanto da História e cultura indígena quanto da cultura afro--brasileira, não se verifica, no contexto da sanção desta lei, nenhuma produção teó-rica que evidencie tal contexto. Não explo-raremos nesse texto, portanto, tais críticas, sob o risco de apresentarmos informações não comprovadas.

7 O livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, de Gersem dos Santos Luciano, apresenta informações importantes sobre a História e cultura indígena. Dispo-nível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf>.

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28 Política educacional e a Lei 10.639/03

Em suma, a nossa compreensão é de que, embora não tenham as mesmas características da construção histórica pela qual passou a educação brasileira até a sanção da Lei 10.639/2003, ao se insti-tuir uma lei que destaca a necessidade de conhecimentos mais consistentes sobre a história e a cultura dos povos indígenas no país, estamos diante de um grande pas-so dado rumo a uma sociedade que está construindo possibilidades mais inclusivas de ensino e de educação. Em outras pala-vras, ampliam-se as condições de estrutu-ração de uma efetiva Educação das Rela-ções Étnico-Raciais,

[...] orientada para a divulgação e produção de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando--os capazes de interagir e de nego-ciar objetivos comuns que garan-tam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da demo-cracia brasileira (BRASIL, s/d., p. 11).

5. Considerações finais

A Lei 10.639/03 trouxe a obrigato-riedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos estabeleci-mentos de ensino. Apesar dos seus limi-tes, a mesma poderá se constituir em um mecanismo importante para a constituição de novas relações raciais e sociais na so-ciedade brasileira. Da mesma forma, a Lei 11.645/2008 atua de modo a ampliar o que se concebe como Educação das Rela-ções Étnico-Raciais.

Neste sentido, parece ser fundamen-tal uma opção metodológica no processo de implementação da nova legislação. Mais do que valorizar o negro, a Lei 10.639/03 deve atuar no sentido de desconstruir me-canismos ideológicos que dão sustentabi-lidade aos mitos da inferioridade do negro

e da democracia racial. Da mesma manei-ra, a Lei 11.645/2008 deve desconstruir a compreensão generalizada sobre os povos indígenas no Brasil e fortalecer os movi-mentos organizados em defesa dos direi-tos a território e livre exercício da cultura indígena. Esse entendimento parece ser fundamental para o êxito da nova legisla-ção, na perspectiva da transformação das estruturas de produção das desigualdades sociais e étnico-raciais do país.

Assim posto, os conteúdos relacio-nados à cultura e à História da África e dos afro-brasileiros e indígenas poderão atu-ar no sentido de contrapor as ideias que fundamentaram a ideologia de dominação racial. Neste sentido, as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 podem constituir-se como instrumentos de luta contraideológica, pois “o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava” (CHAUÍ, 1980, p. 25).

É mister ressaltar que até o mo-mento, apesar de algumas iniciativas do Governo Federal e de alguns Estados, a nova legislação configura-se mais como uma ferramenta de atuação dos movimen-tos sociais do que uma realidade concreta no interior das escolas. Muito ainda preci-sa ser feito. Para tanto, é fundamental que a sociedade organizada e os movimentos sociais negro e indígena cobrem do Estado espaços, mecanismos e estruturas para o acompanhamento da implementação das duas Leis nas redes de educação pública e privada. Entre outras medidas, o poder público precisa urgentemente fazer investi-mentos na formação de educadores; reno-var as bibliotecas das escolas; acompanhar a produção de livros e materiais didáticos; rever e incluir novos conteúdos nos cursos de formação de professores.

Deste modo, a implementação efe-tiva da nova legislação poderá trazer con-tribuições para a superação do quadro de desigualdades raciais e sociais no Brasil. É evidente, porém, que esta superação não depende apenas da educação escolar. No

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29Luiz Carlos Paixão da Rocha; Débora Cristina de Araujo

entanto, não há como negar que esta se configura como um espaço privilegiado para a desconstrução de mecanismos ide-ológicos que deram sustentabilidade ao projeto de sociedade da elite dominante brasileira.

E, acima de tudo, não podemos es-quecer que a implementação da Educação

das Relações Étnico-Raciais trata-se, nada mais nada menos, da evidenciação e do destaque necessário ao cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional e, acima de tudo, da própria Consti-tuição Federal, que prevê uma organização social que contempla e valoriza as diferen-ças de origem e a equidade de direitos.

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zes e bases da educação nacional, para in-cluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Dis-ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm>. Acesso em: 23/06/2009.

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Antropologia das populações

afro-brasileiras

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Introdução

Um pensamento a favor da diversi-dade. É com esta perspectiva em mente que abordaremos neste capítulo conceitos importantes para pensar o lugar e a relação entre a raça e a cultura. Pensaremos a raça e a cultura como construções sociais, ou seja, formas que os coletivos humanos têm de dar significado ao mundo que os rodeia.

Na história política recente do Bra-sil, estes dois conceitos assumem um pa-pel central. Desde a Constituição de 1988 a raça é, além de um elemento de análise sociológica, uma questão de direito. Com a redemocratização, o Brasil passou a ser pioneiro em uma forma de direito que con-sidera a valorização da diferença como ma-neira de promoção da igualdade. O chama-do direito étnico1 trouxe uma reflexão para a arena política brasileira – a respeito do sujeito de direito – e ao mesmo tempo pro-moveu uma relativização de diversas traje-tórias de sujeitos envolvidos na questão. A pergunta que evoca esta dupla transforma-ção foi discutida nos mais diversos canais de comunicação: o que é a raça?

Em um sentido paralelo, cultura e política nunca estiveram tão próximas como estão hoje no cenário nacional. Te-mos hoje iniciativas em defesa de grupos culturais não hegemônicos como políti-ca de estado. É no limite da cultura que

a política voltada a parcelas específicas da população vai sendo construída. Neste processo, agentes sociais são requisitados para atestar a “veracidade cultural” de gru-pos sociais, identificando hábitos e costu-mes que agem como limites definidores de coletividades. Conceitos como tradição e identidade tornaram-se centrais para pensar as propriedades da cultura, definin-do até onde vai o direito à diferença.

Do ponto de vista antropológico, es-tas reflexões têm de ser observadas con-siderando alguns princípios básicos. Deve-mos assumir a postura epistemológica da relativização, ou seja, estranhar aquilo que nos parece familiar e nos tornarmos mais íntimos daquilo que nos parece diferente. Crenças e modos de agir diversos daqueles que temos como verdadeiros deverão ser entendidos apenas como mais uma forma de manifestação da diversidade humana. Tornar-nos-emos pesquisadores do ou-tro – ou, ainda, da alteridade – com a cer-teza que diferentes formas de conceber e classificar o mundo não apenas são dese-jáveis como também são uma condição da existência humana em sociedade.

A raça e o etnocentrismo

Quando nos perguntamos sobre o uso do conceito de raça, algumas questões

Cultura na teoria e na prática

André Marega Pinhel*

* Mestre em Antropologia pela UFPR. 1 Entendo o direito étnico como uma iniciativa contemporânea de definir direitos sociais, tendo

como termo jurídico o pertencimento a determinados grupos sociais entendidos enquanto minoria em rela-ção à “população circundante”. Deixo as considerações a respeito de novas formas jurídicas para capítulos posteriores. Por hora, basta dizer que o limite de etnia que é construído no plano jurídico nem sempre cor-responde ao limite socialmente construído na prática.

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34 Cultura na teoria e na prática

saltam quase que imediatamente. Estamos falando de raça em que sentido? Pensamos em raças enquanto variações genéticas de uma mesma espécie ou como construções sociais decorrentes de intrincados proces-sos históricos?

Pensando a respeito da definição do conceito de raça, percebemos que a polê-mica estabelece-se entre a ambivalência de raça – no sentido biológico – e raças – no sentido social. A verdade é que, do ponto de vista da genética, o pool gênico humano – conjunto de instruções genéti-cas que define a biologia humana – dife-re muito pouco entre si. As diferenças im-pressas no DNA humano não se caracteri-zam como discrepâncias notáveis a ponto de identificarmos uma multiplicidade racial humana no sentido genético. As diferenças fenotípicas entre seres humanos, no en-tanto, serviram através da história da hu-manidade como subsídio para estabelecer formas hierárquicas entre grupos sociais. Em casos extremos, a raça (fenótipo) ser-viu como pretexto para práticas genocidas e segregatícias perpetradas por grupos po-liticamente dominantes.

“As raças humanas” não existem per si, mas como resultado da existência hu-mana em sociedade. Por vezes, a raça de-finiu o limite da tribo, do país ou do clã. A raça (fenótipo) foi muitas vezes pensa-da pela humanidade de forma metafórica, para designar aquilo que é propriamen-te nosso daquilo que é diferente, estra-nho e, até mesmo, oposto. A comprovação científica de que as raças humanas não existem no sentido biológico do termo de-monstrou que as diferenças entre os se-res humanos não são naturais, mas sim socialmente construídas.

No entanto, se é verdade que a raça do ponto de vista genético é insustentá-vel, não podemos deixar de considerar sua

existência no discurso popular. Quando os primeiros programas de cotas foram ins-taurados em universidades brasileiras, a sociedade mobilizou-se para falar da raça. Pesquisas foram realizadas para pensar o lugar da raça no discurso popular. No ano de 2008, o instituto Datafolha publicou no jornal Folha de S. Paulo uma pesquisa a respeito do racismo no Brasil.2 Recolhen-do uma amostragem diversa no território nacional, o instituto perguntou aos entre-vistados se se viam como pessoas precon-ceituosas ou racistas. Da amostragem to-tal, apenas 3% das pessoas entrevistadas reconheciam ter atitudes racistas ou pre-conceituosas no cotidiano; entretanto, 91% dos entrevistados admitiram conhecer al-guma pessoa que detivesse uma postura notoriamente racista. A aparente incon-gruência nas respostas dos entrevistados, na verdade, revelava o sentido do uso da raça no discurso popular brasileiro. A raça é um vocábulo utilizado majoritariamente para falar do outro, representar diferen-ças e estabelecer padrões sociais hie-rárquicos.

Do ponto de vista acadêmico, uma dualidade ética estabeleceu-se na utiliza-ção da raça como um conceito explicativo. Se a raça não é sustentável do ponto de vis-ta biológico, devemos utilizá-la como um conceito central para entender a realidade social? Tal disputa a respeito dos usos e sentidos da raça se estabeleceu na acade-mia de forma polarizada. De um lado, um grupo de intelectuais posicionava-se con-trário à utilização da raça como elemento de estudo social. Seus argumentos orien-tavam-se pela perspectiva de que a raça é insustentável do ponto de vista genético e, portanto, não deve se reproduzir na análise sociológica. Da mesma maneira, o uso da raça no cotidiano brasileiro não provocaria hierarquizações sociais como as observa-

2 Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/6657-pesquisa-datafolha--sugere-diminuicao-do-racismo-no-brasil>.

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35André Marega Pinhel

das em contextos como a África do Sul e o sul dos Estados Unidos. Nestes contextos, o sentido da raça serviu como elemento para a hierarquização jurídica, social, econômica e política entre indivíduos, desencadeando uma série de atos segre-gatícios perpetrados por grupos sociais dominantes. No caso brasileiro, o uso da raça seria envolto em um sistema que anu-la hierarquias sociais explícitas, impossibi-litando que existisse no território nacional um sistema que concede diferentes tipos de privilégios sociais a diferentes grupos étnicos.

Em outro sentido, diversos intelec-tuais argumentavam a favor da utilização da raça como um conceito analítico. Para os envolvidos nesta proposta, o uso da raça no discurso popular brasileiro está re-coberto de formas ideológicas que mistifi-cam as reais relações entre grupos sociais diversificados. A raça enquanto diferença positiva é negada por meio de mecanis-mos ideológicos que se orientam por um horizonte igualitarista, rejeitando distin-ções que são observáveis na realidade. Na prática, esta dimensão ideológica seria observável pela operação da diferença onde uma condição de igualdade (ou im-parcialidade) deveria existir. Esta dinâmica operaria, por exemplo, em situações como uma entrevista de emprego, ambientes es-colares ou envolvimento de indivíduos com o poder policial. Nestas situações, apesar de esperarmos uma imparcialidade dos agentes envolvidos na questão, mediada pelo horizonte igualitário promovido pela cidadania e universalização dos direitos humanos, a raça opera como um elemen-to diferenciador, hierarquizando os indiví-duos entre aqueles que podem ascender a uma situação de privilégio social e aque-les que são enquadrados em uma espécie de subcidadania. Para além de discussões acadêmicas ou midiáticas, é importante considerarmos o conceito de raça como uma expressão humana da diferença. En-

quanto professores e educadores, deve-mos pensar que existem múltiplas formas de pertencer racialmente. Neste processo de constituição identitária, nossos alunos mobilizam memórias, símbolos que são pertinentes em sua própria trajetória. O estudo da raça com o olhar antropológico nos ajuda a deslocar nosso ponto de vista para a alteridade, ou seja, considerar a di-versidade como expressão natural do ser humano.

Ao mesmo tempo, considerar a raça como expressão da diferença nos ajuda a escapar da armadilha do etnocentrismo. As propriedades do etnocentrismo são ex-ploradas no conhecido texto Raça e ciên-cia, do antropólogo francês Lévi-Strauss. Nas suas próprias palavras, o etnocentris-mo pode ser abordado como:

A atitude mais antiga e que repou-sa, sem dúvida, sobre fundamen-tos psicológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identifica-mos. “Costumes de selvagem”, “isso não é nosso”, “não deveríamos per-mitir isso” etc., um sem-número de reações grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta mesma repulsa, em presença de maneiras de viver, de crer ou de pensar que nos são estranhas. Deste modo, a Antiguidade confundia tudo que não participava da cultura grega (depois greco-romana) sob o nome de bárbaro; em seguida, a civiliza-ção ocidental utilizou o termo sel-vagem no mesmo sentido. Ora, por detrás destes epítetos dissimula-se um mesmo juízo: é provável que a palavra bárbaro se refira etimologi-camente à confusão e à desarticula-ção do canto das aves, opostas ao valor significante da linguagem hu-mana; e selvagem, que significa “da floresta”, evoca também um gênero de vida animal, por oposição à cul-tura humana. Recusa-se, tanto num

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36 Cultura na teoria e na prática

como noutro caso, a admitir a pró-pria diversidade cultural, preferindo repetir da cultura tudo o que este-ja conforme a norma sob a qual se vive. (LÉVI-STRAUSS, 1970, p. 4).

O etnocentrismo pode ser enten-dido como o mecanismo de definição do outro a partir de valores que nos são fa-miliares. Como demonstra Lévi-Strauss, o etnocentrismo, antes de ser uma pos-tura ou conduta pessoal, é uma maneira tipicamente humana de reconhecer a al-teridade – ou seja, uma maneira de pen-sar sobre o outro. Em outro sentido, uma postura etnocêntrica caracteriza-se por uma iniciativa no sentido da desqualifica-ção do outro. Adotamos posturas etno-cêntricas diariamente, como maneira de nos diferenciarmos de outras pessoas, mas também como forma de construir e compactuar com hierarquias sociais. Po-demos afirmar que o racismo se constitui como uma postura etnocêntrica a par-tir do momento em que perverte a per-cepção da diferença para promover dis-tinção entre sujeitos sociais. Nosso papel enquanto estudiosos da raça é assumir um compromisso de combate a posturas etnocêntricas, uma medida que começa inevitavelmente com uma crítica de nossas próprias concepções individuais.

O lugar do preconceito e da discriminação

Agora que encaramos a raça como uma construção social, passamos ao es-tudo do uso social das formas hierárqui-cas de raça. Comumente, pensamos que a referência à identificação racial de uma pessoa se configura como um ato de pre-conceito ou discriminação. Em que situa-ção podemos usar a raça como maneira de pensar o outro sem agirmos de forma preconceituosa?

Em primeiro lugar, é importante re-fletirmos sobre a relação entre discrimina-ção e preconceito. A discriminação – ou o ato de diferenciar, classificar – não é uma atitude que dependa necessariamente de algum mecanismo de hierarquização. A classificação é inerente ao processo de in-teração do homem em sociedade, indis-sociável de qualquer processo de comuni-cação. Contudo, muitas vezes observamos o conceito de discriminação associado a atitudes segregatícias, práticas que de-nigrem os sujeitos. Quando falamos em discriminação, estamos operando com uma maneira de perceber a sociedade, um princípio social. Princípios sociais agem como regras gerais da percepção. Orien-tam visões de mundo e concepções de vida. Podemos dizer que a discriminação – ou diferenciação – é um princípio social as-sociado à diferença, o que não acarreta de imediato sua associação à hierarquização de indivíduos.

Princípios sociais agem como orien-tações gerais e mais ou menos reconhe-cíveis para todos os indivíduos de uma co-letividade. No entanto, um princípio social não pode ser entendido de forma isolada, ou seja, sem ser relacionado com outros princípios sociais. Em grande medida, nos-sa percepção do que seria a discrimina-ção – ou diferenciação – está relacionada de forma antagônica à nossa concepção de igualdade. Nas sociedades modernas – ou ainda ocidentais –, o princípio social da igualdade construiu-se de maneira a englobar nossa percepção da diferença. Todos os princípios sociais recobrem-se de camadas de significação ideológica, ou seja, versam sobre a realidade de maneira parcial.

Um exemplo de uma construção social orientada por princípios igualitaris-tas se expressa na figura da Constituição. Enquanto forma jurídica, todas as consti-tuições de estados modernos estão orien-tadas de alguma maneira por princípios

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socialmente entendidos como igualitários. Ora, o pressuposto fundador da forma ju-rídica expressa na Constituição é a univer-salização do ser humano, um princípio imbuído de igualdade que remonta até os primeiros dias do estado-nação moderno, com a revolução francesa. Apesar de ob-servamos uma referência à igualdade em exemplos como este, não podemos deixar de considerar que existe uma contradição entre os princípios sociais e a realidade da organização social.

A frase do célebre presidente esta-dunidense Abraham Lincoln expressa um pouco desta contradição. “Todos os ho-mens nascem iguais, mas esta é a última vez que o são”, ele escreve. Por mais que façamos referência a um princípio social igualitário para percebermos o mundo, não conseguimos extinguir a diferença que é inerente à existência humana. Com isso, é possível afirmar que a igualdade construída pela declaração dos direitos do homem e do cidadão não acaba com a ne-cessidade de nos vermos enquanto seres diversos.

É preciso, no entanto, resguardar certo rigor conceitual. O princípio social que nos orienta para a percepção da di-versidade humana é diferente – e muitas vezes entendido como igual – da forma de organização estratificada que observamos nas sociedades modernas. A estratifica-ção – ou seja, a organização hierárquica típica de sociedades capitalistas – deve ser entendida como um sistema que organi-za a sociedade como um todo, definindo lugares sociais para cada indivíduo. Ela é inerente a qualquer sistema econômico centrado na acumulação da mercadoria e regulado pelo estado-nação – comandado pela figura da autoridade centralizada. Ao mesmo tempo, a estratificação é a faceta hierárquica não declarada de um sistema social que se propõe a ser igualitário, ou seja, onde cada indivíduo dispõe de manei-

ra igualitária de todas as possibilidades de ascender dentro da hierarquia social.

Aquilo que entendemos como pre-conceito muitas vezes está associado a uma confusão entre a percepção da dife-rença e a reprodução da estratificação. O preconceito está relacionado a uma per-versão da diferença como maneira repro-duzir uma estratificação social. A dinâmica do preconceito age numa situação onde uma relação entre sujeitos sociais é supos-tamente mediada pelo princípio da igual-dade, ritualizando a diferença com um tom hierárquico. Graças à confusão entre percepção da diferença e reprodução da estratificação, muitas atitudes que se direcionam no sentido da reprodução per-vertida da hierarquia são tomadas como inofensivas ou despretensiosas, quando de fato escondem um complexo processo de hierarquização de tipos humanos.

A relação entre preconceito e per-cepção da diferença é explorada em pro-fundidade pelo sociólogo brasileiro Flores-tan Fernandes. Autor de vários estudos na área das relações étnico-raciais, Fernandes levanta a hipótese de que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito. Para o autor, atitudes que retornam indivíduos a uma condição hierárquica onde a igualda-de deveria imperar muitas vezes são comu-nicadas de forma subjetiva, isto é, operam sem o conhecimento objetivo dos sujeitos. Por meio de dados qualitativos e quantita-tivos, Florestan Fernandes demonstra que, ao ser questionado sobre o uso perverso da percepção da diferença em atitudes cotidianas, o brasileiro mediano tende a retornar para uma perspectiva igualitária para justificar sua conduta. Assim, brin-cadeiras jocosas que ritualizam condições extremamente pejorativas são entendidas como “sem intenção”, ou, ainda, “despro-vidas de maldade”.

Devido ao mesmo sistema que nega a objetivação – ou conscientização – da reprodução hierárquica contida na prática

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38 Cultura na teoria e na prática

preconceituosa, muitas iniciativas recentes de valorização da diferença como ma-neira de produzir igualdade social foram entendidas enquanto formas reversas de racismo. As recentes políticas afirmativas têm a ambição de reconhecer a diferença para diminuir a perversão da hierarquia la-tente na prática preconceituosa. Esta ma-nobra depende intrinsecamente de alguma espécie de definição ou de uma discrimi-nação como identificação dos sujeitos de direito. O reconhecimento da diferença não está necessariamente atrelado a uma reprodução da estratificação e devemos evitar as confusões conceituais.

Cultura como costura social

Como discutimos até o momento, a raça pode ser encarada como um sím-bolo para falar da diferença, da diversida-de. Introjetamos nesta espécie de conceito valores, crenças e regras sociais a fim de dar significado ao outro. A significação do conceito que versa sobre o outro está inti-mamente relacionada com aquilo que nos acostumamos a chamar de cultura. Mas o que é a cultura?

Comumente, tendemos a perceber a cultura muito próxima daquilo que en-tendemos como fronteiras. A cultura, em termos usuais, está relacionada com a de-terminação de limites sociais. Neste sen-tido, falamos correntemente em “cultura de uma empresa”, “cultura de um estado”, “cultura de onde vim” e até mesmo em “cultura brasileira”. Quando falamos de cultura no sentido de criar referências, estamos, de fato, estabelecendo fronteiras sociais. No vernáculo usual, uma cultura “termina” onde outra começa, ou seja, se delimita a partir de outra cultura. A “cul-tura” não demarca apenas espaços fisica-mente observáveis – como, por exemplo, o território geográfico brasileiro – mas tam-bém posições sociais. Quando atribuímos

a uma pessoa ou a um lugar o título de culto – que “detém cultura” – estamos de-marcando diferenças entre pessoas que se expressam de maneira simbólica.

A cultura como a concebemos é pen-sada de forma diversa, ou seja, pensamos que existam “culturas” ao invés de “uma cultura”. O conceito de cultura é muitas ve-zes utilizado para falar de algo que me é familiar, mas também para falar daquilo que é estranho, diferente. A expressão “isto é cultural” – muito utilizada para discutir formas diversificadas de valores sociais, práticas ou costumes – expressa um pouco do potencial de percepção da diferença por meio da cultura. Ao dizermos que diferen-ças são culturais, estamos postulando a natureza diversa do ser humano. Mas qual é a relação entre a raça e a cultura?

A raça como uma construção social também estabelece limites sociais. Assim como a cultura, a raça pode ser entendida como uma fronteira, um limite que define aquilo que é semelhante daquilo que é exó-tico, diferente. A cultura, enquanto sistema social de percepção de valores, crenças e práticas, vale-se da raça como elemento classificador do ser humano. Os significa-dos que atribuímos à raça (fenótipo) refle-tem diretamente nos limites da raça (sim-bólica) e contribuem para determinar aqui-lo que chamamos de cultura. Estes pro-cessos ocorrem de forma não consciente, ou seja, são relativamente autônomos de escolhas e estratégias pessoais.

A relação entre raça e cultura se expressa, por exemplo, quando tentamos pensar – ou explicar – a “brasilidade”, ou seja, o que nos faz pertencer à “cultura brasileira”. Muitos dos símbolos que são, por vezes, concebidos como “gerais” para a cultura brasileira – como o samba, a fei-joada, o futebol – são entendidos como produtos históricos da “mistura brasileira”. Neste processo de elevação de símbolos específicos a componentes da “cultura na-cional”, a raça tem um papel importante,

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definindo um horizonte que permite cons-truir unidade étnica a partir da “multipli-cidade cultural”. Entendemo-nos usual-mente como um “povo mestiço”, fruto da união das diferenças culturais. O “mestiço brasileiro” (fenótipo) é associado ao repre-sentante verdadeiro do “tipo nacional”, ou seja, à imagem do brasileiro.

Entretanto, apesar de construirmos no plano cultural um horizonte universalis-ta e igualitário para o ideal de raça e de nação, na prática a percepção da diferença continua sendo pervertida para promover

a estratificação social. A cultura é a costura social, pois une a diversidade humana em torno de elementos gerais, ou seja, percep-tíveis a todos aqueles que integram suas fronteiras. Devemos, no entanto, resguar-darmo-nos do mecanismo de destruição da diferença em nome da massificação da igualdade e de homogeneização de formas de pensar e de representar o mun-do. A defesa da diferença é, antes de ser uma forma de direito, uma maneira de pre-servar a predisposição social humana para conviver com a diversidade.

Leituras complementares

Etnocentrismo e relativismo cultural

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma in-trodução à Antropologia Social. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um con-ceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e ciência. São Paulo: Perspectiva, 1970.

Preconceito e discriminação

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras bran-cas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.

GOMES, Nilma Lino; MARTINS, Aracy Alves (Org.). Afirmando direitos: acesso e per-manência de jovens negros nas universida-des. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Cultura

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científi-cos, 1989.

Referências

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______. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1972.

GUIMARÃES, Antônio S. A. Como trabalhar com “raça” em Sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan.-jun. 2003.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e ciência. São Paulo: Perspectiva, 1970.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: ______ (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da inti-midade contemporânea. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1998. p. 173-244.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Fundação Ford, 2000.

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41

Introdução

A identidade e a diversidade têm uma longa relação de proximidade e dis-tância. Como vimos no capítulo anterior, a diversidade humana, antes de ser um fenô-meno político contemporâneo ou expres-são do mundo globalizado, deve ser en-tendida como a expressão da existência do ser humano em sociedade. A identidade, em suas múltiplas formas sociais, sempre esteve no limite da diversidade, como uma forma de falar sobre costumes que são próprios “aos meus”. Ao mesmo tem-po, a identidade é usada correntemente para falar do eu (indivíduo) em relação ao todo (sociedade), ou seja, estabelece mediações entre planos de representa-ção.

Do ponto de vista antropológico, a discussão em torno do conceito de iden-tidade reassume um debate clássico da relação entre indivíduo e sociedade. Nes-te capítulo, pensaremos a identidade entre este axioma, ou seja, como elemento que media o indivíduo e seu contexto social. Ao mesmo tempo, deveremos abordar as transformações recentes no conceito de identidade, a partir do ponto em que esta se afirma enquanto termo jurídico com a promessa de promover direitos sociais.

Também é possível pensar a identi-dade sob outros ângulos. Do ponto de vista jurídico/político, o conceito de identidade vem passando por diversas transforma-ções. Foi com a Constituição brasileira de 1988 que a identidade passa, pela primeira

vez, a ser um elemento para empodera-mento de sujeitos sociais na forma de ter-mo jurídico. A identidade passou a ser en-tendida na forma jurídica como o elemento que identifica, delimita agrupamentos so-ciais. Na década que se seguiria, diversos movimentos sociais se mobilizaram para garantir a efetividade dos direitos previstos na Constituição, debruçando-se em torno do conceito e da definição jurídica de iden-tidade. Contudo, percebe-se que a identi-dade, enquanto conceito jurídico, é reche-ada de ambiguidades: como definir quem está dentro e quem está fora dos limites de uma identidade? Ou ainda: como definir o limite da identidade, ou seja, como re-conhecer aqueles que são ou não são os sujeitos de direito e de fato?

Identidade ou identidades?

Para começarmos a pensar sobre a importância da identidade na vida social, devemos ter alguns problemas em pers-pectiva. Quais são as regras que regem a construção de uma identidade? Iden-tidade e personalidade são a mesma coisa?

A antropologia social busca com-preender a identidade como uma constru-ção social a respeito da pessoa, fruto de um tempo, um contexto social específico e do desenrolar de um processo histórico. Uma identidade não pode ser entendida se-paradamente destas características consti-tutivas correndo o risco de, se o fizermos,

Identidades e identificações

André Marega Pinhel

* Mestre em Antropologia pela UFPR.

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especializarmos uma categoria humana que, em verdade, assume as mais diversas formas e contornos. Algumas etapas são importantes no pensar da identidade.

Em primeiro lugar, temos que con-siderar a relação entre identidade e iden-tificação. A identidade, enquanto cons-trução da pessoa, não pode ser entendida de forma estática (minha/nossa identidade é), mas como um processo. A construção de um eu indentitário está intrinsecamente ligada à identificação, por parte do sujeito, de um grupo social onde este eu é proje-tado. Os sujeitos criam limites sociais para definir aqueles que, segundo seu conceito de pessoa, pertencem ou não pertencem ao seu imaginário sobre a identidade. Ao mesmo tempo, nenhuma identidade que versa sobre o eu é isenta do poder clas-sificatório social. Os sujeitos são constan-temente agrupados pelo mecanismo social da identificação, ou seja, são percebidos socialmente como pertencentes ou não pertencentes a um agrupamento social.

A identidade não existe sem iden-tificação, pois o indivíduo não existe sem sociedade. A identidade é uma linguagem pela qual os sujeitos se relacionam com seu contexto social, uma maneira pela qual sua noção de pessoa se expressa. A iden-tificação é o mecanismo pelo qual a iden-tidade é reconhecida pela sociedade den-tro dos limites de agrupamentos sociais.

Como forma de representação, po-deríamos propor o seguinte esquema:

restringe a adjetivação (negra, cabocla, fa-xinalense etc.). Ao fazê-lo, estamos estabe-lecendo referências a uma identidade em particular, ou seja, oferecemos aos nossos interlocutores um contexto que define um grupo social ao qual “aquela identidade” faz referência. A identidade, por mais geral que se pretenda ser, ainda versa sobre uma particularidade social. Não falamos, por exemplo, em identidade humana, embora seja possível falar sobre identidade huma-nista, em referência a uma postura políti-co-intelectual. O importante sobre esta re-flexão é percebermos que o substantivo ao qual a identidade faz referência é fruto de transformações políticas e sociais, embates e disputas pela legitimação em um espaço para poder definir a identidade.

Em referência a estes processos de transformação política e social, podemos pensar no impacto sobre a substantivação das identidades a partir da expansão re-cente das chamadas políticas da identi-dade. Como uma proposta alternativa ao Direito clássico – centrado no indivíduo, no contrato e na propriedade –, as políticas de identidade estão construídas em torno da noção de empoderamento de minorias his-toricamente privilegiadas. Neste caso, os conceitos de minoria e de identidade de-senvolveram uma proximidade na medida em que o termo minoria define os limites da identidade, ou seja, determina o grupo social a partir daquilo que não é hegemô-nico, englobante.

Atualmente, a identidade se encon-tra no centro da disputa da arena política, mas encontra contradições do ponto de vista jurídico. Como definir limites jurídicos a sujeitos sociais? Como definir os sujeitos de direito a partir de categorias – à primei-ra vista – subjetivas, como costumes, práti-cas e crenças?

Em certa medida, a confusão jurídi-ca a respeito da identidade é informada pelos limites permeáveis da identificação. O problema da identificação jurídica dos

Instância do eu (indivíduo)

Instância do grupo (sociedade)

Identificação

Identitarização

Em segundo lugar é preciso ter em mente que não existe a identidade, mas, sim, identidades. Quando tratamos sobre o tema, geralmente associamos o termo que adjetiva o sujeito (identidade) ao termo que

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43André Marega Pinhel

sujeitos de direito seria a impossibilidade da definição objetiva da identidade, a in-capacidade de criarmos tipos jurídicos de identidade. A identidade, enquanto termo juridicamente definido, não corresponde necessariamente a um conceito de identi-dade praticamente elaborado. Na prática, a substância da identidade – valores sociais, crenças e modos de fazer – é constante-mente negociada, transgredindo muitas vezes as fronteiras das definições legais.

A contradição entre o plano do di-reito e o plano vivido é decorrente, nestes casos, da mediação promovida por uma espécie de normalidade jurídica. Para-doxalmente, aqueles que operam o direito na prática têm de desenvolver mecanismos para restringir a representação social da identidade a formas mais ou menos ge-rais, transformando símbolos que são por natureza dinâmicos em referências sociais estáticas. É neste processo que media-dores sociais, muitas vezes engajados na construção política da identidade, se es-forçam hoje para levar a identidade vivida para o campo da jurisprudência, transfor-mando-se em delimitadores práticos dos limites da identidade. A seguir, discutire-mos construções indentitárias importantes no contexto político contemporâneo e suas implicações do ponto de vista conceitual.

A identidade e o nacional

Agora que pensamos a identidade como produto e produtora de um deter-

minado contexto social, podemos projetá--la em função da escala. A identidade, en-quanto representação social, diz respeito a grupamentos humanos: falamos de identi-dade, por exemplo, para pensar nosso per-tencimento a um determinado território, re-gião ou nação. Os limites da identidade, no entanto, são muito mais permeáveis do que os limites geograficamente construídos.

Quando tratamos da identidade, es-tamos discutindo formas diversas de per-tencer. Pertencemos a agrupamentos so-ciais, como, por exemplo, uma nação, por meio de limites socialmente construídos. Definidos de forma simbólica – ou seja, na forma de representação do concreto –, os limites sociais estão relacionados com a naturalização de um tipo social ideal. Neste ponto, cabem algumas explicações sociológicas.

Percebemos a ideia de tipo ideal quando nos relacionamos com símbolos que representam a totalidade cultural da nação. Enquanto representação do con-creto, o tipo ideal se refere a uma expres-são universal (geral) do ser social, aquilo que identifica e pode ser identificado como “naturalmente verdadeiro”. Assim como fronteiras geográficas de uma nação – mas com barreiras mais permeáveis –, os li-mites construídos pela reprodução de um tipo ideal permitem que estabeleçamos um referencial simbólico, aquilo que po-demos entender enquanto pertencimen-to. No caso da nação, estes tipos ideais podem ser constituídos, por exemplo, por representações de valores sociais,1 figuras

1 Nesse caso em especial, cabe a referência a Talcoltt Parsons, sociólogo funcionalista americano e tradutor da sociologia weberiana para a língua inglesa. Parsons realizou diversos estudos nas décadas de 1940 e 1950 nos Estados Unidos, cuja aplicabilidade prática seria a observação de valores sociais que deter-minariam, com mais “eficiência”, a coesão da sociedade americana. Naquele período, Parsons previu que a sociedade americana tornar-se-ia cada vez mais diversa, em referência à multiplicação de concepções par-ticulares de nação. A imigração e a transnacionalidade tipicamente americanas produziriam, inevitavelmente, a não coesão social. Caberia aos ideólogos “resolver” o problema da não coesão social com a elaboração de valores sociais “mais gerais possíveis”, ou seja, símbolos que servissem como identificação/identidade para a complexificação crescente de concepções de nação. Parsons, então, entendeu que a liberdade (como valor que significa a economia ou a política) seria o elemento que se estabeleceria como dominante no que toca à construção do “naturalmente americano”. Apesar da complicada relação entre ciência e práxis no caso da sociologia de Parsons, vale a referência para o papel dos ideólogos na construção da coesão social.

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44 Identidades e identificações

míticas ou – no caso brasileiro – pela cons-trução de um “tipo nacional”, o mestiço. Atendemos à produção/reprodução de um tipo ideal cada momento em que pensa-mos que o brasileiro é um povo feito da mistura, da miscigenação, da qual emerge a figura do mestiço (mulato, pardo) como representante ideal do tipo nacional.

Do ponto de vista sociológico, o con-ceito de tipo ideal pode ser pensado como uma ferramenta de análise. No campo dos estudos sociais, credita-se ao sociólo-go alemão Max Weber a proposta da utili-zação do conceito de tipo ideal como fer-ramenta analítica. Para Weber, o tipo ideal serviria como modelo para pensar tipolo-gias avaliativas puras, desprovidas de ca-ráter “parcial”,2 que versassem sobre as ca-racterísticas da economia, política e – não de forma expressa em sua obra – cultura. A grande contribuição de Weber para a so-ciologia se refere a uma percepção de que estes tipos idealmente construídos, como o lugar que o mestiço ocupa na constru-ção de um tipo brasileiro, são produtos de encadeamentos históricos específicos, onde se entrelaçam atores sociais agindo na produção do conceito. Seguindo esta perspectiva, podemos pensar um pouco na importância da raça na construção de um tipo ideal do brasileiro.

Em primeiro lugar, é preciso pensar que o mestiço (enquanto representação do povo brasileiro) nem sempre ocupou o lu-gar central e naturalizado como tipo ideal do representante nacional. A construção da imagem da identidade brasileira está histo-ricamente associada à produção artística, científica e cultural. Do ponto de vista ana-lítico, os primeiros estudos sobre relação entre raça e povo brasileiro configuravam--se como uma área de domínio da saúde

pública, da medicina legal, e não dos estu-dos sociais.

Durante o processo de implantação da República Velha, a Escola de Medicina Legal da Bahia representava um expoente deste tipo de discussão. Logo na virada do século, os estudos de Nina Rodrigues – en-tão médico-legista e professor da Faculda-de de Medicina da Bahia – figuravam como dados científicos “de ponta” a respeito da condição do negro e do mestiço brasileiro. Seus trabalhos transpareciam uma forte in-fluência das teorias do famoso antropólo-go criminal Cesare Lombroso, cuja prática de pesquisa se constituía de análises ana-tômicas e comportamentais para criar per-fis criminais. Por meio de características fe-notípicas – medidas corporais, cor da pele, ou, ainda, padrões cranianos –, Lombroso acreditava ser capaz de encontrar o “crimi-noso natural”, as características daquele que estaria naturalmente inclinado à “per-versão da ordem”. A espinha dorsal desta busca pelo pecado original era sustentada por uma concepção fortemente racista e etnocêntrica, uma tipologia social que en-tendia a natureza diferenciada dos seres humanos como produtora da diferencia-ção social.

As opiniões de Lombroso a respeito da natureza dos seres humanos serviram como base para que Nina Rodrigues pen-sasse problemas que, naquela época, es-tavam postos no contexto sociopolítico da república velha. Quais seriam as caracte-rísticas do povo brasileiro? Quais eram sua cor e a sua “mentalidade”?

Tais perguntas perpassariam toda a história política brasileira. Contudo, é nos trabalhos de Nina Rodrigues que encon-tramos uma das primeiras referências ao “papel do homem de cor” na construção

2 Para mais informações acerca da discussão sobre a neutralidade científica ou sobre a relação entre o pesquisador e a pesquisa, ver: WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações (1989), ou ainda CUSTÓDIO FERREIRA, Edilaine. Raízes do Brasil: uma interlocução entre Simmel, Weber e Sérgio Buarque de Holanda (2004).

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de uma noção do povo brasileiro. Para Nina Rodrigues, a mistura entre as raças (fenó-tipo) acarretava uma degenerescência (so-cial), o que poderia explicar o lugar distan-te que o povo brasileiro ocupava em um conceito de civilização. A solução seriam iniciativas políticas e jurídico-administrati-vas de “civilização da população”, o que, na virada do século XIX para o século XX, significava medidas de higienização e sa-neamento básico.

A questão do papel do “homem de cor” na construção do povo brasileiro seria retomada anos mais tarde na literatura de Gilberto Freyre. Famoso escritor pernam-bucano, Freyre consagrar-se-ia como ela-borador de grandes sistemas de entendi-mento acerca da “natureza do brasileiro”. Em obras clássicas do pensamento social brasileiro, como Casa-grande & senzala ou Sobrados e mucambos, encontramos uma digressão a respeito das origens do povo brasileiro, um exercício de incorporação de elementos literários a uma narrativa da ciên cia social vigente na época.

Apesar das semelhanças e da fran-ca admiração pelo mestre Nina Rodrigues, o conceito de raça e de povo brasileiro assume contornos próprios no trabalho de Freyre. Enquanto cientista social, sua formação foi orientada pelos escritos da emergente antropologia norte-americana de Franz Boas,3 preocupada com a cons-trução de um conceito de cultura local que explicasse práticas sociais por meio de uma análise histórico-sociológica. A contri-buição desta linha de pensamento na obra de Freyre se expressa por sua iniciativa de transferir a discussão sobre a identidade

do povo brasileiro da raça (biologia) para a cultura.

Há que se resguardar o fato de que a discussão acerca da “diferença natural do homem” (biológica, anatômica) não de-saparece da obra de Gilberto Freyre mes-mo com o estabelecimento da cultura en-quanto diferença (tipos e modos de agir tipicamente sociais e particularizáveis). É recorrente nas páginas de Casa-grande & senzala a referência a padrões corporais fenotípicos como elementos para perce-ber limites e relações sociais entre grupos humanos. Mesmo assim, a raça no sen-tido que a confere Freyre é uma maneira de criar uma tipologia da cultura. Neste sentido, ficou famosa a expressão utilizada pelo autor na abertura de Casa-grande & senzala, onde afirma:

Todo brasileiro, afirma, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano. (FREYRE, 2001, p. 16).

Com estas palavras e no decorrer de uma carreira intensa – tanto do ponto de vista acadêmico como político –, Freyre ce-lebra a condição culturalmente mestiça (miscigenada, misturada) do povo brasilei-ro. Sua proposta, ao contrário da visão de Nina Rodrigues, concebia aquilo que até então era visto como demérito da brasi-lidade – a mestiçagem – como um signo

3 A antropologia de Franz Boas ficou conhecida pelos estudos aprofundados da importância da cul-A antropologia de Franz Boas ficou conhecida pelos estudos aprofundados da importância da cul-tura na experiência social, bem como por sua crítica ao determinismo biológico e geográfico. Enquanto a antropologia começava a se firmar como uma área de estudos independentes, Boas discutia com a escola difusionista a respeito da natureza da inventividade humana. Enquanto linha de pensamento dominante na época, a escola difusionista pregava uma concepção de cultura de centro, ou seja, a diversidade cultural humana teria origens em pontos específicos do globo e as variações ao redor do mundo seriam derivações destes centros originais. Boas rebateu esta afirmação veementemente, desenvolvendo uma concepção de que a cultura só poderia ser entendida de maneira local, ou seja, percebendo o desenvolvimento histórico de uma sociedade por meio de representações culturais, como a cultura material.

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bem visto da cultura nacional, aquilo que é identificado e identifica nossa condição em especial.

Para realizar esta passagem da raça à cultura, Freyre se utiliza de alguns me-canismos sociológicos e literários. Em pri-meiro lugar, o sistema que rege a cultura nacional é pensado em analogia ao mundo do engenho, realidade social que, diga-se de passagem, Freyre conhecia intimamen-te.4 As partes – tipos sociais como “o ne-gro”, “o mulato”, “o indígena” etc. – deste sistema são pensadas como se fossem in-terdependentes, frações de um mundo so-cial total no qual o “todo” social está con-tido.5 No caso da obra de Freyre, o mundo do engenho é apresentado como um mun-do total, na medida em que é representa-do como fator autoexplicativo de um de-terminado contexto social. Os tipos sociais, ou personagens do mundo do engenho, existem apenas em relação a outros per-sonagens, sendo que o tipo de relação em questão constitui a essência do per-sonagem.

Estes personagens sociais – ou li-terários? – têm um papel estrutural tanto na obra de Freyre quanto em sua propos-ta de cultura. Retratados na forma de tipos ideais da cultura, eles oferecem subsídios para que o leitor os entenda enquanto sín-

tese das antíteses sociais estratificadas que definem a “cultura nacional”. A condi-ção ambígua dos personagens – devido à sua natureza “misturada”, “não determina-da” – representa, em uma escala maior, a síntese do nacional, nosso “trunfo” no trato com uma situação de estratificação social. No “mundo do engenho”, por exemplo, se-nhores de escravos e “mulatas voluptuo-sas” encontram-se para gerir o brasileiro do futuro, mistura de raças, mas também de classes sociais.

Neste sentido, a obra de Freyre vem sofrendo críticas recentes, sendo apontado como um autor que relega a observação de posições de poder e relações de domi-nação.6 Sua noção de cultura foi acusada de servir de referência para aquilo que hoje é debatido em esferas especializadas como o “mito da democracia racial”. Fa-zendo justiça a Gilberto Freyre, suas obras não tratavam de política, mas sim de cultu-ra. O chamado “mito da democracia racial” é uma construção ideológica a respeito da “natureza política do brasileiro”. A referên-cia à natureza mítica do termo democracia racial se refere a uma suposta propensão “natural do brasileiro” para a neutraliza-ção de diferenças socialmente definidas. Enquanto ideologia, ora versa sobre a his-tória da jurisprudência brasileira e ressalta

4 Não é segredo que a imagem de Freyre é cultuada como parte de um mundo por ele mesmo pro-Não é segredo que a imagem de Freyre é cultuada como parte de um mundo por ele mesmo pro-jetado: a realidade social do engenho. Uma rápida pesquisa em bibliografias disponíveis na internet ou em revistas especializadas revela o lugar que Freyre ocupava nesta ordem, como descendente de “família tradi-cional” pernambucana. Muito material disponível para pesquisa se encontra no site da Fundação Gilberto Freyre (<http://www.fundaj.gov.br/fgf/>), que se define pela iniciativa de “promover estudos tropicológicos e intercâmbio com universidades e instituições científicas e culturais brasileiras e estrangeiras”.

5 Faço referência aqui a um conceito clássico do pensamento social, inicialmente desenvolvido por Émile Durkheim. O conceito de mundo social total foi elaborado, em primeira instância, para o estudo de representações totêmicas em sociedades aborígenes australianas (DURKHEIM, 1985). Em resumo, Durkheim acreditava que o totem – no contexto social – representava a totalidade simbólica de um clã, elemento que produzia e era produzido pela coesão social. Nas sociedades ditas “primitivas”, existiria uma homogeneidade do pensamento mediada por uma totalidade coesa de circunstâncias exteriores ao indivíduo.

6 Remeto-me a um contexto político-intelectual contemporâneo de revisão da literatura de Freyre. O debate das “reais intenções” de Freyre ao redigir Casa-grande & senzala alcançou vários espaços, como, por exemplo, a reunião anual da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty. No evento de 2010, cujo hom-enageado era justamente Gilberto Freyre, organizou-se uma mesa para o debate desta obra, com opiniões diversas a respeito da concepção de raça de Gilberto Freyre. Para mais informações, consultar: <http://www.flip.org.br/> ou <http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/fhc-espanca-gilberto-freyre-homena-gem-e-isso/>.

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– após o regime escravista – a inexistência no território nacional de um sistema jurídi-co de segregação racial. Na forma política, versa sobre a suposta “cidadania universal” brasileira, construindo o indivíduo como um ser social inócuo, livre de qualquer di-ferenciação social.

Do ponto de vista jurídico, a ques-tão começaria a tomar novos rumos com a Constituição de 1988. Em um texto re-conhecido internacionalmente como um exemplo vanguardista no quesito de di-reitos sociais, vemos um retrato do con-texto político da redemocratização: novos sujeitos de direito descritos constitucional-mente para representar uma realidade so-cialmente diversificada, plural. O assunto, entretanto, só se tornaria político com a pressão de movimentos sociais organiza-dos.

Na década de 1990, questões que eram vistas como culturais e jurídicas fo-ram alçadas à condição de disputa política. Deflagra-se uma atuação intensa por parte de militantes do movimento negro pela rei-vindicação de um papel ativo do Estado na promoção de políticas que efetivassem di-reitos garantidos de forma constitucional. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o movimento negro orga-niza a Marcha Zumbi dos Palmares para ser um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, o líder do maior, mais duradouro e mais famoso símbolo da luta dos negros no Brasil con-tra o regime escravocrata.7

O produto desta marcha transcreveu--se em um documento entregue ao presi-dente da República, no qual se expressava a demanda por políticas que atendessem a uma dívida histórica para com a população negra. Em decorrência desta demanda,

instaura-se em 21 de novembro de 1996 um grupo de trabalho interministerial que discutiria o problema do racismo no Brasil e possíveis medidas para implantação de políticas afirmativas relativas ao tema.

No ano de 2001, a Lei 3.708/01, do Estado do Rio de Janeiro, inaugura um novo conceito – ao menos para o Brasil – político-jurídico, considerando a diferença como termo para promover a igualdade. Com aprovação das cotas para estudantes negros e pardos nas universidades do Rio de Janeiro, a questão da raça passa a fazer parte da política de algumas universida-des.

No início do governo Lula, a medida se amplia para outras universidades brasi-leiras e outras experiências são adotadas em diversas modalidades de ensino e no mundo do trabalho. No ano de 2003, o go-verno federal sanciona a Lei nº 10.639/03, que altera a lei de diretrizes e bases da educação nacional, instituindo a obrigato-riedade do ensino de cultura e história afri-cana no currículo do ensino fundamental e médio.

No decorrer deste percurso – e na relação entre política, jurisprudência e cul-tura –, observamos a emergência de um novo sujeito social. Neste novo contex-to, a identidade é por vezes uma questão jurídica (um limite daquele que é alvo de direito), política (dinâmica pela afirmação antagônica individual) e cultural. Dez anos depois da aplicação das primeiras políti-cas afirmativas, percebemos como uma discussão que perpassa espaços e tempos pode hoje ser considerada de domínio da esfera de direito social.8

Antes de ser uma política públi-ca ou um tema de discussão acadêmica, o debate sobre a raça no Brasil se coloca

7 Disponível em: <http://www.palmares.gov.br:8081/html/materias/marcha1995.htm>.8 Para mais informações sobre a história do trâmite de aprovação de políticas afirmativas no Brasil,

consultar: PINHEL, André Marega; SILVEIRA, Marcos Silva da; COSTA, Hilton (Org.). Uma década de políticas afirmativas: panorama, argumentos e resultados. Ponta Grossa: UEPG, 2011.

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48 Identidades e identificações

como representação central de nosso “ser social”. Mais do que mera expressão cul-tural, a questão da raça é um importante elemento em torno do qual se aglomeram processos de criação, organização e valo-

rização social. Resta saber se a identidade pode existir socialmente como “elemento da diferença” e, ao mesmo tempo, servir como bandeira na promoção da igualdade social.

Leituras complementares

Identidade e coesão social

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 12. ed. São Paulo: Nacional, 1985.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. For-ma e razão da troca nas sociedades arcai-cas. In: ______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974.

______. Uma categoria do espírito huma-no: a noção de pessoa, a noção do “eu”. In: ______. Sociologia e Antropologia. v. 1. São Paulo: EDUSP, 1974.p. 207- 241.

Nação

ANDERSON, Benedict. Comunidades ima-ginadas: reflexões sobre a origem e difu-são do nacionalismo. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2008.

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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história patriarcal no Brasil – 1. 42. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

PARSONS, Talcott. O sistema das socieda-des modernas. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Ltda., 1974.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vo-cações. São Paulo: Cultrix, 1967; Paulinas, 1989.

______. Economia e sociedade: fundamen-tos da sociologia compreensiva. v. 1. Brasí-lia: EdUnB, 1991.

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Metodologia da pesquisa educacional

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Neste trabalho, o objetivo é explicitar especificidades da pesquisa em Educação e propor alguns esclarecimentos para seu aprimoramento. Primeiramente, será apre-sentada uma breve avaliação da trajetória da pesquisa educacional no Brasil, com seus principais dilemas e desafios. Em se-guida, em função dessas questões, serão abordados elementos essenciais para essa discussão, como pesquisa, método, teo-ria e metodologia, com vistas a contribuir para o desejável e necessário debate sobre o tema. Destaca-se que o texto constitui-se de uma introdução ao tema, ou seja, não pretende esgotar o assunto, nem resolvê--lo.

1. Pesquisa educacional no Brasil: breve balanço

Provavelmente, o primeiro trabalho que avalia a produção do conhecimen-to no campo educacional no Brasil é o de Gouveia (1971), no qual a autora aborda as condições institucionais em que as pes-quisas vinham sendo realizadas até então, como a negligência que sofriam nos orça-mentos das universidades e o papel secun-dário que desempenhavam na carreira do professor universitário. Também indica a necessidade de ser realizado um balanço detalhado e sistemático da produção edu-cacional no país, com vistas a “evitar a mul-

tiplicação de estudos redundantes” (1974, p. 497), e ressalta que muitos dos traba-lhos publicados “não se referem a pesqui-sas propriamente ditas” (1976, p. 77), dada sua fragilidade:

[...] o predomínio de certa corren-te [de pensamento] durante deter-minado período, com prejuízo do apoio que se poderia dispensar a outros tipos de orientação, bem como a substituição, em tempo re-lativamente curto, de uma orienta-ção por outra, pode prejudicar o de-senvolvimento da pesquisa em dois sentidos: primeiro, não se chega a colher os frutos de uma tradição de trabalho suficientemente amadu-recida; em segundo lugar, não se criam as condições necessárias para a realização de projetos interdisci-plinares (GOUVEIA, 1971, p. 4-5).

A fragmentação das pesquisas tam-bém é detectada por Mello (1983), que dis-cute dois problemas históricos e indissociá-veis, a pobreza teórica e a inconsequência metodológica:1 “o que falta é um modelo teórico consistente, explicitado e assumi-do enquanto tal” (p. 69), do que decorre a inconsequência metodológica identifica-da. Esse panorama, ao mesmo tempo em que é ilustrado por pesquisas descritivas, contribui para pesquisas imediatistas e su-perficiais, que pouco avançam no conhe-cimento da área, como indicava Gouveia (1971):

Pesquisa em Educação: uma introdução

Nadia Gaiofatto Gonçalves*

* Doutora em Educação pela USP. Professora do Departamento de Teoria e Prática de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR. E-mail: [email protected]

1 De certa forma, todos os trabalhos abordados neste tópico mencionam estas questões, mas este é o primeiro a enunciá-los tão claramente.

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[...] a pressa em obter resultados para pronta utilização pode levar a estudos superficiais, [...] mas que, por não chegarem aos mecanismos básicos de causação dos fenôme-nos, pouco ou nada oferecem em termos de explicação. [...] (p. 5).Os estudos, em geral, são explora-tórios e descritivos. Alguns não pas-sam de simples levantamentos de dados [...]. Percebe-se que o equi-pamento de análise é, em geral, li-mitado. (p. 9).Os projetos [...] originam-se, fre-qüentemente, da preocupação com problemas “práticos”. Necessaria-mente complexos, tais problemas são, em sua inteireza, convertidos em tópicos de pesquisa que, vaga-mente, levam diretamente à coleta de dados, sem maiores preocupa-ções com a operacionalização de conceitos [...]. Disso resultam pro-jetos demasiadamente ambiciosos que jamais se concluem, ou que produzem relatórios com alguns da-dos e muitas especulações, ou mui-tos dados e poucas generalizações. (p. 9).

Tais problemas estão presentes na análise de Pedro Goergen (1986), que per-cebe a tendência à pesquisa empírica vol-tada para a compreensão da realidade edu-cacional no nível interno como um avanço, mas considera como dificuldades da área sua subdivisão em dois grandes blocos, a pesquisa teórica e a pesquisa empírica, que se opõem mutuamente; pulverização, isolamento e descontinuidade das pesqui-sas; falta de divulgação; e persistência de modismos – apesar de verificar o início do debate crítico sobre a apropriação de re-ferenciais teóricos. Em decorrência desse balanço, indica que um dos grandes desa-fios da área é a “integração entre a teoria que parte do conhecimento empírico e o conhecimento empírico que procura a ex-plicação maior através da teoria” (p. 13).

Estas preocupações são comparti-lhadas por José Mário Pires Azanha (1992), que destaca, entre outros, o praticismo, tendência que enfatiza as questões práti-

cas e que levou à rarefação de esforços te-óricos que pudessem “tornar interessante a investigação educacional empírica. Para-doxalmente, parece que o efeito do ‘prati-cismo’ é a penúria de resultados práticos” (p. 21); e o abstracionismo, que não pode ser confundido com pesquisa teórica e que se caracteriza pela tentativa de descrever ou explicar situações educacionais reais “desconsiderando as determinações espe-cíficas de sua concretude” (p. 42).

Mais recentemente, Alves-Mazzotti (2001) discute a “Relevância e aplicabilida-de da pesquisa em educação”, a partir da deficiência teórico-metodológica e de ele-mentos que devem ser mais valorizados e incorporados à produção da área, como a teorização e a transferibilidade do conheci-mento, a objetividade e a revalorização do rigor científico. Entende que a busca pela relevância e pelo maior rigor das pesqui-sas é uma meta política, tendo em vista a responsabilidade que se deve assumir en-quanto pesquisador e as possibilidades de contribuição que a pesquisa realizada sob essa perspectiva podem trazer para a com-preensão da realidade e para as tomadas de decisão na área.

Sobre a questão da objetividade e da revalorização do rigor científico, cabe um esclarecimento. No Brasil, até meados dos anos 1980, foram predominantes os estudos quantitativos, no campo educa-cional. Estes eram associados a uma abor-dagem positivista de ciência, em relação à objetividade e neutralidade entendidas como desejáveis, e ao tipo de dado con-siderado legítimo para a produção do co-nhecimento, naquele momento. Quando começa a ser divulgada a possibilidade de pesquisas qualitativas para o estudo de questões que os dados quantitativos não permitiam compreender, houve um movi-mento de repúdio a quaisquer caracterís-ticas relacionadas à perspectiva anterior. Um extremo que fragilizou imensamente o reconhecimento científico de investiga-

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53Nádia Gaiofatto Gonçalves

ções qualitativas no Brasil, nos anos 1980 e mesmo 1990, porque muitos pesquisa-dores recusavam-se a explicitar seu refe-rencial teórico-metodológico, a realizar um planejamento de sua pesquisa ou, ainda, a estabelecer certo distanciamento do objeto pesquisado. Tais atitudes eram justificadas como inerentes à pesquisa qualitativa. Aos poucos, aqueles que a defendiam perce-beram essa distorção e o debate sobre a objetividade e o rigor na produção de pes-quisas qualitativas recomeçou, desta vez abordando parâmetros para esse tipo de estudo.

André (2001), além de discutir os ru-mos da pesquisa no Brasil, a partir dos anos 1980, desenvolve o trabalho a partir das se-guintes questões: “a. O que caracteriza um trabalho científico? Qual a relação entre conhecimentos científicos e outros tipos de conhecimento? [...] b. Como julgar o que é uma boa pesquisa? Quem define esses critérios? [...] c. Que procedimentos devem ser seguidos para manter o rigor na coleta e análise dos dados?” (p. 55). A autora tam-bém problematiza as condições reais de produção do conhecimento nos programas de pós-graduação do país e defende que a proposta e o debate de critérios de rigor e qualidade para avaliação das pesquisas da área educacional, enquanto tarefa coletiva e séria, é algo necessário e urgente.

Com base nos questionamentos apresentados por estes autores acerca da trajetória da pesquisa educacional no Bra-sil, pode-se destacar os seguintes proble-mas principais, identificados como perma-nências: fragilidade teórico-metodológica; pulverização e irrelevância dos temas; adoção acrítica de modismos nos quadros teórico-metodológicos; preocupação com

aplicabilidade imediata dos resultados; di-vulgação restrita dos resultados e pouco impacto sobre as práticas e políticas da área.2

Parece haver consenso quanto às razões para a existência e para a perma-nência destes problemas no campo educa-cional e acerca de três elementos: o início da trajetória da pesquisa em Educação no Brasil estar em órgãos governamentais e a maneira como foi transferida essa res-ponsabilidade para instituições de ensino superior; o modelo de pós-graduação es-tabelecido no Brasil, ao longo das últimas décadas do século XX, que favoreceu o ali-geiramento das pesquisas; e uma deficien-te formação de pesquisadores, tanto na graduação como na pós-graduação.3

Todos os elementos envolvidos se inter-relacionam e, de certa forma, se re-forçam mutuamente. Aos fatores externos devem ser acrescidas as especificidades da área de Educação como campo de conhe-cimento, que, apesar dos problemas, vem construindo legitimidade e reconhecimen-to, em decorrência de esforços e do inte-resse de muitos em discutir os desafios – a maioria deles, cabe lembrar, não exclusi-vos da Educação.4

Azanha (1992) ressalta que, apesar da constatação dessas deficiências, deve--se reconhecer que o esforço desenvolvido até então não pode ser invalidado e que não há como afirmar que não tenha algum valor, sob “o risco de cometer um erro ló-gico e histórico” (p. 16), considerando-se que pode ter ao menos levado ao debate, à crítica e contribuído para a constituição do campo de conhecimento.

Finalmente, em especial nas últimas três décadas, observa-se a constituição e

2 Não foi localizado estudo mais recente sobre o tema, mas entende-se que se os problemas identi-Não foi localizado estudo mais recente sobre o tema, mas entende-se que se os problemas identi-ficados não estão presentes com a mesma intensidade, atualmente, é improvável que já tenham sido total-mente solucionados. No aspecto histórico de constituição do campo, sugere-se a leitura de Ferreira (2009).

3 Sobre esta discussão, ver principalmente Goergen (1986), Brandão (1986) e Warde (1990).4 Ver Charlot (2006).

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o fortalecimento de grupos de pesquisa na área e a atuação da ANPEd – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação5 – como elemento agregador da produção de conhecimento em Educação no Brasil. Ao mesmo tempo em que esses esforços contribuem para a tentativa de su-peração de alguns dos problemas identifi-cados, também os evidenciam.6

Nos tópicos que se seguem, alguns esclarecimentos para a superação de de-ficiências identificadas na produção da pesquisa educacional são apresentados, visando constituir-se em contribuição para iniciantes ou interessados, uma vez que, embora insistentemente lembradas, nem sempre os trabalhos que as abordam se propõem a esclarecer termos e procedi-mentos. Paradoxalmente, eles deveriam ser óbvios no meio acadêmico, mas o seu desconhecimento parece ser parte ineren-te das fragilidades abordadas. Entende-se que muitos dos pressupostos assumidos por aqueles que avaliam a produção em Educação são desconhecidos ou não preci-samente explicitados aos leitores, limitan-do efeitos do debate necessário ou mesmo contribuindo menos do que poderiam no esclarecimento daqueles que adentram ao campo, possíveis futuros pesquisadores, dos quais se espera a superação dos re-correntes problemas.

Por outro lado, é certo que tal esfor-ço de esclarecimento ultrapassa em mui-to o espaço aqui disponível, daí a indica-ção de leituras que permitam aprofundar a abordagem introdutória e didática pro-posta e a escolha em tratar da produção do conhecimento como processo, e não de elementos externos a ele, como os progra-mas de pós-graduação.

2. Senso comum e conhecimento científico

Embora senso comum e conheci-mento científico sejam dimensões de co-nhecimento, podem ser estabelecidas al-gumas distinções entre eles. O senso co-mum é constituído espontaneamente e se pode ter relação com algum conhecimento científico, comumente apropria-se deste de forma generalizante, nem sempre raciona-lizada, não sendo necessárias comprova-ções para que explicações sejam tomadas como verdade. O senso comum constitui grande parte das crenças cotidianas, nas quais são apoiadas as experiências e prá-ticas.

Por outro lado, não há uma defini-ção precisa para conhecimento científico, devido às acepções que áreas distintas lhe atribuem, mas pode-se afirmar que deve resultar de trabalho de investigação e pes-quisa racional, planejado, rigoroso e siste-mático. Ele não decorre necessariamente do senso comum, embora possa partir dele como problema de pesquisa.

3. Pesquisa científica ou acadêmica

O termo pesquisa é utilizado de di-versas formas, conforme o espaço social.7 Para fins deste trabalho, pesquisa é com-preendida como “atividade de investigação capaz de oferecer (e, portanto, produzir) um conhecimento ‘novo’ a respeito de uma área ou de um fenômeno, sistematizando--o em relação ao que já se sabe a respeito dela(e)” (LUNA, 1999, p. 26).

5 Ver o site: <www.anped.org.br>.6 Ver Gatti (2001).7 Por exemplo, quando se diz “vou pesquisar o preço de tal produto”, ou algumas pesquisas genéri-Por exemplo, quando se diz “vou pesquisar o preço de tal produto”, ou algumas pesquisas genéri-

cas e mal orientadas e utilizadas, solicitadas no âmbito escolar, como “pesquisem sobre a independência do Brasil” – nestes casos, pesquisa é utilizada simplesmente como sinônimo de busca, comparação ou como consulta e cópia.

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Neste caso, ressaltam-se os aspec-tos que caracterizam a pesquisa acadêmi-ca ou científica:8

– é uma atividade de investigação: no âmbito acadêmico, excede em muito a noção do senso comum. No dia a dia, o uso simplista do termo pode ser cabível, mas não no meio acadêmico. Assim, quando Luna se refere à atividade de investigação, trata de uma ação desenvolvida intencio-nalmente, com um planejamento, prepara-ção adequada do pesquisador (formação, acompanhamento, orientação), de forma sistemática, organizada, crítica e criativa;

– a produção de um novo conheci-mento: seu objetivo principal, sua função, sua razão de ser é o avanço na compreen-são de um fenômeno ou aspecto da reali-dade. Não é preciso ser absolutamente iné-dito, mas deve contribuir para que haja um melhor entendimento de uma parte dele, delimitada previamente pelo pesquisador. A contribuição almejada com uma pesqui-sa é que, de forma competente, rigorosa e séria, possa auxiliar a esclarecer um pouco mais sobre o tema e recorte escolhidos, de forma a ser científica e socialmente rele-vante. Deve avançar na análise, na expli-cação do que está sendo pesquisado, ex-plicitando o que está implícito, indo além da descrição do óbvio, no que o referencial teórico ou analítico é fundamental;9 e

– a sistematização do novo conheci-mento em relação ao que já se sabe a res-peito dele: a produção do conhecimento científico é um processo necessariamente coletivo. O pesquisador não pode ignorar

o que já foi produzido e discutido a respei-to de seu tema, para não correr o risco de fazer uma pesquisa que já tenha sido reali-zada ou desconhecer um trabalho que po-deria ser crucial para sua investigação.10 O diálogo com o conhecimento já produzido, assim, faz parte de todo o processo da pes-quisa: tem início na definição do tema, na sua delimitação, na escolha do referencial teórico-metodológico, continua durante o desenvolvimento da pesquisa, deve obri-gatoriamente estar presente na discussão e análise dos dados, assim como na sua divulgação e discussão em eventos acadê-micos e publicações da área.

4. Especificidades das Ciências Humanas e da Educação

Devido à multiplicidade de objetos de estudo, são diversas as possibilidades de classificação das ciências e mesmo essa categorização mudou e continua mudan-do, ao longo do tempo, com a especiali-zação crescente e algumas fronteiras entre áreas diferentes se tornando muito perme-áveis, o que origina novas especificidades. Considerando o fim introdutório e didático deste trabalho, pode-se pensar em duas grandes áreas, as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, que, por sua vez, pos-suem subáreas.11

A história e a filosofia da ciência ex-plicam algumas objeções feitas às Ciên-cias Humanas, por parte das Ciências Na-turais.12 Isso porque as Ciências Naturais

8 Neste trabalho, a partir desse momento, designada apenas como pesquisa.9 Sobre esse aspecto, ver Azanha (1992), Oliveira (1998) e Laville e Dionne (1999). 10 Sobre a revisão da literatura, ver Alves-Mazzotti (2002) e Luna (2005).11 Por vezes utiliza-se a expressão Ciências Sociais como sinônima de Ciências Humanas. A divisão

ampla aqui utilizada é proposta por Laville e Dionne (1999) e Chauí (1995); no Brasil, a grande referência para a classificação das áreas de conhecimento é o CNPq (muito mais fragmentada), que pode ser consul-tada em: <http://www.cnpq.br/areasconhecimento/index.htm>.

12 As principais críticas são: a imprevisibilidade dos fenômenos humanos; a dificuldade ou impos-As principais críticas são: a imprevisibilidade dos fenômenos humanos; a dificuldade ou impos-sibilidade de quantificação dos fenômenos; a possível interferência da subjetividade dos pesquisadores; a inviabilidade de utilização de pesquisas experimentais. Para introdução à história e filosofia da ciência, ver Granger (1994), Laville e Dionne (1999) e Araújo (1993).

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começaram a existir e se organizar antes das Humanas, que, por algum tempo, bus-caram impor-se as mesmas condições de validade científica estabelecidas pelas Na-turais. Com o tempo, ficou clara a inade-quação de muitos desses critérios para as Humanas, considerando-se a especificida-de do seu objeto: o homem e a sociedade. Porém, isso não isenta as Ciências Huma-nas da necessidade de estabelecer critérios de validade e objetivação, o que acaba por ser feito no interior de cada campo de co-nhecimento: em todo campo são travadas lutas simbólicas por poder e legitimidade; no caso do campo científico ou acadêmico, uma dessas disputas envolve os paradig-mas. Em função daquele hegemônico em dado momento é que os agentes perten-centes a este campo definirão o que é uma pesquisa “válida”, o que leva a mudanças em alguns dos critérios de validade, ao longo do tempo.

No caso específico da Educação, discute-se sua constituição como campo de conhecimento, quanto à definição de seu objeto e de um referencial teórico-me-todológico próprio, na medida em que o diálogo e a apropriação que pesquisado-res da área fazem de outros campos de co-nhecimento permeiam significativamente a produção educacional.13 Apesar dessas discussões, a Educação identifica-se como parte das Ciências Humanas.14

5. Teoria, método e metodologia

A fragilidade na explicitação do referencial teórico-metodológico é um dos

desafios a serem superados pela produção em Educação, de acordo com os autores mencionados no tópico 1.

Como em todo campo de conheci-mento, existem distintas possibilidades ex-plicativas e o pesquisador deverá conhecê--las, identificando aquela mais pertinente para o fenômeno ou aspecto da realidade que pretende investigar e, consequente-mente, quais caminhos são indicados pe-los pressupostos epistemológicos.15 Nesse sentido, a teoria assume papel primordial no processo investigativo, como indica Po-pper (1993): “Teorias são redes, lançadas para capturar aquilo que denominamos ‘o mundo’: para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar as malhas da rede cada vez mais estreitas” (p. 61-62).

Uma teoria é uma explicação pos-sível sobre determinado fenômeno ou as-pecto da realidade, construída a partir de conceitos articulados e coerentes entre si, dos quais deriva um conjunto de hipóte-ses. Esse sistema de conceitos e hipóteses, no caso das Ciências Humanas, visa à ex-plicação de regularidades, mecanismos ou dinâmicas sociais, existentes por trás do fenômeno, ou seja, não busca somente a descrição do que ele é, tal como pode ser percebido, mas a compreensão ou expli-cação do por que ele é ou ocorre daquela forma. Toda teoria é parcial e limitada por vários elementos, como a formação de seu autor, o contexto em que foi constituída, o fenômeno que visa explicar. Assim, todo aquele que se dispõe a utilizar uma teoria deve conhecer exigências, possibilidades e limites explicativos que lhe são inerentes

13 Um exemplo pode ser a História da Educação: ela é uma subdivisão da História, da Educação, ou uma área à parte? Embora a grande base teórica para sua constituição como campo de conhecimento seja derivada da História, já há produções e conceitos constituídos internamente, como os de cultura escolar.

14 A polêmica questão do reconhecimento da Educação como campo de conhecimento pode ser ob-A polêmica questão do reconhecimento da Educação como campo de conhecimento pode ser ob-servada, por exemplo, no fato de Laville e Dionne (1999) e Chauí (1995) não a mencionarem, nem quando tratam das Ciências Humanas. Porém, a Educação consta no quadro de áreas do CNPq nas Ciências Huma-nas, juntamente com outras possibilidades a ela relacionadas, não necessariamente como subdivisões.

15 Epistemologia é sinônimo de teoria do conhecimento; é a procura para responder questões sobre a capacidade de o homem conhecer e como ele pode conhecer.

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e saber que a apropriação e uso que faz dela para explicar outros aspectos, tempos e recortes é responsabilidade sua, e não do autor teórico original.

Toda teoria tem por base pressu-postos acerca de determinado fenômeno ou aspecto da realidade que se propõe a explicar e sobre um caminho adequado para construir essa resposta. Esses pres-supostos decorrem do método. É por isso que teoria é indissociável de método e que a expressão referencial teórico-metodo-lógico é recorrente no meio acadêmico. Existem mais teorias do que métodos, por-que um mesmo método pode ser utilizado como base para a proposição de teorias que abrangem distintos aspectos da rea-lidade.

Na construção do conhecimento científico, o método assinala “um percurso escolhido entre outros possíveis” (OLIVEI-RA, 1998, p. 17). Sobre sua utilização:

Não é sempre [...] que o pesquisa-dor tem consciência de todos os as-pectos que envolvem este seu cami-nhar; nem por isso deixa de assumir um método. Todavia, neste caso, corre muitos riscos de não proce-der criteriosa e coerentemente com as premissas teóricas que norteiam seu pensamento. Quer dizer, o mé-todo não representa tão somente um caminho qualquer entre outros, mas um caminho seguro, uma via de acesso que permita interpretar com a maior coerência e correção possíveis as questões sociais pro-postas num dado estudo, dentro da perspectiva abraçada pelo pesquisa-dor. (p. 17)

Porém, o método não deve ser com-preendido como um roteiro rígido de re-gras às quais o objeto deve se submeter e ser formatado, nem como garantia de êxi-to; não há um método correto. Embora ele seja essencial, por si só não garante a qua-lidade de uma pesquisa: “assim como as bússolas são inúteis a quem não escolheu o seu porto de destino, também os roteiros

metodológicos são ilusórios a quem não definiu uma perspectiva teórica a respeito da realidade” (AZANHA, 1992, p. 78, grifos no original).

A escolha do referencial teórico--metodológico é orientada por um tipo de resposta que se espera encontrar – defi-nida pelo pesquisador, no sentido de que a explicação selecionada traz inerentes algumas hipóteses a serem investigadas. O investigador deve estar aberto à possi-bilidade de encontrar respostas diferentes daquelas que espera, porém, ciente de que o referencial que elegeu condicionará bas-tante as possíveis respostas que encontra-rá.

A metodologia, por sua vez, é deri-vada deste referencial. Metodologia consti-tui a operacionalização do método em fun-ção da investigação realizada, envolvendo fontes, instrumentos, critérios e procedi-mentos. Após o pesquisador explicitar o referencial teórico-metodológico que utili-zará e os conceitos relevantes para sua in-vestigação, deve detalhar, na metodologia: quais são as fontes – primárias e secundá-rias – necessárias, se são suficientes para representar os conceitos, se estão acessí-veis; quais são os instrumentos que utiliza-rá para coletar os dados, se são adequados para captar as informações relevantes para os conceitos; como fará a análise desses dados e se essa proposta é adequada ao tipo de dado que será tratado. Em todas as etapas da metodologia, é preciso justificar e explicitar a pertinência destas escolhas em relação ao problema de pesquisa e ao referencial.

6. Teorias, métodos e metodologias nas Ciências Humanas e na pesquisa educacional

Em relação às teorias, aos métodos e às metodologias possíveis nas Ciências Hu-

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manas, é proposta arriscada apresentar uma lista de quais são – dadas as múltiplas cor-rentes e abordagens e ao risco de simplifica-ção. Porém, considerando os fins introdutó-rios deste trabalho, serão indicadas algumas possibilidades, para orientação inicial.

Há alguns métodos marcantes nas Ciências Humanas, que de alguma forma sempre estão presentes, quanto a seus pressupostos epistemológicos, em pesqui-sas da área educacional. Nos quadros que seguem, apresenta-se uma síntese de pos-tulados de cada método.16 É preciso res-saltar que, de acordo com o autor que os aborda, alguns métodos são unidos ou um método compartilha princípios de outro, ou mesmo é derivado de outro, por isso essa classificação não é definitiva, nem es-tática, somente ilustrativa.

O Positivismo traz em seus princí-pios, de forma inerente, a discussão acer-ca da cientificidade das Ciências Humanas, uma vez que em geral são inviáveis para estas.17 Não é incomum, nas Ciências Hu-manas e na Educação, haver referência com sentido pejorativo ao Positivismo – embora muitas vezes superficial e sem especificar exatamente o que está sendo designado como positivista. No caso brasileiro, uma distorção recorrente é a associação desse

método somente a dados quantitativos e a menção à pressão que essa perspectiva exerceu sobre a pesquisa educacional, até que a possibilidade de estudos qualitativos começasse a se fortalecer em legitimidade e reconhecimento acadêmicos.

Laville e Dionne (1999) afirmam que embora “a pesquisa de espírito positivista aprecie números” e seja difícil a quantifi-cação do “real humano” – representações, valores –, o debate entre quantitativo e qualitativo parece “frequentemente inútil e até falso” (p. 43), pois é possível utilizar procedimentos quantitativos, qualitativos ou ambos combinados; a escolha do pes-quisador deverá decorrer essencialmente do problema de pesquisa.18

Tal como o Positivismo, o Funciona-lismo é por vezes mencionado de forma pejorativa na Educação. Neste caso, a crí-tica refere-se a parecer uma abordagem muito naturalizadora das diferenças e desi-gualdades sociais, na medida em que bus-ca explicá-las, e suas inter-relações, mas não se propõe a transformá-las. Muitos de seus pressupostos envolvem a “harmonia de interesses na ordem normativa como inerente a todas as sociedades”, o que não deixa lugar “para a mudança social, para a história” (ARAÚJO, 1993, p.105-106).

16 Toda classificação tem suas limitações, mas entende-se que, para os fins deste trabalho, estes são suficientes; a escolha teve como base os trabalhos de Araújo (1993), Richardson (1999) e Bruyne, Herman e Schoutheete (1991) – todos sugeridos para leitura de aprofundamento no tema. Os Quadros 1 a 5 foram elaborados a partir de: * Bruyne, Herman e Schoutheete (1991, p. 136-152); e ** Richardson (1999, p. 32-54). Os asteriscos indicam a fonte mais direta de cada informação.

17 Talvez uma única exceção parcial seja a Psicologia, pois em alguns de seus ramos é possível, por exemplo, realizar experimentos controlados.

18 Sobre estudos quantitativos e qualitativos em Educação, ver: Gatti (2004) e Bogdan e Biklen (1994).

QUADRO 1 – POSTULADOS DO POSITIVISMO

Posição epistemológica Objetivo ReferênciasRecusa da apreensão imediata da realidade, da compreensão subjetiva dos fenômenos (psicologização) e da pesquisa intuitiva. Defende a objetividade do pesquisador. Pesquisa desenvolvida por meio de dados da experiência e das leis gerais relativas aos fenômenos sociais, passíveis de generalização – as leis positivas ou naturais.*

Estabelecer leis gerais, a partir da identificação de regularidades e da generalização empírica, pois o conhecimento dessas leis pode favorecer a eficácia na ação humana.*

Spencer, Comte, Descartes, Carnap, Russell.

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Segundo Richardson (1999), o es-truturalismo contribuiu muito para o de-senvolvimento das Ciências Sociais no sé-culo XX: “Ao negar a realidade como algo singular, rejeitar o império da experiência sensível e considerar insignificante o estu-do dos fatos isolados, constitui-se o estru-turalismo em uma alternativa significativa para todas as formas de positivismo” (p. 43). Uma das críticas feitas ao estruturalis-mo envolve a restrita atenção à possibilida-de de transformação dos fenômenos.19

No caso da Compreensão, muitas vezes chamada de interpretativismo, não se nega a produção humana de estruturas, mas essas só existem na medida em que afirmadas e reafirmadas na ação huma-

na; são um misto de dupla influência, das pessoas20 que as criam e dão significado e da influência dessas estruturas sobre as ações das pessoas, alterando, no curso da história, tanto pessoas quanto estruturas. A principal crítica feita à Compreensão é o fato de se tratar de um postulado analíti-co, que busca explicação para fatos únicos, apresentando pouco uso para predição ou interpretação em outros contextos.

Uma das principais críticas a esse método refere-se à tendência a um deter-minismo causal, na medida em que “a ri-queza e complexidade históricas ultrapas-sam [...] o mecanicismo do conflito polar simples. A história dificilmente se acomo-da a esta visão do conflito de classes e de

QUADRO 2 – POSTULADOS DO FUNCIONALISMO

Posição epistemológica Objetivo ReferênciasConcepção totalizante, sistêmica, dos fatos sociais – cada um deles é englobado num conjunto integrado e cada elemento determina um certo estado da totalidade, a qual condiciona seu funcionamento de conjunto.*

Apreender cada instituição em sua função e contribuição à manutenção do sistema, pois a instituição é essencialmente a resposta a uma necessidade da sociedade, é uma condição útil ao seu funcionamento. Investiga as formas duráveis da vida social e cultural, produtos de uma institucionalização: os papéis, as organizações, as normas etc.**

Durkheim, Mauss, Malinowski, Merton

QUADRO 3 – POSTULADOS DO ESTRUTURALISMO

Posição epistemológica Objetivo ReferênciasProcura apreender propriedades intrínsecas de certos tipos de ordens – simbólicas, de signos e de sentido.*

Considera que a estrutura nunca existe na realidade concreta, mas é ela que define o sistema de relações e transformações possíveis dessa realidade.**

Desvendar o sentido atribuído à estrutura-sistema, por meio de análise estrutural desenvolvida ao nível da linguagem. Desvendar a representação ideológica que está na base da estrutura.**

Saussure,Jakobson, Barthes, Lévi-Strauss

QUADRO 4 – POSTULADOS DA COMPREENSÃO

Posição epistemológica Objetivo ReferênciasA apreensão das totalidades significativas e históricas está subordinada à compreensão prévia da ação social – motivos, intenções, projetos etc.*

Apreender e explicitar o sentido da atividade social individual e coletiva enquanto realização de uma intenção, pois a ação humana é a expressão de uma consciência, o produto de valores, a resultante de motivações. Investiga fenômenos singulares e únicos: um acontecimento é apreendido enquanto elemento original e específico.*

Weber, Giddens

19 Richardson indica a existência de três tipos de estruturalismo: o fenomenológico (Merleau-Ponty), o genético (Piaget) e o de modelos (Lévi-Strauss, Althusser).

20 Neste trabalho, optou-se por utilizar o termo pessoas, que é teoricamente neutro, ao invés de indivíduos, sujeitos ou agentes, que têm marcas teóricas específicas.

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60 Pesquisa em educação: uma introdução

sua superação dialética, em termos de leis e de devir determinados” (ARAÚJO, 1993, p. 85). Porém, como em todos os métodos citados, há desdobramentos e novas pro-posições, como é caso da Escola de Frank-furt.21

Os postulados de cada método apresentado comportam variações de in-tensidade, indo de um mundo de constru-ção subjetiva até o outro extremo, objetivo. Dessa forma, pode haver, por exemplo, es-truturalismos mais próximos da subjetivi-dade, nos quais é considerada a produção de estruturas sociais pelas pessoas, esta-belecendo-se uma relação de construção recursiva, tanto delas quanto das estrutu-ras. De outro lado, pode haver posições estruturalistas que têm o mundo como existência independente das pessoas e que tendem a entender as ações como resulta-do das posições estruturais e papéis ocu-pados pelas pessoas.

Além disso, é preciso ressaltar que todo método, como toda teoria, tem limi-tações. Alguns se inter-relacionam ou mes-mo são desdobramentos ou conjunções de outros – sendo que tais ramificações não foram aqui abordadas. Também há dife-rentes apropriações deles por diferentes teorias, o que leva a muitas possibilidades de variantes teórico-metodológicas e a dis-tintas maneiras de relacionar os autores a esses referenciais.

As teorias, como afirmado no Tópi-co 5, são muito diversas e amplas, defini-

das a partir das áreas de conhecimento e dos fenômenos ou aspectos da realidade que se propõem a explicar e de sua apro-priação e relação com o método. Seria impossível apresentar uma relação delas, dada a multiplicidade de aspectos que po-dem ser estudados, mesmo considerando apenas a Educação. Porém, pode-se afir-mar que nas Ciências Humanas, que têm como objeto o homem e a sociedade, há dois extremos: de um lado, estão as teo-rias mais preocupadas em compreender as pessoas e como elas constroem suas expli-cações da realidade e suas práticas, mes-mo quando não têm consciência disso; de outro, aquelas que se dispõem a explicar a estrutura, o que é concreto, ou seja, a realidade independente da vontade ou per-cepção das pessoas, contemplando inclu-sive processos e práticas cristalizados, aos quais as pessoas estão submetidas, como funções sociais. Entre estes dois extremos, as teorias se distribuem. Explicações inter-mediárias admitem, por exemplo, que as pessoas criam a sua realidade ao longo da história, ou seja, seus pensamentos e es-colhas ocorrem simultaneamente à ação, obtendo resultados concretos, mas consi-derando que estão também limitadas no tempo e no espaço. Essas diferentes pers-pectivas estão articuladas, como se pode perceber, a proposições epistemológicas de distintos métodos. Porém, cabe lembrar que por vezes há teorias derivadas de um único método, mas com abordagens dis-

QUADRO 5 – POSTULADOS DO MATERIALISMO DIALÉTICO

Posição epistemológica Objetivo ReferênciasConsidera que o mundo exterior existe independentemente da consciência; sua forma de aproximação dos fenômenos é dialética. Tem por princípios a conexão universal dos objetos e fenômenos; o movimento permanente e o desenvolvimento. Explicita leis e categorias.**

Apreender as relações dialéticas estabelecidas historicamente entre o homem, a natureza e a sociedade – determinadas pelo trabalho e pelos modos de produção.**

Marx, Engels

21 Esta Escola tinha como uma de suas metas básicas “a incorporação sistemática de todas as dis-Esta Escola tinha como uma de suas metas básicas “a incorporação sistemática de todas as dis-ciplinas da pesquisa social científica em uma teoria materialista da sociedade, facilitando assim a mútua fertilização entre a ciência social acadêmica e a teoria marxista” (HONNETH, 1996, p. 242).

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61Nádia Gaiofatto Gonçalves

tintas, devido às diferentes ênfases e apro-priações que fizeram.

Por exemplo, o caso do método es-truturalista. Pierre Bourdieu identifica sua obra – que constitui a Teoria dos Campos – com o estruturalismo, porém, reformula alguns de seus princípios, como a tendên-cia de ignorar o sentido que os agentes dão a suas ações, e acrescenta em sua análise a noção de estratégia à de regra. Segundo ele, sua dúvida em relação ao estruturalismo era que “queria reintroduzir de algum modo os agentes, que Lévi-Strauss e os estrutu-ralistas, especialmente Althusser, tendiam a abolir, transformando-os em simples epife-nômenos da estrutura” (2004, p. 21). Des-sa forma, visava superar a dicotomia entre uma abordagem objetivista, determinista, em que as pessoas são totalmente subme-tidas às estruturas, e uma subjetivista, em que as pessoas são privilegiadas na análise e têm reconhecida e valorizada sua liberda-de em relação às estruturas. Pierre Bour-dieu identifica sua obra com o que chama de estruturalismo construtivista:22

Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio mundo social e não apenas nos sis-temas simbólicos [...], estruturas objetivas, independentes da consci-ência e da vontade dos agentes, os quais são capazes de orientar ou co-agir suas práticas e representações. Por construtivismo, quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensa-mento e ação que são constitutivos do que chamo de habitus e, de ou-tro, das estruturas sociais, em par-ticular do que chamo de campos e grupos, e particularmente do que se costuma chamar de classes sociais (2004, p. 149).

Dessa forma, pode-se notar que há apropriações particulares do método, por isso a dificuldade de classificação. Nem sempre os autores explicitam essa identi-dade e por vezes, embora neguem, podem ser avaliados por seus leitores como utili-zando tal ou qual método.

Finalmente, as metodologias são também muito diversas, mas, de acordo com as três etapas mencionadas no Tópico 5, serão propostos alguns exemplos.23 No caso da seleção das fontes, elas podem ser as mais variadas, escritas, orais, vi suais, já existentes ou produzidas pelo pesqui-sador. Por exemplo, uma fonte oral: pode--se trabalhar com registros já existentes ou o próprio pesquisador irá coletá-la ou produzi-la. É nesse item que aparece por vezes o falso dilema entre realizar um estu-do quantitativo ou qualitativo. Em qualquer caso, é preciso justificar a pertinência e a acessibilidade da fonte escolhida em fun-ção do problema de pesquisa.

A segunda etapa refere-se aos ins-trumentos que utilizará para coletar os dados. Por exemplo, pode ser por meio de entrevista – estruturada, semiestruturada ou aberta; ou de questionário – com ques-tões abertas, fechadas ou semiabertas; ou observação – o que observará, como rea-lizará as anotações, qual será sua postu-ra e relação com as pessoas ou ambiente observado; ou ainda, no caso de pesquisa documental ou bibliográfica, pode ser uti-lizado um formulário ou ficha para anota-ção dos itens de interesse. Quaisquer que sejam os instrumentos escolhidos, o pes-quisador deve explicar por que eles são os mais adequados para captar as informa-ções relevantes para o referencial teórico-

22 Bourdieu distingue o uso do termo estruturalismo com o qual se identifica do sentido levado em conta por Lévi-Strauss, pois Bourdieu reconhece a existência de estruturas objetivas que atuam sob os agentes e que lhes são independentes, porém, aplica essa noção aos sistemas simbólicos e às suas práticas e representações.

23 Alguns manuais apresentam um detalhamento básico relativo à metodologia, sugere-se: Richard-Alguns manuais apresentam um detalhamento básico relativo à metodologia, sugere-se: Richard-son (1999), Selltiz, Whighstsman e Cook (1987), Laville e Dionne (1999) e Bogdan e Biklen (1994).

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62 Pesquisa em educação: uma introdução

-metodológico adotado, bem como os cri-térios que utilizou para selecioná-los.

Finalmente, na terceira etapa, é pre-ciso explicitar como será realizada a aná-lise dos dados, ou seja, como eles serão organizados e interpretados e se essa pro-posta é adequada ao tipo de fonte e de ins-trumento utilizados. Por exemplo, análise de conteúdo ou análise estatística.

7. Considerações finais

Neste trabalho, foram apresentados cuidados e condições necessários para o desenvolvimento de pesquisas no campo da Educação.

A expectativa é de que, embora de caráter introdutório, este material possa esclarecer desafios da pesquisa nesta área, para iniciantes e interessados, mas tam-bém avançar na explicitação de termos, problemas e relações entre método, teoria e metodologia. Ao considerar que a fragi-lidade teórico-metodológica é o principal problema da pesquisa na área, espera-se que este trabalho contribua para iniciar o esclarecimento e para o necessário deba-te e enfrentamento da questão – que deve ocorrer na prática, tanto nos diferentes ní-veis e âmbitos de formação quanto no pro-cesso de desenvolvimento de pesquisas.

Textos complementares

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A Arqueologia da África e das

diásporas africanas

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Introdução

Os avanços das pesquisas arqueoló-gicas nas últimas décadas têm delineado um quadro cada vez mais claro sobre as origens da humanidade na África e sobre o processo de evolução biológica de nos-sa espécie naquele continente. Sabemos hoje não somente que a nossa espécie – o Homo sapiens – foi um produto exclusivo daquele continente, de modo que todos so-mos originalmente africanos, mas também que outros de nossos ancestrais, como o Homo ergaster e o Homo heidelberguen-sis, milhares de anos antes do advento da nossa espécie, já haviam saído da África e colonizado, respectivamente, a Ásia e a Europa. Em um momento mais recente da nossa trajetória humana, entre setenta e sessenta milênios atrás, um pequeno gru-po de africanos da nossa espécie saiu da África e, gradativamente, colonizou todos os continentes, com exceção da Antártida, dando origem a todas as populações hu-manas que vivem fora da África. Em um pe-ríodo muito mais recente dessa história de longuíssima duração, iniciado no final do século XV e se estendendo até meados do século XIX, ocorreu, finalmente, a migra-ção compulsória de centenas de milhares de africanos, empregados como mão de obra escravizada, sobretudo, nas colônias e países das Américas.

Este texto tem por propósito apre-sentar o panorama que vem sendo des-cortinado pela arqueologia sobre os pro-

cessos de dispersão dessas populações africanas e sobre as formas como elas se estabeleceram e se adaptaram às terras re-cipientes, desde a pré-história remota até o período mais recente de colonização das Américas pelas potências europeias oci-dentais. Embora o fenômeno que se con-vencionou chamar de diáspora africana seja empregado para tratar do processo de dispersão global das populações africanas e dos mecanismos que levaram à emer-gência de identidades culturais de origem africana fora da África somente para este período mais recente da história das popu-lações africanas (HARRIS, 1993, p. 3-4), se considerarmos o significado stricto sensu de diáspora como dispersão, usualmente, de uma determinada população, podemos considerar que ocorreram diversas diáspo-ras africanas ao longo da trajetória da hu-manidade.

As origens da humanidade na África

Para discutir o processo de evolução humana na África é necessário, antes de tudo, esclarecer como ocorrem as mudan-ças biológicas e emergem novas espécies, o mecanismo chamado de descendência com modificação proposto por Charles Da-rwin em seu livro A origem das espécies (1859). É reconhecido que todos os orga-nismos produzem mais prole do que o am-biente pode sustentar e essa prole tende

A Arqueologia da África e das

diásporas africanas

Luís Cláudio Pereira Symanski*

* Doutor em Antropologia pela Universidade da Flórida (EUA).

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68 A Arqueologia da África e das diásporas africanas

a apresentar variações físicas e compor-tamentais dentro de uma única espécie. Desse modo, os organismos que herda-ram traços que lhes permitem sobreviver e reproduzir em um ritmo maior que o dos demais membros dessa espécie tendem a passar esses traços favoráveis a sua prole. Com o passar do tempo, esses traços tor-nam-se mais comuns em uma população, pois indivíduos sem eles tendem a morrer cedo e reproduzir em um ritmo mais len-to, ou seja, aqueles indivíduos com traços favoráveis são selecionados naturalmente para sobreviver e reproduzir mais. As mu-danças ambientais exercem um papel cru-cial nesse processo, dado que os organis-mos, para se adaptarem a ambientes em modificação, precisam, necessariamente, desenvolver novos traços físicos ou com-portamentais, sob risco, em caso contrário, de se extinguirem.

O processo de evolução humana envolveu uma combinação única de três traços: bipedalidade, produção de artefa-tos de pedra e aumento do tamanho do cérebro. Este foi um processo que teve iní-cio entre oito e seis milhões de anos atrás, quando uma espécie ainda desconhecida de hominoide, como é chamada a super-família que inclui o homem e os grandes símios, ramificou-se em duas espécies, dando origem, por um lado, aos chimpan-zés, e, por outro, ao primeiro hominoide bípede. Os hominoides bípedes são cha-mados de hominídeos e incluem a nossa espécie e todos os nossos ancestrais di-retos. O surgimento desses hominídeos se deu em função das intensas mudanças climáticas que assolavam o globo terres-tre naquele período, chamado de Mioceno. O Mioceno iniciou há 22 milhões de anos como um período quente e úmido, no qual a África era coberta por florestas tropicais, o tipo de ambiente mais propício para a proliferação dos macacos. Há 14 milhões de anos teve início um período mais frio e seco, que levou à expansão dos ambientes

de savana na África. Este clima frio e seco intensificou-se ainda mais entre dez e cin-co milhões de anos atrás, forçando muitos macacos a se adaptarem aos ambientes mais áridos e abertos, que gradativamen-te avançavam sobre as florestas tropicais. Este é justamente o período no qual vemos emergir os primeiros hominídeos, ou seja, os grandes símios que, pressionados pela retração das florestas e expansão das sa-vanas, tiveram que aprender a viver nesse último tipo de ambiente, desenvolvendo a bipedalidade. Os fósseis mais antigos des-ses nossos ancestrais bípedes, datados de seis milhões de anos atrás, são chamados de Sahelanthropus tchadensis, tendo sido encontrados no Chade e no Quênia.

No período chamado Plioceno, entre 5 e 1,7 milhões de anos atrás, o clima frio intensifica-se ainda mais, levando à forma-ção das calotas polares. A África sofre de uma quase total aridez e as espécies de hominídeos se desenvolvem. Neste perí-odo, surge uma linhagem de hominídeos chamada australopitecina, cujo processo de evolução desembocará na espécie hu-mana. Os mais antigos hominídeos dessa linhagem são chamados de Australopithe-cus afarensis e Australopithecus africanus. Eles são bípedes, apresentam as pernas mais curtas e os braços mais longos do que os seres humanos modernos e uma capacidade craniana similar à dos gorilas, variando entre 375 e 500 centímetros cú-bicos, cerca de um terço da capacidade craniana média dos seres humanos mo-dernos (1.350 cm3). Apresentam ainda um pronunciado dimorfismo sexual, ou seja, os machos tendem a ser cerca de 50% su-periores em tamanho e peso às fêmeas. Os machos tinham, em média, 1,5 metro de altura e 45 quilos, ao passo que as fêmeas não eram superiores a um metro de altura e pesavam cerca de 30 quilos.

Por volta de 2,5 milhões de anos atrás outra espécie de australopithecus, chamada garhi, emerge nesse cenário.

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69Luís Cláudio Pereira Symanski

Diferentemente das espécies anteriores de hominídeos, os Australopithecus garhi destacam-se por serem os mais prováveis criadores dos primeiros artefatos de pedra que temos notícia, inicialmente encontra-dos na Tanzânia, no sítio Olduvai Gorge. Esses primeiros artefatos, denominados de indústria Oldowan, são seixos que foram lascados para produzir uma borda cortan-te, seixos utilizados para quebrar ossos e esmagar sementes e lascas de borda agu-da retiradas desses seixos. Esses artefatos não tiveram um planejamento elaborado e foram utilizados por esses nossos an-cestrais para retirar a pele, desarticular e descarnar as carcaças de animais caçados por grandes predadores, assim como para quebrar os ossos dessas carcaças para a retirada do tutano. O que deve ser consi-derado é que tais artefatos deram a esses nossos ancestrais uma enorme vantagem adaptativa sobre todas as demais espécies de animais, lhes permitindo diversificar sua dieta, até então basicamente centrada no consumo de vegetais, com a significan-te adição da proteína animal proveniente da carne e do tutano. Essa diversificação dietária levou ao desenvolvimento de cére-bros cada vez maiores, de modo que, em um espaço de tempo de quinhentos mil anos, considerado muito curto em termos de trajetória evolutiva, os hominídeos des-cendentes dessa linhagem ampliaram tan-to a sua capacidade craniana que deram origem ao gênero Homo, ao qual perten-cemos.

Esta emergência do gênero Homo ocorreu por volta de dois milhões de anos atrás. Os mais antigos fósseis dessas pri-meiras espécies, do Homo rudolfensis e do Homo habilis, apresentam uma capa-cidade craniana que chegava a 750 cm3, cerca de 50% maior que os dos australopi-tecinos. Apresentam também mandíbulas e dentes menores que os da linhagem aus-tralopitecina, a estrutura do crânio mais si-milar à dos seres humanos modernos, as

pernas mais longas e os braços mais cur-tos. Esses primeiros Homo, contudo, uti-lizavam os mesmos artefatos de pedra da indústria Oldowan.

Por volta de 1,8 milhão de anos atrás, a evolução biológica desses primei-ros hominídeos do gênero Homo dará ori-gem a uma nova espécie, denominada de Homo ergaster. O Homo ergaster será um ator central nessa epopeia humana, por di-versas razões. Em primeiro lugar, tratou-se da primeira espécie humana cujo tamanho e proporções do corpo são muito próximas daquelas que apresentamos até hoje. A ca-pacidade craniana desses indivíduos che-gava a 910 cm3. Os cérebros poderosos desses indivíduos lhes permitiu fazer uma enorme evolução tecnológica, a qual con-sistiu na produção de machados de mão lascados em ambas as faces, simétricos, conhecidos por bifaces. Os mais antigos desses bifaces são datados de 1,65 milhão de anos e dão origem à segunda indústria lítica produzida por nossos ancestrais, de-nominada indústria Acheulense.

A produção desses bifaces é indica-tiva de um imenso aumento da inteligência (das capacidades cognitivas) desses nos-sos ancestrais. Até então, os hominídeos lascavam aleatoriamente seixos e lascas, visando obter gumes afiados. O ergaster, por outro lado, foi a primeira espécie a pensar em uma forma específica para um artefato e trabalhar a pedra até alcançar essa forma. Essa maior inteligência lhe permitiu habitar novos ambientes, até en-tão não ocupados pelas outras espécies de hominídeos, incluindo ambientes mais secos que somente podiam ser ocupados nas épocas mais úmidas do ano. Tratou-se, ainda, da primeira espécie de hominídeo a ter a pele exposta, antes que coberta de pelos. O Homo ergaster também desenvol-veu uma feição que foi fundamental para o desenvolvimento da fala articulada, o trato vocal caracterizado pela faringe alongada e pela laringe mais baixa no pescoço. Isto

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70 A Arqueologia da África e das diásporas africanas

significa que ele já seria capaz de modular sons mais articulados do que qualquer ou-tra espécie de mamífero, alguns dos quais podem ter sido utilizados para expressar determinados desejos e necessidades, como fome, dor, sede etc., embora ainda não tivesse as capacidades cognitivas su-ficientes para desenvolver uma linguagem falada propriamente dita.

O Homo ergaster viveu na África por um longo período de tempo, que se estende entre 1,8 milhão e 600 mil anos atrás. Devido às suas capacidades cogni-tivas e tecnologia superior, essa espécie espalhou-se do sul ao norte da África. Há cerca de um milhão de anos, uma leva dessa espécie, finalmente, rompeu a bar-reira do continente africano e seguiu pelo sudeste da Ásia até colonizar a Ásia orien-tal. Esta foi uma migração não planejada, que durou vários milênios. Na Ásia, este grupo de hominídeos migrantes, devido ao isolamento geográfico e ao processo de adaptação ao novo ambiente, deu origem a uma outra espécie de hominídeos, co-nhecida como Homo erectus, cujos fósseis têm sido encontrados, sobretudo, na China e em Java. O Homo erectus reinou supre-mo no oriente por cerca de um milhão de anos, até a chegada de nossa espécie, há cerca de 60 mil anos.

Por outro lado, a população de er-gaster que permaneceu na África acabou dando origem, por volta de 600 mil anos atrás, a uma nova espécie, conhecida como Homo heidelberguensis. A capacidade cra-niana média do Homo heidelberguensis era cerca de 90% da nossa, demonstran-do um desenvolvimento das capacidades cognitivas fortemente superior ao alcança-do pelo Homo ergaster, a espécie que lhe deu origem. Embora o heidelberguensis tenha continuado a produzir machados de mão, a tecnologia por ele empregada era superior, produzindo exemplares mais del-gados e finamente lascados. Por volta de 500 mil anos atrás, uma leva dessa espécie

saiu da África e penetrou na Europa, que então apresentava um clima glacial, muito mais frio que o atual. Este grupo de heidel-berguensis que colonizou a Europa acabou dando origem, por volta de 200 mil anos atrás, ao Homo neanderthalensis, uma es-pécie de hominídeo totalmente adaptada aos ambientes glaciais reinantes na Eu-ropa. Os neandertais viviam nas cavernas europeias, caçavam animais de todos os portes com lanças, coletavam frutos e ra-ízes e faziam fogueiras para se aquecer e para assar carne. Reinaram supremos na Europa até a chegada da nossa espécie, por volta de 50 mil anos atrás.

O processo de evolução dos nean-dertais na Europa tem paralelos com o dos Homo sapiens na África. Estas duas espé-cies se originaram do mesmo ancestral, o Homo heidelberguensis, de modo que podem ser consideradas espécies irmãs. Ambas as espécies se desenvolveram no período entre 400 mil e 200 mil anos. Os últimos 400 mil anos foram um período de intensa instabilidade climática, durante o qual ocorreram quatro períodos glaciais, de frio extremamente severo, com enorme expansão das geleiras no hemisfério nor-te. Esses períodos glaciais foram intercala-dos por quatro interglaciais, períodos mais amenos em termos climáticos. Enquanto na Europa os períodos glaciais levavam a uma diminuição no tamanho das florestas e expansão das pastagens naturais, na Áfri-ca esses períodos levavam a uma intensa aridez, gerando a expansão dos desertos sobre as savanas. Assim, as características climático-ambientais diferenciadas nesses dois continentes levaram à mesma espé-cie de hominídeo dominante em ambos, o Homo heidelberguensis, a evoluir também diferencialmente em cada continente, dan-do origem ao Homo neanderthalensis na Europa e ao Homo sapiens na África. Pas-semos então ao processo de evolução da nossa espécie.

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71Luís Cláudio Pereira Symanski

Somos todos africanos: a emergência do Homo sapiens e o processo de colonização da Eurásia, Austrália e Américas

Durante muito tempo, houve um debate acirrado sobre as origens da nos-sa espécie, com um grupo de pesquisa-dores defendendo uma origem multirre-gional, considerando que os diferentes hominídeos espalhados pelo Velho Mundo teriam, independentemente, dado origem ao Homo sapiens devido a uma predeter-minada programação genética. A partir da década de 1960, um grupo de arqueólogos e paleoantropólogos, encabeçado pelo bri-tânico Louis Leakey, propôs a hipótese de um centro de origem único, que teria sido na África. A alegação desse grupo era de que somente na África existiam registros fósseis que indicavam todo o processo de evolução do Homo sapiens, de modo que este teria se originado naquele continen-te e, posteriormente, se dispersado pelos demais continentes, vindo a substituir as espécies de hominídeos mais antigas de cada região, com o Homo erectus na Ásia e o Homo neanderthalensis na Europa. Esta hipótese foi comprovada ao longo dos últimos quarenta anos não somente pelos achados de formas transicionais do Homo heidelberguensis para o Homo sapiens na África, mas também por estudos genéticos realizados desde os anos de 1980.

Anatomicamente, a nossa espécie, o Homo sapiens, apresenta similaridades globais na morfologia do crânio e nas di-mensões relativas dos membros. As dife-renças observadas entre as populações com respeito à morfologia do corpo dizem respeito somente ao tamanho, não à pro-porção. No intervalo entre 250 mil e 125 mil anos atrás são encontrados, na Áfri-ca, fósseis transicionais entre o Homo sa-piens e o Homo heidelberguensis, como é o caso dos crânios de Omo I e Omo II

encontrados na Etiópia, datados de cerca de 200 mil anos atrás. A partir de 125 mil anos atrás, os fósseis humanos já apresen-tam todas as feições anatômicas típicas da nossa espécie, sendo denominados como Homo sapiens anatomicamente moderno. Dentre essas feições, destacam-se a dimi-nuição da projeção facial, da testa e do ta-manho dos dentes.

O desenvolvimento das pesquisas genéticas a partir da década de 1980 tem lançado novas luzes sobre a origem africa-na da nossa espécie. As células contêm dois genomas, que são os componentes genéti-cos completos, conhecidos como DNA nu-clear e DNA mitocondrial. O DNA nuclear contém códigos para 100 mil genes, ao passo que o DNA mitocondrial contém có-digos para apenas 37 genes. Descobriu-se que o DNA mitocondrial é herdado somen-te através da linha feminina e que suas mu-tações ocorrem de forma regular, no ritmo de uma mudança a cada 100 gerações. As-sim, é possível se estimar datas, razoavel-mente precisas, para o aparecimento dos fenótipos, os tipos físicos característicos de cada população. Deste modo, quanto mais similar é o DNA mitocondrial de uma popu-lação em relação à outra, mais próximo o ancestral comum entre essas duas popula-ções, como é o caso das populações ame-ríndias, geneticamente muito próximas das populações da Ásia oriental. Assim, os geneticistas, ao comparar o DNA mitocon-drial das mulheres de vários grupos étni-cos distintos ao redor do globo, consegui-ram estimar quanto tempo se passou para que cada grupo assumisse características distintas a partir de um ancestral comum, e construíram, dessa forma, uma árvore genealógica para a espécie humana. Esta análise indicou que a nossa espécie teve origem em um centro geográfico único, na África, ao sul do deserto do Saara, entre 270 mil e 200 mil anos atrás, confirman-do aquilo que já era apontado pelo registro fóssil.

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Com o passar dos milênios, a nos-sa espécie se disseminou pela África até que, por volta de 110 mil anos atrás, uma leva aventurou-se fora daquele continente, seguindo pelo corredor levantino, como é conhecida a região que hoje compreende Síria, Líbano, Israel e Palestina – territó-rio que formava um grande corredor para a passagem de humanos e animais entre a África e a Eurásia – e se estabelecendo no atual território de Israel. Os vestígios dessa primeira leva colonizadora de Homo sapiens são encontrados nas cavernas de Skhul e Qafze. Nesses locais estão as mais antigas evidências de rituais funerários da nossa espécie, referentes a sepultamen-tos humanos contendo acompanhamentos como chifres de veado e ocre, um mineral avermelhado utilizado para a produção de corante. Em Israel, essa população conse-guiu viver por cerca de 40 milênios, extin-guindo-se por volta de 70 mil anos atrás. A principal hipótese para a extinção dessa população é o retorno de condições gla-ciais intensas nessa época, que podem ter levado à extrema aridez nessa região.

Nesse mesmo período, as popula-ções da nossa espécie que permaneceram na África estavam fazendo inovações nunca antes vistas na trajetória da humanidade, as quais são indicativas do cruzamento de novas fronteiras cognitivas. Durante mui-to tempo, os pesquisadores consideravam que o comportamento humano moderno, vinculado às nossas capacidades cogni-tivas atuais, tivesse emergido somente quando a nossa espécie iniciou a coloniza-ção da Europa, no início do período conhe-cido como Paleolítico Superior, entre 50 mil e 40 mil anos atrás. O comportamento humano moderno caracteriza-se por uma série de feições que incluem o desenvolvi-mento da linguagem complexa, composta por sintaxe e temporalidade, a qual está totalmente vinculada à capacidade de sim-bolização e de expressão do pensamento abstrato, conforme expressa na arte, na or-

namentação do corpo, na realização de ri-tuais elaborados relacionados à crença em um mundo sobrenatural, na organização mais elaborada, especializada, do espaço de vivenda etc. Tais feições são encontra-das em absolutamente todas as socieda-des humanas atuais, mas, há poucos anos, eram somente plenamente identificadas no registro arqueológico a partir de 50 mil anos atrás, na Europa. Considerava-se, as-sim, que o comportamento humano mo-derno teria emergido como um pacote, como uma metamorfose cultural. Nas duas últimas décadas, porém, essa perspectiva da metamorfose cultural foi posta em xe-que por diversos achados arqueológicos realizados na África. Pesquisadores, atuan-do em diferentes regiões do continente africano, começaram a encontrar indícios cada vez mais concretos de todas essas feições do comportamento humano mo-derno, incluindo arte, ornamentos como contas de colares e de pulseiras, organiza-ção mais complexa do espaço de vivenda e o desenvolvimento de tecnologias e de estratégias de caça e de coleta cada vez mais sofisticadas. Tais inovações estavam presentes em sítios diversificados, datados entre 100 mil e 50 mil anos atrás, e são a prova concreta de que o comportamento humano moderno também foi um produto exclusivamente africano, que se desenvol-veu, de forma gradual, após a emergência da anatomia atual da nossa espécie.

Esses nossos ancestrais africanos, estando plenamente equipados, com cé-rebros poderosos, meios de comunicação eficientes e tecnologias cada vez mais so-fisticadas, puderam, novamente, se aven-turar fora da África, em levas colonizadoras que gradativamente ocuparam a Eurásia e a Austrália. Essa colonização se deu entre 70 mil e 50 mil anos atrás. É muito pro-vável que esses colonizadores não tenham espontaneamente abandonado a África, mas tenham sido pressionados pelas con-dições extremamente áridas que domina-

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ram aquele continente a partir de 70 mil anos atrás, quando teve início uma inten-sa era glacial. Embora a África, diferente-mente da Eurásia setentrional, não tenha sido coberta por imensas geleiras, essas condições glaciais levaram a uma inten-sa aridez naquele continente, com uma enorme expansão dos desertos, tornando a vida desses nossos ancestrais extrema-mente difícil. A alternativa encontrada por um grupo deles foi sair do território conhe-cido e explorar o sudoeste da Ásia. Foi este grupo de pioneiros que se disseminou pelo globo terrestre e levas originadas dele co-lonizaram a Europa, Ásia, Austrália e, mui-tos milênios depois, as Américas. Esta leva de colonizadores, dos quais todas as po-pulações não africanas são descendentes, provavelmente cruzou o Mar Vermelho, em sua extremidade sul, no Estreito de Grief. Atualmente, neste trecho a distância que separa a África da Arábia é de 30 quilôme-tros, porém, nas condições glaciais de 70 mil anos atrás, estava reduzida para ape-nas 11 quilômetros, o que teria facilitado imensamente esta travessia para os nossos ancestrais. Chegando ao atual território do Iêmen, uma leva deste grupo seguiu para o leste, pela faixa litorânea que oferecia as melhores condições de sobrevivência, tan-to em termos de disponibilidade de água potável, proveniente de inúmeras fontes, quanto de recursos marinhos, como pei-xes, algas, moluscos e crustáceos, que po-diam ser consumidos. Sabemos que entre 50 e 40 mil anos atrás esta leva já tinha se disseminado, ocupando a Ásia oriental, por um lado, e a Austrália, por outro. Da Ará-bia, outra leva dos descendentes desses nossos pioneiros, em algum momento de sua jornada, decidiu seguir para o norte e noroeste, fincando pé na Europa por volta de 50 mil anos atrás.

O acesso à Austrália foi facilitado pelo fato de que, nas condições glaciais de 50 mil anos atrás, o nível do mar estava cerca de 100 metros abaixo do nível atu-

al. Este rebaixamento do nível do mar dava uma configuração bastante diferenciada às terras emersas do globo terrestre. Assim, a Inglaterra estava ligada à Europa, o Japão à Ásia, a Sibéria ao Alaska e o que hoje co-nhecemos como as ilhas de Java e Suma-tra ao sudeste da Ásia, por uma imensa pe-nínsula, chamada Sundaland. Esta penín-sula, por sua vez, era quase que conectada à Austrália por dezenas de pequenas ilhas que ficavam muito próximas umas das outras. Assim, os descendentes daqueles nossos ancestrais pioneiros que cruzaram o Mar Vermelho e alcançaram a Arábia se-guiram espontaneamente esta rota litorâ-nea até o sul da península Sundaland. Da-quele ponto, não tiveram dificuldades de, com o auxílio de pequenas embarcações, cruzar de ilha em ilha até alcançar a costa norte da Austrália. Na Austrália, esta popu-lação manteve-se praticamente isolada até o início da colonização inglesa, no século XVIII. É por este motivo que os aborígenes australianos apresentam um fenótipo tão similar ao das populações africanas que ocupam o sul do Saara.

Neste processo de colonização de novas terras, esses nossos ancestrais aca-baram por encontrar, tanto na Europa quanto na Ásia, as outras espécies de ho-minídeos que tinham saído da África cen-tenas de milhares de anos antes de nossa espécie e colonizado esses territórios. Este foi o caso do Homo erectus, na Ásia, e do Homo neanderthalensis, na Europa. Essas espécies eram, assim, parentes da nossa, representando ramificações da trajetória evolutiva de nossos ancestrais mais recu-ados. O Homo erectus era o que pode ser considerado um filho direto de nosso avô na cadeia evolutiva, que foi o Homo er-gaster. Já com o Homo neanderthalensis tínhamos uma relação de parentesco ain-da mais próxima, pois descendíamos do mesmo pai, o Homo heidelberguensis, de modo que aqueles podem ser considera-dos nossos irmãos nessa cadeia evolutiva.

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Até o momento, o registro arqueo-lógico não apresenta evidências concretas de relações conflituosas da nossa espécie com esses parentes que eram os ocupan-tes mais antigos desses territórios. Tínha-mos, porém, capacidades cognitivas bem mais desenvolvidas que as deles, as quais envolviam uma linguagem complexa que permitia uma comunicação elaborada, es-tocando informações sobre o passado e fazendo planejamentos com relação ao fu-turo, vantagens que a temporalidade (con-jugação do passado, presente e futuro) presente em todas as gramáticas do Homo sapiens fornecia à nossa espécie e que iam muito além dos meios de comunicação rudimentares daquelas espécies paren-tes. Além disso, tínhamos uma tecnologia muito mais sofisticada, que nos permitia a produção de armas de caça mais eficien-tes, de roupas costuradas, bem como de estratégias mais produtivas de obtenção de recursos como alimentos caçados e co-letados. Todas essas vantagens levaram a nossa espécie a se expandir demografica-mente nesses novos territórios, enquan-to que os nossos parentes neandertais e erectus mantiveram uma razão de repro-dução muito mais reduzida, o que levou à extinção de ambas as espécies por volta de 30 mil anos atrás.

Até poucos anos atrás, havia mui-to debate sobre a possibilidade de terem havido trocas genéticas entre o Homo sa-piens e o neandertal. Pesquisas muito re-centes, analisando o DNA de três fêmeas neandertais encontradas na Croácia, da-tadas de 38 mil anos atrás, acabaram por revelar que houve acasalamento entre as duas espécies, demonstrando, de fato, que todas as populações atuais da Europa e da Ásia compartilham de 1 a 4% de seu DNA nuclear com os neandertais.

O último território a ser conquistado nessa epopeia humana foi o das Américas. A travessia para as Américas apresentava desafios tão grandes que tiveram que se

passar dezenas de milênios para que, após a colonização do restante do globo, os nos-sos ancestrais conseguissem finalmente fincar o pé neste continente. As pesquisas atuais indicam que foi somente por volta de 18 mil anos atrás que uma leva, prove-niente do nordeste da Ásia, conseguiu se instalar no continente americano. Uma das principais barreiras foram as condições cli-máticas glaciais extremas neste período. Há 20 mil anos, o mundo estava no auge da última glaciação e geleiras continen-tais, que chegavam a quatro quilômetros de altura, ocupavam uma grande extensão do hemisfério norte setentrional e a maior parte da América do Norte. Esse enorme acúmulo de água nas geleiras levava não somente a condições globais extremamen-te áridas, mas também a um rebaixamento de cerca de 120 metros no nível do mar. Devido a este rebaixamento, a Sibéria era conectada ao Alaska por uma enorme pon-te de terra, de cerca de 1.500 quilômetros de largura, chamada de Beríngia. A vege-tação da Beríngia era composta, sobretu-do, por imensas pastagens naturais, ideais para a sobrevivência da megafauna pleis-tocênica, os grandes mamíferos terrestres que dominavam durante a era glacial, como mamutes, mastodontes, tigres-dentes-de--sabre, dentre outras espécies. Por volta de 18 mil anos atrás, alguns grupos humanos, finalmente, aventuraram-se pela Beríngia e vieram a ser a primeira leva colonizadora a ocupar o continente americano.

Até poucos anos, considerava-se que esta leva era advinda das populações mongoloides do oeste da Ásia. De fato, es-tudos linguísticos, genéticos e de antropo-logia física sustentavam a origem oriental dos primeiros colonizadores do nosso con-tinente. O que se verifica é que as popula-ções indígenas que se espalham do sul dos Estados Unidos à Terra do Fogo são enqua-dradas no mesmo grupo linguístico, deno-minado ameríndio. Essas mesmas popu-lações compartilham fortes similaridades

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genéticas com as populações orientais, demonstrando terem uma origem comum, bem como o mesmo padrão dental, deno-minado sinodonte. Um problema, porém, é que este fenótipo mongoloide, típico das populações orientais, emergiu somente entre 12 mil e oito mil anos atrás, de modo que, se as primeiras levas humanas entra-ram nas Américas há cerca de 18 mil anos atrás, elas não poderiam apresentar essas características físicas. Com base nessas questões, um antropólogo físico brasileiro, Walter Neves, começou a estudar os esque-letos humanos mais antigos das Américas, muitos dos quais haviam sido encontrados na região de Lagoa Santa, em Minas Ge-rais. Este é o caso do esqueleto mais anti-go das Américas, Luzia, encontrado nesta região e datado de onze mil anos. O que Walter Neves verificou foi que os crânios desses esqueletos não apresentavam uma morfologia mongoloide, típica das popula-ções indígenas e orientais; antes, apresen-tavam uma morfologia australo-melanésia, que era muito mais compatível com aquela das populações da África ao sul do Saa-ra e da Austrália. Isto significa que, antes das populações ancestrais dos ameríndios ocuparem as Américas, uma leva anterior, originária da África, teria aqui se estabe-lecido. Esta primeira leva, de morfologia australo-melanésia, teria sido diretamen-te originária daquele grupo de africanos que, entre 70 e 60 mil anos atrás, cruzou o Mar Vermelho e penetrou na Arábia. En-quanto parte desta leva alcançou, com o passar dos milênios, o sudeste asiático e penetrou na Austrália, outra parte seguiu rumo ao nordeste da Ásia e, por volta de 18 mil anos atrás, atravessou a Beríngia, provavelmente pela rota litorânea sul, e as-sim penetrou na América. Aqui na América eles foram senhores por alguns milênios, até a chegada de uma segunda leva, de morfologia mongoloide, talvez por volta de doze mil anos atrás. Com o passar do tem-po, esta segunda leva acabou dominando

completamente o território da Américas e os grupos referentes àquela leva coloniza-dora inicial acabaram se extinguindo.

As pesquisas sobre a pré-história da humanidade têm revelado, portanto, que milhares de anos antes das potências eu-ropeias colonizarem a África e levarem mi-lhões de filhos daquele continente à condi-ção de escravos nas Américas, os africanos e seus descendentes já haviam colonizado todos os territórios habitáveis do globo e, assim, dado origem à enorme diversida-de física, social e cultural da humanidade. Quando os primeiros europeus colonialis-tas chegaram ao continente africano, eles estavam, na realidade, retornando ao lugar de origem de seus ancestrais. Era o reen-contro de duas levas da mesma população, que haviam se separado cerca de setenta milênios antes. Ao considerar essa trajetó-ria histórica de longuíssima duração, uma constatação torna-se óbvia: somos todos afrodescendentes, independentemente da cor de pele, credo ou condição social.

A arqueologia da diáspora africana da idade moderna nas Américas

Passemos agora para um capítulo muito mais recente dessa epopeia humana de longuíssima duração, referente aos últi-mos cinco séculos, um período no qual mi-lhões de africanos, vitimizados pelo expan-sionismo europeu, compulsoriamente mi-graram para as Américas, servindo como mão de obra nas cidades, vilas, povoados, fortificações, minas, engenhos e fazendas deste Novo Mundo. A arqueologia também estuda esta diáspora africana da idade mo-derna, desenterrando, e assim trazendo à tona, elementos da história dos africanos e dos afrodescendentes em diversos cená-rios nos quais atuaram.

A importância da arqueologia no es-tudo da diáspora africana da idade moder-

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na diz respeito ao fato de os arqueólogos terem acesso a um tipo de fonte única: os vestígios materiais deixados pelos grupos africanos e afrodescendentes. As pesqui-sas historiográficas sobre a diáspora afri-cana são baseadas, quase que exclusiva-mente, em registros escritos, fontes como relatos de viajantes, inventários e testa-mentos, processos criminais, registros de inquisição, cartas de alforria, mapas de população, dentre outros. Tais registros foram produzidos, em sua enorme maio-ria, pelos segmentos brancos dominantes, de modo que tendem a apresentar uma perspectiva tendenciosa sobre a vida dos grupos escravizados. Deve ainda ser con-siderado que muitas das práticas culturais dos escravos eram duramente reprimidas pela classe senhorial e pelo poder público, sendo assim realizadas fora do alcance da vista dos segmentos dominantes, de modo que muito raramente foram descritas nas fontes históricas. Por outro lado, o regis-tro arqueológico desses grupos, composto pelas evidências materializadas de sua vida cotidiana, tem um enorme potencial de re-velar as práticas de resistência que eles mantiveram em seus cenários de existên-cia social que se situavam fora do controle imediato do segmento dominante.

No Brasil as pesquisas arqueológi-cas em sítios de ocupação africana e afro-descendente ainda são escassas, diferente-mente dos Estados Unidos, onde pesquisas sistemáticas têm revelado uma diversidade de informações sobre a vida material e so-bre as práticas econômicas, sociais e cul-turais desses grupos em contextos como plantations, chácaras, quilombos, bairros e unidades domésticas. Cabe, portanto, um detalhamento das abordagens e con-tribuições da arqueologia afro-americana.

Estudos sistemáticos em contextos afro-americanos foram iniciados na déca-da de 1970, em senzalas de plantations da Flórida e da Geórgia, por uma equipe chefiada por Ascher e Fairbanks, tendo por

propósito central investigar o processo de emergência da tradição afro-americana a partir dos possíveis restos tangíveis da cultura matriz africana no registro arque-ológico. Esta agenda era influenciada pelo modelo de aculturação desenvolvido por Melville Herskovits (1941), o qual cunhou o termo africanismo para se referir às práti-cas e costumes de origem africana manti-dos pelas comunidades afrodescendentes nas Américas. Esses estudos enquadra-vam-se, assim, em um modelo tradicional de aculturação no qual os escravos eram vistos como inaptos para se engajar em estratégias de negociação social com os segmentos opressores. Tal perspectiva continuou em pauta na arqueologia afro--americana até os anos 1980.

Na década de 1980, a influência da abordagem científica da chamada nova ar-queologia levou à busca por padrões ma-teriais típicos dos grupos afro-americanos, os quais deveriam ser explicados em ter-mos de comportamentos culturalmente específicos e de status socioeconômico. Dentre os padrões delineados estavam a alta incidência de tigelas, indicativa de há-bitos alimentares centrados no consumo de ensopados, a predominância de restos faunísticos estraçalhados e as dimensões das habitações (cerca de 4m x 4m). Esta abordagem impulsionou os arqueólogos a refletir sobre a significância das variações do registro arqueológico em termos com-portamentais, sociais e culturais. Porém, por se tratar uma perspectiva fundamen-tada no funcionalismo e no formalismo econômico, ignorou a possibilidade de os escravos terem atribuído significados al-ternativos à cultura material, sendo ainda vistos como elementos passivos dentro do sistema, sem a mínima possibilidade de negociação social.

No começo da década de 1990, a ar-queologia afro-americana entrou em uma fase mais autorreflexiva, quando arqueólo-gos adeptos de vertentes marxistas e inter-

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pretativas começaram a criticar fortemente as abordagens prévias, sendo finalmente reconhecido que o compartilhamento de artefatos entre senhores e escravos pode-ria envolver apenas um compartilhamento superficial de valores, visto que diferentes grupos podem atribuir significados distin-tos à mesma cultura material. Atenção co-meçou a ser dada ao caráter dinâmico das relações de poder, visando entender como os escravos construíram seu mundo com base tanto nas limitações da instituição da escravidão quanto na herança africana. No decorrer daquela década, houve um inte-resse crescente no estudo da dinâmica in-terna das comunidades afro-americanas. Esta mudança de foco exigiu o desenvolvi-mento de uma visão mais equilibrada, bidi-recional, das relações de poder, inserindo--se em um contexto de desenvolvimento do pensamento social na arqueologia his-tórica marcado pela rejeição aos modelos que privilegiam a perspectiva dos grupos politicamente dominantes, focalizando-se na agência dos grupos subordinados e nas trocas e negociações que estes mantêm com aqueles. A atenção, assim, voltou-se para temas como: os modos nos quais os afro-americanos compartilharam tradi-ções étnicas e se envolveram em negocia-ções de poder com os senhores; as formas como gerenciaram as várias situações de risco às quais estavam sujeitos; e os usos que fizeram da cultura material visando ex-pressar seus próprios sistemas de valores e, assim, construir um senso de comuni-dade bastante diferenciado da ideologia senhorial.

Nesse mesmo período, alguns aca-dêmicos se voltaram para o estudo da ide-ologia racista e do papel da cultura ma-terial em sua construção e manutenção, analisando os modos nos quais os grupos afro-americanos não somente construíram uma cultura que resiste ao racismo, mas também manipularam essa mesma ideolo-gia como um elemento de coesão do gru-

po. Modelos de trocas culturais mais sofisti-cados que o paradigma da aculturação co-meçaram a ser adotados, destacando-se o modelo de crioulização. Este modelo busca entender não somente os modos como os afro-americanos se reapropriaram da cul-tura material hegemônica a partir de seus referenciais próprios, mas também as in-fluências que esses grupos exerceram so-bre a sociedade euro-americana.

Ao considerar que os escravos usa-ram a cultura material euro-americana com base em referenciais culturais de ma-triz africana, os arqueólogos começaram a prestar mais atenção às particularidades desse registro arqueológico, considerando as relações entre os artefatos e estruturas, visando entender os modos como a cultu-ra material foi utilizada em práticas diver-sificadas, bastante diferenciadas daquelas da cultura hegemônica. Este é o caso dos estudos focalizados nas práticas religiosas das populações africanas na diáspora, que incluíram a reprodução de signos religio-sos centro-africanos em vasilhames cerâ-micos descartados em rios, o enterramento de itens rituais que visavam ao controle do mundo exterior a partir da manipulação do mundo sobrenatural e o uso, para propósi-tos rituais e mágicos, de uma diversidade de artefatos encontrados em contextos de habitação, tais como contas de colares de vidro azuis, moedas chinesas, moedas com cruzes incisas, moedas perfuradas, cristais de lustres, cristais de quartzo, colheres com cruzes incisas no cabo, figas etc.

Ao trabalharem diretamente com os vestígios materializados das práticas socio-culturais dos grupos escravos, tais pesqui-sas têm revelado uma diversidade de infor-mações sobre a vida cotidiana, a sociedade e a cultura desses grupos que raramente foram presenciadas e, menos ainda, re-gistradas pelos observadores brancos dos segmentos dominantes.

No Brasil, as pesquisas em sítios de ocupação africana e afrodescendente ain-

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da são escassas, tendo sido inauguradas no final da década de 1970 com o estudo de Guimarães e Lanna (1980) em quilom-bos de Minas Gerais, cujo foco recaiu nas estratégias de assentamento dos quilom-bolas. No final dos anos 1980, Guimarães e colaboradores (1990) realizaram esca-vações no Quilombo do Ambrósio (MG) evidenciando vestígios de construções de pau a pique e recuperando itens como ca-chimbos, vasilhames cerâmicos e restos alimentares. Porém, essas pesquisas não tiveram continuidade, resultando apenas na publicação dos resultados iniciais.

Nos anos de 1992 e 1993, Orser e Funari (1992; FUNARI, 1996, 1999) realiza-ram pesquisas no Quilombo dos Palmares (AL), recuperando amostras de cerâmicas indígenas, cerâmicas coloniais e faianças europeias. Na mesma época, Lima e co-laboradores (1993) realizaram escavações na senzala da Fazenda São Fernando, em Vassouras (RJ), porém recuperando basi-camente elementos construtivos, com uma notória ausência de itens relacionados às práticas cotidianas dos grupos escravos. Pesquisas mais recentes incluem o estudo de três pequenos quilombos do Rio Grande do Sul, novas escavações no Quilombo dos Palmares, em senzalas de dois engenhos de açúcar de Chapada dos Guimarães (MT) e nas senzalas do Engenho São Joaquim, em Pirenópolis (GO).

Outros estudos têm focalizado clas-ses específicas de artefatos direta ou in-diretamente associadas aos escravos, tais como vasilhames cerâmicos, cachimbos de cerâmica, vidros lascados, contas de colar e sapatos, encontrados em contextos tais como unidades domésticas urbanas e ru-rais, engenhos, senzalas, povoados de mi-neração, quilombos, cemitérios urbanos e lixeiras coletivas urbanas.

Algumas pesquisas têm revelado que grupos escravos ativamente utilizaram a cultura material visando à manutenção, reprodução e transformação de cosmolo-

gias e práticas rituais de origem africana. Symanski (2006, 2010) discute a repro-dução de tatuagens corporais de grupos africanos em cerâmicas nos engenhos de Chapada dos Guimarães (MT) como evi-dência da manutenção de uma cosmologia amplamente dispersa entre os povos da África subsaariana, relacionada à antropo-morfização da cerâmica. Souza e Agostini (no prelo), em uma análise de cerâmicas decoradas com escarificações tipicamente yorubas (da Nigéria) e macuas (de Moçam-bique), de contextos do Sudeste e Centro--Oeste, discutem como esses signos po-dem ter sido reproduzidos visando à cria-ção de mecanismos de coexistência por parte de grupos identitários diaspóricos no contexto do Brasil. Tavares (2006) analisa os significados religiosos dos colares pre-sentes em enterramentos de escravos na Sé de Salvador (BA), relacionados ao culto dos orixás pelas populações yoruba. Sou-za (no prelo) se refere a itens devocionais encontrados nas senzalas do Engenho São Joaquim (GO), como indicativos de práticas religiosas híbridas, envolvendo o catolicis-mo e religiosidades africanas. Symanski (2007) analisa itens enterrados sob o piso da casa grande do Engenho Rio da Casca e de uma senzala do engenho Água Fria (MT) como evidências de práticas de conjuro de matriz centro-africana.

O processo de trocas culturais entre africanos, ameríndios e europeus tem sido abordado com base em modelos alterna-tivos ao de aculturação, destacando-se as noções complementares de crioulização, transculturação e etnogênese, como é o caso dos trabalhos de Allen (1998) e Funa-ri (1999) no Quilombo dos Palmares (AL); Souza (2002), no arraial de mineração de Ouro Fino (GO) e no Engenho São Joaquim (GO); e Symanski (2006, 2010), nos enge-nhos de Chapada dos Guimarães (MT).

Particularmente, as pesquisas reali-zadas por Symanski (2006) em três enge-nhos e um pequeno quilombo de Chapada

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dos Guimarães (MT) permitiram a recupe-ração de amostras de uma diversidade de contextos datados em diferentes interva-los entre 1780 e 1888. As mudanças ob-servadas na cerâmica de produção local, entre o final do século XVIII e o final do XIX, demonstraram fortes correlações com aquelas que ocorreram na composição dos plantéis escravos nesse mesmo período, demonstrando que os escravos, particular-mente os africanos, usaram esse material para expressar diferenças culturais e so-ciais. Porém, quando o cenário demográfi-co da escravidão na Chapada foi dominado por uma população afro-brasileira, a par-tir do último terço do século XIX, ocorreu uma gradual diminuição na proporção dos vasilhames cerâmicos decorados, demons-trando que o processo cultural de criouli-zação nesta região foi fortemente atrelado às mudanças de geração dos plantéis es-cravos, de uma população culturalmente heterogênea africana para uma população mais homogênea, afro-brasileira. Este es-tudo sugere que o processo de criouliza-ção, diferentemente do que é apregoado pelos estudos de arqueologia histórica na América do Norte e no Caribe, não segue uma via linear, em que grupos com dife-rentes referenciais culturais rapidamente constroem uma nova cultura como respos-ta à vida comum em cativeiro, conforme defendido no modelo clássico de Mintz e Price (1992). Antes, este processo deve ser contextualmente avaliado, pois pode apre-

sentar ritmos distintos de acordo com as especificidades da escravidão em diferen-tes regiões das Américas, podendo, como no caso da Chapada, ser marcado por perí-odos de expressão de diferenças e recons-trução de identidades pautadas em refe-renciais diversificados.

Embora ainda incipientes, as pes-quisas aqui citadas apontam para o grande potencial da arqueologia de fornecer in-formações de caráter inédito sobre os pa-drões de vida material, práticas cotidianas, economia, dinâmica social, cosmologias, religiosidade, construção e reconstrução de identidades, resistência e agência des-sas populações africanas que compulso-riamente migraram para o Brasil entre os séculos XVI e XIX. De fato, a arqueologia histórica, por basear sua produção de co-nhecimento nas evidências materiais das práticas cotidianas dos diversos grupos que compuseram uma sociedade, ao in-vés de somente nos documentos escritos pelos grupos dominantes, encontra-se em uma posição privilegiada para resgatar a agência dessas populações. Mais ainda, ao oferecer uma associação tangível entre lu-gares reais, como quilombos e senzalas, e as pessoas que viveram nesses lugares no passado, a arqueologia acaba por revelar histórias não contidas nos registros docu-mentais e, assim, dar uma grande contri-buição para a construção de uma história mais inclusiva.

Referências e sugestões bibliográficas

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História da África

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Apesar de ter sido o primeiro país europeu a iniciar a expansão ultramarina – a partir do século XV –, a presença efetiva de Portugal na África começa, apenas, no final do século XIX. Essa presença é con-sequência de um conjunto de interven-ções militares para reduzir as populações locais, sobretudo nos atuais territórios de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Mas Portugal foi, também, o país europeu que levou mais tempo para se retirar do conti-nente africano: o processo dessa retirada se inicia, apenas, a partir de 1974, promo-vido pelas chamadas lutas de libertação nacional nas respectivas colônias e pelo novo contexto político da “Revolução dos Cravos” na Metrópole. A insistência em se manter nos territórios africanos provocou, a partir dos anos de 1950, um conjunto de pressões diplomáticas internacionais so-bre a administração colonial portuguesa. Tratava-se, precisamente, de um momento no qual os ventos da descolonização come-çavam a soprar em todo o continente afri-cano. Nesta época, aduzindo uma espécie de conspiração internacional contra suas políticas de “assimilação” – que buscavam, ao menos no papel, fazer com que os ha-bitantes africanos das colônias se tornas-sem cidadãos portugueses –, Portugal re-forçou seu discurso de “cooperação racial”. Tratava-se de uma estratégia retórica que pretendia mostrar ao mundo a existência de uma suposta afinidade entre a “Metró-pole” e as chamadas Províncias Ultramari-

nas. Neste primeiro ponto, analisaremos o processo de construção daquele discurso “assimilacionista”.

É preciso situar o assimilacionismo do sistema colonial português no espaço de um cruzamento contraditório: de um lado, o da suposta tolerância diante dos valores socioculturais africanos, os quais, no discurso colonial, eram denominados “usos e costumes”; para lidar com esses valores, a administração colonial criou um sistema jurídico que consagrava leis es-peciais para os chamados indígenas. No outro polo desse cruzamento, temos a ex-trema rigidez e violência na aplicação das leis para a utilização da força de trabalho africana. Tal cruzamento se estabelece na lógica de um perpétuo contrassenso con-densado no seguinte mandato: disciplinar, contemporizando os “usos e costumes” locais e, ao mesmo tempo, assimilar sem “destribalizar”.

Um conjunto de leis, iniciado com a Portaria nº 317, de 9 de janeiro de 1917, e aperfeiçoado, sucessivamente, sobretu-do com o Decreto-lei nº 39.666, de 1954, do Estatuto dos Indígenas, estabelecia que um indígena deveria reunir os seguintes requisitos para atingir o estatuto de assi-milado:

– saber ler, escrever e falar portu-guês correntemente;

– ter meios suficientes para susten-tar a família;

– ter bom comportamento;

O colonialismo português na África:

as políticas de “assimilação”

Lorenzo Macagno*

* Doutor em Antropologia pela UFRJ e professor do Departamento de Antropologia da UFPR.

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– ter necessária educação e hábitos individuais e sociais, de modo a poder vi-ver sob a lei pública e privada de Portugal;

– fazer um requerimento à autorida-de administrativa da área, que o levará ao governador do distrito para ser aprovado.

Para entender os dilemas e para-doxos do assimilacionismo, é preciso re-montar, pelo menos, à chamada Geração de 1895, responsável pela instauração da moderna administração colonial portugue-sa. A Geração de 1895 era composta, na sua maioria, por militares de carreira que foram premiados com postos importantes na administração por seus respectivos de-sempenhos nas campanhas de “ocupação efetiva” dos atuais territórios de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Imbuídos das teorias evolucionistas da época, à medida que as exigências da administração o re-queriam, os homens da Geração de 1895 procuraram esboçar um saber sobre as co-lônias, proporcionando, assim, uma matriz discursiva na qual o colonialismo portu-guês se apoiará durante décadas. O gran-de representante desta geração foi António Enes (1848-1901), promotor da chamada descentralização administrativa e da con-sagração, na história do discurso colonial, de um sistema jurídico que dividia os afri-canos em duas categorias: “indígenas” e “assimilados”.

Embora o princípio de descentrali-zação administrativa tenha começado a ser aplicado a partir de 1910, deve-se sublinhar que as bases desse princípio foram estabe-lecidas pelo próprio António Enes no final do século XIX, isto é, em 1895, quando é criada a circunscrição indígena. É preciso entender que a descentralização, no âmbi-to da administração colonial, significou sa-crificar as pretensões de uma assimilação uniformizadora, propiciando o igualamen-to, primeiro, dos homens e, depois, da lei. Portanto, encontramo-nos na presença não de uma assimilação automática a partir da simples aplicação de uma lei emancipado-

ra, senão de um ideário assimilacionista gradual e contemporizador dos chamados usos e costumes: “[...] antes de igualar a lei, torna-se necessário igualar os homens a quem ela tem de ser aplicada, dando--lhes os mesmos sentimentos, os mesmos hábitos e a mesma civilização [...] É isto possível? Não o sei; mas, se o for, só será realidade em época muito longínqua e in-determinada”. Estas eram as palavras de Eduardo da Costa (1865-1907), veiculadas no seu Estudo sobre a administração civil das províncias ultramarinas, tão parecidas às de António Enes, quando advertia aos missionários de Moçambique que “os po-vos africanos têm forçosamente de passar por muitos períodos de desenvolvimen-to intelectual e moral antes de chegarem àquele em que podem ser cristãos convic-tos, e a educação encurtará, mas não dis-pensará esses períodos”.

Este novo arcabouço jurídico con-sagra, portanto, uma forma de enxergar o universo sociocultural africano a partir de duas noções opostas, porém comple-mentares, caras ao ideário evolucionista: o estado de “selvageria” e a “civilização”. Para tentar encurtar o caminho que une um e outro extremo, será introduzido um longo e indefinido processo de tutelagem da Metrópole sobre as colônias. Esta tu-tela foi instrumentada por intermédio de um sistema diferenciado de administração: a circunscrição para as áreas indígenas e o conselho para as áreas europeias. Tal como aconselhava José Ferreira Marnoco e Sousa (1869-1916), professor de direito e, depois, Ministro da Marinha e Ultramar: “A manutenção dos usos e costumes indí-genas deve-se considerar como uma si-tuação provisória, que se pode prolongar por mais ou menos tempo, mas destinada a desaparecer [...] À mãe-pátria incumbe o dever da tutela para com eles, guiando os seus passos no sentido da civilização”.

Portugal encontrou, assim, uma for-ma de perpetuar no tempo sua presença

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na África, sem abandonar suas pretensões assimilacionistas. Se o assimilacionismo uniformizador pretendia queimar etapas e outorgar direitos políticos de forma ime-diata, o assimilacionismo descentralizador, em troca, engendrou um modo de adiar, em nome de uma tutela “justa, humanitária e civilizadora”, a outorga desses direitos.

No início do século XX, em Moçam-bique, uma elite de africanos assimilados de Lourenço Marques se insurgiu – sob o slogan “somos todos portugueses” – con-tra os postulados paternalistas deste as-similacionismo balbuciante e gradualista. Esta elite, cujo líder mais visível era o jor-nalista João Albasini, reunia-se em torno do jornal O Africano. Neste caso, a palavra de ordem “somos todos portugueses”, pro-movida pelos seguidores de João Albasini, veiculava uma rejeição às provas humi-lhantes pelas quais estes africanos tinham que atravessar para demonstrar sua con-dição de “civilizados”. Por volta de 1919, a partir das páginas de O Africano, João Albasini desabafava, com ironia e veemên-cia: “Como é que se distingue um assimila-do de um selvagem? A pergunta parecerá néscia, mas é sobre ela que, infelizmente, temos que queimar a girândola dos nossos pensamentos”.

O princípio de descentralização que começou a ser gestado com a Geração de 1895 acompanhou todo o período repu-blicano (1910-1926). Nestes anos, muita coisa havia mudado no panorama interna-cional no que se refere à política colonial. Assim, aconteceram as Conferências de Berlim e de Bruxelas e, também, os acir-rados embates nacionalistas que desem-bocaram na Primeira Guerra Mundial. Com a Sociedade das Nações, que surge com o fim da guerra, foram reformuladas as re-gras do jogo colonial. Tanto as exigências de ocupação efetiva e ordenamento admi-nistrativo como os complicados problemas fronteiriços deram lugar a novas demandas e novas necessidades político-administrati-

vas: o estabelecimento dos mandatos co-loniais e da política econômica de portas abertas, que substituíram o chamado Pacto Colonial.

Como é de supor, as novas regras do jogo foram ditadas pelas potências vence-doras da guerra. Portanto, a reacomodação de Portugal aos novos tempos foi, antes de mais nada, conflituosa e tortuosa. Após o golpe de estado que põe fim ao período republicano, Portugal terá que estabelecer sua nova política colonial. Mas, longe de romper com as ideias coloniais do passa-do, o chamado Estado Novo se inspirará nos escritos e documentos da Geração de 1895.

O golpe de 1926 em Portugal foi realizado por um grupo de generais con-servadores sem um programa político e econômico definido. Isto começa a mudar quando, em 1928, António de Oliveira Sa-lazar (1889-1970), professor da Universida-de de Coimbra, é chamado para conduzir os problemas financeiros de Portugal. Em 1932, assume a presidência do Conse-lho de Ministros, posto que conservará até 1968, quando é sucedido por Marcelo Cae-tano (1906-1980). Como aconteceu com a Geração 95, tanto Salazar quanto Caetano não foram simples homens de estado, mas os construtores de uma política colonial que marcará Portugal a ferro e fogo durante quarenta anos. Esta política envolverá, tam-bém, o reavivamento dos mitos do passado imperial para a construção de uma “grande nação portuguesa”. Portanto, as questões ultramarinas constituirão um tópico central da agenda política do Estado Novo.

A distinção entre duas categorias – indígenas e assimilados – chegará à sua máxima expressão jurídica com a elabo-ração do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, aprovado em 23 de outubro de 1926. Começa a vigorar, assim, o cha-mado Estatuto (ou Regime) de Indigenato.

O racismo evolucionista característi-co do século XIX – e presente na Geração

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de 1895 – foi se modificando com a políti-ca do Estado Novo, adquirindo, por vezes, uma linguagem mais culturalista do que biologicista. Contudo, a justificativa para a implementação de uma tutela perpétua continuará intacta: “Queremos ensinar os indígenas a escrever, a ler, a contar”, dizia, em 1960, o Cardeal Cerejeira de Lisboa, “[...] mas não pretendemos fazer deles doutores”. A aquisição de “valores cultu-rais portugueses” era uma condição sine qua non para a incorporação de direitos de cidadania plenos. Mas a aquisição desses direitos será, sempre, um objetivo virtual nunca totalmente realizado. Nesse ínterim, os porta-vozes da administração colonial começarão a falar em termos de uma “as-similação espiritual”, que se tornará uma etapa necessária pela qual os africanos de-veriam passar antes de adquirir quaisquer direitos jurídicos e políticos.

É, sobretudo, no período da ditadu-ra salazarista que Portugal forja o mito da convivência racial do colonialismo portu-guês e a ideia de união espiritual entre Me-trópole e Ultramar. Importa sublinhar que, antes de ser nomeado presidente do Con-selho de Ministros, Salazar ocupa o car-go de Ministro das Colônias por um curto perío do de tempo, em 1930. É nesse ano que, junto a Armindo Monteiro, elabora o Ato Colonial, onde são estabelecidos os princípios fundamentais da política colo-nial portuguesa e o qual será incorporado à Constituição portuguesa de 1933.

A política colonial de Salazar repou-sou sobre três proposições interdependen-tes. Primeiro, uma centralização política a partir da qual as colônias viriam a ser uma extensão natural de Portugal. Segundo, a instauração de um neomercantilismo, com a intervenção do Estado na economia, a fim de maximizar o benefício da Metrópole e da nascente classe capitalista portugue-sa. Finalmente, a aliança do Estado com a Igreja Católica, que tende a acentuar a “missão civilizadora”. Quanto ao primeiro

ponto, cabe adiantar que, embora a centra-lização política significasse concentrar em Lisboa as decisões relativas ao Ultramar, não será abandonado o princípio de des-centralização administrativa, no sentido de que os indígenas não gozariam das mes-mas leis que os cidadãos da Metrópole. As-sim, radicalizou-se a distinção “indígenas” versus ”assimilados” com a implementa-ção, em 1926, do referido Regime de In-digenato.

Em 18 de junho de 1930, é pro-mulgado o Ato Colonial que, em seguida, sofrerá duas modificações: uma em 1935 e outra em 1945. Quando é revogado em 1955, seus princípios são incorporados à Constituição Portuguesa, ao mesmo tempo em que as colônias passam a ser chama-das de Províncias Ultramarinas.

Para entender qual era a funciona-lidade do Ato Colonial, é importante re-cordar que a Constituição republicana de 1911 – que continha algumas normas fun-damentais sobre política ultramarina – é suspensa com o golpe de 1926. Por isso, faz-se necessário, conforme afirma Marce-lo Caetano, promulgar um “[...] estatuto a que se atribuísse força constitucional, no qual se inscrevessem regras para limitar a ação dos governos: eis a origem do Ato Colonial de 1930”. Em seu artigo 2º, o Ato Colonial estabelecia qual era a essência orgânica da nação portuguesa: “[...] de-sempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que ne-les se compreendam, exercendo também a influên cia moral que lhe é adscrita pelo Padroado do Oriente”. Tal como foi susten-tado no Congresso Colonial de 1930, era a primeira vez que se determinava por lei, através desse documento, o destino histó-rico de Portugal: “[...] decreta-se a finalida-de dum Estado, que o país é colonizador e que a sua função é colonizar”.

Em nenhum momento – ao menos nos aspectos retóricos e discursivos – o

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Estado Novo sacrificou suas pretensões as-similacionistas, porquanto todos os habi-tantes do ultramar, “sem distinção de cor”, eram parte da nação portuguesa. Contudo, na prática, instrumentou-se um sistema administrativo que foi fiel ao princípio de António Enes, segundo o qual as leis de-viam ser adequadas ao estado de evolução das sociedades às quais eram aplicadas. Assim, mais uma vez a passagem do indí-gena ao cidadão se daria por meio de uma gradual incorporação de valores portugue-ses. Isto estava presente no artigo 22 do Ato Colonial, referente aos indígenas, que estabelecia a necessidade de um Estatuto especial para os “nativos”, atendendo ao seu estado de “evolução”. Portanto, não foi difícil conciliar o Regime de Indigena-to com o discurso de “convivência racial” e o respeito aos “usos e costumes” das populações locais. Assim, o artigo 22 con-signava que: “nas colônias atender-se-á ao estado de evolução dos povos nativos, ha-vendo estatutos especiais dos indígenas, que estabeleçam para estes, sob a influên-cia do direito público e privado português, regimes jurídicos de contemporização com os seus usos e costumes individuais, do-mésticos e sociais, que não sejam incom-patíveis com a moral e com os ditames de humanidade”.

O Estado Novo dirigiu às colônias a mesma política administrativa iniciada no começo do século; no entanto, as leis admi-nistrativas foram sendo aperfeiçoadas com os sucessivos Estatutos, decretos e porta-rias. Assim, foi mantida a distinção entre indígenas e não indígenas, bem como as consequentes diferenciações administrati-vas entre circunscrições e concelhos. Cabe lembrar que este Regime de Indigenato vigorou tanto em Moçambique como em Angola e Guiné, mas não nas ilhas de Cabo Cabo Verde e Macau (este último era um pequeno enclave que os portugueses pos-suíam no sul da China) nem no Estado da Índia Portuguesa. Em São Tomé e Príncipe

e Timor, o Indigenato vigorou, apenas, en-tre 1946 e 1953.

O chamado Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, que instituía o Regime de Indigenato, foi publicado em outubro de 1926. As palavras prévias que o apresentam em sua reedição da Agência Geral das Colônias, em 1946, evidenciam quais as intenções que veiculava, bem como o seu alcance:

[...] não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nos-sas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, se assim é per-mitido dizer, às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais, penais, à nossa organização judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica pró-pria do estado das suas faculdades, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência.

Uma vez mais, o esquema dualista de um discurso repetido à exaustão. Dua-lista, não tanto pela distinção maniqueís-ta (indígenas versus não indígenas), mas sobretudo porque, se a cada corpo corres-ponde um espírito, a cada sociedade cor-responde uma lei adequada ao seu “estado de evolução”. O assimilacionismo conti-nuará, até 1961, atrelado a essa dicotomia.

Se cada sociedade possuía carac-terísticas próprias que variavam de região para região, impunha-se, pois, entendê--las a fim de aplicar a lei correspondente a essa realidade. Nessa altura, o Estado assimilacionista devia tentar estudar esse “Outro” que pretendia dominar: “para faci-litar a ação administrativa e judiciária entre as populações nativas, manda-se proce-der à codificação dos usos e costumes. Ela não pode ser uma só para cada colônia, por serem eles diferentes em grande par-te, conforme as regiões, a raça, a tribo, as

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in fluências e contato com os europeus e outras circunstâncias”, dizia o jurista Gon-çalves Cota, na década de 1940. Esta es-tratégia de codificar os usos e costumes para facilitar a ação administrativa obtém um dos seus maiores sucessos em 1946, quando é publicado o Projeto Definitivo do Estatuto de Direito Privado dos Indíge-nas, precedido de um estudo sobre “direito gentílico” de Gonçalves Cota que, em 1941, fora encarregado de realizar uma série de pesquisas etnográficas em Moçambique.

Nessa época implementa-se, tam-bém, o chamado Acordo Missionário en-tre o Estado e a Igreja Católica. Embora os privilégios das missões católicas já fos-sem abordados no Ato Colonial de 1930, o acordo do Estado colonial com a Igreja adquire caráter orgânico quando é esta-belecido o Estatuto Missionário, em 1941. Consta no seu artigo 66 que “[...] o ensi-no especialmente destinado aos indígenas deverá ser inteiramente confiado ao pes-soal missionário e aos auxiliares”. Assim, em detrimento de outras missões – como as protestantes –, a educação indígena fi-cou nas mãos da Igreja Católica. Mais uma vez, o sistema dual do Indigenato se fará sentir, desta vez no âmbito da educação. Assim, buscar-se-á instrumentalizar dois sistemas: um para os africanos, sob o ensi-no da Igreja Católica – o “ensino de adap-tação” ou ensino rudimentar – e outro para europeus e africanos assimilados – o “en-sino oficial”.

Mais tarde, nas vésperas da forma-ção das frentes nacionalistas para as in-dependências, uma das suas princi pais lideranças – Eduardo Mondlane (1920-1969) – denunciava o fracasso do sistema de educação baseado nas missões cató-licas nas colônias portuguesas. Do lado dos missionários e das suas hierarquias, argumentava-se que a ajuda econômica do Estado para a educação católica era es-cassa – e isto explicaria a falta de êxito. Em 1959, por exemplo, havia 392.796 crianças

recebendo o ensino de adaptação, mas só 6.982 tinham conseguido entrar na escola primária. Era de se prever que a educação baseada nos termos do Estatuto Missioná-rio não poderia durar muito. No início de 1960, a elaboração de programas educa-tivos para a África passou novamente às mãos do Ministério de Educação de Lisboa.

Em setembro de 1961, é abolido o Estatuto dos Indígenas. Com isto, ao me-nos no papel, todos os habitantes de Mo-çambique, Angola e Guiné são considera-dos portugueses. Nos fatos é pouco o que muda. Assim, os “novos” cidadãos eram obrigados a portar carteiras de identidade nas quais constava sua antiga condição de indígenas.

O decreto pelo qual é revogado o Estatuto dos Indígenas contém uma série de considerações do ministro de ultramar Adriano Moreira (1922-), promotor dessa revogação. A questão que se colocava era a peculiar noção de cidadania e naciona-lidade contida no ideário colonial portu-guês. Em primeiro lugar, Adriano Moreira salientava “[...] a tradição portuguesa de respeito pelo direito privado das popula-ções que foram incorporadas no Estado a partir do movimento das descobertas e a quem demos o quadro nacional e estadual que desconheciam e foi elemento decisivo da sua evolução e valorização no conjun-to geral da humanidade”. Adriano Moreira converteu-se numa figura central da políti-ca tardo-colonial. No referido documento, defende o assimilacionismo português das críticas que recaíram sobre seu aparelho jurídico mais visível, isto é, o Regime de Indigenato. “Deu-se ocasião a nossos ad-versários”, diz, “[...] para sustentarem [...] que o povo português estava submetido a duas leis políticas, e por isso dividido em duas classes praticamente não comuni-cantes”. Esta acusação, sustentará Moreira, deriva de uma noção de cidadania própria do racionalismo do direito público do sé-culo XIX, que instaurou um conceito “pura-

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mente técnico de cidadania”, um conceito relacionado apenas com a questão dos di-reitos políticos.

O Estatuto dos Indígenas já tinha cumprido sua função. Isto não impede que Adriano Moreira, no novo contexto inter-nacional, ressalte os aspectos éticos que o guiavam. As Nações Unidas já tinham de-clarado um plano de ação a favor dos ter-ritórios ainda sem governo próprio e isto era uma afronta à política colonial do sala-zarismo que imaginava, ainda, um futuro português para a África. Não é um acaso que, nessa altura, Adriano Moreira tenha se convertido em um apologista da “forma portuguesa de estar no mundo” e, portan-to, num celebrador do mito do “paraíso multirracial” ultramarino. É precisamente nessa fase tardo-colonial do assimilacio-nismo que o discurso luso-tropicalista de Gilberto Freyre é reapropriado pelos porta--vozes da presença portuguesa na África. No entanto, as boas intenções do discurso ficaram eclipsadas diante das evidências do reduzido número de assimilados “reais” expressado nas próprias estatísticas da ad-ministração colonial.

Cabe lembrar que, em 1940, é reedi tado, sob o título O mundo que o português criou, um conjunto de confe-rências – de autoria de Gilberto Freyre – li-das em Londres, Lisboa, Coimbra e Porto (conforme consta no prefácio, devido a um inconveniente familiar, Freyre não conse-guira ministrá-las pessoalmente). Portugal, Brasil, África e Índia Portuguesa, Madeira, os Açores e Cabo Verde constituem, dizia Freyre, uma “unidade de sentimento e cul-tura”. O mundo que o português havia cria-do consistia, conforme essa visão, em “um conjunto de valores essenciais de cultura”. Mais tarde, Freyre definirá este mundo em termos de “civilização luso-tropical”, ou

seja, uma cultura e ordem social comuns às quais confluem homens e grupos de ori-gem étnica e procedências culturais diver-sas. Nesta confluência, o processo biológi-co de miscigenação caminharia junto com o processo social de assimilação.

O gradualismo – é preciso “um sécu-lo para fazer um cidadão”, dizia o ditador Salazar – foi o traço mais saliente do as-similacionismo português. Na medida em que os homens ainda não eram “iguais”, na medida em que a assimilação total não estava consumada, cada um devia ocupar seu lugar num sistema hierárquico do qual todos faziam parte. Este mesmo sistema, cuja lógica binária expressava-se na classi-ficação indígenas e assimilados, implicava, ao mesmo tempo, uma tensão quase per-pétua entre assimilação e segregação. Ou seja, uma espécie de “englobamento dos contrários” no qual a reivindicação univer-salista de que todos deveriam falar e es-crever corretamente o português convivia com a reivindicação particularista de man-ter certos usos e costumes intactos. Ao mesmo tempo, o regime colonial precisava garantir a exploração da força de trabalho indígena e a coerção econômica através do trabalho forçado. Foi por isso que o assimi-lacionismo precisou adotar a forma de um “Estado bifurcado” (MAMDANI, 1996) para, assim, melhor consumar seus desígnios jurídico-políticos. Isso significava se apro-ximar aos métodos coloniais do Indirect Rule (governo indireto) e apelar, portanto, às autoridades tradicionais (régulos) como representantes-chave dos “indígenas”. Por-tanto, o assimilacionismo português não esteve isento de um conservacionismo cul-tural e político que, nos seus aspectos mais problemáticos, assemelhava-se ao ideário purista do segregacionismo nas colônias britânicas.

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Sugestões de leitura

AGÊNCIA GERAL DAS COLÔNIAS. Antologia colonial portuguesa. Secretaria Geral das Colônias. Divisão de Publicações e Biblio-teca. Lisboa: Ministério das Colônias, 1946.

DUFFY, James. Portugal in Africa. Maryland: Penguin Books, 1963.

FERREIRA, Eduardo de Sousa. O fim de uma era: o colonialismo português em África. Lisboa: Sá da Costa, 1977.

FREYRE, Gilberto. O mundo que o portu-guês criou. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1940.

FRY, Peter (Org.). Moçambique, ensaios. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001.

MACAGNO, Lorenzo. Um antropólogo nor-te-americano no “mundo que o português criou”: relações raciais no Brasil e Moçam-bique segundo Marvin Harris. Lusotopie. Enjeux contemporains dans les espaces lusophones. Paris: Karthala, 1999.

______. Do assimilacionismo ao multicul-turalismo. Educação e representações so-bre a diversidade cultural em Moçambi-que. Tese (Doutorado) - Programa de Pós--Graduação em Sociologia e Antropologia. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000.

MAMDANI, Mahmood. Citizen and Sub-ject. Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton University Press, 1996 [há uma tradução em espanhol intitulada Ciudadano y súbdito. África con-África con-temporánea y el legado del colonialismo tardío. México: Siglo XXI, 1998].

MOREIRA, José. Os assimilados, João Al-basini e as eleições, 1900-1922. Maputo: AHM, 1997.

PENVENNE, Jeanne M. “We are all Portu-guese!”: Challenging the Political Economy of Assimilation, Lourenço Marques, 1870 to 1933. In: VAIL, Leroy (Ed.). The creation of tribalism in Southern Africa. Berkeley: University of California, 1989. p. 255-288.

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o Terceiro Im-pério Português. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2002.

VERA CRUZ, Elizabeth Ceita. O Estatuto do Indigenato – Angola – A legalização da discriminação na Colonização Portuguesa. Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2005.

ZAMPARONI, Valdemir. De escravo a co-zinheiro: colonialismo & racismo em Mo-çambique. Salvador: EDUFBA, 2007.

1. O longo caminho para a independência

As ex-colônias portuguesas formam, hoje, o bloco dos Países Africanos de Lín-gua Oficial Portuguesa (PALOPs). São eles: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçam-bique e as Ilhas de São Tomé e Príncipe. Apesar de cada um destes países serem multiétnicos e multilíngues, as lideranças nacionalistas adotaram, no momento das respectivas independências, o português

como “língua de unidade nacional”. As pri-meiras organizações de cunho nacionalis-ta começaram a se organizar nos anos de 1950. Tratava-se de um período no qual, nas colônias, não era permitida nenhuma expressão independentista. Por isso, mui-tas dessas agrupações se organizaram no exílio. Aquelas que, timidamente, começa-ram a se organizar nas próprias colônias (ou Províncias Ultramarinas) tiveram que fazê-lo sob a forma dissimulada de asso-ciações culturais, literárias e esportivas, já

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que o regime não permitia nenhuma ma-nifestação política. Nos inícios dos anos de 1960, diante da intransigência de Portugal, os grupos nacionalistas iniciam a luta ar-mada para obter suas independências.

Angola

Em 1951, a partir de uma reforma administrativa do Estado Novo português, os territórios coloniais passam a ser deno-minados “Províncias Ultramarinas”. Poucos anos depois, surgiriam, desde o exílio, as primeiras organizações nacionalistas: 1) o chamado Movimento Popular de Liber-tação de Angola (MPLA), fundado por Ma-rio de Andrade e Agostinho Neto, adotaria uma ideologia marxista. Dentre seus ani-madores havia intelectuais assimilados li-gados às elites urbanas. O MPLA teve um grande apoio entre os grupos ambundu (ou mbundu) das regiões costeiras e da ci-dade de Luanda; 2) em 1957, Holden Ro-berto cria, também no exílio, o que seria o início da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), que conseguiu, sobretudo, apoio dos bakongo do norte do país; 3) em 1966, uma cisão no seio do FNLA provocou a criação da União Nacional pela Indepen-dência Total de Angola (UNITA), sob a di-reção de Jonas Savimbi, que contou com um importante apoio dos ovimbundos. Mais tarde, a UNITA se enfrentaria com o MPLA. Em 1961, os nacionalistas iniciam a insurreição anticolonial em Luanda. Pouco depois, a luta se estenderia ao noroeste do país. Em 25 de abril de 1974, na Metró-pole, o novo regime surgido do chamado Movimento das Forças Armadas (MFA) põe fim à longa ditadura e se produz a chama-da “Revolução dos Cravos”, que mobiliza a população civil e os militares descontentes com a “guerra de ultramar”. A partir daí, se inicia o processo de descolonização. Em janeiro de 1975, as autoridades portugue-sas e os representantes dos três grupos

independentistas assinariam um acordo que fixava a independência de Angola para novembro daquele ano. A independência será proclamada, primeiro, por Agostinho Neto, do MPLA, que logo assumirá a pre-sidência de Angola. A partir daí, começará uma guerra civil entre a UNITA e o MPLA (o FNLA tinha sido desfeito em 1978). Em 1979, após a morte de Agostinho Neto, as-sume o poder José Eduardo dos Santos. Os combates entre as forças governamen-tais (o MPLA) e a UNITA se estenderam – apesar de várias tentativas de acordos de paz – até 2002. Em fevereiro desse ano, as Forças Armadas Angolanas informam que o líder da UNITA, Jonas Savimbi, tinha sido morto em combate.

Cabo Verde

Quando os portugueses descobriram o arquipélago de Cabo Verde, em 1460, as ilhas estavam desabitadas. Ali instalaram plantações nas quais trabalhavam escravos importados das vizinhas costas africanas. Mais tarde as ilhas se converteram numa escala importante do caminho do tráfico de escravos para a América. Entre o século XVIII e a metade do século XX, houve suces-sivos períodos de seca e fome. Muitos ca-bo-verdianos emigraram a outras posses-sões portuguesas (Guiné, São Tomé, Ango-la), onde ocuparam postos administrativos como pequenos funcionários. Em 1956, o cabo-verdiano Amílcar Cabral criou, na Guiné portuguesa, o Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo-Verde (PAIGC). Cabe sublinhar que, diferentemen-te do que aconteceu na Guiné, no arqui-pélago não surgiu nenhuma luta armada. Com a já referida “Revolução dos Cravos” e o fim da ditadura em Portugal, começa a se consumar o processo da independência. O primeiro presidente, em 1975, foi Aristides Pereira. Em 1981, se produz a ruptura das relações entre Cabo Verde e Guiné-Bissau,

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provocada, dentre outras tensões, pelo der-rocamento, em Bissau, do irmão de Amílcar Cabral: Luís Cabral. A partir daí, Aristides Pereira instaurou o PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), do qual permaneceu como líder até 1990, pe-ríodo no qual, em Cabo Verde, começa vi-gorar o multipartidarismo consagrado pela nova constituição.

Guiné-Bissau

Em Guiné-Bissau, o partido criado por Amílcar Cabral – nascido em Cabo Ver-de – (PAIGC, cf. acima) obteve, sobretudo, o apoio dos grupos balanta, entre outros, mas não dos fula, que, durante o período colonial, permaneceram próximos aos por-tugueses. A luta armada para a independên-cia começou no sul do país, em 1963. Por-tugal mobilizou imensos contingentes de soldados – mais de 20.000 – para enfrentar o PAIGC. Apesar do assassinato de Amílcar Cabral, acontecido em Conakry, em 1973, a luta continuaria. Cabe lembrar que o PAIGC tinha declarado, unilateralmente, a inde-pendência de Guiné em setembro de 1973. Essa independência tinha sido reconhecida por 82 países pertencentes à Organização das Nações Unidas, mas não por Portugal. Com as mudanças políticas em Portugal – a “Revolução dos Cravos”, de abril de 1974 –, o processo de transferência de soberania será iniciado. Em 26 de agosto de 1974, o PAIGC e Portugal assinariam, em Argel, uma declaração de cessar-fogo. Assim, Portugal reconhecia a República de Guiné-Bissau. Depois da independência, o PAIGC tentou desenvolver – sob a presidência de Luís Ca-bral, irmão de Amílcar – um regime socialis-ta. Ao mesmo tempo, Luís Cabral procurou se esforçar para conseguir uma união com as ilhas de Cabo Verde. Mas, em 1980, Luís Cabral é deposto pelo seu primeiro-minis-tro, Bernardo João Vieira, de origem guine-ana. Este se manteve no domínio do PAIGC, mas distanciou-se do marxismo por volta de

1986. Em 1994, aconteceram as primeiras eleições multipartidárias, nas quais triunfa o PAIGC. Em 1998, houve uma tentativa de golpe de estado – protagonizada pelo ge-neral Ansumane Mané – que provocou uma guerra civil e o exílio de Vieira. Em 2000, Kumba Yala, opositor do PAIGC, assume a presidência. Mas suas relações com o exér-cito serão tensas.

Moçambique

Em 1962, pouco depois que os por-tugueses decidem abolir o Regime de In-digenato, Eduardo Mondlane, exilado na Tanzânia, cria a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Mondlane, um tsonga originário do sul de Moçambique e educado inicialmente por missionários protestantes, tinha conseguido estudar ciên cias sociais nos Estados Unidos. A FRE-LIMO recebeu um grande apoio das popu-lações do sul (tsongas) e do norte do país (macondes). Em 1964, a FRELIMO inicia, no norte de Moçambique, a luta armada contra a presença portuguesa. Em 1969, ainda no exílio na Tanzânia, Eduardo Mon-dlane é assassinado. Os culpados nunca foram encontrados, mas algumas fontes afirmam que seus assassinos teriam sido agentes vinculados à Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), o principal órgão de repressão da ditadura salazarista que, pouco tempo depois, mudaria para o nome de DGS (Direção Geral de Seguran-ça). Após o assassinato de Eduardo Mon-dlane, assume a presidência da FRELIMO Samora Machel, que, até esse momento, tinha desempenhado, no seio da organiza-ção, tarefas militares. Em 25 de junho de 1975, Moçambique proclama sua indepen-dência, assumindo a presidência Samora Machel. A partir daí, o governo da FRELIMO buscará aplicar um plano de desenvolvi-mento para o país sob os desígnios de uma política socialista. Entretanto, em 1977, se forma, com o apoio do governo colonia-

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lista da Rodésia (Zimbábue) e, mais tarde, com o apoio do regime segregacionista da África do Sul, a Resistência Nacional Mo-çambicana (RENAMO). A partir daí, começa uma longa guerra civil entre as forças go-vernamentais da FRELIMO e a RENAMO. A paz virá em 1992, quando Joaquim Chissa-no, da FRELIMO (àquela altura, presidente do país), e Afonso Dhlakama (presidente da RENAMO) assinam um acordo de paz. Em 1994, acontecem as primeiras eleições multipartidárias que serão ganhas, com clareza, pela FRELIMO. Em comparação aos outros Países Africanos de Língua Ofi-cial Portuguesa (PALOPs), Moçambique tem sido um exemplo bem-sucedido de pacifi-cação e reconstrução democrática.

São Tomé e Príncipe

Em São Tomé e Príncipe, a repres-são colonial foi muito violenta. Porém,

não existiu nessas ilhas uma luta armada tal como acontecera em Angola, Guiné e Moçambique. Em 1960, foi fundado o Co-mitê de Libertação de São Tomé e Prínci-pe (CLSTP). Nesse ano, ainda estava viva a memória do massacre de Batepá, aconte-cido em fevereiro de 1953, quando mais de mil são-tomenses tinham sido mortos por se recusarem a trabalhar nas roças de cacau. A Organização da União Africana (OUA) já em 1962 tinha reconhecido o CLS-TP como único representante legítimo do povo do arquipélago. Quando, em 1974, surge o movimento de 25 de abril em Por-tugal (“Revolução dos Cravos”), a maioria dos representantes do CLSTP estava exila-da na República de Gabão. A independên-cia da República de São Tomé e Príncipe foi proclamada em 12 de julho de 1975. Em 1990, depois de vários anos de partido único, há uma reforma da Constituição e, em 1991, São Tomé e Príncipe celebra suas primeiras eleições multipartidárias.

Fontes principais

FERREIRA, José Medeiros. A descoloni-zação: seu processo e consequências. In: MATTOSSO, José (Dir.). História de Portu-gal. Portugal em transe (1974-1985). v. 8. Portugal: Editorial Estampa, 1994.

SELLIER, Jean. Atlas de los pueblos de África. Barcelona: Paidós, 2005.

Sugestões de leitura

BITTENCOURT, Marcelo. A criação do Mo-vimento Popular de Libertação de Angola. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, n. 32, 1997.

COSME, Leonel. Agostinho Neto e o seu tempo. Porto: Campo das Letras, 2004.

FERNANDES, Gabriel. A diluição da África. Uma interpretação da saga identitária ca-bo-verdiana no panorama político (pós-)colonial. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002.

MACAGNO, Lorenzo. Política e cultura no Moçambique pós-socialista. Novos Estu-dos, CEBRAP, n. 67, São Paulo, 2003.

______. Fragmentos de uma imaginação nacional [sobre nacionalismo em Moçam-bique]. Revista Brasileira de Ciências So-ciais, ANPOCS, v. 24, n. 70, 2009.

MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambi-que. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editores, 1976.

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96 O colonialismo português na África: as políticas de “assimilação”

ORAMAS, Oscar. Amílcar Cabral. Para além do seu tempo. Lisboa: Hugin, 1998.

ROCHA, Edmundo Angola. Contribuição ao estudo da gênese do nacionalismo mo-derno angolano. Lisboa: Kilombelombe, 2003.

SEIBERT, Gerhard. A política num microes-tado. São Tomé e Príncipe, ou os conflitos pessoais e políticos na gênese dos partidos políticos. Lusotopie, Paris: Karthala, 1995.

TRAJANO FILHO, Wilson. Rumores: uma narrativa da nação [sobre Guiné-Bissau], n. 143, Brasília, 1993. (Série Antropologia.)

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A escravidão no Brasil

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(...) Dum lado cana-de-açúcar Do outro o cafezal

Ao centro senhores sentados Vendo a colheita do algodão tão branco

Sendo colhido por mãos negras (...)

Jorge Ben-Jor (Álbum: A tábua das esmeraldas, 1972)

A discussão e a pesquisa sobre a es-cravidão no Brasil, seja a indígena, seja a africana, já produziram um número quase imensurável de artigos, dissertações, te-ses, livros e ensaios. As obras acerca da escravidão no Brasil nasceram pratica-mente juntas com a instituição, quando o território que viria a ser o Brasil ainda era parte do Império português. Fazer um in-ventário destas obras, por mais interessan-te que possa ser, não faz parte do intuito do presente texto. O que se pretende aqui é propor uma breve explanação sobre a escravização de africanos no Brasil, seguindo por alguns temas específicos: a discussão das definições de escravo e cativo, a produção dos domínios lusos na América, bem como do Império do Brasil como obra de cativos/as, a escravidão no mundo atlântico como um grande comércio e alguns desdobramentos deste grande comércio.1

Cativos ou escravos? A pertinência de uma discussão

Você verá em muitos artigos no de-correr desse curso que as palavras não são imparciais, muito menos neutras. O seu uso pode ser e é revelador de posições teó-ricas e políticas. Desta feita, em um texto como este é válido fazer lembrar o sentido das palavras escravo e cativo, para depois indicar o que pode significar a utilização de um ou outro termo.

Escravo: adj. e s.m. Que ou quem está sob o poder absoluto de um se-nhor que o aprisionou ou o comprou; Que ou quem está na dependência de outro; Que ou quem é presa de um sentimento, de um princípio: es-cravo do dever. Fig. Ser escravo da sua palavra, mantê-la escrupulosa-mente. (Disponível em: <http://www.dicio.com.br/escravo/>. Acesso em: 22/03/2011).

Esta definição simplificada do que é o escravo, presente no dicionário on-line de Português, não dá conta da complexida-de do que representava um escravo dentro de um sistema escravista.2 Assim, essa de-finição apresentada acima se torna apenas

* Uma versão deste texto pode ser encontrada no material do CURSO EaD DE QUALIFICAÇÃO PROFIS-SIONAL EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS. MEC - Ministério da Educação / SECAD – Secretaria de Educação Básica Alfabetização e Diversidade / CIPEAD – Coordenação de Políticas de Integração de Educação a Distância / NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal.

** Graduado em História e Ciências Sociais (UFPR), mestre em História (UFRGS) e doutorando em História (UFPR). Membro do NEAB-UFPR.

1 É bastante importante lembrar que o termo africano/africana utilizado de modo genérico para identificar as pessoas originárias de África é uma construção externa ao continente. Nele, as pessoas se identificavam como Iorubas, Zulus, !Khun, enfim, pela autoidentificação do povo de seu pertencimento.

2 Usou-se a definição presente neste dicionário e não em outros por se entender que o acesso a este é relativamente fácil na atualidade.

Africanas e africanos escravizados no Brasil*

Hilton Costa**

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100 Africanos e africanas escravizados no Brasil

parcialmente válida, especialmente em se tratando do contexto brasileiro. Quando se fala em escravo, fala-se em uma pessoa necessariamente desenraizada, ou seja, uma pessoa arrancada de um lugar, não só geográfico, mas também cultural. Ela deve, em teoria, perder seus enlaces, suas raízes, para, sob tais condições, poder ser subju-gada. Ora, essa situação é uma construção típica ideal.3 Mas o princípio para que uma pessoa seja escravizada é esse.

Partindo de tal premissa, temos um dos elementos necessários para compre-ender por que a escravização indígena não poderia ter vida longa nos domínios lusos na América e posteriormente no Brasil.4 Em princípio, africanos e africanas trazi-dos/as para esses locais (os domínios lusi-tanos na América e o Império do Brasil) po-dem ser entendidos como desenraizados/as, pois essas pessoas só traziam na “ba-gagem” aquilo que suas memórias podiam carregar.5 Evidentemente, o/a escravo/a é, logo, uma pessoa detentora de todas as capacidades para refazer raízes e enlaces; contudo, essas relações não se constroem automaticamente: muitos escravos e es-cravas não tiveram nem o tempo e nem as condições para se “reenraizar”. As inúme-ras situações de resistência à escravidão no Brasil, sobretudo aquelas vinculadas a algum tipo de negociação, indicam, sobre-maneira, este processo de “reenraizamen-to”. Mas, ao se pensar a escravização de africanos e de africanas no Brasil, de um modo geral e generalizante, pode-se notar essas pessoas como desenraizadas.

Retornando à definição retirada do dicionário on-line de português (cabe in-formar que definição semelhante pode ser encontrada em vários outros dicionários),

é possível verificar outro problema – de or-dem mais sutil, pode-se dizer –, pois ela im-prime na pessoa escravizada certo aspecto de passividade, ou seja, é como se a pes-soa “se deixasse escravizar”. Numa busca de rompimento com este aspecto da defi-nição simplificada de escravo é que inúme-ros estudiosos e estudiosas, especialmen-te os/as mais próximos/as aos movimentos negros, preferem o termo cativo/a ao invés de escravo/a. Fazendo uso novamente do dicionário on-line de Português, ele assim define cativo/a:

Cativo: adj. Prisioneiro de guerra; Seduzido, atraído; Obrigado, su-jeito; S.m. Indivíduo cativo; Escra-vo. (Disponível em: <http://www.dicio.com.br/cativo/>. Acesso em: 22/03/2011).

Nota-se nesta definição, de maneira muito mais clara, a violência embutida em todo e qualquer processo de escravização e de dominação de um modo geral. Desta maneira, como indicado no início da seção, a utilização das palavras não é neutra, logo, dentro da vasta produção existente acerca da escravidão no Brasil (e nela inclusa a es-cravidão de africanos e de africanas), nem sempre o termo escravo/a adotado é trata-do de forma a revelar a violência do proces-so. Tal situação é, por vezes, intencional, ou seja, o autor/autora detém a intenção de obliterar a violência presente no processo de escravização e/ou visa enfatizar a pas-sividade das pessoas escravizadas. Outras vezes não, cabendo então ao leitor/leitora refinar sua interpretação para localizar se a situação descrita se aplica ou não.

Após uma problematização parti-cular sobre o conceito semântico e a car-

3 Para o conceito de tipos ideais, ver a obra de Max Weber, 1864-1920; indica-se: WEBER, Max. So-ciologia. Org. por Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 1979.

4 Estudos especializados recentes pontuam certa incorreção na utilização da ideia de Brasil colonial, isto porque a concepção de Brasil não existia no sentido que se dá ela hoje.

5 Uma das melhores representações do transporte de cativos da costa da África para América encon-tra-se no filme Amistad, indicado no final desse texto.

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ga simbólica do termo o/a escravo/a, bem como da violência indissociável do proces-so de escravização, o objetivo a seguir é o de propor uma discussão sobre a utilização da mão de obra escravizada nos domínios portugueses na América e depois no Impé-rio do Brasil.

O ouro não é dourado nem o açúcar é branco

Entre as pessoas que fazem uso do açúcar de cana,6 um número muito ex-pressivo adota o açúcar refinado, detentor de coloração branca. Por sua vez, um nú-mero menor utiliza o açúcar mascavo, de tom mais escuro, sendo que em Portugal esse tom recebe a denominação de “am-barado”, por lembrar a cor do âmbar.7 Mas, um estudo sobre a produção de açúcar nos domínios lusos na América permite atribuir outras cores ao açúcar, mais precisamen-te vermelho e negro. E tom de rubro seria vermelho-sangue, dado ao número eleva-díssimo de pessoas dizimadas para que a Europa pudesse adoçar seu chá... Nesta di-reção, é importante lembrar, por um lado, que alguns grupos indígenas deixaram de existir e ou tiveram sua forma de vida dras-ticamente alterada durante o processo de expansão açucareira; por outro, pode-se pensar em quantas comunidades africa-nas foram desarticuladas, perdendo seus membros para a produção de açúcar na América, afirmação que converge com as palavras de um excelente professor: “não é gente que comia açúcar, era o açúcar que comia gente.”

Durante o auge da produção açuca-reira no Brasil, entre os séculos XVI e XVII, esta era trocada, em grande medida, por pessoas oriundas da África, em sua maioria negras escravizadas na América. Tais pes-soas eram as que alimentavam o açúcar, dando a ele um tom rubro-negro.

As divisões usualmente adotadas para o ensino de História do Brasil apon-tam como “ciclos econômicos” o ciclo da cana-de-açúcar, mencionado anteriormen-te, e o “ciclo do ouro”. O “ciclo do ouro” deu-se nos últimos anos do século XVII e durante o século XVIII. Sobre esse ciclo, há algum consenso por parte dos histo-riadores e das historiadoras de que este fenômeno foi fundamental para a “inte-riorização” da colonização lusa na Améri-ca, já que, até então, ela era praticamente litorânea. Serviu também para “amarrar” várias partes dos domínios lusos. Sobre a produção aurífera, em especial a da região das Minas (compreendida em muito no atual Estado de Minas Gerais), pode-se afirmar que essa era tarefa de aventureiros ou empreendedores individuais? Sim, tam-bém era. Mas o grosso do ouro produzido na região das Minas era fruto de trabalho de pessoas escravizadas, a maioria oriunda da África.

Assim, o dourado do ouro confun-dia-se com negro da pele das pessoas que o extraíam do solo e o manuseavam até sua partida para a Europa, onde ia encher o tesouro de Portugal... Ou, melhor dizen-do, da Inglaterra. As relações comerciais entre Portugal e Inglaterra eram bastante desfavoráveis para o primeiro, de modo que boa parte do ouro extraído dos domí-

6 A cana-de-açúcar é uma planta que pertence ao gênero Saccharum L. Há pelo menos seis es-pécies do gênero, sendo a cana-de-açúcar cultivada um híbrido multiespecífico, recebendo a designação Saccharum spp. As espécies de cana-de-açúcar são provenientes do Sudeste asiático. A planta é a principal matéria-prima para a fabricação do açúcar e álcool (etanol).

7 O âmbar é uma resina fóssil muito usada para a manufatura de objetos ornamentais. Embora não seja um mineral, às vezes é considerado e usado como uma gema. Sabe-se que as árvores (principalmente os pinheiros) cuja resina se transformou em âmbar viveram há milhões de anos em regiões de clima tempe-rado. Nas zonas cujo clima era tropical, o âmbar foi formado por plantas leguminosas.

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nios lusos na América acabava tendo por destino a Inglaterra.

O ouro produzido tinha, então, uma coloração muito mais negra do que dou-rada.

Ao se estabelecer o Império do Bra-sil, um novo produto agrícola roubaria a cena: o café. O café é originário das ter-ras altas da Etiópia (possivelmente com culturas no Sudão e Quênia) e difundiu-se para o mundo através do Egito e da Euro-pa. Mas, ao contrário do que se acredita, a palavra “café” não é originária de Kaffa – local de origem da planta –, e sim da pa-lavra árabe qahwa, que significa “vinho”, devido à importância que a planta passou a ter para o mundo árabe.

Assim como a cana, esta planta adaptou-se muito bem às condições natu-rais da América do Sul e a cultura do café tornou-se, ao longo do século XIX, o prin-cipal produto do Brasil. A lavoura cafeeira se erigiu e se manteve até 1888 graças ao trabalho de pessoas escravizadas. A bebi-da elaborada com os grãos de café caía no gosto da Europa, que a consumia em quan-tidades relevantes. Tal demanda incremen-tou a produção brasileira e, consequente-mente, colaborou para o aprimoramento da exploração da mão de obra escrava. E, seguindo pela metáfora aqui adotada, o café seria o único produto a revelar em sua versão final, a bebida, a cor das pessoas que o produziam.8 Aliás, essa comparação foi e ainda é utilizada em sentido ora pejo-rativo ora não (revelando intimidade entre as pessoas envolvidas) nas relações raciais brasileiras – nunca é demais lembrar que no Brasil as cores (das pessoas) possuem sentido social relevante.9

Um grande comércio: a escravidão atlântica

Do que se expôs até o presente mo-mento, evidenciam-se lugares-comuns dos estudos acerca da formação do Brasil: o trabalho nos domínios lusos na América e depois no Império do Brasil era basica-mente executado por pessoas escravizadas e essas pessoas eram em sua maioria ori-ginárias da África. Assim, é necessário au-mentar a densidade da discussão, primei-ramente chamando a atenção para as ex-plicações dadas para presença da escravi-dão, passando em seguida para o papel da pessoa escravizada naquele ordenamento econômico. Aqui serão apresentadas duas delas:

Não faz muito tempo, era possível encontrar (e talvez ainda seja) em manuais didáticos de História, e mesmo em obras mais especializadas, a seguinte explicação para a escravização de africanos e de afri-canas na América: como os indígenas eram preguiçosos, arredios ao trabalho regular e o recusavam veementemente, foram bus-car trabalhadores mais aptos ao trabalho escravo, que eram os africanos e as afri-canas. Ora, tal interpretação, além de pre-conceituosa, é de conteúdo muito frágil. Primeiramente, porque não busca compre-ender por que os indígenas eram “arredios ao trabalho regular”: a verdade é que eles se mostravam arredios ao trabalho regu-lar nos moldes europeus, pois possuíam economias próprias erigidas sobre outros valores.

Essa interpretação indica uma su-posta recusa dos povos indígenas ao tra-

8 Uma das características do racismo à brasileira é fundar-se no fenótipo e não no genótipo. Ou seja, mais na aparência das pessoas do que na origem das mesmas.

9 O café é algo tão presente na vida do Brasil que foi tema do carnaval do GRES Salgueiro do Rio de Janeiro, em 1992, e o samba-enredo que narra a história do café é executado até hoje, fato raro para sambas-enredo que não venceram carnavais. Ver: O negro que virou ouro nas terras do Salgueiro. Disponí-vel em: <http://www.salgueiro.com.br/S2008/CA.asp?1992>. Acesso em: 23/03/2011.

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balho escravo, ao mesmo tempo em que deixa implícita a ideia de que os africanos e as africanas não o recusavam, ignorando detalhamentos destes processos, como a baixa densidade demográfica nas popula-ções indígenas e a lucratividade com o co-mércio atlântico de cativos, por exemplo. Outro elemento ignorado é o fato de que as populações originárias da África, uma vez deslocadas para a América, tinham, em função do desenraizamento – como já indicado no início desse texto –, alguma di-ficuldade para estabelecer uma resistência organizada ao processo de escravização. Por fim, tal interpretação da escravidão no Brasil pode ser questionada com uma in-dagação: quem espontaneamente optaria por trabalhar na condição de escravo? En-fim, ninguém é apto para o trabalho escra-vo, a pessoa é submetida a ele.

Outra corrente interpretativa explica a escravização de africanos e de africanas na América buscando entender o papel do/a cativo/a na estrutura do mundo atlân-tico. Esta perspectiva se fraciona em inú-

meras vertentes. Uma das vertentes mais interessantes versa sobre como o comér-cio de pessoas escravizadas “amarrava” os domínios lusitanos, ou seja, criava uma rede de interdependência entre as diferen-tes possessões lusas. Em uma esquemati-zação simples, pode-se colocar a situação nos seguintes termos: da América partiam em direção à Europa produtos tropicais, pedras e metais preciosos e, em direção à África, armas e destilados de cana-de-açú-çú-car. Da Europa em direção à África iam os navios e os investidores para a compra de cativos/as na costa e depois partiam para a América. Da costa africana partiam os/as cativos/as em direção à América.

Com esta simplificação didática, acredita-se revelar de modo bastante nítido a importância do comércio de cativos para a composição do “mundo atlântico”, pois ele, como já mencionado, “amarrava” este mundo, em especial o português. Ao se to-mar por inspiração essa vertente analítica, é possível notar a posição fundamental do comércio de cativos/as para a composição

10 Agradeço a Debora Cristina Araújo pela elaboração desta figura.

FIGURA 1 – Fluxo do tráfico escravista.10

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do “mundo atlântico”, em especial o lusita-no. E a emancipação política do Brasil em relação a Portugal não significou mudan-ças estruturais no novo país. A emancipa-ção política do Brasil não veio acompanha-da de rupturas drásticas e enfáticas com o antigo ordenamento social, político, eco-nômico e, assim, o comércio de cativos/as continuou; apenas se deu a saída da antiga metrópole do negócio. A posição socio-econômica – e mesmo política – do comer-ciante de cativos/as dentro do sistema es-cravista foi tema pouco explorado durante bastante tempo pela historiografia. O foco residiu por um largo espaço de tempo na figura do fazendeiro. Acreditou-se até – e esta imagem foi e ainda é bastante divul-gada – serem os senhores de escravos as pessoas mais ricas e importantes dentro do referido sistema. A historiografia atual nota e chama a atenção para o fato de que, em inúmeros casos, o comerciante de ca-tivos/as era uma pessoa muito mais rica (e influente) que o fazendeiro.

Faz-se importante destacar algumas diferenças entre a escravidão antiga e a moderna. A denominada “escravidão an-tiga” tem seus modelos mais visíveis nas cidades-estados gregas e, em Roma, a pessoa escravizada nesses contextos tinha as mais variadas origens – prisioneiros de guerras, devedores, criminosos – e a es-cravidão podia ser algo transitório e, fun-damentalmente, a rentabilidade da pessoa escravizada residia naquilo por ela produ-zido. A denominada escravidão moderna surgiu no contexto da expansão europeia para a América e se caracteriza, diferente-mente da escravidão antiga, por seu cará-ter comercial. A rentabilidade da escravi-dão está muito mais na compra e venda de cativos/as do que naquilo produzido por essas pessoas; ademais, constrói-se todo um sistema produtivo como o açucareiro ou o cafeeiro com base no trabalho cativo, fato que não se fazia presente nesta escala no mundo antigo.

Assim sendo, é possível notar que um fator determinante para a opção pela escravização de africanos e de africanas na América era o alto rendimento que esta operação oferecia aos envolvidos. Eviden-temente, outros elementos fizeram parte não só da opção como da justificativa da escravização de africanos e de africanas na América: a questão da busca por um “ou-tro”, a procura por um ser desenraizado, uma pessoa, em teoria, mais facilmen-te submetida ao cativeiro, são elementos também importantes no processo de es-cravização de africanos e de africanas, bem como a utilização da “justificativa” religiosa (cristã), retirada de uma leitura específica do livro do Gênesis.

O desenvolvimento do escravis-mo na América criou ainda outras mar-cas, como a associação que se faz de modo mecânico entre negro-escravo, bem como a racialização da escravidão. A es-cravidão foi (e infelizmente ainda é) uma prática recorrente a várias sociedades. A pessoa escravizada podia ser um inimigo vencido, um devedor, enfim, diversas categorias de pessoas eram passíveis de serem escravizadas. Todavia, a escravidão moderna, a ocorrida na América, criou uma associação relativamente nova entre um tipo específico com a escravidão – a população de pele escura, negra de preferência. A construção de um tipo humano específico como o/a escravo/a por excelência não foi obra de um dia, uma semana, mas de vários anos e décadas, e teve seu formato final definido no transcorrer do século XIX. Neste século, a justificativa religiosa para escravização de africanos e de africanas não mais se mantinha, se bem que ela nunca foi abandonada de todo: buscou-se construir, então, uma justificativa com maior base social (na Europa e entre as elites escravocratas da América), com maior legitimidade; assim, a justificação da escravização vinha da Ciência. A Ciência ganhara no século XIX a preeminência

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como fonte de explicação e compreensão do mundo. Dessa forma, ela também era ferramenta para legitimar a prática escravista, especialmente ao recair sobre um grupo específico. No século XIX, a Biologia havia tomado da Física o lugar de “Rainha das Ciências”, “as verdades” bio-lógicas acabaram tornando-se “verdades” para toda a sociedade e, sob esse contexto, emergiu a noção de raça.

As teorias raciais não foram elabo-radas necessariamente para justificar a es-cravidão e o imperialismo europeu. Con-tudo, elas foram amplamente utilizadas para estes fins – e com bastante sucesso. As teorias raciais defendiam, além da exis-tência de raças humanas, a superioridade de umas sobre as outras, de modo a se configurar algo como um “direito de supe-rioridade”, em que as raças superiores po-deriam e/ou deveriam tutelar as inferiores (sob o epíteto de tutela caberia toda a sorte de práticas de exploração, inclusa a escra-vização). A difusão da ideia de suposta in-ferioridade dos povos não brancos toman-do por base as “verdades” científicas foi, ao longo do século XIX, instrumento impor-tante para legitimar a prática escravista no Brasil, mas, como já mencionado, não era o único. Maria Clementina Pereira Cunha, ao observar o processo de racialização das relações sociais no Brasil, destaca a forma como esta “cientificidade” das desigualda-des raciais era utilizada especialmente no contexto de final do século XIX. No final do período escravista, diz a autora:

A desagregação das relações funda-das no vínculo jurídico entre senho-res e escravos era então, no discur-so político e em diferentes aspectos

da vida diária, colorida pela forma “científica” de ler as desigualdades: novidade confortável, sem dúvida, porque fundada naquilo que a anti-ga forma de domínio tinha de mais visível. No período [fim do século XIX], a raça foi pouco a pouco sendo incorporada como uma maneira ge-nérica de aglutinar antigas diferen-ças de etnia, de origem ou de filia-ções de outro tipo que organizavam a vida social no regime escravocra-ta. (CUNHA, 2009, p. 18).

De maneira bastante evidente, a autora demonstra a utilidade política do discurso, da “verdade” científica da época para legitimar, durante um momento, o es-cravismo, e depois, ao fim da escravidão, manter vigente o ordenamento social nela criado. Assim, no século XIX sobremaneira, a cor, a origem e o aspecto das pessoas adquirem sentido político, social. A supos-ta validade “científica” da noção de raça fica apenas como um pano de fundo, distante, por vezes, do uso efetivo: criar e manter lugares sociais.

Com efeito, longe de esgotar o tema da escravização de africanos e de africanas na América Portuguesa e depois no Império do Brasil, procurou-se aqui enfatizar aquilo que poderia em muito ser definido como chaves de leitura ao regime escravista e suas consequências para o país. Ou seja, convidar o leitor e a leitora a lerem com outros olhos a vasta produção existente acerca da escravidão, especialmente aque-la existente nos materiais didáticos, pois esses foram (e ainda são em escala menor) responsáveis pela difusão de uma visão de mundo em que a pessoa escravizada tem uma cor específica e, quando não mais es-crava, tem um lugar social específico.

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106 Africanos e africanas escravizados no Brasil

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A abolição da escravatura no Bra-sil é uma temática que está sendo revista pela historiografia já faz certo tempo. Infe-lizmente, tal revisão está mui lentamente chegando aos manuais didáticos de Histó-ria utilizados nas escolas públicas (e mes-mo privadas). De um modo geral, o fim do regime escravista no Brasil ainda aparece neste tipo de publicação com uma “con-cessão” branca ao povo negro. Isso fica evidenciado, por exemplo, nas imagens que são selecionadas para as secções dos manuais dedicadas a esse assunto. As ima-gens de Joaquim Nabuco e da Princesa Isa-bel são recorrentemente lembradas para compor esses espaços; igualmente são tra-zidas imagens de José do Patrocínio e Luiz Gama. E, com isso, alguém pode objetar o argumento, inferindo: “Patrocínio e Gama são negros!”. Todavia, a tese apresentada permanece quando se problematiza qual o lugar onde Patrocínio e Gama aparecem. Também não se problematiza, na maioria dos casos, com maior densidade, a posi-ção dessas duas personalidades no contex-to. Como já mencionado, tal situação está mudando, mas o processo é lento e este texto visa justamente colaborar nesse pro-cesso, entendendo ser tão ou mais impor-tante que a alteração nos manuais a cons-tituição de um novo olhar sobre a abolição por parte dos/as docentes.

***

José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), no contexto da emancipação do Brasil durante a década de 1820, já co-gitava o fim do regime escravista. Contudo, de maneira sumária, podemos inferir que ele, em uma leitura de conjuntura acerta-da, se apercebeu da falta de respaldo social para um projeto que pusesse termo à es-cravidão naquele momento (SILVA, 2000). Nesse contexto, também havia a pressão da Inglaterra para pôr fim ao comércio de cativos da África para o Brasil, porém ela foi insuficiente para encerrar a prática es-cravista no país. Em 1831, sob pressão da Inglaterra, sobretudo, é aprovada no Brasil uma primeira lei que proibia o comércio atlântico de cativos. Entretanto, a eficácia desta lei foi nula. O comércio de cativos continuou com toda a intensidade.

A partir de 1845, a pressão ingle-sa sobre o comércio de cativos aumenta. Essa pressão assume várias formas: é di-plomática, pois aponta para a possibilida-de de sanções econômicas, e é militar, já que nesse ano o parlamento inglês aprova uma lei que permite à marinha britânica apreen der navios negreiros. Tal situação força o parlamento brasileiro a discutir a questão da escravidão. Destes debates emerge a Lei de 1850, que proibia de fato

Tinta nova, casa velha: as várias faces do

abolicionismo no Brasil e a pós-abolição*

Hilton Costa**

* Uma versão deste texto pode ser encontrada no material do CURSO EaD DE QUALIFICAÇÃO PRO-FISSIONAL EM EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS. MEC - Ministério da Educação / SECAD – Secretaria de Educação Básica Alfabetização e Diversidade / CIPEAD – Coordenação de Políticas de Integração de Educação a Distância / NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal.

** Graduado em História e Ciências Sociais, UFPR, mestre em História, UFRGS, doutorando em His-tória, UFPR, bolsista CNPq, NEAB-UFPR.

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o tráfico de cativos para o Brasil. Apesar do “contrabando” continuar a trazer cativos, a entrada de novos africanos vai decrescen-do de modo contínuo. Essa diminuição da oferta internacional de cativos acarreta a elevação dos preços.

Quinze anos após a promulgação dessa legislação, tem início outro evento re-levante para se compreender o processo de abolição da escravidão no Brasil: a Guerra do Paraguai. O conflito, que durou de 1865 a 1870, foi definitivo para pôr em xeque o que se pode denominar de consenso escra-vista presente na sociedade brasileira.

A Guerra do Paraguai é um marco importante para o início efetivo do declí-nio do escravismo no Brasil. Isso porque o período do conflito coincide com mudan-ças significativas na sociedade brasileira em vários setores. Nos meios políticos e letrados, a emergência de um pensamento de cunho liberal garantia uma base teóri-ca para o questionamento da escravidão, basicamente em virtude da imputação da baixa produtividade econômica do regime escravista em comparação com a produ-ção assalariada (SKIDMORE, 1976). Ainda a partir das considerações do liberalismo, a escravidão passou a ser cada vez mais vista como um sério obstáculo ao desen-volvimento do trabalho livre no Brasil, este último percebido como essencial ao progresso. As mudanças de orientação no meio letrado serão ainda mais significati-vas na década de 1870 quando, como in-dica João Cruz Costa em sua Contribuição à história das ideias no Brasil (1967), che-ga ao Brasil um “bando de ideias novas”, nos dizeres de Sílvio Romero (1851-1914), contemporâneo do processo. Dentre elas, estão em posição de destaque o reforço do pensamento liberal e o positivismo. Cada corrente, à sua maneira, fará uma crítica à escravidão, concordando ser ela um sinal do “atraso” brasileiro.

Os desdobramentos políticos e so-ciais diretamente ligados à Guerra do Pa-

raguai também são centrais para a crise de legitimidade do escravismo. A falta de con-tingentes brancos para as fileiras do Exér-cito fez com que se recrutassem escravos para a guerra e a presença desses fomen-tou, de certa maneira, um questionamen-to da escravidão, sobretudo entre o oficia-lato. Com relação à falta de contingentes brancos para compor o Exército Imperial Brasileiro, também passa pela resistência das famílias brancas, com mais recursos, a entregarem seus filhos ao serviço militar. Esse elemento, somado ao número reduzi-do de brancos na população total, remete à mencionada situação (COSTA, H., 2004; COSTA, E. V., 2008).

O conflito no Paraguai ainda obriga o Império, mesmo a certo contragosto, a “profissionalizar” suas forças armadas, es-pecialmente o exército, fator esse que será relevante na composição do exército como agente político nos anos seguintes à guer-ra. O desenvolvimento das ações de guerra também desencadeou uma crise política entre os partidos Liberal e Conservador. A tensão também se estabeleceu entre os dois partidos e o Imperador, além destes três com o Exército.

As raízes da incompatibilização dos militares com o sistema parlamentarista do Império estão também na Guerra da Trípli-ce Aliança (Guerra do Paraguai) e na forma como a dinâmica da guerra levou à coali-zão entre a racionalidade exigida pelas de-cisões e as práticas da política partidária tradicional. O loteamento político-partidá-rio dos comandos, a vasta corrupção e a in-compreensão do mundo político para com as dificuldades da campanha foram alguns elementos dessa incompatibilização. Seu ponto-chave, entretanto, foi o confronto entre Caxias e Zacarias, que redundou na inversão da forma tradicional de relaciona-mento entre o exército e o sistema político. A escolha de Caxias e a consolidação de sua liderança e autoridade se faziam, do ponto de vista militar, por critérios incon-

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tornáveis e exclusivamente profissionais. Elas representavam a solução de um pro-blema de comando em seus múltiplos as-pectos, conforme procuramos demonstrar. No mundo político, entretanto, elas eram a ultrapassagem de um princípio sagrado da cultura política, o monopólio dos cargos pelo partido no poder. Recuperou-se a ló-gica da via transversa, a nomeação de um gabinete afinado com o general, e abriu--se uma crise do sistema que se tornaria endêmica a partir de então (PERES COSTA, 1996, p. 302).

Esse trecho, de Wilma Peres Costa, presente em A espada de Dâmocles (1996), é elucidativo para a compreensão da cri-se política originada a partir da Guerra do Paraguai. Aqui, a autora mostra as tensões entre a lógica militar e a lógica da política imperial, sendo que dessas tensões surge uma oposição entre os militares (especial-mente os do Exército) com os políticos im-periais. O outro ponto de tensão entre o Exército e a política imperial era a questão escravista. Peres Costa dá um importante panorama de como esta situação se apre-sentava:

Durante a Guerra, a revelação da escravidão como a chaga secreta que carcomia as estranhas do Es-tado Imperial, atingia os militares de múltiplas maneiras. Em primeiro lugar, porque era utilizada pelo ini-migo com arma capaz de desestabi-lizar o Império. Embora fundamen-tal, esse não era, durante a guerra, o ponto mais importante, porque as grandes concentrações de escravos estavam em regiões distantes da zona de conflito, o que tornava a ameaça de López de rebelar os es-cravos brasileiros, de difícil concreti-zação. Permanece, porém, o fato de que a escravidão se revela como um elemento de vulnerabilidade estra-tégica, como questão que extrapo-lava a esfera do poder privado para se converter em uma questão que afetava a segurança do Estado e da Nação.

Mais, concretamente, a natureza da guerra – o enfrentamento com um exército de conscrição universal – fa-zia ressaltar na escravidão a causa fundamental do despreparo militar do Império e da inferioridade de seu exército perante o do inimigo. Ela frustrava os esforços de recrutamen-to, não apenas porque não podia se armar os escravos, mas porque impedia a participação de grande contingente de homens livres, ocu-pados em manter a disciplina no interior das fazendas, e também da Guarda Nacional, a força oligárquica mantenedora da ordem, particular-mente refratária nas províncias com grande concentração de escravos, como Minas Gerais e São Paulo. É, portanto, da contradição entre o sis-tema escravista e a existência de um exército profissional de caráter na-cional que emerge a consciência da oficialidade militar a partir da Guer-ra da Tríplice Aliança (PERES COSTA, 1996, p. 298-299).

Peres Costa indica nessa passagem, bem como no decorrer da obra como um todo, que a tensão fundamental do Exérci-to com o sistema escravista residia no par-ticularismo gerado pelo sistema. Ou seja, ela favorecia a formação e manutenção de tropas particulares, de caráter patrimonia-lista, em detrimento de um exército profis-sional, uma vez que era necessário contro-lar a escravaria ante o temor constante de uma revolta dos escravos.

Por outro lado, o exercício militar era visto como uma das artes mecânicas, ou manuais, desprezadas pela elite impe-rial, que associava esse tipo de atividade à escravidão. E a inclusão de ex-escravos no Exército só vinha a reforçar tal imagem, isto é,

[...] a incorporação de ex-escravos à tropa, nas várias categorias em que isto se deu, particularmente como substitutos e libertos pela coroa, abastardava por certo o exército como instituição, travestindo o ofi-cial em sucedâneo do feitor e apro-fundando a violência no interior da

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corporação (PERES COSTA, 1996, p. 299).

Todos esses elementos levaram o Exército, de certa maneira, a se aproximar do movimento abolicionista, sobretudo ao longo da década de 1880. Naquela déca-da, o movimento abolicionista se organiza nos moldes de um amplo movimento polí-tico, ainda que bastante heterogêneo, seja na ação, seja na composição, porém muito efetivo na campanha publicitária para des-legitimar a instituição da escravidão (COS-TA, E. V., 2008).

Assim, a perda de legitimidade da escravidão no Brasil é um processo gra-dual e tem início na década de 1850, pois nos anos posteriores, com a proibição do tráfico internacional de escravos funcio-nando melhor, houve uma redução signi-ficativa da oferta e o aumento dos preços, diminuindo a acessibilidade ao escravo. A diminuição da oferta e o aumento do pre-ço são elementos importantes na crise do escravismo, pois, sob estas circunstâncias, o número de pessoas detentoras das con-dições para possuir cativos se reduzia. A posse de escravos, antes generalizada, ia cada vez mais se tornando um “privilégio”, sendo que essa especificidade contribuiu para a crise de legitimidade do escravismo. Desta feita, é possível perceber que no al-vorecer da década de 1880 o escravismo, enquanto instituição, passou a ser visto como ilegítimo e com pouca sustentação. Os questionamentos a ele vêm de inúme-ros setores da sociedade brasileira.

Simultânea à crise do escravismo e seu enfraquecimento, ocorre – com força cada vez maior – a organização dos dife-rentes movimentos para a libertação dos cativos. Utilizarei aqui alguns exemplos, visando denotar o caráter multifacetado desse movimento. Enquanto a escravidão era consensual, os agentes sociais interes-sados na libertação dos cativos atuavam dentro das “regras” e “brechas” do siste-

ma. Nesse sentido, as irmandades religio-sas eram um espaço privilegiado de ação. Um dos poucos espaços onde a reunião de pessoas cativas era permitida, a irmanda-de religiosa funcionava como um ponto de apoio não só espiritual como material. No que interessa aqui, as irmandades negras e as pessoas a elas vinculadas agiam na compra da liberdade de cativos. Os recur-sos provinham de membros livres destas organizações, bem como do pecúlio dos cativos. Esse agir demonstrava um tipo de ação abolicionista que não visava neces-sariamente romper com o escravismo: ela existia desde pelo menos os fins do século XVIII e persistiu durante o século XIX. Po-rém, durante o século de 1800, especial-mente na sua segunda metade, o ques-tionamento do sistema começa a se fazer presente também para essas organizações.

Uma das marcas do Império do Bra-sil durante o II Reinado foi a liberdade de imprensa. Tal liberdade, aliada à parcialida-de dos jornais, permitiu intensos debates públicos acerca de temas centrais da vida política, econômica e moral do país. Com efeito, a questão da escravidão, a partir da década de 1870, é um destes debates, de modo que a imprensa teve um papel rele-vante na crítica sobre tal tema. O movimen-to abolicionista da e na imprensa foi deci-sivo para a quebra do consenso social em favor do escravismo e colaborou, sobrema-neira, na composição de um consenso em torno da ilegitimidade do regime.

A resposta a isso está ao nosso lado: nem todo mundo assiste à telenovela, po-rém quase todo mundo sabe o que está ocorrendo nela. Ou seja, as pessoas con-versam e uma pessoa alfabetizada nesse contexto é um difusor gigantesco da ex-pressão escrita. Cabe ainda lembrar que o jornal, nessa sociedade, ocupava um lugar equivalente ao da televisão na vida atual.

Acredita-se que com essa exposição fica evidenciado que o abolicionismo não foi um movimento, mas sim um conjunto

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de movimentos: organizados em torno de um objetivo comum – o fim do escravis-mo no Brasil –, mas formados a partir de motivações distintas. Entretanto, das várias faces do abolicionismo aqui indicadas, a mais importante delas ainda não foi citada: a ação abolicionista dos próprios cativos. Como indicado, por exemplo, por Eduardo Silva e João José Reis (1989), o escravis-mo era um sistema estruturado em função de negociação e conflito, ou seja, quer se afirmar que o cativo era um agente central ao questionamento da escravidão (SILVA; REIS, 1989). E este agente não é passivo; ele é, ao contrário, muito ativo e conscien-te das circunstâncias que o cercavam. As-sim, o cativo jogava com as possibilidades disponíveis, logo, a revolta é uma possibi-lidade nem sempre disponível: por vezes, associar-se a uma irmandade e depositar nela a esperança de liberdade era uma possibilidade muito mais viável.

A pessoa escravizada também se in-formava, por meio das brechas de convi-vência, das alterações das circunstâncias: faziam-se, em muitos casos, leituras de conjuntura. Assim, a percepção do enfra-quecimento do consenso escravista não se dava somente entre os livres. Os cativos também tinham alguma percepção dessa situação. E assim eles agiam sob, sobre e nessas circunstâncias.

Em suma, a grande intenção deste texto foi colaborar para a construção de um novo olhar sobre o fim do escravismo no Brasil no agir docente, na prática escolar. E fica ainda o convite para que, fazendo uso das ferramentas de tecnologia, atualmen-te com acesso mais fácil, você, estudante, visite os sítios dos programas de pós-gra-duação em História, Antropologia e Socio-logia das universidades brasileiras, onde é possível tomar contato com rica produção acerca das novas perspectivas sobre o pro-cesso do fim do escravismo no Brasil.

A denominada sabedoria popular se expressa de muitas formas. Uma delas – o

senso comum – é, em geral, qualificada como uma leitura estereotipada, equivoca-da e rasa da realidade sócio-histórica. Aqui se propõe outra leitura do senso comum: ao invés de tomá-lo sob as características mencionadas, tem-se a intenção de pensá--lo como uma interpretação da realidade sócio-histórica com base em valores co-muns a uma determinada sociedade. As-sim, é possível assumir que o senso co-mum só tem “vida” na medida em que ele está articulado a esses valores. Pode-se, então, para exemplificar esta situação, citar um breve artigo publicado por Euclides da Cunha em 3 de agosto de 1897, no Jor-nal O Estado de São Paulo, denominado “A vida das estátuas”. Neste texto, Euclides argumenta que vida de uma estátua, mui-tas vezes, independe de seu valor artísti-co, ela dependeria muito mais dos valores sócio-históricos por ela representados e, fundamentalmente, daquilo que a socieda-de nela reconhece. É de se acreditar que o mesmo seja válido para o senso comum, para as expressões cunhadas pelo senso comum. Tome-se como exemplo as se-guintes expressões: “ah, ele não tinha cara de ladrão!”, “preto quando não faz na en-trada, faz na saída!”, “hoje é dia de preto!”. Essas expressões só se formaram e, princi-palmente, só se mantêm porque elas têm respaldo social, a sociedade reconhece nelas algum tipo de legitimidade, de inter-pretação sócio-histórica. (CUNHA, E. 1975; COSTA, H. 2007a).

Uma dessas expressões serve de tí-tulo a este texto: “tinta nova em casa ve-lha!” – esta assertiva revela, no sentido uti-lizado na região de Curitiba, Paraná, a prá-tica de se querer dar nova aparência (exter-na) a algo já desgastado. Esta é a entrada para se discutir a diferenciação que se fará aqui entre narrativa e discurso. Entender--se-á neste texto narrativa como o formato dado a uma ideia, um conjunto de ideias, teorias, argumentos, posições religiosas, políticas, ou seja, o invólucro dado a uma

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argumentação. Por sua vez, discurso é per-cebido como o conteúdo da argumenta-ção, assim é possível inferir que diferentes narrativas carreguem um mesmo discurso. Desta feita, podem-se colocar várias tintas sobre uma mesma casa.

***

O fim do regime escravista no Brasil e os arranjos posteriores podem ser pen-sados segundo as premissas apresentadas. Algumas interpretações clássicas do Brasil, como a de Florestan Fernandes, atribuem peso bastante grande ao passado escra-vista para compreender os problemas de integração da população negra na socie-dade de classes (FERNANDES, 2008). Aliás, estes argumentos do passado escravista como grande responsável pelos problemas do presente e quiçá do futuro já estavam presentes em Joaquim Nabuco (NABUCO, 2003). Esposa-se aqui outra hipótese, as-sume-se que os “problemas de integração” da população negra se dariam muito mais pela manutenção após o fim da escravidão de comportamentos e práticas sociais li-gadas à lógica escravista. Comunga-se da posição de Mariza Corrêa:

[...] não parece ter sido apenas pela persuasão ideológica, apoiada em relações de favor entre as raças, que os negros e seus descendentes fo-ram socialmente excluídos da par-ticipação de vários setores da vida pública brasileira, mas também pela manutenção de uma política autori-tária em cuja definição a presença da discriminação não pode ser es-quecida. Essa exclusão parece ter sido também o resultado de uma atuação coerente, apoiada por um racismo “científico”, que legitimou iniciativas políticas, seja no nível nacional – como no caso dos privi-légios concedidos à imigração que tiveram como conseqüência uma entrada maciça de brancos no país – seja em nível regional, como políti-cas específicas de repressão das ati-vidades religiosas ou culturais dos negros. [...] Se não foi explicitado

em leis civis discriminatórias, como a segregação racial norte-america-na, o racismo enquanto crença na superioridade de determinada raça e na inferioridade de outras teve lar-ga vigência entre os nossos intelec-tuais no período do final do século passado [século XIX] e início deste [século XX], sendo o ponto central de suas análises a respeito de nossa definição como povo e nação (COR-RÊA, 2001, p. 43).

Logo, os “problemas de integração” estariam então no denominado pós-abo-lição; este período seria o recorte tempo-ral compreendido entre os anos de 1880 e 1920.

Visões de mundo em choque

O Decreto Imperial aprovado aos treze dias do mês de maio de 1888 já foi, é e continuará sendo ponto de muito de-bate. Para muitos, ele não mudou nada, pois o número de cativos que ele libertou era mínimo (caberia perguntar mínimo em relação a que); para outros tantos, ele é relevante por oficializar o fim do regime escravista no Brasil. Aqui não se tem a in-tenção de ingressar neste debate. Retoma--se o decreto aqui porque ele inaugura um novo período. Antes dele, a estruturação essencial da sociedade brasileira era com-posta de uma divisão básica: livres e es-cravos. Evidentemente, esta seria a divisão fundamental, posta a estruturar as demais. E afirmar isso não significa omitir a presen-ça de divisões e hierarquias outras, tanto no mundo dos livres como no universo dos cativos. O que se quer é indicar que, a par-tir de treze de maio de 1888, esta baliza primária, a divisão entre livres e cativos, da organização social brasileira deixa de exis-tir, ao menos em termos jurídicos.

A observação da experiência sócio--histórica revela, por meio de inúmeros exemplos, que a visão de mundo das pes-soas não muda por decreto. Entretanto,

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113Hilton Costa

por um lado, uma legislação pode ser um bom ponto de partida para a alteração da forma como as pessoas percebem a rea-lidade social. Mas, por outro lado, podem se formar novos mecanismos, fora da le-gislação, almejando manter os valores vin-culados à visão de mundo anterior. É sobre este segundo sentido que se propõe pen-sar as práticas implementadas em fins do século XIX no Brasil: uma forma de consti-tuir mecanismos úteis a manter no pós-es-cravismo algumas das hierarquias sociais vigentes à época do escravismo. Entenda--se: manter a população negra e de origem negra, preferencialmente, nas posições mais baixas. A pergunta que de pronto se forma após essas assertivas é: como isso se efetiva?

A hipótese a ser apresentada recai sobre a atuação do mundo letrado, inte-lectual, sobre a sociedade como um todo. Com efeito, a intelectualidade brasileira já tinha conhecimento há algum tempo das denominadas teorias racialistas que vinham sendo gestadas na Europa desde fins do século XVIII, porém, não houve in-teresse nelas até a década de 1870. A par-tir deste momento, elas começam a aden-trar e serem utilizadas nas interpretações e projetos de Brasil. E é na década seguinte, os anos 1880, quando a possibilidade do fim do regime escravista é cada vez mais plausível que as teorias racialistas ganham ainda mais espaço no Brasil.

A possibilidade de queda do escra-vismo significava, além do fim da utilização de um tipo de mão de obra, o fim de um ordenamento social e da visão de mundo dele resultante. Porém, certos agentes so-ciais buscaram de algum modo manter, depois da queda do escravismo, parte das hierarquias sociais formadas no regime escravista. Especialmente, a distribuição de “vantagens” à população branca sem contrapartida ao restante da população. Assim, é viável inferir que a Lei Áurea teve

um impacto muito maior na visão de mun-do da sociedade brasileira do que a Procla-mação da República. Pois, diferentemen-te da segunda, a primeira, ao menos em termos formais, rompeu o ordenamento social anterior: a divisão entre livres e cati-vos. E dessa divisão, dessa hierarquização, resulta a colocação da população negra e descendente de negra em posições de in-ferioridades. A impossibilidade de susten-tar esse tipo de hierarquização por meio do Direito fez entrar em cena outra área do conhecimento que poderia sustentar, com seus argumentos, uma divisão social parecida com a do escravismo – a Biologia. Maria Clementina Pereira da Cunha indica, de modo bastante incisivo, a forma como o discurso biológico, tomado como cientifi-co e, portanto, tido como isento de paixões políticas, é utilizado para manter, de algu-ma maneira, as hierarquias sociais do es-cravismo numa sociedade pós-escravista:

A desagregação das relações funda-das no vínculo jurídico entre senho-res e escravos era então, no discur-so político e em diferentes aspectos da vida diária, colorida pela forma “científica” de ler as desigualdades: novidade confortável, sem dúvida, porque fundada naquilo que a anti-ga forma de domínio tinha de mais visível. No período, a raça foi, pouco a pouco, sendo incorporada como uma maneira genérica de aglutinar antigas diferenças de etnia, de ori-gem ou de filiações de outro tipo que organizavam a vida social no regime escravista. Naqueles anos, como vimos, a noção se encaixava como uma luva aos anseios de ex--senhores angustiados. Flexível, pertencia simultaneamente à na-tureza e à história: biologicamen-te inferiores e ainda infantilizados, embrutecidos ou corrompidos pe-los séculos de servidão, os negros podiam permanecer legitimamen-te em posição subalterna, sem que isso comprometesse o edifício libe-ral do abolicionismo e da república (CUNHA, 2008, p. 18).

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A composição das bases teóricas do pensamento social brasileiro vai, então, recorrer ao racialismo europeu no intuito de construir novos padrões hierárquicos para o Brasil, ou melhor, manter o máximo possível das antigas hierarquias sob nova vestimenta válida e legítima. Desta feita, se constitui no Brasil entre os letrados, em fins do século XIX e início do século XX, um pensamento hegemônico pautado pelo ra-cialismo europeu.

Neste momento, um parêntesis mos-tra-se necessário e, dentro dele, primeira-mente cabe diferenciar racialismo de racis-mo: mesmo que as duas coisas andem jun-tas, muitas vezes elas não são sinônimas. Tzvetan Todorov apresenta, em seu belo texto Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana, uma diferen-ciação bastante útil entre racialismo e racis-mo que vale a pena retomar aqui. A partir das considerações de Todorov, é possível inferir que o racialismo é a doutrina, o cor-po teórico (contando com suas variações) que acredita e defende a existência de ra-ças humanas (em seu sentido biológico) e, em grande medida, na hierarquia “natural” destas raças. O racialismo contaria, então, com cinco premissas básicas: 1 – a existên-cia das raças; 2 – a continuidade entre o físico e o moral; 3 – a ação do grupo sobre a pessoa; 4 – a hierarquia universal dos va-lores; 5 – a política baseada no saber. Por sua vez, o racismo pode ser entendido, ao se seguir o caminho proposto por Todorov, como: 1 – o desprezo, o ódio por pessoas que possuam características físicas distin-tas das suas; 2 – uma prática de discrimi-nar, de colocar em posição de inferioridade o diferente. Tanto o racialismo quanto o ra-cismo abrem margem a programas políti-cos (TODOROV, 1993). Em resumo, pode--se dizer que o racialismo é a base teórica que sustenta o racismo, este sim como o ato de discriminar e de inferiorizar outras pessoas com base nas características físi-cas. E, assim, fecha-se este parêntesis.

Assim, a ruptura inaugurada pela igualdade jurídica “obriga” as elites brasi-leiras interessadas em manter o máximo possível do antigo ordenamento (a ordem escravocrata) a buscar novos argumen-tos de legitimidade para tal ordenamento, porém, isso não poderia ser mais feito to-mando por base o Direito; assim, se recor-re à Ciência, à Biologia, ao racialismo e ao racismo científico. Desta feita, não se con-figura em disparate presumir que a adoção desse jargão racialista se dá muito em fun-ção da vontade de manter uma hierarquia social que dava uma série de vantagens à população branca (CORRÊA, 2001; COSTA, H., 2007b; CUNHA, 2008).

Com efeito, é possível, então, afir-mar que a adoção hegemônica dos pre-ceitos do racialismo no Brasil é dar tinta nova, utilização da mais refinada ciência da época, a uma casa velha, o antigo ordena-mento escravocrata. Ou seja, manter, mes-mo sob um regime de igualdade jurídica, a população negra e de descendentes de negros em posições sociais inferiores, não mais pela situação de cativo ou de liberto, situações previstas pelo Direito à época do escravismo, mas pela origem racial. A po-sição social inferior destas pessoas passa a ser justificada e legitimada pela origem racial inferior, pois biologicamente essas pessoas seriam inferiores, de modo que nenhuma política de intervenção poderia reverter esse quadro, pois “quem é bom nasce feito” e ademais “pau que nasce tor-to não se endireita mesmo”.

A visão de mundo proposta pelo ra-cialismo acomodava, então, vários desejos latentes das elites intelectuais brasileiras: manter sua posição; justificar e legitimar a posição das populações negras e de des-cendentes de negros em posições inferio-res não por uma ação delas, mas por sua própria condição de nascimento; justifica-va o não investimento nessas populações; fornecia também justificativa para a cam-panha de imigração. Isso para citar alguns

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pontos que podem evidenciar por que esta visão de mundo se fixou no Brasil, encon-trou respaldo social, respaldo esse que ainda permanece e pode ser visualizado nas expressões provenientes do senso co-mum aqui citadas: “ah, ele não tinha cara de ladrão!”; “preto quando não faz na en-trada, faz na saída!”; “hoje é dia de preto!”; “quem é bom nasce feito” e ademais “pau que nasce torto não se endireita mesmo”.

Essas questões permitem pensar que a si-tuação socialmente desfavorável de parte significativa da população negra e descen-dente de negros no Brasil não é resultado direto do passado escravista ou da grande imigração, mas sim de uma “política” (não em termos de uma legislação) racialista e racista que procurou manter (se insiste) depois do fim da escravidão algumas de suas premissas.

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Este livro foi impresso na Imprensa Universi-tária da Universidade Federal do Paraná para o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR, em julho de 2013. Foram utilizadas as fontes Benguiat Book-BT, tamanhos 8, 9, 10, 11, 12 e 18.